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A filosofia na sala de aula (FISA) - 1º Parte Maria Lúcia de Arruda Aranha Sumário A filosofia na sala de aula 1. Por que estudar filosofia? 2. A experiência do pensar filosófico 3. Reflexão preliminar sobre o método 4. Pressupostos antropológicos 5. O risco de instrumentalizar a filosofia 6. A filosofia deve preparar para a cidadania?

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A filosofia na sala de aula (FISA) - 1º Parte

Maria Lúcia de Arruda Aranha

Sumário A filosofia na sala de aula

1. Por que estudar filosofia?

2. A experiência do pensar filosófico

3. Reflexão preliminar sobre o método

4. Pressupostos antropológicos

5. O risco de instrumentalizar a filosofia

6. A filosofia deve preparar para a cidadania?

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Por que estudar filosofia?

É bem provável que seus alunos já lhe tenham perguntado: “Por que estudar

filosofia?”. Há nessa indagação certo desconforto com a nova disciplina do currículo.

Compreende-se a pouca disposição para uma disciplina orientada para a reflexão e

que parece não servir para nada. Vivemos em um mundo pragmático, voltado para

soluções práticas imediatas e também dominado pela imagem, pelo efêmero e pela

velocidade. Acrescentemos a esse quadro o fascínio que a realidade virtual exerce

sobre as pessoas. E com razão. A web nos abre portas para inúmeras possibilidades de

informação, entretenimento e interação e para o contato direto com amigos e

desconhecidos. Vivemos o tempo de uma verdadeira revolução – a revolução digital -,

da qual participamos a cada novo recurso tecnológico colocado à nossa disposição.

Mesmo que as características dos novos tempos espelhem certo distanciamento da

filosofia, percebemos, no entanto, um crescente interesse pelo debate filosófico. Nem

sempre ele ocorre de modo explícito, mas aparece no questionamento cotidiano de

questões políticas, éticas e estéticas. Por exemplo, a informação sobre países

submetidos a tiranias, sejam elas laicas ou religiosas, certamente desperta discussões

em torno do que é certo ou errado na política. O mesmo ocorre com relação às

denúncias de corrupção nos países democráticos, além de debates sobre aborto,

casamento de homossexuais, eutanásia e assim por diante. Esses assuntos circulam

pela mídia e nas redes sociais, criando controvérsias de natureza ética e política. Ou

seja, provocam o debate filosófico. Mais ainda, têm provocado atuações de diversos

tipos, como vimos na eclosão dos movimentos de rua em inúmeras cidades brasileiras

a partir de junho de 2013. Pensando bem, justamente a riqueza dessa informação

diária, permeada por conflitos, constitui o solo para contextualizar inúmeros temas

que exigem argumentação filosófica.

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A experiência do pensar filosófico

Diante do que dissemos, poderíamos concluir que o olhar filosófico seria acessível a

qualquer ser humano, independentemente de sua futura profissão ou de seu modo de

vida, desde que lhe seja dada oportunidade.

Lembrando o filósofo italiano Antonio Gramsci (1986, p.35),

“... é possível imaginar um entomólogo especialista sem que todos os outros

homens sejam entomólogos empíricos, um especialista em trigonometria,

sem que a maior parte dos outros homens se ocupem da trigonometria etc.

(...), mas é impossível pensar em um homem que não seja também filósofo,

que não pense, já que o pensar é próprio do homem como tal.”

Em outras palavras, diante dos problemas apresentados pela existência, os seres

humanos tendem para a reflexão – a não ser que sejam artificialmente impedidos de

exercitá-la. Com isso não estamos identificando a filosofia do especialista com a

“filosofia de vida”, porque esta não possui o rigor daquela. Apenas reconhecemos o

fato irrecusável de uma predisposição para a problematização e para buscar as

justificativas racionais dos posicionamentos pessoais diante de fatos e doutrinas.

Alguns poderiam dizer que, se é espontânea a tendência humana para a discussão

filosófica, cada um poderia aprender pela própria vida. No entanto, é importante

oferecer condições para facilitar a passagem da simples opinião à reflexão crítica. O

pensar do filósofo não se reduz a emitir opiniões, mas em problematizar a realidade,

na busca do seu sentido. Ou seja, o filósofo detecta problemas bem definidos e

procura compreendê-los por meio de conceitos e argumentação. Para aprender a

filosofar não basta, no entanto, apenas repetir o que os filósofos disseram, mas, em

um primeiro momento, entender o motivo pelo qual aquelas questões foram

levantadas por eles, no momento em que viviam.

Encontramos aí uma das funções do professor de filosofia no ensino médio, ao

oferecer condições para transformar a experiência vivida numa experiência

compreendida. E como realizar esse projeto? Certamente por meio de conceitos e

exercitando a argumentação com base na tradição filosófica. Para tanto, precisamos

de uma metodologia.

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Reflexão preliminar sobre o método

Etimologicamente, a palavra método é constituída pelos termos gregos metá, “por

meio de”, e hodós, “caminho”. O método é, portanto, um “caminho por meio do qual”

chegamos a um fim, atingimos determinado objetivo.

Ao buscar um método para o ensino de filosofia, é preciso, em um primeiro

momento, averiguar quais são os fins pedagógicos do ensino de filosofia. Comecemos

comparando a metodologia do filósofo à do cientista, para constatarmos uma

diferença fundamental:

- os cientistas procuram manter certa “cumplicidade metodológica”, caracterizada

pelo que se chamou de paradigma, um modelo comum a todos os cientistas de um

determinado campo do saber, durante um período de tempo;

- já os filósofos não são unânimes quanto às regras do método, de modo que os

caminhos percorridos por eles variam conforme o filósofo, como percebemos no

contato com o pensamento de Platão, Descartes, Espinosa, Hegel, Husserl, para citar

apenas alguns.

Ao escolher o conteúdo a ser discutido em cada ano do curso, ocorre algo

semelhante: nas disciplinas das áreas de matemática e ciências da natureza, por

exemplo, o campo do saber é aceito pela comunidade científica, o que orienta o

professor dessas disciplinas na composição daquele conteúdo. Já para a aula de

filosofia, a flexibilidade de escolha permite a diversidade tanto do conteúdo como da

metodologia empregada.

A diferença entre o ensino das demais disciplinas e o ensino da filosofia nos coloca a

seguinte questão: “Se não existe um método único para orientar os diversos filósofos –

já que não há uma filosofia, mas filosofias –, qual o sentido, aqui, de buscar um

método para ensinar a filosofar?”.

De fato, o professor-filósofo possui sua visão de mundo, como todo ser humano

integrado a seu tempo, ciente dos problemas éticos e políticos diante dos quais toma

partido. Como também varia o conhecimento que o professor dispõe de história da

filosofia, pode-se pressupor que ele tenha o seu próprio método.

A objeção, porém, não pode ser levada em consideração porque o professor tem

um compromisso pedagógico com seus alunos, o que justifica a troca de experiências

com os educadores e as reflexões que os filósofos já fizeram a respeito. Por esse

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motivo, apresentamos algumas reflexões baseadas em obras sobre didática de

metodologia do ensino de filosofia, das quais o professor poderá compartilhar com

algum proveito.

Para começar, vamos examinar os pressupostos – nem sempre explícitos – que nos

orientam quando escolhemos a maneira de organizar nossos cursos em seu conteúdo

e prática. Destacaremos então os pressupostos antropológicos e os pressupostos

epistemológicos.

Pressupostos antropológicos

Desde as mais antigas civilizações, uma imagem de ser humano orienta pais e

mestres na tarefa de educar as novas gerações. Conforme a época e o lugar, esse

conceito de humanidade é transmitido de maneira mais impositiva e rígida. Ou então,

como vem ocorrendo no mundo contemporâneo, com maior ênfase na relação

dinâmica entre pessoas que constroem uma realidade em constante mutação.

É importante saber como, ao longo do tempo, essas concepções antropológicas 1

foram gestadas, delineando as respostas à indagação “O que é o ser humano?”. Os

pressupostos antropológicos da educação resultam portanto da pergunta “Que tipo de

ser humano pretendo formar?”. Vale lembrar que houve tempo em que, por exemplo,

as mulheres eram educadas para o trabalho do lar, o casamento e a maternidade2.

Essas características compunham o estereótipo da feminilidade e reforçavam o ideal

de submissão da mulher ao homem. Também os trabalhadores permaneciam

excluídos da educação regular ou encaminhados ao ensino técnico, para a

profissionalização e não para a formação integral do sujeito. Embora esses modelos

ainda persistam de alguma maneira, inclusive no imaginário de muita gente, a

educação universal faz parte do ideal democrático contemporâneo, que visa acolher

alunos sem distinção de classes e gênero.

1 Antropologia: do grego anthrôpos, “homem” e lógos, “teoria”, “estudo”. Conjunto das disciplinas que

estudam o ser humano.

2 Sugestão de leitura: trecho sobre a educação da mulher no Brasil, no final do séc. XVIII (Maria Beatriz Nizza da Silva, in Maria Stephaou e Maria Helena Camara Bastos, Histórias e memórias da educação no Brasil.)

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Aqui nos interessa examinar como o professor de filosofia se apropria desses

modelos, sejam os da tradição, sejam os sugeridos pela legislação ou, ainda, de um

projeto novo e hipotético de realização humana. Podemos dizer que a filosofia estaria

a serviço de plasmar nos seus alunos uma visão ética e política? Cabe a ela formar o

cidadão? Essas questões dão margem a polêmicas, como veremos a seguir.

O risco de instrumentalizar a filosofia

O compromisso com o exercício do filosofar decorre do fato de que não cabe ao

professor encaminhar os alunos na direção “certa” ou “guiá-los como um farol” para

evitar “extravios”. A intenção não é transmitir convicções, mas dar oportunidade para

desenvolver as competências necessárias para pensar por conta própria, ou seja, para

alcançar a autonomia intelectual.

Qual seria, então, o objeto do ensino de filosofia no ensino médio? Dizendo de

outra forma, a aula de filosofia teria objetivos além do próprio filosofar?

Vejamos alguns exemplos de risco de instrumentalização da filosofia.

A filosofia deve preparar para a cidadania?

Uma polêmica despertada pelo artigo 2º da LDB de 1996 nos ajuda a refletir um

pouco mais sobre o tema do risco da instrumentalização da filosofia:

“A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de

liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno

desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e

sua qualificação para o trabalho.” Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 19 abr.

2013.

Com relação ao ensino de filosofia, perguntamos: “Podemos dizer que um dos

objetivos da filosofia no ensino médio é ensinar cidadania?”. Posicionando-se sobre o

debate, vejamos o que diz o documento do MEC, Orientações Curriculares para o

Ensino Médio, elaborado em 2006, e que acrescenta algumas nuanças ao texto da LDB:

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“Independentemente, neste momento, de qualquer avaliação acerca da

concepção que se apresenta na legislação, cabe ressaltar, em primeiro lugar,

que seria criticável tentar justificar a Filosofia apenas por sua contribuição

como um instrumental para a cidadania. Mesmo que pudesse fazê-lo, ela

nunca deveria ser limitada a isso. Muito mais amplo é, por exemplo, seu

papel no processo de formação geral dos jovens.” (BRASIL. Ciências

humanas e suas tecnologias. In: Orientações Curriculares para o Ensino

Médio, 2006. v. 3. p. 25-26.)

Após ressaltar que preparar para a cidadania é “um papel do conjunto das

disciplinas e da política pública voltada para essa etapa da formação”, lemos na

mesma página do referido documento:

“A pergunta que se coloca é: qual a contribuição específica da Filosofia em

relação ao exercício da cidadania para essa etapa da formação? A resposta a

essa questão destaca o papel peculiar da filosofia no desenvolvimento da

competência geral de fala, leitura e escrita – competência aqui

compreendida de um modo bastante especial e ligada à natureza

argumentativa da Filosofia e à sua tradição histórica . [realce nosso] Cabe,

então, especificamente à Filosofia, a capacidade de análise, de reconstrução

racional e de crítica a partir da compreensão de que tomar posições diante de

textos propostos de qualquer tipo (tanto textos filosóficos quanto textos não

filosóficos e formações discursivas não explicitadas em textos) e emitir

opiniões acerca deles é um pressuposto indispensável para o exercício da

cidadania”.

A educação para a cidadania, portanto, não se reduz necessariamente à leitura de

textos específicos sobre cidadania, embora estes não sejam desconsiderados. O ensino

de filosofia tem como objetivo desenvolver a competência discursivo-filosófica. Seria

possível exercer a cidadania quando se alcança a autonomia do pensar crítico que, na

filosofia. Ao recorrer à tradição filosófica e levantar problemas, o pensar filosófico

estimula a indagação e fortalece a capacidade de conceituação e argumentação.

Apresentaremos, mais adiante, os procedimentos para desenvolver a competência

discursivo-filosófica.