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ADVOCACIA E SOLIDARIEDADE SOCIAL

I - GENERALIDADES

Sem sapiência nem verbo à altura deste tão distinto auditório, só me resta pedir a

quem me escuta paciência, benignidade e tolerância, em suma solidariedade.

O tema que nos foi proposto envolve os conceitos de sociedade, solidariedade e

advocacia.

Referir-nos-emos, brevemente, em primeiro lugar às ideias de sociedade,

cidadania e de solidariedade e, depois à profissão liberal de advogado, estruturada sob a

égide da Ordem dos Advogados, no quadro de princípios, uns consignados nos

respectivos Estatutos, e outros nas leis em geral, substantivas e adjectivas.

II - SOCIEDADE

Sabe-se que a sociedade em sentido amplo é o conjunto organizado e estável de

pessoas que procuram, em vivência conjunta e consensual, atingir determinados

objectivos.

É uma unidade diferente da soma das pessoas que a integram, mas dela não

substancialmente distinta, porque se trata de uma unidade de relação e, como facto

envolve, pela própria natureza das coisas, o dever de sociabilidade.

A existência dessa unidade de relação implica, por outro lado, que cada

elemento da sociedade colabore de algum modo com a existência e o desenvolvimento

harmonioso dos outros, porque disso depende a sua própria existência como ser social

que não pode deixar de ser.

III - CIDADANIA

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Intimamente relacionado com o conceito de sociedade está o conceito de

cidadania, do qual resulta para os membros do Estado-Colectividade a titularidade de

direitos e a sujeição a deveres, designadamente o controlo do exercício do poder político

e a assunção de encargos e de responsabilidades para com a sociedade civil, em quadro

de complementaridade.

IV - SOLIDARIEDADE

A solidariedade, mero aspecto da cidadania, era outrora entendida como

fraternidade, modelada no âmbito da sociedade familiar, e tida como virtude

indispensável nas relações com os outros, sob as ideias de humanidade, amizade,

simpatia, caridade e benevolência.

É um sentimento de pertença a uma formação social, incluindo o Estado, e uma

relação envolvida dessa pertença, partilha e responsabilização, que liga cada indivíduo à

sorte e às vicissitudes dos demais.

Esta ideia de solidariedade social, enaltecida em finais do século XVIII na

Revolução Francesa, foi desenvolvida em finais do século XIX e no início do século

XX com vista a contrapor ao socialismo de Estado de Bismarck a via da coordenação de

esforços entre as diversas instituições não estaduais.

Enformou primeiramente os direitos da terceira geração, ou seja, os direitos

sociais que foram o lema do Estado Social ou Estado Providência, e, posteriormente, os

direitos fundamentais da quarta geração, como é o caso dos chamados direitos

ecológicos.

Envolve um dever de cada um dos cidadãos, da sociedade civil e do Estado,

realiza-se em cada dia em função de complementaridade global para suprimento das

dificuldades do Estado em assegurar o essencial da realização humana minimamente

digna.

Assume uma dimensão jurídica e política cuja realização envolve toda a

comunidade estadual, como comunidade política e social, e a sociedade civil ou

comunidade cívica.

Manifesta-se pela actuação espontânea de indivíduos e grupos sociais e pelo

empenhamento do Estado nessa actuação, confrontado, num quadro de escassez de

meios, com a quebra do ritmo do desenvolvimento económico, o egoísmo, a mudança

brusca de valores sociais e a sua incapacidade ou fracasso de realização dos fins a que

se propôs.

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É um dos mais significativos valores do Homem, apesar de ter de enfrentar

situações intensamente competitivas, que não raro o forçam ao chamado

comportamento de ilha ou de ser isolado.

Mas à medida em que seja posto em causa o modelo do Estado Social de bem

estar, os cidadãos e a sociedade civil são a cada passo convocados para a sua

desinteressada colaboração na realização dos diversos fins sociais. 1

Nesse quadro de necessidade, surgem organizações não governamentais, pessoas

colectivas de utilidade pública administrativa, instituições particulares de solidariedade

social e o próprio voluntariado social individualmente empreendido, a operar no tecido

social. 2

V – ADVOGADOS E ADVOCACIA

Os advogados são tão antigos como a toga, porque quando foram criados os

cargos de magistrado nas sociedades mais antigas, designadamente na romana, logo o

foram os oradores, mais tarde, curiosamente, designados por vozeiros.

A profissão de advogado, resultou obviamente da necessidade de

institucionalização da sua actividade essencialmente intelectual, que reverteu ao modelo

de profissão liberal, por lhe ser inerente a independência face a qualquer ou tipo de

poder público ou privado.

É uma profissão que exerce funções típicas socialmente muito relevantes, em

razão do que lhe corresponde um estatuto assaz complexo, desenvolvido ao longo do

tempo, com uma vertente significativa de deontologia e de solidariedade social.

Os cidadãos têm interesse em que esta velha e prestigiada profissão não perca o

seu carácter liberal verdadeiro e próprio, pelo que não pode deixar que tal seja posto em

causa.

Para o efeito, devem ter em atenção a dinâmica resultante da implementação de

sociedades de advogados, da crise económica e da justiça, da falta de limites à

licenciatura em direito e da quebra da qualidade do ensino em geral e do universitário

em particular.

1 JOSÉ CASALTA NABAIS, “Algumas Considerações sobre a Solidariedade e a Cidadania”, Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXXV, Coimbra, 1999, páginas 145 a 147. 2 Reporta-se ao voluntariado a Lei nº 71/98, de 3 de Novembro, e do Decreto-Lei nº 389/99, de 30 de Setembro, alterado pelo Decreto-Lei nº 176/2005, de 25 de Outubro.

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Os advogados portugueses, essencialmente por via da prestação de serviços de

patrocínio, sempre foram solidários com os seus semelhantes pobres. No passado, eram

considerados soldados togados que lutavam na defesa da vida, dos bens e da honra dos

que sofriam afronta, e os seus conselhos a quem lhos pedia e deles precisava eram

considerados esmola espiritual.

Dizia-se, então, que a verdadeira nobreza consistia em ser advogado bom e

íntegro, defensor dos justos e dos que razão tivessem, não patrocinador de causas

frívolas, que se contentava com pouco, honesto no vestir, ponderado no aconselhar,

maturo nas acções, afável no convívio, severo bastante na função, prestador de auxílio

na pobreza e escritor de pena elegante.

Havia à volta dos advogados uma áurea de requintada ética e de solidariedade,

eram permanentemente confrontados com a postura que a sociedade deles esperava,

assim: se és advogado, sê fiel; se és orador, fala com elegância; se és patrono, dá o teu

patrocínio, sobretudo aos pobres; se és defensor defende as viúvas, os inocentes e os

miseráveis; se és causídico luta apenas pelas causas justas e repele as injustas e

irrazoáveis, pois não deves defender a culpa, o crime e o dolo sagaz.

E eram confrontados com essas regras éticas e de solidariedade social em

permanente questionamento, assim: Como te podes chamar advogado, quando oprimes

a justiça? E patrono quando recusas o teu patrocínio aos pobres ? E orador, se és

indolente e de rude talento? E causídico se não entras no âmago da causa e não estudas

os negócios desde a raiz? 3

Foi seu primeiro patrono o Espírito Santo e era perto da sede da Ordem dos

Advogados, na Igreja de São Domingos, que os advogados celebravam em sua honra,

acreditando que ele lhes inspiraria o que deveriam dizer, lhes iluminaria a inteligência,

lhes daria o dom da sabedoria e o conhecimento das coisas, para agirem com

maturidade, escreverem com prudência, argumentarem com moderação e falarem com

verdade.

VI – ORGANIZAÇÃO DA ADVOCACIA E SOLIDARIEDADE

A primeira organização de advogados, envolvida da ideia de solidariedade cristã,

porventura na génese da Ordem dos Advogados, teve origem numa confraria, a

3 JERÓNIMO DA SILVA ARAÚJO, “Perfectus Advocatus”, século XVIII, tradução de Miguel Pinto de Meneses, BMJ n 180 19 a 99.

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Confraria do Espírito Santo da Casa da Suplicação, cujo compromisso data de 1566,

aprovado por alvará de 25 de Setembro de 1566, que teve indulgências do Papa

Gregório XIII no Breve de 26 de Janeiro de 1573.

Curiosamente figuravam como confrades da mesma Irmandade, em harmónica

convivência, além do mais, os advogados, o regedor das justiças, o chanceler mor, os

desembargadores do Paço e da Casa e da Fazenda, os distribuidores, os inquisidores, os

escrivães e os meirinhos.

Os advogados tiveram particular relevo naquela Confraria, certo que um dos

seus dois mordomos deveria ser advogado, o qual empunhava nas cerimónias uma vara

branca com a insígnia dourada do Espírito Santo, porventura na origem da actual

expressão bastonário.

O tempo passou, os advogados formaram sociedades jurídicas em Lisboa, Porto

e a de Braga, e conseguiram a aprovação dos respectivos estatutos em Abril de 1835.

Três anos depois, por via da Portaria de 23 de Março de 1838, surgiu a

Associação dos Advogados de Lisboa, sem obrigatoriedade de inscrição, fortemente

enformada pela ideia de solidariedade social.

E pelo Decreto nº 12334, de 18 de Setembro de 1926, durante o Ministério de

Manuel Rodrigues, foi instituída a Ordem dos Advogados, também inspirada na referida

ideia. 4

Nela têm exercido as mais altas funções ilustres advogados que lhe imprimiram

e procuram manter a ideia de solidariedade, deste Vicente Monteiro, Fernando Martins

de Carvalho, Barbosa de Magalhães, Domingos Pinto Coelho, Mário Pinheiro Chagas,

Carlos Pires, Morais de Carvalho, Catanho de Menezes, Adelino da Palma Carlos,

Pedro Pita, Ângelo de Almeida Ribeiro, Mário Raposo, Coelho Ribeiro, Augusto Lopes

Cardoso, Maria de Jesus Serra Lopes, António Pires de Lima, José Miguel Júdice e

Rogério Alves.

Para documentar espírito de solidariedade no âmbito da advocacia, considerando

a designação do espaço em que nos encontramos, permitam-me que recorde aqui o que

poucos dias antes da revolução de Abril de 1974 foi escrito, com entusiasmo e alegria,

por um dos ilustres bastonários desta casa, Ângelo de Almeida Ribeiro, sobre o êxito da

4 FERNANDO MARTINS DE CARVALHO, “Origens da Ordem dos Advogados em Portugal”, O Direito, Ano 123º, 1991 – IV (Outubro-Dezembro), págs. 713 a 732.

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criação do 1º Gabinete de Consulta Jurídica que começou a funcionar no dia 18 de

Março de 1974:

“Pessoas de todas as categoriais sociais, embora, na sua maioria de condição

económica modesta, afluem à Ordem todas as noites ou tardes de sábado, para serem

elucidados dos direitos que lhes assistem ou das obrigações que sobre eles impedem. E

em cada sessão atendem-se cerca de dez consulentes.

“A iniciativa partiu de um grupo de jovens estagiários, o Conselho Geral da

Ordem não aprovou, propriamente, um Regulamento do Gabinete, mas estabeleceu a

seguinte meia dúzia de princípios fundamentais: a consulta é inteiramente gratuita; os

consulentes podem conservar completo anonimato; os pareceres não vinculam a Ordem;

os estagiários são assistidos por um colega mais experiente; é vedado o seguimento das

questões apresentadas, mesmo fora do gabinete; os advogados ou candidatos presentes à

consulta não podem aceitar o patrocínio nem darem a indicação de nomes para o

mesmo.

“As salas da Ordem conheceram, novamente, um movimento desusado e o seu

prestígio aumenta aos olhos do público, que vê neste serviço uma actividade

eminentemente social e desinteressada, mas extremamente útil para aqueles que

carecem de um conselho ou duma orientação para os graves problemas que os afligem.

“Porém, tem sido muito reduzido o número de candidatos que se oferece para

participar no Gabinete, mau grado o vivo interesse que lhes desperta a técnica da

consulta jurídica. E os advogados voluntários ainda são em menor número, dando-se

mesmo o caso de o mesmo advogado ter tido necessidade de vir várias vezes prestar o

seu concurso, o que também tem acontecido com o próprio Bastonário da Ordem.

“Daí ter sido dirigido um apelo, que agora se renova a todos os advogados de

Lisboa, no sentido de fazerem saber, por simples telefonema para a secretaria, qual o dia

que mais lhe convém para darem o seu concurso a estes Gabinetes. É que deixar morrer

tal iniciativa, original no nosso País, seria lamentável e não deporia a nosso favor. E isto

porque é falsa a ideia de que ao advogado só interessa o que lhe traga fama ou

dinheiro”.

Era, de facto assim, no quadro da informação jurídica e da assistência judiciária,

desde os primórdios da organização da advocacia, em que sobressaía a sua ancestral

tradição de solidariedade com os cidadãos de poucos recursos económicos.

Mas também assim era noutros países da nossa área cultural, conforme decorre

da moção aprovada no VI Congresso Nacional Jurídico-Forense Italiano, realizado em

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Génova nos dias 18 a 23 de Setembro de 1961, segundo a qual o Congresso considerava

e reivindicava como título de honra para a dignidade da toga, segundo as suas nobres

tradições, a prestação desinteressada da actividade de defesa a favor dos

economicamente carenciados. 5

E numa breve memória dedicada aos advogados de Paris, alguém escreveu não

haver na sociedade ente fraco e desprotegido, vítima de perseguição violenta e insidiosa,

direito ignorado, liberdade asfixiada que peça socorro a um advogado e que não

encontre algum decidido a defender interesses que não são os seus. 6

VII – ADVOCACIA, A CONSTITUIÇÃO E O ACESSO AO DIREIT0 E

AOS TRIBUNAIS

Face à Constituição, há direitos fundamentais dos cidadãos que importa

considerar, como é o caso, por um lado, de a todos ser assegurado o acesso ao direito e

aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, e de a

justiça não poder ser denegada por insuficiência de meios económicos (artigo 20º, nº 1,

da Constituição).

E, por outro, de todos terem direito, nos termos da lei, à informação e consulta

jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante

qualquer autoridade (artigo 20º, nº 2, da Constituição).

Foram, pois, consagrados direitos fundamentais de acesso aos tribunais, ou seja,

o direito de agir em justiça para defesa dos próprios direitos e de não ser afectado por

tratamento processual discriminatório, os quais envolvem o direito a patrocínio

judiciário ponderado e eficaz.

Foi por isso que, a cerca de três lustros do termo do século vinte e do segundo

milénio, com os Decretos-Leis nºs 387/B/87, de 29 de Dezembro, e 391/88, de 26 de

Outubro, o Estado assumiu a responsabilidade de remunerar os advogados e os

advogados estagiários que prestassem serviço de patrocínio e de consulta jurídica no

quadro da protecção jurídica.

Estava-se numa fase de crescimento económico, aumentava o número de

advogados, começavam a surgir as sociedades de advogados, e ainda poucos

configuravam a crise que, em quadro de globalização, havia de chegar, manifestada,

5 Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Ano XXXIII, nº 1, Março de 1979, pág. 97. 6 ADALBERTO ALVES, “História Breve da Advocacia em Portugal”, Porto, 2003, pág. 191.

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além do mais, pela falta de postos de trabalho e pela crise ou ruptura na administração

da justiça.

Foi nesse quadro que o Estado, no cumprimento das suas obrigações decorrentes

da Constituição, passou a remunerar os advogados e advogados estagiários que

participassem na actividade de consulta jurídica de apoio judiciário na modalidade de

patrocínio, revertendo, de algum modo, a sua ancestral acção solidária nessa matéria.

É que a situação social de então, envolvente do aumento exponencial de

advogados e da escassez de clientes, da susceptibilidade de implicação do

encorajamento dos indecisos na litigância, do aumento dos litígios ajuizados e do

acréscimo da falta de resposta dos alguns tribunais, não se coadunava com o modelo de

ética e solidariedade de pretérito.

Actualmente, sob a pressão do quadro social de crise que se vive, os causídicos

são porventura forçados a eleger como valor preponderante a representação dos clientes

e a defender, não raro incondicionalmente, as pretensões de pessoas que se posicionam

face às outras como viciados na em demandas judiciais ou numa linguagem menos

própria como litigantes militantes. 7

VIII – SOLIDARIEDADE DA ADVOGACIA DECORRENTE DA LEI

A ideia de solidariedade social também ressalta de várias normas relativas à

organização da profissão advocatícia, constantes dos respectivos Estatutos, como é o

caso:

- da defesa do Estado de Direito e dos direitos, liberdades e garantias dos

cidadãos e da colaboração na administração de justiça, de assegurar o acesso ao direito,

do zelo pela função social, da promoção e formação inicial e permanente dos advogados

e do reforço da solidariedade entre eles (artigo 3º, alíneas a), b), d) e f)).

- da nomeação de advogado ao interessado que lho solicite por não encontrar

quem voluntariamente aceite o seu patrocínio (artigo 50º, alínea p)).

- dos deveres para com a comunidade, designadamente a colaboração no acesso

ao direito, na defesa dos direitos, liberdades e garantias, o pugnar pela aplicação das

7 É o caso de Leonardo, figura literária, que perdeu tudo o que tinha na justiça com demandas de chicana, e, já pobre como Job, velho e atoleimado, sentado na soleira da porta nos dias de feira a ver passar o povo, quando muitos lhe perguntavam – quer vir tio Leonargo? E ele respondia: não tenho pernas, se não bem gostava! Está um dia bendito. Então os transeuntes retorquiam: bom para semear batatas? Quais batatas, respondia ele, bom para ir pôr uma demanda. Com um sol destes, eram favas contadas (MIGUEL TORGA, “Contos da Montanha, Salamanca, 1999, páginas 160 e 161).

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leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e

instituições jurídicas, de não advogar contra o direito, de não usar de meios ou

expedientes ilegais nem promover diligências reconhecidamente dilatórias, inúteis ou

prejudiciais para a correcta aplicação de lei ou a descoberta da verdade, da recusa de

patrocínios que considere injustos e da prestação de serviços quando suspeitar

seriamente que a operação ou a actuação jurídica em causa visa a obtenção de resultados

ilícitos e de que o interessado não pretende abster-se de tal operação, do recebimento e

movimentação fundos que não correspondam estritamente a questão que lhe tenha sido

confiada, de uso do mandato para prosseguir objectivos que não sejam profissionais e

de solicitação de clientes por si ou por interposta pessoa (85º, nºs 1 e 2, alíneas a), b), d),

e), g) e h)).

- do dever de cooperação entre os advogados em benefício dos clientes de forma

a evitar litígios inúteis e de conciliar, tanto quanto possível, os interesses da profissão

com os da justiça ou daqueles que a procuram (artigo 106º).

Curiosamente, ressaltam dos Estatutos da Ordem dos Advogados princípios e

deveres já defendidos há muitos séculos pelo Santo Ivo, que é o patrono dos advogados,

designadamente a não aceitação da defesa de causas injustas, a não sobrecarga dos

clientes com gastos excessivos, a não utilização de meios ilícitos ou injustos no

patrocínio dos casos que lhe são confiados, o tratamento do caso de cada cliente como

se fosse o seu próprio, a não poupança de trabalho ou tempo para alcançar ganho da

causa confiada, não aceitação de mais causas do que aquelas que o seu tempo disponível

lhe permita tratar, a honrar a justiça e da dignidade, a indemnização dos clientes pelos

prejuízos derivados do seu atraso ou negligência.

Para além dos Estatutos da Ordem dos Advogados, há outras normas estatutárias

envolvidas por essa ideia de solidariedade dos advogados, como é o caso do artigo 69º

do Estatuto do Ministério Público, segundo o qual, em caso de conflito entre entidades,

pessoas ou interesses que o Ministério Público deva representar, o procurador da

República solicita à Ordem dos Advogados a indicação de um advogado para

representar uma das partes; havendo urgência, e enquanto a nomeação não possa fazer-

se nos termos do número anterior, o juiz nomeia advogado para intervir nos actos

processuais

Também as leis de protecção jurídica e de processo penal, como é natural,

contêm várias normas donde ressalta a mencionada ideia de solidariedade,

designadamente:

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- a função da Ordem dos Advogados, com a colaboração do Ministério da

Justiça, de prestar a informação jurídica, no âmbito da protecção jurídica, nas

modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário (artigo 5º, nº 2, da LAJ);

- a sua cooperação com o Ministério da Justiça e as autarquias locais

interessadas para garantia da existência de gabinetes de consulta jurídica, com vista à

gradual cobertura territorial do País (artigo 15º, nº 1, da LAP);

- a sua cooperação com o Estado na realização do acesso ao direito e aos

tribunais nas vertentes da informação jurídica e da protecção jurídica (artigo 2º, nº 1, da

LAJ);

- a obrigação de os advogados aceitarem a sua nomeação pelo juiz, pelo

Ministério Público ou outra autoridade criminal, para a defesa de arguidos nos casos

legalmente previstos (artigos 62º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal e 39º, 40º, 41º

da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho).

Finalmente, importa salientar que também a lei de processo civil contém normas

que envolvem essa mesma ideia de solidariedade, como é o caso:

- se a parte não encontrar na circunscrição judicial quem aceite voluntariamente

o seu patrocínio, pode dirigir-se ao presidente do conselho distrital da Ordem dos

Advogados ou à respectiva delegação para que lhe nomeie advogado (artigo 43º, nº 1,

do Código de Processo Civil);

- ao juiz pertence também a nomeação de advogado nos casos de urgência ou

quando a entidade competente a não faça dentro de 10 dias (artigo 44º, nº 2, do Código

de Processo Civil)

IX - EPÍLOGO

É a situação de crise económica e da justiça acima referida que nos contempla

num quadro de paulatina derrocada do chamado Estado Providência, e novamente se

perfila o velho conceito de solidariedade.

Com a impossibilidade de o Estado, por falta de meios, continuar a ser o Estado

Social que tem sido, renascerá naturalmente o velho conceito de solidariedade, por via

do voluntariado e de outras manifestações sociais, a que a advocacia, na linha da sua

mais nobre tradição, não deixará de aderir.

É indubitável que os advogados dispõem de instrumentos jurídicos susceptíveis

de garantir direitos à colectividade, e para os experientes e bem sucedidos na profissão

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poderá ser a oportunidade de devolução à comunidade daquilo que dela receberam em

anos de trabalho bem sucedido.

Nesse condicionalismo social de crise, há países, do que é exemplo o Brasil com

a advocacia chamada pro bono, em que os advogados atendem gratuitamente os

cidadãos económica e socialmente mais carenciados, no quadro de sociedades civis sem

fins lucrativos, que agregam profissionais do direito dispostos a disponibilizar-lhes os

seus serviços jurídicos.

Salvador da Costa