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  • ADOLFO JOSÉ DE SOUZA FROTA

    EDUARDO BATISTA DA SILVA

    FÁBIO JÚLIO DE PAULA BORGES ORGANIZADORES

    INTERCRÍTICAS:

    ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA

  • 2020 Uniedusul Editora

    Copyright da Uniedusul Editora

    Editor Chefe: Profº Me. Welington Junior Jorge

    Diagramação e Edição de Arte: Uniedusul Editora

    Revisão: Os autores

    O conteúdo dos artigos e seus dados em sua forma, correção e confiabilidade são de responsabilidade

    exclusiva dos autores.

    Permitido fazer download da obra e o compartilhamento desde que sejam atribuídos créditos aos autores,

    mas sem de nenhuma forma ou utilizá-la para fins comerciais.

    www.uniedusul.com.br

  • APRESENTAÇÃO

    A presente obra desvela parte das pesquisas do Programa de Pós-Graduação em Língua,

    Literatura e Interculturalidade (POSLLI), da Universidade Estadual de Goiás/Câmpus Cora Coralina,

    localizado na Cidade de Goiás. Os trabalhos contidos aqui enquadram-se em duas grandes linhas de

    pesquisa, a saber: “Estudos Linguísticos e Interculturalidade” e “Estudos Literários e

    Interculturalidade”, tendo sido elaborados por mestrandos e orientadores ao longo dos anos de 2019

    e 2020.

    A proposta desse volume é promover a socialização do conhecimento produzido no âmbito

    do POSLLI, fazendo chegar a professores em formação, pesquisadores e demais interessados um

    material de qualidade e com discussões que abarcam problemas de pesquisa contemporêneos.

    Ademais, as discussões por ora fomentadas podem servir como ponto de partida para outras

    pesquisas.

    No que se refere aos Estudos Linguísticos e Interculturalidade, a diversidade de contextos e

    objetos de estudo dos capítulos permitem vislumbrar a riqueza presente nos estudos realizados nas

    variadas linhas de pesquisa. Contemplando uma visão plural, as linhas teóricas que subsidiam os

    trabalhos contemplam a Aquisição de Linguagem, Gramática de Construções, Lexicologia,

    Linguística Centrada no Uso, Linguística de Córpus, Linguística Funcional Centrada no Uso e

    Sociolinguística Variacionista.

    Em relação aos Estudos Literários e Interculturalidade, as linhas teóricas literárias

    contemplam discussões sobre Lírica, Narrativas e Cinema. As temáticas discutidas são a memória

    como reconstrução e resgate do passado perdido numa linha temporal, só acessível pela narrativa; a

    memória do trauma e que liga experiências de morte em momentos distantes da vida; a memória e

    sua associação com o tempo; o panoptismo em contexto colonial e multicultural e a relação subjetiva

    entre o elemento ar e espaço na poesia.

    Nos próximos parágrafos, iniciamos uma visão panorâmica dos seis primeiros capítulos, com

    orientação linguística.

    Marcados pela atualidade, uma espécie de zeitgeist acadêmico – que reflete as

    ideias/conceitos/crenças vigentes em determinada época ou período –, os temas abordados congregam

    na seção de Estudos Linguísticos o apagamento da oclusiva /d/ do verbo no gerúndio; análise da

    construção mas e de sua variante mais; aspectos formais e conceituais das construções-suporte na fala

    goiana; estudo sociolinguístico da alternância entre as formas verbais ter e haver; fala dirigida à

    criança; scripts de seriados como aporte para o ensino de phrasal verbs.

    No capítulo 1, Adalgiza Rodrigues dos Santos e Eleone Ferraz de Assis exploram

    o apagamento da oclusiva /d/ do verbo no gerúndio, na língua falada no município de São Luís de

    Montes Belos, localizado no estado de Goiás. Os autores constatam que esse tipo de ocorrência

    acarreta um certo preconceito linguístico em relação ao falante, tanto do sexo masculino quanto do

    sexo feminino. A supressão da oclusiva /d/ no gerúndio está fortemente condicionada ao número de

    sílaba do verbo, ou seja, verbos com um número maior de sílabas favorecem o apagamento da

    oclusiva. O corpus é composto por registros de fala de seis informantes residentes no município.

    No capítulo 2, Cynara Alves de Campos e Eduardo Almeida Flores tem por objeto de estudo

    e análise da construção mas e de sua variante mais do corpus Fala Goiana. No contexto de mudança

    na língua as características que classificam a construção mas/mais como conjunção adversativa

    podem sofrer variações cedendo lugar a outras propriedades ou características que o distanciem do

    sentido contrajuntivo. Tem-se aqui uma flexibilidade categorial decorrente da fluidez e dinamicidade

    da língua, permitindo-se, dessa forma, que os fenômenos gramaticais recebam tratamento escalar e

    contínuo, posto que motivados pela pragmática. Os autores afirmam que a língua é formada por redes,

    nas quais diferentes elos se ligam para imprimir no discurso multifacetados efeitos de sentido, dentre

    os quais o mas/mais intensificador do discurso.

    Na sequência, no capítulo 3, Eduardo Almeida Flores e Cynara Alves de Campos discorrem

    sobre aspectos formais e conceituais das construções-suporte na fala goiana. As construções-suporte

    são exemplos de feixe de exemplares estocados na mente dos falantes. Quando o falante experiencia

  • na comunicação padrões construcionais com verbo-suporte, ele estoca na memória detalhes da

    experiência, como o contexto de uso e aspectos construcionais relacionados à forma e ao significado

    da construção. Os autores ressaltam que os sentidos das construções dependem dos contextos físicos

    e sociais nos processos comunicativos. Portanto, os significados das construções não são pré-

    determinados ou distanciados das elaborações cognitiva. Contudo, eles são fundamentados na

    realidade dos falantes e são negociados socialmente com base nas experiências com o mundo.

    No capítulo 4, Fernanda Martins da Costa Gomes e Eleone Ferraz de Assis realizam um estudo

    sociolinguístico da alternância entre as formas verbais ter e haver, descrevendo e analisando as

    motivações da alternância entre as formas verbais simples ter e haver em perífrase nos editoriais do

    Jornal O Popular. Com esta investigação, esperam preencher lacunas existentes, acerca da variação

    linguística, sobretudo em relação à descrição e à análise da variação em formas verbais simples e

    compostas dos verbos ter e haver em editoriais de um jornal que circula no Estado de Goiás.

    Idelma Divina da Silva e Kênia Mara de Freitas Siqueira, no capítulo 5, abordam a fala

    dirigida à criança como uma prática de interação entre adulto e criança que favorece a entrada na

    linguagem e na cultura – que possui características não universais, visto que alguns pais preferem

    conversar com as crianças de forma convencional. A fala dirigida à criança é vista, portanto, como

    uma forma particular de se comunicar com os bebês, que pode ser adotada tanto pelos pais quanto

    por pessoas que com a criança tenham contato. O estudo transita por abordagens teóricas distintas,

    dialogando com questões excludentes, porém necessárias, pois definem os processos aquisicionais

    como práticas comunicativas, interativas e constitutivas, e questionam o que há de cultural quando a

    fala é dirigida à criança. Os estudos apontam a necessidade de mais pesquisas que discutam a

    influência do uso do manhês e dos inovadores lexicais para o processo de aquisição da linguagem

    pela criança.

    O último capítulo da seção linguística abriga um estudo que recorre a scripts de seriados como

    aporte para o ensino. Rodrigo Borges Gonçalves e Eduardo Batista da Silva preocupam-se com o

    ensino de vocabulário em língua inglesa, mais especificamente, os phrasal verbs, com base em

    constatações oriundas de córpus. Os autores promovem uma discussão acerca do ensino de phrasal

    verbs para a aula de língua inglesa e identificam os 10 phrasal verbs de alta frequência em um córpus

    constituído por roteiros de vários episódios de séries de TV. Como a linguagem que constitui os

    diálogos das séries retrata situações reais de conversação, contribui substancialmente para a atual

    demanda por textos autênticos nos programas de ensino de língua inglesa.

    Doravante, perpassamos os cinco capítulos seguintes, com orientação literária.

    Na seção de Estudos Literários, Ana Paula de Souza Brito e Nismária Alves David, no sétimo

    capítulo “As memórias de Ana Vitória: uma apresentação do romance Mesa dos inocentes, de Adelice

    da Silveira Barros”, discutem aspectos mnemônicos presentes nesta narrativa, que conta a história da

    protagonista Ana Vitória, que viveu momentos significativos da infância na cidade ficcional de

    Cristal, interior de Goiás, marcada por uma tragédia pessoal (suicídio da prima por afogamento), e o

    seu retorno, quando para a mesma cidade, quando já estava com 60 anos de idade. As autoras

    enfatizam as reflexões de uma protagonista idosa, quando retorna para a cidade natal e reflete sobre

    a passagem do tempo.

    Discussão semelhante é feita por Dilorrara Ribeiro Gomes e Adolfo José de Souza Frota, no

    capítulo 08: “Do resgate mnemônico a percepção interativa em O mar, de John Banville”. Nesta

    narrativa, o protagonista sexagenário Max Morden, após a recente morte da esposa Anna, decide

    voltar para a cidade de veraneio de sua infância, em Ballyless, Irlanda. Hospedando-se em The

    Cedars, uma casa que a família Grace se hospedava, e que o jovem Max tinha profunda amizade, em

    especial com os irmãos Myles e Chloe, o protagonista narrador resolve contar como foi parte da sua

    infância até a experiência traumática de ter testemunhado o afogamento dos irmãos no mar, que dá

    nome ao romance. Por se tratar de uma narrativa mnemônica, os autores discutem como a memória é

    uma importante habilidade de ressignificação e reconstrução do passado.

    Já o capítulo 09, intitulado “Lembrar ou esquecer? Inversões de efeito em cadeia em

    ‘Famigerado esquecido’, de Hailton Correa”, Fábio Júlio de Paula Borges e José Elias Pinheiro Neto

    articulam uma discussão a respeito do tema do tempo e da memória no referido poema desse poeta

  • goiano. A partir da presença de um sujeito lírico que transita entre o desejo de se esquecer de se

    lembrar e também de se lembrar de se esquecer, os autores recorrem tanto aos pressupostos teóricos

    da teoria da reminiscência de Santo Agostinho até uma discussão da existência do tempo, realizada

    por André Comte-Sponville.

    “Fricções entre ensino e interculturalidade no filme Entre os muros da escola”, de Glauber

    Honorato da Silva e Émile Cardoso Andrade, que corresponde ao capítulo 10, analisa como o

    panoptismo, o estado constante de vigilância, caracteriza um contexto escolar multicultural, onde

    apenas os parâmetros europeus (francês) são enfatizados e valorizados. Nesse ambiente educacional,

    os autores percebem a escola como um local “que impera diversas formas de simbolismos culturais”,

    apesar de que o Liceu, a escola do filme, ainda manter “determinada postura histórica vinculada a

    ideologia nacional francesa”, o que acaba gerando diversos conflitos culturais.

    E, finalmente, o capítulo 11, “Uma relação subjetiva entre o elemento ar e o espaço em Dora

    Ferreira da Silva”, dos autores Rannyelle Silva de Oliveira e Alexandre Bonafim Felizardo, analisa a

    presença do elemento ar no espaço descrito no poema “Garças” na forma como a paisagem lírica é

    descrita, por meio de imagens de movimento “que desencadeiam a configuração de um espaço

    abstrato visualizado pelo vôo e árvore de garças”.

    Antes de finalizar essa breve introdução, cabe ressaltar que a organização desse livro foi

    indubitável e exponencialmente facilitada graças ao empenho demonstrado por mestrandos e

    professores desde o início desse projeto. Apesar dos inúmeros compromissos pessoais, profissionais

    e acadêmicos, os autores não mediram esforços para elaborar e concretizar a presente coletânea.

    Gostaríamos de agradecer essa oportunidade e a consecução de uma obra tão especial.

    Tanto o mérito do sucesso vindouro quanto a recepção calorosa do público podem ser

    atribuídos aos membros dessa valorosa equipe.

    Adolfo José de Souza Frota

    Eduardo Batista da Silva

    Fábio Júlio de Paula Borges

    Outubro/2020

  • SUMÁRIO

    CAPÍTULO 01..................................................................................................................................10

    PAGAMENTO DA OCLUSIVA /D/ NO FALAR MONTEBELENSE

    Adalgiza Rodrigues dos Santos

    Eleone Ferraz de Assis

    CAPÍTULO 02..................................................................................................................................19

    A CONSTRUÇÃO MAS/MAIS SOB A PERSPECTIVA CONSTRUCIONISTA DA

    LINGUAGEM

    Cynara Alves de Campos

    Eduardo Almeida Flores

    CAPÍTULO 03..................................................................................................................................29

    ASPECTOS FORMAIS E CONCEITUAIS DAS CONSTRUÇÕES-SUPORTE NA FALA

    GOIANA

    Eduardo Almeida Flores

    Cynara Alves de Campos

    CAPÍTULO 04..................................................................................................................................38

    UM ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO DA ALTERNÂNCIA ENTRE AS FORMAS VERBAIS

    TER E HAVER EM EDITORIAIS DE JORNAIS

    Fernanda Martins da Costa Gomes

    Eleone Ferraz de Assis

    CAPÍTULO 05..................................................................................................................................45

    AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM: QUANDO A FALA É DIRIGIDA À CRIANÇA

    Idelma Divina da Silva

    Kênia Mara de Freitas Siqueira

    CAPÍTULO 06..................................................................................................................................58

    ENSINO DE PHRASAL VERBS DE ALTA FREQUÊNCIA PRESENTES EM SCRIPTS DE

    SERIADOS: UMA ABORDAGEM BASEADA EM CÓRPUS

    Rodrigo Borges Gonçalves

    Eduardo Batista da Silva

    CAPÍTULO 07..................................................................................................................................70

    AS MEMÓRIAS DE ANA VITÓRIA: UMA APRESENTAÇÃO DO ROMANCE MESA DOS

    INOCENTES, DE ADELICE DA SILVEIRA BARROS

    Ana Paula de Souza Brito

    Nismária Alves David

    CAPÍTULO 08..................................................................................................................................77

    DO RESGATE MNEMÔNICO A PERCEPÇÃO INTERATIVA EM O MAR, DE JOHN

    BANVILLE

    Dilorrara Ribeiro Gomes

    Adolfo José de Souza Frota

    10.29327/524556.1-1

    10.29327/524556.1-2

    10.29327/524556.1-3

    10.29327/524556.1-4

    10.29327/524556.1-5

    10.29327/524556.1-6

    10.29327/524556.1-7

    10.29327/524556.1-8

  • CAPÍTULO 09..................................................................................................................................87

    LEMBRAR OU ESQUECER? INVERSÕES DE EFEITO EM CADEIA EM “FAMIGERADO

    ESQUECIDO”, DE HAILTON CORREA

    Fábio Júlio de Paula Borges

    José Elias Pinheiro Neto

    CAPÍTULO 10..................................................................................................................................95

    FRICÇÕES ENTRE ENSINO E INTERCULTURALIDADE NO FILME ENTRE OS MUROS DA

    ESCOLA

    Glauber Honorato da Silva

    Émile Cardoso Andrade

    CAPÍTULO 11................................................................................................................................102

    UMA RELAÇÃO SUBJETIVA ENTRE O ELEMENTO AR E O ESPAÇO EM DORA

    FERREIRA DA SILVA

    Rannyelle Silva de Oliveira

    Alexandre Bonafim Felizardo

    SOBRE OS AUTORES..................................................................................................................109

    10.29327/524556.1-9

    10.29327/524556.1-10

    10.29327/524556.1-11

  • ESTUDOS LINGUÍSTICOS E

    INTERCULTURALIDADE

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 10

    Capítulo 01 PAGAMENTO DA OCLUSIVA /D/ NO FALAR

    MONTEBELENSE

    ADALGIZA RODRIGUES DOS SANTOS

    ELEONE FERRAZ DE ASSIS

    INTRODUÇÃO

    Este trabalho objetiva analisar o apagamento da oclusiva /d/ nos verbos no gerúndio no

    português falado no município de São Luís de Montes Belos - GO. A finalidade deste trabalho é

    verificar quais fatores linguísticos e sociais contribuem para a ocorrência desse fenômeno.

    O fenômeno da redução /nd/ > /n/ não é um método novo no estuda da língua portuguesa.

    Estudiosos como Silva Neto (1970, p. 43), por exemplo, aponta a variação em todas as partes do

    Brasil. Melo (1946, p. 90-91) também afirma que o apagamento da oclusiva é bastante produtivo na

    fala popular da região de Goiás e na região nordestina. Ainda que alguns autores sustentem que a

    queda da oclusiva é o resultado da influência indígena e africana, Melo 1946 acredita que não existe

    nenhuma conexão, uma vez que a redução /nd/ > /n/ existe em outras línguas sem à intervenção do

    tupi ou de outras línguas de origem africana.

    No que se refere a pesquisas de cunho variacionista, o fenômeno de apagamento da oclusiva

    foi estudado no português falado na cidade do Rio de Janeiro, por Mollica e Mattos (1989). Os autores

    detectaram em seu estudo, que substantivos, adjetivos e advérbios favorecem a manutenção da

    oclusiva. Os verbos no gerúndio, por outro lado, favorecem o apagamento. Os autores apontaram que

    quanto maior o número de sílabas do verbo na forma do gerúndio, maior a probabilidade de

    apagamento na fala espontânea.

    Outro estudo variacionista realizado sobre o apagamento da oclusiva feito por Martins (2001),

    na comunidade de João Pessoa, revelou que o maior índice de apagamento da oclusiva dental /d/ deu-

    se entre os gerúndios. Os verbos no presente do indicativo (pretendo ~ preteno) e a conjunção (quando

    ~ quano), por outro lado, desfavoreceram a queda do segmento. A pesquisa do autor também

    relacionou o apagamento quanto à extensão do item lexical. Ele afirmou que itens com mais de duas

    sílabas favoreceram o apagamento da oclusiva, em oposição aos vocábulos dissilábicos, que

    mantiveram o segmento.

    Embora existam vários estudos sobre esse fenômeno, nosso interesse em descrever o

    apagamento da oclusiva /d/ dos verbos no gerúndio no falar Montebelense surgiu a partir do momento

    em que constatamos que esse tipo de ocorrência acarreta um certo preconceito linguístico, em relação

    ao falante. Certamente porque as pessoas não fazem parte de um mesmo grupo, seja ele cultural,

    social ou demográfico e, consequentemente, por isso, tendem a acontecer variações nas falas dessas

    pessoas. São essas variações sobre a língua, que muitas vezes são vistas como erradas, justamente por

    serem diferentes.

    Para desenvolver a pesquisa, fizemos levantamento bibliográfico, considerando as definições

    de Labov (1972, 1994) e Weinreich, Labov & Herzog (2006 [1968]), sob a ótica da Sociolinguística

    Variacionista.

    APORTE TEÓRICO

    A Sociolinguística Variacionista trata-se de uma abordagem teórico-metodológica, que surgiu

    na década de sessenta, com os estudos de Labov, tendo como principal objetivo evidenciar a relação

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 11

    entre língua e sociedade. Ela se encarrega de analisar os aspectos sociais existentes na língua, fazendo

    uso da perspectiva variacionista para revelar e estudar os fenômenos linguísticos.

    Para Cezario e Votre (2016, p. 146), “Labov (tal qual Saussure) vê a linguística como uma

    ciência do social; dessa forma, a sociolinguística equivale à linguística com ênfase na atenção as

    variáveis de natureza extralinguística”. Essa abordagem trata a língua como um fenômeno social, em

    que esta deve ser estudada e compreendida em seus variados contextos de uso. A língua se torna um

    fator importante na identificação e distinções dos grupos em uma sociedade.

    Bortoni Ricardo (2005, p. 31) afirma que

    A língua, é por excelência, uma instituição social e, portanto, ao se proceder a seu estudo, é

    indispensável que se levam em conta variáveis extralinguísticas – socioeconômicas e

    históricas – que lhe condicionam a evolução e explicam, em parte, sua dialetação regional

    (horizontal) e social (vertical).

    Assim, por mais que a língua seja heterogênea e dinâmica, não podemos dizer que a variação

    linguística acontece de forma livre. Pelo contrário, de acordo com Weinreich, Labov e Herzog (2006

    [1968]), é necessário conceber a língua, a partir de um olhar que contemple heterogeneidade e

    sistematicidade de maneira conjunta. Destarte, a Sociolinguística Variacionista tem como principal

    objeto de estudo a variação sistemática da estrutura linguística (LABOV, 2009 [1972]).

    Irmanado a essas assertivas, percebe-se que a língua não é homogênea, uma vez que fatores

    externos (geográficos, sociais, estilísticos etc.) a ela podem possibilitar a sua variação. Essas

    variações podem acontecer nos níveis fonológico, morfológico, sintático, lexical e discursivo.

    A variação geográfica corresponde as diferenças linguísticas observáveis entre falantes

    oriundos de regiões distintas de um mesmo país ou oriundos de diferentes países. Percebe-se essas

    diferenças entre o português falado na Europa, África e Ásia, bem como as diferenças linguísticas

    entre os falares das várias regiões do Brasil, como por exemplo, nas regiões sul e nordeste.

    Nota-se que a variação social está relacionada à organização socioeconômica e cultural de

    uma dada comunidade. Estando em jogo fatores como a classe social, o sexo, a idade, o grau de

    escolaridade, a profissão do indivíduo.

    Já a variação estilística ela se manifesta nas diferentes situações comunicativas no nosso dia-

    a-dia. Nos contextos socioculturais que exigem maior formalidade, usamos uma linguagem mais

    cuidada e elaborada – o registro formal; em situações familiares e informais, usamos uma linguagem

    coloquial – o registro informal.

    Percebe-se, que a língua que utilizamos muda, de alguma maneira, para adaptar-se ao

    interlocutor e ao contexto situacional. A variação, portanto, é inerente à fala e à própria comunidade

    de fala e está relacionada aos diferentes papéis sociais exercidos por cada um dos participantes.

    Adotaremos neste estudo “apagamento”, já consagrado por alguns estudiosos que

    investigaram o mesmo fenômeno. Este termo “apagamento” foi utilizado para designar o processo de

    supressão do /d/ no morfema de gerúndio /-ndo/. A regra de eliminação ocorre quando há a omissão

    de um segmento do morfema formador de gerúndio.

    A supressão da oclusiva dental /d/ em final de vocábulos como “estudando”, “pensando”, por

    exemplo, pode acontecer porque o /n/ e o /d/ são consoantes que compartilham algumas semelhanças

    no ponto de articulação (as duas são oclusivas alveolar), ocorre o que é chamado nos estudos

    fonéticos, de assimilação, isto é, ocorre uma modificação em um fonema que o torna semelhante ao

    outro (BAGNO, 2007).

    Seguindo essa perspectiva, pretendemos analisar o apagamento da oclusiva /d/ - do verbo no

    gerúndio, na língua falada no município de São Luís de Montes Belos - Goiás, levando em

    consideração as variáveis linguísticas: a extensão do vocábulo, a conjugação verbal e as variáveis

    extralinguísticas: o sexo, escolaridade, faixa etária.

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 12

    METODOLOGIA

    Nosso corpus é composto por seis (6) entrevistas de falantes residentes e naturais de São Luís

    de Montes Belos - GO. Para realizar as gravações das entrevistas, para que em seguida,

    selecionássemos os trechos que continham os verbos no gerúndio, utilizamos um aplicativo de

    gravador de voz, disponível em aplicativos para telefones celulares versão 21.0.22.165, uma

    ferramenta on-line. Cada informante foi entrevistado durante cerca de 30 minutos. Trata-se, portanto,

    de um estudo de caso de cunho qualitativo. Para a escolha desses informantes, foram observados os

    seguintes requisitos: i) ser natural de São Luís de Montes Belos ou morar na região desde os cinco

    anos de idade; ii) nunca ter passado mais de dois anos consecutivos fora da região.

    Os informantes foram selecionados de forma aleatória e o corpus foi estratificado por sexo,

    sendo três homens e três mulheres, com idades entre 26 a 39 anos e o nível de escolaridade observado

    - ensino fundamental completo. Desejávamos conseguir dois tipos de fala, um momento mais tenso,

    que talvez predominasse na entrevista, e outro mais espontâneo, quando falassem de suas experiências

    pessoais.

    Para realizar a seleção de trechos que continham os verbos no gerúndio, realizamos a

    transcrição das entrevistas. Em seguida, selecionamos os trechos em que continham as formas do

    verbo no gerúndio, tomando como referência e orientação a chave de transcrição do Projeto

    NURC/SP.

    As entrevistas, gravadas em situações naturais de interação social, foram realizadas com base

    em um questionário-guia, o qual inicialmente, trazia uma abordagem voltada para a opinião de seus

    moradores, referente a história da cidade de São Luís de Montes Belos e, consequentemente, no

    decorrer da entrevista, eram feitas perguntas de cunho pessoal. As questões do roteiro têm por

    principal objetivo levar o entrevistado a utilizar as formas linguísticas próprias do mundo narrado,

    dentre as quais aparecem usos de verbos no gerúndio.

    Localidade do falante

    Para a Sociolinguística Variacionista, a língua é uma forma de comportamento social, assim

    não é possível compreender o processo de variação e de mudança linguística fora do contexto social

    em que o indivíduo vive, pois, a comunidade de fala delimita a qual comunidade de falantes ele

    pertence.

    Segundo Labov (2008),

    A comunidade de fala não é definida por nenhuma concordância marcada no uso de

    elementos linguísticos, mas sim pela participação num conjunto de normas compartilhadas;

    estas normas podem ser observadas e tipos de comportamento avaliativo explicito e pela

    uniformidade de padrões abstratos de variação que são invariantes no tocante a níveis

    particulares de uso. (LABOV, 2008, p. 150).

    Para a constituição da nossa amostra selecionamos o município de São Luís de Montes Belos,

    que ocupa uma área 826 km² situada a 79 km a Sul-Leste de Iporá a maior cidade nos arredores, tendo

    como municípios vizinhos, Firminópolis, Adelândia e Aurilândia. Pertencente ao estado de Goiás que

    está localizado na Região Centro-Oeste do Brasil. Sua população, conforme estimativas do IBGE de

    2018, era de 33.470 habitantes. O nome do município originou-se da antiga fazenda formada a partir

    do ano de 1857, denominada “Santana”. Por determinação do governo estadual, nesse mesmo ano,

    iniciou-se a construção de uma estrada que cortaria essa fazenda, interligando a parte central do estado

    de Goiás com a região oeste e também ao estado de Mato Grosso. Conforme a construção da estrada

    avançava, os engenheiros João Neto de Campos Carneiro e Vicente Ferreira Adorno começaram a

    nomear as serras, córregos e rios, por exemplo, serra São Luís, córrego Barreirinho, rio Pilões, entre

    outros. Certamente o nome da cidade está relacionado às serras belíssimas de picos muito finos que

    circundam a cidade, com uma abertura em seu meio objetivando “dar passagem” ao córrego Santana.

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 13

    PROCEDIEMNTOS PARA COLETAS DE DADOS

    A coleta de dados foi realizada na residência de cada informante, para que pudessem ter mais

    liberdade, tranquilidade e se sentissem mais à vontade para responder às perguntas. Eles assinaram

    um termo consentimento para realização e divulgação dos dados da pesquisa. Foi esclarecido que

    suas identidades não seriam reveladas para resguardá-los.

    Seguindo as orientações de Araújo (2011), procurarmos conduzir as entrevistas de maneira

    que os informantes se sentissem completamente à vontade. Como a maioria das perguntas na

    entrevista eram de cunho pessoal, optamos por um encontro mais reservado. Justamente para que o

    informante não se sentisse incomodado em falar sobre suas experiências e opiniões relacionadas à

    determinados assuntos, uma vez que, as questões estavam relacionadas a fatos pessoais, político e até

    mesmo, sobre assuntos polêmicos.

    Guy e Zilles (2007, p. 20) afirmam que esse tipo de entrevista deve levar em consideração

    algumas perguntas: “Como obtemos os dados? Os dados são válidos para refletir o fenômeno

    investigado? Os procedimentos para a obtenção dos dados são confiáveis e reproduzíveis? O que

    pode ser feito para minimizar a parcialidade dos dados?”.

    Desse modo, para a obtenção dos dados, elaboramos uma ficha da amostra sociolinguística

    contendo os dados dos informantes a serem entrevistados: nome, naturalidade, profissão, sexo

    (masculino/feminino), faixa etária (de 24 – 39 anos) e escolaridade (ensino fundamental completo).

    A elaboração da ficha social, nos ajudou a esclarecer algumas informações sobre os informantes,

    também contribuiu para que o informante se sentisse mais familiarizado com o gravador e,

    principalmente, possibilitasse mapear seus possíveis interesses, auxiliando no momento da entrevista.

    Elaboramos um questionário-guia de entrevistas, com os seguintes tópicos:

    1. Cidade e bairro; 2. Amigos e família; 3. Acontecimentos e eventos; 4. Escola e trabalho; 5. Hobbies e esportes; 6. Opinião. O objetivo do questionário-guia de entrevistas é homogeneizar os dados para posterior

    comparação, controlar os tópicos da conversa e provocar narrativas de experiências pessoais, tendo

    em vista que estudos com narrativa de experiências pessoais têm demonstrado que, ao relatá-las, o

    informante está tão envolvido com o que fala que presta o mínimo de atenção ao como fala (Cf.

    LABOV, 2008).

    Procedimentos para transcrição das entrevistas

    Para transcrição das falas dos entrevistados, utilizamos a chave de transcrição do Projeto

    NURC/SP.

    Segue as normas utilizadas para transcrição das entrevistas gravadas:

    Ocorrências Sinais Exemplificação

    Incompreensão de palavras

    ou segmentos

    ( ) Dos nives de rensa ( ) nível de renda

    nominal

    Hipótese do que se ouviu (hipótese) (estou) meio preocupado (com o gravador)

    Truncamento (havendo

    homografia, usa-se acento

    indicativo da tônica e/ou

    timbre

    / E comé/ e reinicia

    Entonação enfática Maiúscula Porque as pessoas reTÊM moeda

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 14

    Prolongamento de voga e

    consoante (como s, r)

    ::podendo

    aumentar para

    :::::ou mais

    Ao emprestarmos éh::: ... dinheiro

    Silabação - Por motivo tran-sa-ção

    Interrogação ? E o Banco... Central... certo?

    Qualquer pausa ... São três motivos... ou três razões... que

    fazem com que se retenha moeda... existe

    uma... retenção

    Comentários descritivos do

    transcritor

    ((minúscula )) ((tossiu))

    Comentários que quebram a

    sequência temática da

    exposição: desvio temático

    -- -- ... a demanda de moeda - - vamos dar casa

    essa notação - - demanda de moeda por

    motivo ...

    Superposição,

    simultaneidade de vozes

    Ligando as

    linhas

    a. na casa de sua irmã

    b. [sexta-feira?

    a. fazem LÁ

    b. [cozinham lá

    Indicação de que a fala foi

    tomada ou interrompida em

    determinado ponto. Não no

    seu início, por exemplo.

    (...) (...) nós vimos que existem...

    Citações literais de textos,

    durante a gravação

    “entre aspas” Pedro Lima ... ah escreve na ocasião.. “ O

    cinema falado em língua estrangeira não

    precisa de nenhuma barreira entre nós”...

    1. Iniciais maiúsculas : só para nomes próprios ou para siglas (USP etc)

    2. Fáticos: ah, éh, ahn, ehn, uhn, tá (não por está: tá? Você está brava?)

    3. Nomes de obras ou nomes comuns estrangeiros são grifados.

    4. Números por extenso.

    5. Não se indica o ponto de exclamação (frase exclamativa)

    6. Não se anota o cadenciamento da frase.

    7. Podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh:::... (alongamento e pausa)

    8. Não se utilizam sinais de pausa, típicas da língua escrita, como ponto e vírgula, ponto final,

    dois pontos, vírgula. As reticências marcam qualquer tipo de pausa. Fonte: Exemplos retirados dos inquéritos NURC/SP no. 338 EF e 331 D2.

    ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

    Na análise das entrevistas dos seis informantes do município de São Luís de Montes Belos,

    percebemos que 100% entrevistados, apresentaram o apagamento da oclusiva /d/ - a forma do verbo

    no gerúndio. É possível notar que alguns verbos como saber e trabalhar quando utilizados no

    gerúndio tiveram o apagamento da oclusiva /d/ na fala de quatro entrevistados. Isso, talvez, aconteça

    porque verbos no gerúndio, quando possuem um número maior de sílabas favorecem o apagamento

    da oclusiva /d/. O que comprova essa afirmação é o fato deles, terem apresentado em suas respostas,

    por exemplo, “conversano”, “sabeno” e “trabalhano”. As outras formas utilizadas como “falano”,

    “gritano”, “jogano”, “robano”, “brincano”, tratar e “valeno”, por exemplo, ocorreram no decorrer

    da entrevista, quando os entrevistados estavam mais à vontade. Isso se justifica pelas escolhas

    utilizadas pelos falantes.

    Como bem observa Luchesi (2015):

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 15

    A quantificação das escolhas que o falante faz em seu desempenho linguístico real em função

    dos contextos linguísticos, das características sociais desse falante e da situação em que o ato

    verbal se desenrola constitui a base empírica de toda da sociolinguística de orientação

    laboviana e parte do princípio de que a escolha que o falante faz entre formas linguísticas

    concorrentes que expressam o mesmo significado não é aleatória, mas condicionada pelos

    aspectos supramencionados, constituindo, portanto uma função de variáveis linguísticas, de

    estilo e sociais. (LUCHESI, 2015, p. 212).

    Dessa forma, podemos comprovar esses apagamentos, nas respostas que foram dadas as

    entrevistas propostas. Abaixo, segue a resposta do informante 1:

    A informante 1 é do sexo feminino tem 26 anos de idade possui ensino fundamental completo.

    Ela apresenta o apagamento da oclusiva /d/ apenas quando conjuga os verbos saber, conversar e

    tratar na forma do gerúndio. Percebemos um certo cuidado na fala da informante, ela fazia pausas

    longas para relatar o fato, talvez estivesse tomando um certo cuidado na pronúncia.

    1.E*1Você acha a cidade violenta?

    I*Não acho:::... aqui é bem tranquilo:::... já cheguei a dormir de porta aberta:::...acredita?:::

    Não se houve falar de violência:::... um roubo aqui outro ali muito raro...uma vez fiquei

    sabeno de uma história feia:::... mas faz muito tempo:::... nem compensa contar.

    2. E* Como era a sua relação com seus pais?

    I*Era bem tranquila... só não podia interferi quando::: meu pai e minha mãe estivesse

    conversano com alguém::: ou tratano de algum outro assunto que criança não pode ficar

    sabeno.

    O informante 2 é do sexo masculino tem 26 anos de idade possui ensino fundamental

    completo. Ele apresenta o apagamento da oclusiva /d/ quando conjuga os verbos jogar, falar e saber

    na forma do gerúndio. No restante da entrevista, ele não apresenta nenhuma oscilação quanto ao

    apagamento da oclusiva. Demonstrou um certo cuidado na fala, a todo momento ele parava e pensava

    antes de começar a responder.

    1.E*Você se lembra de alguma história engrada da sua infância?

    I*Teve uma veiz que eu e meus dois irmãos estava jogano bet... sabe o que é bet?

    E* Sei.

    I* :::então como tava te falano... aí na minha veiz de tacar a bola deu erro:::... eu fui esperar

    atrás do meu irmão que ia bate na bola... não precisa nem dizer o que aconteceu... levei uma

    paulada na cara de cheio... nossa... eu fiquei muito bravo... queria chorar ... mas tava com

    vergonha... depois a escola ia fica sabeno de tudo.

    2.E* Já teve alguma situação em que você se meteu em problemas junto com seus

    amigos?

    I* teve uma veis:::... que nois saiu pra pegar manga num quintal abandonado... mas o que a

    gente num sabia é qui num tava abandonado nada... saiu uma mulher gritano não sei de ondi

    ... ela disse que a gente devia pedi...que era feio pega as coisa dos zoto sem pedi... queria

    saber quem era meu pai... mas menino sabe como é:::... no final ela deu as manga.

    A informante 3 é do sexo feminino tem 36 anos possui ensino fundamental completo. Ela

    apresenta o apagamento da oclusiva /d/ nos verbos conversar e trabalhar quando conjugados na

    forma do gerúndio. Labov explica que essas ocorrências podem acontecer porque as pessoas falam

    “menos cuidadosamente” em alguns pontos da entrevista. Essa afirmativa foi comprovada, porque no

    início da entrevista a informante estava a todo momento se monitorando para não falar muito errado,

    mas quando passamos para um segundo momento da entrevista ela ficou mais à vontade e deixou de

    monitorar a fala.

    1.E*Seus pais eram muito duros com você? O que eles faziam?

    1 E* refere-se ao Entrevistador e I* ao Informante.

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 16

    I* O meu pai era :::... mais até entanto... eu perdi ele... eu tinha 8 anos né... mais ele era

    :::...ele era firme a minha mãe já era mais light... Há ...meu pai era daqueli qui si ele tivessi

    conversano com uma pessoa e agente entrassi ...não precisava travessa na frenti... entrasse

    na sala já era mutivo de apanha... tinha qui apanha porque foi falta de educação...

    2.E*Com o que seus pais/ filhos/ companheiro trabalham?

    I* Minha mãe... já num guenta trabalha mais ...ela já num:::... agora meu marido trabalha :::...

    como qui eles trabalha? trabalha de segunda a sexta... ele mexe com motor serra... eu trabalho

    de terça a sábado... sou cabeleireira ...meu filho tá trabalhano numa loja de acessório peças

    pra carro...

    O informante 4 é do sexo masculino tem 36 anos de idade possui ensino fundamental

    completo. Ele apresenta o apagamento da oclusiva /d/ nos verbos saber e roubar quando conjugados

    na forma do gerúndio. Certamente por serem verbos com o número maior de sílabas o falante tende

    a fazer o apagamento da oclusiva /d/.

    1. E* Você sabe de alguma briga que envolve dois vizinhos seus?

    I* Não... num tô sabeno não...

    2. E* Já teve alguma situação em que você se meteu em problemas junto com seus

    amigos? Você contou desses problemas para seus pais ou você não podia?

    I* já teve sim... festa di semana santa...a gente custumava reunir na sexta feira da paixão... i

    sai robano galinha i foi um sufoco até tiro nóis tomamu lá nessi trem... trem foi fei... cheguei

    em casa contei pra minha mãe...((risos))...

    A informante 5 é do sexo feminino tem 39 anos de idade possui ensino fundamental completo.

    Ela apresenta o apagamento da oclusiva /d/ quando conjuga o verbo ajudar no gerúndio. Observe:

    1. E*Você queria que as pessoas aqui fossem mais unidas?

    I* Claro... seria muito bom... talvez assim as pessoas se amariam mais umas as outras. Acho

    que falta Deus no coração de muitas pessoas... hoje em dia é difícil as pessoas se ajudarem

    sem querer nada em troca... a solidariedade sumiu da vida de muitas pessoas... quando você

    vê alguém ajudano outro pode esperar que é interesse.

    O informante 6 é do sexo masculino tem 39 anos de idade possui ensino fundamental

    completo. Ele apresenta o apagamento da oclusiva /d/ quando conjuga alguns verbos no gerúndio,

    como por exemplo, brincar e valer. Podemos perceber que os verbos em que fez o apagamento, são

    aqueles que apresentam uma quantidade maior de sílabas.

    1. E* Qual seu esporte favorito?

    I* eu gosto de jogar bola... quando to no campo eu me sinto como aqueles jogado famoso...

    mas a gente joga brincano sem ser serio... so entre amigos... no máximo valeno coca.

    Diante dos dados apresentados, percebe-se que os entrevistados fizeram o apagamento da

    oclusiva /d/ nos verbos conjugados no gerúndio, principalmente, naqueles que apresentam em sua

    forma uma quantidade maior de sílabas, como os verbos saber e trabalhar. Isso é nítido nestes dois

    verbos, na fala de quatro dos participantes da entrevista, quando eles precisavam fazer uso das formas,

    “sabendo” e “trabalhando”, os mesmos suprimiam a oclusiva /d/, apresentando em sua pronúncia

    “sabeno” e “trabalhano”.

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Nos estudos Sociolinguísticos, há termos que são recorrentes, mas que trazem uma carga de

    significado muito complexa. Dentre esses termos, analisamos o apagamento da oclusiva /d/ nos

    verbos no gerúndio. Embora existam vários estudos sobre a variação da língua no português

    brasileiro, procuramos especificar este estudo, trazendo uma comunidade localizada no interior de

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 17

    Goiás para verificarmos se sofrem alguma influência linguística de outras regiões, se de fato o

    apagamento da oclusiva /d/ nos verbos no gerúndio se realiza.

    As análises dos questionários comprovaram as hipóteses levantadas. Os informantes fizeram

    o apagamento da oclusiva /d/ - a forma do verbo no gerúndio. Percebemos que tanto os informantes

    do sexo masculino quanto do sexo feminino, quando utilizaram os verbos com maior quantidade de

    sílabas, apagaram a oclusiva /d da forma do verbo no gerúndio. Isso foi observado tanto na fala dos

    mais novos quanto os mais velhos.

    Constata-se, assim, que a supressão da oclusiva /d/ no gerúndio está fortemente condicionada

    ao número de sílaba do verbo, ou seja, verbos com um número maior de sílabas favorecem o

    apagamento da oclusiva. Diante do alto índice de ocorrência na fala dos informantes de São Luís de

    Montes Belos, percebe-se que esse tipo de variação é tão comum no falar Montebelense, que passa

    despercebido pelos falantes.

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 18

    REFERÊNCIAS

    ARAÚJO. A. A. de. O projeto norma oral do português popular de fortaleza – NORPOFOR. In:

    Cadernos do CNLF, v.XV, n.5, t. 1. Rio de Janeiro. Anais... Rio e JANEIRO: CiFEFiL, 2011, P. 835-

    845.

    BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São

    Paulo: Parábola, 2007.

    BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na escola, e agora?: sociolinguística e educação. São

    Paulo: Parabola Editorial, 2005.

    GUY, G.; ZILLES, A. Sociolinguística quantitativa: instrumental de análise. São Paulo: Parábola

    Editorial, 2007.

    LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. Trad. M. Bagno, M. M. P. Scherre, C. R. Cardoso. São

    Paulo: Parábola Editorial,2008.

    LUCCHESI, Dante. Língua e sociedade partidas: a polarização sociolinguística do Brasil. São

    Paulo: Contexto, 2015.

    MARTELLOTA, Mário Eduardo (org.). Manual de linguística. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2016.

    MELO, Gladstone Chaves de. A língua do Brasil. Rio de Janeiro: Agir, 1946.

    MOLICA E MATTOS, Paula B. Dois processos de assimilação fonológica no português falado

    semiespontâneo do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado). – Universidade Federal do Rio de

    Janeiro, 1989.

    PRETI, Dino e URBANO, Hudinilson (Org). A linguagem falada culta na cidade de São Paulo.

    São Paulo: T. A. Queiro, Fapesp, 1990. v. 4.

    RECORDER Voice. Versão: 21.0.22.165. Samsung Electronics Co., Ltd.

    SILVA NETO, Serafim da. História da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Livros de Portugal,

    1970.

    WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG, M.I. Fundamentos empíricos para uma teoria da

    mudança linguística. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2006[1968].

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 19

    Capítulo 02 A CONSTRUÇÃO MAS/MAIS SOB A

    PERSPECTIVA CONSTRUCIONISTA DA

    LINGUAGEM

    CYNARA ALVES DE CAMPOS

    EDUARDO ALMEIDA FLORES

    INTRODUÇÃO

    Abordaremos nesse trabalho algumas ponderações de parte da pesquisa, em desenvolvimento,

    que tem por objeto estudo e análise da construção mas e de sua variante mais do corpus Fala Goiana

    (FG), sistematizado em banco de dados pelo Grupo de Estudos Funcionalista da Universidade Federal

    de Goiás (GEF/UFG), denominado aqui como corpus FG/UFG. Para coleta dos dados utilizou-se o

    Programa Wordsmith Tools, por meio de suas ferramentas concord, wordlist e keywords, e foram

    encontradas 231 (duzentas e trinta e uma) ocorrências da construção mas e 2015 (duas mil e quinze)

    ocorrências de sua variante mais, num total de 2246 (duas mil e duzentas e quarenta e seis) ocorrências

    diluídas nos seus variados usos: desde usos com funções adverbiais inclusiva e no comparativo de

    superioridade (remontando à memória de origem dos advérbios latinos magis e magis quam);

    perpassando pelos usos gramaticalizados como conjunção adversativa prototípica; até os usos não

    prototípicos ou discursivos nas mais variadas nuances de sentido, dentre os quais, usos com sentido

    intensificador do discurso, que aqui vamos abordar. Nesse intento, dentre os usos discursivos

    observados no corpus FG/UFG, foram encontradas 187 (cento e oitenta e sete) ocorrências da

    construção mas e, para sua variante mais, 1786 (uma mil e setecentas e oitenta e seis) ocorrências.

    Desse conjunto de usos de mas/mais foram observadas 22 (vinte e duas) ocorrências assumindo

    função de Marcador Discursivo Intensificador (MDI), na qual o segmento que essa construção inicia

    não possui sentido contrajuntivo, mas segue na mesma direção ou sentido do segmento que a antecede

    intensificando-o. A intensificação pode ser certificada pela retomada e reprodução da enunciação do

    primeiro no segundo segmento pelo falante, o qual intenciona dar ênfase à informação já enunciada

    por ele próprio no primeiro segmento. Nesse uso discursivo, percebe-se que a construção mas/mais

    afasta-se, em graus, de seu Macrodomínio Adversativo (MDA), onde tem estatuto prototípico e

    assume, no discurso, função intensificadora e, ao mesmo tempo, estabelece elo com outro

    Macrodomínio, o dos Marcadores Discursivos. Partindo-se do pressuposto de que o falante ao

    enunciar uma situação não opositiva, inconscientemente, nega uma situação oposta, o enunciado

    proferido herda em alguma medida traços do MDA. À guisa de exemplificação, em expressões como,

    “Mas que água boa! ”, pressupõe-se que o falante ao proferir essa construção, inconscientemente,

    por meio de processos cognitivos de domínio geral e outros mecanismos linguístico-cognitivos

    mobilizados, realiza associações com base em experiências vividas estocadas em sua memória, que,

    nesse caso, a partir do reconhecimento de uma água não boa ou ruim possibilitou e/ou licenciou a

    construção de expressões de boa formação não contrajuntiva com a construção mas/mais. Nesse

    sentido, por meio de associações entre domínios conceptuais e de relações hierárquicas que se

    estabelecem dentro de uma rede, construções concretas herdam traços da categoria central prototípica,

    que é abstrata e geral, como ocorre em herança por polissemia, segundo Goldberg (1995). Dessa

    forma, a hipótese guia da pesquisa em desenvolvimento foi assentada na pressuposição de que o MDA

    em essência liga-se à negação, e é ele que por traços (graus) licencia o uso da construção mas/mais

    no campo discursivo, como Marcador Discursivo Intensificador (MDI) e Marcador Discursivo

    Suavizador (MDS). Aqui nos reportamos, como recorte da pesquisa, apenas ao sentido discursivo

    intensificador da construção mas/mais.

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 20

    Para a Gramática de Construções (GC), a língua é concebida como uma rede de construções

    de qualquer tamanho, desde as monomorfêmicas até padrões sintáticos mais complexos, atentando-

    se ao pareamento indissociável entre forma e função, sendo que a relação entre elas é estabelecida

    pelo contexto. De modo que, pode haver alteração na forma (fonológico e morfossintático) ou no

    sentido (semântico-pragmático e discursivo-funcional) operando–se em uma mudança na língua, ou

    em ambas, resultando-se numa construcionalização. Nesta, emerge um novo nó na rede, a qual se

    reorganiza em função de um novo uso (GOLDBERG, 1995, 2006; TRAUGOTT e TROUSDALE,

    2013). Na teia de relações entre nós e elos/links entre nós envolve elementos linguísticos e

    extralinguísticos. Nesse contexto, empreender estudo e análise de língua em uso requer uma

    interdependência dos componentes sintático, semântico e pragmático-discursivo.

    O aporte teórico é o da Usage-Based Linguistics2 ou Linguística Centrada no Uso – (LCU); a

    Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU) e, notadamente, a Gramática de Construções (GC)

    buscando-se em Barros (2016, 217), Bagno e Casseb – Galvão (2017), Goldberg (1995, 2006),

    Traugott e Trousdale (2013), e outros, orientações teóricas de base funcionalista de língua em uso.

    MICROCONSTRUÇÃO [MAS/MAIS X] E SUA MULTIFUNCIONALIDADE NO

    DISCURSO

    Segundo Castilho (2019), Silva (2004), Neves (2011) e em outros autores, a construção mas

    deriva de magis, advérbio latino cujo valor semântico de base era estabelecer comparações de

    quantidade e de qualidade, identificando-se ainda valores secundários de inclusão de indivíduos num

    conjunto. Em seu percurso histórico passou por mudanças em sua estrutura e sentido, por meio do

    processo de gramaticalização. Neste, empreendeu a trajetória de advérbio latino magis para o

    português brasileiro (PB) como conjunção adversativa (prototípica) mas, por fazer a ligação entre

    duas orações ou termos que se opõem semanticamente, mas são independentes sintaticamente. Não

    obstante ser categorizado no PB como conjunção coordenativa adversativa prototípica, as abordagens

    trazidas pelas Gramáticas Normativas Brasileiras (GNBs) apresentam-no com diversas nuances de

    sentido.

    Para Castilho (2019, p.351-353), “As coordenadas adversativas ou contrajuntivas são ligadas

    pela conjunção mas. O que é dito no segundo termo contraria as expectativas geradas no primeiro

    [...]”. Esse autor, ao analisar as propriedades semântico-sintáticas de mas pontua que a caminhada de

    magis pode ser refeita observando-se seus usos conversacionais podendo encontrá-lo tanto em

    sentenças afirmativas com valor inclusivo, quanto em sentenças formalmente afirmativas, mas com

    um valor implícito de negação de expectativas (contrajuntivo).

    Silva (2004), ao fazer estudo detalhado sobre o conector mas no discurso oral ponderou que

    Perini (2001) considera o mas parcialmente coordenador por não possuir todas as propriedades

    inerentes à função de coordenação, colocando as conjunções e e ou como integrantes do primeiro

    grupo dos coordenadores e que o mas integra, nessa ordem, o terceiro membro desse grupo

    assinalando ainda que o mas não coordena qualquer número de membros, mas somente dois

    membros, além de mas coordenar também apenas adjetivos ou verbos, não coordenando Sintagmas

    Nominais (SNs).

    Contrapontuando Perini (2001), quanto a não coordenação de SNs, Neves (2011) pontua que

    “[...] Dois sintagmas nominais, por exemplo, só podem ser coordenados por MAS se um deles estiver

    negado ou minimizado, como em ‘não o menino mas a mãe’. ” (NEVES, 2011, p. 755-756, destaques

    não originais).

    Neves (2011) identifica ainda mais 23 subfunções semânticas para ocorrências diversas do

    “mas”, sem, contudo, afastá-lo do sentido opositor (em maior ou menor grau):

    1 - contraposição marcando contrate entre positivo e negativo; 2- contraposição

    marcando contraste entre negativo e positivo; 3- contraste entre expressões de

    2 Usage-Based Linguistics ou Lingística Centrada no Uso (LCU): teoria linguística da língua em uso de origem

    norte-americana, a qual segundo Bybee (2010) faz parte dos estudos de cunho funcionalista.

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 21

    significação oposta; 4 -contraste, simplesmente, entre diferentes; 5- marcando

    compensação não envolvendo gradação; 6- marcando compensação envolvendo

    gradação; 7- restrição acrescentando um termo; 8- restrição acrescentando um

    circunstante limitador; 9- restrição acrescentando uma qualificação;10- restrição

    negando inferência; 11- contraposição na mesma direção; 12- contraposição em

    direção independente; 13- eliminação negando-se a subsequência temporal natural;

    14- eliminação negando-se a subsequência temporal natural, mas recolocando um

    evento no primeiro membro; 15 - eliminação negando o que é enunciado no primeiro

    membro; 16- contraposição em início de turno; 17- restrição por pedido de informação

    a propósito do enunciado anterior; 18- em direção independente, é sugerido um novo

    argumento para consideração (...) e o argumento anterior, embora admitido, é

    considerado insuficiente; 19 - mudança de foco da narrativa ou da conversação (...);

    20- introdução de um novo tema, que contrasta com o anteriormente selecionado; 21

    -eliminação: o enunciado que o “mas” inicia elimina, de certo modo, o anterior; 22 -

    eliminação implicando recolocação; 23- a eliminação rejeita algum elemento da

    situação de enunciação (NEVES, 2011, p. 757-760)

    Ancorado nesses precedentes, pode-se inferir que a construção mas/mais, como qualquer

    elemento linguístico recorrente no discurso, tem potencial probabilidade de aparecer em contextos

    novos, nos quais assume funções diferenciadas das usualmente conhecidas, como na possibilidade da

    construção mas/mais exercer funções discursivo-pragmáticas, num nível maior de abstração, como

    Marcador Discursivo Intensificador, em sentenças do tipo: “ Estudei muito, mas MUIto mesmo”.

    Aqui, o segmento que a construção mas inicia segue na mesma direção do segmento que a antecede,

    intensificando o que foi enunciado em primeiro plano.

    Considera-se que a relação entre a expressão formal ou estrutura linguística e o contexto

    discursivo é marcada por funções pragmáticas, as quais segundo Dik (1989, p. 264) especificam o

    estatuto informacional dos constituintes em relação ao cenário comunicativo mais amplo em que são

    usados. Assim, na relação entre sintaxe, semântica e pragmática, a pragmática é o quadro dentro do

    qual a semântica e a sintaxe devem ser estudadas; as prioridades vão da pragmática à sintaxe, via

    semântica. (NEVES, 1997).

    As diversas nuances de usos do mas/mais encontram fundamento no pressuposto que a língua

    é formada em rede de construções que, segundo Goldberg (1995; 2006), a construção relaciona-se à

    ideia de correspondência/pareamento convencional de forma e função entre elementos da língua. De

    igual forma, Lakoff (1987) e Traugott e Trousdale (2013), afirmam que a unidade básica da gramática

    é a construção, entendida como o pareamento convencional forma-função.

    Oliveira (2017), postula que as estruturas de conhecimento guardadas na memória permanente

    do falante exercem papel decisivo na construção do significado e nos permitem explicar por que a

    interpretação envolve sempre mais informações do que aquela diretamente codificada na forma

    linguística. Aqui, o todo não é resultado da soma das partes, a composicionalidade semântica é

    relativizada pelos contextos sociolinguísticos. A proposta de Traugott e Trousdale (2013) reside no

    sentido de que a língua não é inteiramente composicional, mas a língua possui composicionalidade

    no sentido de que a estrutura composicional de uma sentença irá frequentemente fornecer dicas sobre

    o sentido do todo.

    Parte-se do princípio de que é para satisfazer as necessidades comunicativas que a língua é

    usada e que a estrutura gramatical é dependente da situação interativa e moldada pelo uso – a

    gramática da língua emerge do uso.

    Neste sentido, segundo Barros (2017):

    A gramática, então, diz respeito à maneira natural pela qual a língua se organiza não

    a um conjunto de normas e regras que prescrevem como ela deveria ser organizada.

    Equivale ao próprio conhecimento dos falantes sobre a organização e uso linguísticos;

    ao controle sobre como se deve ou se pode agir no/com o sistema linguístico para

    construir os significados na língua. A vinculação da gramática ao uso e ao discurso

    implica admitir que também fazem parte do processo de linguagem duas dimensões

    básicas da formação humana e, em função disso, elas são constitutivas da gramática,

    a saber: i) a interação social; e ii) a cognição. (BARROS, 2017, p. 99).

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 22

    Decorre que, a gramática da língua é moldada no/ pelo uso que dela fazem os falantes. É em

    torno dessa perspectiva que Barros (2017) pondera sobre a gramática da língua e sua vinculação ao

    uso e ao discurso.

    ABORDAGEM CONSTRUCIONAL DA MUDANÇA DE MAS /MAIS

    Traugott e Trousdale (2013) propõem repensar o que sabemos sobre mudança, usando o

    modelo da GC e postulam que há dois tipos de mudanças envolvendo as construções: [a] mudanças

    construcionais, que afetam subcomponentes de uma construção e [b] construcionalização, mudança

    em que novas combinações de signos são criadas a partir de pequenos passos de neonálises de forma

    e função. De acordo com essas autoras, as mudanças meramente formais ou apenas semânticas não

    caracterizam a construcionalização; são apenas mudanças construcionais. E acrescentam que uma

    mudança construcional afeta a dimensão interna de uma construção, não envolvendo a criação de um

    novo nó.

    Goldberg (1995, 2006) e Traugott e Trousdale (2013) admitem que as construções podem ser

    lexicais (conteúdo) e gramaticais (procedurais), entretanto, a distinção entre elas não é dicotômica,

    mas se configuram num continuum.

    As construções não se constituem e não se realizam de maneira isolada na língua. Elas são

    inter-relacionadas em uma rede construcional, envolvendo os níveis fonológico, sintático, semântico

    e pragmático-discursivo. A instanciação da construção no uso efetivo da língua é denominada

    construto. Nesse contexto, para a compreensão de um processo de mudança construcional, faz-se

    necessário ainda investigar as três propriedades fundamentais discutidas por Traugott e Trousdale

    (2013) e Bybee (2003): produtividade, esquematicidade e composicionalidade. Nessa perspectiva, as

    análises dos usos compreendem a questão da frequência, o nível de esquematicidade das construções

    e o grau de transparência/opacidade entre forma e significado no nível da construção.

    Esquematicidade

    Quanto à esquematicidade, referidos autores esclarecem que esquemas linguísticos são

    abstratos, grupos de construções generalizados semanticamente, sejam eles procedurais ou de

    conteúdo e que os graus de esquematicidade dizem respeito aos níveis de generalização ou de

    especificação, e até que ponto as partes do sistema são ricas em detalhes.

    Esses autores tratam do modelo de rede hierárquica em que esquemas linguísticos são

    instanciados por subesquemas e, nos níveis mais baixos, por microconstruções: membros de tipos

    específicos e esquemas mais abstratos. Subesquemas podem ser desenvolvidos ou perdidos ao longo

    do tempo e envolvem mudanças construcionais antes e depois da construcionalização.

    A construção mas/mais, considerando o modelo de rede hierárquica proposto por Traugott e

    Trousdale (2013), pode ser representada hierarquicamente por esquemas, subesquemas e

    microconstruções. O esquema abstrato/geral é representado pelo Macro Domínio da Adversidade e o

    subesquema por [O1 Conj Adv O2], sendo que, de subesquemas podem originar outros subesquemas

    como [O1 contudo O2], [O1 porém O2], [O1 entretanto O2], [O1 no entanto O2], [O1 todavia O2],

    [O1 mas/mais O2] e outras construções de sentido contrajuntivo. Atendo-se ao foco discursivo

    intensificador, tem-se que do subesquema [O1 mas/mais O2] pode instanciar a microconstrução

    [MAS/MAIS X] na função de Marcador Discursivo Intensificador. Os construtos referem-se aos usos

    concretos como “ mais tão”, “mais dimais”, “mais muito”.

    Na análise da microconstrução [MAS/MAIS X] consideram-se os domínios conceptuais para

    os quais as relações de contexto, de forma e função tornam-se geradoras das expressões de que o

    falante da língua se apropria para comunicar-se. Considera-se a construção mas/mais na função de

    MDI com elo em dois Macro Domínios conceptuais amplos e abstratos, o da Adversidade e o dos

    Marcadores Discursivos. Então, a análise envolve elementos dos níveis sintático, semântico e

    pragmáticos, todos interconectados. Postula-se a linguagem como um instrumento cognitivo e o

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 23

    significado é considerado como um processo de complexas operações de projeção, mesclagem,

    articulação de múltiplos domínios conceptuais (SALOMÃO, 1998 apud MIRANDA, 1999).

    O subesquema [O1 mas O2] se organiza em níveis, do mais concreto para o mais abstrato,

    configurando, num continnum de nuances que vai da contrajunção à intensificador do discurso:

    Conjunção Coordenativa Adversativa com valor de contrajunção, (+) gramatical e (-) discursivo, à

    função de Marcador Discursivo com valor intensificador, (-) gramatical e (+) discursivo), como em

    (1) e (2), respectivamente:

    (1) Inf.[...]... ficar DUAS horas da minha casa pra vir pru campus... então é essa parte

    que eu NÃO gosto em Goiânia... mas eu gosto daqui muito... eu falo muito bem...

    e aconselho todo mundo a vir visitar... sô apaixonada pela cidade...(FG/UFG - F -

    20 anos Goiânia-GO).

    Em (1), a construção mas apresenta-se com traços (+) gramaticalizados e (-) discursivos e tem

    seu escopo à esquerda, ligando constituintes da direita para a esquerda, além de conter maior conteúdo

    informacional do que o primeiro segmento, considerando que em orações de natureza opositora há

    maior carga informacional e, de consequência, requer uma quantidade maior de estruturas linguísticas

    para representá-la, conforme o subprincípio da quantidade estabelecido por Givón (1984). Há uma

    quebra de expectativa do segundo turno em relação à informação apresentada no primeiro turno.

    (CASTILHO, 2019).

    (2) Doc. Então cê já é vovó? Inf. Já sô vovó... ah mas eu chorei... mas eu chorei... porque

    eu criei ela assim com... aberto sabe nóis duas era muito aberta... eu conversava muito com

    ela... ela conversava muito comigo... ...(FG/UFG - F - 40 anos Goiânia-GO).

    Em (2), a construção mas apresenta traços (+) discursivos e (-) gramaticalizados e tem seu

    escopo à direita, fazendo a conexão de expressões da esquerda para a direita, ou seja, conforme

    Castilho (2019) o segundo segmento não contraria as expectativas geradas pelo primeiro segmento.

    De consequência, seu conteúdo informacional segue na mesma direção do primeiro segmento. No

    segundo segmento é retomado ou reproduzido, de forma intensificadora, o conteúdo expresso no

    primeiro segmento, o que pode ser verificado com a repetição do verbo “chorar”. Nessa relação

    interativo-discursiva, a construção mas/mais apresenta-se alheia à estrutura gramatical, ou seja, com

    independência sintática e sem suficiência ou autonomia comunicativa para constituir enunciado

    proposicional em si própria. (RISSO, SILVA e URBANO, 2002).

    Para Castilho (2019), a repetição diz respeito ao resultado do princípio sociocognitivo de

    reativação. Nesta microconstrução a função de mas/mais é de um elemento mais discursivo que

    gramatical, e liga-se a outro Macro Domínio, o dos Marcadores Discursivos. Essa gradiência dentro

    da mesma categoria linguística e entre categorias distintas é mensurada dentro do contexto discursivo-

    pragmático, sendo a fronteira distintiva entre o mas gramatical e mas discursivo, segundo Castilho

    (2019), decorre do tamanho do seu escopo e dos respectivos efeitos de sentido. Se assume o escopo

    menor, de conectar sentenças paratáticas independentes sintaticamente e com dependência semântica

    em que o segundo segmento contradiz o que foi dito no primeiro segmento, a construção mas/mais

    está assumindo sua função de Conjunção Coordenada Adversativa, ao passo que, se seu escopo for

    maior, conectando, extrassentencialmente, a relação discursiva, a construção mas/mais afasta-se, em

    gradiência, do Macro Domínio da Adversidade (MDA) e ao mesmo tempo liga-se ao Macro Domínio

    dos Marcadores Discursivos (MDMD). Dessa forma, o mesmo item linguístico pode assumir várias

    funções distintas no uso, o qual, segundo Barros (2017), o uso “[...] diz respeito ao momento da

    interação em qualquer uma das modalidades da língua e em qualquer contexto [..]”. Nesse percurso,

    processos cognitivos de domínio geral são acionados e a construção mas/mais como MD tende a

    ultrapassar as fronteiras estruturais da sentença para assumir, num nível maior de abstração, novos

    usos no discurso, impactando a estrutura semântica prototípica. É o que Oliveira (2017) pondera sobre

    a existência de estruturas de conhecimento guardadas na memória permanente do falante, as quais

    exercem papel decisivo na construção do significado. Dessa forma, o falante, por meio de processos

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 24

    cognitivos de domínio geral como categorização e prototipicidade, analogia, memória enriquecida,

    associação transmodal, encadeamento ou chunking e outros mecanismos cognitivos, adaptam à língua

    com vistas ao atendimento da comunicação. Nesse viés, língua e discurso se retroalimentam, numa

    teia de vantagens recíprocas.

    Pressupondo que níveis mais concretos herdam traços de níveis mais abstratos e considerando

    que a gramática de uma língua é uma rede de construções e que as construções não são listas

    aleatórias, a GC tem por tarefa definir o tipo de relação que se estabelece nessa rede desvelando os

    processos de significação, tratando todas as unidades linguísticas, em todos os níveis, como

    construções integradas de forma e modos de significação semântico-pragmática. Nessa direção, os

    links que se formam na rede são estabelecidos pelo compartilhamento de propriedades forma-sentido

    entre eles.

    Produtividade

    Quanto à produtividade, Traugott e Trousdale (2013) afirmam que a produtividade de uma

    construção é gradiente, e esclarecem que ela pertence a esquemas (parciais) e se refere a i) suas

    “extensibilidades” ao ponto em que sancionam outras construções menos esquemáticas e ii) ao ponto

    em que são restringidas. Enfatizam que muitos trabalhos sobre produtividade se referem à frequência

    como os de Bybee (2003), que distingue “frequência do tipo” (type) de “frequência do símbolo”

    (token).

    Composicionalidade

    E, por fim, quanto à composicionalidade, esclarecem que a composicionalidade se refere ao

    grau de transparência da relação entre forma e sentido. A composicionalidade é normalmente pensada

    tanto nos termos da semântica, quanto nos termos das propriedades combinatórias do componente

    sintático. As autoras afirmam que a sintaxe é composicional porque constrói mais expressões

    complexas de boa-formação recursivamente, nas bases das expressões menores, enquanto a semântica

    é composicional porque constrói os sentidos das expressões maiores nas bases dos sentidos das

    expressões menores.

    Rede representativa da construção mas/mas

    Na rede construcional representativa da construção mas/mais, (figura 1), há o

    compartilhamento entre dois Macrodomínios, o da Adversidade e o dos Marcadores Discursivos.

    Figura 1 – Rede representativa da construção mas/mais.

    Fonte: Dados da pesquisa, com base na rede construcional de Traugott e Trousdale (2013).

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 25

    Nessa figura, a construção mas/mais em uso intensificador, distancia em maior escala do

    Macro Domínio de origem, o da Adversidade (Negação), por possuir também outros traços que a liga

    aos que caracterizam a categoria dos Marcadores Discursivos (MD). A relação entre a construção

    mas/mais prototípica adversativa e a construção mas/mais não prototípica/ discursivas (membros

    radiais) com o amplo domínio categorial da negação (MDA) é definida em razão da proximidade ou

    não das características ou traços comuns de cada uma com as características ou traços definidores da

    categoria central prototípica (zona de intersecção). Sendo que, a medida deste distanciamento,

    membros radiais ↔ categoria, é determinada pelas variáveis contextuais, pragmaticamente. Há,

    portanto, uma flexibilização categorial fazendo com que a fronteira entre uma categoria e outra seja

    tênue, possibilitando, dessa forma, que os fenômenos gramaticais recebam tratamento escalar e

    contínuo.

    Sugestiona-se, pois, que o macro domínio de origem (MDA) licencia, de forma implícita, em

    graus, novos e variados usos, os quais são condicionados às variáveis discursivo-pragmáticas. A

    construção mas/mais, prototipicamente, carrega como características: atuar na conexão entre

    sentenças independentes sintaticamente e semântica e pragmaticamente interdependentes

    estabelecendo uma relação de contraste entre ambas (relação exclusivamente binária).

    Funcionalmente, essa construção, dada à fluidez da língua, ganha espaço fora de seu escopo

    sintagmático estendendo seus efeitos para a conexão de relações discursivas e nestas assume outras

    nuances de sentido, dentre as quais, a intensificadora. Discursivamente, perde alguns traços da

    categoria prototípica como à de não se limitar a uma relação binária sintática e assumir

    semanticamente a coesão das relações discursivas sem oposição ou contraste. Da relação entre os

    traços prototípicos e discursivos, há intersecção sintático-semântica e pragmática: o sentido opositor

    descende, por traços de herança, do amplo domínio da adversidade havendo uma opacidade semântica

    discursivamente. Ambos exercem a função conectiva, sendo que, como coordenador adversativo atua

    na organização do nível sentencial, e como MD atua na organização discursiva mais global, dos

    componentes interpessoal e ideacional, criando, respectivamente, a coesão interacional e a coesão

    textual do discurso. Pragmaticamente, todas as experiências linguísticas e não linguísticas são

    mobilizadas, havendo uma interdependência com os componentes sintático-semântico. Assim, para

    que o uso da construção mas/mais assuma sentido não prototípico discursivamente pressupõe que

    houve um licenciamento cognitivo que parte de um conhecimento de base prototípico –

    adversidade/opositor. O traço opositor, portanto, está presente em todos os componentes em graus.

    Nessa teia linguístico-cognitiva em que o conhecimento licencia o uso linguístico concreto, a

    centralidade que se atribui ao uso baseia-se em dois pilares - a experiência linguística do falante que

    influencia de forma direta na representação cognitiva do conhecimento gramatical e na elaboração de

    recursos da atenção, segundo Goldberg (2006). Considera-se, portanto, que o sentido intensificador

    assumido no discurso, é extensão do sentido opositor prototípico.

    Logo, o uso da construção mas/mais é guiado pelo contexto discursivo-pragmático, ora

    ligando orações coordenadas e ora como conector discursivo para além do paradigma sintagmático.

    Nessa perspectiva, nas palavras de Penhavel (2009, p. 284):

    [...] os dois mecanismos apresentam algumas propriedades distintas e algumas

    similaridades, que às vezes dificultam decidir se um item está funcionando como

    coordenador ou como marcador. Na verdade, em termos gerais, esses mecanismos

    podem ser tratados como exercendo uma mesma função conectiva, o primeiro atuando

    na organização mais estrutural de sentenças, e o segundo, na organização das relações

    discursivas. (PENHAVEL, 2009, p. 284).

    É nesse contexto teórico de língua em uso que a construção mas/mais está sendo averiguada

    no falar goiano em sua atuação discursiva como MDI.

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 26

    CONCLUSÃO

    A partir das bases teóricas apresentadas e da análise preliminar dos dados, podemos perceber

    que no contexto de mudança na língua as características que classificam a construção mas/mais como

    conjunção adversativa podem sofrer variações cedendo lugar a outras propriedades ou características

    que o distanciem do sentido contrajuntivo. Tem-se aqui uma flexibilidade categorial decorrente da

    fluidez e dinamicidade da língua, permitindo-se, dessa forma, que os fenômenos gramaticais recebam

    tratamento escalar e contínuo, posto que motivados pela pragmática.

    A gramática da língua é entendida como uma estrutura em constante mutação/adaptação, em

    consequência das variáveis do discurso. Gramática e discurso coatuam em mútua dependência, um

    (re) modelado pelo outro; a gramática, portanto, é afetada pelo uso linguístico e vice-versa. No campo

    discursivo, a construção mas/mais perde parte de sua transparência denotativo referencial e opera na

    articulação de unidades maiores, no discurso, como MDI. Percebeu-se, sobretudo, que pode estar

    havendo uma opacização de seu sentido contrajuntivo, o qual pode ser recuperado pragmaticamente,

    via recursos linguístico-cognitivos.

    Nessa perspectiva e tomando como referência que as estruturas de conhecimento armazenadas

    na memória do falante exercem papel decisivo na construção do significado, pode-se considerar que

    o mas continua mantendo traços do MDA e, ao mesmo tempo, estabelece elo com o MDMD, o que

    ratifica a premissa de que a língua é formada por redes, onde diferentes elos se ligam para imprimir

    no discurso multifacetados efeitos de sentido, dentre os quais o mas/mais intensificador do discurso.

    Essa é a compatibilidade integradora da gramática da língua postulada por Neves (2014, p. 71) “[...]

    A gramática é esse mecanismo ‘constitutivo’ do fazer da linguagem, e nela, exatamente, repousa o

    cálculo da produção de sentido do que é enunciado. ”

    Esta pesquisa não terá a pretensão de esgotar o assunto, mas de motivar outras pesquisas,

    colaborando com estudos já realizados acerca dessa construção linguística, tão recorrente nos

    contextos de uso de um modo geral, como nos estudos de Silva (2004), Castilho (2019) e outros, e

    sobretudo, colaborar com o entendimento da mudança linguística no português brasileiro.

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 27

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  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 29

    Capítulo 03 ASPECTOS FORMAIS E CONCEITUAIS DAS

    CONSTRUÇÕES-SUPORTE NA FALA GOIANA

    EDUARDO ALMEIDA FLORES

    CYNARA ALVES DE CAMPOS

    INTRODUÇÃO

    A construção-suporte tem sido tratada na tradição formal como um caso de gramaticalização

    do verbo. Nesse sentido, as análises são voltadas para os itens que a compõe de maneira individual.

    Na Gramática de Construções (GCX), a construção-suporte é vista como uma unidade lexical. Trata-

    se de uma abordagem mais integradora, que reconhece a construção-suporte como um pareamento

    entre uma forma, oriunda de uma relação sintática entre um verbo dessemantizado e seu complemento

    com características informacionais e um significado estabelecido socioculturalmente na comunidade

    de fala, como encontrado em Neves (2011) e Castilho (2014).

    Na GCX, a língua é reconhecida como uma atividade sociocultural aprendida e compartilhada

    por uma comunidade. Nesse sentido, as construções são unidades simbólicas convencionalizadas na

    cultura e na sociedade, ou seja, elas fazem parte do conhecimento inerente à realidade experienciada

    pelo o ser humano.

    Destacam-se na GCX alguns pressupostos básicos. O primeiro é a concepção de língua como

    uma rede de construções relacionadas por vínculos de hierarquia e herança. O segundo corresponde

    ao fato da construção gramatical ser vista como a unidade básica de análise linguística e, por fim, a

    compreensão da gramática como uma organização cognitiva de representação do mundo por

    intermédio de categorias construcionais.

    Nessa perspectiva, entende-se que as construções são padrões cognitivos estabelecidos por

    intermédio das experiências dos falantes, que vivencia a língua e a modifica em função dos seus

    propósitos comunicativos, por isso, a gramática é organizada mediante relações construcionais

    (LANGACKER, 2008). As construções fazem parte do conhecimento linguístico dos falantes e

    apresentam aspectos formais e conceituais que são estabelecidos diante as convenções simbólicas na

    sociedade.

    ASPECTOS FORMAIS DA CONSTRUÇÃO-SUPORTE

    A construção, de um modo geral, é compreendida como um pareamento convencionado entre

    forma e significado (CROFT, 2001; LANGACKER, 2008; GOLDBERG, 1995). Dessa noção, nasce

    a compreensão da natureza simbólica da gramática, pois os significados das construções são frutos

    de acordos socioculturais que correspondem às representações mentais dos falantes (CROFT, 2001).

    Para Croft (2001), a construção pode ser exemplificada pelo seguinte esquema:

    Fonte: Croft (2001, p.18)

  • INTERCRÍTICAS: ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS DE LÍNGUA E LITERATURA 30

    Nesse esquema, a construção apresenta dois polos principais: o polo formal e o polo do

    significado. Esses polos são unidos por um link simbólico. Encontra-se em cada um dos polos da

    construção propriedades específicas. De acordo com Croft (2001), as propriedades fonológicas, as

    propriedades morfológicas e as propriedades sintáticas compõem a construção no âmbito formal.

    Enquanto, as propriedades semânticas, as propriedades pragmáticas e as propriedades discursivo-

    funcionais compõem a construção no âmbito do significado.

    Propriedades construcionais

    Como destacamos na introdução desse capítulo, a língua é concebida como uma organização

    em rede de relações construcionais. Posto isso, cada construção equivale a uma generalização de um

    padrão regular na língua. Esses padrões construcionais são interconectados por questões que

    envolvem os processos cognitivos desencadeados pelas experiências vivenciadas, a frequência de uso

    e a criatividade do falante ao realizar inovações na língua.

    Os padrões construcionais, com a construção-suporte, apresentam outras propriedades, isto é,

    características relacionadas às posições hierárquicas na rede de relações construcionais. Conforme

    Traugott e Trousdale, (2013), essas propriedades são: a esquematicidade, a composicionalidade e a

    produtividade.

    Em relação à esquematicidade, trata-se de uma propriedade característica de construções mais

    abstratas, isto é, com maior nível de generalidade taxionômica de categorias linguísticas. A

    generalização, de acordo com Casseb-Galvão et al. (2007), representa a perda de traços de significado

    em decorrência da expansão de contextos e da frequência no uso.