adilson júnior ishihara brito - teses.usp.br · de fronteira da região do rio amazonas e seus...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
Adilson Jnior Ishihara Brito
Insubordinados sertesO Imprio portugus entre guerras e fronteiras no norte da Amrica do Sul - Estado do
Gro-Par, 1750-1820.
Orientador: Prof. Dr. Joo Paulo G. Pimenta
So Paulo
2016
Tese apresentada Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para
a obteno do ttulo de Doutor.
rea de Concentrao: Histria Social
Orientador: Prof. Dr. Joo Paulo G. Pimenta
ADILSON JNIOR ISHIHARA BRITO
Insubordinados sertesO Imprio portugus entre guerras e fronteiras no norte da Amrica do Sul - Estado do
Gro-Par, 1750-1820.
So Paulo
2016
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquermeio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde quecitada a fonte.
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meioconvencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogao na PublicaoServio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo
BiBrito, Adilson Jnior Ishihara Insubordinados sertes: o Imprio portugus entreguerras e fronteiras no norte da Amrica do Sul -Estado do Gro-Par, 1750-1820 / Adilson JniorIshihara Brito ; orientador Joo Paulo G. Pimenta. -So Paulo, 2016. 588 f.
Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letrase Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.Departamento de Histria. rea de concentrao:Histria Social.
1. Imprio portugus. 2. Fronteiras. 3. RelaesTransfronteirias. 4. Estado do Gro-Par. 5.Reformas Imperiais. I. Pimenta, Joo Paulo G.,orient. II. Ttulo.
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo central analisar o processo de constituio
poltica e territorial da ampla zona de fronteira norte e noroeste da Amrica do Sul, entre 1750
e 1820, a partir de sucessivas reformas polticas, administrativas e fiscais demandadas pelo
Imprio portugus, para dilatar os seus espaos de controle sobre os sertes do Estado do
Gro-Par e Maranho, depois Estado do Gro-Par e Rio Negro. O desenvolvimento dessas
polticas imperiais, profundamente relacionadas concorrncia comercial e territorial entre os
Imprios europeus no mundo Atlntico, produziu um quadro de tenso e disputa nos espaos
de fronteira da regio do rio Amazonas e seus principais tributrios, nos quais os dirigentes do
Imprio portugus procuravam manter a soberania monrquica e imperial, principalmente em
relao aos domnios hispano-americanos. A proposta analtica deste trabalho tambm
procura privilegiar as mltiplas relaes sociais, rotas e circuitos transfronteirios, que foram
constitudas nos sertes do rio Amazonas, durante o processo de formao do referido espao.
Palavras-chaves: Imprio portugus, Fronteiras, Relaes Transfronteirias, Estado do Gro-
Par; Reformas Imperiais.
ABSTRACT: This study was aimed at analyzing the political and territorial constitution
process the large northern border zone and northwestern South America, between 1750 and
1820, from successive political, administrative and fiscal reforms demanded by the
Portuguese Empire, to expand their areas of control over the hinterlands of the State of the
Gro-Par and Maranho, after State of the Gro-Par and Rio Negro. The development of
these imperial policies, deeply related to commercial and territorial competition among
European empires in the Atlantic world, it produced a voltage switchgear and dispute in the
border areas of the Amazon region and its major tributaries, in which the leaders of the
Portuguese Empire sought to maintain the monarchical and imperial sovereignty, especially in
relation to the Spanish American domains. Analytical work in this proposal also seeks to
prioritize the multiple social relations, cross-border routes and circuits, which were formed in
the Amazon hinterlands during the said space forming process.
Key words: Portuguese Empire; Border; Cross-Borders Relations; State of the Gro-Par;Imperial Reforms.
SUMRIOResumo/Abstract .................................................................................................................. 03
Abreviaturas .......................................................................................................................... 06
Lista de Mapas e Figuras ...................................................................................................... 07
Agradecimentos ..................................................................................................................... 09
Introduo: O serto e o Imprio .......................................................................................... 13
Primeiro Captulo: Por entre incgnito sertes .................................................................... 24
1.1- Incorporar o que mais interessa .................................................................................. 29
1.2- Segurar o Estado e fortigicar os sertes ...................................................................... 53
1.3- Fiscalidade e contrabando ........................................................................................... 79
1.4- A Companhia de Comrcio ....................................................................................... 109
1.5- Civilizao, guerra e povoamento ............................................................................. 124
1.6- Concluso .................................................................................................................. 148
Segundo Captulo: Guerra e paz nos confins americanos ................................................... 151
2.1- Sob a nebulosa da guerra ............................................................................................... 155
2.2- Os tempos de paz ........................................................................................................... 195
2.3- Fronteiras em p de guerra ............................................................................................ 234
2.4- Concluso ...................................................................................................................... 265
Terceiro Captulo: Fronteiras em tempo de revoluo ....................................................... 268
3.1- Ventos da Revoluo Americana ................................................................................... 271
3.2- As Reais Cdulas espanholas de 1772 ........................................................................... 289
3.3- O plano portugus de comrcio transimperial ............................................................... 313
3.4- O teatro da guerra nas fronteiras .................................................................................... 334
3.5- Demarcando territrios e soberanias ............................................................................. 355
3.6- O turbilho da Revoluo Francesa ............................................................................... 404
3.5- Concluso ...................................................................................................................... 431
Quarto Captulo: Os sertes, entre a insubordinao e a independncia ............................ 434
4.1- Reformas, fiscalidade e insubordinao ........................................................................ 439
4.2- Crise ibrica e fronteiras americanas ............................................................................ 483
4.3- Diplomacia, independncia e negcios no Alto Rio Negro ........................................... 502
4.4- Concluso ..................................................................................................................... 543
Conclusao: Sobre a contra-fronteira .................................................................................... 545
Fontes: ......................................................................................................................... 548
Bibliografia: .............................................................................................................. 557
ABREVIATURASACCV Archivo Central de la Cancillera de Venezuela
AGNC Archivo General de la Nacin Colmbia
AGNV Archivo General de la Nacin Venezuela
AHG Archivo Historico de Guayana
AHI Arquivo Histrico do Itamaraty
AHMREE Archivo Historico del Ministrio de las Relaciones Exteriores del Ecuador
AHP Archivo Historico de Popayn
AHU Arquivo Histrico Ultramarino
ANE Archivo Nacional del Ecuador
ANRJ Arquivo Nacional Rio de Janeiro
APEP Arquivo Pblico do Estado do Par
BNRJ Biblioteca Nacional - Rio de Janeiro
IHGB Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro
PCDL Biblioteca da Primeira Comisso Demarcadora de Limites
PRDH Projeto Resgate de Documentao Histrica
LISTA DE MAPAS E FIGURASFigura 1: Amrica Meridionalis (1606). [Detalhe]
Figura 2: Mapa dos Confins do Brazil com as terras da Coroa de Espanha na AmericaMeridional (1749).
Figura 3: Mapa dos Confins do Brazil com as terras da Coroa de Espanha na AmericaMeridional. [Detalhe]
Figura 4: Prospecto da Aldea de Mariu, administrada pelos Religiosos Carmelitas onde seacha o Arraial, executado pelo Capitam Engenheiro Joam Andr Schwebel. Anno 1756.
Figura 5: Mappa geral do bispado do Par, repartido nas suas freguesias que nele fundou, eerigio o Exmo. E Revmo. Snr. D. Fr. Miguel de Bulhes III Bispo do Par, pelo AjudanteEngenheiro Antonio Galuzzi (1759). [Fl. 01-Detalhe]
Figura 6: Mappa geral do bispado do Par, repartido nas suas freguesias que nele fundou, eerigio o Exmo. E Revmo. Snr. D. Fr. Miguel de Bulhes III Bispo do Par, pelo AjudanteEngenheiro Antonio Galuzzi (1759). [Fl. 02-Detalhe]
Figura 7: Prospecto da Fortaleza do Rio Negro, executado pelo Capitam Engenheiro JoamAndr Schwebel. Anno 1756.
Figura 8: Plano da regio do rio Itnez, tambm chamado rio Guapor, e seus afluentes(1761). [Detalhe].
Figura 9: Plan Geografico del Virreinato de Santafe de Bogota Nuevo Reyno de Granada,que manifiesta su demarcacin territorial, islas, ros principales, prouincias y plazas dearmas; lo que ocvpan indios barbaros y naciones extranjeras; demostrando los confines delos dos Reynos de Lima, Mexico, y establecimientos de Portvgal, sus lindantes; con notashistoriales del ingreso anual de sus rentas reales, y noticias relatiuas a su actual estado civil,poltico y militar. Formado en servicio del Rey N[uest]ro. S[e]or. Por el D. D. FranciscoMoreno, y Escandn, Fiscal Protector de la Real Avdiencia de Santa Fe y Juez Conseruadorde Rents. Lo delineo D. Joseph Aparicio Morata ao de 1772. Gouernando el Reyno elEx[elentsi]mo S[e]or. Bailio Frey D. Pedro Messia de la Cerda. Fiel reproduccin deloriginal elaborada por el Instituto Geogrfico Militar de Colombia a solicitud de laAcademia de Historia. -1936- Dibujaron J. Restrepo Rivera- A. Villaveces R. - O. Roa A. R.Garca P.-.
Figura 10: Plan Geografico del Virreinato de Santafe de Bogota Nuevo Reyno de Granada.[Detalhe Provncia de Maynas].
Figura 11: Plan Geografico del Virreinato de Santafe de Bogota Nuevo Reyno de Granada.[Detalhe Provncia de Guayana].
Figura 12: Mapa de la Provincia de Guayana y Misiones de los P.P. Capuchinos Cathalanes.Anatoma Geografica. Fray Carlos de Barcelona. Sketch Map of the Capuchin Missions inthe Province of Guayana about 1771. [Detalhe]
Figura 13: Explicao da Planta da Fronteira de So Francisco Xavier de Tabatingaextrada em 11 de Julho de 1781.
Figura 14: Carta Geografica da Capitania do Mato Grosso, e Partes de suas Confinantesque so ao Norte a do Gram-Par, e Governo do Rio Negro, a Leste a de Goyaz, ao Sul a deS. Paulo, e a Provincia dAssumpo do Paraguay, e a Oeste as Provncias de Moxos eChiquitos (1800). [Detalhe]
Figura 15: Mapa do Soldado Joaquim Jorge sobre o rio Teja, afluente do rio Negro (1787).
Figura 16: Mapa feito pelos Soldados Felipe Neri e Eugnio do Rosrio sobre acomunicao existente entre os rios Negro e Japur (1787).
Figura 17: Mapa feito pelo Cabo de Esquadra Raimundo Maurcio sobre o reconhecimentodos rios Capury e Tiqui, entre o Vaups e o Apaporis, a buscar a comunicao existenteentre os rios Negro e Japur (1787).
Figura 18: Prospecto da Fortaleza de So Joaquim do Rio Branco tirada neste anno de1787, por Capitam Jos Simoins de Carvalho.
velha Vitria, onde quer que ela esteja.
Ao povo doce e guerreiro da Amrica do Sul.
AGRADECIMENTOSQuando comecei a construir esse trabalho no tinha ideia que iria receber tantos apoios
e que iria ampliar tanto a minha rede de contatos profissionais e de amizade. Posso dizer, com
muita tranquilidade, que a confeco desse estudo foi um processo trabalhoso, mas tambm
bastante prazeroso, pois tive oportunidade de conhecer lugares, culturas e pessoas que muito
me enriqueceram como historiador e como ser humano. Espero que todos se sintam
contemplados nesses agradecimentos.
Em primeiro lugar, preciso agradecer ao corpo docente e aos colegas do curso de
doutorado da Universidade de So Paulo pela acolhida e pelos debates muito interessantes em
sala, aos eventos e minicursos dos quais participei ativamente, em um momento de grande
agitao poltica, marcada pela ocupao do Campus do Butant pela Polcia Militar. Nesse
contexto, preciso ressaltar a postura tica e profissional da Profa. Maria Lgia Coelho Prado,
que em nenhum momento impediu que os discentes participassem dos protestos.
Devo um agradecimento particular ao meu orientador de tese, o Prof. Dr. Joo Paulo
G. Pimenta, sempre muito solcito aos meus pedidos de documentos, interessado no processo
da pesquisa, e rigoroso na leitura das primeiras verses do trabalho. As observaes sempre
adequadas e profundas, tanto na banca de qualificao como nas verses dos captulos
ajudaram demais a melhor-los. Tomara que tenha ficado altura.
Agradeo imensamente aos dois debatedores da Banca de Qualificao de tese, o Prof.
Dr. Francisco Ortega e o Prof. Dr. Carlos Augusto Bastos, que contriburam sobremaneira
para o desenvolvimento da proposta inicial.
Agradeo a todos os funcionrios do Archivo Histrico de Guayana, em Ciudad
Bolvar, pela ajuda e timo servio no escaldante clima orinoqueo. Nesta cidade, me senti
quase como no Brasil, por causa da hospitalidade de um grupo de intelectuais, artistas e
professores universitrios muito divertidos e solcitos. Agradeo, desse grupo, a Flix
Morillo, Nestor Rojas e Jemibol Rivas, e, por extenso Geertz Altman e Mara Alejandra
Maurera pela tima estadia na Posada Amor Ptrio. Em Caracas, agradeo a todos os
funcionrios do Archivo General de la Nacin e da Archivo Central de la Cancillera de
Venezuela, a Casa Amarilla.
Agradeo ao Programa Santander de Mobilidade Internacional, que me franqueou uma
bolsa de intercmbio internacional, que proporcionou o desenvolvimento da pesquisa nos
arquivos da Colmbia e do Equador. Em Bogot, agradeo imensamente as orientaes
sempre muito pertinentes dos professores Francisco Ortega, Sebastin Gmez Gonzlez,
Marta Herrera ngel, Vladimir Daza e Oscar Almrio Garca. No Archivo General de la
Nacin, agradeo a todos os funcionrios que muito me ajudaram no processo da pesquisa. Na
parte mais pessoal dessa viagem, agradeo ao Marco Crdenas, Andrs Crdenas, D. Leo e
Doa Blanca pela hospitalidade, e indicao do Oscar Castro. Em Popayn, a cidade
branca, devo muitos obrigados aos funcionrios do Archivo Historico pelo apoio
fundamental. Tambm me senti muito acolhido na cidade, e, sobretudo, no Hostel Trail.
Em Quito, tenho que prestar uma homenagem ao colega Santiago Cabrera Hanna que
me auxiliou com conversas, cpias, livros e com a hospedagem na Universidad Andina Simn
Bolvar, depois de um revs inesperado. Agradeo tambm orientada do referido Santiago,
Tati, que muito gentilmente se disps a fotografar uns documentos a pedido meu.
Agradeo imensamente aos colegas da Faculdade de Histria do Campus de Bragana
pelas sempre prontas deliberaes positivas aos meus pedidos de liberao para cursar as
disciplinas em So Paulo. Pelos atendimentos aos meus pedidos de afastamento e de
prorrogao de afastamento. Preciso mencionar, nesse processo, o apoio incondicional, dentro
da instituio do Prof. Sebastio Rodrigues, Coordenador do Campus e querido amigo em
alguns momentos realmente complicados. Prof. Eliane Soares, agradeo o emprstimo de
importantes livros, que, com a pureza dalma, no sei se os devolverei (brincadeira). Preciso
tambm agradecer aos colegas Francivaldo Nunes e Edilza Fontes pelo grande apoio (e
alguma presso) para terminar logo o curso.
Grande parte do desenvolvimento qualitativo do problema da tese devo existncia do
Grupo de Estudos de Fronteira, primeiramente organizado por mim e por Carlos Augusto
Bastos em 2010. As trocas intelectuais sobre o tema interdisciplinar das fronteiras americanas
nos eventos internacionais do GEF tiveram um peso fundamental para este autor. Segue um
agradecimento muito especial aos professores Carlo Romani, Simia Lopes, Shirley Nogueira,
Jos Alves Jr., Alejandro Mendible, Stphane Granger, Oscar Castro, ngela Domingues,
Alrio Cardoso, Gabriel Cabrera Becerra, Lodewijk Hulsman. Nos nossos Simpsios
Temtico da Anpuh Nacional e do Encontro Internacional de Histria Colonial, fiquei atento
aos comentrios de Csar Guazelli, Czar Martins, Jnia Furtado, Sebastin Gmez Gonzlez
e Juan David Montoya.
Aos queridos amigos Carlos Augusto Bastos e Simia Lopes agradeo, de corao, a
hospedagem no Largo do Machado no Rio de Janeiro, logo no incio do curso.
Em mbito mais privado, no teria conseguido chegar ao final sem o apoio de Lourdes
Beatriz, minha companheira em Belm, em Bragana, em Ciudad Bolvar, Caracas,
Florianpolis, enfim, minha companheira de vida. Aos meus infantes Victria, Otvio e
Incio agradeo somente por existirem.
14
INTRODUOO SERTO E O IMPRIO
Comecemos por duas histrias que nos parecem emblemticas para apresentar o
esprito geral desse trabalho. A primeira diz respeito a uma carta enviada por um missionrio
franciscano da povoao espanhola de La Concepcin, Frei Bonifcio de San Agustn
Castillo, para o Vice-Comissrio do Colgio de Popayn, Frei Jos Francisco de la
Concepcin Vicua, dando notcias, em novembro de 1771, das movimentaes de pessoas
oriundas do lado portugus nas imediaes das misses de Maynas. No relato, o religioso
dava conta da entrada, trs anos antes, de um bote tripulado por sete negros oriundos do Par,
que tinham adentrado a povoao de San Miguel, para realizar o apresamento dos ndios e a
coleta de salsaparrilha e do cacau, para serem comercializados nas povoaes portuguesas.
Para impedir que tal atrocidade fosse realizada, o referido Frei Agustn Castillo mandou
prender os negros no cepo de madeira da aldeia, tendo sido duramente repreendido por um
chefe indgena conhecido como Governador Pablo e por um negro seu companheiro
chamado Blas, que eram dos amigos ntimos, que son el reclamo de stos pcaros. Diante da
tenso criada pela situao, na qual os ndios locais comeavam a se agitar contra a atitude do
missionrio, no restou alternativa ao mesmo do que botar os negros em liberdade. No fim da
narrativa, o frade rogou s autoridades da Provncia de Popayn e da Audincia de Quito para
que se contuviesen en los limites de su dominacin y no estaran estrando cada instante a
robarse los ndios para despus venderlos como esclavos, en el Gran Par.1
O outro caso se passou na regio superior do rio Negro, cerca de onze anos depois, na
qual o comandante militar do lado espanhol, Jos de Chartres, dava notcias de uma violenta
sublevao de soldados na Fortaleza de Santo Agostinho do Ro Negro, no qual no via outra
sada que pedir reforos do lado portugus, sobretudo da Fortaleza de So Jos de
1 O relato bem mais amplo e cheio de detalhes sobre a frequente entrada de pequenas embarcaes do ladoluso-americano nas misses de Maynas e Napo. Conferir: Carta dos Missionrio da povoao de La Concepcin,Fray Bonifacio de San Agustn Castillo e Fray Joaqun de San Lus Gonzaga , para o Governador de Popayn eVice-Reitor do Colgio de Nuestra Seora de las Gracias de Popayn, Fray Jos Francisco de La ConcepcinVicua. La Concepcin, 23/11/1771. Apud Augusto Javier GMEZ LPEZ; Gabriel CABRERA BECERRA.Fuentes documentales para la historia de la Amazona colombiana. Vol. 1, Bogot: Universidad Nacional deColombia; Archivo General de la Nacin Colombia, 2012, p. 136-139. (destaque nosso)
15
Marabitanas, situada na imprecisa divisa entre os territrios ibero-americanos. Segundo o
narrador, a rebelio tinha se iniciado com um grupo de soldados dezertados da Coroa del
Rey de espanha, encabeada por Alex Antnio da Costa, Joo Incio, Joo Rodrigues, Jos
Crispim, Jorge Antnio Seplveda e Loureno Jos, que estariam roubando os almazens e
quartel e Amarrando Infamemente os cabos e mais soldados que la se achavo validos da
mesma Inocencia que me achava em deligencia do Real Servio. Todos os desertores citados
eram oriundos do lado portugus e tinha sido acolhidos na fortaleza como soldados dEl Rei
de Espanha, de onde tambm tinham desertado antes de iniciarem a rebelio. No contente em
assaltar os armazns reais de provimentos e armas, o desertor portugus Alex Antnio da
Costa, considerado um dos lderes da sublevao, ainda tinha roubado a prpria casa do
comandante da fortaleza, na qual tinha levado - alm de tabaco, camisas, meias, uma toalha de
mesa e quatro guardanapos - [a] minha Criada Maria Escolastica a qual estava amanebada
com o dito Aleixo e asim Ei de mereer a V. S.a me restitua as armas e munioins.2
Que importncia tm essas dessas duas narrativas, alm de mostrar casos curiosos do
cotidiano de espaos longnquos entre si? E, o mais relevante: qual a pertinncia dessas duas
situaes para o conhecimento histrico dessa regio durante o sculo XVIII e incio do XIX?
Aparentemente nada, se observarmos essas duas histrias como isoladas em si (e entre si), no
vasto espao selvtico e pouco povoado que caracterizava (e, em grande medida, ainda
caracteriza) o territrio cortado pelo rio Amazonas e seus principais rios colaterais.
Entretanto, se olharmos com mais ateno, poderemos levantar algumas importantes questes
para reflexo. Em primeiro lugar, chama a ateno que nos dois casos temos agentes
portugueses participando de uma srie de situaes do lado espanhol do territrio, isso em
duas frentes diferentes, na Provncia de Maynas e na regio do Alto Orinoco e Rio Negro,
subordinada administrativamente Provncia de Guayana. Em segundo lugar, as duas
narrativas mostram que os habitantes dos dois lados da fronteira construram relaes variadas
e recprocas entre si, que poderamos classificar como sendo de trabalho, comrcio, amizade,
luta, aliana, parceria, sobrevivncia, afeto, enfim, mltiplas interaes voltadas para suprir as
necessidades individuais e coletivas dos que viviam, ocupavam e/ou dominavam aqueles
espaos.
As duas situaes circunstanciais mostram, simultaneamente, a presena e a ausncia
da fronteira. Como relatos de autoridades eclesisticas e militares, as duas situaes acendem
2 As citaes esto conforme: Carta do Comandante da Fortaleza de Santo Agostinho de Ro Negro, Jos deChartres, para o Comandante da Fortaleza de Marabitanas. Santo Agostinho de Ro Negro, 15/05/1779. Fls, 32-33. Cdice 352: Correspondncias de Diversos com o Governo (1778-1796). Arquivo Pblico do Estado do Par(APEP). (grifo nosso na primeira citao)
16
a fronteira a partir da localizao dos sujeitos que a ultrapassam no primeiro caso, os negros
do Par, teriam adentrado as misses franciscanas da jurisdio de Popayn; e, no segundo,
os soldados de Portugal tinham feito a rebelio na fortaleza espanhola de Santo Agostinho.
Ao mesmo tempo em que a fronteira est circunscrita aos dois relatos, ela tambm apagada
pelo fato de que as associaes entre os soldados, na rebelio, e entre os negros e indgenas,
no comrcio, se constiturem em experincias em comum, as quais no dependiam
diretamente de regulaes de tipo administrativo, militar e/ou eclesistico para serem
fabricadas no cotidiano das povoaes. Ou seja, eram espaos ao mesmo tempo sujeitos
administrao formal dos Estados que encaminharam historicamente a sua ocupao e
tambm eram lugares produzidos pelas prprias relaes sociais que se constituam
localmente. E o fluxo de pessoas e de suas necessidades nos espaos considerados de fronteira
no se dava somente pelo deslocamento dos portugueses em direo s fortalezas e povoaes
dos domnios hispnicos, mas tambm o inverso, como tambm envolviam holandeses,
franceses, missionrios de diversas Ordens Religiosas e indgenas de mltiplas naes
tnicas.3
Contudo, para os efeitos da anlise empreendida nesse trabalho, abordamos a fronteira
como o processo pelo qual os Imprios ibricos procuraram estender o seu espao de
dominao territorial no Novo Mundo. Durante o longo processo de ocupao e conquista
territorial nas mltiplas reas indgenas do continente americano, processo esse que remonta
conjuntura da Expanso Ultramarina, as Monarquias europeias constituram-se em Imprios
3 A composio dessa reflexo tributria de uma ampla bibliografia interdisciplinar que tem trabalhado demltiplas maneiras com o tema da fronteira como espao de trocas, contatos e interaes. Nesse sentido,conferir: Colin M. MCLACHLAN. The indian labor structure in the Portuguese Amazon, 1700-1800. In:ALDEN, Dauril (edit.). Colonial roots of modern Brazil: paper of Newberry Library Conference. Berkeley, LosAngeles; London: University of California Press, 1973, p. 199-230. David G. SWEET. Francisca: escrava daterra. In: Anais da Biblioteca e Arquivos Pblicos do Par. Tomo XIII, Belm: SECDET, 1983, pp. 283-304.Domingo FAUSTINO SARMIENTO. Frontier Barbarism. In: David J. WEBER; Jane M. RAUSCH (eds.).Where Cultures Meet: Frontiers in Latin America History. Lanham: SR Books, 1994, p. 26-33. David G.SWEET. Reflections on the Ibero-American Frontier Mission as an Institution in Native American History. In:WEBER; RAUSCH, Where Cultures Meet, op. cit., p. 87-98. Neil L. WHITEHEAD. Indigenous cartography inlowland South America and the Caribbean. In: David WOODWARD; Malcolm LEWIS (eds.). The History ofCartography: cartography in traditional African, American, Artic, Australian and Pacific societies. Vol. II,Book 3, Chicago: University of Chicago Press, 1998, p. 301-328. Jeremy ADELMAN; Stephen ARON. FromBordelands to Borders: Empires, Nation-States, and Peoples in between in North American History. In: TheAmerican Historical Review, Vol. 104, no 3 (Jun, 1999), p. 814-841. David J. WEBER. Barbaros: spaniards andtheir savages in the Age of Enlightenment. New Haven and London: Yale University Press, 2005. ChristianBSCHGES; Frdrique LANGUE. Las lites de la Amrica espaola, del xito historiogrfico al callejninterpretativo? Reconsideraciones. In: Christian BSCHGES; Frdrique LANGUE. (coords.). Excluir para ser.Procesos identitarios y fronteras sociales en la Amrica hispnica (siglos XVII-XVIII). Madrid: Iberoamericana;AHILA; Frankfurt: Vervuert, 2005, p. 9-22. No poderamos deixar de mencionar as contribuies analticas dahistria transnacional, que tambm nos permitiu compreender e interpretar com mais propriedade as realidadestransfronteirias no mundo colonial americano. Destacamos: C. A. BAYLY; Sven BECKERT; MatthewCONNELY; Isabel HOFMEYR; Wendy KOZOL; Patricia SEED. AHR Conversation: On TransnacionalHistory. In: The American Historical Review, Vol. 111, no 5 (December 2006), p. 1441-1464.
17
territoriais a partir de frequentes disputas, que, em grande medida, estavam fortemente
vinculadas s conjunturas mais amplas do plano internacional. A noo de fronteira, nessa
acepo, est intimamente relacionada com as polticas desenvolvidas pelos Imprios com o
objetivo de dilatar o seu espao de controle e subordinao sobre as vias de comunicao, os
recursos naturais e os povos que habitavam esses territrios, que passaram a ser disciplinados
pelas linhas tortuosas (embora ainda imprecisas) da cartografia e transformados em
jurisdies polticas, administrativas e eclesisticas. John Russel-Wood tem razo ao afirmar
que, de maneira geral, as autoridades portuguesas e, principalmente, luso-americanas,
utilizavam a expresso fronteira como equivalente a serto, embora, nos testemunhos
coevos que sero trabalhados aqui, aparece de maneira muito mais significativa a palavra
serto ou sertes. Esses espaos eram caracterizados pela pouca ou nenhuma presena
poltica, administrativa, militar, eclesistica e/ou fiscal, nos quais habitavam aqueles sujeitos
que transitavam entre os limites da ordem colonial e o dos sertes, como foi o caso dos negros
que rumavam para as misses espanholas do rio Maraon e os soldados portugueses que se
levantaram no fortim de Santo Agostinho. O que estava para alm da vila ou da povoao era
o mundo ainda no integrado civilizao, o mundo da violncia, da evaso fiscal, da (des)
ordem natural, enfim, o mundo da barbrie.4
A partir dessa ideia de fronteira como serto que procuramos explorar a
documentao de poca. O panorama que foi emergindo dessa base mais terica apontou para
a existncia de uma ampla e duradoura disputa territorial, promovida pelos Imprios
portugus, espanhol, francs e holands, principalmente em se tratando da larga faixa
territorial sob a influncia do rio Amazonas e seus afluentes. A concorrncia entre os agentes
imperiais variados acabava por criar uma condio intermediria nos sertes, nos quais
experincias variadas de sobrevivncia acabavam por criar fluxos e deslocamentos
transfronteirios, ou seja, contnuas movimentaes nos sertes ainda no delimitados e
4 Essa perspectiva conceitual sobre fronteira est assentada em uma vasta bibliografia, principalmente de lnguainglesa, que tem devassado o tema a partir da expanso da Repblica norte-americana para a regio oeste dosEstados Unidos, que acabou por estabelecer um profcuo debate historiogrfico para o processo de expansoterritorial ibero-americano. Nesse sentido, destacamos: Frederick Jackson TURNER. The Frontier in AmericanHistory. New York: Henry Holt & Company, 1956. John Francis BANNON (ed.). Bolton and the SpanishBorderlans. Norman: University of Oklahoma Press, 1968. Chiara VANGELISTA. Frontiera. In: StoriaDellAmerica Latina. Firenze: La Nuova Italia Editrice, 1979, pp. 77-78. Marianne SCHMINK; Charles WOOD.Frontier expansion in Amazona. Gainesville: University of Florida Press, 1984. Richard W. SLATTA.Historical frontier imagery in the Americas. In: Paula COVINGTON (ed.). Latin American Frontiers. Bordersand Hinterlands: research needs and resources, Albuquerque, Salalm Secretariat: University of New Mxico,1988. Alida C. METCALF. Family, Frontiers, and Brazilian Community. In: WEBER; RAUSCH, WhereCultures Meet, op. cit., p. 130-140. Jos Lus ROMERO. Amrica Latina: as cidades e as ideias. Rio de Janeiro:editora UFRJ, 2004. Margarita SERJE. El revs de la nacin: territorios salvajes, fronteras y tierras de nadie.Bogot: Universidad de los Andes, 2011. John RUSSEL-WOOD. Fronteiras no Brasil colonial. In: Histrias doAtlntico portugus. So Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 279-302.
18
sequer conhecidos, a partir dos quais as instncias governamentais subordinadas a diferentes
entidades nacionais tinham extrema dificuldade para controlar. Constantes relatos sobre casos
semelhantes aos dos negros do Gro-Par que adentraram as misses de Maynas,
descortinavam prticas frequentes de contrabando de gneros naturais e de escravos indgenas
dos sertes para as povoaes - fossem esses reivindicados pelos portugueses, franceses ou
espanhis -, que comearam a mobilizar as cpulas dirigentes dos Imprios europeus para a
necessidade de controle e disciplinarizao daquelas reas americanas, o que somente poderia
ser feito a partir da incorporao formal das mesmas, principalmente a partir da distenso da
redes de controle militar, administrativa e fazendrias.
exatamente sobre esse processo de distenso, ao mesmo tempo, burocrtico e
espacial, centrada no Imprio portugus, que trata esta tese. A periodizao adotada parte de
1750, quando a assuno de Filipe VI ao trono de Espanha proporcionou s Cortes ibricas,
sobretudo de Lisboa, a construo de uma agenda diplomtica voltada para a resoluo dos
problemas da impreciso dos limites ibero-americanos, ainda regulados pelos confusos
parmetros do Tratado de Tordesilhas, e que tinham acarretado grandes tenses na Amrica,
principalmente na regio do Rio da Prata. Nesse contexto, o planejamento imperial portugus
procurou inserir o enorme e pouco controlado espao territorial do rio Amazonas ao corpo do
Imprio lusitano, o que acabou por transformar uma zona claramente perifrica dos domnios
americanos em prioridade das polticas desenvolvidas pelos gabinetes do Rei D. Jos I. Essa
poltica de incorporao territorial seria desdobrada em variadas estratgias de expanso dos
limites do Estado at o ano de 1820, quando o movimento constitucional iniciado na cidade
do Porto e inspirado na experincia revolucionria hispano-americana, desencadeou um
rpido processo de crise do Antigo Regime nos Reinos de Portugal e do Brasil, passando a
concentrar os esforos da Corte imperial, instalada no Rio de Janeiro, para conter a
progressiva desintegrao da parte americana do Imprio.
Cabe aqui ressaltar que, no interior desse recorte temporal, as polticas imperiais
portuguesas e luso-americanas tenderam a priorizar a incorporao definitiva da Amrica,
sobretudo dos sertes fronteirios das Capitanias do Gro-Par, Rio Negro e Mato Grosso, a
partir da concorrncia com os vizinhos estrangeiros, no somente a partir das dinmicas
internas das raias extremas situadas entre os Imprios. Essas disputas americanas mais
localizadas estavam irremediavelmente conectadas com a conjuntura mais ampla das relaes
internacionais, que tendiam a oscilar entre a guerra e a paz armada, sobretudo entre as
potncias beligerantes de primeira grandeza, a Gr-Bretanha e a Frana. A evoluo das
relaes diplomticas entre as Cortes de Saint James e de Paris tinha forte influncia nos
19
negcios estrangeiros e ultramarinos dos outros Imprios europeus, sobretudo por conta do
sistema de alianas que promoviam e que poderiam colocar em prtica a qualquer momento.
Isso quer dizer que, na prtica da pesquisa e da interpretao das fontes histricas, partimos
do pressuposto de que a afirmao das soberanias imperiais sobre os territrios limtrofes de
suas colnias na Amrica tinham que levar em conta um quadro maior de interaes entre os
Imprios europeus, que cada vez mais dilatavam as suas reas de influncia comercial,
produzindo um sistema-mundo, que funcionava em crescente escala global.5
Isso significa dizer que, quando procuramos dimensionar os diversos projetos
reformistas desenvolvidos para a incorporao territorial e desenvolvimento das
potencialidades econmicas das zonas fronteirias americanas, tnhamos que levar em conta a
viso imperial com que as Cortes de Lisboa e Madri trabalhavam as suas polticas externas,
tanto desenvolvidas entre si, como a partir das relaes comerciais e diplomticas em relao
aos outros Imprios. O investimento nessa abordagem de anlise global acabou por contrastar
diretamente com a produo historiogrfica do sculo XIX e de boa parte do XX, que
procurou interpretar a formao poltica do Brasil a partir da premissa de que o germe da
unidade poltica e territorial do Estado-Nao brasileiro estava presente nos mais de trs
sculos da colonizao portuguesa, em um processo de continuidade na qual o primeiro era
colocado como herdeiro da segunda. A manuteno da integridade do territrio brasileiro
traou essa continuidade com o passado portugus, tambm com o objetivo de produzir um
contraponto explicativo ao esfacelamento poltico do mundo hispano-americano. Como bem
5 A base de desenvolvimento do sistema-mundo capitalista est centrada na produo de um conhecimento decunho estruturalista, que tem na economia os seus elementos fundamentais. O seu principal desdobramento noconhecimento histrico tem levado em considerao a importncia das redes comerciais constitudas pelosImprios europeus desde o sculo XV at o sculo XX. No caso do sculo XVIII e do incio do XIX, que onosso recorte temporal, essa expanso das rotas comerciais se deu, principalmente, a partir do Imprio britnico,cujas redes de negcio se espalhavam por todos os continentes e integravam povos e culturas a partir do mercadode trocas. Conferir: Fernand BRAUDEL. Civilizao material, economia e capitalismo: sculos XV-XVIII: osjogos das trocas. Volume 2, 2a edio, So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. ImmanuelWALLERSTEIN. The Modern World-System II: Mercantilism and the Consolidation of the European World-Economy, 1600-1750. New York: Academic Press, Inc., 1980. Immanuel WALLERSTEIN. The Modern World-System III: The second era of great expansion of the capitalist world-economy, 1730-1840s. London: AcademicPress Inc., 1989. Giovanni ARRIGHI. O Longo Sculo XX: dinheiro, poder e origens do nosso tempo. Rio deJaneiro: Contraponto, 2013. Kenneth POMERANZ. The Great Divergence: China, Europe, and the Making ofthe Modern World Economy. Princeton: Princeton University Press, 2000. Especificamente sobre a expanso dasrotas mercantis do Imprio britnico, conferir: Peggy K. LISS. Los imperios transatlnticos: las redes decomercio y de las Revoluciones de Independencia. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1995. Stephen J.HORNSBY. Geographies of the British Atlantic World. In: H. V. BOWEN; Elizabeth MANCKE; John G. REID(edits). Britains Oceanic Empire: Atlantic and Indian Ocean Worlds, c. 1550-1850. Cambridge; CambridgeUniversity Press, 2012, p. 15-44. P. J. MARSHALL. The Making and Unmaking of Empires: Britain, India, andAmerica c.1750-1783. New York: Oxford University Press, 2005. Para a realidade do Imprio portugus:Charles R. BOXER. O imprio martimo portugus, 1415-1825. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.Fernando A. NOVAIS. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 8a Edio, SoPaulo: Hucitec, 2006.
20
observou Joo Paulo G. Pimenta, essa histria nacional continua ativada, na medida em que,
ao se debruar sobre as experincias histricas da Amrica portuguesa colonial ou da
Independncia brasileira, continua a segregar o Brasil da superfcie americana e, desse modo,
das mltiplas interaes que tambm fizeram parte de sua formao.6
As mltiplas influncias, fluxos e interconexes estabelecidas entre os Imprios, tanto
no Velho Mundo, em suas rotas e circuitos comerciais nos mares e oceanos, assim como nas
possesses ultramarinas eram possveis porque compartilhavam, segundo a proposio de
Reinhart Koselleck, a mesma experincia histrica, transcendente e transcendental, entre os
sculos XVII e XIX. Essa experincia, que extrapolava os limites das monarquias naquilo que
as mesmas compartilhavam, tinha relao direta com a concorrncia por rotas, circuitos,
territrios e povos nativos de diversas partes do mundo. Assim, aquelas situaes
circunstanciais e aparentemente encerradas na sua dimenso local, como as que apresentamos
no incio desse texto, remetiam a um contexto mais amplo, no qual os eventos construdos
naquela rea estavam conectados a outros de mesma dimenso e em lugares variados, os quais
passaram a sofrer intervenes crescentemente verticais por parte dos conquistadores, dado
que partilhavam a mesma experincia histrica de territrios ainda em grande parte
desconhecidos, pouco controlados e ainda em processo de litgio entre os Imprios coloniais.7
Essa experincia histrica, simultaneamente una e mltipla, local e imperial, tem sido
cada vez mais explorada (e muito bem trabalhada) pela historiografia. No caso especfico dos
estudos sobre a Amaznia, que o locus privilegiado da produo deste autor, alguns
trabalhos tm demonstrado as diversas dinmicas polticas, econmicas, culturais e
6 Sobre a histria nacional, destacamos: Francisco Adolfo de VARNHAGEN. Histria Geral do Brasil: antesda sua separao e independncia de Portugal. 4a Edio, So Paulo: Edies Melhoramentos, 1948. Manuel deOliveira LIMA. Formao histrica da nacionalidade brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. Caio PRADOJNIOR. Evoluo poltica do Brasil e outros estudos. 21a Edio, So Paulo: Brasiliense, 1999. ____. HistriaEconmica do Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1972. Otvio Tarqunio de SOUSA. Introduo histria dosfundadores do Imprio do Brasil. Rio de Janeiro: MEC; Servio de Documentao, 1957. Nelson WerneckSODR. As razes da Independncia. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 1965. Jos HonrioRODRIGUES. Independncia: revoluo e contra-revoluo. Para a historiografia sobre a Amaznia, aabordagem da histria nacional clssica nas obras de: Arthur Czar Ferreira REIS. A poltica de Portugal novale amaznico. Belm: Secretaria de Estado da Cultura, 1940; _____. Limites e Demarcaes na AmazniaBrasileira. 2 Volumes, Belm: Secult, 1993. Sobre a permanncia da histria nacional, vide: Joo Paulo G.PIMENTA. Tempos e espaos das independncias: a insero do Brasil no mundo ocidental (c.1780-c.1830).So Paulo: Universidade de So Paulo; Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, 2012 (Tese de LivreDocncia). _____. Introduo: Sobre experincia. In: A independncia do Brasil e a experiencia hispano-americana (1808-1822). So Paulo: Hucitec; Fapesp, 2015. Duas leituras crticas sobre a constituio doterritrio brasileiro esto em: Carlos Guilherme MOTA. Ideias de Brasil: formao e problemas (1817-1850). In:Carlos Guilherme MOTA (org.). Viagem incompleta. A experincia brasileira (1500-2000). Formao:histrias. So Paulo: Editora SENAC So Paulo, 2000, p. 197-239. Demtrio MAGNOLI. O Estado em busca deseu territrio. In: Istvn JANCS (org.). Brasil: a Formao do Estado e da Nao. So Paulo: Hucitec; Ed.Uniju; Fapesp, 2003, p. 285-296.7 Reinhart KOSELLECK. Lexprience de lhistoire. Paris: Galimard Le Seuil, 1997.
21
intelectuais de uma regio historicamente perifrica nos projetos imperiais europeus dos
sculos XVII e XVIII, cuja pesquisa tambm tende a transcender os arquivos e centros de
pesquisa nacionais, para conectar documentaes diversas (e dispersas) em vrios pases, que
convergem para a compreenso do mesmo espao. O historiador Neil Safier, em seu estudo
intitulado Measuring in the New World (2008), apresentou um quadro dinmico da insero
da regio norte da Amrica do Sul nas disputas acadmico-cientficas da Europa ilustrada,
sobre a verdadeira forma da Terra, a partir de uma investigao mais ampla, que reuniu uma
gama documental de arquivos distantes como os da Frana e os do Equador. Na mesma linha,
Alrio Cardoso, em seu trabalho intitulado Maranho na Monarquia Hispnica (2012),
percorreu arquivos de Portugal, Espanha, Itlia e Holanda, para analisar os projetos atlnticos
da Monarquia espanhola, sobretudo no Estado do Maranho, assim como a circulao de
pessoas, ideias e produtos no que era o maior Imprio colonial do sculo XVII. Juan
Sebastin Gmez Gonzlez, em seu Frontera selvtica (2014), desenvolveu uma rica anlise
sobre o vasto e impreciso territrio da Governana de Maynas entre os sculos XVII e XVIII,
no qual demonstrou amplamente as mltiplas interconexes com os mundos atlnticos e luso-
americano das Capitanias do Rio Negro e do Par, cujo escopo documental tinha o seu lastro
transnacional nos arquivos da Espanha, Portugal, Brasil, Colmbia e Equador. Perspectiva
semelhante foi produzida por Carlos Augusto de Castro Bastos em sua tese de doutorado
denominada No Limiar dos Imprios (2013), que procurou compreender os fluxos, interaes
e circuitos econmicos entre as polticas demarcadoras desenvolvidas pelos Imprios ibricos
na fronteira entre a Provncia de Maynas e a Capitania do Rio Negro, entre a segunda metade
do sculo XVIII e primeiras dcadas do XIX, baseado em um conjunto variado de
documentos dos arquivos de Portugal, Espanha, Brasil e Peru.8
Esta tese altamente tributria da perspectiva de pesquisa e de estudo desenvolvida
por esses historiadores-peregrinos, em se tratando das mltiplas dinmicas circunscritas aos
antigos Estados do Gro-Par e Maranho e do Gro-Par e Rio Negro. Para compreender e
analisar a complexidade desse enorme espao em disputa entre 1750 e 1820, a partir de suas
circulaes diversas, tivemos que investir em uma coleta documental igualmente
multinacional, que extravasou a tradicional jornada seguida pela maioria dos pesquisadores do
8 Na ordem: Neil SAFIER. Measuring the world: enlightenment science and South America. Chicago: TheUniversity of Chicago Press, 2008. Alirio CARDOSO. Maranho na Monarquia Hispnica: intercmbios,Guerra e navegao nas fronteiras das ndias de Castela (1580-1655). Salamanca: Universidad de Salamanca,2012. Sebastin GMEZ GONZLEZ. Frontera selvtica: Espaoles, portugueses y su disputa por elnoroccidente amaznico, siglo XVIII. Bogot: Instituto Colombiano de Antropologa e Historia ICANH, 2014.Carlos Augusto de Castro BASTOS. No Limiar dos Imprios: projetos, circulaes e experincias na fronteiraentre a Capitania do Rio Negro e a Provncia de Maynas (c.1780- c.1820). So Paulo: Universidade de SoPaulo, 2013. (Tese de Doutorado).
22
norte do Brasil, geralmente centrada nos arquivos do Par e do Rio de Janeiro. Assim, para
compreender melhor algumas relaes tecidas na fronteira do Alto Rio Negro com a Provncia
espanhola de Guayana, nos valemos tambm das fontes histricas guardadas nos arquivos da
Venezuela; para os intercmbios na regio do Alto Amazonas ou Alto Maraon, percorremos
os centros de pesquisa da Colmbia e do Equador. Na esteira da compreenso das realidades
transnacionais e transfronteirias, os historiadores igualmente acabam por ser converter em
pesquisadores transnacionais e transfronteirios, pois buscam testemunhos de diferentes
espaos de fronteira para conect-los na anlise histrica, estabelecendo tambm importantes
contatos e conexes com estudiosos locais e com as suas redes intelectuais.
A experincia histrica do Imprio portugus no Estado do Gro-Par e Maranho e
do Gro-Par e Rio Negro, no referido recorte temporal dessa pesquisa, est estruturada em
quatro conjunturas principais: no Primeiro Captulo, procuramos analisar o processo ocupao
territorial portuguesa na rea contgua ao rio Amazonas e seus afluentes principais, a partir da
conjuntura poltico-diplomtica do Tratado de Limites de 1750, mais conhecido como Tratado
de Madri. Esse processo de distenso espacial, iniciado com a discusso dos parmetros
cartogrficos do referido Tratado, foi colocado em prtica pela Corte de Lisboa atravs de
amplas reformas administrativas, militares e fiscais, que tinham como objetivo principal
aumentar o grau de interveno da Monarquia nos espaos e dinmicas locais ainda no
incorporados aos domnios imperiais. Esse processo foi largamente concentrado no sentido
leste-oeste do rio Amazonas, no qual estavam as possesses mais desguarnecidas da ento
Capitania do Gro-Par. O recorte temporal se encerra em 1761, quando as Cortes ibricas
assinam o Tratado dEl Pardo, no qual anulam os dispositivos das demarcaes territoriais de
1750, j sob o influxo da conjuntura internacional beligerante.
No Segundo Captulo, priorizamos a conjuntura situada entre os anos de 1756 e 1772,
na qual os Imprios ibricos orientaram os seus projetos imperiais para a Amrica sob a
influncia da Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Mesmo com o estabelecimento do Tratado
de Paz de Paris em 1763, que tambm vigorou entre Portugal e Espanha, a tenso gerada
pelos dispositivos do Tratado, acabaram por incentivar atritos pontuais entre ambas as
monarquias nas fronteiras americanas. O conflito mais conhecido desse contexto , sem
dvida, o das tomadas da ilha de Santa Catarina, de parte da Capitania do Rio Grande de So
Pedro e da Colnia do Sacramento, em 1762, pelas tropas do Governador de Buenos Aires D,
Pedro Cevallos. Todavia, outra significativa escaramua mobilizou as autoridades ibero-
americanas por conta do bloqueio espanhol aos efetivos militares da Fortaleza de Nossa
Senhora da Conceio na Capitania do Mato Grosso, entre os anos de 1763 e 1764. Embora o
23
centro da disputa fossem as misses luso-espanholas do rio Guapor, a notcia do bloqueio do
rio Madeira por uma tropa de 700 soldados da Provncia de Moxos levou a uma grande
mobilizao do Imprio portugus sobre toda a regio do Estado do Gro-Par e Maranho,
atravs do aumento do processo de interveno monrquica nas dinmicas locais das
povoaes, sobretudo nos sertes.
O Terceiro Captulo prioriza a anlise sobre as polticas imperiais ibero-americanas
em duas conjunturas conectadas. A primeira, situada entre 1772 e 1780, conformou projetos
reformistas de ambas as Cortes ibricas para os domnios americanos, a partir dos quais
procuraram reforar os sistemas de defesa sobre as raias limtrofes de parte a parte. Nesse
nterim, a Corte de Lisboa iniciou nova reforma administrativa na parte norte da Amrica
portuguesa, na qual foram criados os Estado do Gro-Par e Rio Negro, e Maranho e Piau,
juntamente com a implementao de um ambiciosos Plano de Comrcio, que tinha por
objetivo dinamizar a navegao comercial, a produo agrcola e consolidar as povoaes
fronteirias a partir do incentivo ao comrcio transimperial em direo s provncias hispano-
americanas de Maynas e Guayana. A Corte de Madri tambm iniciou uma ampla reforma em
seus domnios fronteirios com os domnios portugueses, para frear o que era considerada um
processo de expanso articulado em vrias frentes americanas, inclusive no norte. Centramos
a anlise sobre esse processo a partir da formao de expedies militares espanholas, que
procuravam ao mesmo tempo ocupar as fronteiras, mas tambm planejavam invadir as
possesses luso-americanas. A segunda conjuntura est situada entre 1780 e 1798, perodo
marcado pelas revolues atlnticas, perpassando as estratgias de ocupao territorial
portuguesa sob a influncia das demarcaes empreendidas pelas comisses luso-espanholas
em cumprimento do Tratado de Santo Ildefonso e as variadas tenses oriundas desse processo
nas fronteiras, o que levou ao estabelecimento de novas e amplas reformas imperiais em 1798,
capitaneadas pelo Ministro da Marinha e Ultramar D. Rodrigo de Souza Coutinho.
O Quarto Captulo est ambientado no perodo poltico entre 1798 e 1820, no qual o
mundo luso-americano comeou a ser sugado para o interior da crise do Antigo Regime no
mundo hispano-americano. O fio condutor desse debate a Capitania do Rio Negro, na qual o
impacto das reformas de 1798 gerou uma atmosfera de insubordinao entre as autoridades e
os moradores de Barcelos e de seus distritos principais, justamente no perodo de maior crise
da Monarquia portuguesa na Europa, com a invaso napolenica sobre a Pennsula ibrica.
Assim, no tenso momento da transladao da Corte imperial para os domnios americanos, em
1808, as bases de unidade do Imprio portugus se encontravam mais uma vez fragilizadas
pelas dissenses internas em uma de suas partes mais permeveis. Essa permeabilidade ser
24
objeto de preocupao a partir de 1817, quando, definitivamente, a Capitania do Rio Negro
passou a vivenciar a experincia revolucionria hispano-americana, com os contatos entre as
autoridades e os habitantes da parte superior do rio Negro com a expanso da revoluo de
independncia, capitaneada por Simn Bolvar e Jos Antonio Pez, nos limites territoriais da
Fortaleza de So Jos de Marabitanas, na fronteira dos domnios lusos na Amrica.
25
PRIMEIRO CAPTULO
POR ENTRE INCGNITOS SERTESUm novo horizonte de fortalecimento poltico e expanso econmica parecia se abrir
para o Imprio portugus na segunda metade do sculo XVIII. Apesar da crescente presso
internacional em torno da frgil posio da Monarquia no quadro poltico europeu ter
aumentado a carga de trabalho diplomtico dos dirigentes imperiais da nova Corte de D. Jos
I, estabelecida em 1750, nenhuma meta excedeu em importncia quela colocada pelos
gabinetes de Lisboa sobre a definio dos limites de suas conquistas americanas e asiticas
com a Espanha, estipuladas no Tratado de Madri em 1750. Embora soubessem dos grandes
esforos que deveriam ser realizados nas demarcaes dos territrios limtrofes da Amrica,
os ministros encarregados dos negcios ultramarinos tinham plena conscincia de que aquele
era o momento certo para consolidar a expanso da fronteira territorial, poltica e econmica
do Imprio em direo ao interior dos domnios hispano-americanos, e, em decorrncia disso,
aumentar o volume do fluxo de seus negcios no circuito Atlntico dalm-mar.1
Essa viso expansionista era projetada principalmente para a enorme bacia do rio
Amazonas, onde as movimentaes luso-americanas tinham sido intensificadas a partir da
dcada de 1710, com a ratificao do Tratado de Utrecht (1715) e adoo do princpio do Utis
Possidetis Juris como regra central de legtima posse do territrio por sua efetiva ocupao.
sombra das intensas disputas entre portugueses e espanhis sobre a Colnia do Sacramento e
a regio dos Sete Povos das Misses, na regio dos rios da Prata, Uruguai e Paraguai, na qual
1 Sobre o processo de expanso da fronteira luso-americana no vale do rio Amazonas durante a conjunturadiplomtica do Tratado de Limites de 1750, vide: Jaime CORTESO. O Tratado de Madrid. 2 Tomos, Rio deJaneiro: Ministrio das Relaes Exteriores; Instituto Rio Branco, 1956. Miguel Paranhos de RIO-BRANCO.Alexandre de Gusmo e o Tratado de 1750. Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Sade; Servio deDocumentao, 1953. Arthur Czar Ferreira REIS. Limites e Demarcaes na Amaznia Brasileira. 2 Volumes,Belm: Secult, 1993. Luis Ferrand de ALMEIDA. Alexandre de Gusmo, o Brasil e o Tratado de Madrid (1735-1750). Coimbra: Universidade de Coimbra; Instituto Nacional de Investigao Cientfica, 1990. DemtrioMAGNOLI. O corpo da ptria. So Paulo: Moderna, 1997. Jnia Ferreira FURTADO. O mapa que inventou oBrasil. Rio de Janeiro: Versal; So Paulo: Odebrecht, 2013.
26
os ditames de Utrecht, alm de no terem resolvido a quem de direito pertenceriam quelas
terras e povos, a continuidade da presena lusitana no extenso vale do rio Amazonas foi feita
com maior e mais ousado dinamismo de ocupao. Isso se deu partir da ao das misses
religiosas dos padres das ordens de Nossa Senhora do Carmo, So Francisco, Nossa Senhora
das Mercs, Santo Antnio, Piedade e, sobretudo, pelos religiosos da Companhia de Jesus.
Alm da ao dessas Ordens Religiosas, povoaes inteiras foram despontando na imensido
do espao a partir da ao das Tropas de Resgate, integradas por moradores e comerciantes
que, para alm do estabelecimento de um lucrativo e ilcito negcio de escravizao e venda
de indgenas, buscavam a maior explorao e comrcio dos gneros naturais da floresta para
as propriedades particulares, amealhando pores de territrio teoricamente sob o domnio
das chamadas ndias de Castela, em uma ao simultaneamente intrarregional e
transimperial.2
Na alvorada dos anos 1750, a necessidade de ocupar aqueles imensos e incgnitos
sertes dos rios Amazonas, Tocantins, Araguaia, Negro, Branco, Tapajs, Purs e Madeira se
tornou fundamental para a sobrevivncia do Imprio portugus na Amrica. Com a concluso
do Tratado de Madri entre as Cortes ibricas, os administradores portugueses dos dois lados
do Atlntico passaram a investir na expanso territorial no sentido leste-oeste de seus
2 Dentre a vasta historiografia referente ocupao portuguesa no vale do rio Amazonas no sculo XVIII,destacamos: Arthur Czar Ferreira REIS. A poltica de Portugal no vale amaznico. Belm: Oficina Grfica daRevista Novidade, 1940. Colin M. MCLACHLAN. The indian labor structure in the Portuguese Amazon, 1700-1800. In: Dauril ALDEN (edit.). Colonial roots of modern Brazil: paper of Newberry Library Conference.Berkeley, Los Angeles; London: University of California Press, 1973, p. 199-230. David SWEET. A rich realmof nature destroyed: the middle amazon valley, 1649-1750. Madison: University of Wisconsin, 1974. H. B.JOHNSON. La colonizacin portuguesa del Brasil, 1500-1580. In: Leslie BETHELL (edit.). Historia deAmerica Latina. Volumen 1, Barcelona: Editorial Crtica, 1984, p. 203-233. John HEMMING. AmazonFrontier: the defeat of the Brazilian Indians. Cambridge: Harvard University Press, 1987. Joo Lcio deAZEVEDO. Os Jesutas no Gro-Par: suas misses e a colonizao. Belm: Secult, 1999. Antnio PORRO.Histria indgena do alto e mdio Amazonas: sculos XVI a XVIII. In: Manuela Carneiro da CUNHA (org.).Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; Fapesp, 1992,p. 175-196. Charles Ralph BOXER. O Imprio Colonial Portugus (1415-1825). Lisboa: Edies 70, s/d.Barbara A. SOMMER. Negotiated Settlements: native amazonians and Portuguese policy in Par, Brazil, 1758-1798. New Mexico: University of New Mexico, 2000. ngela DOMINGUES. Quando os ndios eram vassalos:colonizao e relaes de poder no Norte do Brasil na segunda metade do sculo XVIII. Lisboa: ComissoNacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 2000. Rafael CHAMBOULEYRON.Portuguese colonization of the Amazon region, 1640-1706. Cambridge: University of Cambridge, 2005 (PhDDissertation). A. R. DISNEY. A History of Portugal and the Portuguese Empire. Cambridge: CambridgeUniveristy Press, 2009. Heather Flynn ROLLER. Colonial Routes: spatial mobility and community formation inthe portuguese Amazon. Stanford: Stanford University, 2010 (PhD Dissertation). Jos Alves de SOUZA JR.Tramas do Cotidiano: religio, poltica, guerra e negcios no Gro-Par dos setecentos. Belm: Editora daUFPA, 2012. Neil L. WHITEHEAD. Colonial intrusions and the transformation of native society in the AmazonValley, 1500-1800. In: Hal LANGFUR (ed.). Native Brazil: beyond the convert and the cannibal, 1500-1900.New Mexico: University of New Mexico Press, 2014, p. 86-107. Camila Loureiro DIAS. LAmazonie avantPombal: politique, conomie, territoire. Paris: cole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 2014 (Thse deDoctorat).
27
domnios, a partir dos princpios da racionalizao de uma mquina burocrtica mais
pragmtica na gesto das aldeias missionrias, das povoaes e das vilas existentes nos
confins americanos do Imprio. Da o espao privilegiado de anlise dessas medidas polticas,
administrativas e fiscais serem os territrios limtrofes com os domnios hispano-americanos
da fronteira noroeste do antigo Estado do Maranho e Gro-Par, transformado em Estado do
Gro-Par e Maranho em 1751, cuja mudana da sede de governo da cidade de So Lus para
a Cidade do Par foi a mais importante iniciativa para melhor controlar as vastas possesses
luso-americanas do norte e do centro da Amrica do Sul.3
A preocupao central desse captulo ser o de dimensionar o impacto da poltica
reformista empreendida pelo governo de D. Jos I para o extremo-norte dos domnios
americanos do Imprio portugus, a partir da qual as noes de centro e periferia foram
redimensionadas em prol do soerguimento de uma estrutura ultramarina mais equilibrada e
condizente com o que deveria ser a grandeza da pluricontinental nao monrquica lusitana.
Nessa conjuntura particular, as fronteiras norte e noroeste da Amrica portuguesa passaram
para o estatuto de conquistas que deveriam ser efetivadas pela posse, controle e administrao
racional de suas potencialidades econmicas e de seus efetivos humanos. A
institucionalizao da Capitania de So Jos do Rio Negro em 1755, juntamente com toda
uma poltica de elevao de aldeias missionrias condio de vilas e povoaes controladas
por servidores da Coroa, foi um passo fundamental de amplas reformas polticas de incluso e
de expanso da Monarquia em seus domnios americanos mais longnquos e desamparados,
mas de maior potencial de explorao econmica sobre as riquezas da terra.
Todas essas importantes modificaes no podem ser analisadas sem a considerao
de que os espaos que deveriam ser integrados ao corpo da Monarquia eram praticamente
abertos ao trnsito de agentes estrangeiros tambm vidos por fortalecer as suas soberanias
imperiais. Nesse aspecto, a projeo das aes de ocupao luso-americana tinha que levar em
conta as relaes entre os seus sditos e os habitantes fieis s monarquias francesa e
espanhola, assim como os funcionrios das Provncias Unidas dos Pases Baixos ligados aos
3 Nesse sentido, conferir: Andre MANSUY-DINIZ SILVA. Imperial re-organization, 1750-1808. In: LeslieBETHELL (edit.). Colonial Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 244-283. FranciscoIGLSIAS. El proceso organizador en Brasil. In: Alfredo CASTILLERO CALVO; Allan J. KUETHE (dirs.).Histria General de Amrica Latina. Volumen 1, Paris: Ediciones Unesco; Editorial Trotta, 1999, p. 47-56.Francisco Jos Calazans FALCON. La lucha por el control del Estado: administracin y elites coloniales enPortugal y Brasil en el siglo XVIII. Las reformas del depotismo ilustrado y la sociedad colonial. In: JorgeHIDALGO LEHUED; Enrique TANDETER (dirs.). Histria General de Amrica Latina. Volumen 4, Paris:Ediciones Unesco; Editorial Trotta, 2000, p. 265-284. Fabiano Vilaa dos SANTOS. O governo das conquistasdo norte: trajetrias administrativas no Estado do Gro-Par e Maranho (1751-1780). So Paulo:Universidade de So Paulo; Programa de Ps-Graduao em Histria Social, 2008.
28
empreendimentos da West Indische Compagnie, que rondavam, com alguma frequncia, as
regies dos rios Negro, Branco e Solimes, desde a confluncia com o rio Negro at os
imaginados limites hispano-americanos. Consolidar o poder monrquico portugus nessas
zonas limtrofes no podia prescindir dos eventuais confrontos com esses agentes externos,
cujos contatos tinham que ser minuciosamente realizados a partir da conjuntura diplomtica
de Portugal no conjunto das naes europeias, assim como da anlise das dinmicas locais
construdas entre os funcionrios, missionrios, moradores, comerciantes, indgenas e suas
variadas relaes sociais, polticas e econmicas.
Nesse sentido, o que acontecia no rio Amazonas e seus afluentes principais no estava
desligado das relaes que os imprios europeus mantinham entre si no ambiente
internacional. Em alguma medida, os administradores portugueses da Pennsula Ibrica e da
Amrica mantiveram a conjuntura externa presente nas polticas que iam conduzindo no
interior dos povoados, rios e florestas que tinham que incorporar definitivamente ao corpo
imperial. Muitas vezes, essa observao no foi devidamente considerada pela historiografia
brasileira, que concentrou as anlises das relaes polticas e econmicas dessa vasta regio
somente a partir da relao com o Reino de Lisboa, a sede da Monarquia imperial. Por vezes,
nem mesmo essa ligao atlntica foi considerada, em favor das prprias dinmicas
localizadas nas misses, povoaes e vilas, autonomizadas de qualquer outra realidade mais
ampla, enquanto entidades especficas e autossuficientes. Nada seria mais irreal, e talvez at
absurdo, para um servidor-vassalo das Coroas portuguesa, espanhola ou francesa, assim como
das Provncias Unidas, fossem esses oriundos da Europa ou nascidos na Amrica.4
4 Partimos aqui dos trabalhos que buscaram compreender a constituio do espao amaznico e de suas relaessociais, a partir da ideia da existncia de uma territorialidade brasileira historicamente onipresente, a partir daqual teria sido formado o Brasil, como parte de uma histria nacional, cujos elementos fundantes j tinhamsido lanados pelos portugueses desde o processo de colonizao do Novo Mundo. Nesse sentido, dentre asdiversas tendncias historiogrficas que constituram a histria nacional, vide: Francisco Adolfo deVARNHAGEN. Histria Geral do Brasil: antes da sua separao e independncia de Portugal. 4a Edio, SoPaulo: Edies Melhoramentos, 1948. Jos Igncio de Abreu e LIMA. Compendio da Histria do Brasil. 2 vols.Rio de Janeiro: E. e H. Laemmert, 1843. Manuel de Oliveira LIMA. Formao histrica da nacionalidadebrasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. Caio PRADO JNIOR. Evoluo poltica do Brasil e outrosestudos. 21a Edio, So Paulo: Brasiliense, 1999. ____. Histria Econmica do Brasil. So Paulo: Brasiliense,1972. Otvio Tarqunio de SOUSA. Introduo histria dos fundadores do Imprio do Brasil. Rio de Janeiro:MEC; Servio de Documentao, 1957. Nelson Werneck SODR. As razes da Independncia. Rio de Janeiro:Editora Civilizao Brasileira, 1965. Jos Honrio RODRIGUES. Independncia: revoluo e contra-revoluo.5 vols., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. Vide, igualmente, as anlises de: Carlos Guilherme MOTA.Ideias de Brasil: formao e problemas (1817-1850). In: Carlos Guilherme MOTA (org.). Viagem incompleta. Aexperincia brasileira (1500-2000). Formao: histrias. So Paulo: Editora SENAC So Paulo, 2000, p. 197-239. As continuidades marcantes da histria nacional estariam diretamente ligadas s interpretaes sobre aIndependncia brasileira, vista no como ruptura, mas como um desquite amigvel, tese fundamental de OliveiraLima, que perdurou em variadas matrizes da historiografia brasileira. Sobre esse debate, conferir: Wilma PeresCOSTA. A independncia na historiografia brasileira. In: Istvn Jancs (org.). Independncia: histria ehistoriografia. So Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005, p. 53-118. Joo Paulo G. PIMENTA. The Independence of
29
A prpria configurao espacial da grande fronteira portuguesa do norte e noroeste da
Amrica ganhou um desenho diverso do que nos foi apresentado pelas obras clssicas da
historiografia sobre esse perodo, pois a recm-instituda Capitania do Mato Grosso (1748)
acabou por ser integrada s Capitanias do Rio Negro e Gro-Par em diversos projetos de
defesa e ocupao dos domnios portugueses do Estado do Gro-Par e do Estado do Brasil.
Como ser discutido ao longo do texto, essa integrao da vasta e incgnita fronteira dos rios
Madeira, Guapor e Mamor autoridade do Governador do Par se deu no somente a partir
dos parmetros administrativos implementados na governana do extremo-norte da Amrica
portuguesa a partir de 1750, mas, e sobretudo, por causa dos fluxos comerciais relacionados
s jazidas aurferas do Mato Grosso e da Vila de Cuiab, cuja explorao teve incio em 1718,
que tinham que ser regulados pela Fazenda Real a partir da rota do rio Madeira em direo ao
Estado do Gro-Par. A insero de toda aquela fronteira da zona central do continente sul-
americano ao governo da Cidade do Par mostra a imagem fluda que os portugueses tinham
sobre as partes limtrofes mais a oeste de suas conquistas, pela falta do aparato burocrtico
naquelas regies, assim como pelas circulaes cotidianas de negcios e servios com a banda
hispano-americana das Provncias de Maynas, Moxos e Chiquitos. Por isso, as reformas
polticas e administrativas institudas pela Coroa portuguesa acabaram por configurar um
territrio mais alargado, entre o Par e o Mato Grosso, rompendo, na prtica, com os limites
ente os Estados do Brasil e do Gro-Par e Maranho.
Todas essas questes integram este captulo inicial, cuja construo deseja ultrapassar
a simples montagem de um cenrio em favor da problematizao de uma conjuntura poltica e
econmica singular do ponto de vista do estabelecimento do que se propunha ser um
renovado Imprio portugus. O recorte temporal parte de 1746, com o planejamento territorial
do Tratado de Madri e os debates das primeiras propostas das reformas josefinas para os
domnios americanos do rio Amazonas, e se estende at cerca de 1761, quando os Imprios
ibricos selaram o Tratado de El Pardo, no qual decidiram anular os ditames do Tratado de
Limites de 1750 em virtude da conflituosa conjuntura internacional j francamente marcada
pela Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Da em diante, as Cortes de Lisboa e Madri adentram
uma conjuntura ligeiramente diferente, mas no menos conflituosa. O controle e
disciplinarizao dos fluxos comerciais e de pessoas por entre os projetados limites
territoriais, sobretudo com os mundos franco e hispano-americanos, se constituiu em um dos
Brazil: a review of the recent historiographic production. In: e-Journal of Portuguese History, Vol. 7, number 1,Summer 2009, p. 1-21. Para um debate de fundo geogrfico que discute a abordagem nacional na composiodo espao brasileiro, conferir: Demtrio MAGNOLI. O Estado em busca de seu territrio. In: Istvn JANCS(org.). Brasil: a Formao do Estado e da Nao. So Paulo: Hucitec; Ed. Uniju; Fapesp, 2003, p. 285-296.
30
motes de sucessivas polticas reformistas portuguesas, cuja importncia para a formao de
uma sociedade transfronteiria em diversos pontos extremos dos rios Amazonas, Negro e
Branco, foi uma constante ao longo dos anos Setecentos, at o processo de independncia
brasileira.
1.1- Incorporar o que mais interessa
Apesar da fcil associao cronolgica entre a subida ao trono de D. Jos I e a
assinatura do Tratado de Madri, o que reputaria ter sido o segundo evento obra do primeiro, o
acordo estabelecido entre as Cortes de Lisboa e Madri em 13 de janeiro de 1750 foi produto
de uma larga negociao da agenda diplomtica lusitana anterior. Foi no ocaso do governo de
D. Joo V, em Portugal, e no incio da gesto de D. Fernando VI, em Espanha, que, a partir do
ano de 1746, as Coroas ibricas buscaram dirimir decisivamente as suas desavenas em torno
dos limites territoriais de seus domnios ultramarinos americanos, principalmente sob o clima
de aproximao poltica produzida entre as casas dinsticas dos Bourbons e Braganas, que se
deu com o casamento entre o novo monarca castelhano e D. Maria Brbara de Bragana, irm
de D. Jos.5
Grande parte dos termos do acordo foi conduzida pelos principais ministros
encarregados dos negcios ultramarinos das duas Cortes, tendo frente, pela parte lusitana, o
grupo formado pelo Secretrio de Estado e Negcios do Reino, Marco Antnio de Azevedo
Coutinho, pelos embaixadores portugueses na Corte de Paris, D. Lus da Cunha, e de Madri,
D. Toms da Silva Teles, o Visconde de Vila Nova de Cerveira; e, pelo lado hispnico, o
Secretrio do Conselho de ndias D. Jos de Carvajal y Lancaster. Contudo, a concepo e
escritura dos termos do Tratado foram atribudas ao membro do Conselho Ultramarino e
influente conselheiro da Corte de Lisboa Alexandre de Gusmo, considerado o grande mentor
das propostas de resoluo dos problemas territoriais ibero-americanos.6
5 Para uma viso mais ampla dessas questes diplomticas nas dcadas de 1740 e 1750, conferir: Nuno GonaloFreitas MONTEIRO. A consolidao da Dinastia de Bragana e o apogeu do Portugal barroco: centros de podere trajetrias sociais. In: Jos TENGARRINHA (org.). Histria de Portugal. Bauru, SP: Edusc; So Paulo, SP:Unesp; Portugal, PO: Instituto Cames, 2000, p. 135-148. Nuno Gonalo MONTEIRO. D. Jos: na sombra dePombal. Lisboa: Editora Temas e Debates, 2007, p. 84-85. Pedro CARDIM; Ana Maria MAGALHES; IsabelALADA. Histria de Portugal: Portugal no Sculo das Luzes. Vol. 8, Lisboa: Editorial Caminho, 2007, p.139-141. Maria Beatriz Nizza da SILVA. D. Joo V. Lisboa: Editora Temas e Debates, 2009.6 Jaime CORTESO. Alexandre de Gusmo e o Tratado de Madrid. 2 Tomos, Rio de Janeiro: Ministrio dasRelaes Exteriores; Instituto Rio-Branco, 1956. Miguel Paranhos de RIO-BRANCO. Alexandre de Gusmo e oTratado de 1750. Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Sade; Servio de Documentao, 1953.MONTEIRO, D. Jos: na sombra de Pombal, op. cit., p. 85.
31
O foco principal das desavenas luso-espanholas sobre as suas partes na Amrica
Meridional estava concentrada na regio do Rio da Prata, na qual os dirigentes espanhis
reclamavam da presena ilegal portuguesa na praa fortificada da Colnia do Sacramento. A
principal acusao espanhola se concentrava na ilegitimidade da fronteira portuguesa
posicionada irregularmente a oeste da imaginria linha traada a 370 lguas da ilha de Cabo
Verde, segundo o estipulado no Tratado de Tordesilhas (1494), no que seriam formalmente as
terras do Imprio espanhol. A desconsiderao pelos portugueses dessa linha divisria, a qual
ningum sabia ao certo onde a mesma passava, tinha proporcionado a forte oposio
hispnica contra a acintosa internalizao de rotas de comrcio ilcito dos inimigos em terras
das misses guaranis desde, pelo menos, o incio da dcada de 1720, que estariam a levar ao
desvio das moedas de prata oriundas do Vice-Reino do Peru para os descaminhos comerciais
da Colnia do Sacramento, e desta para as frotas martimas que cruzavam o Atlntico
portugus rumo a Lisboa. Na mesma linha, existia ainda a reclamao contra a introduo do
comrcio transfronteirio de gados e couros pelos portugueses nas pradarias de Buenos Aires
a partir da praa militar do Sacramento, transformando aquela fronteira em terras de foras da
lei que prejudicavam a ordem e a ocupao espanholas.7
Essas escaramuas entre as Coroas ibricas pela regio platina transpassaram
praticamente toda a primeira metade do sculo XVIII, remontando primeiramente aos
conflitos gerados pela Guerra de Sucesso Espanhola (1701-1713), cuja resoluo parcial se
deu pelo Tratado de Utrecht (1715), quando a ocupao portuguesa na fronteira da Colnia foi
reconhecida pelo princpio do Utis Possidetis. As investidas hispnicas no cessaram,
principalmente a partir das aldeias indgenas da regio dos Sete Povos das Misses, quando os
contingentes militares a servio do Vice-Reino do Peru se aliaram aos regulares da
Companhia de Jesus contra a expanso luso-americana na foz do rio da Prata, cujo principal
resultado tinham sido a fundao da praa de Montevidu em 1723. Trs anos depois, a
intensificao das investidas espanholas sobre essa povoao levou a sua recuperao em
1726, levando Montevidu a figurar como praa comercial e ncleo de povoamento da
Monarquia espanhola, que deveria funcionar territorialmente das margens do rio da Prata em
direo aos campos do Rio Grande, como parte de uma estratgia de ocupao efetiva que os
7 CORTESO, Alexandre de Gusmo e o Tratado de Madrid, op. cit., p. 39-44.
32
hispnicos reivindicavam terem sido usurpados pelos agentes luso-americanos subordinados
Capitania do Rio de Janeiro.8
A fronteira ibero-americana do Rio da Prata se constitua como o espao de alm-mar
mais sensvel aos problemas angariados pelas Cortes ibricas, tanto na pennsula como no
ultramar Atlntico. O prprio Alexandre de Gusmo tinha participado, entre 1735 e 1737, de
um imbrglio diplomtico com a Corte de Madri, que por muito pouco no resultou em uma
guerra de propores considerveis, dado que haveria supostamente o interesse de D. Joo V,
coligado ao da Gr-Bretanha, na anexao poltica e territorial da Espanha e de seus domnios
imperiais. O perigo do rompimento diplomtico entre os reis de Portugal e Espanha, originado
das disputas palacianas em Madri - e que tinha chegado ao limite com a expulso de Pedro
lvares Cabral, embaixador portugus da Corte de Filipe V - passaria mais uma vez pela
reclamao portuguesa em relao ao cerco militar espanhol Colnia do Sacramento em
novembro de 1735, orquestrada pelo Governador de Buenos Aires, D. Miguel de Salcedo. A
situao foi remediada atravs de uma negociao realizada entre o enviado diplomtico de
Portugal Corte de Paris, D. Luiz da Cunha, e o plenipotencirio Secretrio francs, o
Cardeal de Fleury, este ltimo rbitro principal das desavenas entre Espanha e Portugal em
torno da Colnia do Sacramento, juntamente com mediadores da Inglaterra e Holanda. O que
nenhuma das potncias desejava naquele momento, com a presumvel exceo da Corte de
Madri, era a desestabilizao do equilbrio poltico entre as naes imperiais europeias, que
pudesse levar ecloso de um novo conflito, dado que os efeitos da Guerra de Sucesso
Espanhola ainda no tinham de todo sido dissipados.9
A tendncia de aproximao entre as Cortes de D. Joo V e D. Fernando VI, contudo,
abria novas possibilidades diplomticas de resolver a controversa questo dos limites
americanos e asiticos entre os Imprios ibricos. O aumento da influncia poltica do
monarca portugus em Madri, a partir da mudana real de 1746 com o falecimento de Filipe
V, serviu de incentivo para que os plenipotencirios ministros da Corte lisboeta iniciassem a
formulao do futuro Tratado de Limites, cujas clusulas deveriam ser mais favorveis ao
estado em que se encontrava a ocupao luso-americana naquele momento. A defesa dos
8 Frdric MAURO. Political and economic structures of empire, 1580-1750. In: Leslie BETHELL (edit.).Colonial Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 47-54. Paulo Csar POSSAMAI. A vidaquotidiana na Colnia do Sacramento. Lisboa: Livros do Brasil, 2006. CARDIM et. alli., op. cit., p. 67-68.9 Para uma boa informao sobre essa questo diplomtica, com riqueza de documentao oriunda da Corte deMadri, vide: Manuel Francisco de Barros e Sousa, Visconde de SANTARM. Quadro elementar das RelaesPolticas e Diplomticas de Portugal com as potencias do mundo desde o princpio da Monarchia Portuguesaat aos nossos dias. Tomo Quinto, Pariz: Officina Typographica de Fain e Thunot, 1845, p. CXXXVIII-CLIX.Sobre os acontecimentos do conflito luso-espanhol na Colnia do Sacramento, conferir: CORTESO, Alexandrede Gusmo e o Tratado de Madrid, op. cit., p. 59-81.
33
direitos da Monarquia portuguesa na Amrica passava pela manuteno das suas conquistas
portuguesas no Novo Mundo, tendo como marco temporal da expanso territorial no mais o
Tratado de Tordesilhas, que se constitua em base da argumentao espanhola, mas o perodo
no qual o Imprio portugus tinha sido integrado Monarquia hispnica, durante a dinastia
dos Habsburgos, temporalidade essa localizada na passagem do sculo XVI para o XVII e
conhecida como Unio Ibrica (1580-1640).
O esforo diplomtico da Corte de Lisboa em resguardar suas conquistas territoriais no
ultramar Atlntico, s expensas das acusaes espanholas de usurpao, dependia de uma
hbil construo retrica que pudesse reconstituir historicamente a ocupao dos espaos
americanos, e que fosse minimamente aceitvel para os analistas madrilenhos. Nesse aspecto,
no possvel negar a habilidade de Alexandre de Gusmo como preceptor fundamental dos
direitos de Sua Majestade Fidelssima no Novo Mundo, a partir da imaginao imperial com a
qual construiu e se utilizou na construo de um topos de legitimidade dos domnios luso-
americanos, no somente sobre a defesa da presena portuguesa na Colnia do Sacramento e
na regio do Rio da Prata, mas, e principalmente, por assegurar a expanso portuguesa no
longnquo e interessante vale do rio Amazonas.
Obviamente, a criao de um discurso convincente dependeria diretamente do efeito
de verdade de que o mesmo necessitaria ser investido; e esse efeito no poderia prescindir de
argumentaes histricas ancoradas em provas incontestes para as duas Cortes. A ocasio
para a exposio dessa construo histrica se deu, primeiramente, a partir da necessidade da
edificao de um relativo consenso entre as altas autoridades portuguesas da Corte de Lisboa
sobre a questo da posse da Colnia do Sacramento. Alexandre de Gusmo exps amide o
tema ao Brigadeiro Antnio Pedro de Vasconcelos, ex-governador da Colnia do Sacramento,
membro efetivo do Conselho Ultramarino e um dos muitos defensores na Corte da
importncia da fronteira do Rio da Prata como territrio central nas negociaes do Tratado
de limites ibero-americanos que estava sendo preparado em Lisboa.10
O ponto de partida da legtima reinvindicao dos domnios portugueses na Amrica
foi colocado sobre um desajuste produzido pelos agentes hispnicos a partir do ano de 1593.
Durante o governo do Monarca Felipe II, no qual os portugueses mantiveram grande parte de
10 O pensamento diplomtico e territorial de Alexandre de Gusmo no perodo imediatamente anterior institucionalizao do Tratado de Madri que utilizaremos nesta primeira parte do captulo pode ser consultadoem: Resposta ao papel do Brigadeiro Antonio Pedro de Vasconcellos sobre o Tratado dos Limites dAmerica. In:Coleco de varios escritos inditos polticos e literrios de Alexandre de Gusmo. Porto: Typografia de FariaGuimares, 1841, p. 147-212; e Extracto da resposta que Alexandre de Gusmo, secretrio do conselhoultramarino, deu ao brigadeiro Antonio Pedro de Vasconcellos sobre o negcio da praa da Colonia. In: Revistado Instituto Histrico e Geogrphico do Brazil, Tomo I, 3a edio, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1908, p.260-268.
34
suas instituies e direitos basilares subordinados Coroa espanhola, navegadores hispano-
americanos sados do Vice-Reino da Nova Espanha teriam navegado pela poro portuguesa
do Atlntico em direo s Filipinas orientais. Os navegadores teriam desrespeitado um
legtimo acordo realizado entre D. Joo III e Felipe II em Saragoa, que consistia na
exclusividade da navegao portuguesa na carreira ocenica para as ndias, cujo aumento
espacial de navegao fora conseguido atravs do pagamento de 350$000 cruzados em ouro
Monarquia hispnica em troca do deslocamento de 17 graus a mais da linha de Tordesilhas do
ponto mais ocidental aceito pelos espanhis em sentido oeste do oceano Atlntico, cujo
referencial seriam as ilhas Marianas. Em contrapartida a essa transgresso, os portugueses
teriam tambm desrespeitado os limites celebrados pelo acordo de Tordesilhas e realizado
uma dupla expanso transfronteiria nos dois extremos territoriais da Amrica do Sul, no rio
Amazonas e no Rio da Prata.11
Dessas primeiras investidas territoriais luso-americanas tinha sido fundada, em 1680, a
praa militar da Colnia do Sacramento na fronteira sul, o ponto de discrdia mais agressivo
nas relaes diplomticas entre os Imprios ibricos ao longo da primeira metade do sculo
XVIII. Tendo sido formalmente ratificada a ocupao portuguesa no Rio da Prata pelo
Tratado de Utrecht, a reclamao espanhola sobre aquela regio passou a se concentrar na
argumentao de que a ocupao hispnica era muito mais presente e efetiva do que a Colnia
portuguesa, pequena e isolada pela grande distncia em relao ao Estado do Brasil. Como a
regra acordada entre as Cortes ibricas se baseava na posse efetiva do territrio como
requisito para sua integrao legtima como domnio imperial, no havia muito o que
questionar sobre o amplo trabalho desenvolvido pelos jesutas espanhis em toda a regio das
misses dos rios Paraguai e Uruguai, que somavam algo em torno de 30 redues com cerca
de 30.000 ndios guaranis.12
O elemento crucial dessas disputas territoriais, que no poderia passar despercebido
pelo Conselho Ultramarino, na viso de Alexandre de Gusmo, era o de considerar o conjunto
das conquistas portuguesas na Amrica para alm do Rio da Prata, regio na qual os
espanhis possuam larga vantagem sobre os lusitanos. Isso no significava simplesmente
entregar a praa militar do Sacramento para os vizinhos ibricos, mas tambm no era
admissvel desconsiderar a importncia de se manter a linha de Tordesilhas sobre a foz do rio
Amazonas, pela qual os portugueses tinham expandido largamente as fronteiras do Imprio
11 Conferir: Extracto da resposta que Alexandre de Gusmo, secretrio do conselho ultramarino, deu aobrigadeiro Antonio Pedro de Vasconcellos sobre o negcio da praa da Colonia, op. cit., p. 262-263.12 MONTEIRO, D. Jos: na sombra de Pombal, op. cit., p. 86.
35
para as terras do Cabo do Norte e regio das Guianas, assim como para a direo oeste dos
rios Amazonas, Negro, Branco, Madeira e Guapor, no que eram partes extremas do oeste das
Capitanias de Gois e So Paulo.
A manuteno da Colnia do Sacramento teria uma funo muito maior de assegurar a
legitimidade da soberania portuguesa no extremo norte e centro-oeste da Amrica portuguesa,
em caso de ser estabelecida alguma oportunidade de barganha. Essa deveria ser a
argumentao central da diplomacia portuguesa na negociao do Tratado de Madri. No
poderia ser tambm desprezada a gama de possibilidades econmicas da expanso portuguesa
atravs do prprio rio Amazonas em sentido leste-oeste, onde estavam terras e recursos
naturais e humanos praticamente inexplorados pelos hispnicos, em troca de um continente
continuado de terras do Brazil at a Colonia, [onde] nos achamos com um presidio
remotssimo distante do Brazil e encravado muito adiante nas terras de que Hespanha est de
posse.13
A proposta que Alexandre de Gusmo defendia no Conselho Ultramarino, e que
indiretamente negociaria com o representante do Conselho de ndias de Madri, D. Jos de
Carvajal y Lancaster, estava lastreada em uma viso imperial do conjunto das conquistas
portuguesas na Amrica. Diferentemente dos espanhis, que priorizavam a posse de seus
estabelecimentos na regio platina, a diplomacia portuguesa deveria agir com uma
inteligncia estrutural, inclusive levando em considerao a importncia da Amrica em
relao s outras partes da Monarquia, como os domnios luso-asiticos. O pensamento de
Gusmo estava completamente sincronizado com a gradativa perda de influncia dos
portugueses no Vice-Reino da ndia que, embora mantivesse sua importncia do ponto de
vista da administrao imperial - com o envio de importantes fidalgos para assumir cargos de
vice-reis em Goa - era inegvel que os negcios luso-asiticos em Goa, Filipinas, Macau,
Molucas e Timor tinham entrado em um quadro de crise desde, pelo menos, o incio da
centria setecentista, agravado a partir da dcada de 1730 pela maior competio comercial
com os hispano-americanos, ingleses e holandeses nas terras e mares da sia, sobretudo no
oceano ndico.14
13 Extracto da resposta que Alexandre de Gusmo, secretrio do conselho ultramarino, deu ao brigadeiro AntonioPedro de Vasconcellos sobre o negcio da praa da Colonia, op. cit., p. 264.14 Nuno Gonalo MONTEIRO; Jos SUBTIL. D. Joo V (1706-1750). O ouro, a Corte e a diplomacia. In:Antnio Manuel HESPANHA (coord.). Histria de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Volume 4, Lisboa:Editorial Estampa, 1998, p. 413-429. Sobre a situao de crise do Imprio portugus na sia no incio do sculoXVIII, vide: Charles R. BOXER. O imprio martimo portugus, 1415-1825. So Paulo: Companhia das Letras,2002, p. 141-162. Sanjay SUBRAHMANYAM. The Portuguese Empire in Asia, 1500-1700: a political andeconomic history. 2a edition, West Sussex, UK: Wiley-Blackwell Publications, 2012, p. 284-293.
36
A concorrncia bastante presente e qualificada das frotas comerciais estrangeiras, que
singravam as rotas do oceano Pacfico para atingir a Baa de Bengala e as diversas ilhas do
oceano ndico, corroeu paulatinamente a navegao comercial portuguesa, que ainda dependia
de sua longa e dispendio