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1 Filosofia Africana e desenvolvimento (Reflexões preliminares) Adelino Torres 1 Homenagem a Elikia M´Bokolo e a Ilídio do Amaral e em memória de Alfredo Margarido Introdução Os problemas aqui tratados referem-se tanto a alguma filosofia que se faz em África, como a aspectos do “desenvolvimento” económico, aqui entendido no sentido mais lato. Como bem observou Fabien Eboussi Boulaga, dos Camarões, “o subdesenvolvimento tecnológico resulta evidentemente de um subdesenvolvimento no plano do conhecimento racional e científico” 2 . Numa primeira parte serão discutidos alguns aspectos históricos da filosofia africana em torno do livro fundador de Placide Tempels, La philosophie bantoue publicado em 1949 e que continua a ser objecto de debate entre filósofos africanos Na segunda parte, aplicando ideias expostas no ponto anterior, tentarei pôr em relevo algumas ligações entre as ciências sociais, nomeadamente a filosofia e a economia que se refere ao desenvolvimento propriamente dito, destacando a necessidade urgente da sua convergência * 1 ISEG da Universidade Técnica de Lisboa (ISEG) e Universidade Lusófona de Lisboa 2 Eboussi Boulaga, L´affaire de la philosophie africaine, 2011 : 15.

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    Filosofia Africana e desenvolvimento (Reflexes preliminares)

    Adelino Torres1

    Homenagem

    a Elikia MBokolo e a Ildio do Amaral

    e em memria de Alfredo Margarido

    Introduo Os problemas aqui tratados referem-se tanto a alguma filosofia que se faz em frica,

    como a aspectos do desenvolvimento econmico, aqui entendido no sentido mais

    lato.

    Como bem observou Fabien Eboussi Boulaga, dos Camares, o subdesenvolvimento

    tecnolgico resulta evidentemente de um subdesenvolvimento no plano do

    conhecimento racional e cientfico2.

    Numa primeira parte sero discutidos alguns aspectos histricos da filosofia africana em

    torno do livro fundador de Placide Tempels, La philosophie bantoue publicado em

    1949 e que continua a ser objecto de debate entre filsofos africanos

    Na segunda parte, aplicando ideias expostas no ponto anterior, tentarei pr em relevo

    algumas ligaes entre as cincias sociais, nomeadamente a filosofia e a economia que

    se refere ao desenvolvimento propriamente dito, destacando a necessidade urgente da

    sua convergncia

    *

    1 ISEG da Universidade Tcnica de Lisboa (ISEG) e Universidade Lusfona de Lisboa

    2 Eboussi Boulaga, Laffaire de la philosophie africaine, 2011 : 15.

  • 2

    I - Metodologia dos conceitos

    Antes de abordar o ncleo das ideias expostas mais adiante, indispensvel referir

    algumas questes preliminares de terminologia que so parte integrante da metodologia

    da anlise.

    Em primeiro lugar a terminologia dita racialista empregue por inmeros autores que

    tratam dos problemas africanos merece uma curta apreciao.

    Entre as questes preliminares que se levantam a este propsito a de saber porque

    que se fala to frequentemente de filosofia negro-africana e no, quando muito, de

    filosofia africana?

    Com efeito, esta linguagem era compreensvel na fase inicial da luta pela independncia

    contra o colonialismo anterior ou posterior 2 guerra mundial. Hoje, porm, mais de

    50 anos depois das independncias e com mutaes substanciais no tecido social em

    muitas regies africanas, certos conceitos tm uma ressonncia algo inslita. Por

    exemplo, na maioria dos pases africanos podemos encontrar nos nossos dias e no

    apenas na frica do Sul ps-apartheid - cidados de origem asitica ou europeia que no

    sendo negros, no so menos cidados nem menos africanos por isso.

    Em contrapartida, tambm sabemos que h milhares de jovens negros nascidos na

    Europa, cidados de pases desse continente e que esto, porventura, mais identificados

    com os problemas da da Unio Europeia que os afectam directamente do que com os

    problemas africanos de que s tm uma ideia por vezes vaga. Neste ltimo caso, se se

    tratar, suponhamos, de um homem (ou mulher) que exerce a profisso de filsofo, ser

    que devemos classific-lo(a) como um filsofo negro-europeu e no como um

    filsofo europeu (que por acaso negro)? Com efeito, o que que tem a ver o conceito

    fantasista e vazio de raa com as ideias e competncias dos indivduos? evidente

    que estas classificaes tm pouco sentido, uma vez que o denominador comum no ,

    como seria lgico, a nacionalidade, profisso ou competncia, mas a raa, o que

    parece estranho e incongruente. Em Portugal, como noutros pases europeus, no h

    portugueses negros mas, luz da Constituio, simplesmente portugueses, mesmo

  • 3

    se pode haver por vezes quem lhe acrescente um adjectivo intil ou porventura mal-

    intencionado, o que sempre redundante ou mesmo estpido3

    Os termos racialistas (no necessariamente racistas na sua intencionalidade, certo)

    so no mnimo pleonasmos com pouco sentido, a menos que a expresso negro-

    africano, para alm de ser uma maneira de se exprimir rotineira, obsoleta e

    involuntariamente mal pensada, assuma o propsito inconfessvel de dar raa um

    lugar que se sobrepe a qualquer outro contedo significante4. Nessa eventualidade

    estamos, no fundo, perante uma concepo racista da histria contra a qual os prprios

    africanos, afro-americanos e asiticos tanto lutaram, rejeitando com veemncia - e a

    justo ttulo - as teorias erradas de Gobineau e as teses odiosas do regime do Apartheid,

    entre outros. A persistncia deste vocabulrio corresponde, alis, a vises da cincia h

    muito ultrapassadas e, no plano epistemolgico, a um beco sem sada, especialmente

    porque o conceito de raa porventura acriticamente normalizado na sua origem j

    remota, especialmente no sculo XIX, no tem nem nunca teve, qualquer valor

    cientfico ou sentido pela simples razo que a moderna cincia (a biologia em

    particular) j demonstrou amplamente que, na espcie humana, no h raas distintas

    mas apenas uma raa humana a par de outras raas do reino animal5. No se trata

    aqui de uma retrica irenista mas de uma afirmao comprovada

    Por seu turno, expresses como negro-africano encerram uma informao duvidosa

    que somente reproduz preconceitos de determinado perodo da histria mas que so, nos

    nossos dias, relquias do passado, nomeadamente do perodo colonial, durante o qual a

    utilizao da palavra raa demonstrava ignorncia ou servia como alibi para justificar

    a opresso em nome de uma pretendida superioridade da civilizao europeia, do

    domnio do colonizado pelo colonizador, ao mesmo tempo que justificava a boa

    3 O facto de, nos nosso dias, os cidados de alguns pases africanos terem no seu bilhete de identidade a meno da raa - a exemplo da frica do Sul do Apartheid e do antigo regime nazi hitleriano propriamente chocante

    44 Vd. Montagu (M.F. Ashley), Mans Most Dangerous Myth (prefcio de Aldous Huxley), , New York, Harper & Brothers, 1952.

    5 Um livro clssico do anti-racismo cientificamente fundamentado AAVV, Le racisme devant la science, UNESCO, Paris, 1960, 544 p.

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    conscincia civilizadora deste ltimo com a utilizao de termos como primitivo

    por exemplo6

    Kwame Nkrumah j tinha chamado a ateno para o facto do colonialismo no ter retido

    a lio do Renascimento do sculo XVI, segundo o qual no podia haver um credo,

    nem moral, nem ordem social vlidos universalmente7. Pelo contrrio assumiu-se

    como portador da verdadeira civilizao e negou aos colonizados uma identidade e

    civilizao prprias, os quais passaram a ter a partir do fim do sculo XIX uma

    identidade por emprstimo. Assim o colonialismo praticou um discurso unvoco cujos

    resultados contradisseram a sua retrica civilizadora, alis muito diferente da que tinha

    iniciado o dilogo de igual para igual com os reinos angolanos (especialmente o Reino

    do Congo) nos sculos XVI-XVIII.

    Durante a luta pela independncia e logo a seguir, os africanos rejeitaram verbalmente

    (mas infelizmente nem sempre na prtica) essas ideias injustas em nome da

    reivindicao correcta de que um homem um homem seja qual for a cor da sua pele.

    Como Lvi-Strauss tinha afirmado h muito, as diferenas que separam os homens so

    apenas superficiais, os homens so sempre homens8 Foi essa a luta de Franz Fanon9,

    de Kwame Nkrumah, de Julius Nyerere, de Aim Csaire, de Lopold Senghor e de

    tantos outros. Mesmo expresses como negritude tiveram sentido em nome de uma

    revolta cultural legtima onde j no entra o sentimento de superioridade/inferioridade

    mas sim o de uma justificada igualdade entre homens que partilham a mesma biologia

    e capacidades, sendo as diferenas (tecnolgicas, cientficas) sempre temporrias e

    6 Embora, num perodo inicial, este ltimo termo pudesse corresponder a uma convico, no necessariamente de m f, como se verifica no livro de Placide Tempels. Alis os tais primitivos deixaram lies que ainda hoje deveriam ser meditadas. Ver por exemplo, entre outros, Marshall Sahlins, Stone Age Economics, 1972. Traduo francesa: Age de Pierre, ge dabondance conomie des socits primitives, Paris, Gallimard, 1976 ; Antnio Custdio Gonalves, Histria revisitada do Kongo e de Angola, Lisboa, Estampa, 2005.

    7 Kwame Nkrumah, Consciencisme, 2009 : 67

    8 Citado por Lelige, Une histoire de lanthropologie, 2006

    9 Vd Franz Fanon, uvres, Paris, La Dcouverte, 2011 (nova edio que rene vrios livros do autor. Vd em particular Peau noire, masques blancs e Les damns de la terre). H tradues portuguesas.

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    dependentes apenas de factores circunstanciais que o desenvolvimento societal (nas suas

    vrias vertentes, poltica, econmica, tcnica e social) pode alterar10.

    Por outro lado, julgo til distinguir aqui, provisoriamente para efeitos prticos desta

    exposio, entre a ideia de Filosofia Africana (sem aspas) tal como foi utilizada no

    ttulo da obra de Placide Tempels, Philosophie Bantoue e em muitos outros autores, e

    Filosofia Africana (digamos com aspas). Julgo no entanto que a primeira (sem aspas),

    apesar de ter passado linguagem de uso corrente, deveria ser utilizada com cautela,

    somente para caracterizar o conjunto (no sentido matemtico) de filsofos africanos que

    trabalham com objectivos mais ou menos semelhantes no campo da filosofia (quer dizer

    em torno da reflexo filosfica quer tenham ou no a frica como sujeito). No entanto

    no deixa de ser til reparar que as expresses de Filosofia Africana e, mais ainda, de

    Filosofia negro-africana, actuam como se os filsofos no existissem individualmente

    ou fossem um grupo compacto indiferenciado, todos pensando da mesma maneira,

    traduzindo uma realidade colectiva nica, indiferenciados uns dos outros porque

    todos africanos e todos negros, submetidos a um contexto rigorosamente o mesmo,

    nenhum deles tendo individualidade prpria seja qual for a regio donde so oriundos,

    as diferenas das suas sociedades, as caractersticas ou idiossincrasias individuais. Ora

    as instituies no pensam, so pensadas. E so-no precisamente pelos homens, ainda

    que pertencentes a grupos ou comunidades.

    Uma tal perspectiva a negao da individualidade de cada homem, logo de cada

    filsofo e, por consequncia, da prpria Filosofia a qual no existe, insiste-se, sem

    filsofos. como se dissssemos que no h filsofos individuais portugueses ou

    franceses, camaroneses ou congoleses, mas apenas uma filosofia portuguesa, francesa

    ou africana. Nesse caso estamos a afirmar implicitamente que a filosofia brota

    espontaneamente da natureza e no do trabalho dos homens individualmente

    considerados. O que faz lembrar a antiga antropologia abusivamente generalista,

    como por exemplo a noo de mentalidade pr-lgica de Lvy-Bruhl, a concepo do

    10 Francis Fukuyama escreveu recentemente: Os seres humanos () possuem uma natureza biolgica comum. Essa natureza extraordinariamente uniforme no mundo inteiro: devido ao facto de a maioria dos seres humanos () descender de um nico grupo relativamente reduzido de indivduos que viveram h 50 mil anos. F. Fukuyama, As origens da ordem poltica (2011), Lisboa, Dom Quixote, 2012: 643.

  • 6

    colonizado como primitivo, ou a fantasista e acrtica antropologia fsica dos velhos

    antroplogos medidores de crneos de m memria.

    II - Crtica da Etnofilosofia

    As questes de natureza filosfica desenvolvidas neste ponto no parecem ter, num

    primeiro relance, uma ligao directa com os problemas do desenvolvimento

    (econmico, social) tratados mais adiante. Mas, na verdade, elas parecem-me participar

    nos alicerces escondidos dos problemas econmicos das sociedades africanas, razo

    pela qual, apesar do aparente hiato entre a filosofia e a economia, julgo que esta

    tentativa de articulao se justifica.

    A importante crtica de Paulin Hountondji11, natural da Costa do Marfim, Philosophie

    Bantoue de Placide Tempels (que nos vai tomar aqui algum tempo), classificando-a, no

    plano cientfico, no como obra filosfica do ponto de vista cientfico mas como uma

    Etnofilosofia (generalizao abstracta de uma interpretao metafsica da etnologia)

    parece ter alguma justificao embora ela no chegue a pr em causa a importncia da

    obra de Temples, a sua boa f pessoal, nem to pouco a percepo fundamentalmente

    anti-racista no propsito desse missionrio.

    Outro crtico da obra de Tempels o filsofo camarons Fabien Eboussi Boulaga12.

    Passo sobre a crtica excessiva feita por Serequeberhan13, natural da Eritreia, que no se

    me afigura ser de inteira boa f. Em compensao, o talentoso V.Y Mudimbe

    (congols) mais moderado e tolerante14.

    A reserva principal de Hountondji que o conceito de Philosophie Bantoue15 utilizado

    por Tempels no ttulo do seu livro uma abstraco colectiva (para alm de ser uma

    construo com fundamentos metafsicos) onde no h filsofos individuais e onde a 11 Paulin J. Hountondji, Sur la Philosophie Africaine - Critique de lethnophilosophie, Paris, Maspero, 1977.

    12 Fabien Eboussi Boulaga, Laffaire de la philosophie africaine Au-del des querelles, Paris, Karthala, 2011.

    13 Serequeberhan (Tsenay), African Philosophy The Essential Readings, 1991: 10-11.

    14 V. Y. Mudimbe, The Invention of Africa, 1988.

    15 Placide Tempels, La philosophie bantoue (1949), Paris, Prsence Africaine, 1961

  • 7

    individualidade (ponto de partida e fundamento do verdadeiro processo filosfico)

    inexistente. Ora a filosofia, como alis outras cincias sociais, necessita para existir e

    progredir, como j se disse, do debate crtico entre argumentos contraditrios de

    indivduos inseridos num grupo profissional (massa crtica), e esse debate que est

    ausente da etnofilosofia. Este pressuposto aplica-se tanto noo de filosofia bantu

    como, por maioria de razo, a uma hipottica e unanimista filosofia africana que

    ignora o individuo, to frequente nos antroplogos clssicos. Nesse sentido a realidade

    concreta de Filosofia Africana no existe (como no existe, nesse plano, a de Filosofia

    Europeia) , embora a expresso tenha cado no uso corrente de senso comum..

    H sim filsofos africanos e filsofos europeus (americanos, asiticos, etc) que formam

    uma constelao, na sua constituio, que existe, mas no no sentido de ser uma

    entidade nica, indiferenciada e monoltica, como por vezes se induz.

    Por outras palavras, h hoje, evidentemente, filsofos africanos (ou europeus, etc.)

    distintos nas suas caractersticas individuais prprias, formando, no limite, uma

    constelao a que se convencionou chamar impropriamente Filosofia Africana, o

    mesmo se podendo dizer de Filosofia Europeia etc., denominaes que no deveriam

    fazer esquecer a expresso individual que lhe intrnseca, constituindo o seu verdadeiro

    fundamento16. certo que a expresso prescinde das aspas no seu uso corrente, mas a

    preciso no parece intil.

    Quanto utilizao de certos termos na literatura antropolgica mais antiga, mesmo P.

    Tempels, investigador insuspeito de racismo e cujas intenes no esto em causa,

    como muitos autores africanos o confirmam, no pde evitar a utilizao de conceitos

    polmicos como primitivo, ainda que alguns dos crticos contemporneos atribuam,

    por vezes, demasiada importncia a esse facto, esquecendo que o termo correspondia,

    em 1949, para muitos, mais a uma semntica conjuntural que era tambm produto duma

    poca mal informada e pouco esclarecida na compreenso do continente africano, mas

    que nem sempre traduzia uma inteno pejorativa.

    16 Ver, entre outros, Jean-Godefroy Bidima, La philosophie ngro-africaine, Paris, PUF, 1995 ; Kwame Anthony Appiah, Na casa do meu pai A frica na filosofia da cultura (1992), Rio, Contraponto, 1997; Cheikh Anta Diop, Nations ngres e culture, (1954), Paris, Prsence Africaine, 2007; Kwasi Wiredu, Cultural, Universals and Particulars An African Perspective, Indiana University Press, 1996.

  • 8

    evidente que a Philosophie Bantoue de Placide Tempels, se foi um trabalho pioneiro,

    mundialmente clebre e aclamado, incluindo por Africanos, tambm suscitou

    desacordos e polmicas. Para os seus crticos mais intransigentes essa obra foi

    sobretudo escrita ao servio da missionarizao e da administrao colonial17, e

    destinava-se essencialmente a conhecer os africanos para melhor servir a misso

    civilizadora do cristianismo e da colonizao. Essa assero s em parte exacta

    neste caso, pois parece excessivo atribuir intenes veladas a Tempels, ainda que a sua

    investigao pudesse ter indirectamente esses efeitos. Mas, por outro lado, tambm deve

    atender-se ao cariz pioneiro e at revolucionrio do seu livro, se nos lembrarmos que

    em 1949, no auge dos preconceitos colonialistas mais ignorantes, hermeticamente

    fechados na poca, que negavam aos africanos a prpria capacidade de pensar

    autonomamente, Tempels intitulou a sua obra Philosophie Bantoue afirmando

    claramente no prprio titulo (com mais coragem do que nos nossos dias se imagina) que

    os ditos primitivos, seres alegadamente no pensantes, tinham uma verdadeira

    filosofia (a forma mais elevada da expresso intelectual) com a mesma dignidade que a

    filosofia aristotlico-tomista do ocidente, o que escandalizou sectores mais

    conservadores europeus desse tempo18.

    Se muitas das crticas podem ser justificadas nos planos analtico, no que se refere ao

    livro de Tempels, igualmente indispensvel ter em conta a sua inteno dignificadora

    do pensamento africano e o papel que desempenhou na luta contra o obscurantismo

    colonial, sem que isso signifique nos nossos dias uma adeso incondicional ao sistema

    bantu tal como foi pensado. Acrescente-se, alis, que Tempels no apresentou o seu

    sistema como um dogma (certos crticos no parece terem considerado este aspecto)

    mas sim como uma hiptese, declarada explicitamente no livro19.

    17 Cf Hountondji 1977

    18 Tempels sofreu posteriormente represlias pela publicao da sua obra. Por exemplo o Bispo Jean-Flix Hemptinne classificou o livro de Tempels como hertico e pediu mesmo que Tempels fosse expulso do Congo onde ento vivia. Vd Mudimbe 1988: 137.

    19 Tempels escreve por exemplo: Este estudo no pretende ser mais do que uma hiptese (sublinhado pelo autor), um primeiro ensaio de desenvolvimento sistemtico da filosofia bantu. Cf. Tempels 1961, pg. 28). Mudimbe 1988, pgina 140 um dos autores que, honestamente, refere esse facto.

  • 9

    Nas sua interpretao, algo teoricista, Hountondji emite uma crtica severa, ainda que

    legtima, segundo a qual a Philosophie Bantoue uma obra de etnologia com

    pretenses filosficas (), ou, mais simplesmente, () uma obra de etnofilosofia (),

    uma viso especfica, supostamente comum a todos os africanos20. primeira vista,

    acrescenta Hountondji, trata-se para Tempels de reabilitar o homem negro e a sua

    cultura, de que ambos tinham sido at a as vtimas. Mas, olhando de mais perto, o

    equvoco salta vista: esse livro no se dirige aos africanos mas sim aos europeus; mais

    especificamente a duas categorias de europeus: os coloniais e os missionrios21.

    verdade que a tese de Hountondji pode objectivamente ter fundamento. No entanto,

    julgo que ele esquece ou minimiza dois factores: em primeiro lugar, tal como j referi

    acima, a data em que o livro foi inicialmente publicado: 1949. No um facto

    despiciendo, como tambm j disse, dada a cegueira, boa conscincia irracional e

    preconceito coloniais que prevaleciam ento. Mas, antes de mais, esse ttulo ousado em

    1949 tambm simboliza um combate humanista que justo recordar22.

    Em segundo lugar, condicionado pelas limitaes do tempo colonial, o livro s poderia

    dirigir-se queles que tinham ido escola e o poderiam ler, a maioria dos quais se

    encontrava evidentemente na elite da Europa e entre os missionrios. Os eventuais

    interlocutores africanos propriamente ditos (letrados ou filsofos) eram raros ou s

    existiam em pequeno numero se fizermos abstraco de nomes como Amo, do Gana do

    sculo XVIII, de Ibn Khaldoun (sculo XIV) e doutros, bem como, eventualmente de

    sujeitos dos antigos imprios do Gana, do Gao, etc. sobre os quais pouco se sabe ainda.

    Devemos atender tambm a uma outra possibilidade: nada prova que Tempels no

    tivesse conscincia dessa limitao meramente temporal e no tivesse a inteno (algo

    subversiva, diga-se de passagem) de publicar o seu livro, no apenas para o pblico do

    seu tempo, mas para as geraes de africanos que inevitavelmente viriam mais tarde,

    como aconteceu. 20 Hountondji 1977: 11.

    21 Hountondji 1977: 15

    22 Quem viveu nessa poca apreciar talvez melhor a relatividade de certos julgamentos histricos que tm que ser colocados no contexto da poca. conveniente relembrar a sentena de Marx, segundo a qual o passado pesa fortemente no crebro dos vivos. Por isso certos preconceitos so to difceis de erradicar apesar de todos os esforos de racionalidade que a modernidade depois de Kant inspira.

  • 10

    Alis, no de excluir que uma aguda inteligncia como a de Tempels pudesse ter

    pensado em contornar a censura do seu tempo, omitindo deliberadamente que o seu

    livro tambm se destinava s futuras geraes de africanos. Por outras palavras, mesmo

    que o livro s fosse lido, como era expectvel, pela Europa do tempo, como refere

    Hountondji, a frica l-lo-ia certamente mais tarde, como de facto aconteceu. uma

    hiptese que vale o que vale, mas que em todo o caso no improvvel.

    Tambm verdade que a obra de Tempels, como alis a da maioria dos antroplogos

    europeus e americanos dos anos 1940-7023, dificilmente poderia evitar ser uma leitura

    de frica e dos africanos feita de fora para dentro tanto mais que muitos dos

    investigadores (no era o caso de Tempels, de Kagam e de Griaule) no falavam as

    lnguas locais e eram obrigados a utilizar informadores mal preparados, naturais das

    regies onde as investigaes se efectuavam.

    A ideia central de Tempels que a ontologia bantu essencialmente uma teoria das

    foras, noo dinmica na qual, para o africano, o ser fora, no apenas no sentido

    de que ele possui a fora (porque isso quereria dizer que esta um atributo do ser)

    mas no sentido de que ele fora na sua prpria essncia. Como Tempels escreve, o

    ser fora, a fora ser (), onde ns pensamos o conceito de ser, eles servem-se do

    conceito fora24. Como disse mais tarde Eboussi Boulaga, a noo de fora serviu

    de fundamento a essa reabilitao literria do negro a que se chamou Negritude25.

    Assim, fora no apenas uma realidade, mas tambm um valor26. Portanto o

    esforo dos bantu visa aumentar a sua fora vital, considerando que a fora pode

    reforar-se ou enfraquecer. Ora isso contrrio, diz Tempels, concepo ocidental.

    Para o europeu, com efeito, tem-se natureza humana ou no. O homem, adquirindo

    conhecimentos, exercendo a sua vontade (), no se torna mais homem. Inversamente,

    quando o bantu diz, por exemplo, eu torno-me forte, ou quando, compartilhando a

    infelicidade de um amigo, declara: a tua fora vital reduziu-se, a tua vida est a esvair-

    23 Vd por exemplo Robert Delige, Une histoire de lanthropologie, Paris, Seuil, 2006.

    24 Tempels 1949: 35-36

    25 Eboussi Boulaga, Laffaire de la philosophie africaine, 2011 : 15.

    26 Hountondji 1977: 17

  • 11

    se, essas expresses devero entender-se literalmente, no sentido de uma modificao

    essencial da prpria natureza humana27.

    Em sntese, a filosofia bantu tem vrios pressupostos, o primeiro dos quais a

    interaco das foras, a qual no seria apenas de tipo mecnico, qumico ou psquico,

    mas da mesma ordem que a dependncia metafsica que liga a criatura ao criador28.

    Outro princpio o da hierarquia dessas foras, a qual funda a prpria ordem social e

    constitui, por assim dizer, o alicerce metafsico desta.

    Nessa estratificao, encontram-se, por ordem: Deus, esprito e criador; os primeiros

    pais dos homens, ou seja os fundadores dos cls a quem Deus comunicou a fora

    vital; os defuntos das tribos em funo da sua antiguidade, que so intermedirios

    atravs dos quais se exerca a influncia das foras mais velhas sobre a gerao seguinte;

    vm a seguir os vivos e, finalmente, na base da pirmide, as foras inferiores (animais,

    vegetais e minerais) os quais seriam hierarquizados segundo a potncia vital29.

    Da as analogias possveis entre um grupo humano e um grupo inferior, animal por

    exemplo.

    Enfim, coroamento deste edifcio terico-teolgico, a filosofia bantu desagua num

    humanismo: a criao centrada no homem30.

    No entanto Hountondji duvida dessa coerncia e cita Aim Csaire segundo o qual a

    filosofia bantu uma tentativa de diverso. Ela concentra nela a ateno dos problemas

    polticos fundamentais, fixando-a a um nvel fantasmagrico, desnivelado em relao

    realidade efervescente da explorao colonial31.

    Nessa perspectiva o branco apercebido como um mais velho, uma fora humana

    superior que ultrapassa a fora vital do africano. Tal lgica leva apenas a um falso

    27 Citado por Hountondji 1977: 17

    28 Cf. Hountondji: 17

    29 Cf. Hountondji: 18

    30 Cf. Hountondji 1977: 18

    31 Citado por Hountondji 1977: 18

  • 12

    humanismo que, na prtica, um verdadeiro co de guarda da ordem colonial,

    salvaguarda da dominao imperialista32.

    No obstante tambm pode ser observado que uma tal viso parcial, ou pelo menos

    parcelar, como Hountondji alis o reconhece. De facto, a crtica de Aim Csaire deixa

    inteiro o problema terico, na medida em que ataca no a filosofia bantu propriamente

    dita, mas a utilizao que alguns faziam dela com fins polticos33 .

    Assim, nessa ltima leitura, possvel dizer que a filosofia colectiva (africana) uma

    fico partilhada pela etnofilosofia que, de Tempels a Paul Kagam (Rwanda) e deste a

    Lopold Senghor (com a Negritude) ou Julius Nyerere com o socialismo africano e a

    ujamaa) tem uma continuidade bsica apesar de algumas rupturas que tambm so

    visveis. Mesmo K. Nkrumah, apesar do seu proclamado materialista fala de

    personalidade africana e de conscincia africana, conceitos igualmente

    etnofilosficos34. Para distinguir as diferenas entre vrias tendncias seria necessrio

    uma hermenntica, como a que apontada por Paul Ricoeur35. Infelizmente, como

    Hountondji o reconhece, na filosofia africana faltam as fontes, as quais no so

    necessariamente textos escritos ou discurso filosficos, mas documentos

    institucionalizados, tal como Kagam utiliza no seu tratamento da linguagem

    (provrbios, contos, poemas e toda a literatura oral).

    certo, nas palavras de Hountondji, que essa literatura no filosfica na medida em

    que o rigor cientfico impede de projectar arbitrariamente um discurso filosfico a partir

    de produtos da linguagem que no so filosofia. Quando isso acontece, h confuso de

    gneros36.

    Por isso tambm o rwands Alexis Kagam, a despeito da sua notvel erudio, ficou

    em grande parte prisioneiro do mito ideolgico de uma filosofia colectiva dos

    africanos, implcita na Etnofilosofia, nova verso a custo reavaliada da clebre 32 Cf. Hountondji 1977: 20

    33 Cf. Hountondji 1977: 20

    34 Kwame Nkrumah, Le consciencialisme (1969), Paris, Prsence Africaine, 2009 : 98

    35 In Paul Ricoeur, Le conflito des interprtations, Paris, Seuil, 1969

    36 Cf. Hountondji 1977: 31

  • 13

    mentalidade primitiva inventada por Lvy-Bruhl e hoje completamente

    abandonada37.

    Hountondji afirma igualmente que a filosofia bantu um mito estrangulado entre trs

    orientaes centrais: : a) a Filosofia propriamente dita, que , para ser Filosofia, um

    conjunto de textos e de discursos explcitos, ou seja uma literatura de inteno

    filosfica; b) a Filosofia no sentido imprprio, que no passa de uma viso do

    mundo, colectiva e hipottica, de um determinado povo; c) a Etnofilosofia , investigao

    que repousa, no todo ou em parte, sobre a hiptese de uma tal viso do mundo, ou seja,

    um ensaio de reconstruo de uma suposta filosofia colectiva38.

    Assim sendo, a tarefa que incumbe aos filsofos e aos homens de cincia africanos,

    seria justamente de combater esse mito e de libertar o nosso horizonte conceptual para

    um verdadeiro discurso terico. Essa tarefa inseparvel, na prtica, segundo

    Hountondji, de um esforo poltico (anti-imperialista, por exemplo)39.

    Desde logo, Hountondji rejeita a insistncia de muitos filsofos africanos em defender

    uma filosofia original, especificamente africana40, ficando prisioneiros desse mito,

    sejam quais forem, alis, o rigor e a fecundidade () das suas investigaes, a

    sinceridade do seu patriotismo e a intensidade do seu compromisso41.

    A maior parte dos autores que formularam crticas obra de Placide Tempels42 sublinha

    que a filosofia africana, na medida em que se apresenta como uma etnofilosofia, foi

    37 Esta infeliz ideia da mentalidade primitiva, pr-lgica, era caracterstica de uma antropologia ainda nos seus primrdios e condicionada pelas limitaes j acima apontadas, Mas preciso ousar dizer que ela no deve pr em causa a honestidade to vilipendiada por vezes de Lvy-Bruhl (autor que, no fim da sua vida, escreveu um corajoso livro a reconhecer o seu erro, caso raro, provavelmente nico na histria das cincias).

    38 Hountondji 1977: 33

    39 Hountondji 1977.33

    40 Hountondji 1977 33

    41 Hountondji 1977; 34

    42 Entre os quais Franz Grahay, Le dcollage conceptuel, condition dune philosophie bantoue , revista Diogne (Paris), n 52, 1965 ; e tambm o filsofo camarons Fabien Eboussi Boulaga, Le Bantu problmatique , revista Prsence Africaina (Paris), n 66, 1968. Ambos so citados por Hountondji, pgina 30.

  • 14

    elaborada antes de mais para um pblico europeu. Para Hountondji o etnofilsofo

    africano assume o papel de porta-voz da Africa global perante a Europa global no

    encontro imaginrio do dar e do receber43

    Acrescente-se que o problema no somente o da descolagem conceptual de que fala

    F. Grahay, mas sim o da escolha de interlocutor ou do destino do discurso, porque a

    linguagem, na prova social da discusso, pode facilmente perder rigor histrico segundo

    as circunstncias, ou seja, dizer coisas diferentes em contextos distintos. A frica s

    pode comprometer-se nessa prova social se desenvolver a sua prpria histria graas

    escrita e, como complemento necessrio, graas democracia poltica44.

    Por isso a cincia deve ser entendida no como resultado mas como processo para l

    dos seus resultados temporrios, o que supe liberdade de expresso (que os regimes

    africanos actuais se esforam em geral por abafar) e responsabilidade do filsofo

    africano, a qual vai muito para alm do quadro estricto da disciplina enquanto tal.

    Dizendo de outro modo, a libertao terica do discurso filosfico pressupe a

    libertao poltica45.

    Parece igualmente inapropriado ver em cada provrbio um substracto filosfico que

    uma viso mais rigorosa no justifica, quer se trate da tradio africana ou que qualquer

    outra, pelo menos se distinguirmos filosofia de uso popular (ideologia ou senso

    comum) e filosofia de uso rigoroso (terico) como o fazem Hountondji (Costa do

    Marim), Eboussi Boulaga (Camares), Marcien Towa (Camares) ou Berequeberhan

    (Eritreia), at porque se absurdo falar de uma lgebra ou duma fsica inconscientes,

    igualmente absurdo falar, no plano cientfico, de uma filosofia inconsciente46.

    Enfim, se se considera essencial para uma cincia ser constituda obrigatoriamente pela

    livre discusso, confronto de teses e de hipteses resultantes de pensamentos

    individuais, torna-se desde logo absurda a ideia de uma filosofia colectiva (filosofia

    bantu, filosofia africana, filosofia europeia, etc.) sem agentes dinamizadores, quer dizer 43 Hountondji 1977: 35

    44 Cf. Hountondji 1977: 36

    45 Cf. Hountondji 1977: 37.

    46 Cf. Hountondji 1977: 39 e sgs

  • 15

    uma filosofia esttica e imutvel, subtrada histria, mudana, ao progresso e sem

    filsofos individualmente identificados47.

    Ora isso mesmo que define a filosofia africana (na sua verso etnofilosfica) no

    sentido habitualmente entendido pelos africanistas. Aqui, como bem observa

    Hountondji, Alexis Kagam distancia-se apesar de tudo de Tempels ao dizer que

    emprega a expresso filosofia africana para designar uma filosofia intuitiva e no

    uma filosofia no sentido prprio48. Observe-se, no obstante, que a questo tambm no

    fica resolvida se no se souber de quem a intuio

    certo que os etnofilsofos admitiam que a filosofia africana era dum gnero

    diferente da filosofia europeia e que as duas filosofia eram heterogneas e, desde

    logo, incomensurveis. Por isso os filsofos africanos adoptaram acriticamente o

    conceito de filosofia africana para se reabilitar aos seus prprios olhos e aos olhos da

    Europa, defendendo a famosa Filosofia Bantu de Placide Tempels, mas esquecendo-

    se que o livro de Tempels no se dirige a eles (africanos) mas somente ao pblico

    europeu49. Aqui Hountondji tem alguma razo, mas ignora, parece-me, que nessa poca

    de mercantilismo colonialista (anos 1940-50), seria difcil conceber que Tempels (no

    sendo homem poltico nem revolucionrio) pudesse fazer de outro modo, admitindo at

    que tivesse pensado nisso. Mesmo assim o objectivo de Tempels reveste-se, como j

    indiquei, de muita ousadia e coragem face s ideias vigentes na altura, entre um pblico

    ento impregnado de ideias coloniais, sobretudo - como sugeri atrs - que Tempels

    poder ter pensado, sem o dizer, no jovem publico africano que viria muito mais tarde.

    No seria a primeira vez que tal aconteceria (talvez, quem sabe?, Galileu tivesse

    pensado o mesmo no seu tempo quando se retratou perante a Inquisio).

    Mas Hountondji tem, no obstante, razo ao afirmar que a Filosofia Bantu uma pea

    no debate no qual os bantu no tinham nenhuma participao visvel.

    Tambm se pode admitir que a hiptese de Tempels pudesse ser utilizada, conforme s

    ideias do tempo, para facilitar a misso civilizadora da Europa, ou seja o domnio

    47 Cf. Hountondji 1977: 40.

    48 Cf. Houn tondji 1977: 40

    49 Hountondji 1977: 41

  • 16

    prtico dos fundamentos psicolgicos do negro pelo colonizador. Porm Hountondji

    tambm concede que a obra de Tempels pretenderia igualmente prevenir a Europa

    contra os abusos da sua prpria civilizao ultra-tcnica e ultra-materialista50. Assim

    o colonizador civiliza mais, ou s o pode fazer, com a condio de se re-humanizar

    ele prprio, de reencontrar a sua alma (), O projecto terico da filosofia bantu est

    inteiramente nesta dupla problemtica, a qual s tem sentido como problemtica

    ideolgica do imperialismo triunfante51, afirmao que, apesar de tudo, alguns

    consideram um pouco excessiva. Nessa ordem de ideias os africanos permanecem, sem

    o saber, prisioneiros da Europa52. Desde logo continuam a apologia das suas culturas

    em vez de as transformar. Assim, entre o particularismo obstinado e o universalismo

    abstracto53, encontramos, sublinha ainda Hountondji, o mesmo conformismo e a mesma

    recusa de pensar, esquecendo a anlise concreta das situaes concretas54.

    Da resulta que os sucessores africanos de P. Tempels tm em comum a atitude de se

    dirigir antes de mais ao pblico europeu e no ao africano. Para contrabalanar a

    filosofia europeia adoptaram uma filosofia africana a partir de materiais extra-

    filosficos como contos, lendas, provrbios, poemas dinsticos, etc., tentando tirar

    deles aquilo que nunca podero dar: uma verdadeira filosofia55.

    A filosofia bantu de Tempels encontra ainda um outro obstculo: Tempels projectava

    na alma bantu os seus prprios sonhos metafsicos, reforando-os com algumas

    descries etnogrficas sumrias56. Em consequncia, os seus sucessores africanistas

    acabam por confundir acrescenta Hountondji - o discurso etnogrfico com o discurso

    50 Cf. Hountondji 1977: 42

    51 Cf. Hountondji 1977: 42

    52 Cf. Hountondji 1977: 43

    53 Ver Kwaswi Wiredu, Cultural Universals and Particulars, 1996.

    54 Hountondji 1977: 44

    55 Hountondji 1977: 45

    56 Hountondji 1977: 46

  • 17

    filosfico. Desde logo, muita da literatura filosfica africana dissolve-se numa

    etnofilosofia duvidosa, hbrida, ideolgica, sem estatuto preciso no universo da teoria57.

    A etnofilosofia segue assim a via traada pelo etnocentrismo ocidental58 porque a

    Europa apenas espera que os africanos lhe ofeream a sua civilizao em espectculo,

    alienando-se num dilogo fictcio com ela por cima da cabea dos nossos povos. a

    essa alienao que ela convida os africanos cada vez que estes fazem obra de

    africanistas sob pretexto de preservar a sua autenticidade cultural59. Mas isso ao

    mesmo tempo esquecer que o africanismo foi inventado pela Europa e que a

    etnografia como cincia faz parte do patrimnio cultural do Ocidente embora no

    passe de um episdio passageiro na tradio terica desse mesmo Ocidente60.

    Hountondji reconhece que os etnofilsofos africanos tiveram, certo, o mrito de

    defender a sua identidade cultural contra o assimilacionismo colonial. Mas a

    argumentao deles equvoca porque, na sua exigncia legtima de uma filosofia

    africana, acreditaram que essa filosofia assentava num passado a exumar e esqueceram

    que a filosofia africana s pode prevalecer com ateno no presente com os olhos

    voltados para um futuro a criar.

    verdade que essa criao no se faz ex-nihilo porque tambm envolve a herana do

    passado. Mas da a se refugiar no passado h uma grande distncia. Da tambm

    algumas teses sobre a cultura negro africana que evocam a origem dessa cultura no

    Egipto faranico negro como o fez Cheik Anta Diop61 e os seus seguidores. Esse

    ponto de vista afrocentrista uma hiptese estimulante mas no uma tese

    comprovada, como as inmeras polmicas cientficas, sobretudo nos Estados Unidos, o

    57 Hountondji 1977: 47

    58 A mais recente substituio do eurocentrismo caduco pour um afrocentrismo igualmente infrtil, um dos perigos que ameaam a frica nos nossos dias, a qual est aberta s relaes internacionais do ponto de vista econmico, mas tem ainda um longo caminho a percorrer no plano psicolgico

    59 Hountondji 1977: 47

    60 Hountondji: 1977: 47

    61 Vd. Cheik Anta Diop, Nations ngres et culture (1954),Paris, Prsence Africaine, 4 ed. 2007

  • 18

    confirmam62. caso para perguntar se as susceptibilidades afrocentristas que por

    vezes se revelam no fecham igualmente caminhos que so vitais para uma

    modernidade to desejada.

    A filosofia africana, como qualquer outra filosofia, no pode ser uma viso colectiva

    do mundo63. E Hountondji insiste, a justo ttulo, que ela s existir como filosofia na

    forma duma confrontao de pensamentos individuais, duma discusso e dum debate64.

    No entanto esse debate no pode ser o eco longnquo dos debates europeus, mas um

    debate que confronte directamente os filsofos africanos entre si. O verdadeiro

    problema no de falar da frica, mas de discutir entre africanos65. Por isso

    Hountondji afirma que a expresso filosofia africana foi apenas, at aqui, objecto de

    uma explorao mitolgica. E ela s pode ser recuperada se for aplicada no fico

    de um sistema de pensamento colectivo, mas a um conjunto de discursos, de textos

    filosficos contraditrios (individuais)66.

    Ora, na abordagem ocidental do pensamento africano, durante muito tempo, com poucas

    excepes, no foi a voz individual de pensadores africanos que se ouviu, mas

    unicamente a voz do inquiridor (antroplogo) ocidental que interpretou o pensar

    africano (colectivo) atravs de intermedirios indgenas cuja fiabilidade est

    naturalmente sujeita a cauo quando o antroplogo no sabe as lnguas locais e no

    pode controlar eficazmente o contedo dos discursos. Um dos poucos casos em que

    estamos realmente em presena de um pensador africano que expe directamente a sua

    prpria verso da sabedoria tradicional o de Ogotemmli, da regio Dogon, na Costa

    do Marfim67 cujas reflexes foram recolhidas por um dos mais prestigiosos

    62 Como se pode ler, por exemplo, no livro da Professora e especialista do Egipto antigo, Mary

    Lefkowitz, Not Out of Africa How Afrocentrism Became an Excuse to Teach Myth as History,

    de 1996.

    63 Hountondji 1977: 48

    64 Hountondji 1977: 48

    65 Hountondji 1977: 49

    66 Hountondji 1977: 53

    67 Vd. Marcel Griaule, Dieu deau Entretiens avec Ogotemmli (1948), Paris, Fayard, 2006

  • 19

    antroplogos franceses, Marcel Griaule. Na maioria dos outros casos esses testemunhos

    foram interpretados pelos antroplogos ocidentais, incluindo os mais importantes da

    literatura antropolgica (Malinowski, Herskovitch, Evans Pritchard, Margaret Meade,

    M. Fortes, etc,), cujas teses resultaram de uma interpretao pessoal (ainda que

    convincentemente fundamentada), quer dizer de um discurso indirecto, transmitido pelo

    informador ou interprete local. Em contrapartida, o discurso directo feito pelos prprios

    africanos foi, durante muito tempo, praticamente inexistente, com a excepo, como se

    disse, de Ogotemmli.

    pois discutvel atribuir colectividade um discurso coeso e uniforme, ignorando

    contribuies individuais a partir das quais que concebvel uma verdadeira

    filosofia, quer dizer um pensamento resultante do debate e da sntese crtica. O

    filsofo senegals Issiaka-Prosper Laly reconhece que o filsofo () sempre um

    indivduo e no um grupo. Especialmente se se abandonar o pressuposto segundo o

    qual, contrariamente etnofilosofia, a verdadeira filosofia constituda por dois

    factores: lgica68 e individualidade. A ausncia desses critrios reduziria a filosofia

    africana a uma folk philosophy, a uma filosofia popular ou mesmo comunitarista69.O

    filsofo negeriano Francis Njoku admite que, apesar dos consensos obtidos pelo grupo

    na sociedade tradicional, Isso no significa que todos concordem com uma linha

    particular de aco70, ou seja h lugar para o indivduo na colectividade tradicional,

    ainda que muitas vezes o indivduo seja sufocado na comunidade.71

    H igualmente factores que podem contribuir, mesmo involuntariamente, para um

    enviesamento da verdade, chamemos-lhe assim. Entre eles o facto de muitos autores

    serem homens de igreja que so levados, pelo sua prpria formao, a conceber a

    filosofia segundo o sistema teolgico, como um sistema de crenas que, segundo

    68 A ttulo de exemplo, vd. Anthony Weston, A arte de argumentar, Lisboa, Gradiva, 2005. No caso da filosofia em Portugal ver o notvel livro de Alber Salazar, O pensamento positivo contemporneo, Famalico, Ed. Hmus, 2012 (vol. VII das Obras Completas de Abel Salazar). Abel Salazar (1889-1946) foi filsofo, cientista, artista e pintor dos mais brilhantes do sculo XX em Portugal, sempre perseguido pelo regime da poca.

    69 Laly (Iswsiaka-Prosper, 20 questions sur la philosophie africaine, Paris, LHarmattan, 2010 : 130.

    70 Francis Njoku, Development and African Philosoph, 2004: 142

    71 Francis Njoku, idem 2004: 150

  • 20

    Hountondji, seria permanentemente estvel, refractrio evoluo dialctica, sempre

    idntico a si prprio, impermevel ao tempo e histria72. Hegel mencionou esse

    mesmo problema quando disse que a filosofia cessa quando a religio comea73.

    Um outro elemento desviante na interpretao do pensamento dos africanos o mito

    da unanimidade primitiva, segundo o qual nas sociedades no ocidentais toda a gente

    est de acordo com toda a gente (Hountondji), no havendo nelas crenas individuais

    mas somente crenas colectivas. Por outras palavras, a etnofilosofia favorece uma

    unanimidade imaginria74

    Se pensarmos na questo do comrcio de longa distncia evocada por Catherine

    Coquery-Vidrovich, ou nas modernas migraes de angolanos e sobretudo

    moambicanos para trabalhar nas minas da frica do Sul (durante e depois do

    Apartheid), a unanimidade to evocada aparece aqui tambm como um argumento

    frgil. De facto, tudo indica que na deciso de emigrao, temporria ou definitiva, h

    certamente uma vontade individual, no apenas por razes econmicas evidentes, mas

    certamente para escapar ao controlo comunitrio e ao poder dos mais velhos que tm

    o monoplio do acesso s mulheres, fora do alcance dos mais jovens sem recursos

    prprios. As decises econmicas para conseguir meios para o dote (alambamento)

    em Angola e em Moambique entre outras regies, tentando assim quebrar esse

    monoplio, so certamente razes poderosas, creio, mas essa escolha no deixa de ser

    individual e subjectiva (pelo menos em parte), factor que nem sempre chamou a ateno

    dos antroplogos. Os jovens moambicanos e angolanos que emigravam para as minas

    da frica do Sul estavam, inconscientemente talvez, a contestar a perpetuao da ordem

    social que o dote (alambamento) representava como instrumento de conservadorismo

    social nas mos dos mais velhos como refere Claude Meillassoux75. A h certamente

    lugar para o indivduo.

    72 Hountondji 1977: 58

    73 O que relembra a frase de Kant segundo a qual fui obrigado a abolir o saber para dar lugar crena (cf. Prefcio 2 edio da Critica da razo pura).

    74 A questo do individual e do social (comunitarismo) examinada pelo filsofo do Gana, Kwame Gyekye, in Traditon and Modernity (1997), pg. 35 e sgs.

    75 Claude Meillassoux, Lanthropologie conomique des Gourous de Cte dIvoire, 1964

  • 21

    Assim, o conceito de unanimismo (que anula o indivduo) tido como prprio s

    sociedades africanas ditas comunitaristas, no passa muitas vezes de um preconceito,

    ou de uma interpretao parcelar historicamente datada.

    No plano cientfico, o discurso de Tempels , em grande medida, metafsico e no

    cientfico no sentido de no poder ser falsificado (Popper).. Mas talvez til

    observar que a Metafsica no deve ser rejeitada em bloco mesmo no processo de

    formao cientfica - como aconteceu com os preconceitos do cientismono sculo

    XIX . A Metafsica pode ter um papel no despertar da criatividade, por muito

    admissveis que seja as objeces que se lhe opem. Ela pode igualmente desempenhar

    uma funo que tempere as tendncias do dogmatismo cientista sempre presentes

    ainda hoje (as doutrinas neoliberais, como veremos mais frente, do abundantes

    exemplos).

    Hountondji observa ainda que a filosofia dos bantu sobretudo a filosofia de Tempels,

    tal como a filosofia dos bantu-rwandeses no a filosofia dos bantu-rwandeses mas de

    Alexis Kagam, at porque nem um nem outro se interrogaram sobre a natureza e o

    estatuto cientfico das suas prprias anlises ao construrem no uma filosofia mas

    essencialmente uma meta-filosofia, produto da imaginao destes autores. Diz

    Hountondji, com razo, que a etnofilosofia uma pr-filosofia preguiosamente

    refugiada sob a autoridade da tradio que projecta nessa tradio as suas prprias

    teses e crenas76.

    Outros nomes importantes do pensamento africano tambm no puderam evitar a

    armadilha da filosofia colectiva implcita na etnofilosofia, como Nkrumah no seu Le

    Conciencialisme77, Lopold Senghor e Julius Nyerere nas suas teses sobre a

    Negritude e sobre o socialismo africano78.

    76 Hountondji 1977: 66

    77 Nkrumah, Le Conciencialisme , 2009

    78 As particularidades deste socialismo africano so tambm analisadas por Gyekye 2007: 37 e sgs.

  • 22

    Em contrapartida h hoje numerosos filsofos africanos que rejeitam a filosofia

    colectiva, como Fabien Eboussi Boulaga79 e o camarons Marcien Towa80 e, bem

    entendido, Paulin Hountondji.

    A filosofia africana existe, evidentemente. Mas num sentido diferente dos antroplogos,

    ou seja como forma particular da literatura cientfica (Hountondji). Para isso

    indispensvel que o individuo africano se liberte do peso do passado, da atraco das

    modas ideolgicas, do naturalismo convencional e, tambm, tanto das ideologias de

    Estado que funcionam de um modo autoritrio ou mesmo fascista, como de de um

    marxismo simplificado e simplista no menos convencional.

    Tal pressupe, antes de mais, o derrube dos obstculos polticos (no sentido lato do

    termo), com o estabelecimento de liberdades democrticas81, de liberdade de crtica, de

    liberdade de expresso nos pases que aspiram a um desenvolvimento real, com

    repartio dos frutos desse desenvolvimento e no apenas de um mero crescimento

    muitas vezes artificial e parcelar de que h pouco a esperar, como a experincia o tem

    demonstrado em Africa, com as suas profundas e anormais desigualdades sociais82.

    Enfim os autores crticos tm razo quando afirmam que a filosofia africana existe,

    mas no o que se julga. Em vez de um pensamento implcito e colectivo, ela

    79 Eboussi Boulaga, Laffaire de la philosophie africaine, 2011

    80 Marcien Towa, Essai sur la problmatique philosophique dans lAfrique actuelle. Ver igualmente o artigo de Samba Diakit, da Costa do Marfim, intitulado La problmatique de lethnophilosophie dans la pense de Marcien Towa, revista Le Portique (5-2007) em linha : http://leportique.revues.revues.org/index1381.html.

    81 No verdade, tal como a ditadura de Salazar dizia frequentemente, que o baixo nvel de escolaridade da populao a impea de praticar a democracia, como o 25 de Abril de 1974 em Portugal o demonstrou, apesar da altssima taxas de analfabetismo que ento a afligia. Como Alfredo Margarido me observou certa vez, o facto da imensa maioria dos portugueses emigrados em Frana nos anos 60-70 serem camponeses analfabetos ou semi-analfabetos, sem nenhuma preparao prvia para enfrentar o ambiente altamente industrializado da Frana, no os impediu de, rapidamente, se integrarem nessa civilizao industrial, sem nenhum conflito de tradio-modernidade. Georges Balandier, pensando na frica, tambm rejeita essa dicotomia mecanicista, vendo antes nela, acertadamente, uma relao dialctica muito mais complexa.

    82 Ver Hountondji 1977: 76

  • 23

    desenvolve-se objectivamente sob forma de uma literatura () que resta (ainda)

    prisioneira do preconceito unanimista83.

    Isso porque, em primeiro lugar, a filosofia uma histria e no um sistema, quer dizer

    um processo aberto, uma investigao inquieta e inacabada, e no um saber fechado.

    Em segundo lugar, essa histria no resulta de uma evoluo contnua, mas manifesta-

    se por saltos e revolues sucessivas na linha de pensamento de Karl Popper e de

    Thomas Kuhn84 concordantes pelo menos nesse ponto, mas com diferenas decisivas

    noutros.

    Em terceiro lugar, a filosofia africana regista hoje em todo o continente uma mutao

    cujos resultados dependero da coragem e lucidez de que os jovens filsofos africanos

    forem capazes. Nesse aspecto h razes, creio, para um fundado optimismo.

    Esse optimismo tem razes concretas: as imensas riquezas ainda por explorar no

    continente africano; a demografia que far com que dentro de 30 ou 40 anos a

    populao atinja dois mil milhes de habitantes de uma populao muito jovem a

    contrastar com o envelhecimento doutras regies do mundo, o que, a par de

    qualificaes crescentes, dar frica o seu recurso mais valioso: novos recursos

    humanos. Estas projeces so hipteses fortes e no meras conjecturas intuitivas85

    De uma maneira geral, evidente que os pensadores africanos, para encontrar o seu

    caminho, no podero nem ignorar a herana filosfica internacional nem refugiar-se

    em particularismos locais em nome de uma pretensa autenticidade cujos efeitos

    limitados, e at perversos, j se manifestaram alis em determinados pases.

    83 Hountondji 1977: 77

    84 Ver de Karl Popper, Conjectura e refutaes, Lisboa, Almedina, 2006. De Kunh: A estrutura das revolues cientfica, Lisboa, Guerra e Paz, 2009.

    85 Vd. Adelino Torres, Crise ou renascimento em frica?, in: Emmanuel Moreira Carneiro e Manuel Ennes Ferreira (Coordenao de), frica Sub-Sahariana, meio sculo depois (1960-2010), Lisboa/Luanda, 2012, Ed. Colibri/CIS-Instituto Superior de Cincias Sociais e Relaes Internacionais (Angola): 19-38.

  • 24

    Neste sculo XXI de globalizao e de comunicao instantnea onde o espao e o

    tempo86 parecem ter sido abolidos, a escolha j no entre particularismo e

    universalismo mas sim de uma sntese crtica (e no passiva) entre ambos, sntese

    que, de qualquer modo, ter sempre que mergulhar as suas razes na culturas africanas e,

    tanto quanto possvel, nas lngua autctones que so o hmus dessas culturas se os

    Estados fizeram o esforo poltico indispensvel para levar prtica (tarefa de longo

    prazo) um multilinguismo realista, que concilie o externo com o interno, ou seja a

    manuteno das lnguas autctones com as lnguas estrangeiras herdadas da

    colonizao, na medida em que estas ltimas so veculos unificadores da nao, que

    permitem, ao mesmo tempo, o acesso imediato cincia universal87. No obstante, no

    plano interno, a promoo das principais lnguas locais ser sempre um elemento

    indispensvel da identidade88 que vital ser preservado.

    Num outro plano, tambm indispensvel recuperar a lio de Ferdinand Saussure e

    distinguir, nas sociedades, entre a lngua e a palavra. A lngua vista como um produto

    social que permite comunidade de se exprimir; a palavra como a actualizao, a

    realizao individual da lngua.

    Nestes dois conceitos distintos mas interdependentes, h sempre lugar para o

    indivduo (a palavra) mesmo quando a sua autonomia frgil ou quando o valor

    dessa palavra identitria no apercebida como tal pelos antroplogos.

    E se a filosofia (africana ou outra) no um sistema no sentido de um conjunto de

    preposies definitivas ou axiomas, porque ela exige debate, esprito crtico,

    86Vd por exemple o notvel : Hartmut Rosa, Acclration:une critique sociale du temps, Paris, La Dcouverte, 2010

    87 No h cincia relativa a umas culturas e no a outras. A lei da atraco universal de Newton ou a teoria da relatividade de Einstein so universais e no relativas a esta ou quela cultura ou a uma qualquer lei teolgica dogmtica, como acontece, ou pelo menos acontecia em 1990 em certas universidades do Paquisto onde havia docentes que defendiam, baseados no Coro, que o sol gira volta da terra (geocentrismo). Cf. Hoodbhoy (Pervez), Islam and Science Religious Orthodoxy and the Battle for Rationality, Londres, Zed Books, 1991 (Prefcio de Abdus Salam, prmio Nobel da Fsica).

    88 O importante filsofo rwands, Alexis Kagam escreveu as suas obras tanto em francs como em kinyardwanda, uma lngua nacional rwandesa. Cf. Laly 2010: 54.

  • 25

    inconformismo que no aceita verdades ltimas, tenham elas o contedo e o sentido

    poltico que tiverem89.

    No sendo a filosofia um sistema fechado mas uma histria, nenhuma doutrina

    filosfica pode conduzir certeza. Quando muito, a uma temporria verdade

    absoluta (e jamais a uma verdade relativa) sempre inserida, note-se, num horizonte

    de incerteza90. Neste ponto discordo de Hountondji quando este declara, sem mais, que,

    em filosofia, no h verdade absoluta, no distinguindo entre verdade e certeza e

    sem ver que as verdades relativas abrem sempre caminho ao arbitrrio do relativismo

    e do multiculturalismo, e que as verdades absolutas desde que estejam inseridas na

    incerteza, e s nessa condio, so o que permite o avano do pensamento e a sua

    renovao91.

    A concepo da filosofia como sistema foi uma das caractersticas predominantes de

    Espinosa e de Hegel, que pretendiam pensar a totalidade num sistema de sistemas,

    mtodo que pode ser assimilado, como observa Hountondji, ao que os antroplogos nos

    apresentam hoje como sistemas de pensamento africano e que encontramos

    igualmente na arquitectura de Philosophie Bantoue de Placide Tempels, cuja tentativa

    de fechar o debate num sistema , do ponto de vista cientfico, tanto mais frgil

    quanto se trata de um sistema teolgico que no susceptvel de ser falsificado (K.

    Popper), quer dizer que no pode ser empiricamente refutado. Se Hountondji tiver

    razo quando afirma que a filosofia histria e no sistema, ento a filosofia africana

    sugerida ou defendida por certos antroplogos , de facto, um contrasenso92.

    A questo de fundo o problema critico de saber porque que certos autores ocidentais

    (e africanos) sentiram a necessidade de procurar nos recantos insondveis da alma

    89 Laly 2003

    90 Vd. Karl Popper, Les deux problmes fondamentaux de la thorie de la connaissance, Paris, Hermannn, 1999 ; Paulo Mercadante, A coerncia das incertezas, Lisboa, Fundao Lusada, 2002.

    91 Sobre a questo do relativismo em cincia, ver, alm dos trabalhos de Popper et de Kunh, o importante livro de Imre Lakatos e Alan Musgrave (Organizado por), A crtica e o desenvolvmento do conhecimento, S. Paulo, Cultrix, 1979. Para uma introduo simples e clara: Raymond Boudon O relativismo, Lisboa, Gradiva, 2009.

    92 Hountondji 1977: 88

  • 26

    secreta dos africanos, uma tal viso do mundo colectivo93. Tanto mais que o livro de

    Tempels posterior ao importante, embora menos conhecido, livro de Paul Radin,

    Primitive Man as Philosopher, de 192794, que recusa a ideia segundo a qual nas

    sociedades no civilizadas o indivduo esteja ausente ou completamente submerso

    pelo grupo. Como j se observou atrs, na literatura antropolgica s Ogotemmli (in

    Griaule 2006) um narrador directo e individual. Nos outros estudos apenas o grupo

    societal transparece e traduzido pela voz do antroplogo (quase sempre ocidental), o

    que sem lhe retirar mrito, introduz de qualquer modo a incerteza (no falo de dvida

    propriamente dita) quanto exactido e amplitude das suas interpretaes.

    De modo radicalmente diferente, a investigao de Paul Radin era o estudo do homem

    excepcional na comunidade primitiva (), uma tentativa de mostrar a existncia de ()

    uma classe de intelectuais nas sociedades primitivas.

    Alis na 2 edio do seu livro (1957) Paul Radin critica o mtodo subjectivo de

    Tempels, porque esse mtodo no nos informa sobre o que a filosofia bantu, mas

    sobre o que Tempels pensa o que ela , no podendo desse modo considerar as suas

    fontes como fontes primrias. Segundo Hountondji, elas s poderiam ser demonstradas

    se fornecessem textos originais de filsofos africanos95.

    Por seu lado, Marcel Griaule ter ido mais longe do que Tempels ao escrever sob

    ditado do dogon Ogotemmli96. Dieu deau , por essa razo, mais consistente embora

    tivesse tido muito menos sucesso do que o de Tempels.

    O xito de Tempels deve-se sobretudo ao facto dele satisfazer o desejo dos africanos em

    reabilitar a sua cultura. Mas o seu projecto encerra um mal-entendido: ao reafirmar o

    93 Hountondji 1977:89

    94 Foi a leitura de Hountondji 1977 que me chamou a ateno para a obra de Paul Radin. Vd Paul Radin, Primitive Man as Philosopher(1927) , New York, Dover Publications, 2 edio revista 2002 (Com um prefcio de John Dewey

    95 Hountondji 1977: 90

    96 Griaule, Dieu deau, op. Cit.

  • 27

    carcter colectivo e irreflectido dessa filosofia bantu, Tempels confirmava

    indirectamente as teses de Lvy-Brhul97.

    III Complexidades do desenvolvimento

    J vimos que a abrangncia de conceitos como tradicional, filosofia bantu, etc.,

    evocam uma uniformidade esttica que no traduz a complexidade da interaco entre o

    individual e o social. Como observam os filsofo Kwame Gyekye, do Gana, e Francis

    Ojoku da Nigria, o ser humano tem autonomia, liberdade e dignidade, valores que

    devem ser respeitados pela sociedade. Ao mesmo tempo que o indivduo um membro

    natural da sociedade humana, tambm precisa dessa mesma sociedade que lhe permite

    desenvolver o seu prprio potencial98. Por outras palavras, no h incompatibilidade

    entre o indivduo e a sociedade, nem o indivduo desaparece completamente no

    colectivo como se podia deduzir da abordagem etnofilosfica da sociedade tradicional

    africana.

    Referindo-se questo do indivduo na obra de Claude Lvi-Strauss, Maurice Bloch

    escreve que Lvi-Strauss considera () que o nosso pensamento da cultura um

    processo no qual os indivduos so individualmente implicados. E, mais adiante: a

    cultura consiste assim numa multitude de actos individuais de criao cognitiva duma

    matria mergulhada num interminvel processo de criao. E finalmente: a segunda

    implicao da concepo lvi-straussiana concerne a natureza da matria cultural

    continuamente reinventada pelos indivduos99

    Quanto anlise do desenvolvimento, em termos exclusivamente econmicos, a viso

    unidisciplinar, condicionada pela formao especifica dos especialistas nesta rea e pela

    necessidade de especializao para nela se moverem, no se afigura suficientemente

    97 Hountondji 1977: 91

    98 Kwame Gyekye, Tradition and Modernity, 1997: 35; e Francis Njoku, Development and African Philosophy, 2004

    99 Cf. Maurice Bloch, Une anthropologie fondamentale in Philippe Descola (Sous la direction de), Claude Lvi-Strauss, un parcours dans le sicle, Paris, Ed. Odile Jacob, 2012 : 257-259

  • 28

    satisfatria nos seus resultados, em particular se atendermos aos fracassos das

    experincias de desenvolvimento que tiveram lugar em frica nos ltimos 50 anos

    ps-independncias.

    Da a necessidade, como tudo leva a crer, de abordagens multidisciplinares e at,

    quando possvel, interdisciplinares. Nesse mbito, os cientistas sociais e, em especial, os

    filsofos, tm certamente um papel a desempenhar. Se a Filosofia perigosamente

    negligenciada nas universidades (tanto no Norte como, mais ainda, no Sul), os filsofos

    com uma formao econmica adequada, devem ajudar a submeter as ideias ao crivo da

    crtica indo raiz epistemolgica e dialcticas das teorias e revelando as incertezas,

    ambiguidades ou limites de prticas econmicas com que os economistas nem sempre

    se preocupam. Sobretudo quando a viso destes gira exclusivamente volta do axioma

    segundo o qual o mercado explica tudo (a teologia de mercado nas palavras de

    Adriano Moreira) ou quando os modelos estatstico-matemticos so o principal

    instrumento para apreender a realidade societal.

    Por exemplo a ideia algo redutora do equilbrio, aplicada famosa igualdade ex-

    post entre investimento (I) e poupana (S), insinua que, no fim do processo, tudo

    entre na ordem. O problema que esse axioma no resolve nada, porque, para utilizar

    uma imagem de Jacques Austruy, o equilbrio dos tmulos no explica a turbulncia da

    vida 100.

    E se o equilbrio ex-post no tem nenhum significado particular na anlise do

    movimento, o equilbrio ex-ante todavia mais interessante em comparao com o

    movimento complexo que o desenvolvimento, na medida em que o equilbrio inicial

    das estruturas no pode, por si s, fazer nascer o desajustamento que d origem ao

    desenvolvimento, o que coloca o problema da conjugao entre um e outro desses

    conceitos.

    De igual maneira, o importante no o clculo das taxas de crescimento, como muitos

    parecem julgar (o pas X tem uma taxa de crescimento to elevada que suscita a

    admirao frequente dos economistas, muitos dos quais se esquecem que essa taxa

    feitichista pode no corresponder a nenhuma melhoria da repartio social, e mesmo,

    100 Jacques Austruy, Le scandale du dveloppement 1968 :44

  • 29

    muitas vezes, nem sequer a qualquer avano do sector da produo). Isso resulta

    daquilo a que um autor angolano, Emmanuel Carneiro, chama economia rendeira101.

    Na realidade o que importa a explicao das tenses dinmicas que essas taxas

    traduzem. Da a dificuldade de passar da esttica dinmica, da anlise dos

    equilbrios anlise do desenvolvimento que , por definio, uma dinmica em

    desequilbrio. E se os economistas neoclssicos no se ocupam em geral, como

    deveriam, desse tipo de reflexo, porque talvez mais habituados a tratar as questes

    como puzzles maneira de Kuhn102 , a contribuio dos filsofos, a par dos

    economistas heterodoxos e outros cientistas sociais, poderia ajudar a transformar mais

    facilmente os puzzles em verdadeiros problemas, questo metodolgica sobre a qual

    Karl Popper chamou oportunamente a ateno (a cincia s avana de problemas para

    problemas)103. Serge Michailof, num estudo sempre actual, ps em evidncia vrios

    mitos que fazem parte do arsenal dos economistas liberais que se ocupam do

    crescimento104.

    Muitos autores - Jacques Austruy, Alberto Hirschman, Harvey Leibenstein, etc. -

    chamam igualmente a ateno para o relativamente escasso significado operacional do

    conceito de crescimento equilibrado105. Para alm das dificuldades levantadas pela

    hiptese dum equilbrio inicial para a explicao do movimento, a partir do isolamento

    de variveis econmicas com as quais se quer conservar o equilbrio ao longo do tempo,

    esse esforo para obter a todo o custo maior rigor cientfico pode implicar o abandono

    de elementos que explicam o prprio movimento. Este situa-se sempre entre o limite do

    investimento autnomo necessrio e o limite do crescimento demogrfico e do

    progresso tcnico que se quer atingir.

    101 Emmanuel Carneiro, Especializao rendeira e extroverso na frica Subsariana, Lisboa, Princpia.

    102 Vd. Thomas Kunh, A estrutura das revolues cientficas, 2009

    103 Karl Popper, A lgica da pesquisa cientfica, 1972 e igualmente: Conjecturas e refutaes, 2006

    104 Serge Michailof, Les apprentis sorciers du dveloppement, Paris, ECONOMICA, 1984.

    105 Jacques Austruy , op. cit., 1968: 48. Albert Hirschman, Stratgie du dveloppement conomique, Paris, Les ditions Ouvrires, 1964.

  • 30

    Tambm h matria de discusso quanto conjugao das diversas taxas de crescimento

    definidas, por exemplo, pelo ps-keynesiano106 R. Harrod (taxa de crescimento

    equilibrada, taxa de crescimento garantida e taxa de crescimento natural), ou

    ainda a comparao entre investimento induzido e investimento autnomo que, ao

    negligenciarem os problemas estruturais podem, por sua vez, fazer esquecer que

    grandezas isoladas umas das outras arriscam-se a no ter efeitos sobre a apreenso do

    crescimento e, por maioria de razo, sobre o desenvolvimento, que v alm de um

    contexto limitado ou circunstancial. Ora justamente esse contexto que tem de ser

    submetido a uma anlise dos especialistas das cincias sociais. Essa anlise deve ir para

    alm do descritivo ou da aplicao mecanicista de modelos que, demasiadas vezes,

    levam a crer que o crescimento se deduz simplesmente do aumento de grandezas

    estatsticas, como a poupana (S) ou o investimento (I), quando h mais de 50 anos o

    jamaicano e prmio Nobel Arthur Lewis demonstrou que a poupana no conduz

    impreterivelmente ao crescimento, nem que o investimento necessariamente produtivo

    (como foi o caso da construo da pirmides do Egipto)107.

    Se tomarmos igualmente como exemplo a conhecida Estratgia de Substituio das

    Importaes (ESI), Manuel Ennes Ferreira demonstrou claramente, ao estudar o caso

    de Angola108, que a ESI, que se propunha , neste como noutros pases africanos,

    proteger as indstrias nacionais, existentes ou a serem criadas, no surtiu os efeitos

    esperados, no s porque as condies conjunturais no eram favorveis, mas

    especialmente porque se mantiveram dentro de um quadro classicamente protecionista

    e excessivamente prolongado, sem que tivessem sido tomadas outras medidas

    dinamizadoras.

    Este processo verificou-se em quase todas as economias em desenvolvimento, sendo a

    Amrica Latina o exemplo mais antigo. Por isso, e por preconceito a priori, os

    economistas neoliberais condenaram inflexivelmente a ESI em toda a parte e certamente 106 H uma diferena radical, que no possvel desenvolver aqui, entre os ps-keynesiamps (continuadores da teoria keynesiana) e os neo-keynesianos que transformaram o keynesianismo numa teoria subsidiria do neo-liberalismo (J. Hicks), como o demonstrou Joan Robinson

    107 Arthur Lewis, La thorie de la croissance conomique (1955), Paris, Payot, 1967

    108 Manuel Ennes Ferreira, A indstria em tempo de Guerra (Angola, 1975-91), Lisboa, Ed. Cosmos/Instituto de Defesa Nacional, 1999

  • 31

    que no se comoveram com o seu fracasso. No entanto, o que eles no viram que esse

    fracasso foi menos devido ESI, politica que em princpio era justificada por razes

    legtimas e at morais (dar uma oportunidade indstria nacional), do que ao facto de a

    ESI ter sido tomada em todos os pases africanos como um fim em si que se poderia

    prolongar indefinidamente, e no como um meio (temporrio) at haver condies de

    se abrir concorrncia do comrcio internacional, exactamente como fez a Coreia do

    Sul nos anos 1950.

    Quando os pases africanos, sob a presso ultraliberal de Ronald Reagan e Margareth

    Thatcher e das instituies hegemnicas internacionais do chamado Consenso de

    Washington, tiveram que se conformar, na dcada de 1980, com a abertura brutal dos

    seus mercados at a artificialmente protegidos, bem como com as polticas de

    ajustamento estrutural (privatizaes, desvalorizaes, medidas de austeridade vrias),

    verificaram que as suas empresas e produtos estavam obsoletos e incapazes de competir

    no mercado mundial. Por si ss, os programas de ajustamento estrutural (PAE)

    aplicados em frica foram tambm um fracasso na generalidade dos casos, embora o

    factor propriamente econmico esteja longe de ser uma causa nica, como Goran

    Heyden o demonstrou com o seu conceito de economia da afeio109

    Como, para alm disso, no tinham preparado quadros ou gestores eficientes, muitas das

    empresas a privatizar s poderiam ser vendidas a empresas estrangeiras que, sobretudo

    na frica Ocidental, se apressaram a impor condies draconianas. Por exemplo, s

    aceitarem comprar as empresas se tivessem em seguida o monoplio da produo e da

    distribuio em toda a regio, exigncia que chocava flagrantemente com o princpio de

    concorrncia capitalista que essas mesma empresas estrangeiras proclamavam

    defender, o que demonstra mais uma vez a distncia que existe entre a retrica (defesa

    do princpio da concorrncia) e a prtica (luta pelo monoplio ou oligoplio)

    Isso no impede de pensar que a substituio de importaes tinha lgica e

    legitimidade com a condio de ter sido desde o incio uma estratgia assumidamente

    provisria, preparatria para uma abertura posterior, to rpida quanto possvel (a 109 Goram Heyden, African Politics in Comparative Perspective, 2006. Este conceito poder ser cotejado com o trabalho de Eloi Laurent, conomie de la confiance, Paris, La Dcouverte, 2012.

  • 32

    Coreia do Sul necessitou de uma dezena de anos) que, acompanhada de uma integrao

    regional consequente, ultrapassasse as limitaes da generalidade dos estreitos

    mercados africanos sem a dimenso territorial e humana adequada.

    Quanto s zonas de integrao regional (Cedeao, Ceeac, etc.), todas elas criadas em

    1975, o seu fortalecimento foi, e continua a ser, moroso e tardio, por incompetncia,

    falta de vontade poltica ou incapacidade de passar rapidamente do estdio de

    economias concorrentes (produzindo os mesmos bens) a economias complementares.

    Pode-se admitir que o factor poltico , at certo ponto, compreensvel, dado que a

    maioria dos pases eram, na altura, independentes havia pouco mais de 15 anos e o

    elemento nacionalista no deixava de ser um obstculo que revelava a pouca vontade de

    renunciar autonomia econmica e poltica recentemente conquistada, mesmo se elas

    eram em parte fictcias. No obstante, hoje fcil reconhecer que a integrao regional

    uma condio sine qua non do desenvolvimento e, por maioria de razo, ser

    incontornvel no futuro.

    Retomando de novo o conceito de equilbrio, pode-se acrescentar ainda que este

    subentende uma viso que h muito foi ultrapassada por Albert O. Hirschman no seu

    magistral Estratgia do desenvolvimento econmico110 com a noo de crescimento

    em desequilbrio. ptica muito mais prxima da realidade (no necessariamente mais

    simples) e que consiste num crescimento visto como uma sucesso de desequilbrios.

    Esta nova teoria pode mesmo ser verificada empiricamente, e corresponde, por assim

    dizer, seno ordem natural das coisas, pelo menos procura traduzir o heterogneo da

    realidade num contnuo homogneo que se afigura cientificamente mais defensvel,

    apesar de no excluir outras dificuldades.

    Mas todos estes exerccios de problematizao implicam impreterivelmente o acesso a

    estatsticas fiveis, sem as quais de pouco vale a maioria das elucubraes que do

    origem a modelos.

    Se a Matemtica e a Estatstica so, sem dvida, instrumentos teis no trabalho de

    investigao sobre o desenvolvimento, isso no justifica abusos na sua utilizao, como

    110 Albert O. Hirschman, trad. fr. Stratgie du dveloppement conomique (1958), Paris, Les ditions

    Ouvrires, 1964.

  • 33

    modernamente acontece, ou quando se procura reduzir, em matria de desenvolvimento,

    a macroeconomia microeconomia111.

    Tal resulta da dominao, desde os anos 1980, do pensamento ortodoxo sobre o

    pensamento heterodoxo e no abandono progressivo, desde essa poca, da velha tradio

    da Economia Poltica e at do keynesianismo112.

    A procura de rigor j referida, aceitvel quando no levada a extremos (S. Jevons

    e L. Walras, Milton Friedman), at simbolizados na mudana de denominao da

    disciplina nas universidades (de Economia Poltica para a pretendida Cincia

    Econmica). Mas, mais importante ainda, enquanto a economia clssica assentava

    desde Adam Smith na teoria do valor-trabalho a nova economia neoclssica tem no

    seu centro a teoria da utilidade marginal113 que obedecem, na teoria como na prtica,

    a lgicas completamente diferentes e at incompatveis

    No entanto a situao ainda mais complexa do que por vezes se pensa, sendo certo

    que, nas sociedades desenvolvidas modernas, o reconhecimento do valor social do

    trabalho j no passa pela mediao objectiva da mercadoria, devido, nomeadamente,

    supremacia da economia de servios sobre a economia industrial.

    Esse reconhecimento resulta agora de maneira crescente - de mecanismos que

    emanam da prpria sociedade, o que obriga a reintroduzir as questes da tica e do

    poltico no mago dos novos compromissos socio-econmicos, o que por vezes

    ignorado pelos economistas exclusivamente dedicados a aspectos tecnicistas que j

    no correspondem a uma estratgia prospectiva e global que, determinando

    decisivamente a economia, j no todavia determinada por esta, pelo menos no

    essencial.

    Todas as transformaes operadas nas teorias econmicas so, sem dvida, ,

    estimulantes e podem constituir excelentes exerccios intelectuais, como acontece com a

    111 Vd. Por exemplo, Pranab Bardhan e Christopher Udry, Development Microeconomics, Oxford, 1999.

    112 Keynes (John Maynard), Thorie gnrale de lemploi, de lintrt et de la monnaie, Paris, Payot, 1968.

    113 Vd por exemplo: Andr Orlan, Lempire de la valeur - Refonder lconomie, Paris, Seuil, 2011 ; Jean-Pierre Dupuy, Lavenir de lconomie Sortir de lconomystification, Paris, Flammarion, 2012.

  • 34

    teoria dos jogos, mas a maioria delas repousa na iluso que a Economia , ou pode vir

    a ser, uma cincia dura, equivalente Fsica ou s Cincias Naturais, esquecendo que

    no se trata de uma cincia experimental mas antes de uma cincia social. certo que

    ningum contesta o interesse da aplicao da matemtica como um meio

    eventualmente valioso ao servio da Economia, mas no como um fim em si mesmo

    ao qual se subordinaria a Economia, o que tem levado, como frequentemente se

    constata, a alguma esclerose do pensamento econmico em muitas universidades nos

    ltimos vinte ou trinta anos114.

    Isto pode conduzir a interpretaes pouco curiais. O prprio Stanley Jevons (1835-

    1882), apesar do seu grande valor intelectual, deu um exemplo do desajustamento que

    pode existir entre uma anlise econmica pura e a realidade histrica quando,

    referindo-se ao que se chamaria mais tarde o Terceiro Mundo disse que actualmente

    as cinco partes do mundo so (em relao economia inglesa imperial) nossos

    tributrios voluntrios (sic)115, o que mostra bem que a ausncia de uma reflexo

    crtica e de uma contextualizao histrica, no pode ser substituda pela mecnica de

    modelos artificiais que perdem de vista as cincias sociais nas quais a Economia se

    inscreve.

    Com o observou o historiador Eric Hobsbawm, mais do que analisar teorias, o que os

    econometristas por vezes fazem descrever como seria o mundo se as teorias fossem

    correctas116. E acrescenta: o meu argumento sugere que a economia divorciada da

    histria como uma embarcao sem leme, e que os economistas sem a histria no tm

    a noo clara da direco em que a embarcao navega117.

    114 A confiana excessiva e por vezes arrogante na cientificidade de um discurso econmico unvoco e autossuficiente em matria de Desenvolvimento, quer dizer, alheio s contribuies doutras disciplinas como a Cincia Poltica, a Sociologia, a Histria ou a Filosofia tem dado resultados pssimos. A cacofonia das explicaes dos economistas e dos remdios que apontam para a crise mundial, tem contribudo para o descrdito crescente (pelo menos perante a opinio pblica) desta disciplina em muitos pases da Unio Europeia, sobretudo desde a crise de 2008 em que o mundo ocidental se encontra mergulhado,

    115 Cf. J. Austruy 1965: 67.

    116 Eric Hobsbawm, Escritos sobre a Histria, Lisboa, Relgio dgua, 2010: 88.

    117 Eric Obsbawm, ibidem : 82

  • 35

    Muitos cientistas sociais esquecem, como o sublinhavam F. Perroux, Ren Passet118,

    Gunnar Myrdal119, etc., que o desenvolvimento no um processo essencialmente

    econmico mas sobretudo social e poltico.

    Por outro lado, transferir as anlise de conjuntura e de crescimento em vigor nos pases

    industrializados do Norte para o contexto de subdesenvolvimento de pases do Sul

    uma forma de inrcia que continua ainda hoje a vigorar nas relaes Norte-Sul e que, no

    caso de frica, precisa de ser revista pelos seus intelectuais em funo da realidade

    concreta do pas onde vivem, como o revelam os camaroneses Axelle Kabou120 e Daniel

    Etounga Manguelle121 ou Edem Kodjo (Secrerio Geral da OUA 1978-1983)122 sem

    falar da gerao anterior como Jomo Kenyatta, Julius Nyerere, Lopold Senghor,

    Kwame Nkruma, etc. Esse tambm uma das funes dos filsofos africanos

    integrados em equipas de investigao interdisciplinares ou, pelo menos,

    multidisciplinares.

    Os fenmenos que encontramos nos pases em desenvolvimento so muitas vezes

    racionalizados pelos economistas, na tentativa, como se disse acima, de controlar o

    fluxo heterogneo e de o transformar em contnuo homogneo. Mas se traduzirmos sem

    precauo as mudanas que observamos aplicando taxas de crescimento ou variaes de

    ndices mais ou menos complexos que minimizam aparentemente esse heterogneo,

    podemos estar a suprimir especificidades estruturais (ou culturais) falseando o

    diagnstico dos problemas que temos que resolver123.

    118 Ren Passet, Les grandes reprsentation du monde et de lconomia travers lhistoire, Paris, Les Liens qui Librent, 2010

    119 Gunnar Myrdal, Aspectos polticos da teoria econmica, Rio de Janeiro, Zahar, 1985,

    120 Axelle Kabou, Et si lAfrique refusait le dveloppement ?, Paris, LHarmattan, 1991 e A. Kabou, Comment lAfrique en est arrive l, Paris, LHarmattan, 2010.

    121 D. Etounga Manguelle, LAfrique a-t-elle besoin dun programme dajustement culturel ?,Paris, Ed. Nouvelles du Sud, 1993

    122 Edem Kodjo, Et demain lAfrique, Paris, Stock, 1985 e E. Kodjo LOccident : du dclin au dfi, Paris, Stock, 1988.

    123 J. Austruy 1965: 22

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    Outro exemplo: a aplicao do conceito do homo aeconomicus por muitos neoliberais

    aos problemas do desenvolvimento em pases socialmente destruturados esquece pelo

    menos trs coisas: em primeiro lugar, que o Homo Economicus um dado social e

    no um facto natural; em segundo lugar, que o individuo no preexiste sociedade; e

    finalmente, ignora o pressuposto elementar, pelo menos na fase inicial da interveno

    desenvolvimentista, segundo o qual a soma dos custos actualizados superior soma

    dos rendimentos actualizados.

    Quando isso acontece, em termos estrictamente econmicos, os custos so imediatos e

    os rendimentos s chegam muito mais tarde e, nessa perspectiva tcnica, se aplicada

    rigidamente, e mesmo sem atender complexidade de que fala Edgar Morin, seria,

    por hiptese, anti-econmico procurar o desenvolvimento, uma vez que essa lgica no

    seria justificada ex-ante em termos de um crescimento equilibrado. No limite quase que

    se pode dizer, embora com algum exagero, que a obsesso do equilbrio de tantos

    economistas, , na prtica, contraditria.

    Se admitirmos a distino de Karl Popper entre o que cientfico (que pode

    empiricamente ser falsificvel ou refutvel) e o que no cientfico por no poder ser

    falsificado empiricamente, no podemos deixar de pensar nos limites de muitas teorias

    neoliberais quando estas se refugiam como acontece no poucas vezes na clusula

    ceteris paribus (ou seja uma tese s vlida se se mantiverem semelhantes todas as

    outras condies) o que inmeras vezes inverificvel, mas que permite referida

    tese (ou teoria) escapar ao confronto com a prova emprica da falsificabilidade, o que,

    segundo a maioria dos filsofos da cincia, tira a essa teoria o estatuto de

    cientificidade na medida em que infalsificvel. Mas numerosos neoliberais, mesmo

    os que se dizem popperianos (?), ignoram essa contradio e continuam a reivindicar a

    cientificidade do neoliberalismo em todas as circunstncias, mesmo quando os

    resultados da experincia contradizem os pressupostos tericos, obrigando-os a

    refugiarem-se em teorias ad hoc124. Essa dificuldade est patente nos remdios da

    124 Como relatam os manuais, perante a inesperada apario de um cisne negro quando a lei indutiva afirmava que todos os cisnes so brancos, tal constatao em vez de levar ao abandono do mtodo indutivo substituindo-o pelo mtodo dedutivo (mais precisamente: hipottico-dedutivo), leva frequentemente os cientistas irredutveis a sustentar uma hiptese ad hoc, segundo a qual no se trata de um cisne negro, mas de um cisne branco pintado de negro

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    austeridade contidos nos programas de ajustamento estrutural aplicados em frica a

    partir dos anos 1980, cduja fracasso os neoliberais no reconhecem.

    Na crise europeia que irrompeu no seguimento dos acontecimentos de 2008 nos EUA, a

    mesma austeridade apresenta resultados bem diferentes do que os peritos

    anunciavam (em especial no crescimento do desemprego) sem que esses mesmos

    peritos o queiram reconhecer, chegando at a mostrar-se infantilmente

    surpreendidos (sic), como est a acontecer com os efeitos das polticas recessivas de

    austeridade impostas a Portugal e a outros pases actualmente em crise na Unio

    Europeia. Ainda h quem acredite duro como ferro que o desemprego sempre

    voluntrio e que baixar os salrios um bom remdio para obrigar os assalariados a

    trabalhar, combatendo assim a crise do desemprego125. Qualquer feiticeiro de aldeia

    faria pelo menos to bem

    Essa e outras dificuldades tericas so muitas vezes esquecidas, impedindo a

    compreenso dos fracassos de certos modelos em termos sociais e econmicos.

    Curiosamente, os economistas acadmicos (no todos), ocupam-se raramente, ou

    nunca, de problemas que so modernamente do maior relevo, como, por exemplo, a

    Economia do Crime que ocupa uma fatia importantssima do produto mundial. Uma

    das primeiras especialistas a referir-se ao assunto foi a inglesa Susan Strange fundadora

    da corrente da Economia Politica Internacional (EPI) que tem feito escola, sobretudo

    nas sociedades anglo-saxnicas (curiosamente, muito menos em Frana)126.

    Recentemente saiu mais um livro de dois autores que no sendo economistas (um