acordo em desacordo yanina alall
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Artigo sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.TRANSCRIPT
Acordo em desacordo Yanina Alall
Para entender os porquês do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, é
necessário conhecer um pouco a história prévia, isto é, as decisões que os países lusófonos
tomaram anteriormente quanto à regulamentação da ortografia. Agora, uma aclaração deve
ser feita: ao nos referir aos países lusófonos, até 1990, não incluímos os países africanos,
pois, por diversos motivos, não participaram dos acordos prévios. Portanto, aludimos a
Brasil e Portugal.
A primeira vez que esses países assinaram um acordo foi em 1931. Como
consequência disso, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa foi redigido por
Portugal em 1940 e, em 1943, Brasil produziu o Pequeno Vocabulário Ortográfico da
Língua Portuguesa. Porém, ambos os países interpretaram de maneira diferente o acordo,
resultando em divergências nos respectivos vocabulários. Essa situação impulsionou um
novo acordo em 1945 que, no entanto, só foi aplicado por Portugal, pois, no Brasil, a
ortografia de 1943 continuou sendo a oficial.
Só em 1990 é que os países cuja língua oficial é o português - incluindo também,
nesse então, Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe e, só
a partir de 2004 quando conseguiu sua independência, Timor leste - conseguiram redatar
um novo acordo ortográfico, que entrou em vigor no Brasil e em Portugal em 2009.
Como veremos a seguir, a implementação do acordo é uma questão muito
controversa. Já desde sua consolidação, ainda no século XX, o acordo ficou à espera da
ratificação por parte dos países envolvidos para entrar em vigor e foi necessário esperar até
o século seguinte para - depois de acordar que a ratificação de três dos oito países seria
suficiente para o acordo passar a vigorar - “consumar o fato”. Embora pareça que nesse
momento acabaram as desavenças entre os países, ainda hoje continuam, pois os maiores
representantes da língua portuguesa no mundo continuam em desacordo: Brasil implantou a
reforma ortográfica e Portugal, não.
Dado que toda reforma na língua impacta nos falantes e que como indivíduos cada
um tem seu parecer, as repercussões do acordo não foram nem poucas nem semelhantes.
Pelo contrário, inclusive em uma mesma comunidade linguística foi possível encontrar
opiniões tão variadas quanto entre países.
Como é de se esperar, a maioria dos argumentos tanto a favor quanto contra o
acordo são de base linguística. Segundo as diferentes posições, parece que o que estaria em
jogo é a mudança ou não mudança da língua. Porém, alguns entendidos se esforçaram por
derrubar esse mito, explicando que não é a língua que muda, mas sua ortografia. Um deles
foi Carlos Alberto Faraco1, quem afirmou que “O Acordo não mexe na língua (nem
poderia, já que a língua não é passível de ser alterada por leis, decretos e acordos) – ele
apenas unifica a ortografia. (...) o Acordo só altera a forma de grafar algumas palavras. A
língua continua a mesma2.”.
Outro dos mitos em volta do acordo dizia respeito à pronúncia das palavras. Em
relação a isso, o escritor e presidente da Comissão de Língua Portuguesa do Ministério da
Educação (MEC), Godofredo de Oliveira Neto, explicou que tanto os sotaques e
regionalismos quanto as características lexicais e a sintaxe são mantidos, observando que,
por exemplo, “o António português continuará convivendo com o Antônio brasileiro3”. Da
mesma forma, a queda do trema não trouxe nem trará mudanças - pelo menos imediatas -
na pronúncia de palavras como tranquilo que, passados cinco anos da implementação da
reforma ortográfica no Brasil, não se modificou foneticamente. O que poderia, sim,
acontecer é que daqui a muitos anos a língua sofra alguma alteração e, como no caso do
espanhol, a vogal u deixe de ser pronunciada em palavras como no exemplo dado acima.
Agora, qual seria o problema disso, se a língua é um sistema em constante mudança?
Dentro do grupo dos conservadores mais temerosos das transformações linguísticas,
o lusitano Anselmo Borges4 avaliou o acordo:
Sem querer pormenorizar (o espectáculo é cada vez mais triste, pois já não tem espectadores, mas "espetadores" e os egípcios são cidadãos do "Egito"; quando um aluno escrever "a recessão do texto", para dizer "a recepção do texto", como explicar-lhe que não é recessão, se é de
1 Graduado em letras português/ inglês pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1972), mestre em
linguística pela Universidade Estadual de Campinas (1978) e doutor em linguística pela University of Salford
(1982). Fez pós-doutorado em linguística na University of California (1995-96). É professor titular
(aposentado) da Universidade Federal do Paraná.2 FARACO, C. A. “Novo acordo ortográfico”. Disponível em:
http://www.parabolaeditorial.com.br/downloads/novoacordo2.pdf Acesso: 09/09/2014.3 Disponível em: http://opiniaoenoticia.com.br/opiniao/tendencias-debates/acordo-ortografico-os-pros-e-
os-contras-de-uma-unificacao/ 4 Doutor em Filosofia pela Universidade de Coimbra e professor da Faculdade de Letras dessa Universidade.
recessão que constantemente ouve falar?), considero-o isso mesmo: inútil5.
Além de exagerado, o comentário de Borges parece não levar em conta
determinados fenômenos linguísticos dos quais qualquer pessoa entendida em língua
poderia dar conta. Por exemplo, que o fato de não pronunciar o c ou o p em determinados
contextos corresponde a processos fonéticos que fazem parte da própria evolução da língua,
e é por isso que palavras como acto se pronunciam e se escrevem ato no Brasil, sem por
isso gerar nenhum tipo de ambiguidade ou confusão de significado. Aliás, se essa mudança
se desse em outras palavras, como as citadas pelo filósofo - embora não pareça possível -,
com certeza, os falantes teriam a capacidade de interpretar corretamente seu significado,
pois é neles que a língua se constitui e por meio dos quais é transmitida entre as diferentes
gerações. O que parece estar por trás do comentário de Borges não é outra coisa que, além
de uma desqualificação da língua falada, uma crítica ao português brasileiro, que, não raro,
é considerado uma “deformação do bom português”, pois é maiormente na língua brasileira
que se deu o fenômeno de apagamento dessas consoantes surdas.
Em alguns argumentos a favor do acordo ortográfico, é possível encontrar
justificações fracas que dificilmente contribuam para convencer as pessoas que ainda não
sabem qual posição tomar. Aliás, quando contra-argumentadas, essas opiniões perdem peso
em relação a outros argumentos que as questionam. Um exemplo claro de argumento fraco
é que a nova ortografia simplifica a escrita, afirmação difícil de provar. Em contestação, o
professor Belmiro Valverde Jobim Castor6 se referiu às mudanças em relação ao uso do
hífen, argumentando que:
Ao longo de minha vida profissional, li muito sobre subdesenvolvidos e também sobre sub-desenvolvidos, sobrecarga e sobre-carga, autodeterminação e auto-determinação e nunca tive qualquer dificuldade para entender que eram as mesmas coisas, escritas de maneira diversa. Agora, para escrever o português correto, devo me lembrar de investigar se as palavras componentes guardam ou não a “noção de composição”, de verificar se a segunda palavra começa com as letras h, r ou s ou ainda com vogal diferente da que encerra a primeira palavra. Isso, é claro, depois de me assegurar que – neste último caso – a letra r vem (ou não)
5 BORGES, Anselmo “O acordo ortográfico: inútil e prejudicial”. Disponível em:
http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=2419561&seccao=Anselmo
%20Borges&tag=Opini%E3o%20-%20Em%20Foco&page=-1 Acesso: 09/09/20146 Professor do Doutorado em Administração da PUCPR e membro da Academia Paranaense de Letras.
do prefixo e o segundo elemento também começa com a mesma consoante.7
Difícil não concordar. Tanto no caso das palavras hifenizadas ou não como nas
mudanças que se estabeleceram para as regras de acentuação, em geral, qualquer pessoa
poderia ler um texto com a velha ortografia ou mesmo com a ortografia portuguesa sem por
isso ter problemas na compreensão. Porém, em relação à escrita, é fácil contestar o
argumento de Castor, pois hoje em dia a ferramenta mais utilizada para escrever é o
computador, que marca ou corrige as palavras sem deixar tempo para duvidar enquanto se
escreve. Caso contrário, é só fazer uma rápida pesquisa na internet ou em um dicionário,
pois, com as possibilidades que a tecnologia oferece nesses tempos, não há desculpa para
ficar com dúvidas.
Outros tipos de opiniões têm como eixo temático a identidade cultural dos países
envolvidos no acordo. Dentre elas, interessa-nos destacar duas. A primeira é a de José Faria
da Costa e Francisco Ferreira de Almeida, professores da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra:
Em um tempo de crise do Estado-Nação, de soberania diluída em espaços políticos e económicos de integração e, consequentemente, de esbatimento das mais lídimas marcas identitárias dos povos, a língua constitui, sem dúvida, um dos últimos redutos do seu específico modo de ser e, por isso, um instrumento privilegiado da sua afirmação neste "admirável mundo novo" de "constelações pós-estaduais"8.
A segunda opinião é do historiador, professor universitário, político e comentador
político português, José Pacheco Pereira, quem escreveu que “O acordo vai a par do
crescimento facilitista da ignorância, da destruição da memória e da história, de que a
ortografia é um elemento fundamental, a que assistimos todos os dias.9” e que:
7 VALVERDE JOBIM CASTOR, B. “Para que e a quem serve o acordo ortográfico?”. Disponível em:
http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?id=845865 Acesso: 11/ 09/ 2014.8 DE FARIA COSTA, J. e FERREIRA DE ALMEIDA, F. “O chamado <Novo Acordo Ortográfico>: um descaso
político e jurídico”. Disponível em:
http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=2300823&page=-1 Acesso: 11/ 09/ 2014.9 PACHECO PEREIRA, J. “Acordo ortográfico: acabar já com este erro antes que fique muito caro”. Disponível
em: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/acordo-ortografico-acabar-ja-com-este-erro-antes-que-
fique-muito-caro-1620079 Acesso: 11/ 09/ 2014.
Se voltarmos ao lugar-comum em que se transformou a frase pessoana de que a “minha pátria é a língua portuguesa”, o acordo é um acto antipatriótico (...) e de consequências negativas para a nossa cultura antiga, um dos poucos esteios a que nos podemos agarrar no meio desta rasoira do saber, do pensar, do falar e do escrever, que é o nosso quotidiano.10
É fácil reconhecer nas duas opiniões a relação que os comentaristas estabeleceram
entre língua e pátria, língua e cultura. Por isso, mais uma vez é necessário esclarecer que,
como foi referido acima através da opinião de Faraco, o acordo só modifica a ortografia,
não a língua. Agora, não é fácil de compreender a relação entre ortografia, memória e
história proposta no último comentário. Será que para os portugueses terem memória e
história é preciso que lembrem como eram acentuadas as palavras no século passado? Para
isso existe a etimologia, que estuda a origem, a formação e a evolução das palavras. Caso
contrário, deveríamos voltar a falar latim para termos história? Mais uma vez, o espírito
conservador é o que se impôs nessas opiniões.
Em se tratando de argumentos de base econômica, em geral, o acordo foi muito
criticado pelos custos editoriais que geraria o fato de ter que implementar a nova ortografia,
sobretudo em revisões, reedições e novas produções. Porém, é proveitoso para a circulação
de livros, pois uma mesma edição poderia ser vendida em qualquer um dos países
lusófonos. No entanto, por trás disso, está o negocio das editoras brasileiras, pois é inegável
a perda de concorrência no mercado que as editoras portuguesas sofreriam, uma vez que
são também responsáveis pela edição da maioria dos autores africanos.
O professor Belmiro Valverde Jobim Castor também se pronunciou em relação às
editoras:
O interesse comercial é óbvio: como a grafia terá de ser adaptada em até três anos, é inevitável que todos os dicionários e livros-texto sejam adaptados às novas regras e o MEC já anuncia que, a partir de 2010, suas compras de livros didáticos exigirão o respeito ao acordo. Centenas de milhões de livros já editados não poderão mais ser reaproveitados.11
Quanto à edição de livros didáticos, seria possível ter pensado, antes da reforma,
que não poderiam ser reaproveitados, mas, na verdade, é uma afirmação um pouco ingênua,
10 Idem anterior.11 VALVERDE JOBIM CASTOR, B. “Para que e a quem serve o acordo ortográfico?”. Disponível em:
http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?id=845865 Acesso: 11/ 09/ 2014.
pois é sobretudo com a finalidade de não reaproveitar os livros didáticos que as editoras se
preocupam, e por isso lançam ao mercado livros novos a cada ano. Enfim, com ou sem
reforma, o interesse comercial das grandes editoras é uma realidade.
Finalmente, não queremos deixar de comentar um argumento a favor do acordo no
qual, passados alguns anos de sua pronunciação, pode se perceber certa contradição: “A
unificação vai reforçar a influência da língua portuguesa na comunidade internacional. A
produção científica dos países lusófonos vai poder ser veiculada mais facilmente e criará
um bloco mais coeso na política global.12”.
Primeiro, seria interessante saber qual é essa produção científica à qual o autor do
comentário, Godofredo de Oliveira Neto, se refere, pois pelo menos a atual produção
científica dos países lusófonos não parece ter a importância e o volume suficiente como
para gerar problemas de veiculação. Segundo, a língua portuguesa e a quantidade de
falantes são uma realidade com ou sem reforma ortográfica, por isso, a influência na
comunidade internacional não teria por que se ver reforçada, por exemplo, com o fato de ter
só um documento e não dois em reuniões de órgãos internacionais ou um mesmo exame de
proficiência em língua portuguesa para todos os países. Terceiro e último, hoje, é um pouco
incompatível pensar em um bloco mais coeso politicamente se nem com acordo ortográfico
os países conseguiram concordar.
Concluindo, talvez uma das razões mais importantes pelas quais Portugal ainda não
reformou sua ortografia tenha a ver com a questão editorial, pois é impossível que concorra
com uma indústria tão desenvolvida quanto a brasileira. Por outro lado, a própria
idiossincrasia dos portugueses não parece ser dada aos câmbios, pelo contrário, as posições
conservadoras abundaram nos artigos de opinião publicados em Portugal e, julgamos, o
peso que a questão de ser “os donos da língua portuguesa” tem no imaginário da sociedade
contribui a fomentar o espírito de “conservação da língua” como patrimônio cultural, tudo o
que faz pensar em que, passados cinco anos da entrada em vigor do último acordo
ortográfico, não será fácil que a posição atual de Portugal mude.
12 Disponível em: http://opiniaoenoticia.com.br/opiniao/tendencias-debates/acordo-ortografico-os-pros-e-
os-contras-de-uma-unificacao/