aconteceu no século vinte

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Você vai conhecer a história de um jovem que repentinamente perdeu tudo que possuía de bom na vida. Chegou à miséria absoluta e, mais que tudo, perdeu a identificação com a sociedade!

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Aconteceu no

Século Vinte

Romance

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Daniel de Carvalho

São Paulo 2011

Aconteceu no

Século Vinte

Romance

Page 5: Aconteceu no Século Vinte

Copyright © 2011 by Editora Baraúna SE Ltda

Capa AF Capas

Projeto Grá&co e DiagramaçãoAlline Benitez

Parecer LiterárioVanise Macedo

Revisão gramaticalPriscila Loiola

ImagensCorel Gallery

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � �� � � � �� � � � � � � � � � � � � �� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � ! �" � � # $ % & � & ' � % $ � � � ! � ' � �! � ( � � � � � ) � � � � � � � " � * + � � � �! � , ! ! � � � � � & , $ � $ �� � - � & � ! � ! � . � � / & ! 0 � � & � � � ! ! & � � � ! ! % ' % .� � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � � �

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br

Rua Januário Miraglia, 88CEP 04547-020 Vila Nova Conceição São Paulo SP

Tel.: 11 3167.4261

www.editorabarauna.com.br

www.livrariabarauna.com.br

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Aconteceu no Século Vinte

Dedico este romance Aconteceu no Século Vinte à minha

querida esposa Neusa.

Daniel de Carvalho

Setembro de 2007

Piracicaba - SP

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Daniel de Carvalho

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Aconteceu no Século Vinte

Janeiro de 1970

Cidade de São Paulo

Um bairro da periferia

ESTAVA TÃO QUENTE naquele dia, às quatro horas da tarde, que a cidade mais parecia um grande forno. O sol ainda ardia insistentemente no céu azul desprovido de nuvens. O calor estava insuportável. Aquele calor causticante que queima e arde na pele. Numa ladeira de terra, cheia de terrenos baldios e casas empoeiradas, crianças descalças e suadas brincavam rui-dosamente correndo de um lado para outro sem se importar com aquela fornalha. Cães corriam e ladravam misturando-se às crianças em grande algazarra. Era possível ver as radiações de calor emanando do cimento quente das calçadas e das te-lhas de barro que cobriam as pequenas casas. Estava abafado! O ar totalmente parado. Nenhum vento, nenhuma brisa para refrescar. Os ramos das árvores, sem movimento, lembravam a paisagem inerte de uma pintura. Casas, árvores, capim, tudo estava coberto por uma fina camada de pó proveniente da ter-ra estorricada. Algumas donas de casa cuidavam do quintal,

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outras lavavam roupas, e outras conversavam preguiçosamente junto às cercas, removendo constantemente, com as costas da mão, o suor acumulado na testa.

Um homem de aparência esquisita vinha descendo a ladei-ra. Caminhava aos tropeços de forma vacilante. Alheio ao intenso calor e a tudo que o rodeava, seu caminhar era indeciso e des-compassado. Cada vez que seus calcanhares tocavam o solo, ele contorcia o rosto sentindo dolorosos trancos no peito. Seus pas-sos se alternavam entre vagarosos, como de um zumbi, e rápidos, como de quem foge de alguma coisa. Não conseguia caminhar em linha reta. Ora descambava para a esquerda, ora para a direita, suportando com dificuldade o peso do corpo. Nem as mulheres que conversavam em frente de suas casas, nem as crianças na rua, tinham percebido até então a estranha figura daquele homem.

O límpido azul do céu vinha cedendo espaço para nu-vens negras que se formavam ameaçadoramente. Uma brisa morna começou então a soprar timidamente. Brisa que aos poucos foi se tornando mais forte e mais fria.

— Parece que vamos ter chuva! — comentou, olhando para o céu e bocejando longamente, uma dona de casa que conversava na cerca com sua vizinha.

— É melhor recolher a roupa do varal! — lembrou a vizinha.

— Vem pra dentro, João! — gritou outra senhora, cha-mando o filho que brincava na rua.

Percebendo que o tempo estava prestes a mudar, as mulhe-res da vizinhança apressaram-se a chamar os filhos para entrar.

Aquele homem continuava descendo a rua como se nada mais existisse no mundo além dele mesmo. Seu sem-

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blante ausente não revelava seu estado interior, exceto pelas constantes caretas de dor e de sofrimento físico. Seu olhar focalizava somente o horizonte. As crianças notaram sua pre-sença e pararam de brincar para observá-lo. Curiosas, tenta-ram falar com ele. Nenhuma resposta! Talvez ele nem tivesse tomado conhecimento delas.

O ventou passou a rugir furiosamente sacudindo portas e janelas, ameaçando derrubar e arrastar tudo que encontrasse pela frente. As mães, apreensivas com o temporal iminente, sa-íam à rua insistindo com os filhos para que entrassem. Então, elas perceberam aquele homem que parecia doente ou alcooli-zado. Uma delas aproximou-se:

— O senhor precisa de ajuda?Esperou por uma resposta que não veio. Insistiu e nada!

O homem continuou seu caminho ignorando-a por completo. Como o tempo começou a piorar rapidamente, a mulher deu de ombros e voltou correndo para sua casa. Aos poucos, as crianças também foram se recolhendo, até que a rua ficou deserta. Exce-to pela presença daquele indivíduo que a tudo ignorava.

O vento começou a soprar com maior violência. Nuvens negras tomaram conta do céu e escureceu rapidamente. Fortes rajadas de vento atingiam as casas e a vegetação ameaçando romper vidraças e arrancar os galhos das árvores. A poeira da rua era arremessada com força contra casas, árvores e arbustos. Rodamoinhos se formavam aqui e acolá carregando consigo folhas e detritos para todos os lados.

As poucas janelas que ainda estavam abertas começaram a ser fechadas rapidamente. Os moradores se davam conta da fúria da tempestade que se armava lá fora. Mas nada disso pa-recia afetar aquele homem. Ele mantinha sua sofrida caminha-da hesitante e irregular.

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Se alguém ainda o estivesse observando, teria a impressão de que lhe era indiferente ir para frente, para os lados, parar ou prosse-guir, ir mais depressa ou mais devagar. Teria a impressão de que ele soubesse para onde desejava ir. Nem, se desejava ir a algum lugar!

As rajadas de vento foram se tornando cada vez mais aterra-doras. O atrito contra as casas e outras barreiras naturais produzia assobios fantasmagóricos como o choro de almas penadas. Janelas e portas eram sacudidas assustadoramente. Vibravam tanto, que as pessoas temiam que suas casas fossem arrancadas do chão.

As roupas de um varal, que a dona de casa não tivera tempo de recolher, agitavam-se furiosamente contorcendo-se e embaraçando-se umas às outras. Desesperada, a mulher saiu e tentou recolhê-las. O vento quase a arrastava para longe. Os fortes jatos de poeira machucavam-lhe o rosto, os braços e as pernas. Seus cabelos esvoaçam enquanto ela tentava, em vão, tirar algumas peças do varal. Os pegadores não aguentavam mais a pressão e as peças se soltavam voando para longe em ziguezague. A mulher, atordoada, desistiu e voltou lutando contra o vento, até conseguir entrar e trancar a porta.

A fortíssima ventania não conseguia deter o homem, apenas dificultava ainda mais sua marcha. Ele estava impas-sível à fúria do vento e da poeira que chicoteavam seu rosto. Seus lábios, narinas, cabelos e sobrancelhas estavam cobertos de pó. Sentia o gosto da terra em sua garganta. Mas nada disso impedia sua marcha!

A natureza parecia ter ficado de mal com os homens. Es-curecera por completo. Não eram ainda cinco da tarde e já pa-recia noite. Dentro das casas, o silêncio era total. Estavam com medo! Ninguém se aventurava a abrir portas ou janelas para ver o que acontecia lá fora. Um repentino e violento estalo sacudiu

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toda a região. O barulho da trovoada, seguido pelo clarão do relâmpago, foi alarmante. Os moradores das casas se agacharam instantaneamente e permaneceram encolhidos até entenderem o que tinha acontecido. Com os corações disparados, se olha-vam assustados sem dizer uma só palavra. O trovão fora conco-mitante com o intenso clarão do relâmpago, o que indicava que a descarga elétrica ocorrera muito próxima do local.

Lá fora, o homem deteve-se por uma fração de segundo, sem procurar, entretanto, proteger-se ou localizar de onde vie-ra o estrondo. Continuou sua marcha, indiferente e cambale-ante. Suas faces estavam rígidas. Os olhos vidrados e o olhar perdido. Nenhuma expressão! Nada!... Nada que revelasse o que se passava em seu íntimo.

Os raios começaram a riscar freneticamente o céu em to-das as direções, seguidos pelo ribombar das trovoadas. A chuva finalmente desabou nervosa com toda a força que a natureza lhe permitia. Foi um aguaceiro indescritível. Uma tormenta! Sugeria um ajustar de contas entre o céu e a terra. De repente, um curto-circuito num transformador e a consequente queda da energia elétrica deixaram o bairro mergulhado em total escuridão.

A estranha figura não dava a mínima demonstração de pre-tender abrigar-se. Estava com a roupa encharcada. Tinha seus pas-sos ainda mais dificultados pela lama que se formava. Era apenas um corpo se locomovendo na escuridão sob o violento temporal. Mas no interior daquele corpo ocorria uma tormenta ainda mais forte. Tão forte, que a fúria da natureza não conseguia incomodá-lo. Seu tormento era muito superior que a tormenta externa!

Um segundo estrondo metálico, mais forte que o primei-ro, pareceu ter acabado com o mundo. Por alguns segundos, ficou tão claro como o dia, e o cenário se mostrou arrasador. Casas destelhadas, cercas caídas, árvores arrancadas como se fossem de brinquedo. A rua estava coberta de lama misturada

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com galhos, folhas e detritos de toda espécie.Veio um terceiro estrondo que finalmente deteve o ho-

mem. Seu corpo se contorceu em profunda angústia. Seus pas-sos começaram a tender mais para o lado esquerdo, até que suas pernas roçaram um pequeno barranco que servia como meio-fio. Perdeu o equilíbrio. Esforçou-se para permanecer de pé, mas as rajadas de água e vento o empurravam furiosamente como se quisessem liquidar de vez com o duelo. Seus joelhos não su-portaram. Caiu de quatro e suas mãos escorregaram na enxur-rada que corria turbulenta pelo meio-fio. Ficou com metade do corpo imerso na corredeira. Tentou ainda levantar-se, e com indescritível esforço, colocou-se de pé. Mas por pouco tempo. Ao tentar reiniciar a caminhada um tremor alucinatório tomou conta de seu corpo. Os nervos da face começaram a repuxar. Sua testa franziu e seus olhos se arregalaram ante uma dor insupor-tável. A tormenta externa somou-se à interna e ele finalmente tombou. Caiu de vez! Não levantou mais. Ficou inerte junto ao meio-fio. A turbulenta enxurrada aumentou de intensidade passando ruidosamente por cima de seu corpo formando um grande leque de água barrenta. Até que o encobriu totalmente. Já não se poderia distinguir o homem sob a água e a lama.

Depois de quatro horas de temporal, a intensidade da chuva começou a diminuir. Já eram onze da noite, quando finalmente parou de chover. A ladeira terminava numa várzea que ficou totalmente inundada. O dia seguinte seria um trans-torno para toda a cidade. Dificilmente, os moradores daquela rua conseguiriam transpor a várzea para irem ao trabalho. Mas a chuva passou de vez. Cessaram os relâmpagos e as trovoadas. A natureza deu-se por satisfeita. A iluminação elétrica foi res-tabelecida. Todos finalmente puderam dormir mais tranqui-los. O dia seguinte amanheceu lindo e ensolarado!

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Aconteceu no Século Vinte

Janeiro de 1945

Cidade de São Paulo

Bairro de Santana

ERA UMA SEXTA-FEIRA. O fim de tarde estava deli-cioso, com Sol ameno e uma brisa refrescante. A Rua Alfredo Pujol estava com pouco tráfego naquele horário. De vez em quando, passava um automóvel ou um daqueles ônibus azuis da CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos). Bem no meio da rua, sobre o leito de macadame, destacavam-se os trilhos do trem que separavam as duas mãos de direção.

O jovem Edmundo e seu filho Jeremias, de cinco anos, caminhavam pela calçada conversando animadamente. Era no-tório o grande afeto que envolvia aquelas duas criaturas. Jere-mias prestava atenção a todos os detalhes da rua e das casas. O menino observava, com curiosidade, as pessoas com quem eles cruzavam e as mulheres debruçadas nos peitoris das janelas. Fazia mil perguntas a Edmundo, que nem conseguia responder a uma das perguntas, e lá vinha outra. Era a vivacidade típica de uma criança que está começando a conhecer o mundo.

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Repentinamente, um apito forte e agudo fez o menino es-tremecer. Jeremias estancou assustado. Voltou-se e viu, com os olhos arregalados e a respiração contida, aquilo que se aproxima-va! Apertou a mão do pai como quem pede proteção. Seu coração estava disparado. Tentava entender o que era aquela “coisa”.

— Pai! Que quê é aquilo que vem vindo lá no meio da rua?— Ahh! Aquilo? — respondeu Edmundo sorrindo. — É

o trem. É a Maria Fumaça!Jeremias, que nunca passara pela Rua Alfredo Pujol e

nunca vira um trem, continuava tenso e imóvel, olhando com um misto de medo e curiosidade para aquela coisa barulhenta e espalhafatosa que se aproximava.

— Vamos andando, Jeremias — disse Edmundo.Mas Jeremias estava hipnotizado e resistia ao leve esforço

do pai em puxá-lo para que continuassem a caminhar. Vendo que Jeremias estava tão interessado, Edmundo esperou que o trem passasse por eles.

— Pai! Ele vai passar aqui perto!!! — exclamou Jeremias apreensivo sem tirar os olhos da enorme composição que se aproximava soltando grande coluna de fumaça.

A máquina apitou outra vez ao passar por Edmundo e Je-remias, reduzindo a velocidade e começando a fazer uma curva totalmente à direita, como se estivesse envolvendo ameaçado-ramente o atônito Jeremias.

— O que quê o trem tá fazendo, pai?— Está parando para os soldados que vêm da cidade,

descerem.Jeremias não tirava os olhos do trem enquanto bombar-

deava Edmundo com perguntas. Estava muito impressionado. Como lhe parecia imponente e assustadora a grande máquina de ferro que suava cuspindo brasas e exalando vapor! Ele nun-ca vira uma cena impressionante como aquela.

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As pessoas começaram a saltar das plataformas dos vagões de madeira, mesmo antes de o trem parar por completo.

Jeremias suspirou mais descontraído.— Pra onde os soldados vão?— Para aquele Quartel do Exército — respondeu Ed-

mundo apontando para o outro lado da rua.Parados perto da locomotiva, Jeremias sentia o calor da cal-

deira, o cheiro da fumaça da lenha e o cheiro do vapor. A Maria Fumaça voltou a apitar enquanto os rangidos do atrito de ferro com ferro acompanhavam o vagaroso reinício do movimento do trem.

— Agora vamos, Jeremias! — voltou a insistir Edmundo, puxando levemente a mão do menino.

Mas Jeremias só cedeu e voltou a caminhar depois que viu o último vagão desaparecer numa curva mais adiante.

— Prá onde o trem tá indo agora, pai?— A próxima estação é a de Santa Teresinha. Depois ele pas-

sa por muitas outras até chegar à última, que é a da Cantareira.— Aqui também é uma estação? — perguntou Jeremias

observando todos aqueles soldados atravessando a rua e en-trando no quartel.

— Aqui não é bem uma estação. É só uma parada conhe-cida como a Parada do Quartel.

A essa altura, os dois já estavam começando a descer a ín-greme e curta ladeira que se iniciava bem em frente ao quartel.

— Você não está curioso para conhecer a nossa nova casa? — perguntou Edmundo, acariciando os cabelos negros do filho.

A família de Jeremias tinha se mudado para uma nova casa no dia anterior. Durante a mudança, o menino ficara com seus avós, onde seu pai fora buscá-lo naquela tarde.

— A casa é bonita, pai?

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— Você vai gostar! Tem um quintal grande para você e sua irmã brincarem. Tem um quarto só para você! E o melhor de tudo, é que a casa é nossa!

— O senhor comprou?— Comprei.

No final da ladeira, havia uma grande chácara à direita. Era um quarteirão inteiro com grandes canteiros de hortaliças, pomares e bambuais. No meio da chácara, erguia-se um fron-doso jatobá sob o qual, numa bica, algumas pessoas enchiam de água seus vasilhames. Ao lado do jatobá, uma bucólica casinha de madeira destacava-se na paisagem. Lá no fundo da chácara, havia um casarão rodeado de grandes nogueiras. Edmundo cha-mou a atenção de Jeremias, apontando para a chácara.

— Olha que chácara bonita, Jeremias!— Pai! Nós vamos ver aquele trem outra vez?— Agora que vamos morar aqui, você vai ver o trem

muitas vezes!Jeremias não tinha parada. Esticou-se na ponta dos pés,

debruçando-se num pequeno parapeito paralelo à calçada, para olhar o que havia lá em baixo.

— Olha Pai!!! Um rio!!!Edmundo olhou para baixo, descansando as mãos sobre

os ombros do garotinho.— É só um córrego.— Córrego?— É. Córrego é um riozinho!— O riozinho tá passando embaixo da rua? — pergun-

tou admirado.— Está. Ele atravessa por baixo da rua e depois conti-

nua — confirmou Edmundo, que aproveitou para apreciar melhor o córrego.

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A água era límpida e corria calma sobre um leito de pe-dras provocando um agradável chiado.

— Tem peixe? — quis saber Jeremias.— Deve ter... não sei, não... Agora vamos?— Vamos!

Alguns metros depois, à direita, começava a rua em que eles iriam morar.

— Olha, Jeremias! Essa é a rua onde fica nossa casa nova. Chama-se Rua dos Sonhos.

Era uma rua de terra com alguns terrenos vazios. Havia casas modestas e outras mais sofisticadas. As casas e os terrenos vazios que ficavam do lado direito da rua, tinham, ao fundo, o córrego que fazia divisa com a chácara.

Muitas crianças estavam brincando na rua. Eram me-ninos e meninas entre quatro e dez anos de idade. Jeremias caminhava devagar observando com interesse a correria e as brincadeiras da criançada. Percebendo o interesse do fi-lho por aquelas crianças, que em breve poderiam ser seus amiguinhos, Edmundo diminuiu o passo. Algumas das crianças, notando o homem e o menino, interromperam a algazarra para observá-los.

Edmundo parou um pouco distante de sua nova casa, para que eles pudessem admirá-la de longe, antes de entrar. A casa ficava à esquerda, exatamente no ponto em que começava um pequeno aclive.

— É a nossa casa? — perguntou Jeremias entusiasmado.— Sim. Essa é a “nossa” casa! — murmurou exultante

Edmundo, mais para si mesmo que para Jeremias.Do local em que estavam, não se podia ver a casa, mas

apenas um muro alto, de tijolos, sem revestimento. A entrada

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era um portão verde de sarrafos de madeira, através dos quais, via-se uma escada de tijolos à vista.

— Vamos entrar? — convidou Edmundo.Os dois já estavam por abrir o portão, quando ouviram

uma voz com sotaque estrangeiro.— Você morra aí?Olharam para trás. Era um garotinho vermelhão e sar-

dento, de cabelos louros e olhos azuis, que olhava sorridente para Jeremias.

— Moro — respondeu Jeremias orgulhoso de sua nova casa que ainda nem conhecera.

— Eu morro ali! — disse o menino apontando para uma casa do outro lado da rua.

— E como você se chama? — perguntou Edmundo ao menino.

— George. Eu sou inglês! — respondeu o garotinho com um cativante sorriso.

— Ele é o que, pai?— Inglês. Quer dizer que ele nasceu na Inglaterra.— Vamos brincarr? — convidou George.— Outro dia vocês podem brincar — disse Edmundo

sorrindo para o garotinho.— Tchau! — disse George, que voltou correndo para o

meio da rua misturando-se às outras crianças.

— Agora vamos entrar — disse Edmundo tirando do bolso a chave do portão.

Teriam que subir uma escada de tijolos a céu aberto para chegarem ao nível do terreno onde a casa estava construída.

— A casa tá lá em cima, pai?— Está. Vamos ver se você vai gostar.A escada era ladeada por taludes com viçosas hortênsias

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que invadiam quase por completo o espaço dos degraus. En-quanto subiam, Jeremias deliciava-se deixando a mão deslizar suavemente pelas flores.

— Você que plantou estas flores, pai?— Não. Elas já estavam aqui quando compramos o terreno.Chegaram a um terraço de chão gramado, a céu aberto, com

o muro da frente servindo de parapeito. No terraço, um formoso pé de acácia se impunha pela beleza de suas flores amarelas

— Essa árvore também já tava aí quando o senhor com-prou o terreno?

— Não. Eu ganhei a muda e eu mesmo plantei antes de construirmos a casa lá no fundo — respondeu Edmundo olhan-do fascinado para os lindos galhos repletos de cachos de flores.

Jeremias largou subitamente a mão de Edmundo e cor-reu para o parapeito.

— Olha a rua lá embaixo, pai!— Não suba no muro!A curiosidade de Jeremias, vendo a rua e toda a criançada

brincando lá embaixo, era muito grande. Se Edmundo não o chamasse ele se esqueceria da vida.

— Você não quer ver a mamãe e a Alaíde, Jeremias?

Depois do terraço a céu aberto, o terreno era plano e comprido. Uma calçadinha estreita, ao longo do muro do vizi-nho, conduzia até o fundo, onde ficava a casa. A construção era tão recente que se sentia o cheiro da tinta e do madeiramento novo. A casa, em forma de “U” com sua parte aberta voltada para quem chegasse, sugeria um abraço acolhedor. Junto à en-trada, havia um jardim de viçosos amores-perfeitos, aquelas florezinhas que parecem carinhas sorridentes. Os alegres amo-res-perfeitos pareciam dar boas-vindas aos recém-chegados.

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— Manhêêê! — gritou Jeremias lá da calçadinha.Imediatamente, surgiram na porta dona Julieta, mãe

de Jeremias, e a filha de dez anos, a Alaíde. Julieta beijou carinhosamente o marido e pegou Jeremias no colo cobrin-do-o de carícias.

— Estava com saudades da mamãe, queridinho? Como foi lá na vovó? Está gostando da casa nova?

— Querida! Deixe que ele respire — ria Edmundo en-quanto pegava Alaíde no colo.

Alaíde desvencilhou-se do pai, tirou Jeremias do colo da mãe, e começou a correr com ele pelo terreno. — Vem! Vou te mostrar tudo...

Neste instante, ouviu-se ao longe o apito da Maria Fumaça. Jeremias estancou atento. Alaíde percebeu o interesse do irmão.

— É o Trem da Cantareira. Daqui dá pra ver! — disse Alaíde apontando em direção à chácara.

Lá ao longe, além da chácara, a Maria Fumaça se apron-tava para partir da Parada do Quartel em direção à Santana.

Jeremias nem piscava.— Puxa! Dá pra ver o trem daqui da minha casa!