acesso à justiça- eduardo motta

Upload: marisociologa

Post on 08-Apr-2018

225 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    1/38

    1

    ACESSO JUSTIA, CIDADANIA E JUDICIALIZAO NO BRASIL

    Autor: Luiz Eduardo Motta*

    1. Introduo

    Neste artigo, farei um mapeamento dos principais conceitos que norteiam as

    aes dos operadores do direito (defensores pblicos, procuradores, magistrados,

    advogados). Iniciarei definindo o princpio de acesso Justia e a articulao deste

    com o conceito de cidadania, tendo como elemento intermedirio de ambos a

    democracia moderna, sendo esta percebida enquanto um processo dinmico erenovador. Definidos esses postulados, retomarei o debate do fenmeno da

    judicializao, na medida em que esse fato poltico e social pressupe os elementos

    de acesso Justia e de cidadania. Estabelecerei, assim, uma distino da

    judicializao em relao ao movimento que envolve o Direito alternativo e o uso

    alternativo do Direito, que apesar de os ltimos implicarem mobilizao dos

    operadores jurdicos, em nada se assemelham ao fenmeno da judicializao.

    2. Acesso Justia

    A questo do acesso Justia tem sido um dos temas mais recorrentes no

    campo da Sociologia do Direito nos ltimos trinta anos, e tem como ponto de

    partida a obra de Cappelleti e Garth (1988) a respeito dessa problemtica. De

    acordo com Eliane Junqueira (1996), o tema sobre o acesso Justia comeou a

    despertar o interesse dos pesquisadores brasileiros nos anos 80, mas as

    motivaes no eram as mesmas dos cientistas sociais europeus ou

    estadunidenses, j que esses vinculavam a questo do acesso Justia expanso

    dos servios do welfare state (em meio crise desse modelo estatal que se iniciou

    nos anos 70); tampouco no que se refere afirmao de novos direitos de cunho

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    2/38

    2

    coletivo e difuso, como os do consumidor, meio ambiente, tnico ou sexual. O que

    prevalecia nos anos 80, no Brasil, eram os canais alternativos de Justia, paralelos

    ao Estado, este sendo identificado como uma representao poltica autoritria, e

    da a impossibilidade do enfoque ao acesso Justia aos canais institucionais

    oriundos do aparato estatal. A nfase era, sobretudo, no papel das comunidades na

    resoluo dos seus conflitos, a exemplo do trabalho de Boaventura de Sousa Santos

    sobre a favela do Jacarezinho, nos anos 70. Ademais, o tema do acesso Justia

    pelo Estado estava diludo e sobredeterminado pelo debate daquele contexto em

    que enfatizava a ampliao da cidadania participativa, da afirmao e da garantia

    das liberdades negativas, e na emergncia do papel desempenhado pelos

    movimentos sociais que estavam se estabelecendo naquele contexto. Com efeito,houve, na virada dos anos 70 para os 80, o surgimento de novos atores polticos e

    sociais que exerceram forte presso para a criao do Estado democrtico de

    direito e de uma cidadania ativa.1

    De acordo com Jos Murilo de Carvalho houve, nesse contexto, em primeiro

    lugar, uma multiplicao de novos agentes coletivos como as organizaes civis e

    religiosas (como as Comunidades Eclesiais de Base CEBs), movimentos sociais

    urbanos, a exemplo das associaes de moradores de favelas e de bairros,2 e

    associaes profissionais; em segundo, os sindicatos dos trabalhadores industriais

    que visavam a sua autonomia do Estado (sobretudo do Ministrio do Trabalho) e

    acabaram por constituir duas organizaes nacionais, a CUT e a CONCLAT; em

    1 Como afirma Eliane Junqueira, ainda que durante os anos 80 o Brasil, tanto em termos da produo

    acadmica como em termos das mudanas jurdicas tambm participe da discusso sobre os direitoscoletivos e sobre a informalizao das agncias de resoluo de conflitos, aqui estas discusses so

    provocadas no pela crise do Estado de bem- estar social, como acontecia ento nos pases centrais, massim pela excluso da grande maioria da populao de direitos sociais bsicos, entre os quais o direito moradia e sade. [...] tratava-se fundamentalmente de analisar como os novos movimentos sociais esuas demandas por direitos coletivos e difusos, que ganham impulsos com as primeiras greves do finaldos anos 70 e com o incio da reorganizao da sociedade civil que acompanha o processo de abertura

    poltica, lidam com um Poder Judicirio tradicionalmente estruturado para o processamento de direitosindividuais (Junqueira, 1996:390-391).2 Segundo J. M. de Carvalho, havia, no incio da dcada de 80, mais de oito mil associaes de moradoresno pas (Carvalho,1995:137).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    3/38

    3

    terceiro, alm da CNBB, outras instituies tradicionais como a OAB e a ABI

    afirmaram-se enquanto focos de resistncia ao governo militar.

    Para Jos Murilo, a oposio da OAB ao Estado autoritrio era tanto por

    convico como tambm por interesse profissional. O interesse profissional era

    bvio, na medida em que o regime autoritrio reduzia o campo de atividades dos

    advogados. A interveno no Poder Judicirio tambm desmoralizava a Justia vista

    como um todo. Os juzes (e promotores) viam-se diretamente afetados, e

    indiretamente tambm os advogados. Mas muitos integrantes da OAB atuavam em

    funo de uma sincera crena na importncia dos direitos humanos. Desde a sua V

    Conferncia Anual, realizada em 1974, a OAB empunhou a bandeira dos direitoshumanos como a sua principal reivindicao. Da em diante, a OAB converteu-se

    numa das trincheiras da legalidade constitucional e civil. A ABI tambm se ops ao

    Estado autoritrio na defesa dos direitos civis e polticos, pois tambm possua

    motivos de ordem corporativa na sua oposio ditadura: para ser exercida

    plenamente, a profisso de jornalista exige a liberdade de informao, o que no

    poderia ocorrer sob uma censura prvia (Carvalho, 1995:136-139).

    Como bem observa Paulo Srgio Pinheiro, a partir dos anos 70 os princpios

    e conceitos dos direitos humanos tanto civis e polticos como econmicos e

    sociais emergem com o surgimento de novos atores durante a ditadura, at

    1985. J no incio dos anos 80, os movimentos sociais progressivamente vo

    dedicar-se promoo dos direitos sociais e econmicos dos setores pobres da

    populao, pois houve o crescimento da insegurana social. Novas reivindicaes

    surgiram, como no caso do movimento em favor dos povos indgenas, que

    ampliaram e prolongaram a pauta da reforma agrria. Iniciou-se a defesa dos

    direitos dos grupos chamados minoritrios, como os negros, as mulheres, os

    homossexuais, as crianas e os portadores de deficincia, e a promoo do direito a

    moradia, educao, sade e meio ambiente. Essa luta da sociedade civil pelo

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    4/38

    4

    restabelecimento do estado de direito teve como ponto de apoio os movimentos

    sociais. No final da ditadura, uma rede extremamente dinmica de movimentos

    sociais comeou a ser organizada nas cidades e no campo (Pinheiro, 2001: 290).

    Ctia Ada Silva, por seu turno, complementando o diagnstico de P. S.

    Pinheiro, observa que nessa conjuntura da abertura poltica, as demandas e

    conflitos protagonizados por movimentos sociais tornaram-se uma importante

    referncia na avaliao do funcionamento e da estrutura do sistema judicial

    brasileiro, sobretudo do Poder Judicirio. Esses movimentos sociais que surgiram na

    virada dos anos 70 para os 80, como as organizaes de defesa dos direitos

    humanos, comunidades eclesiais de base, associaes de moradores, movimentosurbanos que reivindicavam a oferta e melhorias dos servios pblicos, movimentos

    feministas e organizaes negras visavam defesa dos direitos humanos, alm de

    serem portadores de reivindicaes por emprego, terra, habitao, sade,

    transporte, educao. Esses movimentos contriburam para o debate em torno da

    necessidade de mudanas legislativas e institucionais que garantissem novos

    direitos individuais e coletivos, sobretudo direitos para a populao marginalizada e

    para as minorias (Silva, 2002:4).

    O tema da democratizao do Poder Judicirio foi incorporado pauta de

    advogados, juzes, promotores, acadmicos e militantes de organizaes de

    assistncia jurdica e comits de direitos humanos. A ampliao do acesso Justia

    das classes mais baixas, a racionalizao e reduo dos custos dos servios

    judicirios, a simplificao e modificao do processo jurdico nas reas cvel, penal

    e trabalhista, a representao jurdica de causas coletivas e, finalmente, a mudana

    na formao e no papel do juiz e dos demais operadores jurdicos (advogados,

    promotores, defensores) foram questes exaustivamente discutidas por

    especialistas e por diversos grupos da sociedade civil organizada (ibidem:5).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    5/38

    5

    Houve, de fato, a emergncia de uma cultura democrtica por parte dos

    movimentos polticos e sociais que contaminaram o debate intelectual,

    principalmente no seio da esquerda brasileira, a partir da publicao de um artigo

    de um intelectual comunista, Carlos Nelson Coutinho, intitulado A Democracia como

    Valor Universal,3 que veio a provocar a participao de vrios intelectuais sobre

    esse tema.4 Com efeito, havia uma crena numa democracia de bases por parte de

    intelectuais e militantes, como bem expressa Coutinho:

    O fortalecimento da sociedade civil abre assim a possibilidade

    concreta de intensificar a luta pelo aprofundamento da democracia

    poltica no sentido de uma democracia organizada de massas quedesloque cada vez mais para baixo o eixo das grandes decises hoje

    tomadas exclusivamente pelo alto. (Coutinho, 1984:41)

    Embora a democracia de base (ou de massas) no viesse a se cumprir, a

    poltica deixou de ser uma mera poltica de elites para tornar-se uma democracia

    de sociedade civil, em que a opinio pblica tem importncia crescente, no

    obstante, como observa Bresser Pereira, os traos elitistas e a baixa

    representatividade dos governantes continuassem presentes (Bresser Pereira,

    2001:224).

    Deve-se tambm frisar que a conquista da democracia poltica em pases de

    modernizao retardatria, como o Brasil ou a Argentina, viria a coincidir com o

    esvaziamento mundial do Estado de Bem-Estar (Vianna, 1997:240). A crise do

    modelo econmico keynesiano e das relaes de trabalho fordistas resultou na

    3 Publicado na revista Encontros com a Civilizao Brasileira, n 9, maro de 1979.4 Numa posio prxima a de Carlos Nelson (embora no semelhante) pode-se citar o livro Cultura e

    Democracia, de Marilena Chau (1980) e Por Qu Democracia?, de Francisco Weffort (1984). Naoposio a Carlos Nelson, veja Jos Guilherme Merquior,As Idias e as Formas (1981), e Adelmo GenroFilho,A Democracia como Valor Operrio ePopular(1979).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    6/38

    6

    imploso dos direitos sociais que era a pedra de toque do Estado de Bem-Estar

    durante a chamada era dourada5.

    Se as trs ondas cappelletianas no faziam parte da bandeira do acesso

    Justia na virada dos anos 70 para os 80, na segunda metade dos anos 80

    comearam a se tornar alvo de discusso e de efetivao legal, particularmente na

    Constituio de 1988, que tornou o acesso Justia um princpio constitucional.

    Mrio Gryzspan chama a ateno para o fato de quando se discute o tema do

    acesso Justia este traz consigo a questo da cidadania e da democracia que,

    mais do que direitos universais legalmente constitudos, requer a disponibilizao e

    a generalizao de recursos necessrios ao seu exerccio e garantia. Em outrostermos, a democratizao do Judicirio que se pe em questo.

    De fato, a garantia ao acesso Justia a partir da viso introduzida por

    Cappelletti comeou a ser encarada enquanto um direito social. De acordo com J.

    M. de Carvalho,

    [...] a garantia da justia exige a interferncia do poder de Estado,

    assim como o exige a poltica de bem-estar. Ela no representa uma

    reao ao Estado, um direito negativo. Corresponde a um momento

    da sociedade liberal em que o Estado j foi convocado para garantir,

    pela interveno, um direito inicialmente estendido a parcela limitada

    da populao. (Carvalho, 2002:108)

    Embora o acesso Justia no represente, em si, um direito negativo, ele

    tambm no deixa de conter elementos que garantam os direitos e garantias dos

    5 Sobre a crise do Welfare State e a ascenso do neoliberalismo,veja Clauss Offe, Problemas Estruturaisdo EstadoCapitalista (1984) e Capitalismo Desorganizado (1989); Gosta Esping Andersen, Simon Clarket alii, em Lua Nova, n 24, 1991; Emir Sader e Pablo Gentili (orgs.), Ps-Neoliberalismo (1995);Reginaldo Moraes,Neoliberalismo (2001).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    7/38

    7

    indivduos como da coletividade em relao ao abuso de poder de entes estatais,

    como policiais ou agentes penitencirios, ou o no cumprimento de normas

    constitucionais vinculadas s polticas pblicas, como podemos perceber a partir

    das aes contra agentes do Estado pela Defensoria Pblica ou Ministrio Pblico.

    Cappelletti e Garth definem as trs ondas de acesso Justia da seguinte

    maneira: a primeira tem como principal caracterstica a expanso da oferta de

    servios jurdicos aos setores pobres da populao; a segunda, trata da

    incorporao dos interesses coletivos e difusos, o que resultou na reviso de noes

    tradicionais do processo civil; a terceira onda, conhecida como abordagem de

    acesso Justia, inclui a Justia informal, o desvio de casos de competncia dosistema formal legal e a simplificao da lei. Essa terceira onda de reforma inclui

    a advocacia, judicial e extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou

    pblicos, mas vai alm. Ela centra sua ateno no conjunto geral de instituies e

    mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir

    disputas nas sociedades modernas (Cappelletti e Garth, 1988). Para Mario

    Gryszpan, a terceira onda

    [...] decorreu e, ao mesmo tempo, englobou as anteriores,

    expandindo e consolidando o reconhecimento e a presena, no

    Judicirio, de atores at ento excludos, desembocando num

    aprimoramento ou numa modificao de instituies, mecanismos,

    procedimentos e pessoas envolvidos no processamento e na presena

    de disputas na sociedade. (Gryszpan, 1999: 100).6

    Os primeiros sinais correspondentes das ondas cappellettianas no contexto

    pr- constituinte de 1988 foram a criao do Juizado de Pequenas Causas por meio

    6 Para Kim Economides haveria uma quarta onda que exporia as dimenses tica e poltica da

    administrao da Justia e, assim, indicaria importantes e novos desafios tanto para a responsabilidadeprofissional como para o ensino jurdico (Economides, 1999:72).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    8/38

    8

    da Lei n 7.244, de 7 de novembro de 1984, e as leis que estabeleceram novas

    diretrizes ao Ministrio Pblico, tornando-o o principal agente responsvel pela

    proteo de interesses coletivos e difusos por intermdio das leis n. 6.938/81, na

    qual legitimava o Ministrio Pblico a promover ao de responsabilidade civil por

    danos ambientais e, sobretudo, a de n. 7.347/85, que institua a ao civil pblica.

    J na Constituio de 1988, as ondas cappellettianas de acesso Justia firmaram-

    se no plano normativo por intermdio de um conjunto de leis das quais se

    destacam as seguintes:

    1) A assistncia judiciria integral aos necessitados (art. 5, LXXIV);

    2) A Unio, no Distrito Federal e nos Territrios, e os Estados criaro:

    I - juizados especiais, providos por juzes togados, ou togados e

    leigos, competentes, para a conciliao, o julgamento e a

    execuo de causas cveis de menor complexidade e infraes

    penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos

    oral e sumarssimo, permitidos, nas hipteses previstas em lei, a

    transao e o julgamento de recursos por turmas de juzes de

    primeiro (art. 98);

    3) Elevao da Defensoria Pblica como instituio essencial funo

    jurisdicional do Estado, cabendo-lhe a orientao jurdica e a

    defesa, em todos os graus, dos necessitados (art.134);

    4) Reestruturao do papel do Ministrio Pblico como instituio

    essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe:

    atribuies para a defesa da ordem jurdica, do regime

    democrtico e dos interesses coletivos e difusos (arts.127 e 129).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    9/38

    9

    De fato, a Constituio de 1988 foi amplamente influenciada pelos

    movimentos sociais, j que incorporou um conjunto amplo de garantias e de

    direitos, sobretudo no artigo 5 em seus 77 incisos, constituindo uma autntica bill

    of rights, a mais precisa e ampla de toda a histria constitucional brasileira. Uma

    extensa lista de direitos foi consagrada pela Constituio de 1988, justificando sua

    proclamao como a Constituio Cidad. Os direitos constitutivos da cidadania

    foram significativamente alargados, pois, como visto acima, ao lado dos direitos

    tradicionais de natureza individual (civis e polticos), foram incorporados os direitos

    supra-individuais, ou sociais, alm da formao de distintas instncias (ou espaos

    pblicos estatais) que facilitassem o acesso do cidado Justia. Constituram-se,assim, no plano legal, as trs ondas cappellettianas (Carneiro, 2000; Sadek, 2000;

    Pinheiro, 2001).

    3 Cidadania

    De acordo com Jos Murilo de Carvalho (2002:105-106), o conceito de

    cidadania possui trs distintos enfoques, cada um representando uma corrente do

    pensamento poltico ocidental. A primeira vertente a liberal, que define a

    cidadania enquanto titularidade de direitos ao indivduo, formando, assim, uma

    redoma protetora dos abusos do poder do Estado. Essa liberdade individual

    caracterstica das sociedades modernas definida como liberdade negativa, cujo

    principal objetivo era livrar os indivduos dos constrangimentos legais e

    institucionais a fim de poderem dedicar-se totalmente vida civil, ao apetite

    aquisitivo da sociedade utilitria de mercado. J. M. de Carvalho cita uma longa lista

    de autores identificados com essa perspectiva, de Kant a Hayek, embora tenha

    omitido a principal referncia dessa corrente: John Locke.

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    10/38

    10

    A segunda vertente a do republicanismo clssico, cuja origem encontra-se

    nas obras de Ccero e continua nos trabalhos de Maquiavel e Montesquieu e, mais

    recentemente, em Hannah Arendt. Podemos tambm incluir nessa corrente

    Habermas, dando continuidade perspectiva arendtiana. Essa segunda vertente

    distingue-se da anterior na medida em que enfatiza a preocupao com a res

    publica, com o bem coletivo, mesmo que isto exija o sacrifcio do interesse

    individual. A preocupao com o bem coletivo a virtude cvica, noo introduzida

    por essa vertente. A virtude corresponde liberdade dos antigos, sendo a

    referncia desse modelo Atenas e Roma. Nessa concepo, a liberdade tem uma

    acepo positiva, pois no se refere reao ao poder do Estado, mas a

    disponibilidade do cidado para se envolver diretamente na tarefa do governo dacoletividade.

    A terceira corrente a viso comunitria de cidadania que vem de

    Aristteles e tem sua formulao moderna em Rousseau e Comte. Menos que a

    titularidade de direitos, importa, aqui, o sentimento de pertencimento a uma

    comunidade poltica. Se, no passado, o pertencimento de uma comunidade era a

    cidade, na modernidade passou a ser o Estado-nao. Essa corrente aproxima-se

    da idia de liberdade dos antigos na medida em que enfatiza o coletivo em

    detrimento do individual. Entretanto, ela no necessariamente virtuosa, pois lhe

    falta a nfase na ao poltica, na participao do cidado na vida pblica. A nfase

    exclusiva na comunidade pode gerar o efeito oposto, i.e., a conformidade poltica,

    ou uma participao passiva, no contestadora.7 A viso de Marshall sobre a

    cidadania pode ser vista como uma combinao das trs verses, uma vez que

    7 Embora Roussseau possa ser enquadrado nessa terceira vertente devido sua viso de comunidade

    poltica, sua teoria contratualista tambm pertence segunda corrente de tradio democrtica, pois, paraRousseau, pertencer a uma comunidade poltica tambm implica uma atividade poltica aos cidados. A

    liberdade e a cidadania, para Rousseau, possuem uma conotao positiva, ativa e criadora, como podemos

    perceber em sua definio de soberania e representao. Para Rousseau, a soberania inalienvel eindivisvel, e como base da prpria liberdade, algo que o povo no pode renunciar ou partilhar com os

    outros, sob pena da dignidade humana, como afirma no Livro III do Contrato Social:A soberania no pode ser representada pela mesma razo porque no pode ser alienada, consiste essencialmente navontade geral e a vontade absolutamente no se representa. ela mesma ou outra, no h meio termo[...]. nula toda lei que o povo diretamente no ratificar (Rousseau, 1978:107-108).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    11/38

    11

    envolve elementos das trs. Nela, a titularidade de direitos bsicos se une

    preocupao com a justia social e com a identidade coletiva.

    Conforme Marshall (1967:57-114) exps, em suas conferncias realizadas

    na dcada de 50, que a formao da cidadania se dava por intermdio da

    constituio de direitos que estavam articulados no apenas de modo cronolgico,

    mas tambm de forma lgica, i.e., a cidadania construda a partir de um

    processo. Os direitos civis que garantem a liberdade do indivduo em relao ao

    poder do Estado foram edificados no sculo XVIII. Por conseqncia, os direitos

    polticos foram firmados no sculo XIX, ampliando o direito de participao poltica

    maior parte da populao masculina e incorporando, desse modo, a classetrabalhadora. Por seu turno, os direitos sociais foram materializados no sculo XX a

    partir das lutas travadas pela classe trabalhadora desde o sculo XIX.

    Assim, a lgica de Marshall constri-se da seguinte forma: em primeiro lugar

    vm as liberdades negativas (direitos individuais) garantidas por um Poder Jurdico

    cada vez mais autnomo; em seguida, a partir do exerccio dessas liberdades, os

    direitos polticos ampliam-se, j que esto consolidados pelo Poder Legislativo e

    pelos partidos polticos; por fim, por meio da atuao dos partidos polticos e do

    Congresso eram sancionados os direitos sociais, que eram efetivados pelo Poder

    Executivo. Complementando esse raciocnio de Marshall sobre a formao dos

    novos direitos, e acentuando o papel da histria na formao destes, Norberto

    Bobbio, em sua obra A Era dos Direitos, aponta para a formao de novos direitos

    no final do sculo XX (chamados, tambm, de direitos de terceira gerao) como,

    por exemplo, os referentes ao meio ambiente ou os que dizem respeito

    responsabilidade cientfica dos pesquisadores da engenharia gentica, clonagem,

    etc. (Bobbio, 1992:6).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    12/38

    12

    O esquema interpretativo de Marshall provocou outras reflexes sobre o

    conceito de cidadania, como a de Ralf Dahrendorf, que percebe uma nova luz ao

    conflito entre as classes sociais, j que o conceito de cidadania teria mudado a

    qualidade do conflito social moderno (Dahrendorf, 1992:61). Partindo de uma

    perspectiva realista do mundo social, Dahrendorf afirma que a sociedade moderna

    marcada pelo conflito em torno da desigualdade de prerrogativas (cidadania) e

    provimentos (riquezas) entre seus membros. A sociedade, embora seja organizada

    em nvel associativo por meio de um contrato social (como a Constituio, por

    exemplo), no implica ausncia de poder e conflito. Onde h sociedade, h poder, e

    o poder gera no apenas a desigualdade, mas, pelo mesmo motivo, conflito. Se nomundo pr-moderno o conflito travava-se entre os estamentos, no sculo XVIII as

    classes sociais eram o foco central do conflito, mudando a qualidade do mesmo.

    Assim, um grande nmero de pessoas participa, e conflitos visveis se tornam a

    fora motivadora damudana. O conflito de classe entra em cena (ibidem:43).

    O conflito de classes encontrado nas estruturas do poder, as quais no

    possuem mais a qualidade absoluta de hierarquia entrincheirada. Trata-se, para

    Dahrendorf, da distribuio desigual das chances de vida. Os que esto em situao

    de desvantagem exigem daqueles que esto em posio de vantagem mais

    prerrogativas e provimentos. A luta, primeiro latente e quase invisvel, depois

    aberta e integralmente organizada, conduz a uma maior disseminao dos dois.

    Mas tem, sobretudo, um efeito, o qual descreve a histria das sociedades modernas

    do sculo XVIII at o presente: ela transforma as diferenas de prerrogativas em

    diferenas de provimentos. Passamos progressivamente das desigualdades

    qualitativas para as desigualdades quantitativas(ibidem:44).

    Com a formao do Estado-nao, a modernidade delimitou um campo

    espacial em que os direitos civis e polticos foram se constituindo. O Estado-nao

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    13/38

    13

    tambm fornecia o arcabouo para a lei e as instituies para sustent-la (o

    monoplio do uso da fora, por exemplo). O Estado-nao, portanto, foi

    determinante para a formao e sustentao da cidadania moderna. Como afirma

    Dahrendorf,

    [...] o mpeto do princpio de cidadania comea com a criao de

    unidades polticas dentro das quais os direitos civis e a participao

    cvica tornam-se elementos necessrios da constituio. [...] A

    cidadania descreve os direitos e obrigaes associados participao

    em uma unidade social, e notavelmente nacionalidade. , portanto,

    comum a todos os membros, embora a questo de quem pode sermembro e quem no pode faa parte da histria turbulenta da

    cidadania. [...] Esta turbulncia ainda est bastante em evidncia.

    Tem a ver com a questo da incluso ou excluso lateral ou nacional

    (em contraste com a vertical ou social). Afeta a identidade das

    pessoas porque define a qual unidade pertencem. Na maioria das

    vezes, envolve traar fronteiras que sejam visveis nos mapas ou pela

    cor da pele, ou ainda por algum outro meio. [...] A cidadania ento

    um conjunto de direitos e obrigaes para aqueles que se incluem na

    lista de membros. (Ibidem:46-47)8

    8 Com relao incluso e excluso do Estado moderno aos nacionais e os no-nacionais, Nicos

    Poulantzas chama a ateno ao fato de que os campos de concentrao so frutos do Estado moderno noexerccio do seu poder. A modernidade dos campos de concentrao deve-se ao fato de que materializam

    a mesma matriz espacial de poder que o territrio nacional. Esses campos so a forma de recluso dosexcludos da nao, antinacionais, estrangeiros, no interior do prprio territrio nacional, i.e., so

    constitudas fronteiras dentro do Estado-nao. Da a noo moderna de inimigo interno.Tambm os

    genocdios so uma inveno moderna ligada espacializao especfica do Estado-nao, pois so uma

    forma de exterminao prpria constituio-limpeza do territrio nacional que se homogeneza quandofixa seus limites. Segundo Poulantzas: As expanses e conquistas pr-capitalistas no assimilam nemdigerem: os Gregos, e os Romanos, o Islam e as Cruzadas, e Tamerlo matam para abrir caminho numespao aberto, contnuo e j homogneo, e so assim os massacres indiferenciados prprios ao exercciodo poder dos grandes imprios ambulantes. O genocdio s se torna possvel pelo fechamento dosespaosnacionais para aqueles que ento se tornaram corpos estrangeiros no interior das fronteiras(Poulantzas, 1978:118).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    14/38

    14

    Assim sendo, um dos aspectos centrais do conflito social moderno tem sido a

    extenso da cidadania a mais membros da sociedade. Da Dahrendorf, partindo das

    observaes empreendidas por Marshall acerca da formao dos direitos civis,

    polticos e econmicos, destaca o conflito entre as classes sociais como elemento-

    chave para compreender a afirmao destes direitos. Como observa Dahrendorf, o

    movimento predominante nos dois ltimos sculos foi a extenso da cidadania a

    novas dimenses de posio social. As lutas pelos direitos das minorias s fazem

    sentido se a cidadania tiver se tornado um status rico e integral. O conflito de

    classe para a extenso das prerrogativas da cidadania uma precondio para

    ampliar o mbito dos que tm direito a elas (ibidem:50). Logo, o conflito de

    classes abrange a constituio dos direitos que incluem no apenas ampliar asprerrogativas, mas tambm os provimentos, e, desse modo, buscam diminuir tanto

    as desigualdades qualitativas como tambm as quantitativas.

    Se, na anlise de Marshall, a extenso dos direitos de cidadania s classes

    conduz a uma anulao do prprio conflito de classes, para Dahrendorf, qualquer

    que seja a influncia da cidadania sobre as classes, ela no elimina nem a

    desigualdade nem o conflito. Ela altera a sua qualidade, mas a luta de classes no

    est exaurida. Os direitos das mulheres e das minorias permanecem pouco

    reconhecidos. A moderna sociedade de cidados criou novos problemas sociais. A

    pobreza persistente e o desemprego continuado por perodos longos so as novas

    questes da cidadania, e os antigos instrumentos do estado social no esto sendo

    capazes de lidar com elas. Como afirma Dahrendorf, no possvel dizer que forma

    os conflitos decorrentes de uma nova excluso iro tomar. Com relao aos

    includos, estes esto descobrindo novos tipos de questes de prerrogativas. Eles

    tambm gozam de plenos direitos de cidadania,

    [...] mas tambm so afetados pelas ameaas a seu ambiente

    natural, pela deteriorao de seu habitat, talvez pala ausncia de

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    15/38

    15

    certos servios, em conseqncia do cartel de interesses especiais.

    Tais privaes no constituem classes, porque elas afetam a todos.

    [...] Uma disparidade de posio social foi substituda por

    disparidades nos domnios da vida. Os conflitos resultantes

    mobilizam todos em certa medida, embora existam sempre ativistas

    por uma causa. Os movimentos sociais resultantes ou, mais

    modestamente, as iniciativas cvicas acrescentam um elemento aos

    conflitos modernos para qual as instituies baseadas em classe

    esto mal preparadas.(Ibidem:59-60)

    Dahrendorf conclui que a cidadania mudou a qualidade do conflito modernoe que a disputa entre as classes sociais, embora perdure, esta convive com novos

    conflitos9 que cada vez mais tm se sobreposto no conjunto da sociedade.

    possvel, de acordo com Dahrendorf, usar o termo classe tambm para eles, pois,

    afinal, a desigualdade e o poder continuam a ser fatores influentes que conduzem a

    interesses divergentes e ao confronto. Uma rejeio ao conceito de classes muitas

    vezes est associado a quadro idlico das coisas por vir. Sendo mantido o conceito

    de classe social aps a cidadania, necessrio repens-lo luz de novas questes

    e problemticas. Como diz Dahrendorf, suficiente assinalar que os dias dos

    conflitos por prerrogativas no terminaram. Embora a maioria das diferenas de

    renda e status possam ter se tornado graduais, e algumas das antigas barreiras

    ainda estejam presentes, foram erigidas algumas novas. No mundo em geral,tais

    barreiras de privilgios continuam a ser a questo fundamental(ibidem: 61).

    9 Sobre a necessidade do conflito nas sociedades democrticas modernas, Marilena Chau em entrevista

    Folha de S. Paulo (4/8/2003), afirma que h uma clarssima discusso sobre os direitos. Tanto aquesto de direitos adquiridos e se esto ou no sendo feridos por propostas de reformas quanto a dedireitos a serem conquistados, como o caso da reforma agrria. Em vez de falar em crise e emdesordem, que so os temas preferidos da classe dominante brasileira na sua tradio autoritria, horade comemorarmos o fato de que finalmente este pas est conhecendo uma experincia democrtica.

    Democracia o nico regime poltico no qual os conflitos soconsiderados o princpio mesmo de seufuncionamento. A posio liberal de Dahrendorf admite que o conflito seja um potencial de progresso nasociedade, mas, para que seja frutfero o conflito tem der ser domesticado pelas instituies(Dahrendorf, 1992:12). Assim sendo, as mudanas provocadas pelos conflitos so legitimas quando no

    se restringem aos canais alternativos, mas, sim, quando absorvidas pelas instituies legalmenteconstitudas.

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    16/38

    16

    A despeito da anlise de Dahrendorf no ser clara no tocante as modalidades

    que tomaro os conflitos de classes nesse perodo ps-fordista e ps-keynesiano, a

    sua posio liberal no pactua com a utopia neoliberal a qual afirma que, no atual

    contexto, no haveria outra sada para alm da sociedade de mercado e que

    somente este conseguiria alocar os recursos e, com isso, equilibrar as relaes de

    consumo e emprego,10 anulando, desse modo, o conflito social. Ademais,

    distintamente dos neoliberais, Dahrendorf reconhece na sociedade civil o locus de

    criao dos direitos pelos movimentos sociais em oposio ao arbtrio estatal e a

    maximizao do lucro pelo mercado, e, na atual conjuntura, a sociedade civil cada

    vez mais deixa de se limitar nas fronteiras dos Estados modernos, tornando-semundializada (ibidem:60).

    Com efeito, o conceito de cidadania tornou-se uma categoria central da

    modernidade, tanto no plano imaginrio como institucional (Domingues, 2002:94).

    No plano imaginrio, a cidadania conseguiu alcanar um grau de mobilizao e

    emancipao, ocupando o espao que o conceito de classes sociais proporcionava

    em nvel de mobilizao. Elisa Reis ressalta esse aspecto emancipacionista do

    conceito de cidadania na medida em que ele aglutina uma pluralidade de interesses

    oriundos da sociedade civil; interesses estes que expressam os mais distintos

    grupos, setores e classes sociais. Elisa Reis afirma que a idia de que a cidadania

    intercambivel com consolidao democrtica precisamente a idia de que ela o

    repositrio da competio entre interessesdivergentes (Reis, 1999:17).

    Em sua obra sobre o desenvolvimento da cidadania no Brasil, Jos Murilo de

    Carvalho aponta a polissemia do conceito de cidado, diferenciando-os em trs

    tipos: em primeiro, os cidados doutores, que sempre logram proteger seus

    interesses e escapar dos rigores da lei, mediante o poder do dinheiro e do prestgio

    10 Vide o livro de Francis Fukuyama, The end of history and the last man, publicada em 1992.

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    17/38

    17

    social. Os doutores so invariavelmente brancos, ricos, andam bem vestidos e

    tm formao universitria. So empresrios, banqueiros, grandes proprietrios

    rurais ou urbanos, polticos, profissionais liberais, alto estrato do funcionalismo

    pblico. Em geral, possuem vnculos com a poltica, com o mercado, com o

    governo, e at com a Justia. Esses vnculos fazem que a lei s funcione em seu

    benefcio. Para eles, as leis no existem ou, se for inevitvel, se suavizam.

    Em segundo, os cidados simples. Representam, em grande parte, a

    classe mdia modesta, os trabalhadores assalariados com carteira de trabalho, o

    mdio e o baixo funcionalismo pblico, os pequenos proprietrios urbanos e rurais.

    Podem ser brancos, pardos ou negros, cursaram a educao bsica e alguns asecundria e, mesmo, a universitria. Estas pessoas nem sempre tm a idia exata

    de seus direitos, e quando tm, carecem de meios necessrios para faz-los valer,

    tais como conhecer os meios de defesa, acesso aos rgos e autoridades

    competentes, recursos para custear as demandas judiciais. Freqentemente, ficam

    merc da polcia e de outros representantes da lei, que decidem, na prtica, que

    direitos sero ou no respeitados.

    Em terceiro, os cidados elementos. Constituem a populao

    marginalizada das grandes cidades, trabalhadores urbanos e rurais sem carteira de

    trabalho assinada, camels, flanelinhas, empregados domsticos, carregadores,

    menores abandonados, mendigos, prostitutas. Em sua maioria, so pardos ou

    negros, analfabetos ou com educao primria incompleta. Estes elementos s

    nominalmente pertencem comunidade poltica nacional. Na prtica, no

    conhecem seus direitos e os tm sistematicamente violados por outros cidados,

    pelo governo, pela polcia. No se sentem protegidos nem pela sociedade, nem

    pelas leis (Carvalho, 1996:156).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    18/38

    18

    Logo, embora a Carta constitucional represente, em si, um grande avano

    para a cidadania, a democracia e os direitos, h ainda um dficit de cidadania. O

    regime democrtico ainda no conseguiu reverter a acentuada desigualdade

    econmica e a excluso social. Apesar da implantao de um Estado democrtico

    de direito, os direitos humanos ainda so violados e as polticas pblicas voltadas

    para o controle social continuam precrias.

    Em dois artigos, um escrito por Dulce Pandolfi, e outro por Mrio Gryzspan,

    baseados numa pesquisa realizada em parceria pelo CPDOC-FGV/ISER em 1998,

    intitulada Lei, Justia e Cidadania,11 ambos os articulistas ressaltam a

    desconfiana da populao em relao Justia e o parco conhecimento sobre osdireitos civis. Pandolfi destaca a perspectiva individualista (muitas vezes confundida

    com expectativas de consumo de um bem material, como ter um bom carro) dos

    entrevistados em detrimento de uma posio coletiva e solidria. Pandolfi ressalta,

    tambm, o paradoxo entre os entrevistados em que, embora desconheam seus

    direitos ou tenham dificuldade de enumerar os principais direitos garantidos pela

    Constituio, isto no significa, necessariamente, uma postura de indiferena ou

    conformismo diante do dficit de cidadania. Significa que, apesar de no saber

    formalmente quais so os principais direitos dos brasileiros, a populao parece

    questionar a ausncia deles (Pandolfi, 1999:54-55).

    Gryzspan, por seu turno, destaca, em seu texto, os diferentes graus de

    confiabilidade da Justia por parte da populao. Enquanto a Justia do Trabalho

    vista de um modo mais positivo por aqueles que a ela j recorreram, o mesmo no

    ocorre com a Justia comum, que possui uma baixa confiabilidade. Com efeito, os

    direitos sociais afirmaram-se e generalizaram-se mais intensamente no Brasil do

    que os direitos civis. H um maior reconhecimento (diria, uma relao especular)

    11 A pesquisa, de carter domiciliar, foi realizada entre setembro de 1995 e julho de 1996. Baseada em

    amostra aleatria da populao da Regio Metropolitana do Rio de Janeiro, foram entrevistadas 1.578pessoas.

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    19/38

    19

    por parte da populao dos direitos sociais em relao aos demais. Diante a

    pergunta sobre quais so os seus direitos mais importantes, a populao destacou

    os direitos sociais (25,8%), vindo, em seguida, os civis (11,7%), e, fechando a

    listagem, os polticos (1,6%), sendo estes encarados mais como um dever do que

    um direito. Contudo, o que chama a ateno nos dados que cerca da metade dos

    entrevistados (56,7%) no sabia citar um direito sequer (Gryzspan, 1999:107-

    108). A populao, portanto, reconhece-se mais numa perspectiva de cidadania

    regulada do que de uma cidadania participativa.12

    Contudo, a despeito dos direitos civis estarem em posio de desvantagem

    diante dos direitos sociais no Brasil, Jos Murilo de Carvalho afirma que aglobalizao econmica atingiu negativamente os direitos polticos e sociais,

    enquanto os direitos civis foram atingidos positivamente ao deslocarem para a

    participao social a nfase antes colocada na participao poltica, alm de

    incorporar no sistema legal os direitos civis coletivos e os difusos, como o do

    consumidor e o do meio ambiente, alm dos da criana, do adolescente, dos

    negros, das mulheres e dos homossexuais. No entanto, isso no significa uma

    prevalncia dos direitos civis sobre os demais. Como afirma Jos Murilo: O grau de

    conhecimento desses direitos mais precrio e sua garantia, baseada sobretudo no

    sistema policial e judicirio, de longe a mais deficiente (Carvalho, 1996:260).

    Apesar disso, os direitos civis so os direitos fundamentais numa democracia liberal

    que fundamenta o Estado democrtico de direito. Os direitos civis so os direitos

    bsicos que constituem o alicerce de direitos polticos e sociais. So eles que

    garantem a conquista de outros direitos e preservao (Bobbio,1992).

    12 Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas razes encontram-se, no em umcdigo de valores polticos, mas em um sistema de estratificao ocupacional, e que, ademais, tal sistemade estratificao ocupacional definido por norma legal. Em outras palavras, so cidados todosaqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupaesreconhecidas e definidas por lei. A extenso da cidadania se faz, pois, via regulamentao de novas

    profisses e/ou ocupaes, em primeiro lugar, e mediante ampliao do escopo dos direitos associados aestas profisses, antes que por expanso dos valores inerentes ao conceito de membro da comunidade(Santos, 1999:103).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    20/38

    20

    Claude Lefort, numa passagem de seu livro A Inveno Democrtica, ilustra

    de modo preciso a dialtica do Estado democrtico em comparao aos limites do

    Estado de direito:

    [...] o Estado democrtico excede os limites tradicionalmente

    atribudos ao Estado de direito. Experimenta direitos que ainda no

    lhe esto incorporados, o teatro de uma contestao cujo objeto

    no se reduz conservao de um pacto tacitamente estabelecido,

    mas que se forma a partir de focos que o poder no pode dominar

    inteiramente. Da legitimao da greve social ou dos sindicatos ao

    direito relativo ao trabalho ou segurana social, desenvolveu-seassim sobre a base dos direitos do homem toda uma histria que

    transgredia as fronteiras nas quais o Estado pretendia se definir, uma

    histria que continua aberta. (Lefort, 1987:56)

    A democracia, portanto, diferentemente de ser a mera conservao de

    direitos, a criao ininterrupta de novos direitos, a subverso permanente do

    estabelecido.13 essa intensa relao entre o direito e a democracia que tornam

    dinmicos a sociedade e o Estado democrtico moderno em oposio aos sistemas

    autoritrios que so estticos (Bobbio, 1992:9). O poder numa perspectiva

    democrtica torna-se legtimo pela racionalidade que lhe conferida pelo direito.

    Como diz Lefort, O poder no se torna estranho ao direito, pelo contrrio, sua

    legitimidade mais que nunca o objeto do discurso jurdico e, da mesma maneira,

    sua racionalidade mais quenunca examinada(Lefort, 1987:53). Para Bobbio, o

    Estado democrtico de direito pode ser definido da seguinte maneira: o Estado

    liberal o pressuposto no s histrico, mas jurdico do Estado democrtico. O

    13 Bobbio, por seu turno, vai ao encontro de Lefort quando diz: No se pode afirmar um novo direito emfavor de uma categoria de pessoas sem suprimir algum velho direito, do qual se beneficiavam outrascategorias de pessoas: o reconhecimento do direito de no ser escravizado implica a eliminao dodireito de possuir escravos; oreconhecimento do direito de no ser torturado implica a supresso dodireito de torturar (Bobbio, 1992:20).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    21/38

    21

    Estado liberal e o Estado democrtico so interdependentes em dois modos: na

    direo que vai do liberalismo democracia, no sentido de que so necessrias

    certas liberdades para o exerccio correto do poder democrtico, e na direo

    oposta, que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que necessrio o

    poder democrtico para garantir a existncia e a persistncia das liberdades

    fundamentais (Bobbio, 1986:20).14

    O conceito de democracia, portanto, no deve ser redutvel ao modelo

    shumpeteriano, o qual define o sistema democrtico como um modelo competitivo

    entre as elites (na acepo de Mosca) de modo anlogo ao mercado econmico;

    definimos a democracia como um modelo poltico e societal no qual os grupos,classes e indivduos firmam seus direitos por intermdio de conflitos nos espaos

    pblicos, no qual demarcam suas posies utilizando recursos institucionais

    pautados por instrumentos legais fundamentados racionalmente. Assim sendo, as

    esferas legislativas, as administrativas, como tambm as judicirias, expressam

    dentro de si a construo de direitos pelos atores sociais e polticos pois, como

    observa Poulantzas (1978:149), nenhuma instituio impermevel aos conflitos

    polticos, sociais e econmicos.

    Portanto, apesar da viso parcialmente pessimista de J. Murilo e P. S.

    Pinheiro15 sobre a democracia tardia no Brasil, visto que os direitos humanos so

    vilipendiados pelo aparato policial e no so garantidos por uma Justia de difcil

    14 Isso no significa que Bobbio considere que a democracia seja desprovida de problemas. Ao contrrioda democracia ideal, a democracia real comporta elementos que obliteram o avano de uma cidadania

    plena, como a sobrevalorizao das representaes de interesses sobre a representao poltica, a

    persistncia das oligarquias, o poder invisvel (corrupo, mfia), o cidado no educado(desinteressado), o conhecimento tecnocrtico, o aumento do aparato burocrtico. Apesar disso, a

    democracia comporta os aspectos da tolerncia poltica, a mudana de governantes pela via pacfica e arenovao gradual da sociedade por meio do livre debate das idias e da mudana das mentalidades e do

    modo de viver: somente a democracia permite a formao e a expanso das revolues silenciosas (ou

    moleculares), como a transformao das relaes entre os gneros (ibidem:1986).15 Como afirma P. S. Pinheiro: O Judicirio no considerado uma instituio que protege os direitosdas classes no privilegiadas e, sim, uma instituio responsvel pela criminalizao e represso dasclasses populares. O acesso dospobres Justia praticamente no existe. [...]A proteo e a promoodos direitos humanos continuaram a se situar entre as principais carncias a serem enfrentadas pelasociedade civil (Pinheiro, 2001:296).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    22/38

    22

    acesso (o que verdade em nvel nacional), entendo que a democracia republicana

    recente, sendo definida como um processo,16 tem aberto canais de absoro de

    demandas por justia, particularmente na esfera estatal, na qual certas instituies

    tm se destacado pela defesa dos direitos da sociedade: de um lado, o Ministrio

    Pblico, que tem se sobressado devido s suas denncias e processos pela

    improbidade administrativa de membros das instituies estatais (Executivo,

    Legislativo, Judicirio), muitas vezes associados a agentes do mercado financeiro

    ou de empresas; enfim, os chamados cidados doutores; do outro, uma

    instituio mais nova que o MP, mas que se tem destacado na garantia dos direitos

    civis aos classificados como cidados simples, ou elementos: trata-se da

    Defensoria Pblica, especialmente a do estado do Rio de Janeiro que temdemarcado uma ampla atuao em questes ligadas aos direitos humanos, terra e

    habitao, consumidores, violncia as mulheres, idosos e crianas e adolescentes.

    Distintamente de outras pesquisas que enfocaram o acesso Justia pela

    perspectiva do pluralismo jurdico, que marcaram grande parte dos trabalhos da

    Sociologia do Direito no Brasil nos anos 80 e incio dos anos 90, e tm como

    principal referncia a pesquisa realizada por Boaventura de Sousa Santos sobre a

    comunidade de Pasrgada (favela do Jacarezinho), as atuais pesquisas de

    Cincias Sociais enfocam o acesso Justia pelo ngulo dos um agentes estatais do

    direito17, o que possibilita definir que o Estado no seja uma estrutura monoltica,

    mas, sim, permeado de fissuras as quais permitem a absoro de demandas

    16 Ao definirem o sentido da Repblica, Werneck Vianna e Maria Alice Rezende de Carvalho afirmam

    que ela tem de ser vista como um resultado em contnua progresso [...] e animada, principalmente,

    pelo conflito, no que reedita o estilo republicano de Maquiavel, pe a nu o cerne dos imperativos para asua manifestao, qual seja, a existncia de uma cultura da liberdade, produzida ao longo de sucessivasgeraes, em que os direitos e as expectativas de direitos de cada um obedeam s regras do jogo,cuidando-se para que essas, alm de no institucionalizarem as assimetrias existentes entre os grupos einteresses envolvidos, sejam dotados de plasticidade, no sentido de virem a admitir novos parceiros enovos interesses. Repblica, por isso mesmo, um processo cujo curso somente pode ter seqncia a

    partir da iniciativa de atores que exeram a representao institucional e extra- parlamentar dosdiferentes grupos e interesses envolvidos nas disputas sobre recursos e valores na vida social (Vianna eCarvalho, 2002:141).17 Vide os trabalhos de Werneck Vianna(1997, 1999, 2002), Maria Tereza Sadek(2001, 2004), Ctia AdaSilva(2001), Luciana Cunha(2001) e Rogrio Arantes(2000).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    23/38

    23

    oriundas da sociedade civil para serem filtradas e solucionadas num espao pblico

    estatal por intermdio de seus operadores jurdicos (Poulantzas,1978).

    4. Judicializao

    De fato, na segunda metade dos anos 90, os cientistas sociais interessados

    pelo tema do acesso Justia mudaram seu enfoque, que privilegiava a produo

    do direito e da justia pela sociedade civil em direo aos operadores do direito

    vinculados ao aparelho estatal, a exemplo da magistratura, do Ministrio Pblico,

    alm de um espao pblico estatal como os Juizados Especiais. Esse novo enfoqueda Sociologia do Direito deve-se, tambm, ao fenmeno que se denomina de

    judicializao18 das relaes polticas e sociais (Tate e Vallinder, 1995) que ampliou

    o papel dos operadores do direito nos pases ocidentais, visto que o Judicirio

    deixou de ser um poder nulo como era definido por Montesquieu (1982),19

    tornando-se um poder ativo, o espao por excelncia da resoluo dos conflitos. Em

    outras palavras, em torno do Poder Judicirio vem se criando, ento, uma nova

    arena pblica, externa ao circuito clssico sociedade civil- partidos-representao-

    18 Em artigo publicado na revista Lua Nova (n. 57, 2002), Andrei Koerner e Dbora Maciel criticam oemprego do termojudicializao devido polissemia que ele implica; alm de ter um significado tantosociolgico como jurdico, as interpretaes desse conceito so diversas e conflitantes, havendo uma

    leitura ora positiva, ora negativa desse conceito. Entretanto, os autores esquecem que no campo dasCincias Sociais h uma pluralidade de paradigmas, o que as diferenciam das Cincias Naturais, j que

    estas possuem paradigmas mais coesos, embora isso no signifique que no haja mudanas ou conflitosrelativos a interpretaes de determinados fenmenos. Nas Cincias Sociais, vrios conceitos, como o de

    ideologia, possuem diferentes sentidos. Se verificarmos de Destut de Tracy a Althusser, passando por

    Lukcs, Mannheim, Gramsci, entre outros, estaremos falando da mesma palavra, mas sem a mesmaacepo conceitual. O mesmo se d com o conceito de Estado. O que h de semelhante nesse conceito em

    Weber, Kelsen ou Poulantzas? Na mesma situao encontra-se o conceito de simblico, j que Lvi-Srauss, Gertz e Bourdieu tratam de modo distinto e divergente a mesma palavra. Tate e Vallinder (1995:

    5) chamam a ateno para o fato de que o conceito de judicializao tem gerado diversas interpretaes,

    ora favorveis, ora contrrias a esse fenmeno Ademais, os articulistas no indicam nenhuma alternativaepistmica que substitua o conceito de judicializao. Entenda-se por judicializao a expanso do direito

    e o fortalecimento das instituies de Justia, e a insero dos agentes jurdicos na esfera poltica e nomundo vida, positivamente ou negativamente, de acordo com a perspectiva do intrprete.19 [...] o poder de julgar, to terrvel entre os homens, no estando ligado nem a uma certa situao,nem a uma certa profisso, torna-se, por assim dizer, invisvel e nulo (Montesquieu, 1982:188).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    24/38

    24

    formao majoritria, consistindo em ngulo perturbador para a teoria clssica da

    soberania popular (Vianna, Carvalho, Melo e Burgos,1999:22).

    Essa uma perspectiva que se diferencia da corrente do pluralismo jurdico

    que predominava no campo da Sociologia do Direito durante os anos 70 e 80. O

    pluralismo jurdico20 representou uma reao terica e poltica durante o contexto

    do Estado autoritrio, no qual o Judicirio encontrava-se encapsulado pelo poder

    ditatorial, tornando-se um instrumento manipulvel de acordo com os interesses

    que prevalecessem. A pesquisa empreendida por Boaventura de Souza Santos, que

    a mais representativa dessa corrente terica, data de meados dos anos 70,

    durante o predomnio do AI-5 nos campos poltico e jurdico. Assim sendo, somenterecorrendo a canais paralegais (a exemplo das associaes de moradores de

    favelas) a populao pobre teria como resolver seus litgios. Como observa Souza

    Santos

    [...] algumas dessas associaes passaram a assumir funes nem

    sempre previstas diretamente nos estatutos como, por exemplo, a de

    arbitrar conflitos entre os vizinhos enquanto que o exerccio das

    funes estatutrias se tornou cada vez mais problemtico aps a

    imposio da ditadura militar em 1964, tendo ento incio uma longa

    e difcil luta pela sobrevivncia organizativa em condies polticas e

    policiais extremamente repressivas (Souza Santos, 1988:12-13).

    Ctia Ada Silva, em seus comentrios pesquisa de Sousa Santos, ressalta

    que o carter libertrio do pluralismo jurdico das associaes de moradores de

    favelas est comprometido, tendo em vista o crescimento do poder (uso da fora)

    pelo narcotrfico. Segundo suas palavras,

    20 Sobre as diversas tendncias do pluralismo jurdico, veja Antnio Carlos Wolkmer, PluralismoJurdico (1997).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    25/38

    25

    [...] podemos encontrar em alguns grupos e autores que utilizam o

    conceito de pluralismo jurdico uma leitura segundo a qual, dada a

    insero das instituies da justia dentro do aparato do Estado

    capitalista, o acesso justia passa pelas formas de auto-organizao

    populares e autnomas (direito insurgente). Porm, esta posio

    vista como perigosa por representar uma faca de dois gumes. Se, de

    um lado, estas formas de auto-organizao popular sinalizam para

    experincias participativas, democrticas, libertrias, de outro lado,

    elas podem significar a imposio presente na cultura poltica

    hierrquica vivida pelos prprios setores populares. A realidade dasfavelas do Rio de Janeiro hoje e os indcios de que as associaes no

    mais conseguem fazer frente, como expresso da vontade da

    comunidade, ao trfico de drogas e imposio de um cdigo de

    terror aos moradores um problema que serve de referncia para

    aqueles que questionam as virtudes de todas as formas de direito

    produzidas e praticadas pela sociedade (Silva, 2002:14-15).

    O movimento pelo direito alternativo organizado pela Associao dos

    Juzes do Rio Grande do Sul, em 1986, emerge durante o momento de transio do

    Estado autoritrio para o Estado democrtico de direito, e reproduzia uma viso

    antagnica concepo monista do Direito, associando-o ao modelo de Estado

    autoritrio, ou mesmo liberal-burgus. Como ressalta Ricardo Guanabara (1996),

    h duas grandes tendncias entre os alternativos: a primeira identificada como

    uso alternativo do direito, de reconhecida influncia europia, parte da prpria

    prtica judicial, e coloca a magistratura no centro do movimento. Vrios

    magistrados recorrem ao direito oficial vigente para colocar a Justia ao lado dos

    oprimidos e explorados. Essa vertente aposta na reforma das instituies

    existentes, em termos de concepo, procedimentos e prticas jurdicas, buscando

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    26/38

    26

    incluir os segmentos marginalizados como clientela da Justia e ampliar a cidadania

    por meio da arbitragem de conflitos individuais e coletivos.

    A segunda vertente, de origem latino-americana, no destaca os juzes, mas

    as prprias comunidades como atores principais na luta pelos seus direitos,

    reivindicando um maior grau de educao para os segmentos populares para que

    possam demandar solues para seus problemas. O uso alternativo do direito

    busca adaptar as normas jurdicas existentes s necessidades dos setores

    populares, afirmando que a neutralidade do Poder Judicirio um mito. O direito

    alternativo, tambm denominado de direito insurgente, ou achado na rua,

    posiciona-se em prestar servios jurdicos aos trabalhadores, conscientizando asclasses populares por meio da educao legal e poltica, enfatizando a

    necessidade da criao de um direito insurgente das classes oprimidas, a ser

    gestado fora do Estado (Guanabara, 1996:404). Essa segunda corrente est

    comprometida com a criao de um novo direito que questione valores dominantes

    e reconhea movimentos e prticas sociais como fonte de um vigoroso pluralismo

    jurdico, considerado mais legtimo que o direito oficial. O direito insurgente

    apresenta-se como o direito verdadeiro originado por uma sociedade civil

    redentora em oposio a um Estado e a um direito burgus, ou das classes

    dominantes. A Justia em si pouco representa os segmentos populares em sua

    esfera: [...] se o direito, por contingncias histricas, est a servio de interesses

    de classes determinadas, que se organizam em determinada forma de Estado,

    fcil concluir que os valoresque ele tutela predominantemente so os relacionados

    com esses grupos.[...] Resultado: teoria da justia igual a teoria da justia das

    classes dominantes (Schier, 1993:79).

    De acordo com Ctia Ada Silva, ao negar todo o ordenamento jurdico

    existente, inclusive leis, direitos e garantias conquistados no processo de transio

    para a democracia, essa segunda corrente tem sido alvo de muitas crticas. Alguns

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    27/38

    27

    autores acusam-na de acabar colocando no mesmo patamar formas alternativas de

    resoluo de litgios produzidas no interior de movimentos democrticos e formas

    arbitrrias de resoluo de conflitos que se voltam contra as prprias classes

    populares como a lei do morro ou dos traficantes (Silva, 2002:23).

    A perspectiva alternativa ou insurgente, ao rechaar por completo o

    direito estatal, acaba por esquecer os princpios e as garantias firmadas pela

    Constituio de 1988, alm de no reconhecer os avanos no direito positivo (ou

    oficial) dos direitos civis (particularmente no tocante aos direitos humanos, tratados

    pelo artigo 5), os direitos polticos (iniciativa popular, art. 61; ao direta de

    inconstitucionalidade, art.103), alm da redefinio do Ministrio Pblico e doemprego da ao civil pblica, como tambm a ampliao do acesso Justia por

    intermdio dos Juizados Especiais e das Defensorias Pblicas. No foi casual as

    correntes radicais do direito alternativo no terem percebido o fenmeno da

    judicializao e suas implicaes no apenas no Judicirio, mas tambm na esfera

    poltica e social.

    A judicializao da poltica e das relaes sociais expressa, com efeito, uma

    nova tendncia da democracia contempornea. Embora haja semelhanas, a

    judicializao no se confunde com a corrente do uso alternativo do direito, pois o

    ativismo dos operadores do direito no necessariamente condicionado, de modo

    subjetivo, por uma perspectiva de esquerda, em defesa dos setores subalternos da

    sociedade capitalista. O fenmeno da judicializao, de acordo com C. Neal Tate,

    prprio ao sistema democrtico, j que seria mais difcil a presena da mesma num

    sistema autoritrio ou totalitrio.

    Alm do sistema democrtico procedural, Tate destaca outros elementos que

    corroboram a formao da judicializao poltica, como a separao de poderes, a

    poltica de direitos, a presso dos grupos de interesses e as Cortes Supremas e,

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    28/38

    28

    sobretudo, o ativismo judicial (Tate, 1995:28-29). Assim sendo, se antes o

    Judicirio era um poder perifrico encapsulado em uma lgica com pretenses

    autopoiticas inacessveis aos leigos, distante da agenda pblica e dos atores

    sociais, mostra-se, atualmente, uma instituio central democracia brasileira,

    quer no que se refere sua interveno no mbito social, como tambm na poltica

    (Vianna et alii, 1999:9).

    Segundo Werneck Vianna, a judicializao da poltica exprime profundas

    transformaes nos campos jurdico e poltico-institucional: quanto ao primeiro,

    registra-se a convergncia dos sistemas de civil law com os de common law,21

    aproximando as tradies da Europa Continental com as de cultura anglo-sax,secularmente distanciadas entre si; em relao ao segundo, em estrita associao

    com o anterior, observa-se o esvaziamento do cnone doutrinrio da separao

    entre os Poderes, tal como compreendido pela cultura jurdico-poltica dos pases de

    civil law, passando o tema da limitao a prevalecer sobre o da separao, que

    supe a neutralidade poltica do Judicirio22 (Vianna et alii, 1997:32).

    Sobre a judicializao das relaes sociais, Werneck Vianna ressalta que este

    fenmeno, para alm da esfera poltica, tambm vem alcanando a regulao da

    sociabilidade e das prticas sociais, incluindo aquelas tidas, tradicionalmente, como

    de natureza estritamente privada e, assim, impermeveis interveno do Estado,

    como so os casos das relaes de gnero no ambiente familiar e do tratamento

    dispensado s crianas por seus pais ou responsveis.

    21 Sobre a aproximao dos modelos civil law e common law,vide as obras de John Henry Merryman,The Civil Law Tradition (1985), e de Mauro Cappelletti, The Judicial Process in ComparativePerspective (1989).22 A respeito da relao de interdependncia dos poderes e as representaes polticas e sociais destes,

    veja o estudo clssico de Louis Althusser, Montesquieu, a Poltica e a Histria, quando este afirma: Averdadeiramoderao no nem a estrita separao dos poderes nem a preocupao e o respeito dalegalidade. [...] A moderao uma coisa completamente diferente: no o simples respeito pelalegalidade, o equilbrio dos poderes, isto , a diviso dos poderes entre as potncias, e a limitao oumoderao das pretenses de uma potncia pelo poder das outras (Althusser, 1977:135). Indo aoencontro das observaes de Althusser, ver Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociolgico(1981).

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    29/38

    29

    Logo, o Direito vem expandindo a sua capacidade normativa, armando

    institucionalmente o Judicirio de meios e modos para o exerccio de uma

    interveno nesse plano. todo um conjunto de prticas e de novos direitos, alm

    de um contingente de personagens e temas at recentemente pouco divisvel pelos

    sistemas jurdicos das mulheres vitimizadas, aos pobres e ao meio ambiente,

    passando pelas crianas e pelos adolescentes em situao de risco, pelos

    dependentes de drogas e pelos consumidores inadvertidos , os novos objetos

    sobre os quais se debrua o Poder Judicirio, levando a que as sociedades

    contemporneas se vejam, cada vez mais, enredadas na semntica da Justia. ,

    enfim, a essa crescente invaso do direito na organizao da vida social que seconvencionou chamar de judicializao das relaes sociais (Vianna et

    alii,1999:149).

    H, nos ltimos anos, como bem nota Maria Alice Rezende Carvalho

    (2002:322), um deslocamento da cidadania cvica para a cidadania jurdica. Isso

    no significa que haja uma substituio do sistema representativo, ou mesmo a

    condenao da cidadania cvica, mas, sim, a convivncia de ambas as cidadanias

    numa democracia contempornea, numa sociedade complexa como a brasileira.

    Ademais, a prpria cidadania cvica tem sofrido intensas modificaes nos ltimo

    dois decnios, como chama a ateno Wanderley Guilherme dos Santos, quando

    afirma que os sistemas de representao tradicional, como os partidos polticos,

    tiveram de dividir seu espao de representao como os movimentos sociais e as

    organizaes de carter corporativo (Santos, 1986:18-19).

    Contudo, a judicializao nem sempre percebida como um fato positivo,

    como ressalta Garapon, ao perceber que o crescimento do Judicirio como ator

    poltico deve-se crise de representao poltica e da prpria democracia moderna,

    na medida em que ocorre um enfraquecimento dos poderes Legislativo e Executivo.

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    30/38

    30

    Garapon reconhece na Justia o ltimo refgio de um ideal democrtico

    desencantado (1999:26). O sucesso da Justia inversamente proporcional ao

    descrdito que afeta as instituies polticas clssicas, causadas pela crise de

    desinteresse e perda do esprito pblico. Portanto,

    [...] a cooperao entre os diferentes atores da democracia no

    mais assegurada pelo Estado, mas pelo direito, que se coloca, assim,

    como a nova linguagem poltica na qual so formuladas as

    reivindicaes polticas. A justia tornou-se um espao de

    exigibilidade da democracia. Ela oferece potencialmente a todos os

    cidados a capacidade de interpelar seus governantes, de tom-losao p da letra e de intim-los a respeitarem as promessas contidas

    na lei. (Garapon, 1999:48-49)

    Para Garapon, esse crescimento do poder da Justia esconde dois

    fenmenos aparentemente distintos, cujos efeitos convergem e se reforam: de um

    lado, o enfraquecimento do Estado, sob presso do mercado; e, de outro, o

    desmoronamento simblico do homem e da sociedade democrticos. O

    enfraquecimento do Estado uma conseqncia direta da globalizao da

    economia. Desse modo, o mercado, ao mesmo tempo em que despreza o poder

    tutelar do Estado, multiplica a recorrncia ao jurdico. De acordo com Garapon,

    [...] o juiz surge como um recurso contra a imploso das sociedades

    democrticas que no conseguem administrar de outra forma a

    complexidade e a diversificao que elas mesmas geraram. O sujeito,

    privado das referncias que lhe do uma identidade e que estruturam

    sua personalidade, procura no contato com a justia uma muralha

    contra o desabamento interior. Em face da decomposio do poltico,

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    31/38

    31

    ento ao juiz que se recorre para a salvao. (Garapon, 1999:26-

    27)

    De acordo com Garapon, esses dois fenmenos desnacionalizao do

    Direito e exausto da soberania popular designam o cerne da evoluo, a saber, a

    migrao do centro de gravidade da democracia para um lugar mais externo. A

    judicializao da vida pblica comprova esse deslocamento: a partir dos mtodos

    da Justia que a sociedade reconhece uma ao coletiva justa. A Justia tem

    fornecido democracia seu novo vocabulrio: imparcialidade, processo,

    transparncia, contraditrio, neutralidade, argumentao etc. O juiz e a

    constelao de representaes que gravitam sua volta proporciona democracia imagens capazes de dar corpo a uma nova tica de deliberao

    coletiva. Segundo Garapon, isso explica por que o Estado se desfez de algumas de

    suas prerrogativas sobre instncias quase juridicionais, como o so as autoridades

    administrativas independentes. , portanto, mais sob a forma processual do que

    poltica que a ao coletiva se legitima. A Justia passa a encarnar, assim, o espao

    pblico neutro, o direito, a referncia da ao poltica; e o juiz, o esprito pblico

    desinteressado (Garapon, 1999:45).

    Uma posio ainda mais radical do que a de Garapon ao fenmeno da

    judicializao a de Andreas Kalyvas (2002), em que aponta uma tendncia

    autoritria do liberalismo legal em detrimento da soberania popular. Conforme

    afirma Kalyvas, h uma gradual transferncia do poder poltico do Executivo e do

    Legislativo para o Judicirio e uma concentrao de poder deste ltimo. Aspectos-

    chave de questes socialmente importante no so mais estabelecidas pelo voto

    legislativo, mas decididas por juzes no eleitos da Corte Suprema. Essa tendncia

    contra-majoritria que se tornou um modelo praticado nos EUA, agora exportado

    e reproduzido em diversos pases da Europa Ocidental e em muitos pases das

    novas democracias da Europa Central e do Leste.

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    32/38

    32

    Essa vertente aponta para uma larga mudana estrutural em direo

    despolitizao e neutralizao da legitimidade democrtica e privao da soberania

    popular de sua responsabilidade poltica. Segundo Kalyvas, no surpreendente

    que a deliberao da Corte Suprema, na qual se decidiu o resultado das eleies

    presidenciais dos EUA em 2000, tenha sido elevada ao status de um modelo ideal

    para a poltica consensual das sociedades liberais. Ademais, a apropriao gradual,

    pelo Judicirio, do poder de tomar decises polticas, e a proliferao de Cortes

    constitucionais dotadas de poder de reviso judicial sobre a legislao, tm criado

    uma grande confuso a exemplo de no saber onde reside a autoridade poltica

    suprema. Contrariamente subordinao prvia dos demais poderes ao Executivo,atualmente eles tm tomado, antes, uma forma ambgua e elusiva que os

    impossibilita de situ-los e determin-los numa instncia institucional especfica.

    Para Kalyvas, de um ponto de vista histrico, ns estamos testemunhando

    um surpreendente ressurgimento e uma revigorao do domnio da lei e da

    legalidade liberal formal. Essa restaurao inesperada da legalidade formal, na

    forma do modelo de democracia procedural, que tem sido adotado pelas principais

    correntes do pensamento contemporneo, claramente ameaa esvaziar,

    enfraquecer e neutralizar o princpio da soberania popular ao reduzi-la a um mero

    fato de pluralidade e a competio institucionalizada entre as elites dominantes.

    Segundo esse autor, neste contexto em que h uma tendncia em regular tudo por

    meio de regras, procedimentos e normas institudas, tornaram a poltica confinada

    aos limites constitucionais impostos pela legalidade dominante. A tentativa de

    impeachment ao Presidente Clinton um caso exemplar de como o discurso da lei

    pode ser usado para minar um poltico do Poder Executivo popularmente eleito.

    Seguindo estritamente os procedimentos legais prescritos, o Partido Republicano foi

    capaz de transformar os vcios privados em crimes pblicos, a fim de subverter o

    princpio da legitimidade popular.

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    33/38

    33

    Kalyvas destaca que o mais interessante e revelador, neste caso, que o

    processo inteiro, o qual poderia muito bem ter revertido o resultado de uma eleio

    democrtica , que recorda um golpe legal, foi realizado sem nenhuma violao da

    Constituio ou quebra da lei. Ao contrrio, seu sucesso foi firmado numa aplicao

    precisa e correta do sistema legal estabelecido, o que demonstra que quando

    usado corretamente e consistentemente, o governo da lei pode voltar a legalidade

    contra a legitimidade democrtica, o constitucionalismo liberal contra a soberania

    popular, a norma abstrata contra a vontade, a lei contra sua fonte simblica

    instituinte: o povo (Kalyvas, 2002:123-125).

    H, com efeito, um fato que tanto os que observam positivamente a

    judicializao como os seus crticos concordam: os atores jurdicos, de fato,

    tornaram-se elementos de destaque no campo poltico e social, sendo reconhecidos

    como aliados ou adversrios de outros agentes que compem esses campos, como

    os partidos polticos, os movimentos sociais, as burocracias estatais, os

    empresrios, as financeiras, o setor comercial etc. Alm disso, os operadores do

    direito expressam um outro tipo de representao que vem se destacando nas

    democracias contemporneas: a representao funcional, que no obstante exista

    desde a Constituio de 1937, a exemplo dos sindicatos constitudos pelo Ministrio

    do Trabalho, tem alcanado um crescente papel no cenrio poltico e social, como

    as ONGs, e as instituies jurdicas estatais como a Magistratura, o Ministrio

    Pblico e a Defensoria Pblica. Exemplo dessa crescente representao na

    formao social brasileira tem sido o aumento pela demanda dos consumidores aos

    Juizados Especiais, ao Ministrio Pblico e Defensoria Pblica na busca da soluo

    de seus conflitos com as financeiras no campo da sade, dos bens de consumo e

    das prestadoras de servios pblicos23.

    23 Sobre a representao funcional veja Werneck Vianna e Marcelo Burgos(2005)

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    34/38

    34

    5. Concluso

    Como vimos neste artigo, o tema do acesso Justia no Brasil inicialmente

    no se identificava com o movimento desencadeado pelo Projeto de Florena, mas,

    sim, com os movimentos sociais e os espaos alternativos de Justia devido,

    sobretudo, desconfiana que o Estado provocava na sociedade civil, j que ele

    expressava, na virada dos anos 70 aos 80, um espao autoritrio inacessvel aos

    novos atores sociais. No entanto, na conjuntura da Constituinte de 1988, o acesso

    Justia tornou-se um princpio constitucional, e as instituies jurdicas estatais,

    como a Magistratura, o Ministrio Pblico e a Defensoria Pblica, conseguiram

    ampliar a sua legitimidade ao serem reconhecidas como instituies essenciais Justia pela Carta constitucional e, desse modo, desvinculando-se do Estado

    autoritrio do qual estiveram sob controle (em especial, o Ministrio Pblico).

    Com a efetivao legal do acesso Justia e o crescimento do papel das

    instituies jurdicas, a cidadania deixa de ser uma mera abstrao terica,

    tornando-se, assim, materializada pelos canais de representao do direito. A

    cidadania deixa de ser exclusiva aos cidados doutores, na medida em que

    abrange, tambm, os interesses dos cidados tidos como simples ou elementos.

    A cidadania , aqui, descrita como um resultado de um longo conflito

    histrico/social, e que tem no sistema democrtico o seu principal espao na

    criao e na afirmao de novos direitos, abrangendo as conquistas no apenas das

    classes sociais desfavorecidas em termos de provimentos e prerrogativas, mas

    tambm dos novos atores sociais como as mulheres, meio ambientalistas, negros,

    entre outros. Assim sendo, os direitos civis conseguem se firmar, de modo ainda

    mais preciso, pela Constituio de 1988, ao lado dos direitos polticos e sociais.

    O fenmeno da judicializao deu um novo salto qualitativo s instituies

    jurdicas, enquanto canais de representao dos mais diversos interesses, visto que

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    35/38

    35

    as instituies mais tradicionais de representao, como os partidos polticos e os

    sindicatos, comearam a entrar em crise de identidade, afetando o seu nvel de

    representao, e, conseqentemente, isso veio a fortalecer ainda mais as

    instituies do direito. A judicializao no se confunde com o chamado direito

    alternativo, nem com o uso alternativo do direito, pois no h um projeto

    revolucionrio, ou reformista, por parte de seus atores, como apregoam essas

    tendncias. Ao contrrio, o engajamento dos operadores do direito pautado pela

    defesa da legalidade tal como est estabelecida pela Carta constitucional, embora

    isto no signifique passividade ou neutralidade absoluta desses operadores em

    relao s questes polticas e sociais, o que tem resultado em diversas posies,

    ora favorveis, ora crticas, a esse fenmeno.

    Em suma, so os elementos que vm particularmente constituindo as aes

    empreendidas pelos operadores jurdicos, sobretudo desde a Constituio de 1988,

    que lhes fixou um novo papel que veio a fortalecer a representao funcional, a

    autonomia institucional, os direitos metaindividuais e o voluntarismo poltico;

    ademais, o fenmeno crescente da judicializao poltica e social, que emergiu com

    a crise de representao do Legislativo e o recuo do Executivo no campo dos

    direitos sociais, vem reconfigurando o perfil dos operadores do direito, ampliando

    de modo significativo as suas aes em defesa da cidadania e dos direitos

    humanos.

    Bibliografia

    ALTHUSSER, Louis Montesquieu, a poltica e a histria. So Paulo: Martins Fontes,

    1977.

    ARANTES, Rogrio Ministrio Pblico e poltica no Brasil. So Paulo: USP/tese,2000.

    BOBBIO, Norberto.A era dos direitos.So Paulo:Campus, 1992.

    _____. O futuro da democracia. So Paulo: Paz e Terra, 1986.

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    36/38

    36

    BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos.Do Estado patrimonial ao gerencial. In Pinheiro,

    P. S.; Sachs, I. e Wilheim, J. (orgs). Brasil: um sculo de transformaes. So

    Paulo: Companhia das Letras, 2001.

    CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, BrianAcesso Justia. Porto Alegre: Srgio Antonio

    Fabris Editor, 1988.

    CARNEIRO, Paulo Csar Pinheiro Acesso Justia: Juizados Especiais e a Ao Civil

    Pblica. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2000.

    CARVALHO, Jos Murilo de. Desenvolvimiento de la ciudadania en Brasil. Mxico:

    Fondo de Cultura, 1995.

    _____ (org.). Justia e cidadania. Estudos Histricos,n 18, 1996._____ (org. et alii).Cidadania, justia e violncia. Rio de Janeiro: Editora da FGV,

    1999.

    _____.Cidadania na encruzilhada. In Bignoto, N. (org.). Pensar a Repblica.

    Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

    CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Cultura Poltica, capital social e a questo do

    dficit democrtico no Brasil in Luiz Werneck Vianna A Democraciae os trs

    poderes no Brasil. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Editora UFMG/IUPERJ, 2002.

    CHAU, MarilenaEntrevista Folha de S. Paulo, 4/8/2003.

    COUTINHO, Carlos NelsonA democracia como valor universal. Rio de Janeiro: Ed.Salamandra, 1984.

    CUNHA, Luciana Gross S.Acesso Justia e assistncia jurdica em So Paulo. In

    Sadek, M. T. (org.). Acesso Justia. So Paulo: Fundao Konrad Adenauer, 2001.

    DAHRENDORF, RalphO conflito social moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,

    1992.

    DOMINGUES, Jos Maurcio. Interpretando a modernidade. Rio de Janeiro: FGV

    Editora, 2002.

    GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1999.

    GRYSPAN, MrioAcesso e recurso Justia no Brasil: algumas questes. In

    Carvalho, J. M. de (org.). Cidadania, justia e violncia. Rio de Janeiro: Ed. FGV,

    1999.

    GUANABARA, Ricardo Vises alternativas do direito no Brasil. Estudos Histricos,

    n 18, 1996.

    JUNQUEIRA, Eliane Acesso Justia: um olhar retrospectivo. Estudos Histricos,

    n 18, 1996.

    KALYVAS, Andreas The stateless theory: Pounlatzas challenge to

    postmodernism . InAronowitz, S. e Bratsis, P. (org.). Paradigm lost: State theory

    reconsidered. Minnesota: University of Minnesota Press, 2002.

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    37/38

    37

    KOERNER, Andrei e MACIEL, DboraSentidos da judicializao da poltica: duas

    anlises. Lua Nova, n 57, 2002.

    LEFORT, Claude A inveno democrtica: os limites do totalitarismo. So Paulo: Ed.

    Brasiliense, 1987.

    MARSHALL, Thomas Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar

    Editores, 1967.

    MONTESQUIEU. O esprito das leis. Braslia: Ed. UnB, 1982.

    PANDOLFI, Dulce C. Percepo dos direitos participao social. In Carvalho, J. M.

    de (org.). Cidadania, justia e violncia.Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999.

    PINHEIRO, Paulo Sergio Transio poltica e no-Estado de direito no Brasil. In

    Pinheiro, P. S.; Sachs, I. e Wilheim, J. (orgs.). Brasil: um sculo de transformaes.

    So Paulo: Companhia das Letras, 2001.

    POULANTZAS, Nicos. LEtat, le Pouvoir et le Socialisme. Paris: Press Universitaires

    de France,1978.

    REIS, Elisa Cidadania: histria, teoria e utopia. In Carvalho, J. M. de (org.).

    Cidadania, justia eviolncia. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999.

    ROUSSEAU, Jean Jaques Coleo Os Pensadores. So Paulo: Ed. Abril, 1978.

    SADEK, Maria Tereza (org). Justia e cidadania no Brasil.So Paulo: Sumar, 2000.

    _____ (org). Acesso Justia.So Paulo: Fundao Konrad Adenauer, 2001.

    _____. Estudo diagnstico: Defensoria Pblica no Brasil. Braslia: Ministrio da

    Justia, 2004.

    SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Transio em resumo: do passado recente ao

    futuro imediato. Revista Brasileira de Cincias Sociais, n 1, 1986.

    _____. Dcadas de espanto e uma apologia democrtica. Rio de Janeiro: Rocco,

    1998.

    SCHIER, Paulo Ricardo. Uso alternativo do direito. Revista de Direito Alternativo,

    So Paulo, n. 02, 1993, pp. 74-81.

    SILVA, Ctia. Ada A Justia em jogo: novas facetas da atuao dos Promotores de

    Justia. So Paulo: Edusp/Fapesp, 2001.

    ________. Acesso Justia: uma leitura dos direitos e da cidadania no Brasil

    contemporneo. So Paulo: IFCH/UNICAMP, 2002.

    TATE, C. Neal e VALLINDER, Torbjon The global expansion of Judicial Power. New

    York: New York University Press, 1995.

    VIANNA, Luiz Werneck (org.).A democracia e os trs poderes no Brasil.BeloHorizonte: UFMG, 2002._____________e REZENDE CARVALHO, Maria Alice Repblica e civilizao

    brasileira. In Bignotto, N. (org.). Pensar a Repblica. Belo Horizonte: Ed. UFMG,

    2002.

  • 8/6/2019 Acesso Justia- Eduardo Motta

    38/38

    _________________ e BURGOS MarceloEntre princpios e regras (cinco estudos de

    ao civil pblica). Rio de Janeiro: CEDES/IUPERJ, 2005.

    VIANNA, Luiz Werneck; REZENDE DE CARVALHO, Maria Alice; CUNHA MELO,

    Marcelo P. e BURGOS, Marcelo Baumann Corpo e alma da magistratura brasileira.

    Rio de Janeiro: Revan, 1997.

    __________________ A judicializao da poltica e das relaessociais no Brasil.

    Rio de Janeiro: Revan, 1999.

    WOLKMER, Antonio Carlos.Pluralismo jurdico. So Paulo: Alfa-mega, 1997.

    Resumo: O presente artigo objetiva uma anlise do desenvolvimento do conceito de

    acesso justia na realidade brasileira. Se nos anos 70 o enfoque sobre o acesso

    justia de direcionava aos canais paralegais do direito, a partir da dcada de 80.

    Essa problemtica comea a se voltar s instituies estatais do direito, a exemplo

    do Ministrio Pblico, Defensoria Pblica e Juizados Especiais. O fortalecimento

    dessas representaes funcionais amplia-se consideravelmente a partir da

    Constituio de 1988, alm da emergncia da judicializao das relaes polticas e

    sociais, tornando os canais legais do direito e da justia em instncias de

    resolues de conflitos e de afirmao dos direitos aos mais distintos setores da

    sociedade.

    Palavras Chave: Acesso justia, cidadania, judicializao, direito alternativo,

    representao funcional

    * Doutor em Sociologia pelo IUPERJ/UCAM; mestre e bacharel em Cincias Sociais

    pelo IFCS/UFRJ; professor e pesquisador da EBAPE-FGV/RJ.

    * Email: [email protected]