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As relações entre fala e escrita: mitos e perspectivas Roxane Rojo Caderno do Professor

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As relações entre fala e escrita: mitos e perspectivas Roxane Rojo

Caderno do Professor

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Reitor da UFMG Ronaldo Tadêu PenaVice-reitora da UFMG Heloísa Maria Murgel Starling

Pró-reitora de Extensão Ângela Imaculada Loureiro de Freitas DalbenPró-reitora Adjunta de Extensão Paula Cambraia de Mendonça Vianna

Diretora da FaE Antônia Vitória Soares AranhaVice-diretor da FaE Orlando Gomes de Aguiar Júnior

Diretor do Ceale Antônio Augusto Gomes BatistaVice-diretora Ceris Ribas da Silva

O Ceale integra a Rede Nacional de Centros de Formação Continuada do Ministério da Educação.

Presidência da República | Ministério da Educação | Secretaria de Educação Básica

Departamento de Políticas da Educação Infantil e Ensino Fundamental

Coordenadoria Geral de Política de Formação

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As relações entre fala e escrita: mitos e perspectivas Roxane Rojo

Caderno do Professor

Ceale* Centro de alfabetização, leitura e escrita FaE / UFMG

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FICHA TÉCNICA

Coordenação

Maria da Graça Costa Val

Revisão

Maria da Graça Costa Val

Heliana Maria Brina Brandão

Ceres Leite Prado

Leitor Crítico

Maria Zélia Versiani Machado

Projeto Gráfico

Marco Severo

Editoração Eletrônica

Patrícia De Michelis

Ilustração de capa

Patrícia De Michelis

Catalogação da Fonte: Biblioteca da FaE/UFMG

R741r Rojo, Roxane.

As relações entre fala e escrita: mitos e perspectivas - caderno do pro-

fessor / Roxane Rojo. - Belo Horizonte: Ceale, 2006.

60 p. - (Coleção Alfabetização e Letramento)

ISBN: 85 - 99372 - 36-X

Nota: As publicações desta coleção não são numeradas porque podem ser

trabalhadas em diversas seqüências, de acordo com o projeto de formação.

1. Alfabetização. 2. Letramento. 3. Língua portuguesa - Estudo e ensi-

no. 4. Escrita - Estudo e ensino. 5. Formação de professores. 5. Educação

continuada. I. Título.

CDD - 372.4

Copyright © 2005-2007 by Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita

(Ceale) e Ministério da Educação

Direitos reservados ao Ministério da Educação (MEC) e ao Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale)Proibida a reprodução desta obra sem prévia autorização dos detentores dos direitos

Foi feito o depósito legal

Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale). Faculdade de Educação da UFMGAv. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha

CEP: 31.270-901 - Contatos - 31 34995333www.fae.ufmg.br/ceale - [email protected]

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INTRODUÇÃO 7

1. O SURGIMENTO DAS ESCRITAS 11

2. RELAÇÕES ENTRE FALA E ESCRITA - ALGUNS MITOS E PERSPECTIVAS 21

3. RELAÇÕES ENTRE FALA E ESCRITA - NOVAS PERSPECTIVAS 37

4. ORALIDADE E LETRAMENTOS MÚLTIPLOS - MÚTUA CONSTITUIÇÃO 45

APÊNDICE 51

REFERÊNCIAS 57

u Sumário

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77As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

Antes de existir computadorExistia a TVAntes de existir TVExistia luz elétricaAntes de existir luz elétricaExistia bicicletaAntes de existir bicicletaExistia enciclopédiaAntes de existir enciclopédiaExistia alfabetoAntes de existir alfabetoExistia a vozAntes de existir a vozExistia o silêncio…o silêncio…

(Arnaldo Antunes, Moto Perpétuo)

Como diz o poema/letra de Arnaldo Antunes em epígrafe, primeiro, existiu a voz. Todosos povos do mundo falamos, dispomos de linguagem oral. No entanto, nem todos ospovos do mundo, ainda hoje, escrevem. Subsistem ainda algumas comunidades ágrafas,por exemplo, certos grupos indígenas do Brasil.

Como e por que surgiu a escrita? Que necessidades levaram os grupos humanos a deixartraços em superfícies concretas? Quais os primeiros grupos humanos a fazê-lo? Comochegamos ao alfabeto tal como o conhecemos hoje? Como a escrita evoluiu ao longo da

u Introdução

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88In

trod

ução história da humanidade? Que finalidades ela cumpre hoje, nas complexas sociedades

letradas pós-modernas? Neste processo, como se configuraram e se configuram hoje asrelações entre a fala e a escrita?

Neste texto, as superfícies concretas – como a pedra, as

paredes, o papiro, o papel – em que foram e são inscritos

traços significativos, as grafias, serão chamadas de suportes.

Neste Caderno, discutiremos essas e outras questões ligadas às relações entre fala e escritaem nossa sociedade – a partir de diferentes perspectivas e buscando uma reflexão crítica sobreos muitos mitos que cercam essas relações –, com a finalidade de subsidiar o trabalho doprofessor com a língua em uso na sala de aula, em interações orais ou escritas.

Ao longo deste trabalho, objetivamos que o professor seja capaz de:

u Refletir criticamente sobre alguns mitos e pré-conceitos que povoam o senso-comum sobre

a linguagem oral, a linguagem escrita e suas relações;

u Conhecer alguns momentos e aspectos da história do desenvolvimento das escritas na

humanidade;

u Compreender diferentes modos de pensar sobre as relações entre fala e escrita, entendendo seu

foco de atenção principal;

u Compreender a importância da situação de comunicação para a elaboração de textos orais

e escritos e a escolha das modalidades de linguagem neles presentes;

u Compreender a complexidade das relações entre diversas modalidades de linguagem, trazida

pelas novas tecnologias da comunicação e da informação;

u Perceber a necessidade de trabalhar em sala de aula, conjuntamente, todas essas modalidades

de linguagem em relação;

u Identificar as variedades e estilos de linguagem oral permitidas ou exigidas pelas circunstâncias

sociais de textualização;

u Identificar as variedades e estilos de linguagem escrita permitidas ou exigidas pelas circuns-

tâncias sociais de textualização;

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99As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

u Aplicar esses conceitos e reflexões ao trabalho com os textos orais, escritos e multimodais

em sala de aula.

Os textos multimodais são aqueles que utilizam diferentes

modalidades de linguagem (grafismos, desenhos, imagens

em movimento...). A heterogeneidade ou hibridismo das lingua-

gens será chamada, neste Caderno, de multimodalidade ou

multimidialidade e será relacionada com a necessidade de

letramentos múltiplos.

Para concretizar os objetivos e desenvolver os temas propostos, este Caderno estáorganizado da seguinte forma:

u 1ª seção: O surgimento das escritas, relata alguns momentos do aparecimento e desenvolvimento

das escritas na história da humanidade e, a seguir, discute criticamente alguns mitos ou

pré-conceitos que se estabelecem comumente, inclusive nas salas de aula, sobre essa forma

de linguagem, buscando refletir sobre esse senso-comum, com especial ênfase na visão da

escrita como transcrição ou representação da fala, muito presente em trabalhos sobre alfabetização;

u 2ª seção: Relações entre fala e escrita – alguns mitos e perspectivas, apresenta e discute as primeiras

perspectivas teóricas sobre as relações entre fala e escrita, na visão dicotômica que apresenta fala e

escrita como modalidades distintas, centrada nas busca das diferenças entre ambas;

u 3ª seção: Relações entre fala e escrita – novas perspectivas, apresenta e discute perspectivas

teóricas mais recentes e ainda em elaboração que enfatizam as características dos gêneros e

estilos discursivos, inclusive a visão de continuidade ou gradação dos textos e gêneros textualizados

mais à maneira da linguagem oral ou da linguagem escrita e a noção de retextualização;

u 4ª e última seção: Oralidade e letramentos múltiplos – mútua constituição, com base na discussão

das seções anteriores, explora as relações entre fala e escrita, tanto na alfabetização como

nas diversas práticas de letramento, em especial nos usos formais e públicos da linguagem, em

diversas mídias; enfatiza a importância do contexto de produção para a seleção dos gêneros

e estilos, a heterogeneidade ou o hibridismo das linguagens nos diversos gêneros e o processo de

constituição dos textos com mútua intervenção tanto da escrita como da fala e de outras

linguagens; será, portanto, nessa seção, ressaltada a necessidade contemporânea de letramentos

múltiplos, em diversas modalidades de linguagem, e serão tematizadas as possibilidades de apli-

cação destes conceitos explorados no trabalho do Caderno às situações e práticas de sala de aula.

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1100In

trod

ução A quarta seção explora também, com menor ênfase, outras

modalidades de linguagem, como os gestos, os grafismos, a

imagem estática e a imagem em movimento, ou seja, a

multimodalidade.

ATIVIDADE 1

1. Dê uma definição do que é a linguagem oral para você. Você acha que a linguagem oral é

aprendida? Que ela deve ser ensinada na escola? Como?

2. Dê uma definição do que é a linguagem escrita para você. Você acha que as crianças podem

desenvolver linguagem escrita fora da escola? Como?

3. Assinale com um X as afirmativas que considera corretas. Depois, discuta com seu grupo e seu

formador as respostas que deu. Você também terá oportunidade de rediscutir essas respostas

ao longo deste Caderno e de revisá-las ao final.

( ) A escrita transcreve os sons da fala.

( ) O desenho antecede a escrita no desenvolvimento infantil.

( ) Num ditado, é muito importante pronunciar “certinho” as palavras, para que a criança

possa transcrevê-las.

( ) Os povos que não dispõem de escrita são primitivos e pouco desenvolvidos.

( ) As pessoas analfabetas têm limitações cognitivas e pouco desenvolvimento lógico.

( ) A fala é efêmera e fugaz; a escrita permanece.

( ) A fala sempre se dá face-a-face; a escrita é sempre usada para alcançar pessoas distantes

no tempo e no espaço.

( ) Na fala, as pessoas expressam seus sentimentos e suas emoções, da maneira como sua

comunidade se comunica. Por isso, a fala não deve ser trabalhada na escola.

( ) O oral é mais espontâneo e menos controlado que o escrito.

( ) Os problemas de comunicação, mal-entendidos, conflitos são resultados de falhas na

maneira de se exprimir, de uma má utilização das palavras.

( ) Ensinar expressão oral é ensinar o modo como os alunos devem se exprimir, de maneira

clara, com palavras próprias de seu vocabulário; para isso, é preciso inculcar bases

referentes à elocução de idéias e de frases com sentido entre si, pois os alunos dão

espontaneamente idéias sem continuidade.

( ) A linguagem oral dos alunos é pobre, truncada, e precisa ser desenvolvida.

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1111As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

Esta seção está baseada em textos disponíveis em: “L’aventure

des écritures”, <http://classes.bnf.fr/dossiecr/>. Acesso

em: 11 mar. 2006.

Tudo se passa como se a escrita já tivesse sido inventada antes de ser posta emrelação com a língua, antes de ser fonetizada: o advento da escrita é o advento dealgo que já é a escrita (considerando que a sua característica fundamental é oisolamento de um traço significante através da grafia) e que, depois de umaevolução lenta e descontínua, acaba por poder servir de suporte ao som(BARTHES e MARTY, 1987, p.32).

Neste Caderno, vez por outra vamos citar as palavras ou as

idéias dos autores em que nos baseamos. Como fizemos

acima, quando citamos Roland Barthes e Eric Marty, vamos

indicar, nas citações, o sobrenome do autor ou autores, a

data de publicação da obra consultada (no caso, 1987) e,

quando for necessário, a página onde está o trecho citado

(no caso, página 32). Para identificar o autor ou autores, basta

localizar o sobrenome na lista bibliográfica no final do Caderno;

para identificar a obra, é só conferir a data de publicação.

Na longa história da humanidade, as escritas são uma invenção recente, de pouco mais de5000 anos. Como diz Arnaldo Antunes (na epígrafe principal), elas aparecem depois dafala, mas antes da enciclopédia. Nesta seção, vamos conhecer alguns desses momentosiniciais de aparecimento da escrita, em vários povos e sociedades.

É na Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, na cidade de Uruk, antiga capital de Sumer,que são encontrados os vestígios mais antigos de escrita cuneiforme, datados de 3300 a.C.

O surgimento das escritas

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s A cidade de Uruk chama-se atualmente Warka e fica no Iraque.

A escrita cuneiforme é herdeira dos pictogramas e das pinturas rupestres, que,originalmente, registravam e representavam objetos, ações e cenas de grupos humanos.Mas os pictogramas – desenhos ou grafismos representando coisas ou seres – mudam defunção na escrita cuneiforme.

No Caderno “Desenvolvimento e apropriação da linguagem

pela criança”, desta Coleção, as pinturas rupestres são

definidas como pinturas feitas nas rochas, que ficaram regis-

tradas ao longo de muitos anos, feitas com ocre (‘tipo de

terra fina que contém argila e óxido de ferro hidratado e que

apresenta várias tonalidades pardacentas tirantes a amarelo

ou a vermelho’, cf. Dicionário eletrônico Houaiss da língua

portuguesa, versão 1.0.5a, de novembro de 2002), na maio-

ria das vezes, ou com gordura vegetal e animal.

As populações que habitavam a região da Mesopotâmia, sob o governo de um soberano,eram urbanizadas e compostas por comerciantes, administradores, artesãos, camponeses epastores e praticavam todo tipo de trocas administrativas e comerciais. A escritacuneiforme nasceu sobretudo da necessidades destes povos de registrarem suas trocascomerciais. Os sumérios, grandes comerciantes, acabam de aperfeiçoar o sistema.

Um pouco depois da escrita cuneiforme, é inventada a escrita egípcia, os hieróglifos.Hieróglifo (ηιερογλυφικοσ) quer dizer, literalmente, gravura sagrada. A escrita nasce, noEgito, não a serviço do comércio, como aconteceu com outras escritas, mas de um poderonde o religioso e o político são indissociáveis; lá, é considerada como um dom de Deuse uma vocação que garante a ordem do mundo.

No caso da escrita cuneiforme dos sumérios, os pictogramas, representandoesquematicamente objetos (já como mercadorias), começam ser utilizados para registrar astrocas comerciais e se constituem como signos-imagem dos objetos.

Pictograma de uma cabra

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1133As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

Depois, os pictogramas começam a ser combinados entre si para representar novas idéiasou ações mais abstratas, compondo os ideogramas, ou signos-idéias:

Pássaro+ovo = fecundidade

Podemos, portanto, definir a escrita, de maneira mais geral, como a representação visualda linguagem por um sistema de signos gráficos adotados convencionalmente por umacomunidade. Ao longo de sua história, as escritas utilizaram suportes muito variados: dapedra à terra seca ou cozida aos muros urbanos, do papiro ao papel, do filme à tela docomputador ou da TV.

Como vimos, chamamos suportes aquelas superfícies concretas

onde os signos se inscrevem ou se afixam.

A grafia cuneiforme nascida em Sumer vai, num certo momento, por causa dasdificuldades gráficas, deslocar-se 90º à esquerda, mudando as linhas: as linhas curvas,difíceis de traçar na argila mole, são decompostas em linhas retas que não são maisdesenhadas, mas passam a ser impressas por meio de um instrumento – o calame – deponta triangular, que deixa impressos desenhos em forma de cunha – daí o nome de escritacuneiforme – em forma de cunha. Com isso, os signos gráficos vão se simplificando em termosde traçado e deixando de ter relação imediata com a imagem do objeto.

Evolução do signo cuneiforme para a representação de Homem.

Por volta de 3000 a.C., tanto pictogramas como ideogramas são também utilizados comvalor fonético, cada signo representando uma sílaba. São signos-sons, que colocam,portanto, pela primeira vez, a escrita em relação com a fala. Assim, aperfeiçoando-seconstantemente, a escrita cuneiforme acaba por quase que transcrever a língua dos

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s sumérios e depois se adapta a outras línguas estrangeiras. A passagem do signo-imagem aosigno-som (silabário) e o formato cuneiforme simplificado facilitam essa expansão e aescrita passa de simples registro para memória para funções mais ambiciosas, como oregistro de contratos, de documentos (econômicos, administrativos, religiosos) e mesmode textos literários e poéticos, como a epopéia de Gilgamesh. A partir de 2000 a.C., aescrita mesopotâmica se espalhará pelo Oriente Próximo: do golfo árabe-pérsico aoMediterrâneo, do Irã ao Cáucaso, até a Ásia Menor e a Palestina.

A Epopéia de Gilgamesh é considerada uma das mais antigas

epopéias do mundo. Fragmentos dessa obra foram encontradas

nas escavações efetuadas em Nínive, na biblioteca de

Assurbanipal, o último grande rei assírio, que reinou no 7º

século a.C. A versão mais recente está escrita em doze tabuletas

de argila e é o resultado de pelo menos 1800 a 2000 anos

de trabalho sobre a epopéia.

Portanto, podemos distinguir três grandes sistemas de escrita:

u O sistema ideográfico ou logográfico – onde cada signo representa um objeto (pictograma) ou uma

idéia (ideograma ou logograma). A escrita ideográfica exige milhares de signos e, por isso, um

longuíssimo aprendizado. Embora um ideograma possa, teoricamente, ser compreendido por pes-

soas falantes de diferentes línguas, cada povo representou diferentemente os objetos e idéias.

No Japão, por exemplo, no Ensino Fundamental, leitura e escrita

são as partes mais importantes do currículo elementar. Além dos

dois sistemas silabários japoneses (hiragana e katakana), espera-

se que o aluno aprenda pelo menos 1006 kanjis (ideogramas) até

o final da sexta série. Portanto, em países com sistemas de

escrita ideográficos, a alfabetização (parcial) leva pelo menos sete

anos, se se contar a Educação Infantil, por causa da grande

quantidade de ideogramas que devem ser aprendidos.

Ideogramas chineses Pictograma asteca Hieróglifo egípcio

Representações de “água” em diversas escritas ideográficas (Louis-Jean Calvet, Histoire de l’écriture, 1996).

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itos e perspectivas

u Os sistemas silábicos – onde cada signo representa o som de uma sílaba. Como vimos, o

primeiro silabário foi o sumério, grafado em escrita cuneiforme. Outros povos também

criaram silabários que se desenvolveram em alfabetos: os fenícios, os hindus, os hebreus.

Um silabário dispõe de cerca de 80 a 120 signos.

u Os sistemas alfabéticos – onde cada signo representa um som decomposto (fonemas e não

mais sílabas) e esses signos podem se combinar para representar sons diferentes. Graças a

essas múltiplas combinações possíveis, bastam cerca de 30 signos para que um alfabeto dê

conta de uma língua, o que torna seu aprendizado consideravelmente mais simples.

Na verdade, a maior parte das escritas é, de fato, uma combinação dos três sistemas.

O primeiro alfabeto conhecido era em escrita cuneiforme simplificada, com 30 signos. Foiinventado em Ougarit, cidade comerciante da costa da Síria, no século XIV a.C.

Mas o mais importante desenvolvimento da escrita alfabética foi de responsabilidade dosfenícios, também comerciantes e navegadores. O alfabeto fenício pode ser considerado oancestral de todos os outros alfabetos do mundo.

Tábua com inscrições em escrita cuneiforme Alfabeto de Ougarit (Virolleaud, Syria, XXVIII, p.22)

no alfabeto de Ougarit (Museu do Louvre, Paris).

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s Herdeiro dos primeiros ensaios alfabéticos do alfabeto de Ougarit e dos silabários, oalfabeto fenício, por volta do ano 1000 a.C. tem 22 letras, representando consoantesapenas. Comerciantes, marinheiros e navegadores, os Fenícios espalham pelo mundo seualfabeto, dando origem aos alfabetos grego, latino, aramaico, árabe e indiano.

Como vimos, trata-se de um silabário, onde somente as consoantes são representadasvalendo pela silaba. Assim, o aleph e o ain – vogais coringa - são sons vocálicos de espectromais amplo, não equivalendo exatamente a um som vocálico específico.

Boi (‘aleph = /‘/) Aguilhão (lamed = /l/)

Casa (beth = /b/) Água (mem = /m/)

Camelo (gimel = /g/) Peixe (nun = /n/)

Porta (daleth = /d/) Peixe (sâmekh = /s/)

(hê = /h/) Olho (’ain = /’/)

Prego (waw = /w/) Boca (pe = /p/)

Arma (zain = /z/) (san = /s/)

(heth = /h/) (qoppa = /q/)

(thet = /t/) Cabeça (resh = /r/)

Braço (yodh = /j/) Dente (sin = /s/)

Palma (kaph = /k/) Cruz (tau = /t/)

Mesmo a palavra alfabeto vem de aleph + beth

Assim, uma palavra como macaco se escreveria:

mem + kaph + kaph (água + palma + palma) sem as vogais:

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1177As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

Vimos, até aqui, que a escrita foi inventada e transformada por muitos povos na antiguidade,mas que sempre nasceu de necessidades sociais ligadas às esferas de poder das comunidades,seja poder de mando – como no caso do Egito – seja poder econômico, como no caso dosmuitos povos comerciantes que dela precisaram para suas relações de negócios.

Vimos também que, num primeiro momento, ela era simbólica: representava os objetos,as imagens das coisas e dos seres. Foi se tornando mais e mais abstrata, nos ideogramas,representando idéias por meio de combinações de pictogramas. Posteriormente, esses mesmospictogramas e ideogramas que representavam imagens de coisas, passaram a representar ossons das palavras que designavam essas mesmas coisas:

Resh (cabeça, em fenício) escrito para representar o som /r/ de resh (cabeça).

O que separa as representações ideográficas das fonográficas, como os silabários ealfabetos, é um longuíssimo processo de análise e decomposição dos sons das línguas –análise fonológica – feito por esses povos comerciantes, por causa de suas necessidadespráticas. Esse processo de análise levava-os a reter os sons mais importantes pararepresentar de maneira prática o que era necessário. Assim, representaram as consoantes,mas não as vogais, que poderiam ser inferidas, por exemplo. Muitos sons, mesmo emnosso alfabeto, não são representados. Por exemplo, a letra T, de acordo com a região emque vive o falante, pode corresponder ao fonema /t/ ou aos fonemas /t∫/: diz-se [norte] naregião sul e [nortchi] na região sudeste. Portanto, a letra T representa sons diferentesconforme seja lida por um falante de uma região ou da outra.

Isto leva a uma primeira conclusão importante sobre alguns mitos em que muitas pessoasacreditam: não se escreve como se fala. A fala se dá de diferentes maneiras em diferentesregiões do país e em vários grupos sociais, mas a escrita elege algumas letras e sinais pararepresentar apenas alguns dos sons destas variedades. Logo, a escrita não é, embora muitoscreiam nisto, uma transcrição da fala, não é um código de transcrição. Ao contrário, comobem lembrava Emília Ferreiro (1986), a escrita elege alguns sinais gráficos para representaralguns aspectos (sons, pausas, entonações) da fala, mas não outros. Uma transcrição maisexata da fala só pode ser obtida por meio do alfabeto fonético, mas não por meio da escritaalfabética convencional. Logo, a escrita é um processo de representação e não detranscrição, que exige análise mas que tem muito de convenção.

Em segundo lugar, a escrita não é um dom e não evoluiu do desenho (pictograma) para o desenhoestilizado (ideograma) e para a escrita alfabética, como muitos parecem acreditar. Não é precisoantes desenhar para depois escrever letras. Esses são sistemas de representação que funcionam a

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s partir de lógicas diferentes e qualquer criança que participe de práticas letradas sabe distinguir“o que está escrito” do que é desenho ou ilustração.

Na verdade, os três sistemas de escrita estão presentes em todas as representações gráficas detodos os povos hoje e, historicamente, os povos foram criando e modificando esses sistemas,à medida que necessidades sociais se apresentavam, como ainda hoje acontece.

ATIVIDADE 2

1. Escreva, abaixo de cada imagem, o sistema de escrita que nela está utilizado e justifique sua

resposta.

a)

b)

c)

Ku Shu

TeSora, Kara

Céu (sora), Vazio (kara)

(Ideogramas desenhados por Sumiko Kanashiro, diretora do Instituto de Cultura Oriental, Belo Horizonte.)

Mão Karate

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1199As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

d)

e)

f)

2. Analise a mensagem de correio eletrônico ou torpedo abaixo, escrita em “internetês”, e depois

explique porque a escrita alfabética não é transcrição, mas sim representação da fala.

VC VEIN AKI EM KAZA CM KEM E KDO? TRAZ XOCOLATEE + CERVEJA? AXO Q NAUM TENHO +. BLZ? ☺

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2211As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

Esta seção está baseada em Rojo (2001).

De fato, a aplicação da escrita diz respeito, no princípio [no IV milênio a.C.],sobretudo a coisas novas: as contas, os reconhecimentos de dívidas para com osdeuses ou para com os homens, as séries de dinastias, os oráculos e as listas desanções, enquanto as receitas de cozinha, os códigos de comportamento, porexemplo, eram transmitidos oralmente. Tudo se passa como se a escrita, criadaa partir dessas novas condições de vida, lhes permanecesse necessariamente ligada,como se não pudesse ser aplicada a coisas que não tivessem contribuído parasua criação... (BARTHES e MARTY, 1987, p.39).

Vale a pena começarmos esta seção fazendo uma distinção também sugerida, em outrostermos, por Roland Barthes: a distinção entre a(s) escrita(s) e os escritos. Vamos chamar de a(s)escrita(s) aquilo que se refere à grafia, isto é, às formas gráficas (letras, ideogramas) que –estabelecendo ou não relações com os sons da fala, como nas escritas silábicas ou alfabéticas– constituem a parte material, concreta da escritura. Vamos chamar de os escritos os textos que,fazendo uso desta(s) materialidade(s) concreta(s), resultam de uma prática letrada.

Como vimos, as escritas nascem de novas necessidades ligadas às esferas de poder –econômico, religioso, político. Barthes e Marty (1987) notam que os textos e gênerosde textos ligados a essas esferas de poder são os primeiros a serem grafados: contas,contratos, registros de dívidas, oráculos, obituários, listas de sanções. São tambémprecisos muitos séculos para que as escritas passem a grafar a enorme variedade deescritos que hoje conhecemos.

Relações entre fala e escrita - Alguns mitose perspectivas

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s Chamamos gêneros de texto ou de discurso as formas de

dizer mais ou menos estáveis numa sociedade. Todos os

cidadãos sabem o que são e reconhecem notícias, anúncios,

bulas de remédio, cheques, cartas etc. Esses gêneros são

conhecidos e reconhecidos tanto pela forma dos textos a eles

pertencentes como pelos temas e funções que viabilizam e

pelo estilo de linguagem que permitem. Os gêneros não são

tipos de texto, pois circulam efetivamente na sociedade. Os

tipos de texto (narrativo, descritivo, argumentativo, expositivo,

instrucional, dialogal) são generalizações sobre as proprie-

dades de textos de vários gêneros. Os textos pertencentes a

um gênero viabilizam os discursos de um campo social. Por

exemplo, as notícias, editoriais e comentários fazem circular os

discursos e posições das mídias jornalísticas.

No Ocidente, desde seu início até os fins da Idade Média, a escrita (manuscrita) é domíniode poucos e não se apresentava como a conhecemos hoje. Escrever era um ofícioprofissional, que cabia a uma corporação de ofício na Idade Média – a dos escribas. NaAntiguidade, como vimos, os escribas eram funcionários que estavam ligados aos templos,aos soberanos e imperadores, ao comércio. Na Idade Média, esses funcionáriospermanecem ligados também ao poder de governo, ao comércio e à Igreja, mas também àsescolas e Universidades que estão surgindo. Esses escribas da Idade Média das Universidadese Monastérios eram copistas, que transcreviam a mão (manuscritos) textos antigosencontrados ou textos novos ditados pelos padres filósofos.

Veja, por exemplo, o filme O Nome da Rosa, onde se trata

do roubo de um manuscrito proibido de um texto inédito de

Aristóteles.

Os copistas escreviam sem pontuação e sem espaços entre as palavras, mas, neste momento,a cópia de um ditado feito, por exemplo, por Santo Agostinho já era um trabalho deestabelecer relações entre sons da fala e letras, para produzir ou documentar textos sagrados efilosóficos (mais tarde um pouco, científicos), históricos, literários (epopéias, dramas),jurídicos (leis, contratos). Começam a surgir os escritos variados.

Mas, na Idade Média, os manuscritos não são acessíveis a todos – somente aos escribas –e nunca passam sem a voz. Quase sempre, o escriba do manuscrito não coincide com oautor que lhe dita o texto. Aí, texto e grafia (o escrito e a escrita) estão bastante separados:o autor está encarregado do texto e o escriba, da escrita.

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2233As relações entre fala e escrita: m

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Teremos a mesma situação novamente quando, num tempo

não muito distante, pudermos ditar nossos textos para o com-

putador, sem digitá-los: o computador será o escriba do futuro.

Por outro lado, era impossível ler sem a voz ou a palavra falada; ler silenciosamente. SantoAgostinho, por exemplo, considera a leitura silenciosa como anomalia. Por essa época, aescrita ainda era menos importante que a palavra falada e tendia a se reduzir à cópia pararegistro de textos ditados ou já anteriormente escritos.

Até o desenvolvimento da imprensa, as pessoas eram obrigadas, para compreenderemum texto, a lê-lo em voz alta, visto que as palavras não estavam separadas e criavam,assim, ambigüidades de significado: a natureza puramente espacial do texto escritonão estava ainda fundada... (BARTHES e MARTY, 1987, p. 49).

Pode-se dizer que é com o advento da imprensa e da escrita mecânica que a escrita separa-seda palavra falada, deslocando-se do território do som e do tempo para o do olho e doespaço. O texto ganha autonomia em relação à palavra falada e o escrito passa a significarmais do que simplesmente a escrita. Volta a ser, diria Vygotsky (1935), um simbolismo de1ª ordem: libera-se da fala como signo mediador.

A partir de então – e cada vez com maior intensidade, com os meios eletrônicos decomunicação – tanto a importância da fala como da escrita e da grafia têm diminuído, emfavor da significação que pode emergir do texto escrito ele próprio, como discurso que sepõe em relação com outros discursos de outros autores.

A partir do momento em que, com a invenção da imprensa, o autor e o escriba; a grafia e otexto; a escrita e o escrito fundiram-se e confundiram-se, as relações entre estes elementos (afala, a escrita e os textos falados ou escritos) também se tornaram complexas, exigindo ummaior refinamento de análise, nem sempre encontrado quando se fala da escrita e de seuprocesso de apropriação pelo aprendiz, na relação com a oralidade.

É claro que, hoje, nas modernas sociedades ocidentais, diferentemente da Idade Média,para que um autor produza um texto (produza o escrito) e o faça circular socialmente demaneira aberta a possíveis leitores, não só é preciso que este domine a escrita (a grafia),como também que tenha acesso a instituições – mais ou menos democráticas – quecolocam a escrita em circulação: a imprensa, a internet. Note-se que também esta situaçãoé provisória, pois hoje também é perfeitamente possível se pensar uma evolução dos meioseletrônicos, a partir da qual a escrita e o texto se façam diretamente a partir da fala e do ditado,como na Idade Média, passando o computador a ser o escriba. Entretanto, o texto continuará

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s texto; o autor talvez continue autor; a escrita continuará escrita; sem que, entretanto, hajanecessidade deste “saber sobre” a escrita por parte do autor, para ditar um texto escrito.

Quando se aborda um par de práticas tão intimamente ligadas como o oral eo escrito, é necessário considerá-las práticas sutis que não se sustentam apenasno seu funcionamento presente (BARTHES e MARTY, 1987, p.57).

Para as crianças de hoje – antes, durante e depois da alfabetização –, os textos aparecemnesta configuração espacial de signos que são vistos e não ouvidos, que são feitos paraserem lidos silenciosamente.

Abordando a escrita, a que produz textos, Barthes e Marty (1987, p.46) se perguntam se,do ponto de vista discursivo:

...a ligação do escrito ao oral através da alfabetização não é, no plano dacomunicação, uma pura ilusão, e se, pelo contrário, a posição do sujeito não écompletamente diferente na sua própria enunciação.

A respeito da escrita, diz Barthes (1981, p.12): a escrita não é

a fala [...]; mas ela também já não é o escrito, a transcrição;

escrever não é transcrever.

O que define, então, o(s) escrito(s), isto é, os textos escritos no seu plano discursivo outextual e não a partir de sua materialidade gráfica? Que relações eles mantêm,enquanto textos, com a fala?

Diferentes autores vão apontar como traço definidor da escrita em relação à fala umacaracterística que emergiu historicamente no momento de seu deslocamento de umespaço de poder por direito divino (teocrático) para um espaço de poder pela relaçãoentre pessoas do povo (democrático); no momento do surgimento do texto impresso:a descontextualização, a autonomia do texto escrito em relação à sua situação deprodução ou contexto.

Segundo esses autores, na fala cotidiana, conheço meu interlocutor e compartilhamos, nomomento da fala, o mesmo contexto e um conjunto de conhecimentos comuns. Ele pode meinterromper imediatamente, para esclarecer dúvidas, concordar, discordar, acrescentar, mudarde assunto. Na fala, posso me expressar de maneira mais livre e menos formal. Nãopreciso planejar antes o que vou dizer: vou simplesmente falando. Por isso, diz

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2255As relações entre fala e escrita: m

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Vygotsky (1934), o discurso oral é mais abreviado que o escrito, economiza muitosconhecimentos compartilhados ou pertencentes ao contexto que, na escrita, precisamser explicitados. Isso leva o texto oral a parecer mais lacunar, falho, fragmentário,desorganizado e preso ao contexto que o texto escrito. Como veremos, trata-se apenasde parecer e não efetivamente ser.

Para melhor compreendermos este raciocínio, vejamos um exemplo:

EXEMPLO 1

Conversa telefônica entre amigos Notícia retirada de

(inventada) http://www.teatroaugusta.com.br/,14/03/2006, adaptação.

Acesso em: 14 mar. 2006.

Paulo: Ôpa, Mano! Beleza? Brasileira será a primeira bailarina do Royal Ballet

Ricardo: Beleza. Pela primeira vez uma brasileira assume o posto de primeira

Paulo: Cê viu, Bró? A Beta vai bailarina do Royal Ballet de Londres. A carioca Roberta Marquez,

dançar agora em Londres. Primeira uma das estrelas do Teatro Municipal do Rio, vai integrar o elenco

bailarina, Mano. É mole? da companhia em setembro. Roberta começou a dançar muito

Ricardo: Irado! Mas já dava prá cedo. Ainda menina fazia aulas na Escola Estadual de Danças

sacar, né? Do jeito que ela leva fé! Maria Olenewa. Lá ela se formou com louvor sob a direção de

Tá ligado na medalha de prata? Maria Luiza Noronha. Em 1994 fez uma audição para dançar no

Paulo: Tõ ligado. Foi a russa Balé do Teatro Municipal do Rio e em 2002 conquistou o posto

mesmo lá da medalha de prata que de primeira bailarina.

colocou ela nessa. Lá em Londres. A chegada ao Royal começa com Dalal Achcar. Diretora do

Pô, vou sentir saudades. Municipal, Dalal convidou a diva Natalia Makarova para

Ricardo: Só! montar La Bayadère em 2000. “Houve um planejamento.

Paulo: Tão tá. Vô nessa. Primeiro Roberta dançou com Makarova, uma oportunidade

Ricardo: Falou. sem preço. Em 2001, conquistou a Medalha de Prata no 9.º

Moscow International Dance Competition, vencendo os russos,

quando alcançou outro patamar e, depois, dançou o Lago dos

Cisnes, também com Makarova”, conta Dalal, a empresária da

bailarina.

No ano passado, quando Makarova remontou A Bela Adormecida

para o Royal Ballet, convidou Roberta para participar de sua

produção. (…) Em seguida, dançou com a companhia La

Bayadère e Gisele e participou de uma turnê do Royal na Rússia -

em Moscou e São Petersburgo -, onde dançou nos teatros Bolshoi

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s e Mariinsky (…). Como bailarina principal convidada,

apresentou-se também com o American Ballet Theatre e já tem

marcada uma próxima apresentação em maio, no Metropolitan

Opera House em Nova York.

“Com essas apresentações no exterior, as qualidades artísticas de

Roberta começaram a aparecer para o público e daí para a

assinatura do contrato foi um passo”, observa sua empresária.

Neste exemplo, a mesma novidade/notícia é comentada, oralmente e por escrito. Adiferença é que Paulo e Ricardo se conhecem bem, são jovens amigos e freqüentam amesma turma que inclui Roberta. Também conhecem bem Roberta e sua históriaprofissional. Sabem que é uma profissional dedicada, competente e de destaque, queparticipou e conquistou a Medalha de Prata no 9º Moscow International DanceCompetition, a partir de uma oportunidade aberta por Natalia Makarova e que foi amesma Natalia que a chamou para participar de um espetáculo com o Royal Ballet deLondres, que culminou no contrato. Portanto, não precisam detalhar estas informações;concentram-se na informação nova, sobre o contrato. Já o autor da notícia do site sabe queseus leitores não conhecem Roberta e sua história profissional. Assim, além da notícia,esclarece os fatos que levaram ao contrato em Londres.

Além disso, Ricardo e Paulo são jovens amigos que compartilham o cotidiano. Usam oregistro e as gírias de sua comunidade jovem para conversar. A situação é informal. O textodo site, por ser público e em contexto formal – jornalismo digital – adota o português padrão.

Pensando em exemplos como esse, muitos autores além de Vygotsky, Barthes e Martypensam a fala e a escrita como formas de linguagem (modalidades) distintas e, por vezes,bastante opostas em suas características.

Trata-se do que chamamos a perspectiva da dicotomia (do grego, divisão em dois) entrelinguagem oral e linguagem escrita. Tomadas como duas modalidades diferentes, a linguagemoral e a linguagem escrita são investigadas por esses autores pensando em suas diferenças.

Neste sentido, poder-se-ia dizer que o texto escrito se baseia mais na sua autotextualidadeque no seu contexto, ou seja, que o princípio fundador da sua organização se encontra naestruturação interna dos seus significantes, e que, pelo contrário, o discurso oral seorganiza em parte segundo a situação em que evolui (BARTHES e MARTY, 1987, p.49).

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2277As relações entre fala e escrita: m

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Marcuschi (2001, p.27-28) esquematiza as diferenças apontadas por esses autores:

Quadro 1: Diferenças entre fala e escrita apontadas por autores queassumem a perspectiva da dicotomia

Fala Escrita

contextualizada descontextualizadadependente (de contexto) autônoma (em relação ao contexto)implícita explícitaredundante condensadanão-planejada planejadaimprecisa precisanão-normatizada normatizadafragmentária completa

Embora análises como essas possam ser bem adequadas a exemplos como os que vimosacima, o problema com elas é que generalizam para toda a linguagem oral ascaracterísticas da conversa cotidiana e para todos os escritos as características de certosescritos formais e públicos. Por exemplo, um bilhete de Paulo para Ricardo, apesar deescrito, pode ser tão informal quanto a conversa ao telefone e, portanto, poderá parecerbastante fragmentário também:

EXEMPLO 2

Ôpa, Bró! Cê viu? A Beta vai dançar emLondres agora. Primeira bailarina,Mano. É mole? Foi a russa mesmo lá damedalha de prata que colocou ela nessa.Lá em Londres. Pô! Vou sentir saudades!Liga pra ela, falou? Vou nessa.Paulo.

Também a mesma notícia poderia ser dada oralmente num noticiário cultural da TVCultura, preservando muitas características do texto do site.

Vamos refletir um pouco sobre quais são os mecanismos de organização da fala naconversa cotidiana que levam a esta impressão de fragmentação, incoerência e

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s desorganização, se comparada a um texto escrito. Veja este exemplo de conversa cotidianaentre duas mulheres. Na transcrição desta conversa, L1 e L2 são as duas mulheresparticipantes da conversa e os números que antecedem a fala ou turno de cada uma delasservem para facilitar a localização do turno de fala.

EXEMPLO 3

Legenda dos sinais usados na transcrição:

... qualquer pausa

: alongamento de vogal ou consoante, podendo

aumentar para ::: ou mais

/ truncamento

( ) incompreensão de palavras ou segmentos

? interrogação

MAIÚSCULAS entoação enfática

(...) indicação de que a fala foi tomada ou interrompida em

determinado ponto.

(hipótese) hipótese do que se ouviu

(Fonte: CASTILHO, Ataliba; PRETI, Dino. A linguagem falada culta na cidade de São Paulo.

vol. II – Diálogos entre dois informantes. São Paulo: T. A. Queiroz/EDUSP, 1986. p. 9-10.)

1. L2: eh: a c/ eh c/e como são / e como são pessoas...absolutamente:... como que eu/ fala

quando quando a pessoa ela não tem:::?

2. L1: ela não tem...assim éh:...por exemplo...éh as ah:::

3. L2: tem pessoas que entram...como entraram na Casa dos Artistas e no Big Brother

...casadas ou noivas (amando)... chorando porque estava deixando o outro lá fora...

4. L1: éh mas será que realmente ( )

5. L2: saiu:...

6. L1: éh chorando? porque ...que eu me lembre aquela primeira moça... ah:Vanessa.... que

::ah foi a primeira vez que eu assisti ela se eu não me engano ela tinha um namorado italiano

né? e deixou o namorado italiano:...por conta daquele outro que tinha lá que eu nem me

lembro o nome que era português que ia ser deportado do país...

7. L2: éh ( )

8. L1: ( ) o nome dele (...)

9. L2: ( ) saiu eles estavam namorando

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2299As relações entre fala e escrita: m

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10. L1: éh : e segun::do né? O que falaram aí eles estavam namoran::do...depois que saíram

que é dizer qual o amor...que tipo de amor é esse que a pessoa...entra numa num num

numa situação dessa ...sabendo o que pode acontecer lá den::tro...eh ai:: ah:::.... o amor

da minha vida é/ ERa o italiano ah mas agora ele não é mais o amor da minha ... agora

eu conheci o portuguê:s...

11. L2: português...

12. L1:então agora o amor da vida é o português... o italiano...que:...suma da minha vida

né? eu fico pensando... como que pode uma pessoa que que::...tem uma vida né?fora que

qué/ muitos até são casados que entram lá né?

(Disponível em: http://www.museudalinguaportuguesa.org.br/. Acesso em: 27 mar. 2006.)

Em primeiro lugar, numa conversa cotidiana, cada um dos interlocutores fala em sua vez:um fala, outro responde, o primeiro retruca etc. É o que chamamos turno de fala. Naconversa do Exemplo 3 temos 12 turnos de fala (numerados), seis para cada participante(L1 e L2). No início, quem conduz a conversa é L2 e L1 complementa e completa as falasde L2. A partir do sexto turno, lembrando-se de uma participante do BBB (Vanessa), L1passa a conduzir a conversa e as posições se invertem.

A existência dos turnos de fala do diálogo e o fato de que não precisamos esperar que ooutro acabe de falar tudo o que tem a dizer, mas podemos interromper, falar junto,complementar, repetir para concordar, “roubar” a fala, em grande parte, é o que leva a estaimpressão de fragmentação e de desorganização.

Por outro lado também, quando falamos, estamos ao mesmo tempo buscando as palavrase, muitas vezes, por isso hesitamos:

L1: ela não tem...assim éh:...por exemplo... éh as ah:::

Isso interrompe ou fragmenta o fluxo da fala, acentuando a impressão de incoerência.

No entanto, isso é uma propriedade da conversa cotidiana e informal. Numa entrevista – porcausa da estrutura pergunta-resposta – ou numa conferência – porque somente oconferencista fala, a fala já se apresenta numa organização muito mais parecida com a daescrita (com começo, meio e fim), quebrando essa impressão de fragmentação. Temos, comoexemplo, a seguir, a transcrição de uma entrevista (adaptada) e de uma conferência deHistória. Na entrevista, L1 é a entrevistadora e L2 a entrevistada.

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s EXEMPLO 4

1. L1 : Quando você era pequena, o que é que você se lembra, o que é que as pessoas diziam

de você, como você era?

2. L2: Bem, quando eu era pequena eu morava ali no dezenove BC, no shopping M um, eu era

muito mimada.

3. L1 : Sim.

4. L2: Eh, tinha a fama de tagarela, que eu acho que eu não era, era muito protegida por minha

mãe, de meu pai eu tinha um certo receio assim, porque ele trabalha embarcado na Petrobrás,

ele passa quinze dias fora e vinte e um dias em casa, aí tinha muita dificuldade de me, de me

adaptar com ele quando eu era pequena, eu era mais apegada a minha mãe do que a ele.

5. L1 : E ele viajava é?

6. L2: Hum, hum.

7. L1 : Passava assim quanto tempo fora?

8. L2: Quinze dias trabalhando e vinte e um dias folgando.

(Disponível em: http://www.museudalinguaportuguesa.org.br/. Acesso em: 27 mar. 2006.)

EXEMPLO 5

Nesta, e em outras transcrições a seguir, você poderá se

guiar pela mesma legenda que antecede o exemplo 3.

Conferencista: (...) então nós vamos começar pela Pré-História... hoje exatamentepelo período... do paleolítico... a arte... no período paleolítico... o paleolítico éo período... da pedra lascada... como vocês todos sabem... nao é?... e... tem umaduração de aproximadamente de seiscentos mil anos... seria exatamente... pegando a(fase) da evolução do homem... enquanto ‘homem sapiens’... que já deixou de ser(macaco)... passou a usar a inteligência... a conseguir fazer coisas... e como a gentevê é um período... eNORme frente ao que a gente conhece da históriahumana... seiscentos mil anos é MUIto tempo... as:: manifestações artísticascomeçaram a aparecer no paleolítico superior... especificamente no período () que é oúltimo período do paleolítico... e que vai abranger... aproximadamente de vintemil... a doze mil antes de Cristo... então a gente já limitou bastan::te nesse períodoextremamente vasto de seiscentos mil anos... embora... de vinte mil a doze mil...(quer dizer) praticamente oito mil anos... ainda seja... um período MUIto maiOR

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3311As relações entre fala e escrita: m

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do que... o que nós conhecemos... historicamente... que abrange por volta de cincomil antes de Cristo até hoje portanto... por volta de sete mil anos... certo?... entãotudo o que a gente vai dizer a respeito desse período... é baseado em pesquisas...arqueológicas... é baseado em pesquisas... etnográficas... em pesquisas... no campo daARte... mas uma série de coisas sao suposições... se nós nao podemos afirmar...categoricamente que as coisas se passaram assim...

(Disponível em: http://www.museudalinguaportuguesa.org.br/. Acesso em: 27 mar. 2006.)

Como bem diz Schneuwly (2004, p.135),

Não existe “o oral”, mas “os orais” sob múltiplas formas, que, por outro lado,entram em relação com os escritos, de maneiras muito diversas: podem seaproximar da escrita e mesmo dela depender – como é o caso da exposição oralou, ainda mais, do teatro e da leitura para os outros –, como também podemestar mais distanciados – como nos debates ou, é claro, na conversação cotidiana.Não existe uma essência mítica do oral que permitiria fundar sua didática, maspráticas de linguagem muito diferenciadas, que se dão, prioritariamente, pelo usoda palavra (falada), mas também por meio da escrita, e são essas práticas quepodem se tornar objetos de um trabalho escolar. Essas práticas tomam, necessaria-mente, as formas mais ou menos estáveis que denominamos gêneros, dandocontinuidade, diversificando e especificando uma velha tradição escolar eretórica. Esta concepção do oral como realidade multiforme levanta numerosasquestões importantes: Que gêneros trabalhar e por quê? Que relação instaurar com aescrita? Como definir a relação fala e escuta?

O mesmo podemos dizer dos escritos: também nada há em comum entre uma carta pessoale um requerimento; entre o diálogo num sketch e num romance; entre uma carta dereclamação, uma carta aberta e um editorial ou artigo de opinião; entre uma resenha e umverbete de enciclopédia; entre um diário íntimo e um texto histórico. A cada vez as temáticas,as formas de composição, os estilos e as relações com o oral serão diferenciadas.

No entanto, a perspectiva da dicotomia levou, como vimos, a uma série de mitos sobre aescrita e a oralidade, tanto do ponto de vista de suas características como do ponto de vistade seus efeitos sociais e culturais.

Falando das culturas com e sem escrita (ágrafas) e das formas de funcionamento social orale letrado, muitos autores que buscavam diferenças dicotômicas afirmaram que:

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s Quadro 2: Diferenças socioculturais entre letramento e oralidadeapontadas por autores que assumem a perspectiva da dicotomia

Cultura oral ou formas orais de Cultura letrada ou formas funcionamento social letradas de funcionamento social

pensamento concreto pensamento abstratoraciocínio prático raciocínio lógicoatividade artesanal atividade tecnológicacultivo da tradição inovação constanteritualismo analiticidade

esquemas práticos conjunto de saberes objetivadossaber fazer coerentescompetências culturais difusas sistematizadosdespossessão poder de mando e de dizer

Essa é a posição de autores como Olson (1977); Goody (1977);

Scribner e Cole (1981); Ong (1982); Scribner (1997);

Lahire (1997), dentre outros, em geral, psicólogos,

antropólogos e sociólogos.

Embora a história da escrita e das práticas escolares (sobretudo) estejam muito fortementetramadas com o surgimento da lógica, da abstração, da análise e das tecnologias, não sepode, por outro lado, dizer que as culturas ágrafas ou os povos que privilegiam as formasorais de funcionamento social se atenham unicamente às atividades práticas e artesanais,à tradição e aos rituais e tenham um pensamento limitado, concreto e prático, sendopovos ditos primitivos. Pensemos em certos povos indígenas brasileiros ainda ágrafos ouque recentemente importaram a escrita do branco para suas comunidades: são povos que,embora vivendo em comunidades que funcionam principalmente oralmente, têm contatocom a sociedade colonizadora branca e com suas tecnologias, e além dos esquemaspráticos de caça e cultivo, também dispõem de TV, antenas parabólicas, gravadores,notebooks; não se restrigem ao raciocínio concreto e prático, mas são capazes de transmitirde geração a geração mitos de origem muito complexos, que, se não podem ser ditosabstratos ou lógicos, também não são práticos ou concretos; lidam com a “lógica” e amatemática das transações comerciais ligadas ao extrativismo; estão abertos à inovaçõesdos brancos (aculturação) e a suas tecnologias, quando necessário e em seu proveito. E,sem dúvida, dispõem de um sistema de saberes consolidados, objetivados – embora muitasvezes não sistematizados –, nada difusos ou confusos, como é o caso de seus

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3333As relações entre fala e escrita: m

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conhecimentos sobre plantas medicinais que hoje grandes empresas vão buscar para seusprodutos e tecnologias. Também certos membros da comunidade (os pajés, os tucháuasou caciques) dispõem de todo poder de mando e de dizer necessário à vida da comunidadee não são nada despossuídos, mesmo frente aos brancos.

Vemos, portanto, que a perspectiva da dicotomia fomenta, de fato, muitos mitos sobre ospoderes da escrita contra a submissão do oral. Vejamos mais alguns deles:

Quadro 3: Mitos assumidos na perspectiva da dicotomia

Mitos ligados às características Mitos ligados aos efeitos sociais das modalidades de linguagem e culturais das modalidades

de linguagem

u a fala é desorganizada, variável, u a escrita leva a estágios mais heterogênea e escrita é lógica, complexos e desenvolvidos de racional, estável, homogênea; cultura e de organização

cognitiva do indivíduo;

u a fala é não planejada; a escrita u a escrita dá acesso por si é planejada e permanente; mesma a poder e mobilidade

social.

u a fala é o espaço do erro e aescrita o da regra e da norma;

u a fala se dá face a face; a escritaserve para comunicar à distânciano tempo e no espaço;

u a escrita se inscreve; a fala é fugaz;

u a fala é expressão unicamentesonora; a escrita, gráfica.

Como vimos, não podemos dizer que sempre a fala – mesmo a conversa cotidiana – édesorganizada, variável, fragmentária, heterogênea. Apenas que ela tem um outro tipo deorganização, adequada ao gênero textual e ao contexto. O mesmo para a escrita, que podeassumir diversas formas de organização, de acordo com o gênero e o contexto. Nãopodemos dizer que um jornal falado televisivo é não planejado, assim como não podemosdizer que planejamos nossas anotações de diário íntimo. Atualmente, não podemos dizer

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s que a fala é não permanente e fugaz, pois podemos gravar ou digitalizar nossa voz, e nãopodemos dizer que a escrita é permanente e se inscreve, pois se esquecermos de gravar osarquivos de texto que estamos escrevendo, perdemos tudo. Mudaram os meios depreservação de fala e de escrita, que, hoje, vão além de traços grafados num suporte.

Também não podemos dizer que a fala é face-a-face e a escrita é a distância, pois temoshoje conversas telefônicas, assim como torpedos; notícias na TV, assim como bate-papono computador. Os meios mudaram. Por isso mesmo, também não podemos dizer que afala é expressão unicamente sonora, pois a TV combina, num telejornal, por exemplo, falado âncora, imagens estáticas ou em movimento e escrita nas legendas, assim comoacontece no jornal escrito impresso ou digital. O avanço das novas mídias e tecnologiasfez ruir muitos desses mitos.

Quanto aos mitos culturais e sociais, infelizmente, hoje, qualquer de nossos alunos sabeque a escrita e a escolarização por si sós não vão lhe garantir emprego e nem muito menosfazê-los mudar de classe social e ascender socialmente a espaços de poder. Por outro lado,sabemos também, como vimos nos exemplos dos povos indígenas, que as culturas oraisnão são nem mais desorganizada, nem mais simples ou primitiva que as culturas letradas,e que os indivíduos que nelas vivem não são necessariamente, eles próprios, mais simples,primitivos ou limitados. Apenas temos funcionamentos diversos e complementares.

ATIVIDADE 3

1. Leia este e-mail, enviado por “Galo” (nickname) ao Ponto de Encontro (Fórum da UOL) em

12/02/1999, onde “Galo” interage com “Princesa Sorriso” (nickname) e mais alguns outros

participantes (“Distraída” e “Svóglio”, nicknames):

Nickname significa, em inglês, apelido. É a expressão utilizada

nos grupos de discussão (ou chats) na internet.

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3355As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

Título: Eu hein...

Autor: Galo

E-mail: [email protected]

Data: 12/02/99

Cidade: SP

País: BZ

Eu hein... agora vocês mexeram em vespeiro! Ser bom ou ser justo... entendo

serem estes conceitos extremamente subjetivos, assim como bonito ou feio. O

que é justo para mim pode ser injusto para vocês, e vice-e-versa.

Acho que desta me abstenho...

Carnaval, Princesa Sorriso? Quero sombra e água fresca e desfiles pela TV! Aliás,

substituo a água por uma Bavária e a sombra pelo guarda-sol da piscina do sítio ☺.

Semana passada mais dois morreram em Santos por tiros disparados no meio da

multidão... tô passando longe até de reunião de fofoqueira na calçada!!

Paz e amor a todos... e deixa só um pedaço da fantasia ao menos, né?

P.S.: Princesa Sorriso, logo após o carnaval, inauguro o escritório de Campinas,

bem ao lado do Fórum...acho desnecessário dizer o nome de minha sócia... estou

me descobrindo um masoquista...

2. Agora, assinale as alternativas que julgar corretas:

( ) Este texto é oral.

( ) Este texto é escrito.

( ) Este texto é escrito, mas tem fortes marcas de oralidade.

( ) Este texto é escrito num estilo por vezes formal, por vezes informal.

( ) Este texto é fragmentário, desorganizado e com falhas de coerência e coesão.

( ) Este texto é bastante adequado a seu contexto.

( ) Este texto apresenta erros de português e de ortografia.

( ) Este texto está escrito em português padrão, embora, por vezes, em estilo

informal e cotidiano.

( ) Este texto apresenta uma única modalidade de linguagem.

( ) Este texto apresenta mais de uma modalidade de linguagem.

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s 3. Analisando o texto, responda:

a) Qual era possivelmente o tema em discussão no Fórum da UOL?

b) De que outros temas “Galo” trata?

c) Quando “Galo” trata do tema do Fórum, adota um estilo formal ou informal? E quando

trata dos outros temas? Justifique apontando elementos do estilo formal e do informal.

d) Qual estilo você acha mais adequado para participação em bate-papos e emails pessoais em

ambiente digital, formal ou informal? Por quê?

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3377As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

Esta seção está baseada em Marcuschi (2001) e em Rojo e

Schneuwly (No prelo).

O oral não existe; existem orais: atividades de linguagem realizadas oralmente;gêneros que se praticam essencialmente por meio da oralidade. Ou então atividadesde linguagem que combinam o oral e o escrito. De fato, nada há em comum entre aperformance de um orador e a conversação cotidiana; entre a tomada de turno numdebate formal e numa discussão num grupo de trabalho; entre uma aula dada e umaexplicação dada numa situação de interação imediata; entre a recontagem de umconto em sala de aula e a narrativa de uma aventura no pátio do recreio. Os meioslingüísticos diferem fundamentalmente; as estruturas sintáticas e textuais sãodiferentes; a utilização da voz, sempre presente, também se faz diferentemente; etambém a relação com a escrita é específica em cada caso (SCHNEUWLY, 1997).

Pelas razões que discutimos na seção anterior, alguns autores, em trabalhos maisrecentes (a partir dos anos 90), começam a questionar a perspectiva da dicotomia entrefala e escrita e os mitos que ela criou.

Evidentemente, são duas modalidades de linguagem para concretizar e dar materialidadeà mesma língua. Portanto, suas diferenças se reduzem a concretude, à materialidade (sonsda fala, grafia – a escrita), mas não podem ser estendidas aos textos materializados porestas modalidades (os escritos).

Aqui, devemos entender língua não somente como a língua

padrão, mas como um conjunto de variedades regionais

(dialetos) e de grupos e contextos sociais (registros), que

Relações entre fala e escrita - Novas perspectivas

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s serão utilizadas de maneira adequada aos contextos de uso,

gerando diferentes estilos de dizer, oralmente ou por escrito.

O mais importante autor brasileiro a tocar neste tema é Luiz Antônio Marcuschi, em seu livrode 2001, Da fala para a escrita: mecanismos de retextualização. Nele, o autor defende umaperspectiva baseada nos gêneros textuais, chamada a perspectiva da gradação ou do contínuo.

Já Kato (1986, p.11-31) apresentava uma visão de continuidade entre as construções de falae da escrita na criança em desenvolvimento, que pode ser representada na figura 1, a seguir:

Figura 1 – Relações de continuidade fala/escrita na criança

Ou seja, a criança desenvolveria uma fala inicial sem contato com a escrita (F1).Quando de seus contatos iniciais com a escrita (E1), sua fala seria modificada porefeitos de letramento (F2… Fn), assim como sua escrita (E2…En) também sofreriaimpactos desses novos processos.

Marcuschi (2001) apresenta visão mais sofisticada destas relações de continuidade,baseada nos gêneros textuais. Para ele, “as diferenças entre fala e escrita se dão dentro de umcontinuum tipológico das práticas sociais de produção textual e não na relação dicotômica dedois pólos opostos. Em conseqüência, temos a ver com correlações em vários planos, surgindo daíum conjunto de variações e não uma simples variação linear” (MARCUSCHI, 2001, p.37).

Figura 2: Relações de continuidade fala/escrita em relação a gêneros textuais

F1E1 r F2 r E2 r Fn r En

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3399As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

A Figura 2 busca representar uma situação em que haveria gêneros de textos maispropriamente orais (prototípicos), como a conversa cotidiana, e gêneros de texto maispróprios da escrita (também prototípicos), como as leis e as teses de doutorado. De formanão tão típica, haveria uma constelação de gêneros mais aproximados de uma ou de outramodalidade (gêneros da fala e gêneros da escrita), ligados a certas práticas sociais deprodução de textos, que se organizariam numa gradação (ou contínuo) na aproximação deum ou outro pólo. Assim, se um bilhete está mais próximo do pólo da fala, uma cartapessoal, uma carta comercial, uma carta de leitor, uma carta aberta vão, gradativamente,aproximando-se do pólo da escrita.

Os critérios principais de distribuição dos gêneros pelo contínuo seriam o meio deprodução (sonoro ou gráfico) e a concepção discursiva (oral ou escrita). Assim, teríamos, porexemplo, a seguinte distribuição de gêneros textuais:

Quadro 4: Distribuição de quatro gêneros textuais de acordo com o meio de produçãoe a concepção discursiva (MARCUSCHI, 2001, p.40)

Meio de Concepção Domínioprodução discursiva

Gênero textual Sonoro Gráfico Oral Escrita

Conversação espontânea x x a

Artigo científico x x d

Notícia de TV x x c

Entrevista publicada x x bnuma revista

Ou seja, se a conversa espontânea ou cotidiana materializa-se e concebe-se numa situação defala, o artigo científico materializa-se e concebe-se numa situação de escrita. São os pólostípicos da dicotomia. Mas textos em outros gêneros têm, segundo Marcuschi, uma relaçãoentre fala e escrita mais complexa. Por exemplo, uma entrevista publicada em uma revistaacontece originalmente por meio da fala, mas depois é transcrita e retextualizada e é publicadae circula por meio da escrita. Ao contrário, a notícia no telejornal é primeiramente escrita,copiada no teleprompter, mas chega ao telespectador falada. Na verdade, disfarçadamente lidapelo âncora para o telespectador.

A perspectiva adotada por Marcuschi apresenta uma versão bastante mais sofisticada dasrelações entre oral e escrita nos usos sociais da língua e neutraliza muitos dos mitos que

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s discutimos antes. No entanto, ainda preserva a dicotomia básica entre oral e escrita, comopólos extremos do contínuo, e ainda trabalha na busca de semelhanças e diferenças nos textos,ainda que levando em conta múltiplas variáveis. Por isso, deixa um pouco de lado o contextodos discursos, em favor das formas dos textos. Por exemplo, uma conversação espontânea oucotidiana, dependendo da situação em que se dá e dos participantes, pode não ser assim tãotípica da oralidade e pode incluir textos escritos inteiros citados. Imagine, por exemplo, umaconversa, durante o chá da tarde, entre Freud e Jung sobre psicanálise, ou entre Malan eMercadante sobre economia. Ela estará muito mais próxima dos textos científicos que osparticipantes escreveram que do diálogo entre Paulo e Ricardo que vimos na seção 2.

De outra natureza é a concepção de relações entre usos orais e escritos da línguaexplicitada na epígrafe desta seção, que chamaremos de perspectiva discursiva. Estaperspectiva é adotada por Corrêa (2001); Rojo (2001); Schneuwly (2004, 2005) eSignorini (2001), dentre outros. Signorini (2001, p.99-101) aponta para os “hibridismosda escrita”, que se verificam “no/pelo embricamento, conjunção, ou ‘mixagem’ – para usar umtermo de Street (1984) –, não só de formas percebidas como próprias das modalidades oral eescrita, como também de códigos gráfico-visuais, gêneros discursivos e modelos textuais”. Foi oque vimos acontecer no e-mail de “Galo”.

Em direção semelhante à de “hibridismos da escrita” caminha

a noção de “heterogeneidade da escrita”, de Corrêa (2001,

p.142-156).

Schneuwly, durante conferência proferida em 2005, vai enfocar a questão agora do pontode vista dos usos da língua e da linguagem na escola. Diz o autor:

O segundo princípio é que a relação entre gêneros orais e gêneros escritos nãoé uma relação de dicotomia. É antes uma relação de continuidade e de efeitomútuo, isto é, gêneros orais podem sustentar gêneros escritos; gêneros escritospodem sustentar gêneros orais. Eles estão em mútua interdependência, cadagênero oral que entra na escola, em geral, pressupõe a escrita, assim como cadagênero escrito trabalhado na escola pressupõe o oral. Então, de uma certamaneira, esta é uma distinção relativamente artificial, pois há um entrelaça-mento contínuo. Além disso, cada gênero oral é sempre também sustentado porum outro gênero oral, isto é, há sempre um gênero oral e um gênero oral sobreo gênero oral, um discurso sobre. Cada gênero é sempre também objeto de outrosgêneros de alguma maneira. E então há sempre o falar para escrever, o escreverpara falar, o escrever para escrever e o falar para falar, o que mostra que sempreum gênero é dependente de outros gêneros, o que é um fenômeno evidente deintertextualidade, mas que está sempre na base de nosso trabalho.

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4411As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

Esta é, pois, questão da maior relevância para a compreensão do funcionamento dosgêneros orais formais e públicos e dos gêneros de texto orais e escritos em nossassociedades letradas, assim como dos fenômenos dos letramentos e do ensino-apren-dizagem de línguas nas escolas.

Nesta mesma direção, também Marcuschi (2001, p.46) elabora o conceito de retextualização,entendida como “um processo que envolve operações complexas [de passagem do texto falado parao escrito e vice-versa] que interferem tanto no código como no sentido e evidenciam uma série deaspectos nem sempre bem compreendidos da relação oralidade-escrita”.

Na verdade, o autor distingue entre transcrição e retextualização. Na transcrição outranscodificação está envolvido o que chamamos antes de a escrita, isto é, a materialidadesonora da fala e gráfica da escrita, por meio de procedimentos convencionalizados. Porexemplo, quando transcrevemos uma conversa, uma conferência ou uma entrevista queforam gravados, como foi o caso dos exemplos 3 a 5 deste Caderno, retirados do Museuda Língua Portuguesa e transcritos por diferentes grupos de pesquisadores.

Na transcrição, não há introdução de transformações no texto produzido, apenas alteraçãona materialidade (sonora-gráfica). No entanto, mesmo neste primeiro nível de operaçõesrelativamente simples, já há uma neutralização do texto oral original: eliminam-sehesitações, incorreções, reformulações, marcadores conversacionais, repetições etruncamentos. Introduz-se a pontuação, como podemos observar na transcrição doexemplo 4, comparada à dos exemplos 3 e 5. Há o que Marcuschi (2001, p.52) denominauma espécie de idealização da língua pelo molde da escrita.

Marcadores conversacionais são, em termos simplificados,

palavras e expressões que introduzem um turno de fala, em

geral antecipando a atitude do falante sobre o que vai dizer. Por

exemplo, o mas, no começo de um turno, já anuncia que o

falante vai discordar ou contra-argumentar o que o outro disse:

Pai: A Mariana vai ver só, quando chegar em casa! Isso são

horas?

Mãe: Mas eu dei autorização para que ela fique na festa até

as três.

Já na retextualização (MARCUSCHI, 2001), entra em jogo o que chamamos antes de oescrito, isto é, interfere-se tanto na materialidade como na forma e no conteúdo do texto,na passagem de um texto a outro. Refaz-se o texto, mudando seu formato lingüístico, por

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s meio de uma série de operações que Marcuschi (2001) discute em detalhes. É o queacontece, por exemplo, quando um jornalista transforma uma entrevista gravada numaentrevista a ser publicada numa revista.

Marcuschi (2001) comenta a quantidade de reclamações de entrevistados afirmando que “nãodisseram o que foi publicado”. Isso acontece, justamente, por que houve retextualização.

“Nunca me reconheci tão pouco em uma entrevista. Nunca

abominei tanto um discurso colocado por terceiros em minha

boca.”. Reclamação de Arnaldo Antunes (Folha de São Paulo,

23/10/1993), retirada de Marcuschi (2001, p.70).

Vejamos um exemplo, também retirado de Marcuschi (2001, p.99-100):

EXEMPLO 6

Texto original (oral) Texto retextualizado (escrito)Texto retirado por Marcuschi (2000-2001) Texto retextualizado por estudante do do acervo do Projeto NURC – Norma Urbana 4º período de Letras da UFPE – UniversidadeCulta – do Recife, produzido por uma profes- Federal de Pernambuco.sora universitária em diálogo com um colega.

O que eu acho engraçado é que toda vez Sempre que os biólogos abordam o assuntoque um biólogo começa a falá em controle Controle da Natalidade e programação dada natalidade e programação da sociedade… sociedade, são taxados imediatamente deele é taxado imediatamente de nazista e nazistas e fascistas. Essa é uma reação quefascista… porque essa ressalva que eles não entendemos. Porque se vivemos numa fazem… essa reação que o povo tem em sociedade em que as camadas mais pobresgeral até hoje eu não entendi… porque da população apresentam um índice deolhe… se nós vivemos em uma sociedade natalidade mais alto, significa que, daqui aem que as camadas mais pobres da um determinado tempo, o índice mentalpopulação… apresentam um índice de dessa sociedade vai cair. (…)natalidade mais alto… significa o quê?…que a::… daí a um determinado tempo…o índice mental dessa sociedade vai cair (…)

Vemos que, ao retextualizar a fala da professora universitária, o estudante de Letrasretira hesitações (que a::…), coloca pontuação, retira opiniões (o que eu acho engraçadoé que…), escolhe palavras menos cotidianas (sempre por toda vez que; abordam o assunto

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4433As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

por começa a falá), generaliza (um biólogo/os biólogos) etc., modificando forma econteúdo, além da materialidade do texto.

Essa noção de retextualização justamente faz ver que falas e escritos mantêm relaçõescomplexas em nossa sociedade. Como diz Schneuwly (2005), falamos para escrever (apassagem de uma conferência para um artigo acadêmico, por exemplo), escrevemos parafalar (a passagem inversa de leituras de artigos acadêmicos para uma conferência, mediadapor uma apresentação em power point), falamos para falar (uma reunião em grupo parapreparar um seminário) e escrevemos para escrever (os múltiplos rascunhos e esquemasque fazemos, ao escrever um Caderno como este).

ATIVIDADE 4

1. Vamos entender melhor o raciocínio de Marcuschi sobre a perspectiva do contínuo? Preencha

com um X os meios de produção (sonoro ou gráfico) e os tipos de concepção discursiva original

(oral ou escrita) dos textos nos gêneros da coluna 1. Depois numere de 1 a 6, na coluna

Domínio, os gêneros mais aproximados da fala ou da escrita, começando do de base mais oral

(1) e chegando ao mais aproximado da escrita (6).

Meio de Concepção Domínioprodução discursiva

Gênero textual/Atividade Sonoro Gráfico Oral Escrita

Aula no ensino superior

Depoimento na polícia

Resenha de livro publicado

Apresentação empresarial

Ata de reunião

Letra de canção cantada

Ditado do professor nasséries iniciais

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s 2. Agora, vamos fazer uma experiência de retextualização? Veja este trecho de uma entrevista

sobre organização familiar retirada do acervo do Projeto NURC – Norma Urbana Culta – de

Campinas, disponível em http://www.museudalinguaportuguesa.org.br/, consultado em 28

mar. 2006 e adaptado para fins didáticos.

Entrevistada: (...) realmente deve ser uma delícia ter uma família gran/ bem grande com

bastante gente...eu sou filha única...ah tenho um irmão de treze anos...mas gostaria

deMAIS de ter tido...mais irmãos...porque quando::...com meu irmão eu já::já tinha

curso universitário já já tinha saído da faculdade quer dizer então não tem quase que

vantagem nenhuma não é?...eu queria então uma família grande tinhamos

pensa::do...numa família maior mas depois do segundo...já deve estar todo mundo tão

desesperado que nós ((risos)) estamos pensando... (...) é (pensamos) seriamente em

parar...depois disso ainda ti/ tive problemas de...saúde problemas de tiróide não sei

quê::então o médico está aconselhando a não ter mais... então nós estamos

pensando...estamos pensando não ofic/ oficialmente não está encerrado...mas de fato está

porque::...o endocrinologista proibiu terminantemente que eu tenha mais filhos...

(...) inclusive...se eu tiver...ele disse que vai ser necessário...um aborto...então

estamos naquele negócio eh...como fazer::...se faço operação::se o marido fa::z mas ele acha

que::...de jeito nenhum::((risos)) (...)

a) Faça de conta que você é um(a) jornalista de uma revista feminina, que está preparando

uma matéria sobre planejamento familiar e que quer inserir este depoimento da entrevistada

em sua reportagem. Como você retextualizaria este trecho para escrever a reportagem?

Escreva abaixo:

b) Assinale com um X quais destes procedimentos usou em sua retextualização. Se usou outros

ainda, acrescente ao final da questão.

( ) Retirei as repetições, hesitações e interrupções.

( ) Coloquei a pontuação.

( ) Retirei palavras porque...

( ) Retirei trechos inteiros porque...

( ) Troquei palavras porque...

( ) Troquei trechos inteiros porque...

( ) Acrescentei palavras porque...

( ) Acrescentei trechos inteiros porque...

( ) Fiz correções gramaticais.

( ) Alterei o conteúdo.

( ) Outros:

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4455As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

Vistas assim, as relações entre linguagem oral e escrita são bastante complexas, nassociedades letradas e urbanas contemporâneas e dependem muito dos gêneros de texto emque se configuram os textos que estamos ouvindo/falando ou lendo/escrevendo.

Com o desenvolvimento das novas mídias e tecnologias, os gêneros se transformaram ementidades multimodais, isto é, utilizam-se de diversas modalidades de linguagem – fala,escrita, imagens (estáticas e em movimento), grafismos, gestos e movimentos corporais –de maneira integrada e em diálogo entre si, para compor os textos. Basta ver umapropaganda televisiva ou um videoclipe na internet, para constatar este fenômeno.

Mesmo nas mídias impressas, como revistas, livros e jornais, podemos constatar estamultimodalidade. Basta abrir o livro didático ou uma revista para jovens para ver que asdiversas modalidades de linguagem, hoje, constituem mutuamente os sentidos do texto.

Oralidade e letramentosmúltiplos - Mútua constituição

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ção EXEMPLO 7

(Disponível em: http://noticias.terra.com.br/popinfografico/. Acesso em: 28 mar. 2006.)

Por exemplo, neste infográfico que ilustra como ocorrem os tsunamis, a relação entreescrita e imagem gráfica constitui os sentidos do texto. Outro exemplo multimodal são osgêneros publicitários, como os rótulos de alimentos, por exemplo, onde imagens e escritainteragem de forma complexa.

EXEMPLO 8

(As marcas NESTLÉ e NESCAU foram reproduzidas com a permissão de Société des Produits Nestlé S.A.)

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4477As relações entre fala e escrita: m

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Também nas aulas, as imagens e textos escritos dos livros didáticos e a fala do professor e dos alunos éque vão constituir o objeto a ser aprendido e o processo de aprendizagem. Retomando um exemplo jáexplorado em outro Caderno desta coleção (“Desenvolvimento e apropriação da linguagem pelacriança”), vejamos, no Exemplo 9, um trecho de aula de Ciências numa turma de 3ª série de escola darede pública estadual de São Paulo:

EXEMPLO 9

T1. Pr.: Tá, então, olhando aí no livro. A imagem de solo primeira é qual? Solo arenoso, o que

tem bastante no solo arenoso?

T2. Als.: Areia!

T3. Pr.: Areia. Só que com o nome de ar?...

T4. Als.: [gila.

T5. Pr.: É um solo bom pra plantio?

T6. Als.: Não!

T7. Pr.: Se eu plantar vai nascer de tudo?

T8. Als.: Não!

T9. Pr.: Como é esse tipo de solo? Ele é...

T10. Al.: Seco.

T11. Pr.: Seco. Ele é seco. E, outra coisa, vamos ver, testando// eu tenho nessa garrafa (mostra

uma garrafa)// Isso é um copinho de plástico, algodão e areia/ então/ nós vamos jogar água

pra ver o que que acontece nesse tipo de solo.// Vocês vão me dizer o que, o que acontece?

(pega uma garrafa com água e começa a pôr água) Eu tô jogando a água, certo?

T12. Als.: Certo.

(Pr. levanta a garrafa cortada com a areia e o copinho embaixo mostrando aos alunos)

T13. Als.: Ela desce, a água desce muito rápido.

T14. Pr.: Muito rápido. Deixa a água passar com facili...

T15. Als.: [dade.

T16. Pr.: Então/ eu digo que esse solo é per...

T17. Als.: [meável.

T18. Pr.: Permeável, porque deixa...

T19. Als.: [a água passar com facilidade.

T20. Al.: Como se não tivesse nada...

T21. Pr.: Justamente! Ó lá! Já desceu! (levanta a garrafa mostrando o copo cheio de água) Tá, ó! //

Que tipo de solo é esse?

T22. Als.: Arenoso.

T23. Pr.: Arenoso, perme?...

T24. Als.: [permeável.

T25. Pr.: Deixa a?...

T26. Als.: [a água passar com facilidade.

T27. Pr.: Isso!/ Alguma dúvida quanto a isso?

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ção O Caderno “Desenvolvimento e apropriação da linguagem pela

criança”, faz uma discussão mais detalhada desta aula.

No Exemplo 9, interagem para constituir o sentido do que está sendo aprendido (tipos desolo), as ilustrações do livro didático e as falas do(a) professor(a) e dos alunos que, muitasvezes, retomam o texto escrito do livro: O solo arenoso, composto principalmente de areia, não éum solo bom para o plantio, por ser seco e permeável, deixando a água passar com facilidade.

Um enfoque interessante e dinâmico dessas relações complexas entre escritos e textos oraistalvez possa tomar como base as noções de sistema de gêneros como parte de um sistema deatividades propostas por Bazerman (2005, p.32-33).

Para Bazerman (2005, p. 34), levar em consideração o sistema

de atividades junto com o sistema de gêneros é focalizar o que

as pessoas fazem e como os textos ajudam as pessoas a fazê-

lo, em vez de focalizar os textos como fins em si mesmos.

O autor, tematizando as relações entre textos em gêneros diversos, orais e escritos, ematividades de sala de aula, afirma que:

Um sistema de gêneros compreende os diversos conjuntos de gêneros utilizadospor pessoas que trabalham juntas de uma forma organizada e também asrelações padronizadas que se estabelecem na produção, circulação e uso dessesdocumentos. Um sistema de gêneros captura as seqüências regulares com queum gênero segue um outro gênero, dentro de um fluxo comunicativo típico deum grupo de pessoas (BAZERMAN, 2005, p.32).

Por exemplo, a aula parcialmente transcrita no Exemplo 9 inicia seu sistema de atividadescom a leitura, feita em casa pelo(a) professor(a) e pelos alunos, do texto escritomultimodal do gênero livro didático, que apresenta verbetes escritos ilustrados porinfográficos (imagens gráficas com legendas escritas) sobre os tipos de solo, tema da aula.Assim, pelo menos 4 gêneros escritos/gráficos concorrem para esta primeira atividade – olivro didático e, nele, os verbetes, infográficos e legendas. Em seguida, há a aula, ondealunos e professores “conversam” sobre esses textos lidos (atividade oral) e exemplospráticos são dados. Depois dela, os alunos respondem por escrito no caderno oquestionário sobre tipos de solo do livro didático, de maneira a se avaliar a aprendizagem,novamente escrevendo, em geral, verbetes em suas respostas.

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4499As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

ATIVIDADE 5

1. Vamos pensar como entram a linguagem oral, os escritos e as imagens em dois gêneros muito

comuns na vida contemporânea: a notícia televisiva e os seminários escolares.

a) Notícia televisiva: Complete a tabela com os gêneros escritos, orais e em outras linguagens

que a compõem:

Atividades Gêneros Modalidade

O editor pauta a notícia a ser dada

O repórter sai em busca da notícia

e entrevista o protagonista

O câmeraman filma a entrevista

O repórter escreve a notícia para ser

lida pelo âncora

A equipe transcreve a notícia

no teleprompter

Na hora do telejornal, a ilha de edição

alterna a leitura da notícia pelo âncora e ???

As imagens gravadas da entrevista

b) Seminário escolar: Componha você as atividades, gêneros e modalidades de linguagem que

compõem o sistema de atividades e de gêneros da elaboração de um seminário de Ciências,

sobre mamíferos, bem sucedido.

Atividades Gêneros Modalidade

Os alunos pesquisam sobre o tema em

livros didáticos, enciclopédias e

outros livros da Biblioteca

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ção Encarar as relações entre escritos, falas e outras linguagens de forma dinâmica e

mutuamente relacionada pode nos levar a preparar os alunos, em nossas aulas, de maneiramais adequada para as práticas de leitura, escrita e oralidade dos letramentos múltiplos emultimodais, tão relevantes hoje para o exercício da cidadania e para as práticas culturaisno mundo contemporâneo.

ATIVIDADE 6

1. Pense em duas atividades de sala de aula que possam trabalhar estas relações entre diferentes

modalidades de linguagem, em leitura ou produção. Faça uma síntese de cada uma das pro-

postas abaixo:

a) Proposta 1:

b) Proposta 2:

2. Discussão coletiva de avaliação do Módulo.

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5511As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

RESPOSTAS ÀS QUESTÕES FORMULADAS NAS ATIVIDADES

ATIVIDADE 1

1. Resposta pessoal.

2. Resposta pessoal.

3. Resposta pessoal.

ATIVIDADE 2

Questão 1

a) O sistema é o Kanji, sistema ideográfico japonês, que combina dois ou mais ideogramas

para significar uma nova idéia: karatê = mão no vazio do céu;

b) Sistema alfabético. Trata-se do alfabeto cirílico, utilizado pelos russos. Os sinais representam

sons da língua.

c) Sistema ideográfico – pictogramas africanos para pessoa humana, do povo bambara.

d) Sistema ideográfico – sinais de trânsito com ideogramas representando idéias abstratas –

estreitamento de pista e mão dupla (direção).

e) Sistema alfabético. Trata-se de escritas em alfabeto latino, onde os sinais representam sons

da língua.

f) Sistema ideográfico – sinal de trânsito com pictograma representando pista escorregadia.

u Apêndice

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ice Questão 2

Os internautas, por razão de economia de digitação (acentuação, por exemplo), de espaço e

de tempo, estão selecionando novas representações ortográficas para o Português do Brasil. Se

é possível ter duas representações para a mesma língua – a da ortografia padrão e a do “internetês”

– é porque se trata de representação e não de transcrição da fala. Além disso, pode-se perceber

também que a mensagem mistura o silábico (KDO, VC), o alfabético (NAUM, XOCOLATE), o

ideográfico (+) e o pictográfico (☺).

ATIVIDADE 3

Questão 2

Agora, assinale as alternativas que julgar corretas:

( ) Este texto é oral.

(X) Este texto é escrito.

( ) Este texto é escrito, mas tem fortes marcas de oralidade.

(X) Este texto é escrito num estilo por vezes formal, por vezes informal.

( ) Este texto é fragmentário, desorganizado e com falhas de coerência e coesão.

(X) Este texto é bastante adequado a seu contexto.

( ) Este texto apresenta erros de português e de ortografia.

(X) Este texto está escrito em português padrão, embora, por vezes, em estilo

informal e cotidiano.

( ) Este texto apresenta uma única modalidade de linguagem.

(X) Este texto apresenta mais de uma modalidade de linguagem.

Questão 3

a) O que é ser bom ou ser justo.

b) O Carnaval, a violência urbana, a inauguração de seu novo escritório, sua nova sócia.

c) Quando “Galo” trata do tema do Fórum, adota um estilo formal e quando trata dos outros

temas, mais pessoais, adota um estilo mais informal. São características do estilo formal

adotado: o infinitivo flexionado (entendo serem), o deslocamento do sujeito (serem con-

ceitos), a intensificação (extremamente subjetivos), a escolha do vocabulário (me abstenho).

São marcas do estilo mais informal: interjeições (eu, hein!), bordões populares (mexer em

vespeiro, sombra e água fresca, paz e amor, reunião de fofoqueira na calçada), formas de

ortografia que transcrevem o oral (tô), emoticons (☺).

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5533As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

d) O estilo informal, pois, em geral, estamos interagindo com pessoas conhecidas, ainda que

só virtualmente, sobre temas pessoais e cotidianos, em contextos relaxados, onde normalmente

usamos registros pouco formais da língua.

ATIVIDADE 4

Questão 1

Meio de Concepção Domínioprodução discursiva

Gênero textual/Atividade Sonoro Gráfico Oral Escrita

Aula no ensino superior x x 6

Depoimento na polícia x x 2

Resenha de livro publicado x x

Apresentação empresarial x x 4

Ata de reunião x x 5

Letra de canção cantada x x 1

Ditado do professor nas x x 3séries iniciais

Questão 2

a) Resposta pessoal.

b) Resposta pessoal.

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ice ATIVIDADE 5

Questão 1 - a

Atividades Gêneros Modalidade

O editor pauta a notícia a ser dada Pauta Escrita

O repórter sai em busca da notícia Entrevista Oral

e entrevista o protagonista jornalística

O câmeraman filma a entrevista Filme Imagem em

movimento / Oral

O repórter escreve a notícia para ser Notícia Escrita

lida pelo âncora

A equipe transcreve a notícia Notícia Escrita

no teleprompter

Na hora do telejornal, a ilha de edição Notícia Oral

alterna a leitura da notícia pelo âncora e ???

As imagens gravadas da entrevista Filme Imagem em

Entrevista movimento / Oral

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5555As relações entre fala e escrita: m

itos e perspectivas

Questão 1 - b

Atividades Gêneros Modalidade

Os alunos pesquisam sobre o tema em Verbetes Escrita

livros didáticos, enciclopédias e Livros didáticos

outros livros da Biblioteca Enciclopédias

Outros gêneros

variados

Os alunos anotam o Esquemas Escrita

conteúdo mais importante Resumo

Os alunos elaboram um mural com Esquemas Imagem estática

as imagens dos animais, definições e Verbetes Escrita

esquemas para afixar na lousa Definições

Ilustrações, fotos

ou infográficos

Os alunos preparam um esquema- Esquema ou Escrita

-guia com os tópicos da exposição Apresentação

Powerpoint

Os alunos fazem o seminário, com Seminário Oral

apoio do mural e do esquema-guia Escrita

Imagem estática

ATIVIDADE 6

Questão 1

a) Proposta 1: Resposta pessoal.

b) Proposta 2: Resposta pessoal.

Questão 2

Discussão coletiva de avaliação do Módulo.

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5577As relações entre fala e escrita: m

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u Referências

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