acasos e criação. cap. iv

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Page 1: Acasos e Criação. Cap. IV
Page 2: Acasos e Criação. Cap. IV

ACASOSE,CRIAÇAO_.

AR|ISTICA r'ffiÌ*raAga os tronffrr

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elÌr rflfõrÌ-Ul

CAMPUS

4E EDIÇAO

Revista e ampliada em 1995

Page 3: Acasos e Criação. Cap. IV

CAPITULO NCRESCIMENTO EDESENVOII/IMENTOESPAÇ O: A LÍN GUAFRAN CA DOHONIEYI

As muitas l inguagens artísticas e não-artísticas, verbais e não-verbaismoldam-se numa matriz comum: nas vivências do espaço. Nesta experiênciafundamental se desenvolvem a consciência, apercepção e autopercepção daspessoas, assim como seu senso de identidade. É o caminho primeiro, único eúltimo, de cada um realizar sua capacidade de sentir e pensa! de sentir-se epensar-se dentro do mundo em que vive.

Este caminho é percorrido por todos os seres humanos de um modo se-melhante e em etapas semelhantes - hoje ou há quinhentos mil anos atrás, in-dependentemente do contexto cultural ou da camada social a que pertençamas pessoas, em sociedades ainda tribais ou artesanais, ou já industriais, ricas oupobres. O caminho inicial é sempre o mesmo. Embora, mais tarde, de acordocom o destino de cada um, nosso ser se desenvolva dentro de padrões cultu-rais diversos, antes de nos diferenciarmos individualmente e culturalmente, te-mos que aprender a olhar, a senta! engatinhar e andar, temos que tocar nas coi-sas e segurá-las junto ao nosso corpo, para reconhecer o que são e como sào,a fim de sabermos algo a respeito do mundo e de nós mesmos. Tâis conheci-mentos básicos, assim como o próprio senso de identidade, são adquiridos portodos do mesmo modo: estruturando-se em termos de espaço, a partir de es-paços vividos, em formas espaciais.r Veremos que estas formas também have-rão de constituir o referencial das linguagens artísticas.

r' Em pessoas viciadas em drogas tem-se verificado que, com a perda da percepção de espaço -como conseqüência da alteração de estados de consciência ; as pessoas também perdem a noçãoda própria identidade, desestruturando-se sua personalidade." Relatado pela Dra. Ione Polacow(bioquímica), Rio de Janeiro.

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Um fato interessante, e importante, a ser destacado aqui' é o intervalo con-

siderável que existe en tte a formação de noções de e spaço e a de noçÕes de tem-

õ *, vlsao do adulto, o espaço e o tempo são percebidos em coniunto'

interl igando-SenomovimentoComoCategoriasindissolúveis,umaevocandoã pr.rãrrç" da outra. No entanto, tal entendimento não surgiu simultaneamen-

te. Na visão infantil, as noções de espaço têm absoluta precedência sobre as do

tempo' ,^-<^-2^1-^r-nnn ãn r - ' tmicas' ou-Sem dúvida, iá o próprio balanço do corpo traz sensaçoes 11

trossim, já nos primeiios meses de vida, o bebê começa aptoduzir sons que'

emseguida,elevaicombinandoemcrescentevariedade,encantadocomoprÓ-púo {azer.São formas preliminares dapetcepção temporal' Pois' ainda que as

crianças cantem e danàem e adorem eiercícios rítmicos, vivenciando-os com

grandl ntensidade emocional, as noçÕes da sucessão do tempo serão conscien-

tizad^srelativamentetarde.Sóquandopassadososprimeirosanosdainfância.E bem mais tarde ainda, est",.,oçõ.' poderão tornar-se formas cognitivas. Quan-

do as criança s jáÍaIam'esáo capazesàe relacionar aspectos espaciais, podendo

Iidarnaprâticacomumamultiplicidadedeformasdeespaço,équeelasconse-guem lidar com noções de tempo' Conseguem então distinguir o tempo do seu

fazet pessoal e da experiência iãterna, de um te mpo externo que tenha referên-

cias não-pessoais. Conseguem imaginar que o fluxo do tempo seja contínuo'

mas também divisível emlrechos e seqüências' que as coisas podem começar'

desdobrar-se ou eventualmente concentfar-se, e que podem terminar em mo-

mentos diferentes - independentes do fazer e querer da criança'

otempoteráentãoporsuaVezumareferênciaexternaiestAÍeferênciaseráo espaço.2

Ceramente, poder lidar com noções de tempo implica na formação de

estruturassimbólicas,emníveismentâisiábemcomplexos,poisenvolvemmúI.tiplasdiferenciaçõeseatémesmoabstraçÕes.Istoporsuavezenvolvenãoape-nas o crescimento inrclectual da criança senão também seu desenvolvimento

emocional. Neste desenvolvimento, as conquistas afetivas desempenham um

papel decisiv o| acílpucid?lde da criança de se diferenciar dentro de si, de se se-

parzt damãe e de se relacionar novamente com ela (e com outros)' de formar

L_ ,,.rr,, e também poder distanciar-se do "eu" sem se perder de si, encontran-

donovasformasdeaf i rmaçãoedeequi l íbr io interno.Sãoprocessosint ima-mentevinculadosàintegraçãodapersonalidadedapessoaedesuainteligên-cia sensível.

No começo davida,a temporalidade é vivenciadapelacriança como um

eterno ,Agoïz",ela mesma um mundo global, onde certas coisas podem ou não

"aorrtaa.q causando ptazer ou de sprazer. os "antes" aindanão levam aos "de-

2 A prioridade biológica das noções de espaço se evidencia no seguinte exemplo dado pe lo biÓ-

Ìogo, R.\í. Gerard, ,^rin'íúíostcal Éasrs of Imagination' "Quando uma trilha sonoÍa' de

ãtri., o,, O. p alavras,C tiÃr,,,iã4, Oe trás pãra frente, ela se.torna inteiramente incompreen-

sível; no entanto,, i.rrrurrááàËrr-"r.qìé".ã oe imagens pode ficar engraçadaou curiosa' mas

ela preserva perfeitamente o nexo.,, Ern Brewste r Gtttsí|rn,-Tbe creatíue Process,Mentor Books'

NewYork, 1963,pp.2attá r'it"*t-pfotervetambémparailustrarareversib-ilidadedoespa-

ço e a irreversibilidade oo tempo na pércepção - questõès que serão recolocadas mais adiante'

a2

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[i.";ï!*Xïl?.:ili: : ï JJã:':ffi iÍ,ï :::o "' n em rea, n e m i m agi na riva,

As noções de espaço, por outro lado, se coordenam muito cedo na vida,bem antes da criança fahi,r"*r -.rão

a.h agir consci..rt -lìr..

euando nas_ce, o bebê já começa a movimenrar-se. Mexe a cru.ç", ;;;;;, os braços, asmãos' as pernas' de repenre arregarao, otrros. o, r.ir, o;;ï;. um orho e fe-cha o outro. Esses mov-im..rror rão rfãirrr._..rr. aleatórios, porparte do be_bê não há qualquerlgio ii""9i"""tiã^à". háé umaincorporação de acasos.ocorrem movimentos invorunúrios, ..R.Lrou "tos

motores, externando cermsnecessidades e energias. Ainda que o neüe não guarde aL;;;;ç, conscienredesta atividade elementar, inconicientemente ela já vai ser registrada, junto comas relações por era criada..Então aquel i Àaozinna-.".Jã ã os movimenrosque está fazendo com os dedos (inconscientemente) formarão, junto com a ex_periência (também por ora incons.i.ntã), o início de uma memoria: são dadossensoriais impregnando-se de signrficaiás . piaget,grande pesquisador e ram_bém pensador, frisa que ,,a açãoè frto. formativo da percepção;,, precondiçãopara o desenvolvimenro dos processos càgnitrvos.: ja ,r.rr" i"r., piaget se re_fetea"imagensmenhis,queresultam aiìnteriorizçãoaorrtorìmitativos(...)a acomodação motora e as imagens-imitativas prorongando-se na memória,,.a

Ê'?:"ïlïl?ï,trÍ'-.ï,ffi :::!iï,T,t,ff ;""'i'-.,-,"2Ë1ãKçaodosatosaantecipação de atos que pudessem ,ui, "

r.-' as tmagenTÍnentais representariam

ou seja, inrerações com o espaço, ,. .or.,r;:.:1Yadf' Assim, apartir deações,

ção e de "osor f.nramentos.

tltuem asfformas de nossa imagina-Na experiência do recém-nascido mescram-se itrqistrntamente os mais di-versos estados físicos e emocionais: sensações tácteis è{qgosto, ao encostara-boca no seio e sugar, junto com se"r-rç-ã* o. arívìo,".o;ËrÌor, ou ain_oa o terrível sofrimentoda fome, a irrupçat de.repentinor.rpl"Àor, descon_forto' aflição, dor - tudo misrur"noo i. àà- impressões ..rir.ril e aüditivas,com vurtos, luzes, sombras e sons. o bebãainda é um universo de necessida_des' com uma continuidade totar

"";.;;;"do interno e externo, prazer, des_pfazer' satisfação, raiva, a mãe, o seio, o fluxo oe leite sendo ."i.-rrroa, de seuser' Tudo é fluido, indiferenciaoo e limitaJá, pois o bebê não senre uma limira_ção de si próprio, ou de sua.*irte.r.i", .Jã"o "tgo

disrinto do resto do mundo.Por enquanto é tudo uma coisa só."o bebê não está consciente de si. Todavia já nasceu com um potencialde consciência. pode sua consclencia e;r;;'menreníveismaiscomp.rexor,^^:;;;;;;;i:::::ú7:i:fr#::Jj:#X::ï:

tre a formação da consciência e o seu .i.rii"ro são muito frágeis, intangíveismesmo. Trata-se, antes, de uma seqüên.i, irrir,t rrrrpta no tempo, de diferencia_ções e alterações que surgem. É ,,n p;;;;rà qu. está intimamenre misrurado

r Jeanpiaget' Tbelntuitionoíspac?-Tbecbild'sconceptionof space,emHowardE. GrubereJ. Jacques vonèche, rbe Èsíentiat p;;;;,";;irï;oks,

rnc., New york.a

Jeanpiaget, Tbe First year oJ Lifu of tbe Cbitd,Ibid., p.2O2.

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com a própria consciência, pois esta se realiza na medida em que a conscienti-zação também se realiza."s

O importante é entender que jamais se parte de um vazio, um nada. Mes-mo o bebê parte de um ponto concreto, uma situação real: é sua constituiçãoorgãnica, física, que contém em si um potencial tanto físico como psíquico. Noinício, a atividade motora ainda nãolevaaqualquer tipo de dedução mental so-bre as conseqüências: ação-resultado. Os movimentos físicos se dão de manei-ra circunstancial e a percepção ocorre ao nível de sensações globais. Mas mui-to cedo, ainda no primeiro mês de vida, certas potencialidades já começam

"se realizar, acompanhando a progressiva coordenação motora no processo ge-ral de crescimento e maturação biológica do organismo e revelando anascenteatividade psíquica da criança.

As situações no meio ambiente alteram-se constantèmente. Ora são apro-ximações ora separações, deslocamentos, ofa novas reaproximações. Altera-seo campo visual: é o rosto da mãe, o braço, o seio, a mamadeira, o cobertoq a|uz, o escuro, pessoas, objetos, vazios. As coisas se tornam boas ou más. E quandoo acontecimento é prazeroso, acriança tenta repeti-lo. Chupa; nem sempre aboca encontra o seio; também chupaamão quando, por acaso, amão dá de en-contro com a boca. Agarra qualquer coisa, o pano, a colher ou o cabelo do adul-to. Encosta a cabecinha no ombro de alguém, encolhe os punhos contra o pei-to, ou estende o corpo todo. Certos gestos tendem a se repetiç formando se-qüências e padrões de comportamento onde o bebê já consegue orientar-se me-lhoq adaptando-se às circunstâncias e de certo modo absorvendo-as dentro desuas necessidades.

As sensações do bebê transformam-se progressivamente em percepção.Ele parece acordat No segundo mês, os movimentos oculares tornam-se parâ-lelos. O bebê olha, sua atenção flutuante se concentra por curtos momentose ele já começa a seguir as pessoas com o olhaq percebendo quando se aproxi-mam ou se afastam. Pouco depois, os movimentos das mãos vão se sincroni-zando com os movimentos oculares. O bebê começa a apanhar objetos - àsvezes por acaso, mas às vezes também intencionalmente. Aos três meses, agarraos objetos, solta-os e os segura de novo. Em seguida, começaaexploráìos, comas mãos, com a boca, com o corpo todo. Sente que as coisas são pequenas ougrandes, redondas ou angulares, pontudas, lisas, ásperas, duras, macias. Come -

ça a descobrir suas própr ias mãozinhas ; passa horas mexendo os dedos e olhan-do fascinado para os movimentos que produzem.

Há um crescendo de descobertas, e de sua internalização. O bebê já reco-nhece a identidade de pessoas e de objetos. Aos cinco meses, ou talvez até an-tes, basta uma exposição parcial do objeto, digamos, basta mostrar o bico damamadeiraeacriança jâa reconhece, não apenas sua forma visual e o tato, co-mo também zfinalidadea que serve. "Uma parte que indica o todo" - estamosno limiar da simbolização. Esta percepção de situações significativas, e o conhe-cimento que implicam, permite que se digaao bebê: "Espere um instantinho,primeiro vou trocar sua fralda e em seguida você vai comer", e o bebê interrompe

5 CitandoCriatiuidadeeProcessosdeCriação,daatÍora,EditoÍaVozesLtda.,Petrópolis,p.77.

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o choro de fome e torna-se capaz de aguardar a refeição - um pouquinho tal-vez, masé algo que nenhum animal faria. Alémda simbolização nascente, aquitambém já nos deparamos com o desenvolvimento da percepção e da interpie-tação de significados aparïir de dados incompleto.r, processo e ste tão caracte_rístico da compreensão humana, portanto, estamos diante da intuição em ple-no funcionamento.

Por volta dos seis meses, acriançacomeça a sentar-se. sua mobilidade seamplia, e ao mesmo tempo amplia-se todo campo espacial, tanto em termos depercepção (aproximaçoes, distanciamentos, magnitudes) como em termos departicipação ativa. crescem as possíveis experimentações com objetos, ou con-sigo mesmo, a descoberta de seu próprio corpo: um espaço dentro de outrosespaços. Por esta altura a criança começa a brincar. começa a esconde r os ob_jetos, pondo-os debaixo do cobertor ou do travesseiro, procurando-os em se-guida e os reencontrando com alegre surpresa e risos. Repete a mesma brinca-deira, dez, vinte, trinta vezes, sem se cansar e sem deixar dé surpreender-se sem-pre de novo' Joga as coisas fora do bercinho, à espera que algúém as apanhe -pois ela sabe, ou aprende, que, mesmo estando fora de seu campo de visão, osobietos não desaparecem ou deixam de existir. A criança é capaz,portanto, deevocá-los em sua ausência. começa aí, na lembrança de situações vivenciadas,a memória dos objetos.

Nesta memória, estrutura-se também a percepção de formas constantes.Tãis formas constantes parecem representar qualidades inerentes aos objetos,como se fossem atributos de sua identidade. por exemplo, o tampo redondode uma mesa. Na verdade, só é possível reconhecer

" p.rf.it" circularidade de

um tâmpo quando ele é focalizado estritamente por cima; com qualquer incli-nação o tampo se torna uma elipse, e, visto de lado, torna-se

"tê -ar*o.l-"linha horizontal. Tânto mais interessante, então, é notar que, quando as crian-ças começam a desenhar objetos ou figuras, repfesentando-os - saindo da fa-se inicial da abstração , são justamente as formas constantes que vão desenhar,aquelas que sabem existir nos objetos e não as que observam em dado momenro.Quer dizer: antes de falarem e raciocinarem, as crianças já estruturaram em suamente uma noção como a da circularidade - sem entenderem intelectualmenteo que vem a ser um círculo. (segundo as hipóteses dos teóricos da Gestalt, aconstância caïacteriz riaum processo funcional or ganizandode tal maneira asrelaçÕes internas que, a partir de seu estado equilibrado, certas formas-padrÕespassariam a deter uma grande autonomia no espaço e no tempo. Assim, embo-ra observássemos os objetos em circunstâncias sempre diferèntes e com deta-lhes concretos diferentes, variando cadavezos estímulos locais [coq tamanho,posição, iluminação] e até mesmo as magnitudes e proporções, reestabelece-ríamos a imagem constante dos obietos, ou seja, sua forma mental idearizada.Esta não apenas funcionaria como referencial, mas se interligaria ao próprio atode percepção, definindo a identidade dos obietos.)

Brincando, acriança começa aimitar voluntariamente os adultos, espe-rando su2 resposta; provoca todo tipo de situações só para ver o que aconrece,interpretando-as, evidentemente, dentro dos limites dè sua expeiiência e seusinteresses. Mas todo brincar encerra um ensaiaq um fzzer e urrrinterpretar des_te fazer' Resula sempre numa descoberta de vida, num ato de cognição. o brin-car é o fazer essencial das criancas.

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Ao final do primeiro ano, a criança vai engatinhar e ficar em pé' logo em

seguida, ela começa aandar, adquirindo a postura e o modo de locomoção tí-pico da espécie humana.

Todo espaço de vida se amplia ovtÍa veze se diferencia em inúmeras si-

tuaçÕes novas e novas imagens espaciais. Com efeito, ocorre uma verdadeira

revolução no mundo da percepção de imagens. Todas as magnitudes e escalas

se redefinem. Tudo o que é avaliado como sendo pequeno, grande, alto, baixo,

largo, fino, estreito, longe, perto, iunto, separado, alcançâvel, inalcançável, to-da multiplicidade de formas visuais e tácteis, neste novo universo de volumes,

de profundidades, proximidades e distâncias, tudo se revela novamente, se reor-

ganizae se redefine através daprópria movimentação da criança (e continuará

aalterar eredefinir-se de acordo com o crescime nto físico das crianças). E com

estas descobe rtas se redefinem as próprias crianças também, pois aos novos es-

paços físicos se integram espaços internos afetivos.Estamos portanto presenciando um processo dinâmico, em que a expe-

riência concreta, a experiência da realidade, reformula os seus padrões de refe-

rência, desatualizando os padrÕes anteriores - embora não os destrua - e con-

vertendo a experiênciarealizada em referencial. Reestrutura-se, assim, a percep-

ção junto com os seus próprios referenciais.Retomamos aqui o comentário feito no Capítulo II, de que "as formas de

espaço constituem tanto o meio como o modo de nossa conscientização". ou

seja, o espaço torna-se, simultaneamente, forma das experiências vividas e ima-gem de seus conteúdos. De fato, tudo aquilo que nos afeta intimamente, os sen-

timentos, as idéias e os valores de vida, tem que assumir uma forma espacial pa-

ra poder chegar ao nosso consciente. E do mesmo modo, quaisquer conteúdos

afetivos que queremos expressar e comunicar aos outros são por nós traduzi-dos intuit ivamente em imagens de espaço.6

A descoberta de espaços, externos e internos, a expansão destes espaços

em mundos, ê a grande aventura da criança (e continua a sê-lo para o adulto tam-

bém, quando sua sensibilidade não se atrofia). E à medida em que a dependên-

cia inicial da criança se transforma progressivalnente em participação ativa, asformas significativas de suas vivências. assim como das imagens espaciais, sediversificam e se tornam mais complexas.

Por volta dos dois anos de idade, as crianças começam a desenhar. Todas

as crianças começam do mesmo modo. Não importa que seja com lápis na fo-

ó Mesmo quando a comunicação se dá a nível verbal. 'Ao clizermos, por exemplo, que algo nostoca de modo p rofundo ou apenas superficial , usamos intuitivamente imagens de espaço. Quan-do falamos das qualidades de u m indiuíduo (um ser in-divisível), como sendo aberto ao mun-do oufecbado, como sendo eJrpansiuo, introuertido, desligadq enuoll)ente, atraenïe, repul-siuo, distante, próxitno, usamos sempre imagens de espaço. Não há outra maneira possível deconscientizaÍ, formular e comunicaÍ nossa experiència. Os próprios verbos que usamos para

indicar a ação: por exemplo, compreender (com : iunto, prende.r = pteso), entender (en =

em, dentro, tender = tensão), revelam vivências do espaço. (E não só em português. Em in-glês, por exemplo: to comprebendetambém, to understand: under : embaixo, stand : esïaÍcolocado, ficar de pé, portanto ter uma base). Igualmente ainda, todos os prefixos dos verbos,sem exceção, têm caráter espacial: trans-põr, dis-põr, com-põr, pro-põr, justa-pôr, su(b)-põtetc., indicando sempre a direção em que a ação se desenvolve."Citando [Jniuersos da Arte, da auiora, Editora Campus, Rio de Janeiro, p. 30.

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lha de papel, ou com os dedos sujos na parede, o_u com qualquer pedra ou pe_daço de pau na terra; as formas qu. O.-r-.rfrrm são ,, _Ër_"r., São garatujas,traços nervosos' como.que descàrgas J" .nergr"s, hesitantes a princípio, maspouco a pouco tornando-se linhas áais fluidas, muitas linhas, umas ao lado deoutfas' em cima de outras, curvas, rinhas circurares sobrepondo_se em círculoscrescentes, como se prolongassem os movimentor rot"ti,uo, àã, urrçor.m tor_no do corpo. Os desenho, i.pr.r.rtrÀ for_r, ação egesticulação ao mesmorempo' Rodas de vida. A criança o.rr. ii.", -

aravirhadídiante ãe sua façanha:poder produzir estas rinhasr E"eta as reÀa, incansavelmente, sempre com amesma disposição e alegria. Aos olhos dopróprio ftaçado, asformacircurarem,,:':1":ï.pirecem".'ú:i*:f::J|'.ï,'.1::',ïïã1ffiïJ:nemsequer",,,,#::i,ïiï.,i:ff 1ïJüf :ï:Iffi n:Ì::*,WDaí o desinteresse toral o".rir"ç" pàlo ,ãu, oo.rrt

"r, ,ìã

"., qì. .r,.1"_ ,.r_minados' euem eventualmente r..orr. os o.r.rriro, ,.r;;;;.";, a professo_

:hffi:ïiïff :ï,1^':'ï f: l::o' p^ta a pr óxima'*p..ie.1i",". .,t" poo.,.,círcuros, ;üïU:ó:ïii::: mundo vivenciar: uma rotaÌidade,ainda sem grande s diferenciaçõLs,

"on..nrrro" na criança e ã"pr.roirroo , prr_tir dela' E a ctiançaapodera-se o.*. -unào

. p.;;;;;;;ì#;", não só fisi_;ffi*. ;;ïï:r*ïc

res cen re c o n rrol e _ "::1.- 1

o _ ínj o vis u al da fo rm a, m as,'r,,,q.,.p,,il;::Êï!,ã::l::i:?,'#;:;':*.;:'fiïã"*,ïiïÏensaio' uma descoberta e sua apf opriaçio - aconquista de conhecimen tos atra_vés da sensibilidade' Aos pouàor,^r.* plano.anterior ou qualquer lntenção decomposição, as linhas se rornam mais ôontidT. gm todo caso, são Ìinhas ondecada trecho se aprese:::arregado_ de e";rc, Seria interessanre um adurro tentarimirar tais gaÍaitrjzsinfa.ntis; rica.á surpreËdido com,;;;;;,dade. As ga_ratuias adultas nem de longe consegu.- l"pr' avitalidadedos desenhos in_fantis, sem farar desua espontaneidade. Ern geral - infelizmente é este o casode muiros livros infantis com tr*""çããr preudo-infantis produzidas por adul_tos imirando o desenho- das crianças - ir iir,trr, ,,pseudo,,

além de malfeitasfffoï-r

e anêmicas; faltaJhes r.à""i.çã e o enrusiasmo da descobe*a doA esta primeira fase (que pode levar meses) segue_se uma segunda, ondeos movimenros circulares vão sendo substituídoá ;;ãil;ãiìl.rri."ir, r,o_rizontais, diagonais. As linhas ri"o""ao rao ri,.rr"-.rr,. reas, mas a nova orien_tação espacial se evideacriançãproou,,,-,,ffi i::;."ï:::ïï".i.:ïtr,:;i,m:n[*a

se definindo através de tentativas e ãproximaçoes, e não de repente. são verda_

7 É evidente que os meios que a criança tem a seu arcance dependerâo do contexto histórico-socioculrural em que vive,_e-de r"r.i;;;;;-p;Ëuìâr.,..r. conrexro. se a criança nunca viuuma caneta, nào vai saberco.-o t.grrr. ãu usa ta, ãúuiam.r,,. n.- urì ,rr_,rïr., desenhar.too'avi^, as formas produzidas pelaicrianças - o"'.ì'èr." faixa etária e em circJÃtâncias nor_mais de saúde e desenvolvimento biológiio - ,Jo ìúlorutr-.nre idêntices no munoo inteiro.

a7

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deiros blocos de traçados que as crianças produzem: um traço ao lado de ou-tro, e outro e mais outro, cruzando outros, em intervalos maiores ou menores,sempre diferentes. Já são seqüências que começam a se tornar rítmicas, apre-sentando marcações de tempo (Ilustração n?J4), embora tudo ocorra unicamen-te ao nível da intuição.

Neste rabiscar livre, muitos acasos hão de ocorrer - aindaque para a crian-

çanão tenham o carâter de "acasos" e nem constituam algo de incomum. Masé possível que alguns se destaquem momentaneamente na atenção da criança,aqueles que por algum motivo particular adquirem um sentido especial para

ela. Tâis momentos deixarão uma marca em sua mem ória - ainda que incons-ciente ou subconsciente - sensibilizando um certo enfoque em sua maneirade ver as coisas. Tâmbém nestes desenhos já se introduzem os elementos visuaisque a criança vai usar em imagens futuras. Assim como os bebês brincam comos muitos sons que produzem, sons inimitáveis, às vezes engraçados ou estra-nhíssimos, mas que jâ abrangem toda gama de sons futuros que utilizarão nafala (aliás, vale notar que, em realidade, abrangem mais sons do que utllizarãopara formar as palavras correntes em sua cultura, pois, enquanto balbuciam, osbebês produzem sons também usados nas línguas de outras culturas), assim tam-bém, quando na primeira infância as crianças rabiscam e pintam e usam cores,elas iâlidam com os elementos visuais de suas futuras imagens. Evidentemen-te, mais tarde, os usarão de uma maneira diferente.

Gradativamente, a criança passará a ser mais econômica na expressão. Pou-cas linhas, ou talvez uma(rnica, poderão substituir as muitas Ìinhas iniciais. As-sim a criança chegarâ a desenhar linhas de contorno. Entende-se que este de-senvolvimento levará meses ou talvez ânos; nele se condensam vários enfoques:tentativa, jogo, tarefa, descoberta, conhecimento - tudo é uma coisa só.

A próxima etzp"a ser vencida - e mais vm vez devemos compreendê-lo como umaconquistade vida- éaangularidade.Emsuas imagens, a crian-

ça pode até jâ ter passado da fase abstrata dos primeiros anos e ter entrado nafiguração simbólica; mas por um longo período, a construção angular há deconstituir uma verdadeirabarreira na sua linguagem visual. O problema é cu-rioso. Não que as crianças, entre 3 e 6 anos, sejam incapazes de identificar ân-gulos nos cantos dos obje tos; certâme nte e las os reconhecem de sde ce do. Trata-se de sua disponibilidade para desenharem ângulos. Nos muitos testes, em quePiaget propunha às crianças copiarem figuras geométricas angulares: triângu-los, quadrados, retângulos, losangos, elas sempre procuravam fugir à represen-tação daangularidade. Ainda que percebessem os ângulos, as crianças os subs-tituíam por formas curvas que se alargavam em certos lugares ou se interrom-piam no lugar do ângulo, ou então elas desenhavam uma forma circular e assi-nalavam a presença de ângulos com pontinhos ou pequenos traços ondulados.Reproduzimos a seguir o resultado de um dos testes:8

8 Jean Piaget, Tbe Cbitd's Conception oÍ Space, Basic Books, Inc., New York, p. 600 (desenho re-produzido por mim, F.O.)

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um quadrado, um triângulo dentro de um círculo.4 ânos

Talvez a angularidade represente p ara a criançauma situação emocionalmentedifícil, situação conflitiva transposta ao nível da configuração espaciar. De fato,hânaangularidade a interseção de direções espaciais divergentei (verticais, ho_rizontais, diagonais), e o momento de oposição frontar de ãreçoeà. outrossim,a confluência no ângulo sempre produz uma forma pontuda, bu seia, uma for-ma visual agressiva, apont2.parecendo furar o espaço (ao passo que a curva,ou a forma circular, é sentida como um movimento rítmicô não-agressivo, deacompanhamento ou até mesmo de aconchego, mas nunca de oposição).

Durante muito tempo, é pre cisamente na presença ou ausência dos ângu_los que, para as crianças, se caracterizam os termos expiessivos das formas. pia-get relata o comentário de um menino de 7 anos, diante da forma de um rosan-qo que tena copiar, que exclama, ,,É quase como um ovo, só que tem ponas.,,eEste é uú comentário que nenhum adurto faria. Testemunha também o fato dasespeculações da criança (e seu conhecimento resultÍÌnte) ainda envolverem prio_ritariamente a possibilida de da ação física sobre o objeto. E mostra que a com_preensão das relações formais - neste caso, do losango - abrange vivênciasr.nultissensoriais (tais como: visão e tato e aexperiência da comida), todas in-terligadas a situações emocionais da criança.

Aliás, nas reaçÕes das crianças t."nspâr.ce claramente que, para eras, asqualidades geométricas em si ainda nâo tèm o menor interesie. Quando naosão associaús a conrcúdos afetivos, muitas crianças nem mesmo.orrrag.ra-captzr o enfoque das perguntas. só quando, nesses experimentos, os aspectosgeométricos ocorrem em obietos "emocionalmente interessantes,,, digamos,a circularidade em bolas, os triângulos e quadrados em blocos de construção,é que as crianças conseguem concentrar-se e tentar executar as tarefas formaissugeridas pelos adultos: cópias, comparaçÕes, avariações, estimativas etc. (A geo-metria, enquânto pensamento e conhecimento, só se torna acessível, e com_preensível, aos jovens apatir daadolescência - voltaremos a esta questão Io-go adiante.) A propósito, vale considerar o seguinte: nas situâções dos testes ima-ginados por Piaget, há um nítido direcionamento intelectual. sem dúvida, re_presenta uma proposa'bâsica das investigações de piaget: examinar a forma-ção das estruturas mentais cognitivas no crescimento dãs crianças, as diversaset2pas de conceituação e raciocínio. piaget é um pensado r dagrartdezade Freud,sendo inestimável ariquezade suas contribuições à compreãnsão oos proces_

modelo: um triângulo,fait<a etâria da criança:

e hid., p. 592.

,r Ni'i[Ëilïfi'ï'ì'.ïiïJü'ïi"'Ïi

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sos psíquicos. Mas ao considerar exclusivamente os componentes intelectuais,segregando-os, e desligando-os da sensibilidade e de conteúdos afetivos, pia-get é levado em suas conclusões a privilegiar o intelecto como única viavâlldaparase conhecer arealidade, conhecimento este culminando na lógica formaldamatemática e, no caso particular do espaço, no conhecimento da geometriae da perspectiva. Assim, há que quesiionar a validade de certas premissas de pia-get, no que se referem à linguagem artística.10

Em torno dos quarro anos de idade, a criança passadaabstração à figura-ção. começa a representar figuras e objetos. Nesta representação, o estilo infantilnada tem de realista: acriançanão tenta imitar nadae tampouco copiar ou fa-zer uma réplica do que vê. sua visão é simbólica. Tânto as figuras humanas ouanimais como também os objetos serão selecionados pela criança segundo cri-térios afetivos e mostrados em certâs situações, também afetivas, que a própriacriança identifica para si e evocaatravés da imagem. As imagens revelam a con-tinuidade existente entre o mundo interno e externo. Tüdo está sendo caracte-rizado ao mesmo tempo por aspectos físicos e psíquicos: formas, cores, textu-ras, prazeÍ, medo, ansiedade. Muitas vezes, as crianças acompanham a execu-ção daimagem com moyimentos de seu corpo, ilustrando a representação pic-tórica com gestos, exclamações, cantos, ruídos e danças. cada imagem torna-se assim duplamente simbólica, no resultado final mas também ao longo do fazer.

o simbolismo se evidenciaoutrossim na "imagem constante" das figurase dos objetos: cabeça redonda, corpo oval ou cilíndrico, braços, pernas e de_dos esticados, todos os dedos ou mais, se for necessário paraaação simbólica(Ilustração n935), ou então, a mesa com tampo circular ou quadrado, com to-dos os pés à vista. A criança não tem intenção alguma de reproduzir certos efei-tos óticos, de recuo pzraaprofundidade. Ao contrário, elaevitaqualquer tipode superposição que pudesse encobrir deulhes significativos (nesta idade, assuperposiçÕes são inteiramente inaceitáveis para as crianças, que as interpre-tam como urna mutilação visual dos objetos). Tudo será simbólico na seleçãodos diversos aspectos visuais: detalhes, muitos ou poucos, magnitudes, posi-çÕes, proximidades ou distâncias, junção ou separação de objetos, cores inten-sas ou atenuadas, linhas finas ou grossas, retas, onduladas, curtas, longas, con-tínuas, interruptas; as figuras humanas maiores do que a casa ou menores doque a flor. Tirdo será esabelecido segundo uma hierarquia íntima, que tem co-mo critério o da situação interna afetiva. portanto, ao representar figuras ou ob-jetos, a criança não está interessadaem documentar "objetivamente" o que vêno mundo, e sim em expressar o que vê de "importante', no ,.r.rr"

-,rrrdo. E

r0 Em seu livro Tbe semiotic or symbolic Function (emHoward E. Gruber eJ. Jacques vonèche,Tbe Essential Piaget), por exemplo, Piage t cita as seguinres definiçOes do èsiilo infantil, da au-toria.de G.H. Luqyel: primeiro, teríamos "o realismo fortuito", isto nas garatuias iniciais; depoisvcm."o realismo falho (...) quando os elementos da cópia são iustaposios em vez de coordena-dos"; em seguida, 'b realismo intelectual (...) mostrando os atriburos conceituais (... ) mas semse_importar com 2 perspectiva", isto a respeito de um exemplo de perfil desenhado com doisolhos; e, por fim, aos 8 ou 9 anos de idade, teríamos "o realismo visual (...) o perfil agora temsó um olho".São definições sem o menor sentido ou sensibilidade; Piaget as cit2 com plena aprovaçào.G.H. Luquet, Le Dessin Enfantin, patis, Alcan, 1927.

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o que por ora lhe importa, importa emocionalmente. são mundos estritamen_te subjetivos que ela simboliza.

uma das observações mais inspiradas que piaget faz na anârise de testesé que na infância as crianças definem as situações de figuras e obJetos atravésde noções topológicas de espaço. são noções nao-geométricas (daí também odesinteresse das crianças pela geometria); noções de circunvizinhanças. As coi-sas se desenvolvem juntando-se ou separando-se, ficando umas dentro de ou_tras ou do lado de fora, em espaços fechados ou abertos. São sempre relaçõesespaciais que ocorrem em pequena escala e que são vivenciadas como euen_tos Íisicamente interrigados. As áreas não são geométricas, regulares, nem fi-xas ou rígidas em sua forma; ao contrário, parecem áreas elásticas - denomi_nadas áreas de "borracha" - que podem se esticar ou encolher, se amassar ouse deformar de mil maneiras sem, contudo, invalidarem, digamos, uma linhade demarcação que exista entre duas áreas adjacentes. e linha pode ficar tortaou inclinada, mas não deixará de existir como fronteira física. Assim tambémocorfe com a relação "dentro/fora'1 "junto/separado" e quaisquer outras rela_çÕes topológicas.

Para este tipo de ordenação espaciar não existem moderos anteriores nemmesmo referências externas. Ao contrário, as ordenaçÕes parecem intrínsecasacadaobjeto e cada situação individual; parecem independentes do modo co-mo as formas particulares sejam enfocadas e até mesmò independentes do fatodestas formas virem a alterar-se ou não, Assim como acontaia .o* a imagemconstante, as relações topológicas - iunto/separado, dentro/fora, aberto/f'echado- são vistas como qualidadespermanèntes dos objetos, que os identificam elhes pertencem.

Não há dúvida de que seja assim que as crianças vivenciam o seu fazer, sen-do esta a imagem mental que formam do espaço vivido. vale lembrar que já aspercepçÕes do bebê se estruturaram neste mesmo pfocesso dinâmico: passan_do da atividade possível (sensório-motora ainda) àrcaIização e àinternarizaçãodaatividade - a imagem menal codifi cando aaçãovivida. piaget ainda comen,"a respeito das imagens menais que, além da extensão da percepção imediata,elas incluem a combinação dos vários momentos sensoriais da experiência.completaríamos: "dos momentos afetivos também,'. o obje to (objeto de ação)nunca é percebido como isolado em si, existindo num espaço neurro, mas emfunção daquilo que a criança poderia ou desejaria fazer iomere - afastandoou aproximando-o, abrindo ou fechando-o, absorvendo-o ou sendo absorvi_do por ele - portanto, em funçào de expectativas e eventu ais realizaçóes. As-sim a imagem mental das relações espaciais, dentro/fora, abertorfechado, jun-to/separado, abrange todo um complèxo de sentimentos de segurança ou inse-gurança, de se sentir apoiado e aconchegado ou de temef ser abandonado, deprazet e alegria ou aflição e medo. são qualidades afetivas que os otrjetos ad_quirem através de sua posição em relação à criança e através dos relacionamen_tos espaciais qu€ se tornam manifestos. Identificando situações afetivas, as for_mas espaciais são sempre formas simbólicas.

Durante a maior paÍte da infància, as ordenações topológicas predomi-nam nas imagens infantis. constituem, do ponto de vista da estrutura da formaexpressiva, os limites da experiên cia e da conscientização possível nessa fase

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do desenvolvimento das crianças.tt caracteizam aspectos formais elementa-res e ao mesmo tempo afetivos e, pof isto, são universais na expressão infantil.outrossim, sãoprioritáriosno estilo das imagens - como formas de compreen-são e avaliação, portanto, formas do conhecimento - sobrepondo-se mesmoà expressão da personalidade individual da criança ou de sua situação pessoal.Comparem-se, por exemplo, as Ilustrações nS 12 e 13 (se possível, antes de pros_seguir e ler os nossos comentários a respeito). euem poderia supor que a pri-meira imagem (n912) fosse produzidapor uma criança no campo de concen-tração? (Ela morreú pouco depois em Auschwi tz.) Tão parecida é a composi-ção - na estrutura formal e também em termos de emotividade - com a ima-gem produzida por uma criança brasileira da mesma idade, vivendo presumi-velmente em circunstâncias normais e bem longe do horror daqueles anos deviolência (n913). Sem dúvida, depois de se saber do destino trágico da meninaMariannaLangová,já se vê com outros olhos a sua pinturae se interprea certosdetalhes da imagem em função de novas associaçòes nossas, mas antes de se sabê-lo, não há nem como nem por que imagináìo. (As várias pessoas a quem mos-trei os trabalhos, para efeito de comparação, jamais suspeitarem desta situaçãode vida tão extrema. Tâmbém seria difícil imaginar o mundo interno da meni-na.12) contudo, mesmo depois de tomar conhecimento destes fatos, a estruturada imagem não muda e tampouco os relacionamentos espaciais; continuam sen-do os dados objetivos da forma e seu conteúdo expressivo depende deles. por-tanto há que se ter muito cuidado ao interpretar trabalhos infantis, mormenteno que se refere a determinados problemas psíquicos dacriança("decodifican-do", por exemplo, as formas circulares que todas as crianças desenham inicial-mente, como "os seios da mãe" etc.). É preciso ver que o conteúdo simbóliconunca se afticuìa em tefmos meramente descritivos ou em associações prees-tabelecidas, numa correspondência de um-por-um (isto significa aquilo etc.).Apesar de as crianças não conceituarem, elas generalizam, e são sempre situa-ções globais que simbolizam, evidenremente dentro dos limites da possível ex-periência de vida infantil.

A estrutura espacial topológica dos trabalhos infantis é universal, indepen-dentemente dos contextos culturais e sociais em que vivam as crianças. As ex-posições de arte infantil o comprovam. por mais expressivos que sejam os tra-balhos - e nessa idade são sempre expressivos e autênticos - é impressionanteobservar a semelhançaformal estilística entre imagens procedentes dos maisdiversos países do mundo inteiro. É como se não existissem fronteiras geogrâ-ficas e mesmo culturais.

l l É deveras lame ntável, além de um desÍespeito à integridade infantil, a quantidade indigesta deestímulos, apelos, "informações", com que, nessa idade, as crianças eJtão sendo bombardea-das pelos meios de comunicação, com o único obletivo de condicioná-las como consumido-res. Nem se fala do abuso de crianças como "garoto-propaganda", evidentemente com o bene-plácito dos próprios pais.

t2 MaiannaLangová, nascida em praga e m 19 32 .8m 1942 , ela foi presa e de portada para o campode concentração de Theresienstadt. Morreu em 1944no campo de extermínio de Ausschwitz.De Díe Kinderzeicbnungen und Gedicbte aus Tberesiensadr, 1942-1944, Stárni Zidovské Mu_zeum, Praga.

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Com a pré-adolescência inicia-se uma nova etapa na vivência infantil. Atéagofa., as formas de espaço (topológicas; ordenaçÕes de conjuntos e circunvi-zinhanças) e os valores que elas incorporavam eram centrados na criança e com_preendidos a partir de suas próprias atividades. Daí em diante, a criançase tor_nará capaz de abandonar aos poucos esta posição autocentrada e de comple-mentar suas referências internas com referências externas. o importante é quetais referências externas passarão a funcionar como critérios de avaliação. porexemplo: quando acriançaaprende a ler e escrever, é difícil paraelaentenderque existem certes convenções culturais no que diz respeito ã direçao e ao en_caminhamento das coisas; que a rinha d,iagonalr,r.oniig.r."ção das letras Nes sempre vai da esquerda paraadireita ao passo que no Z elavai dadireitaparaa esquerda; ou que o '44 invertido de cima parabaixo transforma-se em tz so_bretudo é difícil enrender que estas inversÕes espaciais implicam significadosdiferentes. Até então, a direção do fazer con diziacomaposiçao em que a crian_ça se encontrava. As coisas podiam acontecer da esquerda paru adireita, masbastava a criança se virar e as coisas aconteciam da áireita p^r^

^esquerda _

e continuavam sendo as mesmas coisas. Agora começam a sufgir situações, cu_ja orientação e cujas referências já não se centram mais na criança. são referên_cias e avaliações externas à sua Dessoa.

Éverdade que mesmo.ro ád.rlro os pensamentos e as funções cognitivasda inteligência jamais existem independentes ou desligados da totalidadãda pes_soa e de suas necessidades afetivas. Mas não se trataaquide proclamar o predo_mínio das emoções ou, por outro, de tentar impedir sua influênc ia para que arazão se conserve imparcial em suas avaliações. Nem um nem outro é verdadeiro.Ao invés disto, estamos nos referindo ao fato de que existe, no adurto, a possibi-lidade de um distanciamento interno psíquico - este é o ponto crucial - quelhe permite olhar paraaprópria existênciã como se fosse, ãrém de sujeito, tam-bém o objeto. Que lhe permite avariar.., e jurgar. eue, portanto, lhe permite serobjetivo ao mesmo tempo que subjetivo. Este processo de distanciamento e deobjetivação se inicia agora nos jovens adolescentes, quando eles podem con-ceber que existem também outros pontos de vista além do seu. Istoimplica nãoapenas que se possa distinguir sua visão da de outros, mas implica sobretudoque se conquiste uma visão individual diante do mundo; envolve a individua-ção do seu próprio ser, a descoberta de suas potencialidades.

Aos poucos, diferenciando-se internamente e no mesmo processoindividuando-se, o jovem consegue tornar-se mais flexível, capazde abando-nar sua posturarígida, unilateral, e imaginar como seriam os interesses e as Do_sições de outras pessoas em outras situaçÕes de vida. Este desenvolvimento in_terno lhe permit i rá acei tar referências externas, emocionalmente eintelectualmente.

Todo seu universo imaginativo se amplia. o jovem poderá abordar siste-mas de referências essencialmente intelectuais, como, pòr exemplo, sistemasde quantidades, números e subdivisões. Mundos impeisoais desconhecidos,aÍé entÃo sequer cogitados: uma metade , a metade da metade, a metade da me_tade da metade, e aindaametade daquele pouquinho já praticamente invisível.o zero. o menos que o zero. (Todas as reierências anteriores vão sendo trans_formadas, pois as magnitudes não correspondem mais à vivências, nem à açãodireta sobre os obietos.)

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Tâmbém, a pattir do fato de a esta altura da vida já existir um passado, oacervo de uma memória própria de atuaçÕes e vivências, torna-se possível aojovem interligar os "antes-e-depois" e conceber noçÕes de tempo I'unto comnoções de causalidade.

Assim, ao inteirar-se progressivamente de referências externas, o iovemserâcapaz de conscientizr-se de um fato, que na prática jâlhe era familiar: que

a mente usa símbolos, palavras, noções, signos, e que estes símbolos não sãoa mesma coisa que os obl etos. A "bola' :paIav Ía não é, obviamente, a pr ópr ia b olafísica, e o jovem não poderá chutar a"boIa':palavra. Mas mesmo assim poderáevocar o jogo na mente. Poderá até mesmo evocar diversos jogos paralelos. Poisna mente é possível realizarem-se feitos impossíveis na realidade física. No pen-

samento é possível ir para frente e retornar ao ponto de partida, avaliando o re-sultado desta ação virtual. É possível enveredar por caminhos diferentes, com-parando e avaliando-os com o mesmo referencial, além de refazer os caminhosmuitas vezes. A descoberta deste fato é de suma importância. Pois ao descobrirabordagens mentais sempre diferentes, repetiçÕes, variaçÕes, acréscimos, ra-mificaçÕes, e remetendo estes caminhos a um referencial externo (independentede vontades ou nece ssidades subjetivas), o jovem vai descobrindo que as com-binaçÕes são infinitas. Pelo menos, na imaginação. E ainda, que todos os cami-nhos são reversíveis. Sempre na imaginação.

Esta reversibilidade permite que a memória se torne um fator ativo nos pro-cessos de aprendizado. A memória, não apenas como registro de vivências, masna possibilidade de se retomar experiências do passado, de reavaliar seus resul-tados de sucesso ou fracasso e as implicações, e de reintegrá-las às experiênciasdo presente. Assim podemos aprender com aprópria experiência. Podemos agirintuitivamente e criativamente.

A noção da reversabilidade do tempo imaginativo será decisiva para se en-tender a irreversabilidade do tempo físico. Este entendimento implica em no-vos valores vivenciais, até mesmo nâs posturas ante o viver - encaminhando-nos ao senso de responsaLrilidade pelas decisÕes que tomamos e pelas nossasaçÕes. Além disto, a noção de tempos imaginativos, ou seja, de formas mentaisque podem ultrapassar as da própria percepção sensorial, levaráà verdadeiraabstração, multiplicando os espaços daimaginação e redimensionando os pró-prios limites em nossa sensibilidade.

A plena integração do pensamento abstrato intelectual, envolvendo sis-temas de referências espaciais mais amplos, como, por exemplo, a coordena-

ção de horizontais, verticais e diagonais num espaço tridimensional, ou a pe rs-pectiva, ou sistemas complexos de relações lógicas, só se realizarâbem mais tar-de, em verdade, somente no fim da adolescência. O pré-adolescente pode atéoperar com aspectos de subdivisão métrica do espaço e do tempo, ou com cer-tas relaçÕes lógicas; no entanto, não se identifica com elas afetivamente, poisno nível emocional aindanão representam arealídade vivida. A passagem davisão subietiva do mundo paravma visão mais obletiva se dá lentamente; elahá de se concretizar quando a individualidade da pessoa puder afirmar-se emnovos relacionamentos interpessoais. Então a atitude autocentrada das crian-ças e dos jovens poderá ceder à identificação com causas maiores do que o "eu"pessoal - nelas, este "eu" haverâ de se projetar e se reencontraq mais amploe mais rico, em espaços internos maiores.

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No final da adolescência, o estilo das formas expressivas se altera funda_mentalmente. Acompanhando o desenvolvimento psíquico em direção a.umaatitude menos subjetiva, o modo de representação torna-se mais objetivo, maisanalítico e mais valorativo ao mesmo tempo. o fato relevante, aqui, é que as for-mas do jovem serão diretamente influenciados pelos adultos, aproximando-sedos padrões vigentes no contexto cultural em que vive o 10vem. só agora é pos_sível situar os trabelhos artísticos num contexto histórico, e só agora procedefalar de tendências estilísticas, que são sempre de ordem culturãl.t:

Esta nova fase de produção artística dos jovens é freqüentemente classifi-cadapelos psicólogos como "realismo"; as imagens se tornariam ,,realistas',

ou"mais realistas". Mas é preciso ter clarezaem tal definição, e o máximo rigor. oque vem a ser realista? (Por exemplo, nas culturas orienais, ou indígenas, ou afri-canas, as obras seriam realistas?) Estariam os psicólogos se referindo ao estilodo Realismo, ou à atitude dos jovens perante os problemas de vida?

A visão do Realismo é essencialmente descritiva, enfoque este bastante di-ferente de estilos expressionistas ou idealisas. Nele, certos valores se encontramvinculados a determinados objetos ou figuras; sendo tais valores traduzidos peladescrição mais ou menos fiel das feições dos objetos ou figuras em questão. ,,Maisou menos" fiel: eis o ponto import2nte. Aqui chegamos rro'o"..rerrte ao proble-ma levantado antes (nos capítulos I e III), da 'deformação,l ou seia, dadistor-ção formal naaÍte (a "deformação" sendo entendida como um abandono dasformas danatureza). Cabe ver o seguinte: a ,deform

ação', ê ineuitáuel naarÍe,jáLpelo fato de elementos de linguagem formal (pintura, música, dança etc.) subs-tituírem a presença fisica do objeto. Além de ineviúvel, porém , a"deformação',também é indispensáuel, pelo fato de o estilo e as formas expressivas sempreenvolverem ênfases. As formas de arte representam formas da consciência hu-mana, não da naÍureza.

Nos diversos estilos realistas, pode haver a expressão de valores diferen-tes. vejamos, por exemplo, a obra de Gustave courbetra, artista expoente doRealismo do século XIX (e, independenremente de sua posição histórica, umdos maiores artistas do século). seus quadros mostram como conteúdo expres-sivo: a dignidade da existênci a (tsica, destacando-se, na densid ade da matériapictórica e damatériados objetos e paisagens representados, a visão de grandenobreza do cotidiano.Jáno Impressionismo (também um estilo descritivo), quesegue ao Realismo, não é amaterialidade dos fenômenos que está sendo enfo-cada. Em vez dela, o aspecto selecionado - e descrito - é o daluminosidade

ll Trechos de criatiuidade e processos de criação, da autora, Editora vozes, petrópolis, p. 12 7:'vale observar, porém, que até uma idade próxima à puberdade, as alterações na linguagem ar-tística - tanto no que diz respeito aos elementos usados como à maneiia de composição -que ocorrem nas várias fases do crescimento infantil, são surpreendentemente similarés em todasas crianças, não obstante diferenças individuais de tempe ramento e de sensibilidade. As altera-ções estilísticas pouco variam até de cultura para cultura. Poder-se-ia chamar a este desenvolvi-mento quese que de estilo 'biológicol,,'A bem pensar, não cabe empregaro termo es tiloemrelaçãoa trabalhos infantis, pelas conota-ções culturais que o termo encerra.,'

14 outros detalhes sobre a obra de courbet serão enconrrados no capítulo vI.

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atmosférica. Ao transcreverem os reflexos óticos nos objetos, as obras impres-sionistas apresentam como conteúdo: o apelo sensual e a vibração das cores naluminosidade radiante, além de enaltecerem o prazer do próprio ato de percep-

ção. E, neste sentido, ainda hoje os quadros impressionistas nos proporcionamum prazer imediato. Se recuarmos a tempos pré-históricos, vemos que tambémas imagens das cavernas revelam um estilo descritivo realista. Os valores por elastransmitidos, envolvem certas qualidades encontradas nos animais (sempre ani-mais de caça): suâ vitalidade, força, dignidade e majestade, as imagens evocan-do, magicamente, sua presença física. Sem dúvida, tais qualidades projetadasnos animais - heróis-vítimas - significavamtambém aspirações dos homens,pois esses mesmos animais eram tidos como figuras ancestrais, representandoapropria existência humana - na tentativa dos homens criarem uma espéciede cosmogonia para responderem à sua pergunta angustiante: "Quem sou eu"?O Realismo, nos desenhos pré-históricos, se deve portanto ao duplo enfoqueda magia de dominação e do totemismo. (fá por estas razões, nunca se deve con-fundir arte pré-histórica com arte "primitiva"; nãohânadade primitivo nessasobras.)

Assim, ainda que o estilo seja realista, há sempre uma abordagem seletivaapartir de valores a serem comunicados. Cabe frisar também que, no trabalhoartístico, tais valores são elevados ao nível poético, as formas tornando-se com-plexas, densas e multivalentes em seus padrões significativos; daí poderem ex-pressar uma verdade da condição humana.

Nenhuma destas visões de vida será encontrada em trabalhos infantis ouaté mesmo em trabalhos de adolescentes. Nem poderia ser diferente. Antes deos jovens expressarem avida, é preciso que a vivam. Que cresçam, se desen-volvam, amadureçam e enfrentem o viver em termos de adultos: amando, lu-tando, também sofrendo (pois isto é inevitável), e procurando realizar suas po-tencialidades individuais. A espécie humana é a(rnica, cuja infância e juventu-de se prolonga por um período proporcionalmente extenso.15 Sua dependên-cia infantil e sua imaturidade é longa, por razões biológicas e também pelo fatodos seres humanos nascerem tão pobres em termos de instintos e tâo ricos emtermos de potencialidades espirituais e culturais. Assim, só depois das pessoasatingirem sua maturidade adulta, se rá possível iulgarem a validade das diversasabordagens de problemas existenciais. Só se cria mesmo apartir da maturida-de, pois "criar" significa reformular e reestruturar, e o que se'reformula são osconteúdos de vida, visões de vida. Então se falarâ de estilo... de Realismo oude outros.

As avaliações de Piaget, demaior ou menor realismo nos desenhos de jo-vens, fixam-se sobretudo no modelo da perspectiva. se dominassem os con-ceitos daperspectiva, assim parece, os jovens teriam uma visão melhor darea-lidade. comentando com certa perplexidade, que eles custam tanto ainterpre-ÍaÍ coÍretamente os princípios da perspectiva e que muitos nem o conseguem,Piaget zfguflrent2:16 "Mas a criança consegue projetar os objetos e entender cer-

15 Também ê aúnicaespécie em que é possível se infantilizarem os adultos.

16.JeanPiaget, TbeCbild'sConceptionoÍSpace,emHowardE.GrubereJJ.Vonècne,Tt)eEssen-ti.tl Piaget, Basic Books, New York, p. 579.

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12 Nlarianna Langor'á (1932-1944), Casa no jardim

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Museum, Pragaaquarela, 1944?, Sttitní Zidouské

Page 20: Acasos e Criação. Cap. IV

da Escolinba de Arte de Recife

Page 21: Acasos e Criação. Cap. IV

34 Grr: l tuja dc criença

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{ f Ir35 Desenho infanti l , Menina

de bolsa nova na festa,bastão de cera sobrepapel, Coleçao AlcídìoMafra de Souza

Page 22: Acasos e Criação. Cap. IV

36 Man Ray (1890-1976;, Cinzas e fósforos, fotografia, 1920, Coleção particular

Page 23: Acasos e Criação. Cap. IV

37 Marcel Duchamp (1887-1968), Rocla de bicicleta, escultura ready-made,

1914, Coleção P.trticular

38 Max Ernst (1iì91'1976),". . .c 'est le chapeau quifait / 'bomme"'" ' desenho

aquarelado, 1920, Museum of Modern Art, Neu) Ytrk

Page 24: Acasos e Criação. Cap. IV

8€Á/ z tNE l ' . : -

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DLMt- Aitft€ Itt At/LC39 Christian Schad (1894), Benzine Demi_Amplexrcaule,

Coleçao particutar

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fotomonragem, 191g,

Diroktion r, hrurmannSbglitz zimmermannsrasse 34

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4o Página da revista DER DADA, Composição tipográfìca. 1919

Page 25: Acasos e Criação. Cap. IV

tas relaçÕes métria-pefspecriva

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ção." Piaget rcm |adaruzuo qr""ãã -;'r1."Ï:

de execuar operaçÕes de medi-ceitual só vem o.pJr ã"#r;:ïïitïtra

que a conquista de um espaço con-

fr :Íï:*ff ffi?*ff ïti?ï!i1;tïïï,*:ï:ïii1r#'''nïíïum espaço ,,,arr,.'tttt

em termos conceituais, @rt-i"ãã-ïìii " "p...r,rao o.

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0.,..il3i3.ïos'ePiaget"';;;;;"ï:nïiff il1,#:':ïÏffi *:ïso orhar o.r-r.,.-.1ïffff:ffï:ïrjamais nossa õ;tt- ;. espaço e nos-}:l:t :"-oos visuais, campos .tr.ur,r.i1Ïos

de uma só vez, e niridamenre,eixos centrãi, _ n.À.i;;#;l;ï,1, *_

ros por_ margens e esrfururados po,umprimeiroo'"".'fi,i1;:'ff #ïïi?iJò:o.d;;;;;;as,e.uam'd.tema da perspecriva e são .r,., o, ,.Ç;t:ïïji::"#.H'.ï""' É ',,. o ,ir-

:: ::':Ì:ïHi'ãÍ:#:t ly, 1;õ üil.ïo rro s e dá em,.,," o,.. o-p r eram en.um em outro. *.rr.rPor

visuais são fluidos e se transfor_ra aà.rrrrntementecobreáreasil;;ï:l|Ë:g;ï"";:::#,:ï."?:,A;,"f ;#ïï#::ïïi;

.ffi:ï#ïs e as periréri"' pË'-l".ilm norti","r. Nãã ìãl o"-o,

"or,,,ii*'T:aÍ,J;Ëi1ïiïil"ï:i.':#'nts

e com u-" "'ro"ìo'a''""'oi-rransmissão.;,#iïï"jïoo::::r"1,:,:ïã'::ïÍ'ïï,ï'":'"::il,",:fftras distorções, citamos a seguintg .o-.rr't'o

nos centros visuais). Entre ou-zar, avistar. oáte_ Ëãi*.ïïïïï:::ï:To,

pelo próprio piager: ao focali_nas demorando mrir_

trechos que apresentam maior Oifer.rr._i""çao, não ape_

r'm;r:lrï:.Ìriïídüf "',ffi :nï.ïïlÍHrrí,ï1i;'"ïïï;É.

"" párr"g"-;;.r";ì"t

cheio parece maior oo qu. oì.r-ãìr..n" vazio).taaiusres que se suced.o=t"t

as diversas partes o" .à-po uìï;j;;;; inconráveistante"dãs;Ã:ì:k'.ïi,ãïjï:',if

:.--orererenciari,:ìÃ,g.-.o,.,,-ste capítulo), que se ,.rán.t... ,

17 euando se lê, só se focali

::1:^T:ll;õã.ã:ï':'"if,ffi j:'j,:i#Êjf f:3lj:'.sepassaadianre.rüdosedácomramanha rapidezquenãoÃãfri;"jr,ïJ#rt,:X:3:"s e se passa adianre. ri:do se dá;lïïl:i':,::-::u tamr.nho, sua rrsura ou ao serÌ côrn^ "j:lt:?-tl".mos

atençào âs lerras in-dividuais, ao se,.i

"'nrrit ã, ,_".,vü

ud,,us conta o" U,"9:l.Tp..r,"..oi r,.iïàã a, t.rr^ in-;,:iï::ai*:..nea;'á:ï:ï;::.'.'fJ,'âHiïiãï,..",1,111,Ì;...,^.11qery,i,ìì,ï,à,ï-.ilL,auroma.l,-zllls " ngrc.epçao ã. j.ïr, "'rróuIa ou ao seu corpo. se sào reqgro^, Àriràrï'.ïLLr rurorn".,'p,r*."i ináiíi"J,",Ë;,i;ïil,ìi?lïÍTf:f",:*;1gig,r""i,rü"ïïïÂpïï.ori*"_o,lt^li]:"*r

individuais. r.. "' "-'-'*'ttattuo-a em leitura de patavras. ü;ì;;;;.. fixamos

l,l1:.,* po,,..i-of , #Ë:,";,i|]XX?:*ï;ffi*' :*:::i:'1+1;; il:ì lïïr.,i-o,,,g{awas posteriores às ;;':" -'rur.' uu merno4 ,t ttl}f-9: rn', r.". i"t.-iã"nirerimos asï1*g.-l;.'.':filffi;|::ôï:?,ã'J:ï:ïïï::*"..p,...-.,.r.è,'.ï,",.ï*'p.",.,,,. n[:'#ïï:"'J,:i:.';'ffi li..i;::*:ï.,'.#::*ïËË,,1ô!ï:i:ïï'fl'"'ff illïlï::::,:::1":""éu"o'ã'-;Ëüï;:n'ï',fuï:ï:::"'iïï;11',;:ii:i,ìlsJeanpiaget,

Figurat iueAst)ertçnrra^".^,-_ -_

u!Laudpatavratndir idual .

tìat piafet,'.;:i; il;;lï""í'i{írf:,srr;.::J,l: g-T_?...r.Jacques vonèche,tiatpilït.eaiicsoor.,,-i;",";tí"í{,tt,;..ãf ,i;f.ïlf ;r,"n:+:;íelfl,H .'í,.r,',,., t\,t\|t,*j11f i nrgnosito desre exemp,o, ._ìIL n-,,-H

""o", "'. ',í,i^ã'o""ï,iìï.ï'J31i;.ï,,ãiii,l ï!i):::::::,,ïÌ,1.*, , direrenciaçáo visuar se[:ïïiïi'í,',.ï:1,,*;imïkh:ï*]:r?".,rLr-,iÍffi :ï:'â:x..:ï,:ff :Ínuiros conrrast., uirurÀ,-"i "J '[rr'rr varos em tensàoesbaciar. .rrsim, nuÀa aìáì'[ì,..onr.rrr-,,rocidadedomàrt;;ffii:#i.ï:ï3r1g'j:::;:lÍiff::y'",â,ì.ï.,ìáïïi,,,,,ui " u._

Iocidade do mo"i-"i" i'Ji'ïï:'ïH ;:::r::5Í;xll:i_""'"'â'i'-.'ìãïï' i''ui " u.

çao torna as áreas mais leves e velozes.

Tbe Issen-

r77

Page 26: Acasos e Criação. Cap. IV

visão global de imagens, com grande coerência significativa. Por este motivo,

amãozinhaque Se encontra a 20 centímetros dos nossos olhos não se tornará

monstruosamente glande, maior do que a própria criança que a estendeu à nossa

frente (como Sefia registrada fielmente por uma máquina fotográfica, que não

faz estes aiustes múltiplos), nem tampouco um homem que se encontre a 20

metros de distância se tornará de repente um anão. Os processos da percepção

certamente não obedecem aos princípios da perspectiva.

Em si, a perspectiva representa um método de se projetar volumes tridi-

me nsionais sobre um plano bidimensional (definindo-se distâncias, intervalos

e magnitudes a paftir de um ponto artificialmente fixo no espaço). Quer dizer,

é o que ela representa hoie : um método. Mas a perspectiva como método, é uma

coisa; como forma, é outra. Devemos distinguir claramente entre método e for-

ma. O método propõe uma ação mecânica. A forma é uma ação expressiva; pois

a forma tem sempre conteúdo, expressando vivências e os valore s de ais vivên-

cias. Tâmbém convém lembrar que, antes de se tornar um método, a perspecti-

va nascera cgmo forma expressiva. Já tivemOs oportunidade de comentar (no

Capítulo II) que a perspectiva representa uma visão cultural. A configuração dada

ao espaço fevela uma atitude essencialmente racionalista, além de visão antro-

pocêntrica diante do mundo. É a visão do Renascimento, Sobretudo do Renas-

cimento italiano, visão de valores diametralmente opostos à da Idade Média (cu-

ias noções de espiritualidade e desmaterialização impossibilitaram uma forma

espacial como a perspectiva, pois quando espaço e tempo são considerados atri-

butos divinos, incomensuráveis, não há como medi-los ou lhes dar uma forma

racional). Mas a visão renascentista contrasta também com a de arte chinesa, de

energias cósmicas interpenetrando-se em cada mínimo detalhe danatuteza. E

seria esta visão de realidade menos vâlida?

Cabe distinguir mesmo entre forma e método. Como forma - belíssima

- a perspectiva é a expressão perfeita de uma determinada concepção de mun-

do. Mas istO não a tOrna um dogma, uma verdade eterna e absoluta. Nem ela cOr-

responde a outras concepções de mundo, de outras sociedades em outras épo-

cas. Ela não é a realidade e tampouco formula o conhecimento da realidade.

Em nossos dias, aperspectiva deixou de ser forma expressiva, representando

apenas um método útil, uma e squ ematização para se pfoie tar plantas de arqui-

te tura Ou a construção de móveiS; com6 tâI, elaesú sendo ensinada em eScOlaS

profissionais, de ârte, arquitetura e desenho industrial. A "leitura" dos esque-

mas se destina a profissionais especializados, arquitetos, construtores, engenhei-

fos, carpinteiros, eletricistas ou outros técnicos - e não à sensibilidade das

pessoas.Como forma expressiva, a perspectiva não existe mais ne arte moderna.

Aliás, ela deixou de existir desde o Impressionismo, isto há mais de um século.

E no fundo, iá nas obras do Romantismo ela foi sendo gradativamente abolida

(Delacroix, Corot, Daumier). Hoje, nada mais resta dela. Nem precisafíamos sef

físicos ou matemáticos, ou filósofos, para entendermos o porquê deste fato' Nas

aceleradas transformações que afetam pfofundamente oconhecimento e todos

os níveis de nosso ser, níveis existenciais, intelectuais e afetivos, entre grande-

zas atômicas e astronômicas, e aS próprias estnrturas damatêila que se desma-

terializam e se identificam com sistemas de interações, relacionamentos abstratos

- nestas experiências da espacialid ade, não hâ mais condiçõe s peta a forma da

178

Page 27: Acasos e Criação. Cap. IV

perspecdva' Não há como projetar eixos, em que pudéssemos nos apoiar; não:í:?â.XfiïJr

as conoteções de soridez. p.*rrèì;;;;, fenômenos. Eporourro,"oo,,u*ï.,:i:i":Ë:::ff ,fl :::?:ï:1,1Í:,ï::ï,tr.**ff Ë.?il:ï:H:j.ï.humano

(implícito n" rorma da perspectiva) se afigura bastanreDe fato' naafte moderna surgem novas formas de espaço que se tornam

ããï:ïff"lourras provavelmentè haverão de surgir, .;ã;;o se possa pro_

futuras gerações. ' porque não se pode preve t qualseráarealidade oè vioa oas

. Aqui, porém, nos defrontamos out

,:i:,:Íf:^',,r:;f ,.,io,,ããàlo;,#:iïï,.ïo?f; ï,Xï.:,i"#;ffi , j::ï_basedeu-,i.ffi ïiiiïÍ,i,::,ffi :ff :,,"ffl ïr*,.**r-j:ï;modos de comunicação, por que enao ãs'dificuldades de diálogo com as obrasde arte produzidas hoje em ofu NãÃ.r"pressas na aÍte..";;;;;;;::;ìï::Ïam

nossas as experiências de vida ex-

::#f #::::#',ï:"ïfi :ff ;'."Í,X;,ï::iïïi,ïl*;:Ì*;i:.,::;São questões da sensibilidade. Retomando o problema, quero mostfar ou_tras facetas' Do radlla arte, exisre o prpàr criadór., ,.-ãiuiã a, também, opapel "subversivo". Ao_apresentara-

"o-"r, formas expressivas, as obras de ar_te ampliam os modos de percepção, inr,"iìorrroo ,rp.ãro,

""reïiores 1a aceitosou até convencionados pera rô.ì.irã., in*lidando-os naqu'o que se torna_ram 'acadêmicos',, sem vitajidade e."pressi,ridade. Este processo de renova_ção não é fâcir de acompanhar, sobretudo se a sensib'idade das pessoas nãoeslá sendo educada ou, como acontece hoje em dia, nem mesmo está sendorespeitaú' Ao invés de erevarem o nívet o. .o-pr..nsão e partic ipaçãodas pes_soas, os métodos de massifica ção daro.ilà".é o. .or;";;;;íiam.,o .,i.,r._lffi ï:ï*::ïf

orbaixor,o",õ.","0-iã:ud:mesm;,l.,,,i.i..,,os,aspira-

rodaspessoasÃ;T.ïï:'i:;1ïï::xïï,*::ljrf queodiscernimen_É iustamente naampliação da sensib'idade, enriquecendo-a, que ressar_ta a contribuição dos movimentos artistiÃì.m nosso sécuro. Eles nos levarama olhar melhor para nós m.rr.ro"., ão".ãr-o

-ooo, orhar melh or pa,,os ou_tros' Pois ao introduzirem novas possibilidades de estrutura espaciar, como for_mas expfessivas de nossa cuTtura, abriram nosso olharparr * forÃ", e*pr.rsi_vas de ouffas culturas e outros valores _ rpria vida hu-""". í.ï"r",;;"::::Ïl;

numa visão mais pluralista da pró-nasconvençu.,r",_"ïíi1?,ïJ,Íi,',1ïï:?#ïï:,""ï:l*::::m;í:sociedades do passado. o grande púon.á"â" se dá cona d aextraoÍdinâriaaber_tura (ainda que por vezes inorscriminaã"i"*

o* formas e enfoques dos mais

't lt?::iÍffi;Ï::Xt:ïXïtica

teria que começar com.os adurtos. são os adurros que teriama sensibilidade or, ..,r'flll,,oade

e seu senso aâ participaçao;;;ü;;;., p.;L..._.d.r.".

---*--* :-: -,:; ;ï;;ïrj;ì;-,, Í'e trrt \;hììì.-,i.,.j,, rÌ, . .iCi'

""dp"sgg]H..iiili:li*I|s;

Page 28: Acasos e Criação. Cap. IV

variados se inserem, hoie em dia, em todas as manifestações do cotidiano' São

novos modos de percepção que se incorporaram ao nosso universo estético'..que as pessoas aceitâm como fato perfeitamente normal.

Quero exemplificá-lo. Numa visão geral daafie em nosso século, eu des-

tacariatrês movimentos principais que alteraram sobremodo nossa compreen-

são: o Dadaísmo, o Cubismo e o Abstracionismo expressionista. Sobre as pro-

postas dos dois últimos, o leitor encontrará uma análise em vários trechos do

livro, que examinam a obra de artistas que participaram dos movimentos (Pi-

casso, Pollock e outros). Aqui, porém, quero me deter no Dadaísmo. De um mo-

do geral, o Dadaísmo é pouco conhecido (não acompanha a popularidade, por

mais superfìcial que seja, do Cubismo, digamos, ou do Expressionismo). Ele se

encontra curiosamente ausente nas retrospectivas do séculO XX, sua influência

sendo minimizada ou não ressaltada como mereceria. No entanto, o Dadaísmo

levantou uma série de questÕes importantes, teóricas e formais, e ainda existen-ciais, que continuam atualíssimas. E, não ficando só na teoria, os artistas cons-

truíram uma obra. Do grupo fizeram parte artistas de alta categoria, a começar

por Kurt Schwitters, artista maior injustamente ignorado, ao lado de Hans Arp,

Marcel Duchamp, Man Ray, Max Ernst, Francis Picabia (alguns se passando de-

pois para o Surrealismo). Também Picasso participou do Dadaísmo, assim co-

mo Georg Grosz (depois passando ao Expressionismo), Otto Dix (Nova Obje-tividade), John Heartfield, o genial cartazista político nas décadas de 20 e 3O,e ainda os poetas e escritores Paul Eluard, André Breton, Iouis Aragon, Richard

Huelsenbeck, Tristan Tzara, Raoul Hausman, Hugo Ball, Walter Mehring, o mú-

sico Erik Satie e outros.Talvezarazãoparao descaso - hoje - doDadaísmo fosse a impossibili-

dade de se enquadrar o movimento sob um rótulo mercantil, estético, ou an-

tiestético que seja, e de simplesmente arquivá-lo numa das gavetas da "História

daArte", dado o seu caráter questionador, irreverente, irreprimível, subversivo

e ainda hof e revolucionário. Revolucionário, bem entendido, tanto no sentido

do questionamento ir ao fundo das estruturas como também no sentido reno-

vador. De fato, o Dadaísmo reformula não apenas os termos da linguagem artís-

tica, como também, mais profundamente ainda, a atitude básica dos artistas dian-te de seu fazs.r. A impiedosa ruptufa com as formas tradicionais estabelecidas

ilumina bem sua posição críticaclaramente assumida diante de uma ordem so-

cial, e moral , falida. Não se pode separar estâ consciência crítica da criativida-

de da obra, essencialmente coerente e consistente, a despeito de formas apa-

rentemente absurdas. Tâis formas representam o comentário cáustico sobre oquanto se tornaram absurdas as próprias convenções da sociedade.

O Dadaísmo não nasceu como movimento artístico. Ele foi, na origem,

um movimenb de protesto. Lançado oficialmente pelos artistas em 1916 - du-

r^nÍe a Primeira Guerra Mundial , foi um protesto violento contra a gverra,

protesto contra uma cultura que se diziacivllizada e que, em nome de elevados

ideais, permitiu a matança de milhões de inocentes (cerca de 9 milhões de pes-

soas). Simultaneamente, foi um protesto contra a mentalidade mecanicista, uti-litarista e desumana das sociedade moderna. FOi um mOvimentO anticultura,

que tomou formas de antiarte. Em pouco tempo, o movimento alastrou-se por

todaaEuropa, sobretudo pelas nações em guerra, mobilizando os artistas das

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Page 29: Acasos e Criação. Cap. IV

diversas áreas (artes plásticas, literatura, poesia, música, dança,teatro, fotogra_fia), chegando arravés de arrisras r.rugiáoo, até os Estados unidos.Nesse protesto,.os dadaístas não perd oaram nada.pro.rrrrnoo desmasca-rar a hipocri sia da civirização ocidentaie mostrar-lhe sua verdad eira facede bru_talidade, os artistas visavam a chocar deriberadamente o .,bom gosto,, das pes_soas e sua "racionaridade neutra", com obras que subveftessemãs formas con_vencionais' Rearizaram os primeiros bappenings(acontecimentos), espetácu-los de improviso, intencionalmente ofËrisivos, como, por exemplo , as,,ezasfantásticas" de Huersenbeck, ou apresentações em que moças com roupas deprimeira comunhão reciavam'o.rio, obscenos. ou então, substituíram mate_riais nobres por pobres (Ilustração n9J6 _ fotografi ^

ae cinzai efósforos, ManRay), substituindo também os preparativos demorados e caros da pintura portécnicas úpidasde "montag.trì" áu ,toragens'l nelas urilizando derriros e ca_cos que pareciam ter sido retirados daratade lixo (picasso: sacàs de aniagemcom pregos e paus). outrossim produziam objetos sem sentido, ou de umcontfa-senso toÍar, de nonsense, como, por exemplo, um ferro de engomar cheiode pregos na face lisa; ou uma roda oè nicictetâ monhda ,rrr,,, u".rqrinho dec ozinha, quar escurtura num pedestal, a ro da girando no vazio(Irustração n g3 7

;.Malcel.Duchamp). ou desenhos de publicidade, que eram um verdadeirodeboche ("c'est re cbapeau quifait t'bornme,' [é o chapéu que tizo homem],Ilustração ng3g - Max nrnst, e Ã:3g, "Benzine Demi-Amprexicaule,, - chris_tian Schad).20Editavam revisras, com composições tipográficas que mais pareciam umcaos, misturando-se tipos de diversas línguas e escritas, colocando_se letras enúmeros decabeçapara baixo (Irus traçãoÁ940,'.Der DADA. R"ouì u"ur-rrrn,Richard Huelsenbeck, Tristan Tzara). os textos aparentemente não ünham ne-xo algum; mas só aparentemente. Na realidade, cada linha surpreende pela ri-queza de insinuações e subentendidos, todos de uma sátir amodaz.ou então,inventavam fotomontagens. uma delas, feita na Aremanha em plena guerra, re-presenava umz cena de alto patriotismo: na pfimeira fila, vê-ìe um grupo desoldados, sentados e ajoerhados, como se fossem alunos de jardim de infância.Atrás deles, em pé, outro grupo de oficiais. E mais arto, najltima fila, ladeadopor generais, a augusta figura do Kaiser (rmperador) em trajes de gara.Das bo_cas saem balões desenhados, contendo comoventes exclamações patrióticas einvectivas contra os ingleses. E tudo se passa diante de um fundo de colunasclássicas, com guidandas e anjinhos. Eniim, a cenaé de um ridículo tamanhoque provoca uma grande gargalhada.

Mas, rir do Kaiser! Kr de toda esa encenação de patriotice e de atitudes bé_licas - em pleno tempo de guerra! Isto não seria considerado qualquer piadi-nha ou mero divertimento. Targozaçãopoderia significar nada menos que umato de altatraição. o artista podèria ser fuzilado. .túda no, "rro,

à. pós-guerra,na Alemanha derrotada e desiludida, os sarcasmos zombando das tradições da

20 Bem entendido: era um deboche_ na êpoca.Hoie quase ninguém noaria. Na mentaridade dasociedade de consumo, o que importa é mesmo a imagem pubtÌciúria - são todo s image_makers-

nunca o ser real, a identidade da pessoa_

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sociedade foram sentidos como profundamente chocantes. Não raro, mal seabriam as exposiçÕes, ou os espetáculos, e jâ eram fechados pela polícia.

Portanto, os artistas arriscavam algo. E certâmente as obras dadaístas iamaisforam pensadas ou produzidas com vistas à próxima Bienal.

Aqui, porém , cabe fazer aseguinte ressalva: se o Dadaísmo tivesse se limi-tado a seu propósito inicial, protestando contra a brutalidade da guerra e con-tra as hipocrisias da sociedade - por mais corajosos que fossem.os proresros

, eles não passariam de atos de denúncia, manifestações de luta, válidos to-dos, mas não transcenderiam o momento concreto, histórico e social, que osgerou.iÌ Poderiam ser objeto de estudos para historiadores e sociólogos. Tería-mos uma contestação, sem dúvida, mas não arte de contestação.

Este é o ponto crucial: paraalém do protesto, ou iunto com ele, os dadaís-tas puderam criar novas formas de linguagem. observe-se, novamente neste sen-tido, a capa do "Der DADA' (Ilustração n940). euantas idéias fecundas! Semen-ts que haveriam detrazer frutos não apenas no desenvolvimento de tantas no-vas técnicas e formas datipografiamoderna ou daprogramação visual, mas so-bretudo numa nova sensibilidade que permitisse levar adiante tais sugestões.ou observe-se a escultura-relevo de Hans Arp (Ilustração ng4r). É apenas umconjunto de pedaços de madeira velha carcomida. Mas que composição boni-ta! são obras como estas que reorientam nosso ser sensível, fazenoo-nos repa-rar no sentido esquecido das formas, descobrindo qualidades formais em ob-jetos triviais, ou até mesmo descartáveis em termos de utilidade, abrindo no-vos espaços de experimentação, de conhecimento e de prazer.

Portânto, ainda que o propósito dos dadaístas fosse originalmente destrui-doq visando a romper com normas estabelecidas, o fato é que ao mesmo tem-po reformularamasprôprias noções sobre o que deveria ser considerado umaforma expressiva, forma de arte. E, repetimos, igualmente importante é o fatoque eles o fizeram atravês de suas obras - não ficando no mero nível de idéiasou de intenções, mas sim como açao artística, concretizando as idéias,e tornando seu poder renovador mil vezes mais eloqüente. Só no âmbito da lin-guagem visual, por exemplo, os artistas mostraram, além de técnicas de cola-gem, quantas possibilidades existem na recombinação de materiais. Devemosa eles os chamados ready-mades e os objetos trouués (objetos naturais ou ur-banos, retirados de seu contexto ori ginal, para finalidades outras e com signifi-cados referidos ao senso estético). Ao inventarem as combinações mais insóli-tas nos objetos, faziarnsobressair neles novas formas e novos espaços. Influen-ciaram desta maneira o nascente desenho industrial, na concepção de objetosinteiramente novos, e com uma nova mate rialidade, a serem produzidos indus-trialmente. Basta observar as formas de numerosos utensílios de nosso dia-a-dia - nem lhes prestamos atenção, de tão acostumados estamos com sua pre-sença - mas, historicarnente, é uma presença bem recente. Ainda no teatro ena cenografia, assim como na fotografiae no cinema, os artistas enriqueceram

i l De fato' enquanto movimento de protesto, as manifestações declinaram logo depois do fim dagueÍÍa' e por volta de 1922 tinham se esgotado. Em seguida a um congresso realizado naqueleano em Weimar, o Dadaísmo foi declarado oficialmente "morto" pel,os fundadores do movi-mento, entre eles, Tristan Tzzra, Hugo Ball, Hans Arp.

ta2

Page 31: Acasos e Criação. Cap. IV

as linguagenr' "r.'l:"T1.r de superposiçãode imagens, de corre eftasbback,

i"r.lllii?13;sã.o conrribuiço., o"ããi*as. Eles ,",ãne_ .r,ìr,"_ a arte do ab_asexperiênc'*o3'3#l?HïËï:i:?.".'üïmi:XnX'.Uí::',,.,"ï

realidade ultr"p"ÌlTï:::.Àq_iiìo ao, maiores r.r,rãr-_ vide as buro_cracias "kafkianas" - mas, através das formas artísticas, cresceu nossa conscien_tização diante destas situaçÕes cotiOianas terríveis, existenciais. )vejamos' neste sentido ainda, a obrade Kurt schwirr.rJirrrz-, 948), tar-vez o maior aftista do grupo dadaísta, e o mais visionário.

'e compunha suascolagens com pedacinh"i o. n'nãt., áu lornais rasgados, carras, reras de ara_

ã1. Ëïiffï;ï:;:- qualquer ou"o

-*à' ialapanhídoo..r,a" (rustração ne

tritos. o artistaru,.r.or,r"dos ao acaso, ou não tão ao ra"*, L", sempre de_

"u,o.,,ioo,p.io;ï:':rïï:;:ilXï:::i.*::;flï,ïï,ff ïjffi ::ï::#e nos comovem, tanto pera surpresa da re-identificaçao .o,no p.r, bereza doconjunto que criam. eoìs apesai o, t u-iia"o. dos componenres, o caráter dasimagens é de grande nobreza espiriru"i. ôà*.q,i.nremenre, o próprio ambientecotidiano de nossa üda_se transform". g""nã uma nova ái.í.Àrro. orhamosdiferentemente' agora, para um paper amaisado, paraasoour", à. u- pano man-chado' para os reflexos no asfarto molhado, para o jogo de luzes e sombras pro_ietadas por qurto":: r,.:.:], prarti."ir"iÇrr.r,r., onde ainda se vislumbram asvarlas cores ou letras impressas nas embaìagens dos objetos embrulhados. En-fim' percebemos e aventura de formas em tantos insantes de vida.Tão impressionante quanto a fase dadaísra, por assim aiei,,mrit^nte,,, deschwirters, será seu desenvorvim;;;;;lr.qüente. No est'o de suas obras dematuridade' está a prova viva de qu. ,-*r,, de uma visao interior de grande'queza

e potenciar de desdobra-èrrtor, e não apena, o.,r-r.irrdo que se es_gora em si, na mera novidade. nuginoáão Nazismo e da segunda Guerra Mun_dial, Schwitters passou os último; anos de vida narngraterra,onde faleceu, es_quecido e na miséria. No.entantq a- r.ur qurdros, o sentimento de ser e a com_preensão cresceram em intensiúd.. ,,-irr* se torna a essencialidade de suamatéria' a abrangência e profundidade desua reflexão, qr., ;;;;;rrimas obras,schwitters se coroca p_eifeitam.nte l"ìt.rra dos melhores artistas abstratos denosso,século (Ilustração n? 43).Enquanto protestq o Daáaísmo tomou seu lugar na História, recuando notempo, e, païa as gerações qu. ,r"r..-, iá."rroo ú , o prrrráo;i Mas enquan_to arte, as obras continuam presentes. Seu conteúdo expressivo perr4anece in_teiramenre aruar, esraberecendo.;;

";; diárogo rro'o.orroì.o, um diálo_

#,:i:: lijï:#::: o sentido do viverj cadaíezp,..o.Àìì arguma coi_

caberiam ainda as seguintes consideraçÕes: est'isticamente somos her_deirosdoRomantismodoãécur.rr*urrãïï;';:11"i:.:i-.ï,^..possíverr..o.h...ror.gaoor;;;;;ì.;:#,ïïr1ïï"Ã:i"\:::irilïr.nas próprias motivacões, como nas rorma$reoominantemente expressionis_tas da a.e contemporânea. Mas;lãã:emerhanças, há diferenças funda_men',is' Neste particl?t o oaoaismo ,epr.renra um divisor de águas. No Ro_mantismo' a contestaçã o, a não-aceioçaoãá, urores da sociedade, ainda s e davanos termos de uma fuga do cotidiano p".,

-urroos da fantasia, mundos exóti_

lg3

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cos, estranhos, mundos de sonhos ou lendas, mundos extraordinários, para alémdo ordinário e comum. Depois do Dadaísmo, esta fuga para os mundos dos so-nhos e das fantasias tornou-se impossível.

Não se pode voltar atrás na História. Também a situação se modificou bas-tante. Nas décadas que se seguiram ao Dadaísmo, já houve uma Segunda Guer-ra Mundial (desta vez, oficialmente, com cerca de 40 milhÕes de mortos), en-volvendo o massacre de populaçÕes civis. Também houve outras guerras não-declaradas e consideradas "menores", mas que nem por isto seriam menos san-grentas. Ainda há a vertiginosa escaladade violência nos países que "não estãoem guerra" (sendo difícil acreditar que a comercializaçãoabertae cínica de to-do tipo de brqtalidades possa acontecer sem a conivência implícita dos pode-res institucionais). Tudo parece reduzir-se agora a mera rotina de televisão: atro-cidades, mortes, fome, drogas, tudo "televisivo". Em tal quadro de empobreci-mento moral e espiritual de nossa sociedade, não é mais questão de se destruí-rem convenções sociais. Elas estão destruídas.

Portanto, nesta altura dos acontecimentos, nem haveria como repetir o Da-daísmo. Mas não vamos esquecer suas lições. Seu protesto não foi gratuito; alémde necessário, foi de efeito revigorador. Varrendo o entulho de tabus e precon-ceitos culturais, o Dadaísmo propôs novas abordagens, encontrando novas ma-térias e técnicas, e novas formas expressivas. Abriu novas linhas de pensamen-to e, sobretudo, o que talvez seja ainda mais importante, abriu nosso espíritoao livre exercício da crítica consciente diante de todas as linguagens e todos osconteúdos. E derrubando os pedestais que consagravam o ato criador comoevento isolado do resto davidae, em vez disto, mostrando o quanto de magiaexiste em qualque r simples detalhe do cotidiano, o Dadaísmo mostrou a conti-nuidade da experiência do real na imaginação criativa. Que maravilha de en-tendimento! E quem sabe se, nesta visão mais liberal e humanista, não haveriauma saída para nós?

De fato, nós, que queremos sobreviver neste caos, fisicamente e espiritual-mente, e que sonhamos com uma vida mais digna e mais humana para os nos-sos filhos e netos, teríamos que poder encontrar outro caminho. O que se pro-cura atualmente - embora nem sempre se o encontre - é o ser humano den-tro do Homem, não fora ou acima de sua humanidade. É o significativo, o sen-so do extraordinário e incomum dentro do perfeitamente comum e ordinário.É o senso do viver. Na modernidade do século XX, surge uma nova noção delimites, de dimensões e proporções das coisas - aindaque, com as descober-tas das ciências desvelando maiores segredos da Natureza, se adense cadavezmais o mistério daprópria existência.

E talvez seja necessário recomeçar bem no início, por baixo de todas asconvenções culturais, lá no fundo, Lâ na própria condição humana. Talvez te-nhamos que dirigir-nos diretamente à sensibilidade das pessoas, dando-lhes sub-sídios para se reestruturarem através de seu potencial sensível. Paradoxalmen-Íe, é aí que estão as esperanças patz lformação de novos valores espirituais eculturais em nossa época.

Certamente não vamos fingiruma nova inf;incia, esquecendo que somosadultos, ou colocar-nos fora de nossa época. Nem tampouco vamos abrir mãodos conhecimentos e ús conquistas da tecnologia moderna. Não faria sentidoalgum. Mas a tecnologia, como acervo cultural, poderia - e deveria - ser usa-

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danuma visão mais humanista do vive r.paratardiscernimento, oprimeiropas-so seria tentar resgatar nossa sensibilidade. Só mesmo atravér á.,rorror.r l*-sível poderemos falar uns com os outros em termos de iguat para iguar. só as-sim seria possível encontrarmos critérios e formas de ãiliaçãroindividuar, etambém de convívio coletivo, diferentes daqueles propor,* pelos padrõesagressivos da sociedade de consumo.

cada ser humano percorre seu caminho individualmente e o conquistapor si e para si. Mas assim como em cada criança que nasce se recria a humani_dade toda, assim também o fato desre camintró iúciat ser vivioo pàr rodos deum modo semerhante permite que todos nós participemos de argum modo daexperiência existencial do outro e falemos a mesma língua.concluímos este capíturo, reiterando com esperança nosso enfoque ori-ginal: a sensibilidade como fonte da criatividade esponanea aas pessoas e a vi_vência de formas espaciais como língua franca da humanidade.

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