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A CAPACITAÇÃO DE GESTORES PÚBLICOS: UMA APROXIMAÇÃO AO PROBLEMA SOB A ÓTICA DA ADMINISTRAÇÃO POLÍTICA 1 Renato Dagnino Resumo O objetivo deste texto é discutir a capacitação de gestores públicos adotando como balizamento a ideia de que eles terão que seguir atuando no interior do aparelho do Estado Herdado, não preparado para atender as demandas que a sociedade hoje lhe coloca. E, ao mesmo tempo, transformá-lo no sentido da criação do “Estado Necessário”, entendido como um Estado capaz não apenas de atendê-las, mas de fazer emergir e satisfazer as demandas da maioria da população. Ele foi preparado para subsidiar a discussão acerca da necessidade de retomar no País a formação em Gestão Pública nas universidades nos níveis de pós-graduação e graduação e nas Escolas de Governo que existem ou, por lei, deveriam existir, nas três esferas de governo. Ele se inicia com uma breve retrospectiva - desde a constituição do Estado Herdado” do período autoritário e da Reforma Gerencial do neoliberalismo - necessária para avaliar o desafio cognitivo envolvido com a construção do “ Estado Necessárioem que se insere essa questão. Em seguida, mantendo a ótica da Administração Política, se aborda a insuficiente contribuição das matrizes teóricas da Ciência Política e da Administração Pública, até há pouco as únicas disponíveis para o tratamento das questões relativas ao Estado e a sua interface com a sociedade, e se avaliar o potencial de fusões disciplinares relativamente recentes e ainda pouco difundidos nas nossas estruturas de governo, como a Análise de Política e o Planejamento Estratégico Situacional. A continuação se delineia o conjunto de conteúdos sobre o qual teria que se apoiar um estilo de capacitação de gestores coerente com o enfoque da Administração Política. Palavras-chave: Capacitação de gestores públicos; “Estado Herdado”; “Estado Necessário”; Análise de Política; Planejamento Estratégico Situacional; Administração Política. 1 Publicado em Revista Brasileira de Administração Política. Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. Vol 6, 1 de abril de 2013.

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Capacitação de gestores públicos

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  • A CAPACITAO DE GESTORES PBLICOS: UMA APROXIMAO AO

    PROBLEMA SOB A TICA DA ADMINISTRAO POLTICA1

    Renato Dagnino

    Resumo

    O objetivo deste texto discutir a capacitao de gestores pblicos adotando como balizamento a ideia de que eles tero que seguir atuando no interior do aparelho do Estado Herdado, no preparado para atender as demandas que a sociedade hoje lhe coloca. E, ao mesmo tempo, transform-lo no sentido da criao do Estado Necessrio, entendido como um Estado capaz no apenas de atend-las, mas de fazer emergir e satisfazer as demandas da maioria da populao. Ele foi preparado para subsidiar a discusso acerca da necessidade de retomar no Pas a formao em Gesto Pblica nas universidades nos nveis de ps-graduao e graduao e nas Escolas de Governo que existem ou, por lei, deveriam existir, nas trs esferas de governo. Ele se inicia com uma breve retrospectiva - desde a constituio do Estado Herdado do perodo autoritrio e da Reforma Gerencial do neoliberalismo - necessria para avaliar o desafio cognitivo envolvido com a construo do Estado Necessrio em que se insere essa questo. Em seguida, mantendo a tica da Administrao Poltica, se aborda a insuficiente contribuio das matrizes tericas da Cincia Poltica e da Administrao Pblica, at h pouco as nicas disponveis para o tratamento das questes relativas ao Estado e a sua interface com a sociedade, e se avaliar o potencial de fuses disciplinares relativamente recentes e ainda pouco difundidos nas nossas estruturas de governo, como a Anlise de Poltica e o Planejamento Estratgico Situacional. A continuao se delineia o conjunto de contedos sobre o qual teria que se apoiar um estilo de capacitao de gestores coerente com o enfoque da Administrao Poltica.

    Palavras-chave: Capacitao de gestores pblicos; Estado Herdado; Estado Necessrio; Anlise de Poltica; Planejamento Estratgico Situacional; Administrao Poltica.

    1 Publicado em Revista Brasileira de Administrao Poltica. Escola de Administrao da Universidade

    Federal da Bahia. Vol 6, 1 de abril de 2013.

  • The capacitation of public managers: a Political Administration approach

    Abstract

    This paper is motivated by the perception that public managers of several Latin-American countries are now acting inside an "Inherited State" unable to meet emergent society demands. It is also motivated by the fact that they have to make the transition to the "Necessary State, understood as a state that must not only meet these demands, but to prospect end reinforce historically unfulfilled needs of the majority of the population. It was conceived as an input for the discussion about how to resume capacitation on public administration at universities in the graduate and undergraduate levels, interrupted during the neoliberal period, and at the schools of government that exist or, by law, should be, in all three spheres of government. It begins pointing out some characteristics of the "Inherited State" from the authoritarian period and the Neoliberal Reform, which expose the cognitive challenge involved with the construction of the "Necessary State". Maintaining the Political Administration perspective, it calls attention to the insufficient contribution of two theoretical frameworks - Political Science and Public Administration - until recently the only available for the treatment of issues relating to the state and its interface with society. It also evaluates the potential of relatively recent disciplinary mergers that are almost unknown in our government structures, such as Policy Analysis and Situational Strategic Planning. In its final part, the paper outlines a set of contents related to a new style of capacitation of public managers consistent with the Political Administration approach.

    Keywords: Capacitation of public managers; "Inherited State"; "Necessary State; Policy Analysis; Situational Strategic Planning; Political Administration.

    Sumrio

    1. Introduo 3

    2. Caractersticas do Estado Herdado 5

    3. A democratizao poltica e o Estado Necessrio 6

    4. A transio do Estado Herdado para o Estado Necessrio: um novo estilo de elaborao de polticas pblicas 7

    5. A criao de um programa de capacitao de gestores como resposta ao desafio cognitivo colocado pela construo do Estado Necessrio 8

    6. Avaliando a dimenso do desafio cognitivo 9

    7. A superao do desafio cognitivo e a insuficiente contribuio da Cincia Poltica e da Administrao Pblica 9

    A Cincia Poltica e a supervalorizao do poltico 10

    A Administrao Pblica e a subvalorizao do conflito 10

    8. A concepo ingnua do Estado neutro 11

  • 9. A Anlise de Poltica e o Planejamento Estratgico Situacional: dois enfoques adequados para a capacitao de gestores pblicos 12

    A Anlise de Poltica 13

    O Planejamento Estratgico Situacional 16

    10. Consideraes Finais 17

    1. Introduo

    De modo a justificar a pertinncia do tema que aqui se trata ao campo da Administrao Poltica vamos alinhar algumas informaes sobre o estado precrio em que se encontra a capacitao de gestores pblicos2. Depois que o neoliberalismo, com a sua prdica de que os instrumentos de administrao de empresas eram os que deveriam ser adotados no mbito do Estado, uma vez que era ela que com sua eficincia deveria servir de exemplo, chegou-se ao cmulo de ver universidades pblicas extinguirem seus cursos de Administrao Pblica. Situao que permanece apesar da mudana de correlao de foras polticas que vem ocorrendo na sociedade brasileira e graas ao momentum que ganhou o conjunto de instrumentos metodolgico-operacionais da Reforma Gerencial na orientao das prticas governamentais. Explica tambm essa situao o fato de que os governos que h mais de uma dcada exprimem esta nova correlao de foras no tm se mostrado capazes de proporcionar um conjunto de instrumentos alternativo quele originado na empresa privada e contrabandeado para a esfera pblica pelo neoliberalismo e nem mesmo conceber o novo marco analtico-conceitual que, coerente com os valores e interesses que integram seu projeto poltico e suas prioridades, ser o substrato a partir do qual ele poder ser construdo.

    Para formar uma ideia das dificuldades em que se encontra o Pas no que respeita questo dos instrumentos metodolgico-operacionais alternativos (e do marco analtico-conceitual que ter que orientar a sua elaborao), pode-se tomar como referncia a maneira como eles so elaborados no mbito privado. Esse processo se

    2 A literatura anglfona de Administrao (que na realidade, mantm um enfoque que apesar de

    alegadamente genrico se refere s empresas) costuma utilizar o termo management para referir-se ao mundo privado. O termo administration teria um significado mais amplo, buscando um status universal capaz de abarcar todos os mbitos de atividade humana, inclusive o mundo pblico. O primeiro termo tem sido traduzido para o portugus como gesto e o segundo como administrao. A mesma literatura usando o prefixo public enfatiza o que tem sido traduzido como administrao pblica para referir ao ambiente pblico, de governo. No obstante, mais usado hoje no Brasil o termo gesto pblica para fazer referncia s atividades que tm lugar no ambiente pblico ou aos conhecimentos que nele so aplicados.

  • assemelha codificao de ideias que esto sendo difundidas num determinado ambiente e que d origem a um documento que funda uma corrente de pensamento. Neste caso, ele se d mediante a atuao de profissionais universitrios que, atravs suas atividades de docncia, pesquisa e consultoria, em geral em conjunto com seus estudantes, observam o que ocorre nas empresas e transformam o conhecimento tcito que vai emergindo de sua prtica cotidiana em conhecimento codificado. O qual, posteriormente, vai ser sistematizado em artigos cientficos, textos didticos, e livros e manuais que passam a ser utilizados no prprio mbito empresarial. dessa forma que, em conjunto, claro com a formao de profissionais em cursos de graduao e ps-graduao, que as instituies universitrias colaboram para a melhoria do desempenho empresarial.

    O panorama que se observa no pas no que respeita administrao pblica , nesse sentido, desolador. Aqui, segundo Loureiro e outros (2010), existem cerca de 700 mil estudantes matriculados nos quase 3200 cursos de administrao de empresas. Neles se formam anualmente 100 mil novos profissionais; o que representa o maior contingente de formandos de nosso ensino superior. Em administrao pblica, existem 71 cursos, onde esto inscritos quatro mil estudantes. Desses, apenas mil e quinhentos esto nos onze cursos mantidos pelas nossas cem universidades pblicas (que, como se sabe so as que apresentam um nvel de ensino adequado), onde se formam apenas 170 profissionais por ano.

    Para introduzir o tema central deste texto vamos colocar uma pergunta que possui como resposta, justamente, a proposta que ele delineia sobre o que deveria ser um estilo de capacitao de gestores pblicos (ou o que denominaremos daqui em diante, simplesmente, de Programa) capaz de promover a construo do Estado Necessrio, um Estado que possa alavancar o atendimento das demandas da maioria da populao e projetar o Pas numa rota que leve a estgios civilizatrios sempre superiores?

    A resposta a esta pergunta ser formulada em quatro etapas. Primeiramente sero identificadas as caractersticas do Estado Herdado. Do processo de sua constituio, em particular do seu crescimento durante o perodo autoritrio que sucedeu ao nacional-desenvolvimentismo e antecedeu o seu desmantelamento pelo neoliberalismo.

    Em segundo lugar, sero fornecidos elementos que levam constatao de que este Estado que herdamos duplamente incompatvel com a proposta de mudana que a sociedade brasileira deseja: sua configurao no corresponde ao contedo para onde deve apontar sua ao. De um lado porque, na sua relao com a sociedade, sua forma impede que ele formule e implemente polticas pblicas com um contedo que contribua para alavancar essa proposta. De outro, porque o modo como se processa a ao de governo na sua relao com o Estado presente -, determinado pelos contornos de seu aparelho institucional, irreconcilivel com as premissas de participao, transparncia e efetividade dessa proposta.

    Em terceiro lugar, se argumentar que a transformao deste Estado Herdado no Estado Necessrio, aquele que possa servir como um instrumento para implementar aquela proposta de mudana, demanda a capacitao de seus quadros. Demanda a formao de quadros que aliem dois tipos de capacidades ou habilidades bsicas. A primeira, dominar os aspectos tericos e prticos do processo de elaborao de polticas pblicas a ponto de serem capazes de utiliz-lo como ferramenta da mudana social, econmica e poltica. A segunda atuar de maneira to eficiente no

  • seu dia-a-dia a ponto de fazer com que a estrutura que corporificam o Estado - seja cada vez mais eficaz no uso dos recursos que a sociedade lhe faculta e que produza impactos crescentemente efetivos.

    Em quarto lugar, sero verificados os obstculos cognitivos que esto colocados construo do Estado Necessrio e, em especial, os que decorrem da insuficincia das abordagens tradicionais da Cincia Poltica e da Administrao Pblica, mostrando as alternativas que as experincias contemporneas mais bem sucedidas de formao de quadros tecnopolticos tm adotado.

    2. Caractersticas do Estado Herdado

    Mais alm das preferncias ideolgicas, a combinao que herdamos dos militares, de um Estado que combinava autoritarismo com clientelismo, hipertrofia com opacidade, insulamento com intervencionismo, deficitarismo com megalomania no atendiam ao projeto das coalizes de direita ou de esquerda que o deveriam suceder.

    um princpio bsico da ao humana, e da atuao das organizaes, o fato de que todas as decises tm um custo de operao e que, se equivocadas, demandam a absoro de custos de oportunidade econmicos e polticos.

    O Estado legado por mais de 20 anos de autoritarismo no contemplava os recursos como escassos. Os econmicos podiam ser financiados com aumento da dvida imposta populao, os polticos eram virtualmente inesgotveis, uma vez que seu aparato repressivo a servio do regime militar sufocava qualquer oposio.

    A destruio deste Estado, que pregava a doutrina neoliberal e que empreenderam os governos civis que sucederam dbcle do militarismo, no encontrou muitos opositores. Para a direita era a questo era inequvoca. No havia porque defender um Estado super interventor, proprietrio, deficitrio, paquidrmico, que ademais, se tornava crescentemente anacrnico na cena internacional. Na verdade, j h muito, desde que no cumprimento de sua funo de garantir a ordem capitalista havia sufocado as foras progressistas e restaurado as condies para a acumulao de capital, ele se tornara disfuncional.

    Para a esquerda, que havia participado no fortalecimento do Estado do nacional-desenvolvimentismo, a questo era bem mais complicada. Ela o entendia como um baluarte contra a dominao imperialista e como uma espcie de sucedneo de uma burguesia incapaz, por estar j aliada com o capital internacional, de levar a cabo sua misso histrica de promover uma revoluo democrtico-burguesa. De fato, mesmo no auge do autoritarismo, o crescimento do Estado era visto pela esquerda como um mal menor: ao mesmo tempo em que denunciava o carter de classe, repressivo e reprodutor da desigualdade social do Estado brasileiro, ela via este crescimento como necessrio para viabilizar seu projeto de longo prazo de reconstruo nacional.

    A questo dividiu a esquerda. De um lado os que, frente ameaa de um futuro incerto defendiam intuitivamente o passado, e os que, defendendo interesses corporativos mal-entendendo os conceitos de Estado, nao e autonomia nacional, defendiam ardorosamente o Estado que herdramos. De outro os que, por entender que a construo do Estado Necessrio iria demandar algumas das providncias que estavam sendo tomadas e que o fortalecimento de uma alternativa democrtica e popular ao neoliberalismo no principalizava a questo, defendiam o controle da sociedade sobre o processo de privatizao.

  • 3. A democratizao poltica e o Estado Necessrio

    Com o final do regime militar, o Brasil inicia um processo de democratizao poltica que tende a possibilitar um aumento da capacidade dos segmentos marginalizados de veicular seus interesses levando expresso de uma demanda crescente por direitos de cidadania.

    Na medida em que este processo avanar, aumentar ainda mais a capacidade dos segmentos marginalizados de veicularem seus interesses e necessidades no atendidas por bens e servios - alimentao, transporte, moradia, sade, educao, comunicao etc. e, com isto, a demanda por polticas pblicas capazes de promover seu atendimento. o que tem sido chamado de cenrio tendencial da democratizao.

    Para satisfazer essas necessidades sociais com eficincia, e no volume que temos em pases como o Brasil, ser necessrio duplicar o tamanho dessas polticas para incorporar os 50% desatendido da populao.

    Se no for possvel promover um processo de transformao do Estado Herdado em direo ao Estado Necessrio que permita satisfazer necessidades sociais represadas ao longo de tanto tempo o processo de democratizao pode ver-se dificultado e at abortado, com enorme esterilizao de energia social e poltica.

    claro que para satisfazer aquelas demandas, o ingrediente fundamental, que no depende diretamente do Estado, uma ampla conscientizao e mobilizao polticas que, se espera, ocorra sem um custo social maior do que o que esta sociedade vem pagando.

    O fato de que parece necessrio que o Estado faa a "sua parte" a motivao principal da iniciativa objeto deste Documento. Isto , que se trabalhe na "frente interna", gerando as condies cognitivas necessrias para a transformao do Estado.

    verdade que a correlao de foras polticas, que sanciona uma brutal e at agora crescente concentrao de poder econmico, muito pouco espao deixa para que uma ao interna ao Estado no sentido de disponibilizar conhecimento que possa levar melhoria das polticas pblicas da eficincia da sua prpria mquina possa alterar a situao de misria em que se encontra a maioria da populao. Mas tambm verdade que como esse espao se ir ampliando medida que a democratizao avance e a concentrao de renda que hoje asfixia nosso desenvolvimento e penaliza a sociedade brasileira for sendo alterada, este conhecimento poder fazer toda a diferena. Isto , talvez seja ele o responsvel por se alcanar ou no a governabilidade necessria para tornar sustentvel o processo de mudana social que se deseja.

    Privatizao, desregulao, liberalizao dos mercados tm impedido que o Estado brasileiro se concentre em saldar a dvida social e o tm possibilitado mascarar a sua desresponsabilizao em relao proteo aos mais fracos, desnacionalizao da economia e subordinao aos interesses do capital globalizado.

    Democratizao e redimensionamento do Estado, por sua vez, so tarefas interdependentes e complementares. A redefinio das fronteiras entre o pblico e o privado exige uma cuidadosa deciso: quais assuntos podem ser desregulamentados e deixados para que as interaes entre atores privados com poder similar determinem incrementalmente um ajuste socialmente aceitvel e quais devem ser

  • objeto da agenda pblica, de um processo de deciso racional, participativo e de uma implementao e avaliao sob a responsabilidade direta do Estado.

    A democracia uma condio necessria para construir um Estado que promova o bem-estar das maiorias. S o conjunto que ela forma com uma outra condio necessria a capacidade de gesto pblica suficiente. S a democracia aliada eficincia de gesto pode levar ao Estado Necessrio para a transformao da sociedade brasileira no sentido que queremos.

    Sem democracia no h participao e transparncia nas decises, no h avaliao de polticas, no h prestao de contas, no h responsveis, h impunidade. Mas a democracia, se restrita a um discurso poltico genrico e sem correlao com ao de governo cotidiana pode degenerar num assemblesmo inconsequente e irresponsvel e numa situao de descompromisso e ineficincia generalizada.

    Governar num ambiente de democracia e participao e, ao mesmo tempo, com enormes desigualdades sociais, requer capacidades e habilidades extremamente complexas e difceis de conformar, sobretudo no mbito de um Estado como o que herdamos.

    4. A transio do Estado Herdado para o Estado Necessrio: um novo estilo de elaborao de polticas pblicas

    A democratizao poltica est levando a um crescimento exponencial da agenda de governo; a erupo de uma infinidade de problemas que, em geral, demandam solues especficas e criativas, muito mais complexas do que aquelas que o estilo tradicional de elaborao de polticas pblicas homogeneizador, uniformizador, centralizador, tecnocrtico, tpico do Estado que herdamos - pode absorver.

    No Brasil, a maneira como tradicionalmente se definia e caracterizava os problemas que o Estado deveria tratar ficava restrita ao que a orientao ideolgica e o pensamento poltico conservador dominante eram capazes de visualizar. A explicao dos mesmos estava constrangida por um modelo explicativo que, de um lado tendia quase mono causalidade e, de outro a solues genricas, universais. Isto levou ao estabelecimento de um padro nico causa problema soluo no qual, embora fosse percebida uma certa especificidade nos problemas enfrentados, o fato de que segundo o modelo explicativo adotado, sua causa bsica era a mesma, terminava conduzindo proposio de uma mesma soluo.

    O governo no apenas filtrava as demandas da sociedade com um vis conservador e elitista. Ele adotava uma maneira tecnoburocrtica para trat-las que levava sua uniformizao, ao seu enquadramento num formato genrico que facilitava tratamento administrativo. Ao faz-lo, escondia sob um manto de aparente equidade os procedimentos de controle poltico e se assegurava a docilidade do povo, desprotegido e desprovido de cidadania, frente ao burocratismo onipotente do Estado. Era na fila do INPS que este povo aprendia o que era a democracia...

    As caractersticas do Estado Herdado fazia com que as demandas da populao se tornassem assuntos genricos, nacionais, a serem resolvidos mediante a distribuio dos recursos arrecadados de forma centralizada. Assim, sem nenhuma preocupao com a elaborao de polticas apropriadas, os recursos fluam atravs de uma complexa rede de influncias e favores at os lideres polticos locais que

  • discricionariamente os transformavam em benesses com que atendiam a suas clientelas.

    Esta situao perpetuava e retroalimentava a elaborao de polticas que eram no apenas injustas e genricas. Eram tambm incuas, uma vez que as verdadeiras causas ou no eram visualizadas ou no podiam ser explicitadas. Este estilo de elaborao de polticas que se consolidou - objetivos, instrumentos, procedimentos, agentes, tempos alm de incremental, assistemtico e pouco racional tendia a gerar polticas que eram facilmente capturadas por interesses das elites.

    As demandas que o processo de democratizao poltica ir cada vez mais colocar, e que sero filtrados com um vis progressista por uma estrutura que deve celeremente se aproximar do Estado Necessrio, originaro um outro tipo de agenda poltica. Sero muito distintos os problemas que a integraro e tero que ser processados por este Estado em transformao. Eles no sero mais abstratos e genricos, sero concretos e especficos, conforme sejam apontados pela populao que os sente, de acordo com sua prpria percepo da realidade, com seu repertrio cultural, com sua experincia de vida, frequentemente de muito sofrimento e justa revolta.

    5. A criao de um novo estilo de capacitao de gestores como resposta ao desafio cognitivo colocado pela construo do Estado Necessrio

    Construir o Estado Necessrio no somente difcil. uma tarefa que, para ser bem sucedida deveria contar a priori com algo que j deveria estar disponvel, mas que , ao mesmo tempo, seu objetivo criar. Isto , as capacidades e habilidades extremamente complexas necessrias para transformar o Estado herdado. Assim colocado, o problema parece no ter soluo. No obstante, ela existe. E existe porque j existe a conscincia do problema que a construo do Estado Necessrio. E quando existe esta conscincia porque a soluo j vislumbrada por uma parte dos atores envolvidos com o problema.

    A deciso de criar um Programa como o que aqui se discute, supe uma conscincia por parte esses atores de que a emergncia da forma institucional Estado Necessrio, aquela que corresponde ao contedo das polticas que cabe a ele implementar depende de uma preocupao sistemtica com a capacitao do conjunto de seus funcionrios.

    A criao do Programa representa uma demonstrao de que o primeiro, indispensvel e corajoso passo porque envolve uma espcie de autocrtica est sendo dado. Ele revela que rotinas administrativas que do margem ao clientelismo, iniquidade, injustia, corrupo e ineficincia, que restringem os resultados obtidos com a ao de governo, que frustram a populao e solapam a base de apoio poltico, no podem ser toleradas. E que para que isto ocorra, no bastam o compromisso com a democracia e com um futuro mais justo, o ativismo e a militncia. Este passo denota a percepo de que para criar condies favorveis para que seu corpo de funcionrios materialize esse compromisso imprescindvel que um novo tipo de conhecimento terico e prtico acerca de como governar (para a populao e em conjunto com ela) seja urgentemente disponibilizado. E que atravs dele que uma nova cultura institucional ser criada e alavancar a construo do Estado Necessrio.

  • 6. Avaliando a dimenso do desafio cognitivo

    Do ponto de vista cognitivo, esta nova situao demanda do funcionrio encarregado da gesto das polticas pblicas um marco de referncia analtico-conceitual, metodologias de trabalho, e procedimentos qualitativamente muito diferentes dos que se encontram disponveis no meio em que ele atua. O contedo a ser incorporado s polticas, fruto de um vis no mais conservador e sim progressista, transformador, ir demandar um processo sistemtico de capacitao.

    Para dar uma ideia do desafio cognitivo que isto significa vale lembrar que a determinao do que so problemas e o que so solues, o que so causas e o que so efeitos, o que so riscos e o que so oportunidades, em muitos casos, ter que ser invertida. Novas inter-relaes, sobre determinaes, pontos crticos para a implementao de polticas etc., tero que ser identificados, definidos e processados. S assim os novos problemas podero ser equacionados mediante polticas especficas, atravs de redes de poder locais, com a alocao de recursos sendo decidida localmente etc.

    Estamos vivendo um momento da democratizao poltica em que as duas pontas do processo de formulao de polticas esto sofrendo uma rpida transformao. Na sua ponta inicial - a veiculao da demanda h claramente maior probabilidade de que assuntos submersos e de grande importncia para a populao passem a integrar a agenda de deciso poltica. Na sua ponta terminal - a deciso de onde alocar recursos existe igualmente uma grande probabilidade de que problemas originais passem a ter sua soluo viabilizada. Como tratar essas novas demandas at transform-las em problemas que efetivamente entrem na agenda decisria? Como fazer com que o momento da implementao da poltica (que se segue ao da formulao) possa contar com um plano para sua operacionalizao eficaz, que maximize o impacto favorvel dos recursos cuja alocao pode ser agora localmente decidida de forma rpida, mediante instrumentos inovadores e transformadores como o caso do Oramento Participativo?

    7. A superao do desafio cognitivo e a insuficiente contribuio da Cincia Poltica e da Administrao Pblica

    A seo anterior traa de forma esquemtica, mas suficiente para nosso propsito, a dimenso do desafio cognitivo que a construo do Estado Necessrio coloca. Esta seo investiga as maneiras atravs das quais pode dar-se a sua superao. Para tanto, analisa a contribuio das duas disciplinas relacionadas gesto pblica, ou mais especificamente ao processo de elaborao de polticas pblicas: a Cincia Poltica e a Administrao Pblica.

    Dentre o conjunto das Cincias Sociais aplicadas cada uma delas orientadas para o tratamento de aspectos relacionados s diferentes reas de poltica pblica , elas eram at bem pouco tempo as nicas que forneciam subsdios especificamente orientados para a anlise das questes pblicas objeto da interveno dos governos.

    Embora tenham ocorrido, tanto nos pases centrais como nos da Amrica Latina, importantes movimentos recentes de crtica, renovao, ampliao e fuso multidisciplinares, essas duas matrizes de conhecimento terico e aplicado so ainda as mais amplamente disponveis, difundidas e utilizadas para a anlise da interface

  • entre o Estado e a sociedade Cincia Poltica e para a elaborao dos planos e sua execuo Administrao Pblica.

    Por essa razo, mais precisamente porque a quase totalidade das iniciativas de formao de gestores pblicos existentes na regio adota, ao contrrio do que aqui se prope, essas matrizes de conhecimento - em especial a da Administrao Pblica que se apresenta a seguir uma crtica s mesmas. Posteriormente, na seo que segue, se apresenta dois de seus recentes desdobramentos a Anlise de Poltica e o Planejamento Estratgico Situacional considerados como abordagens mais adequadas para a capacitao de quadros aptos para a construo do Estado Necessrio.

    1.1 A Cincia Poltica e a supervalorizao do poltico

    O processo de governo ou, mais precisamente, os processos de tomada de deciso (a formulao das polticas pblicas) e de sua implementao, no ocupam um papel central no horizonte de preocupaes da Cincia Poltica. Suas principais teorias, modelos cognitivos ou vises que tratam a relao entre a sociedade e o Estado (marxista, pluralista, sistmica, elitista) explicam as decises de governo - tomadas no interior do aparelho de Estado atravs da considerao de elementos a ele externos.

    Essa afirmao pode ser corroborada por um exame, ainda que superficial, das suas duas vises extremas. A viso pluralista entendia o resultado do processo decisrio o contedo da poltica - como algo quase aleatrio, posto que fruto da interao de uma infinidade de atores indiferenciados do ponto de vista de seu poder poltico. A outra, a marxista entendia o resultado do processo decisrio o contedo da poltica - como algo pr-determinado pela estrutura econmica, posto que resultante da ao de um ator hegemnico: a classe capitalista.

    Era como se o Estado fosse, na realidade, governado pelo contexto poltico, econmico e social, como se carecesse de poder de autodeterminao e de autonomia relativa. Como se os instrumentos colocados disposio das burocracias dos Estados contemporneos no terminassem gerando uma elite com interesses prprios e at certo ponto independentes das demais.

    Era natural, portanto que os cientistas polticos se concentrassem no estudo deste contexto para entender as implicaes sociais, econmicas etc., do exerccio do poder; as quais, de certa forma, apenas fluam atravs do Estado sem ser por eles determinadas. O problema da Cincia Poltica era de tipo investigativo: indicar as razes contextuais que explicavam o carter do que havia sido decidido. Seu foco era, portanto, a poltica (politics) e no as polticas (policies), o sistema e o processo poltico (political process) e no o processo de elaborao de polticas (policy process).

    2.1 A Administrao Pblica e a subvalorizao do conflito

    O enfoque da Administrao Pblica, por outro lado, tem como premissa a separao entre o poltico (politics) e o administrativo, o mundo da poltica (politics) e o das organizaes, a tomada de deciso e a implementao. O primeiro termo desta dicotomia era entendido como caracterizado pelo conflito de interesses e o dissenso poltico que se manifesta na sociedade e, o segundo, pelo consenso tcnico em torno de um interesse comum que se expressa no interior do aparelho de Estado: implementar eficientemente o que havia sido, no interessa como nem porque,

  • decidido. Era como se o primeiro fosse o ponto cego do segundo; e, o segundo, uma simples decorrncia e conseqncia, inclusive temporal, do primeiro.

    Diferentemente da Cincia Poltica, o problema da Administrao Pblica pode ser entendido, para marcar a diferena entre eles, como de tipo operacional: executar da melhor forma possvel o que havia sido decidido. O estudo do processo de tomada de deciso e da natureza conflitiva de sua implementao era, por isto, descuidado.

    8. A concepo ingnua do Estado neutro

    Na viso simplista de certos setores da esquerda latino-americana, o enfoque da administrao era de direita uma vez que o que buscava era a otimizao das condies de reproduo do capital e, portanto o aumento da explorao da classe trabalhadora. As tmidas incurses que se fazia, utilizando a abordagem sistmica (abominada pelo marxismo e pela esquerda), para entender o que se encontrava montante do territrio que dominava - da simples implementao das decises tomadas - no sentido do entendimento do processo de elaborao da poltica eram vistas como mais uma tentativa do capital para instrumentalizar este processo em seu beneficio.

    A Cincia Poltica, ao contrrio, era entendida como um enfoque de esquerda, na medida em que iluminava as contradies de classe e permitia discernir a dominao e a explorao. Era como se a Cincia Poltica fosse a encarregada de condenar o carter antissocial, repressivo, demaggico do Estado autoritrio atravs de anlises e pesquisas, realizadas claro fora do aparelho de Estado. E, a Administrao Pblica fosse a encarregada de tocar aquele estilo tradicional de elaborao de polticas pblicas homogeneizador, uniformizador, centralizador, tecnocrtico - tpico do Estado burocrtico e autoritrio herdamos.

    Na verdade, o fato de que nenhum dos enfoques tenha considerado o processo de elaborao de polticas como problemtico levou a que a superao do desafio cognitivo colocado pela construo do Estado Necessrio eixo central deste Documento - seja especialmente difcil. A (inevitvel) adoo de uma mistura desses dois enfoques no mbito do aparelho de Estado teve como resultado uma concepo ingnua do Estado neutro. Embora esperada, em se tratando do enfoque da Administrao Pblica, ela era contraditria com a orientao da Cincia Poltica e tem se manifestado como especialmente desastrosa.

    Para essa viso, o carter do processo de elaborao de polticas e o seu resultado (o contedo da poltica) uma simples decorrncia das relaes de poder existentes no contexto externo ao Estado. Existia uma viso mecanicista, uma espcie de determinismo social do processo de elaborao da poltica e do contedo da poltica. Como se todo o processo se orientasse automaticamente de acordo com as caractersticas do bloco dominante de poder. Como se existisse uma relao de causalidade linear e estrita entre as relaes de poder vigentes no contexto que envolvia o aparelho de Estado e o contedo das polticas que dele emanavam. Algo assim como se Estado fosse um elemento semelhante a um dispositivo transdutor, eletrnico ou pneumtico, que ao receber um impulso externo de entrada gera um outro, se sada, cujas caractersticas dependem apenas da intensidade e sinal do impulso de entrada.

  • Mas a suposio de que numa sociedade de classes, a ocupao do Estado pela classe dominante leva inexoravelmente a polticas que mantm e reproduzem a dominao desta sobre as demais classes no to mecanicista como a sua recproca. A concepo ingnua do Estado neutro, que supe que uma mudana na correlao de foras na sociedade num grau que permita o controle do seu aparelho por foras progressistas originaria, automaticamente, polticas capazes de alavancar a desconcentrao de poder e a equidade social, pode ter conseqncias desastrosas.

    A viso de que o aparelho de Estado seja um simples instrumento neutro capaz de, de uma hora para outra, operar de forma a implementar polticas que contrariam as premissas que o geraram, pode levar a uma postura voluntarista que tende a minimizar as dificuldades que enfrenta um governo de esquerda. O preo do equvoco em que eles tm freqentemente incorrido, de subestimar das relaes entre forma e contedo, proibitivo e no pode mais ser tolerado.

    9. A Anlise de Poltica e o Planejamento Estratgico Situacional: dois enfoques adequados para a capacitao de gestores pblicos

    Esta seo apresenta dois desdobramentos relativamente recentes a Anlise de Poltica e o Planejamento Estratgico Situacional das matrizes de conhecimento analisadas na seo anterior e considerados como abordagens mais adequadas para a capacitao de gestores aptos para a construo do Estado Necessrio.

    No Estado Herdado, os marcos de referncia cognitivos dos gestores eram em geral originrios de uma daquelas duas matrizes que conformavam o repertrio de conhecimento formal disponvel no mbito do aparelho de Estado (e tambm fora dele) para o tratamento das questes de governo. Um outro corpo de conhecimento informal, intuitivo, especfico, assistemtico, e gerado de forma ad hoc, indutiva, on the job - fazia parte da sua formao. Era ele o que de alguma forma, ao adicionar-se a esses dois enfoques, permitia sua combinao preenchendo os vazios cognitivos e amenizando o desvio ingnuo a que se fez referncia.

    O fato de que este outro corpo de conhecimentos, apesar da sua fundamental importncia para o exerccio de governar, no era ensinado, mas sim, a duras penas, e s por alguns, apreendido, no passou despercebida aos pesquisadores acadmicos nem aos gestores que, tanto nos pases centrais como na Amrica Latina, se interessavam ou estavam envolvidos com assuntos de governo. Este fato, aliado a outros tipos de preocupao, entre as quais as de natureza ideolgica e poltica so as mais relevantes, originou movimentos de crtica e fuso multidisciplinar entre essas duas matrizes de conhecimento e delas com outras disciplinas das Cincias Sociais.

    O principal desses movimentos pode ser explicado como se cada enfoque tivesse penetrado a caixa preta do processo (ou sistema) de elaborao de polticas aquele transdutor a que se fez referncia - por um de seus dois extremos (inputs e outputs), ou de seus dois principais momentos (formulao e implementao).

    A Administrao Pblica, a partir da constatao de que os hiatos entre o produto (output do sistema) obtido e o planejado (dficit de implementao) no eram simplesmente um sintoma de m administrao, mas que se poderiam dever a problemas anteriores fase de implementao propriamente dita.

  • A Cincia Poltica, a partir da constatao de que a formao da agenda de deciso, j no interior do sistema de elaborao de polticas, em torno da qual se iniciava o processo, e da qual dependia significativamente o contedo da poltica, era em si mesma determinada pelas foras polticas que se expressavam no contexto econmico social que envolvia o sistema. Isto , que as determinaes polticas, econmicas e sociais no eram um simples insumo do processo (input do sistema), mas algo que seguia atuando dentro do sistema ao longo de todo o processo.

    Algumas perguntas fundacionais como as que seguem orientaram este movimento. Quais so os grupos que realmente conformam a agenda de deciso mediante sua capacidade de transformar (ou travestir) seus problemas privados em assuntos pblicos, em questes de interesse do Estado, sobre os quais ele deve atuar (agendum = algo sobre o qual se deve atuar)? E mais do que isto, como fazem para impedir que outros assuntos de outros grupos sociais no sejam incorporados agenda fazendo com que ela fique restrita a assuntos sobre os quais tm controle? Que procedimentos usam e de que mecanismos do prprio aparelho de Estado - legtimo e eles acessveis por direito - se utilizam para fazer com que os assuntos que logram colocar na agenda sejam decididos e implementados de acordo com seus interesses?

    3.1 A Anlise de Poltica

    Este enfoque o primeiro dos novos enfoques multidisciplinares que se analisa aqui. Ele foi conformado a partir da problematizao da implementao que passava a fazer a Administrao Pblica e a problematizao da formao da agenda de deciso pela Cincia Poltica.

    Sua adequao para o propsito do estilo de capacitao que aqui se apresenta se relaciona sua capacidade de enfocar a interface entre a sociedade e o Estado e o seu funcionamento de um modo mais revelador do que at ento fazia a Cincia Poltica. E enfocar a questo da elaborao dos planos e da sua execuo com maior sutileza e realismo do que fazia a Administrao Pblica.

    Em alguns crculos, a Anlise de Poltica nasce como rea de pesquisa, contrapondo-se Administrao Pblica. No obstante, o formato inicial dos cursos (nos EUA, nos anos 60) a ela dedicados (focalizados na anlise organizacional, mtodos quantitativos, etc.) no enfatizarem com propriedade a questo dos valores, intrnseca Anlise de Poltica. Em outros crculos, a Anlise de Poltica se estabelece por diferenciao/excluso em relao Cincia Poltica, determinando uma inflexo no seu enfoque, concentrado na anlise das organizaes e estruturas de governo. Isto , deslocando o foco da anlise do institucional para o comportamental.

    Apesar das contribuies que desde h muito tempo tm sido realizadas por cientistas sociais para esse tipo de questo, o que novo a escala em que elas passam a ocorrer a partir dos 70 nos pases capitalistas centrais e o ambiente mais receptivo que passa a existir por parte dos governos. De fato, muitos pesquisadores j se tinham interessado por questes inerentes atuao do governo e s polticas pblicas. Esse movimento recente, entretanto, se caracterizou por oferecer uma nova abordagem e por tentar superar problemas atinentes aos enfoques que tomaram por modelo reas da Administrao Pblica ou deram excessiva nfase a mtodos quantitativos combinados anlise organizacional.

  • Embora vrias definies tenham sido cunhadas pelos autores que primeiro de dedicaram ao tema, pode-se iniciar citando Bardach (1998) que considera a Anlise de Polticas como um conjunto de conhecimentos proporcionado por diversas disciplinas das cincias humanas utilizados para analisar ou buscar resolver problemas concretos relacionados poltica (policy) pblica.

    Para Wildavsky (1979), a Anlise de Poltica recorre a contribuies de uma srie de disciplinas diferentes, a fim de interpretar as causas e conseqncias da ao do governo, em particular, do processo de elaborao de polticas. Ele considera, ademais, que Anlise de Poltica uma sub-rea aplicada, cujo contedo no pode ser determinado por fronteiras disciplinares, mas sim por uma abordagem que parea apropriada s circunstncias do tempo e natureza do problema. Segundo Lasswell (1951), essa abordagem vai alm das especializaes acadmicas existentes.

    J segundo Dye (1976), fazer Anlise de Poltica descobrir o que os governos fazem, porque fazem e que diferena isto faz. Para ele, Anlise de Poltica a descrio e explicao das causas e consequncias da ao do governo. Numa primeira leitura, essa definio parece descrever o objeto da Cincia Poltica, tanto quanto o da Anlise de Poltica. No entanto, ao procurar explicar as causas e conseqncias da ao governamental, os pesquisadores cientistas polticos tm-se concentrado nas instituies e nas estruturas de governo, s h pouco registrando-se o deslocamento para um enfoque comportamental que caracteriza a Anlise de Poltica. Ham e Hill (1993) ressaltam que s recentemente a poltica pblica tornou-se um objeto importante para os cientistas polticos. E o que o que distingue a Anlise de Poltica do que se produz em Cincia Poltica a preocupao com o que o governo faz.

    O fato de que a poltica pblica pode influenciar a vida de todos os afetados por problemas das esferas pblica e poltica (politics), que os processos e resultados de polticas sempre envolvem a vrios grupos sociais e que as polticas pblicas se constituem em objeto especfico e qualificado de disputa entre os diferentes agrupamentos polticos com algum grau de interesse pelas questes que tm no aparelho de Estado um locus privilegiado de expresso torna a Anlise de Poltica, um campo de trabalho cada vez mais importante.

    Segundo os pesquisadores que fundam o campo, a policy orientation o que distingue a Anlise de Poltica da Administrao Pblica. Seu carter normativo (no sentido de explicitamente portador de valores) revela uma preocupao acerca de como as idias que emergem da anlise podem ser aplicadas no sentido de alavancar um projeto social alternativo. Neste caso, a melhoria do processo poltico atravs das polticas pblicas que promovam a democratizao do processo decisrio assumida como um vis normativo.

    Mas segundo eles a Anlise de Poltica tambm problem-oriented, o que demanda e suscita a interdisciplinariedade. A Anlise de Poltica se caracteriza, assim, pela sua orientao aplicada, socialmente relevante, multidisciplinar, integradora e direcionada soluo de problemas. Alm de sua natureza ser ao mesmo tempo descritiva e normativa.

    Na opinio de alguns pesquisadores de Anlise de Poltica, o analista das polticas pblicas deve situar-se fora do mundo do dia-a-dia da poltica (politics) de maneira a poder indagar acerca de algumas das grandes questes relacionadas funo do Estado na sociedade contempornea e distribuio de poder entre diferentes grupos sociais.

  • Para uma anlise adequada necessrio explorar trs nveis. Nveis que podem ser entendidos, ao mesmo tempo, como aqueles em que se do realmente as relaes polticas (policy e politics) e como categorias analticas, isto , como nveis em que estas relaes devem ser analisadas. So eles:

    1. o do funcionamento da estrutura administrativa (institucional). o nvel superficial, descritivo, que explora as ligaes e redes intra e inter agncias, determinadas por fluxos de recursos e de autoridade etc. o que se pode denominar nvel da aparncia ou superficial.

    2. o do processo de deciso. o nvel, em que se manifestam os interesses presentes no mbito da estrutura administrativa, isto , dos grupos de presso que atuam no seu interior e que influenciam o contedo das decises tomadas. Dado que os grupos existentes no interior de uma instituio respondem a demandas de grupos, situados em outras instituies pblicas e em organizaes privadas, as caractersticas e o funcionamento da mesma no podem ser adequadamente entendidos a no ser em funo das relaes de poder que se manifestam entre esses grupos. o que se pode denominar nvel dos interesses dos atores.

    3. das relaes entre Estado e sociedade. o nvel da estrutura de poder e das regras de sua formao, o da infraestrutura economicomaterial. o determinado pelas funes do Estado que asseguram a reproduo econmica e a normatizao das relaes entre os grupos sociais. o que explica, em ltima instncia, a conformao dos outros dois nveis, quando pensados como nveis da realidade, ou as caractersticas que assumem as relaes a serem investigadas, quando pensados como categorias analticas. Este nvel de anlise trata da funo das agncias estatais que , em ltima anlise, o que assegura o processo de acumulao de capital e a sua legitimao perante a sociedade. o que se pode denominar nvel da essncia ou estrutural.

    A anlise deve desenvolver-se de forma reiterada (em ciclos de retroalimentao) do primeiro para o terceiro nveis e vice versa buscando responder as questes suscitadas pela pesquisa em cada nvel. Como indicado, no terceiro nvel onde as razes ltimas destas questes tendem a ser encontradas, uma vez que ele o responsvel pela manuteno da estabilidade poltica e pela legitimidade do processo de elaborao de polticas.

    No momento de formulao, atravs da filtragem das demandas, seleo dos temas e controle da agenda mediante um processo cujo grau de explicitao bastante varivel. Ele vai desde uma situao de conflito explcito, onde h uma seleo positiva das demandas que se refere s funes que so necessrias para manuteno de formas de dominao na organizao econmica, como suporte acumulao de capital e resoluo de conflitos abertos at uma de no-deciso, que opera no nvel negativo da excluso dos temas que no interessam estrutura capitalista (como a propriedade privada, ou a reforma agrria), selecionando os que entram ou no na agenda atravs de mecanismos que filtram ideologicamente os temas e os problemas.

    Nos momentos da implementao e da avaliao outros mecanismos de controle poltico se estabelecem tendo por cenrio os dois primeiros nveis e, como mbito maior e mais complexo de determinao, o terceiro.

    atravs do trnsito entre estes trs nveis que, depois de vrias reiteraes, possvel conhecer o comportamento da comunidade poltica presente numa rea

  • qualquer de poltica pblica, e desta maneira chegar a identificar as caractersticas mais essenciais de uma poltica. Este processo envolve examinar a estrutura de relaes de interesses polticos construdos pelos atores envolvidos; explicar a relao entre o primeiro nvel superficial das instituies e o terceiro nvel mais profundo da estrutura econmica.

    Assim, pode-se dizer que a anlise de uma poltica implica, primeiramente, em identificar as organizaes (instituies pblicas) com ela envolvidas e os atores que nestas se encontram em posio de maior evidncia. Em seguida, e ainda no primeiro nvel (institucional) de anlise, identificar as relaes institucionais (isto , aquelas sancionadas pela legislao) que elas e seus respectivos atores-chave mantm entre si.

    Passando ao segundo nvel, passa-se a pesquisar as relaes que se estabelecem entre esses atores-chave que representam os grupos de interesse existentes no interior de uma instituio e de grupos externos, situados em outras instituies pblicas e em organizaes privadas. As relaes de poder, coalizes de interesse, formao de grupos de presso, cooptao, subordinao etc., devem ser cuidadosamente examinadas de maneira a explicar o funcionamento da instituio e as caractersticas da poltica. A determinao de existncia de padres de atuao recorrente de determinados atores-chave e sua identificao com o de outros atores, instituies, grupos econmicos, partidos polticos etc., de modo a conhecer os interesses dos atores, o objetivo a ser perseguido neste nvel de anlise.

    O terceiro nvel de anlise , finalmente, o que permitir, mediante uma tentativa sistemtica de comparar a situao observada com o padro (estrutura de poder e das regras de sua formao) conformado pelo modo de produo capitalista - sua infraestrutura econmico material e sua superestrutura ideolgica -, explic-lo. atravs do estabelecimento de relaes entre a situao especfica que est sendo analisada ao que tipicamente tende a ocorrer no capitalismo avanado (ou perifrico, no caso latino-americano) que se pode chegar a entender a essncia; isto , entender porque as relaes que se estabelecem entre as vrias pores do Estado e destas com a sociedade so como so.

    Pode-se entender o percurso descrito como uma tentativa sistemtica de percorrer este caminho de ida e volta apoiando-se sempre no mapa que este terceiro nvel de anlise proporciona.

    4.1 O Planejamento Estratgico Situacional

    Como desdobramento deste novo enfoque multidisciplinar, o Planejamento Estratgico Situacional, mtodo PES, surge em meados da dcada de 70 como resultado da busca de uma ferramenta de suporte ao mesmo tempo cientfica e poltica para o trabalho cotidiano de dirigentes pblicos e outros profissionais em situao de governo. Seu criador, ex-ministro de planejamento do governo Allende, prof. Carlos Matus, baseado em pressupostos semelhantes aos da Anlise de Poltica, construiu atravs do estudo e da experimentao em situaes concretas, um repertrio de instrumentos e metodologias que adicionam reflexo sobre Anlise de Polticas preocupaes mais realistas e prximas da efetiva arte de governar.

    Como no cabe neste Documento uma apresentao sistemtica da proposta do PES, se destaca a seguir alguns pontos que a tornam apropriada ao Programa se est tratando:

  • a) a crtica radical que faz ao planejamento tradicional normativo (no no sentido de prescritivo, mas sim de voluntarista - escassamente apoiado em anlise metodologicamente coerentes e autoritrio baseado em acordos de gabinete e sem participao) e sua prpria epistemologia, de carter positivista e comportamentalista;

    b) o esforo de construo de um mtodo para compreender o jogo social, a relao entre os homens, e atingir resultados relevantes apesar da incerteza sempre presente, a partir de categorias como ator social, teoria da ao social, a produo social e conceitos como o de situao e o de momento.

    O mtodo PES se coloca, assim, como uma contraproposta epistemolgica ao planejamento de tipo economicista ao:

    a) negar a possibilidade de um nico diagnstico da realidade, ao enfatizar que os vrios atores explicam ou fazem recortes interessados da realidade, a partir de suas situaes particulares e sempre voltados para a ao. No possvel, nunca, um conhecimento fechado, uma verdade acabada sobre a realidade?;

    b) reconhecer que os atores em situao de governo nunca tm o controle total dos recursos exigidos por seus projetos e, por isto, nunca h certeza de que suas aes alcanaro os resultados esperados. Os recursos escassos no so s os econmicos, mas os de poder, de conhecimento e de capacidade de organizao e gesto, entre outros;

    c) que a ao humana intencional e nunca inteiramente previsvel como fazem supor os comportamentalistas;

    d) que o jogo social sempre de final aberto.

    Nesta medida, apesar da incerteza, da incapacidade de controlar os recursos, do abandono de qualquer posio determinstica, h sempre espao para a ao humana intencional, para se fazer histria, para se construir sujeitos individuais e coletivos e para se lutar contra a improvisao, construindo um caminho possvel que se aproxime do rumo desejado.

    10. Consideraes Finais

    urgente a necessidade de capacitar o gestor pblico para levar a cabo as tarefas colocadas pela atual conformao das relaes Estado-Sociedade e pelo cenrio a ser construdo. Faz-lo atravs de um estilo de capacitao como o aqui discutido parece ser essencial para fazer com que essas relaes sejam capazes de promover o pas mais justo, igualitrio e ambientalmente sustentvel que todos desejamos.

    Ajustar o aparelho de Estado visando a alterar essas relaes Estado-Sociedade, desde que respeitando as regras democrticas, um direito legtimo de governos eleitos com o compromisso de levar a cabo suas propostas. Assumir explicitamente essa inteno no diferencia o atual governo de outros que ocuparam anteriormente o aparelho de Estado. O que sim o faraa diferente o fato de buscar essa transformao atravs de um esforo por aumentar quantitativa e qualitativamente a capacidade do corpo de servidores pblicos para implementar as suas propostas.

    Um Programa como o que aqui se apresenta, originado de nossa experincia no oferecimento de cursos de extenso e especializao a gestores pblicos, busca somar-se a esse esforo. A capacitao dos servidores pblicos uma condio

  • visualizada como necessria, inclusive, para assegurar que as mudanas sejam realizadas de forma competente, criteriosa, sem comprometer os xitos anteriormente obtidos e com a mxima aderncia aos consensos que alcanou a sociedade brasileira de respeito participao cidad, democrtica e republicana de todos os seus integrantes.