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MRIO FERNANDO RAMOS DO CARMO PEREIRA BASTOS MRIO

A CAA ATRAVS DO TEMPO EM PORTUGALDas origens aos finais do sculo XX

2008

O que contm estas pginas so as impresses de um mundo, muito prximo de ns, mas de que quase todos os que escrevemos, andamos muito alheados o mundo dos campos.Zacharias D Aa, Caadas Portuguesas, Lisboa, Companhia Nacional, 1899, p. 1.

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RESUMOA caa tem razes muito profundas. Em causa estar o modo de vida do homem-caador por subsistncia, privilgio ou recreio. Qualquer um deles so um excelente ponto de partida para uma reapreciao da evoluo da caa pela historiografia cinegtica, mas tambm motivo de numerosos conflitos e contradies. Vamos, pois, tentar compreender a complexidade que representou o aproveitamento dos recursos bravios em Portugal, com particularmente incidncia no Alentejo pela sua riqueza cinegtica. Estamos defronte um fenmeno que sempre acompanhou as mudanas ocorridas numa categoria de bens, a caa, e desde cedo marcou o panorama agrrio na maior parte da sua extenso no perodo ps-25 de Abril de 1974 at finais do ano de 2000. Na actualidade, a maior parte dos caadores encontrou a sua matriz cultural na Revoluo de Abril de 1974, acontecimento que coincidiu com o fim das coutadas em 1975 e a sua reconverso em terreno livre, cuja maioria se encontrava no Imenso Sul alentejano, que analisaremos nas suas diferentes componentes, designadamente usos, tradies e costumes locais e a sua confrontao com um novo perodo da democracia portuguesa, a socializao dos recursos bravios e o paradigma do caador-explorador. Igualmente, faz parte da nossa erudio procurar as causas dos conflitos nos campos em torno da problemtica caa-agricultura, resultantes da diminuio do territrio de caa e da desertificao do terreno livre, o direito de caa, aspectos da poltica meio ambiental e os procedimentos da Administrao Pblica. Aps um longo processo de mudana social e agrria, em 1986, a implementao do novo modelo cinegtico reavivou o esprito de coutada e permitiu a expanso de uma nova poltica de caa, mais capitalista e intensiva, em relao ao passado comparativamente mais moderna e progressiva, seguindo de perto a economia dos recursos naturais renovveis. Porm, no se consolidou ainda como um modelo exemplar de tecido associativo e empresarial, pois gerou desequilbrios e conflitos entre caadores e proprietrios. Para concluir, foi tambm nosso propsito investigar o impacto do ordenamento e gesto dos recursos bravios nas actividades econmicas, sociais e culturais do mundo rural que, no seu conjunto, estiveram na origem da actividade cinegtica em Portugal. Palavras-chave: caa, coutadas, ps-25 de Abril, zonas de caa e terreno livre.

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NDICE

NOTA PRVIA...................................................................................................................15 INTRODUO...................................................................................................................20 CAPTULO I CONCEITOS OPERATRIOS1. O PROBLEMA E SUA JUSTIFICAO ...............................................................................................................3 2. MEIOS E TCNICAS .........................................................................................................................................3 3. REFLEXES E LIMITAES ............................................................................................................................3

CAPTULO II-TEMAS E PROBLEMAS DO QUOTIDIANO VENATRIO1. O CAADOR PRIMITIVO ...................................................................................................................................3 2. TICA E NATUREZA SOCIAL DA CAA ............................................................................................................3 3. ORIGEM E DIGNIDADE DA CAA ....................................................................................................................3 4. CAA NA EUROPA ............................................................................................................................................3 4.1. A CAA COMO REGULADOR DA FAUNA SILVESTRE ...................................................................................3 4.2. A SUSTENTABILIDADE DOS RECURSOS BRAVIOS A CAA COMO REGULADOR DA FAUNA SILVESTRE...3 4.3. PROBLEMTICA JURDICA DA CAA............................................................................................................3 4.3.1. CAA E NATUREZA ....................................................................................................................................3 4.3.2. CAA E DIREITO ........................................................................................................................................3 4.3.3. DIREITO DE CAA E DIREITO DE PROPRIEDADE.....................................................................................3 4.3.4. DIREITO DE CAA E COMPETNCIAS DO ESTADO ..................................................................................3 4.4. MODELOS DE CAA......................................................................................................................................3 4.4.1. ALEMANHA.................................................................................................................................................3 4.4.1.1. TERRITRIOS DE CAA: O DIREITO DE CAA E O DIREITO DE PROPRIEDADE ..................................3 4.4.1.2. DIFERENTES CATEGORIAS DE TERRENOS DE CAA............................................................................3 4.4.1.3. PERODOS DE CAA ...............................................................................................................................3 4.4.1.4. HORRIOS DE CAA...............................................................................................................................3 4.4.1.5. LICENAS DE CAA................................................................................................................................3 4.4.2. INGLATERRA E PAS DE GALES.................................................................................................................3 4.4.2.1. TERRITRIOS DE CAA: O DIREITO DE CAA E O DIREITO DE PROPRIEDADE ..................................3 4.4.2.2. DIFERENTES CATEGORIAS DE TERRENOS DE CAA............................................................................3 4.4.2.3. PERODOS DE CAA: O CALENDRIO DE CAA ....................................................................................3 4.4.2.4. INTERDIO DA CAA............................................................................................................................3 4.4.2.5. CONCESSO DA CARTA DE CAADOR...................................................................................................3 4.4.3. ESPANHA....................................................................................................................................................3 4.4.3.1. TERRITRIOS DE CAA: O DIREITO DE CAA E O DIREITO DE PROPRIEDADE ..................................3 4.4.3.2. DIFERENTES CATEGORIAS DE TERRENOS DE CAA............................................................................3 4.4.3.3. PERODOS DE CAA ...............................................................................................................................3 4.4.3.4. HORRIOS DE CAA...............................................................................................................................3 4.4.3.5. CARTAS DE CAADOR ............................................................................................................................3 4.4.4. ITLIA.........................................................................................................................................................3 4.4.4.1. TERRITRIOS DE CAA: O DIREITO DE CAA E O DIREITO DE PROPRIEDADE ..................................3 4.4.4.2. DIFERENTES CATEGORIAS DE TERRENOS DE CAA............................................................................3

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4.4.4.3. PERODOS DE CAA ...............................................................................................................................3 4.4.4.4. INTERDIO DA CAA............................................................................................................................3 4.4.4.5. HORRIOS DE CAA...............................................................................................................................3 4.4.4.6. CARTA DE CAADOR ..............................................................................................................................3 4.4.5. FRANA ......................................................................................................................................................3 4.4.5.1. TERRITRIOS DE CAA: O DIREITO DE CAA E O DIREITO DE PROPRIEDADE ..................................3 4.4.5.2. MODALIDADES DE CAA........................................................................................................................3 4.4.5.3. PERODOS DE CAA ...............................................................................................................................3 4.4.5.4. HORRIOS DE CAA...............................................................................................................................3 4.4.5.5. CARTA DE CAADOR ..............................................................................................................................3 4.4.6. PORTUGAL .................................................................................................................................................3 4.4.6.1. TERRITRIOS DE CAA: O DIREITO DE CAA E O DIREITO DE PROPRIEDADE ..................................3 4.4.6.2. DIFERENTES CATEGORIAS DE TERRENOS DE CAA............................................................................3 4.4.6.3. PERODOS DE CAA ...............................................................................................................................3 4.4.6.4. INTERDIO DA CAA............................................................................................................................3 4.4.6.5. HORRIOS DE CAA...............................................................................................................................3 4.4.6.6. CARTA DE CAADOR ..............................................................................................................................3 4.4.6.7. CONCESSO DA CARTA DE CAADOR...................................................................................................3 4.4.6.8. RENOVAO DA CARTA DE CAADOR ..................................................................................................3 4.4.6.9. CADUCIDADE DA CARTA DE CAADOR.................................................................................................3 5. CONSERVAO DA NATUREZA .......................................................................................................................3 5.1. INSATISFAO E PROTECCIONISMO ...........................................................................................................3 5.2. REGULAMENTAO......................................................................................................................................3 5.2.1. CITES .........................................................................................................................................................3 5.2.2. CONVENO DE BERNA............................................................................................................................3 5.2.3. DIRECTIVA 79/409/CEE (AVES) ................................................................................................................3 5.2.4. DIRECTIVA 92/43/CEE FAUNA/FLORA/HABITATS................................................................................3 5.3. COMPLEXIDADE DO SISTEMA......................................................................................................................3 6. ADMINISTRAO VENATRIA .........................................................................................................................3 6.1. SERVIO NACIONAL DE PARQUES, RESERVAS E CONSERVAO DA NATUREZA .....................................3 6.2. INSTITUTO DA CONSERVAO DA NATUREZA ............................................................................................3 6.3. MINISTRIO DA AGRICULTURA ....................................................................................................................3

CAPTULO III A REGIO DO ALENTEJO NO SCULO XX. ECONOMIA, SOCIEDADE E FORMAS DE OCUPAO DE ESPAO1. QUADRO NATURAL ..........................................................................................................................................3 2. A POLTICA AGRRIA DO ESTADO NOVO ........................................................................................................3 3. FIM DO ESTADO NOVO E A REFORMA AGRRIA ............................................................................................3 4. POLTICA AGRCOLA NO PASSADO RECENTE.................................................................................................3 4.1. ESTRUTURAS DEMOGRFICAS ....................................................................................................................3 4.2. ESTRUTURAS FUNDIRIAS ...........................................................................................................................3 4.3. ESTRUTURAS ECONMICAS ........................................................................................................................3

CAPTULO IV EVOLUO VENATRIA1. CAA, COSTUMES E PRIVILGIOS ..................................................................................................................3 1.1. PANORAMA GERAL .......................................................................................................................................3 1.2. PENNSULA IBRICA .....................................................................................................................................3 1.3. PORTUGAL ....................................................................................................................................................3 2. REGIME DE COUTADA.....................................................................................................................................3

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2.1. GNESE AO LIBERALISMO ...........................................................................................................................3 2.2. LIBERALISMO AO FINAL DO SCULO XIX ....................................................................................................3 2.3. PRIMRDIOS DA REPBLICA AO FINAL DO ESTADO NOVO........................................................................3

CAPTULO V A SOCIALIZAO DA FAUNA BRAVIA (1974-1986)1. REVOLUO VENATRIA ................................................................................................................................3 2. REACO DAS COMISSES VENATRIAS ......................................................................................................3 3. EXTINO DOS ARAMADOS: O RUMO DA DESORDEM ..................................................................................3 4. DEFENSORES E DETRACTORES .....................................................................................................................3 5. ABOLIO DAS COUTADAS .............................................................................................................................3 6. DIFICULDADES DO ESTADO ...........................................................................................................................3 7. LUTA DAS COMISSES VENATRIAS..............................................................................................................3 7.1. AS CONSEQUNCIAS DO DECRETO-LEI N. 149/79....................................................................................3 8. IRRUPO DA CULTURA DO TERRENO LIVRE................................................................................................3 9. OFENSIVA PREDADORA...................................................................................................................................3 9.1. MASSACRE FAUNSTICO...............................................................................................................................3 9.2. FURTIVOS E DELINQUENTES .......................................................................................................................3 9.3. VNDALOS E LADRES ................................................................................................................................3 10. INEFICCIA DA FISCALIZAO VENATRIA..................................................................................................3 11. INUTILIDADE DAS RESERVAS DE ORDENAMENTO CINEGTICO ................................................................3 12. REGIME DE CAA SOCIAL.............................................................................................................................3 12.1. ZONA DE CAA CONDICIONADA DE VILA VIOSA.....................................................................................3 12.2. ZONA DE CAA CONDICIONADA DA COUDELARIA DE ALTER DO CHO..................................................3 12.3. ZONA DE CAA CONDICIONADA DA CONTENDA .......................................................................................3

CAPTULO VI A REFORMA DA VENATRIA (1974-2000)1. TENTATIVAS .....................................................................................................................................................3 1.1. COMISSO DE REVISO DA LEI DE CAA E O PROJECTO -A .....................................................................3 1.2. PROJECTO B ..............................................................................................................................................3 1.2.1. OPOSIO DA COMISSO VENATRIA REGIONAL DO SUL......................................................................3 1.3. MOVIMENTOS DE CONTESTAO................................................................................................................3 1.4. PROJECTO-LEI N. 486/I ..............................................................................................................................3 1.4.1. ANTAGONISMOS E CONTRADIES..........................................................................................................3 1.5. PROJECTO-LEI N. 323/II .............................................................................................................................3 1.6. PROJECTOS-LEI I, II, III: CONTEDOS E DISCUSSO PBLICA ..................................................................3 1.7. PROJECTO-LEI N. 363/III ............................................................................................................................3 1.8. PROJECTO-LEI N. 416/III ............................................................................................................................3 1.9. PROJECTO-LEI N. 448/III ............................................................................................................................3 1.10. PROPOSTA DE LEI N. 15/IV.......................................................................................................................3 1.11. PROJECTO-LEI N. 24/IV ............................................................................................................................3 1.12. PROJECTO-LEI N. 68/IV ............................................................................................................................3 1.13. PROPOSTA DE LEI N. 1/IV.........................................................................................................................3 1.14. PROJECTO-LEI N. 73/IV ............................................................................................................................3 1.15. PROJECTO-LEI N. 74/IV ............................................................................................................................3 2. DEBATE CONJUNTO DOS PROJECTOS-LEI ....................................................................................................3 3. MEDIAO DA COMISSO DE AGRICULTURA DA ASSEMBLEIA DA REPBLICA ..........................................3 4. CONTRIBUTOS PARA A REFORMA DA LEI N. 30/86 ......................................................................................3 4.1. PROJECTO-LEI N. 299/V .............................................................................................................................3

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4.2. PROJECTO-LEI N. 208/VI ............................................................................................................................3 4.3. APRECIAO DO DECRETO-LEI N. 251/92 ................................................................................................3 4.4. PROJECTO-LEI N. 326/VI ............................................................................................................................3 4.5. DISCUSSO CONJUNTA................................................................................................................................3 4.6. PROPOSTA DE LEI N. 142/VII/99, LEI DA CAA N. 173/99 E DECRETO-LEI N. 227-B/2000.............3 4.7. AUDIO PARLAMENTAR: CONTRIBUTOS E CRTICAS................................................................................3

CAPTULO VII O CICLO DA CAA ORDENADA (1986-2000)1. ABERTURA CONTEMPORANEIDADE ............................................................................................................3 2. OFENSIVA ASSOCIATIVISTA ............................................................................................................................3 3. DIFICULDADES DE ORGANIZAO .................................................................................................................3 4. INTERVENIENTES E PROMOTORES.................................................................................................................3 4.1. REUNIES, DEBATES E CONTRADIES ....................................................................................................3 4.2. CONSELHOS NACIONAIS DA CAA...............................................................................................................3 4.3. OS CONFLITOS EM TORNO DAS ZONAS DE CAA ASSOCIATIVAS ..............................................................3 5. ORGANIZAO LOCAL DA CAA NO ALENTEJO .............................................................................................3 5.1. SIGNIFICADO SOCIO-ECONMICO DO TURISMO VENATRIO....................................................................3 5.1.1. ENDAC: UMA EMPRESA CINEGTICA DO ESTADO...................................................................................3 5.1.2. INTERESSES E NEGCIOS ........................................................................................................................3 5.2. PREJUZOS CAUSADOS PELA FAUNA BRAVIA .............................................................................................3 5.3. COMPATIBILIDADE E OBSTCULOS.............................................................................................................3 5.3.1. CAADORES DO REGIME CINEGTICO GERAL ........................................................................................3 5.3.2. CAADORES DO REGIME CINEGTICO ESPECIAL ...................................................................................3 5.3.2.1. ZONAS DE CAA ASSOCIATIVAS ............................................................................................................3 5.3.2.2. TURISMO RURAL E ACTIVIDADE CINEGTICA.......................................................................................3 5.4. CAA TRADICIONAL......................................................................................................................................3 5.4.1. BATIDAS S RAPOSAS ...............................................................................................................................3 5.4.2. MONTARIAS AOS JAVALIS .........................................................................................................................3 5.5. DESENVOLVIMENTO DO REGIME CINEGTICO ESPECIAL .........................................................................3 5.5.1. USOS E ABUSOS DOS CONCESSIONRIOS...............................................................................................3 5.5.2. MENOSPREZO PELA SINALIZAO............................................................................................................3 5.5.3. FRAUDE CONTRATUAL ..............................................................................................................................3 5.5.4. INCAPACIDADE DE GESTO CINEGTICA ................................................................................................3 5.5.5. VIOLAO DO DIREITO DE PROPRIEDADE POR IMPOSIO DOS ENCLAVES ........................................3 5.5.6. FUGA S OBRIGAES TCNICO-JURDICAS ..........................................................................................3 5.5.7. CRIMES CONTRA OS RECURSOS BRAVIOS...............................................................................................3 5.5.8. PROTESTOS DAS POVOAES ..................................................................................................................3 5.5.9. TRANSFERNCIA DE CONCESSO ............................................................................................................3 5.5.10. ANTAGONISMOS E CONFLITOS ...............................................................................................................3 5.5.11. BRIGA PELOS ACORDOS DE CAA..........................................................................................................3 5.5.12. OBSTRUO DOS CAMINHOS VICINAIS..................................................................................................3 5.6. NEGCIO DA CAA.......................................................................................................................................3 5.6.1. PAGAMENTO EM DINHEIRO ......................................................................................................................3 5.6.2. A TROCO DE OBRAS DE RECUPERAO ..................................................................................................3 5.6.3. POR OUTRAS CONTRAPARTIDAS ...............................................................................................................3 5.6.4. A TTULO GRATUITO ..................................................................................................................................3 5.6.5. PREO NOS ENCLAVES .............................................................................................................................3 6. FOGOS E RETALIAO ....................................................................................................................................3 7. A CUMPLICIDADE DA ADMINISTRAO ..........................................................................................................3

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CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................................................................3 ABREVIATURAS,SIGLAS E ACRNIMOS.........................................................................................................830 FONTES E BIBLIOGRAFIA...............................................................................................................................835

NDICE DE GRFICOSGrfico 1. A importncia do PAB na formao do PIB em percentagem...............................................178 Grfico 2. Populao residente por sexo e densidade populacional/km (1992)...................................184 Grfico 3. Populao residente total por classe etria no Alentejo e Continente (1992).........................184 Grfico 4. Grau de instruo da populao da Regio do Alentejo (1993).............................................185 Grfico 5. Quantidade de trabalho agrcola anual existente no Alentejo (ha e%)...................................192 Grfico 6. Ha por SAU e ceifeiras debulhadoras...................................................................................193 Grfico 7. A Regio Alentejo em 1999. Comparao em percentagem com o Continente.....195 Grfico 8. Margem Bruta standard da Regio Alentejo (por 1000$00)....................................................197 Grfico 9. Rendimento da terra no Alentejo (1997)................................................................................198 Grfico 10. ndice de emprego e pluriactividade no Alentejo..................................................................202 Grfico 2. Coutadas e Aramados (ha) existentes no Alentejo (1974)......................................................295 Grfico 3. Origem dos caadores identificados que invadiram a Contenda em 1975.............................395 Grfico 4. Jornadas de caa na Contenda (1986/1987): receita ilquida...............................................401 Grfico 5. Resultados da caa ao javali e veado na ZCC da Contenda (1983-1987)...............................401 Grfico 6. Estimativa da caa maior na Contenda (1987-1988)............................................................402 Grfico 7. Receita das montarias aos javalis no Permetro Florestal da Contenda (1989-1991).............402 Grfico 8. Tipos de zonas de caa e percentagem de ocupao do solo.................................................447 Grfico 9. RCE. Valores totais na IV Regio Cinegtica (Dezembro de 1988).........................................544 Grfico 10. RCE. Valores totais na IV Regio Cinegtica - Alentejo (Dezembro de 2000).........................544 Grfico 11. Concelhos englobados na IV Regio Cinegtica....................................................................545 Grfico 12. Evoluo das cartas de caador em Portugal (1993-2000)....................................................548 Grfico 13. Exames de carta de caador. Totais nacionais (1986-1995)..................................................549 Grfico 14. Resultados dos exames de carta de caador (1986-1995)......................................................549 Grfico 15. Aprovao em percentagem dos candidatos no exame de carta de caador (1986-1995)........549 Grfico 16. Nmero de caadores com licena de caa por Regio Cinegtica (1992)...............................550 Grfico 17. Grupos etrios dos caadores do RCG no Alentejo................................................................644 Grfico 18. Como tomou conhecimento da existncia de caa?...............................................................645 Grfico 19. Como caa o caador do terreno livre...................................................................................645 Grfico 20. Custo do terreno de caa livre para a actividade cinegtica...................................................648 Grfico 21.Quem deve fazer a gesto cinegtica do Terreno Livre?...........................................................648 Grfico 22. Opinio dos caadores do RCG sobre a Lei da Caa n. 30/86..............................................649 Grfico 23. Frequentadores das ZCT por grupos profissionais.................................................................650

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Grfico 24. Gasto anual do caador das ZCT com a actividade cinegtica................................................651 Grfico 25. Opinio dos caadores do RCE sobre a Lei da Caa n. 30/86...............................................652 Grfico 26. Profisses mais frequentes entre os associados da ZCA.........................................................653 Grfico 27. rea mdia disponvel para os caadores das ZCA.................................................................654 Grfico 28. Principais espcies caadas nas ZCA.....................................................................................655 Grfico 29. Gastos anuais de um caador nas ZCA (em contos)...............................................................655 Grfico 30. Opinio dos caadores das ZCA sobre a Lei da Caa n. 30/86..............................................656 Grfico 31. Actividades ou sectores econmicos que beneficiam com a caa.............................................656 Grfico 32. Evoluo das ZCT a nvel nacional (1988-2000).....................................................................658 Grfico 33. Capacidade de Alojamento no Alentejo (camas) em Julho de 1996..........................................660 Grfico 34. Localizao da sede do concessionrio....................................................................................661 Grfico 35. Nmero de entidades concessionrias sedeadas na Regio do Alentejo (Julho de 1997).....662 Grfico 36. Nmero de ZCT por concelho em Julho de 1998......................................................................663 Grfico 37. Distribuio dos inquiridos por grupos etrios.........................................................................664 Grfico 38.Total de propriedades que constituem a ZCT.............................................................................664 Grfico 39. Razes da concesso da ZCT....................................................................................................666 Grfico 40. Espcies de caa menor preponderante....................................................................................667 Grfico 41. Origem dos caadores das ZCT no Alentejo...............................................................................668 Grfico 42. Nmero de raposas abatidas nalguns distritos de Portugal (1980/1981)...................................677 Grfico 43. Abate de raposas. Representatividade de alguns distritos (1983/1984)......................................678 Grfico 44. Raposas abatidas no Alentejo. Concelhos mais representativos (1981-1984)..............................678 Grfico 45. Componentes da dieta alimentar da raposa...............................................................................679 Grfico 46. Coutadas e aramados existentes no Alentejo em Abril de 1974..................................................685 Grfico 47. Evoluo das reas de reservas de caa (ha) em Portugal (1973-1977).......................................685 NDICE DE TABELAS Tabela 1. Titularidade do direito de caa nalguns pases da Europa................................................................76 Tabela 2. Situao das Directivas Aves e Habitats. Informao oficial dos Estados-membros (1996)..............126 Tabela 3. Situao do Barmetro Natura depois da aprovao da Lista Nacional de Stios em Portugal..........131 Tabela 4. Classificao global dos solos do Alentejo.......................................................................................147 Tabela 5. Entrega de terras a antigos proprietrios/ha (1978-1981)...............................................................172 Tabela 6. SAU na Regio do Alentejo. Contraponto com o continente (ha): representatividade (%) e por classe.190 Tabela 7. Disperso da SAU e n. de exploraes: representatividade/escalo no Alentejo...............................190 Tabela 8. Evoluo do rendimento dos agricultores na Regio do Sequeiro Alentejano.....................................200 Tabela 9. Meios tcnicos e humanos da CVRS (1974-1976).............................................................................359 Tabela 10. Transgresses Lei da Caa 1984...............................................................................................360

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Tabela 11. Transgresses Lei da Caa na rea da CVRS...............................................................................361 Tabela 12. Evoluo da ocupao do solo na Contenda em ha.........................................................................393 Tabela 13. Peas de caa abatidas na Contenda (1968-1979)...........................................................................394 Tabela 14. Peas de caa abatidas nos dias da invaso da Contenda (1975).....................................................395 Tabela 15. reas totais cinegticas disponveis por caador e percentagem nalguns Estados da Europa...........542 Tabela 16. Evoluo das cartas de caador a nvel nacional (1968-1983)..........................................................547 Tabela 17. Batidas s raposas na Administrao Florestal de Moura................................................................673 Tabela 18. Batidas s raposas no distrito de Beja (1980-1981).........................................................................674 Tabela 19. Batidas s raposas no distrito de vora (1980-1981).......................................................................674 Tabela 20. Batidas s raposas no distrito de Portalegre (1980-1981)................................................................675 Tabela 21. Nmero de raposas abatidas a nvel nacional/distrito (1980-1981)..................................................676 Tabela 22. Montarias aos javalis na Administrao Florestal de Moura.............................................................682 Tabela 23. Zonas de caa do RCE na IV Regio Cinegtica (Alentejo).Valores totais em 2000............................686 Tabela 24. Estimativa dos encargos da caa. Valores (milhares de contos) em Portugal (1992-1993)................687 Tabela 25. Associaes de caadores registadas na DGF (1986-2000)..............................................................688 Tabela 26. Resultados das caadas na ZCC da Lagoa de Santo Andr (1986-1999)..........................................748 NDICE DE ORGANOGRAMAS

Organograma 1. Origem da Rede Natura 2000...................................................................................................118

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NOTA PRVIA

O presente trabalho procura analisar a actividade cinegtica na Regio Alentejo e a sua relao com os habitantes regulares dos campos, na perspectiva da Histria Social, num quadro cujos limites cronolgicos se iniciam em 1974 com o fim do Estado Novo e se estendem at ao final do ano 2000. Embora permanecendo dentro das fronteiras nacionais e privilegiando o Alentejo, foi nosso desejo que este estudo contribusse para um melhor conhecimento e debate em torno da Europa Mediterrnea. A opo por um limite cronolgico justifica-se pelo reconhecimento de factos polticos e sociais marcantes da sociedade portuguesa e da cinegtica, em especial, que reformaram substancialmente a sua orgnica, mas que no comprometem um estudo srio em tratamento e profundidade, nem demasiado curto para obviar uma avaliao positiva. Estamos convictos da extrema dificuldade em avaliar a fora e capacidade de transformao dos contextos da vida das comunidades porque nem sempre ficam claros e assinalados os traos e as marcas do exerccio do seu prprio poder. Mas importa, julgamos, fundamentar mais profundamente as opes assumidas, algumas das quais deixamos explcitas e que se no resumem, como bvio, s questes inerentes evoluo cinegtica. Pelo contrrio, sem descurar a histria meramente quantitativa ou de simples narrativa cronolgica, pois no h possibilidade de fazer histria interpretativa sem a narrao ordenada dos acontecimentos e sem dados quantitativos, o historiador das sociedades igualmente guiado por anlises profundas, que no se limitam a recordar percentagens, mas evocam todos os aspectos da vida social, das actividades, das relaes entre os homens. O historiador do social no deve cingir-se a constituir um esquema; pelo contrrio, deve partir de factos concretos e, antes de concluir, reflectir nas diversidades, nos casos especficos 1. Nesta circunstncia, a administrao venatria no contexto do desenvolvimento dos normativos jurdicos e administrativos, que a foram configurando ao longo do tempo, constituiu, sempre, a expresso de processos de transformaes econmicas, sociais, culturais e polticas que ocorreram em Portugal, desde a origem at ao final do Estado Novo, quando o perodo revolucionrio se instalou, abolindo o regime dos aramados e das coutadas. Aps a consolidao da democracia, procuramos descrever a articulao permanente entre as grandes balizas definidoras da poltica cinegtica que, no seu conjunto, permitiro uma adequada compreenso da mutao do regime livre para a caa ordenada; o aproveitamento dos recursos naturais renovveis; o contexto global em que se afirmou ou no a autonomia dos proprietrios e do quadro da evoluo das suas atribuies e competncias prprias. No tinha, pois, sentido estudar o meio rural sem o meio poltico urbano, na sua universalidade, o centro de deciso condicionante da vida rural. Em Lisboa achavam-se os poderes legislativo e governamental, o primeiro que produzia as leis, o segundo que aplicava as normas que, por sua vez, regulavam toda a vida cinegtica. O estudo ser, pois, orientado, numa perspectiva que evitar juzos de valor e possveis enviusamentos, face delicadeza do problema, que de natureza essencialmente social e poltica, cujo desafio, ainda que aliciante, deseja identificar os vrios protagonistas da sociedade venatria, de os descrever brevemente e medir o nmero e dimenso no espao, ao longo de vinte e seis anos. A descrio dos domnios visveis fornecer-nos-, se tal conseguirmos, uma boa parte daquilo que importa conhecer. Convm, no entanto, sublinhar que uma das dimenses que mais notoriamente contraria qualquer iluso de transparncia resulta da prpria forma como a organizao da sociedade se fundamenta, ou seja o que a sociedade era e devia continuar a ser , consubstancia-se nas instituies, nos usos e costumes. As palavras e as instituies legtimas encontram-se, assim, cristalizadas, numa herana secular, sempre avessa s novidades ou, em muitas circunstncias, criando focos de resistncias e poderes localizados. Consequentemente, todos os processos de mudana social, institucional ou poltica, como tambm os prprios percursos familiares e individuais de mobilidade social, tinham de se legitimar quase sempre invocando esse legado.1Expressamente enumeradas por Jacques Heers no prefcio tese de doutoramento de Ana Maria Seabra de Almeida Rodrigues, Torres Vedras. A vila e o termo nos finais da Idade Mdia, Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, Outubro de 1995, pp. 13-14.

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Uma das heranas da Revoluo de Abril de 1974 resultou na democratizao da actividade cinegtica no espao continental portugus que passou a ser livre para o caador indiferenciado. Na verdade, a abertura dos espaos privados ao caador e a regulao das relaes interpessoais so precisamente aquelas que se revelam mais difceis de combater e analisar. Por isso, tais conceitos iro ser aprofundados, sem reservas, no sentido de clarificar o discurso que os une ou afasta, na teia de relaes sociais. Estamos convictos de que no possvel compreender as transformaes na cinegtica e da sua relao com a Histria Rural, sem recurso investigao, e sem tomar a peito as mudanas sectoriais no campo to problemtico, ou no fosse a caa qualificada tanto de divina como selvagem. , decerto, um risco assumir a responsabilidade de preencher o tempo, escrevendo, simultaneamente, uma parte substancial do seu texto, porque o ttulo indicia uma ambio de mbito vasto e exaustivo que, na realidade, no ser integralmente preenchida. Uma parte do contedo desta ambio verificou-se estar para alm das possibilidades materiais de tratar com profundidade, rigor e extenso de quase tudo o que o ttulo da obra sugere. Comeamos por explicar essa frustrao. Algumas das maiores dificuldades, que fomos experimentando, condicionaram parcialmente a elaborao deste trabalho, sendo mais significativas no perodo de transio para a implantao do regime democrtico, devido destruio de grande parte dos arquivos histricos alusivos cinegtica no Estado Novo 2. A primeira das dificuldades encontradas residiu no facto de, para a generalidade da opinio pblica, caadores e matadores serem expresses equivalentes e com contedos justapostos. Tal identificao teve, de facto, uma configurao substantiva, pelo menos no perodo de 1974-1986, porque os governos foram incapazes de promover uma poltica venatria eficaz de modo a converter o acto cinegtico num verdadeiro desporto. Sob este manto conflitual, uma massa indistinta de caadores tornou-se furtiva, predadora e salteadora. Outra, menos perversa, gerou o caador-explorador. partida a ideia generalizada, exceptuando alguns conflitos em meados do sculo XX, que os campos portugueses no haviam gerado manifestaes sociais expressivas. Mas pensar na pacificidade do campo, em especial em tempo de transformaes sociais como o incio da Repblica e o fim do Estado Novo, era, obviamente, absurdo. Portugal seria caso nico na Europa. O grande atraso da Histria Agrria, obriga-nos a penetrar a muito mais do que inicialmente tencionvamos, pois s assim se torna inteligvel o quadro em que decorria as tenses e os conflitos. Aqui residia, sem dvida, a nossa maior dificuldade. Pacheco Pereira3, por exemplo, caracteriza a regio Sul pela sua conflitualidade frequente, nunca adormecida inteiramente. A quebra do ritmo dos conflitos (1957-1960) ocorrer, quer pelo abandono da presso sobre a terra, quer por estarem ausentes muitos dos organizadores das anteriores manifestaes, uns na cadeia, outros mergulhados na vida clandestina4. Sabe-se hoje, que a Histria da Cinegtica um domnio em renovao, estimulante e fecundo, no s para a compreenso da sociedade de outrora no seu conjunto e na sua dinmica, mas tambm como acontecimento privilegiado interdisciplinar, de ligaes ricas entre passado e presente. Apesar destas dificuldades foi possvel ultrapassar a viso fragmentria e dispersa que havia predominado o estudo das revoltas dos caadores durante o sculo XX e a viso das causas acidentais e localizadas. Adquiriu-se a conscincia da impossibilidade de compreender as transformaes do mundo rural e sua transio para o regime democrtico sem ter em conta as mudanas registadas no sector em que elas assentam, e as convulses sociais que as acompanham, o que vlido, de resto, para todas as sociedades predominantes agrrias. A partir do final da dcada de 1974, os caadores e as suas lutas entram definitivamente e, com relevo crescente, na historiografia contempornea, contrariamente ao domnio, longamente privilegiado, do estudo de movimentos particulares no regime salazarista, onde2 Reafirmamos a constatao formulada na dissertao de Mestrado em Histria Regional e Local. Veja-se Mrio Fernando Ramos do Carmo Pereira Bastos, O Problema Venatrio no Distrito de Beja (1901-1975), Universidade de Lisboa-Faculdade de Letras, Lisboa, 1999, p. 8. 3 Jos Pacheco Pereira, Conflitos sociais nos campos do Sul de Portugal, 2 Volume de A Reforma Agrria dirigida por Antnio Barreto, Mem-Martins, Publicaes Europa Amrica, 1983. 4 Paula Godinho, A comunidade, classe e colectivismo no sul de Portugal. Couo, 1958-1962, Ler Histria, 40, Lisboa, ISCTE, 2001, pp. 128-129.

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a imprensa cinegtica, sobretudo, erguendo a voz em nome dos caadores, transps os terrenos da censura 5. Sobre as lutas dos caadores, camponeses e outros intervenientes do mundo rural, importante dilucidar o seu papel nas transformaes sociais e polticas, ou seja, a noo que alguns poderiam considerar axiolgica, de que a Histria tambm deve ser relatada de baixo. No poderia terminar esta nota sem expressar o meu agradecimento a um grupo vrio de pessoas e instituies, que de qualquer forma contriburam para este trabalho e do qual se tornou tributrio. Em primeiro lugar, a preparao do tema, incentivo e empenhamento do meu orientador, Prof. Doutor Antnio Ventura, a quem quero demonstrar o meu profundo reconhecimento pelo ensinamento e oportunidade da leitura das suas obras e competncia que me transmitiu, pelo modo como respeitou as minhas opes, deixando sempre o caminho aberto liberdade de criao. Ao Prof. Doutor Joo Medina, pelo seu trabalho notvel na rea da Histria Contempornea. s muitas instituies que contriburam para este projecto das quais destaco: Ministrio da Agricultura e Desenvolvimento Rural, Direco-Geral das Florestas, Direco-Geral de Turismo, Direco Regional da Agricultura do Alentejo, Assembleia da Repblica, Instituto Nacional de Administrao. Aos funcionrios de todas estas instituies pela sua disponibilidade permanente. Professora Doutora Helena Rato, Directora do Departamento de Investigao do INA, pela sua sabedoria e empenho na prossecuo deste trabalho, que apoiou em todos os momentos decisivos. Ao meu colega e amigo Dr. Rego Macedo pelo seu estmulo permanente ao longo de todo o trabalho. Aos amigos caadores, Antnio Lus Palma, Joo Fernandes, Lus e Nelson Brito e Jos Maria Seromenho. Ao Dr. Capoulas Santos e Eng. Vtor Coelho Barros, que me abriram as portas investigao no Ministrio da Agricultura e servios dependentes. Ao Dr. Antnio Ferro pela total liberdade de acesso investigao. Aos Engenheiros, Francisco Lopes e Joo Bugalho, conhecedores profundos das lides do mundo rural e dos recursos bravios. Ao Prof. Doutor Francisco Ramos, da Universidade de vora, pela forma como me facultou o estudo sociolgico recente sobre o Impacto das Zonas de Caa Associativas e Tursticas no Alentejo. A todos aqueles que partilharam comigo a aventura cinegtica com paixo e alegria, dos quais destaco os grandes mestres: o meu pai Jos Carmo, Tio Farias, Rainho e Vicente. A todos os meus amigos ausentes nesta enumerao fica, porm, a minha eterna gratido pela companhia nesta passagem pela vida. Ao povo alentejano, ao qual perteno e me afirmo como homem do mundo rural. Finalmente, reservo uma palavra de sentido reconhecimento minha esposa Maria Antnia, s minhas filhas, Ndia e Erica, e aos meus pais e familiares pela pacincia e modo como se dignaram aceitar esta longa e exaustiva jornada com natural prejuzo da sua imprescindvel companhia.

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Para mais informao, veja-se Mrio do Carmo, ob. cit.

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INTRODUOA caa um tema que movimenta foras, cria polmica e suscita discusso como poucos outros. to grande o interesse que, em toda a poca e qualquer lugar, suscitou e suscita a caa, se escreveu tanto sobre ela, que se torna difcil acrescentar alguma coisa verdadeira e inteiramente original sobre o tema. O tema da caa tocou indirectamente imensas vezes o horizonte de escritor de muitos confrades, o entusiasmo, o fervor quase mtico com que deparam, em quase tudo o que caa diz respeito: campo, co, espingarda, espcies, usos e costumes venatrios, etc. 6 Os que conhecemos a actividade venatria percebemos ainda mais esse entusiasmo, esse impulso; e, porque nela participo h mais de um quarto de sculo de fadigas e serranias, de sacrifcios e perigos nada desdenhveis, de disciplina e de rigoroso treino, tambm comungo desse entusiasmo e impulso. O nosso tempo bastante estpido, segundo Jos Ortega e Gasset, no considera a caa como um assunto srio. Com esta rotundidade se manifestava o clebre pensador no prlogo que abria caminho, h mais de cinquenta anos, ao livro do Conde de Yebes Veinte aos de caza mayor 7. No , contudo, frequente que um pensador de dimenso universal escrevesse um ensaio to profundo sobre um tema to aparentemente frvolo, como a caa. O resultado espectacular e na obra de Ortega se condensam as pginas mais brilhantes da literatura cinegtica mundial. O Conde Yebes, no obstante o seu condado, era um homem profundamente trabalhador que exercia o ofcio de arquitecto. Era, alm disso, por obrigao familiar, homem do mundo, que assistia com frequncia a festas da sociedade elegante. Mas o mais caracterstico no Conde de Yebes era que desaparecia fortuitamente da cidade, como se se volatilizasse. Ningum sabia onde ele estava, porque estava onde no estava ningum: no mais perdido penhasco da serra de Gredos, no fundo de um valado em plena contemplao da natureza e na vivncia da caa, que muito amava 8. Um dos aspectos mais notveis que a maioria dos postulados de Ortega continua vlido at aos nossos dias, includos os que sustentam a caa. Entre os prprios caadores, a clarividncia de Ortega tem um efeito mgico. Perante a proliferao de caa artificial, devese recordar o lema de que a escassez de peas essencial caaria 9. Sem dvida, a escassez foi mestra do engenho, fez do homem um caador, mas transformou a caa num privilgio. A importncia da caa, como grande pedagogia e um dos mtodos preferidos para educar o carcter, contribuiu para o amanhecer da histria da caa, quase uma necessidade, opinou Miguel de Cervantes Saavedra, de tal modo que o exerccio da caa de monte era o mais conveniente e necessrio para reis e prncipes. A caa era uma imagem de guerra e havia nela estratagemas, astcias, ciladas, para vencer o inimigo. Em definitivo, o exerccio que se podia fazer sem prejuzo de nada e com gosto de muitos 10. Ao longo da histria da humanidade, evidencia-se a aco predadora do homem, por necessidade ou recreio, e dela existem abundantes e especficos testemunhos na Pennsula Ibrica, desde os tempos mais remotos. Assim o demonstra a breve resenha de notcias histricas sobre a caa, da qual deduzimos valiosas concluses, quer no respeito abundncia de animais de categoria cinegtica, quer ao progresso das armas e evoluo prtica da arte 11.

6 Veja-se, por exemplo, Miguel Torga, A Criao do Mundo, Coimbra, 1991; Os Bichos, Coimbra, 4 edio, 1946; Novos Contos da Montanha, Lisboa, Ed. Viso, Dom Quixote, 2003. Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam, Lisboa, Crculo dos Leitores, 1984; Idem, A via sinuosa, Amadora, Publicaes Bertrand, 1985; Padre Domingos Barroso, O Perdigueiro Portugus, Porto, 3 Ed., Gazeta das Aldeias, 1990; do mesmo Autor, Sal, ironias e gabarolice, edio de Srgio Paulo Silva, s.d.; Conselhos velhos para caadores novos, Edio de Srgio Paulo Silva, s.d.. Todos eles retratam com entusiasmo e sabedoria a vida dos campos e a ligao do homem rural ao mundo da caa. 7 Jos Ortega y Gasset, Obras Completas, Tomo VI, Veinte aos de caza mayor, Del Conde de Yebes, Madrid, Alianza Editorial, Revista de Occidente, 1943. 8 Idem, p. 420. 9 Idem, Sobre a Caa e os Touros (ensaio), Lisboa, livros Cotovia, 1989, p. 28. 10 Miguel de Cervantes Saavedra, El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha, Valencia Editorial Alfredo Ortells, S.L., 1986, p. 571. 11 A este propsito veja-se Robert Elman (dir.), El Gran Libro de La Caza, Len, Editorial Everest, S.A., Espaa, 1992; Guillermo Muoz Goyanes, Noticias Histricas sobre la caza en Espaa, Madrid, Ed. policopiado, mayo, 1971.

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Eduardo Trigo de Yarto 12, escritor e venador, um verdadeiro exemplo de sabedoria e humildade. Apesar de se confessar Soy aprendiz de todo y maestro de nada, todos reconheciam a sua enorme aficin e vasta experincia cinegtica, assim como a sua paixo por ler e estudar ardorosamente os livros e as matrias relacionadas com a caa. parte a sua formao terica e autodidata nestas matrias, armazenava um enorme saber humanstico, fruto da conjugao da sua excepcional talha cultural e intelectual e de sua capacidade de absorver e registar, at aos mais pormenores do ambiente natural e da biologia das peas de caa. A caa rural uma actividade tradicional realizada pelos habitantes deste meio, grandes conhecedores do seu envolvente, com intenso apego, actualmente numa dimenso quase exclusivamente ldica. A caa foi aproveitada de todas as maneiras possveis para extrair dela o mximo de rendimento. A sabedoria popular soube manter este frgil equilbrio existente num meio pouco produtivo, em muitos casos, cuja chave pode estar na diversificao de actividades. A popularizao da caa nos meios rurais incorporou elementos citadinos, mercantilizou a caa, elevou os preos, induziu ao coutamento de grandes reas, provocou modificaes na actividade venatria que, com excepo da introduo das armas de fogo, quase no havia sofrido alterao nos sculos. A caa como elemento cultural faz parte da idiossincrasia dos habitantes do meio rural, que se transmite de pais para filhos. Em 2000, Gonzalez Arenas, na sua tese doutoral sobre a caa na provncia de Crdova, demonstrou que mais de 90% dos caadores principiara a actividade cinegtica antes dos 30 anos de idade. Podemos aceitar estes dados como um indicador forte da componente tradicional da caa 13. A despeito da diversidade de temas como j se indicou na contemporaneidade possvel detectar a atraco por um assunto at agora ignorado pela historiografia ou timidamente abordado que, alm disso, se destinasse compreenso da realidade cinegtica portuguesa do sculo XX. Tanto mais que no tinha havido continuidade na investigao desenvolvida por Freitas Cruz sobre o Problema Venatrio Portugus at 1945, ou estudos sectoriais na rea da perdiz, desenvolvidos por Antnio Bonfim e Antnio Garcez, a propsito da economia da caa 14. Por outro lado, no podia deixar de considerar aliciante o estudo de um domnio que em espao, em gentes e produo desempenhou um papel de relevo, em certos perodos da Histria Rural, naquilo que podemos chamar um conflito permanente entre os produtores do agro e caadores, com especial relevncia a partir de 1974, circunstncia que obviamente cresceu aps a reverso dos prdios rsticos em benefcio dos antigos proprietrios fundirios. A se geraram dinmicas sociais que no poderiam deixar de influir no curso geral da nossa sociedade cinegtica, ora tranquilizando-a ora agitando-a. Sem dvida que a Histria Social precisamente aquela onde se confundem, na mesma unidade social, o longo e o breve, o estrutural e o conjuntural, a pesada espessura da realidade social que resiste transformao e trepidao da mudana15. Convm ter sempre presente que nas movimentaes agrrias, infinitamente mais que nas operrias, que coexistem numa mesma realidade os diferentes tempos da vida do homem: a quase imobilidade da terra, lentamente alterada pelos factores naturais e humanos, nessa combinao original e fecunda de dois elementos de que fala Orlando Ribeiro, as permanncias seculares dos comportamentos e as atitudes de inovao geradas por novas realidades 16. Estamos perante um desafio estimulante, sem dvida, mas no menos intimidativo. Havia que precaver, antes de tudo, a tentao da facilidade de corrermos atrs do documento novo ou de derivarmos ao sabor do facto fortuito, com o gosto de o generalizar. Impunha-se uma viso que, sobretudo, integrasse os elementos fragmentrios num conjunto no necessariamente harmonioso, mas coerente, donde pudesse derivar o nexo que numa informao generalizada lhe conferia. Convinha igualmente reflectir sobre comportamentos, ajustes e desajustes entre eles na perspectiva da sua contribuio para a dinmica global, pois o circunstancial e o isolado apelam para ganharem a verdadeira12 13 14 15 16

Espaa, Tierra de Caza, Madrid, Libercaza, 1993 Revista Lindey Y Ribera, n. 14, Madrid, Agosto de 2004, pp. 82-83. Veja-se Mrio Fernando Ramos do Carmo Pereira Bastos, ob. cit. Jos Manuel Tengarrinha, Movimentos Populares Agrrios em Portugal, Lisboa, 1994, 1. vol., pp. 32-33. Idem, p. 33.

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dimenso do tempo histrico em movimento. Era, portanto, numa viso estrutural que se pretendia abordar o tema. Tnhamos a conscincia de que esta orientao se encontrava no rumo da ldima tradio historiogrfica da Faculdade de Letras de Lisboa, que lhe inerente como uma das suas mais fecundas contribuies, de que saram algumas para a cincia histrica contempornea no nosso pas. Tal orientao tivemos ocasio de receb-la de alguns mestres, de que conservamos viva memria, como a Professora Virgnia Rau, cujos trabalhos de Histria Agrria ainda hoje tm todo o mrito e oportunidade. No mesmo sentido, se destacam a obra do Prof. Borges de Macedo, em Histria Econmica, Cultural e Diplomtica, e do Prof. Verssimo Serro. Felizmente a Faculdade tem aberto assim um caminho onde nomes como Queirs Veloso, Vitorino Magalhes Godinho, Orlando Ribeiro, mantiveram uma viso de histria estrutural que se mantm. Mais recentemente, destaca-se Jos Tengarrinha, com a sua obra sobre os movimentos populares agrrios em Portugal e, naturalmente, a Histria de Portugal, sob a direco do Prof. Joo Medina. Todos eles trabalharam para conquistar um suporte que constitui o trao dominante de produo historiogrfica. A sua fora advm tambm da diversidade de domnios sobre que incide, tanto de natureza biogrfica como de desenvolvimento geral de histria portuguesa. Foi nesse sentido que orientmos os estudos sobre a poltica cinegtica, desejando, assim, chegar a uma viso estrutural das condies materiais e sociais da vida rural, com o sentido de imutabilidade, do tempo longo, e do momento da durabilidade e da instabilidade, como categorias histricas que Portugal atravessou no perodo de 1974-2000. Ou melhor, conhecer o mundo venatrio no contexto da evoluo dos normativos jurdicos e administrativos que o foram configurando ao longo do tempo, atendendo a que, um e outro, constituram, sempre, a expresso de processos de transformaes econmicas, sociais, culturais e polticas que ocorreram em Portugal. Este relacionamento permitir, certamente, uma adequada compreenso da passagem do Regime Cinegtico Geral 17 para o Regime Cinegtico Especial 18 aplicvel aos terrenos privados ou pblicos submetidos ao regime ordenado, com aproveitamento dos recursos naturais renovveis, bem como do contexto global em que se afirmou ou no a autonomia dos proprietrios e do quadro da sua evoluo, das atribuies e competncias. As espcies cinegticas podem dividir-se em dois grandes grupos: caa menor e caa maior. Ao primeiro grupo pertencem todas as espcies de pena (perdizes, codorniz, narcejas, patos, pombos, rola, tordos, galinhola, tarambola, faiso, etc.) e as espcies de plo (coelho e lebre); pertencem ao segundo grupo os animais de porte mdio e mesmo grande porte (cabra selvagem, veado, urso, alce, coro, gamo, javali, muflo etc.). Numa posio intermdia situam-se os animais designados predadores (raposa, saca-rabos).

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Doravante designado RCG. Doravante designado por RCE.

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Captulo I CONCEITOS OPERATRIOS

1. O problema e sua justificaoO tema em estudo pode, porventura, surpreender. Na realidade, durante largos anos, a oposio campo-cidade fez parte do iderio de historiadores, pois consideravam o mundo rural e o mundo urbano em separado, quando no em oposio 19. No que se refere ao mundo rural, a entidade bsica, a unidade inteligvel mnima eram, para o historiador como para o gegrafo ou para o economista, a regio natural. Contrariando este paradoxo, na contemporaneidade, o tema passou a reclamar importncia da parte de historiadores, surgindo, de alguns anos a esta parte, numerosas monografias cujo objectivo consiste, precisamente, nessa investigao. Nasceu, por isso, a necessidade de compreender e aprofundar, numa perspectiva histrica, as incidncias da actividade venatria na vasta regio do Alentejo. Assim, escolhidos, como tema, um espao e um conjunto de ligaes, resta-nos delimitar um tempo. Na sequncia do estudo que realizmos sobre o Estado Novo, pareceu-nos oportuno e suficientemente amplo, para detectar as variaes de conjuntura e, ao mesmo tempo, coerente e bastante para ser tratado em si mesmo e analisar o perodo subsequente. Nesta perspectiva, dividimos o tema em trs momentos distintos, mas complementares: O fim do Estado Novo, em 1974, que acabou de vez com o modelo venatrio institudo nas reservas de caa e pesca criadas em 1903, a coberto do regime florestal de polcia, e se consolidou na implementao propriamente dita das coutadas e dos aramados, por via da Lei n. 2132, de 26 de Maio de 1967; A socializao dos recursos faunsticos (1974-1986), que corresponde a todo o perodo da estatizao do exerccio venatrio no territrio nacional; O perodo da gesto sustentvel dos recursos cinegticos (1986-2000), fruto da Lei n. 30/86, que possibilitou o ordenamento progressivo do territrio nacional, aps a criao dos diferentes tipos de zonas de caa, numa pretensa igualdade entre ricos e pobres.

Pensamos, nos termos exactos do que expusemos, sobremaneira ir ao encontro das necessidades evolutivas do homem-caador, do agricultor, do associativismo venatrio, do turismo cinegtico, da conservao da natureza e dos demais intervenientes do mundo rural. Tal como nos outros pases da Europa, tambm em Portugal existe uma tradio de estudos de carcter local e regional, procurando traar o percurso histrico de uma determinada zona geogrfica (com particular destaque para a freguesia ou concelho) e inventariar as suas especificidades e caractersticas culturais (ao nvel de um trabalho de recolha etnogrfica). Este tipo de trabalho tem sido animado muitas vezes por estudiosos e eruditos locais, sendo geralmente fruto de um labor solitrio, margem de qualquer enquadramento institucional e de um quadro minimamente comum de referncias problemticas. Tais caractersticas que tem moldado o trabalho de investigao na Histria Local, impediram que o seu produto tenha tido uma importncia significativa no esclarecimento de problemas relevantes da histria portuguesa em qualquer perodo histrico, sem prejuzo

19 Ana Maria Seabra de Almeida Rodrigues, ob. cit., p. 19. Em Portugal, os estudos de histria rural de mbito regional so casos paradigmticos: Robert Durand, Les Campagnes Portugaises Entre Douro e Tage aux XII. et XIII. sicles, Paris, 1982; Maria Helena da Silva Cruz Coelho, O Baixo Mondego nos Finais da Idade Mdia, 1. Ed., 2 vols., Coimbra, 1983; Pedro Ferreira Gomes Barbosa, Povoamento e Estrutura Agrcola na Estremadura Central (sec. XII a 1325), dissertao de Doutoramento apresentada Faculdade de Letras de Lisboa, 2 Vols, Lisboa, 1988.

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dos mritos evidenciados por alguns estudos na exaustividade do acareamento factual ou na preocupao de rigor na crtica e anlise das fontes. Em suma, com um impacto geogrfico e cronolgico diferenciado e que seria interessante deslindar , a tradio da Histria Local manteve-se profundamente afastada dos temas e problemas que eram objecto de estudo por uma historiografia produzida ao nvel acadmico, porventura na iluso, compartilhada por ambos os plos, de que uma anlise de mbito local pouco viria a acrescentar elucidao do processo histrico escala nacional. Todavia, uma nova prtica da Histria Local veio retirar o antema de mera curiosidade sobre o passado e as tradies de uma determinada zona. Sem dvida que a Histria Regional era j um produto de estudo consagrado merc da influncia da historiografia francesa, produzida pelos Annales. Porm, a escolha de reas geogrficas mais reduzidas como contexto espacial da investigao histrica o resultado de uma dupla filiao. Em primeiro lugar, as preocupaes de uma Histria Social empenhada em reconstituir as condies de vida, reproduo e conflito de todos os grupos sociais de uma dada sociedade num determinado perodo histrico, em analisar as suas mentalidades e formas de produo material ou de estruturao social. Em segundo lugar, o surgimento de um novo campo de estudo a demografia histrica lidando com uma documentao especfica de mbito local (os registos) exigia uma escala geogrfica de anlise mais delimitada. A microanlise nasceu, assim, quase como um constrangimento imposto quer pelo tipo de interrogaes a que se pretendia objectar (dificilmente perceptveis e analisveis escala nacional ou de espaos geogrficos muitos vastos), quer pelo tipo de documentao histrica cuja explorao responderia aqueles problemas (documentao de tal forma extensa, que o seu tratamento impunha uma reduo do espao de anlise). Para alm dos seus reflexos num alargamento do campo problemtico da disciplina histrica, importa sublinhar a renovao metodolgica originada por este tipo de estudo. Por um lado, a existncia de novas interrogaes leva utilizao de fontes histricas at ento relegadas para segundo plano. Privilegia-se a documentao que possibilita um tratamento serial e que contenha informaes abarcando todos os extractos sociais salienta-se a documentao institucional local, regional, judicial, etc. Alm do seu carcter, abrangendo aspectos outrora desprezveis da vida quotidiana, estas fontes tm tambm a particularidade de serem produzidas ao nvel local ou, quando produzidas exteriormente comunidade, incidirem de forma intensiva sobre uma unidade administrativa localizada, constituindo geralmente a unidade mais elementar. Por outro lado, tem-se assistido a um esforo mais aturado de crtica das deficincias e lacunas destes corpos documentais, de desenvolvimento de novas metodologias de anlise e tentativas de entrecruzar a informao especfica fornecida por cada uma das fontes, de molde a aumentar o grau de conhecimento que se pode ter de uma realidade histrica. O que seria uma imposio exterior prpria estratgia de investigao a opo por um quadro espacial de anlise reduzido tem vindo a ser encarado como uma postura epistemolgica passvel de solucionar uma das dificuldades inerentes a qualquer anlise da realidade social: a impossibilidade de inferir motivao a partir dos comportamentos 20. Jos Manuel Tengarrinha afirma: O estudo das motivaes complexo. Raro que intervenha uma nica causa e, quando os movimentos so longos, em geral interseccionam-se questes diferentes. Acontece at, por vezes, que a causa directamente responsvel pelo desencadear do movimento no a que, depois, ir ocupar lugar primordial. A esta velha questo tm correspondido sistematicamente solues que tendem a salvaguardar, como base elementar para qualquer anlise das prticas sociais, a redutibilidade a uma unidade e a continuao de experincia humanas ao longo do tempo e em culturas distintas. S na base da aceitao deste substrato comum seria possvel a compreenso do sentido da aco social. Este dilema, que toca profundamente qualquer investigador do social quando tem de estudar e compreender culturas e prticas diferentes, est mais exacerbado na anlise histrica, em que a separao no apenas originada por uma exterioridade no espao, mas onde os comportamentos individuais e colectivos, que pretendemos compreender, esto separados de ns por um perodo de tempo mais ou menos longo.

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Ob. cit., p. 49.

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A reconstruo da trama social e mental ou das condies de produo dos meios de vida que delimitam o quotidiano no passado, permite enquadrar contextualmente os comportamentos observados. Sendo assim, a reconstituio desse contexto e a insero da aco social nessa textura permite que se possa inferir exteriorizao desta ou daquela conduta. Por essa razo, a micro anlise impe-se como um quadro privilegiado para o estudo das principais condies de produo e reproduo social, que so o horizonte possvel em que se inscreve o dia-a-dia das sociedades do passado as formas de acesso, transmisso e utilizao dos meios produtivos; a famlia e o parentesco; a mobilidade social e as formas de sociabilidade; as condies de acesso e exerccio do poder poltico local; as normas culturais que regem a vida individual e colectiva. Alm disso, a profundidade e intensidade propiciada por uma anlise deste tipo, a multiplicidade de facetas da vida social possveis de analisar e interrelacionar, ou a flexibilidade e seleco de tcnicas de explorao da documentao histrica, fazem do estudo da comunidade uma rea de investigao indispensvel para um conhecimento mais profundo dos processos sociais no passado. Numa perspectiva forosamente redutora, podemos afirmar que existem trs condies primordiais que devem nortear qualquer estudo de Histria Local, no pressuposto de contribuir para uma compreenso mais slida de temas fundamentais da historiografia contempornea: Afastar o particularismo, a mera recoleco de factos de uma povoao ou de uma freguesia e no coligir tudo o que aconteceu escala de uma comunidade ou de uma regio, pois a sua histria vale pela possibilidade de elucidar problemas de carcter global, cuja importncia transcende o espao geogrfico de anlise; Conhecer o campo terico e as metodologias de investigao histricas recentes, opo que ao mesmo tempo permite a fuga aos perigos assinalados e impe uma perspectiva comparada, condio essencial para a eficcia analtica e o necessrio contributo para a sntese histrica por parte da Histria Local; Abertura interdisciplinaridade e importncia das aquisies de outras cincias sociais nos domnios conceptual e metodolgico, pressuposto para uma renovao da produo historiogrfica de carcter local, na medida em que muitas linhas de investigao neste domnio devem muito aos contributos da sociologia e da antropologia. Ser nesta dialctica que se procurar encontrar uma resposta, ainda que provisria, sobre a actividade cinegtica no Alentejo, dado que o ciclo da investigao no pode proporse como um objectivo definitivo e ltimo, como a construo de uma cronologia completa e sem falhas 21. A prpria Histria, como as demais cincias sociais, um fazer e refazer constantes, um esforo permanente, mas sempre provisrio, de reaproximao e de tentativas sucessivas de reproduo de um passado.

2. Meios e tcnicasNo deixa de ser verdade para quem trabalha no domnio das cincias sociais que no existe uma metodologia exclusiva, nem um modelo nico, para orientar a investigao. Antes, aplica-se a metodologia proposta por um orientador cientfico com o qual nos identificamos nas suas coordenadas mentais. A coordenao de determinado processo mental e ou de transmisso de conhecimentos, seja ele de que natureza for, exige a obedincia a critrios de tratamento que permitam seguir uma linha inteligvel e capaz de ser entendida por aqueles a quem os mesmos se destinam. Cada tipo de trabalho determina uma distinta elaborao do mesmo, numa palavra, um mtodo diferente (...). 22 nesta riqueza derivada de abrangncia de

21 Sobre a metodologia de investigao cientfica seguimos de perto Mario Bunge, La Investigacin Cientifica, su Estratgia Y su Filosofia, Barcelona, Editorial Ariel, S.A., 1989. 22 Gonalo de Vasconcelos e Sousa, Metodologia da Investigao, Redaco e Apresentao de Trabalhos Cientficos, Porto, Livraria Civilizao Editora, 1998, p. 27.

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perspectiva de abordagem, que os temas oferecem, que reside o interesse na investigao cientfica. Tais questes no devem ser descuradas em virtude de, no seu conjunto, permitirem conferir ao trabalho em realizao uma maior postura cientfica, alcanando a confiana de quem o consulta ou, quando sujeito a audio, de quem o classifica. A especificidade de cada tema de investigao, determina da parte de quem o realiza, a prudncia necessria para no lhe aplicar processos de investigao cuja utilizao especfica ao seu trabalho possa conduzir a resultados inadequados, ou adequados, mas apresentados de forma que o leitor no considere credveis, pela deficiente estruturao e descuidada feio com que so expostos. Reside a, sem dvida, a enorme importncia dos mtodos cientficos sobrepostos aos estudos de investigao ou seja, a de fornecerem indicadores, linhas mestras de trabalho, que possibilitem ao investigador guiar-se por estas noes bsicas, numa primeira fase, de recolha de informao; numa segunda fase, de seleco da mesma, posteriormente de redaco e sistematizao do trabalho a realizar, e, num ltimo momento, de sua concluso e reviso 23. Assim, cada um dos assuntos tratados no presente trabalho foi cuidadosamente analisado no que toca a ideias como originalidade e possibilidade de trazer novidades comunidade cientfica, fontes e bibliografia disponveis. No entanto, todo este processo foi levado com prudncia analtica, de modo a no falsear as questes ou adiar possveis escolhas, nem deixar passar alguns detalhes. Fundamentalmente importante a busca da origem, do peso das alianas e oposies na luta pela partilha do espao venatrio. No partimos do pacfico, mas do conflituoso tendo em conta a dimenso da situao social de inquietao (fenmeno geral) e das situaes concretas provocatrias (fenmeno particular). A escolha do tema, no implicou uma deciso convincente de escolha do ttulo da investigao, mas este reflectiu a essncia do trabalho, sob pena de retratar parcialmente os assuntos versados no mesmo. Por sua vez, a metodologia utilizada obedeceu s seguintes tarefas, tcnicas e fases: Concepo do plano de investigao e respectivo cronograma; Pesquisa bibliogrfica e documental sobre a temtica da caa; Interaco e estudo, concepo e adaptao de mtodos tcnico-cientficos na rea da cinegtica; Recolha e anlise de documentao oficial arquivada ou dispersa pelos vrios departamentos dos Ministrios da Agricultura, do Ambiente, da Economia e da Assembleia da Repblica; Recolha dos debates parlamentares, estudos cientficos, jurisprudncia, acrdos do Tribunal Constitucional e pareceres da Procuradoria-Geral da Repblica, actas do Conselho Nacional da Caa, palestras, conferncias nacionais e internacionais; Acompanhamento das actividades da Direco Regional de Agricultura do Alentejo, das organizaes de caadores e de agricultores, de instituies ambientalistas e outros agentes, particularmente no levantamento de situaes objectivas sobre o funcionamento do regime cinegtico; Estudo dos processos de constituio de zonas de caa sem consentimento prvio dos proprietrios ou, de parcelas includas por edital (enclaves); percentagem de casos solucionados e no solucionados; anlise histrica da extino de zonas de caa; Comparsaria das aces de fiscalizao junto das zonas de caa nacionais, zonas de caa associativas, zonas de caa tursticas e zonas de caa sociais 24; Concepo e administrao de quatro tipos de inquritos destinados aos diferentes actores: caadores do terreno livre, caadores do terreno ordenado, dirigentes das ZCA, ZCS e ZCT; Concepo e administrao das entrevistas a informantes-chave; Elaborao da dissertao. A pesquisa bibliogrfica teve em conta a possibilidade do autor em lidar com as diferentes opinies e verses existentes em diversos estudos e de sobre eles empreender alguns reflexes e tomadas de opinio. O processo de abordagem de uma bibliografia, por

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Idem, p. 29. Doravante passaremos a designar ZCN, ZCA, ZCT, ZCS. No inclumos a actividade das zonas de caa municipais (ZCM), porque a sua implementao se iniciou no final do nosso estudo.

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no ser linear, compreendeu dois momentos: a consulta de bibliografia geral e a passagem para uma bibliografia especfica. Foi deste modo que chegamos necessidade de criar um ficheiro bibliogrfico na rea da cinegtica, porque a realizao de um trabalho desta natureza obrigou recompilao de fontes estatsticas e bibliografia variada correspondente a artigos de revistas, livros, comunicaes, congressos e colquios. Muitas das revistas consultadas so de carcter divulgativo, razo pela qual diligencimos no sentido de os ttulos seleccionados terem suficiente interesse e qualidade, para que nos ajudem a conhecer o pensamento dos caadores, agricultores e demais intervenientes do mundo rural, a opinio sobre os distintos termos cinegticos. Ao mesmo tempo, o seguimento destas publicaes durante um perodo de tempo considervel pe em relevo quais foram, em cada momento, as inquietudes dos caadores e a problemtica abordada pelos estudiosos da cinegtica. Encontramo-nos perante uma temtica que aborda a caa em termos gerais e especficos, desde os tempos remotos at contemporaneidade. Entre as revistas de carcter divulgativo, que temos consultado, encontramos: Caza y Pesca, Trofeo, Federcaza, El Mundo de la Caza, Diana, Caa e Pesca, Calibre 12. No domnio dos jornais especializados de ndole nacional, apenas assinalamos o Jornal do Caador e Jornal de Caa e Pesca, ambos extintos. Pelo carcter complementar da actividade agro-cinegtica, destacamos artigos recolhidos em revistas como a Revista do Agricultor e Vida Rural. A classificao temtica obedeceu, assim, mais a temas e contedos encontrados na bibliografia cinegtica que a critrios prvios de classificao. Na verdade, estamos perante uma temtica ampla e variada ecologia, geografia, antropologia, sociologia, direito, histria e literatura , que pe de manifesto o profundo sentido antropolgico da caa e a importncia econmica e desportiva do recente desenvolvimento cinegtico portugus. Assim temos: Obras de conjunto, nas quais se incluem as obras relativas caa em Portugal, assim como as referncias bibliogrficas da cinegtica em congressos, colquios e jornadas relacionadas com a caa. Nalgumas obras, em geral de carcter divulgativo, se situam a tradicional diviso na caa maior e menor e se incluem captulos sobre aspectos histricos da caa, sobre o caador, ces, armas de caa, etc; Espcies cinegticas: so muitos os ttulos recolhidos que nos do ideia das espcies com maior importncia; Modalidades e tcnicas de caa: encontramos ttulos gerais sobre tcnicas e modalidades de caa e outros que se referem a uma espcie concreta; Geografia da caa: refere-se quase exclusivamente s distintas regies portuguesas, sendo muito escassos os ttulos referidos a outros pases (excluindo Espanha). O nmero de artigos e obras encontradas para cada regio est em relao com a importncia de seu espao cinegtico e oferta de caa, assim como a procura que fazem os seus habitantes; Ordenao e gesto de caa: esta seco justifica-se pela importncia que os terrenos ordenados foram adquirindo ao longo da disputa pela caa. Por isso, se classifica a bibliografia em cinco subseces: Aspectos gerais: inclui artigos sobre as novas tendncias de explorao cinegtica; a relao entre a caa e os outros representantes agrrios; racionalizao da actividade cinegtica; linhas bsicas da poltica cinegtica portuguesa; Zonas de caa e reservas de caa: a proliferao de zonas de caa um fenmeno recente que levou privatizao de grandes espaos com implicaes no unicamente cinegticas, mas tambm econmicas, sociais, jurdicas. So muitos os artigos recolhidos que pem o manifesto sentido polmico e opinies de interessados que tratam o tema de uma forma precisa e objectiva; Outros terrenos de RCE: parques naturais e reservas do Estado; Repovoamento cinegtico e escassez da caa: o caador portugus sente-se preocupado ante a diminuio da caa e o aumento da procura, por isso, reclama medidas eficazes de repovoamento cinegtico, a maioria das vezes sem entender as implicaes ecolgicas que destas podem derivar; Fiscalizao da caa: artigos e relatrios dos servios de caa onde se expe a problemtica, cujo conhecimento de todos estes aspectos pode ser de utilidade aos que administram a fauna e tem que questionar a riqueza cinegtica do nosso pas;

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Repercusses da actividade cinegtica: a considerao da caa como riqueza e explorao econmica generalizada na bibliografia que comentamos; so frequentes os ttulos que fazem referncia ao valor das peas de caa abatidas, ao comrcio e venda das carnes de caa, aos preos de postos e participao nas caarias, em suma ao dinheiro que move a caa, quer seja em si mesma ou atravs da riqueza industrial, comercial e de servios que indirectamente gera (emprego); alm disso, existem outros, no menos importantes, que so ecolgicos, e pem nfases nas vantagens ou nos inconvenientes da actividade cinegtica respeitante conservao da natureza; Sociologia e Antropologia da caa: nos ltimos anos, correntes de opinio contrrias ou favorveis actividade cinegtica geraram uma literatura a respeito de ataques e defesa da caa que se plasma em bibliografia existente, em geral de carcter apologtico; outros temas abordados no conjunto das obras sobre sociologia da caa so: a caa como desporto e actividade venatria que fica muito alm de outras consideraes de tipo economicista; associativismo dos caadores, com o fim de defender os seus interesses e como meio de resoluo de conflitos; a capacitao do caador, necessria, que se vai impondo ante o nmero crescente de aficionados, por meio do exame de caador; o caador furtivo, cujo carcter mudou nos ltimos anos, converteu-se num caador com tcnicas sofisticadas que foram destrutivamente levadas a cabo, sem nenhum imperativo de subsistncia, seno o mero prazer de caar margem da lei; do ponto de vista antropolgico, no entanto, faltam ttulos, destacando apenas o excelente prlogo de Ortega Y Gasset obra do Conde de Yebes, Veinte Aos de Caza Mayor, reflexo acerca duma actividade to antiga como o homem; Actividade cinegtica e legislao: tema de interesse para o caador sobretudo do ponto de vista divulgativo e exequvel; atravs das revistas cinegticas se abordam problemas como a regulao de zonas de caa do regime especial, infraces, caadas. Por outro lado, existem pequenos artigos sobre direito de caa e recompilao de legislao elaborada por juristas, assim como jurisprudncia, aspectos histricos de caa, literatura, arte e caa, relatos de caa, etc.

Quanto Estrutura adoptou-se o seguinte esquema: Introduo; No I Captulo, que contm os conceitos operatrios, definimos o problema e a sua justificao para a Histria Cinegtica, a metodologia e as limitaes; No II Captulo, procedemos a uma abordagem global dos temas e problemas que o tema suscita; No III Captulo, caracterizamos a Regio em estudo, do ponto de vista da economia, sociedade e formas de ocupao de espao agrrio; No IV Captulo, traamos em termos genricos a evoluo da Histria da Cinegtica, desde a origem da nacionalidade a 1974; No V Captulo, analisamos a socializao dos recursos bravios (1974-1986), que corresponde cultura do terreno livre, com destaque para a caracterizao do espao cinegtico frequentado por utilizadores de ambos os regimes, expondo as condies do seu exerccio, interpretando os modos de realizao e as contrapartidas da sua explorao, mediante o uso do benefcio a ttulo dos diferentes poderes; No VI Captulo, estudamos a reforma da lei da caa que o poder poltico desenvolveu com vista recuperao do patrimnio cinegtico e as dificuldades da sua implementao; No VII Captulo, identificamos o universo dos protagonistas da sociedade agrocinegtica, os desafios e repercusses econmicas decorrentes da concesso de zonas de caa do regime especial, e alguns mecanismos sociais resultantes do estilo de vida do regime livre, onde se movimenta o grosso dos caadores mais desfavorecidos, a fim de estimar a dimenso do descontentamento, sem esquecer as reaces dos agentes polticos promotores da continuidade; - Nas consideraes finais, sintetizamos as linhas essenciais de toda a problemtica venatria e da sua influncia nos usos e costumes na regio do Alentejo.

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3. Reflexes e limitaesNa contemporaneidade no fcil termos uma ideia precisa, no exclusivamente quantitativa, das realidades sociais e econmicas portuguesas no perodo de 1974-2000. A tarefa defronta, alis, escolhas assinalveis: a informao estatstica muito limitada e quase sempre deformada, e de questionvel validade ou fiabilidade; os inquritos sociolgicos e os relatrios econmicos de mbito geral so to escassos quanto o o conhecimento coevo das suas realidades; a prpria literatura de fico com a ndole cinegtica, divulgada a partir do ltimo quartel do sculo, sendo uma fonte de aprecivel valor, no abundante e apresenta qualidade muito varivel. No entanto, fundamental conhecer esse mundo essencialmente rural, onde se relacionam, contrastando, uma multido de caadores do terreno livre e uma influente nova gerao de caadores-produtores, com as suas aspiraes, ciosos da caa ordenada, na qual se incluem, por razes diversas, um vasto ncleo de pequenos, mdios e grandes proprietrios agrcolas. Grande parte do nosso estudo ocorre numa sociedade onde, sob os efeitos da crise, quase todos os que tinham alguma coisa de bem se voltam para o Estado, exigindo ou suplicando a tutela protectora dos seus variados e contraditrios interesses. Apreender essa realidade estrutural delimitar o terreno onde se faz a histria, a histria que, por seu turno, ir transformar o terreno em que se movimentavam os insatisfeitos. determinar o ponto de partida do social, do poltico e do mental do Portugal de ento: de quem faz poltica, de quem se dedica aos negcios, de quem os serve, das lgicas que s respectivas actuaes, em ltima anlise, presidem e dos que comandam a sua evoluo. A histria base da memria, foi assim atenuada por aquela outra, a actual, na base do raciocnio da deduo e da sntese, mais atractiva para quem estuda, e de muito maior proveito colectivo no sentido dos reflexos das suas concluses na orientao a seguir, tanto no presente como no futuro, pela prpria Humanidade quando dependente de vontade e interveno humanas. Uma das principais finalidades da Histria proporcionar uma conscincia social que, para cada um de ns, tambm memria de si prprio, que permite libertarmo-nos do presente, ver melhor, aprender o que podemos conhecer, em concreto, quanto aos limites, possibilidades e realizao do humano. Nesse caso, o tempo condio necessria para esse conhecimento, duplamente indirecto, como produto mental e como reconstruo a partir dos dados alusivos ao j conhecido e que por eles indirectamente se reconstitui. Torna-se necessrio, portanto, tentar aprender as situaes em que os homens se encontram e os esforos que tentaram para resolv-las se bem ou mal, isso j outra questo. Dentro de cada contexto, as decises so tomadas no s em consequncia dos antecedentes, mas tambm como criadores de solues. No estamos perante sistemas abstractos, que funcionam automaticamente, mas sim face a actuaes concretas, fruto da ambio e dos interesses, dos receios e dos equvocos, das paixes e dos preconceitos. Da a reconsiderao sobre o papel dos indivduos como sujeitos activos da histria. A biografia valoriza o qualitativo ao particular sem a que as generalizaes e as explicaes quantitativas ficariam despidas