abstração e sistematização na iurisprudentia romana

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ABSTRAÇÃO E SISTEMATIZAÇÃO NA IURISPRUDENTIA ROMANA Dárcio Roberto Martins Rodrigues Professor Doutor do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Resumo: O presente ensaio é um breve panorama da lenta evolução da Iurisprudentia romana em direção a um grau mais elevado de abstração e sistematização. Abstract: In this essay the author presents a bird's eye view of the gradual evolution of ancient Roman legal science toward a higher degree of abstraction and systematization. Unitermos: Jurisprudência romana; método casuístico; processo de abstração; emprego das distinctiones; dialética grega. I. Introdução. Quando se fala na Iurisprudentia romana, sói-se, com acerto, salientar antes de mais nada, que esse termo tinha para os romanos um significado bem distinto daquele que hoje damos a ele. De fato, jurisprudência não era entendida como um conjunto de soluções reiteradas de um órgão jurisdicional - como a definimos hoje - mas sim como o resultado da interpretatio iuris praticada pelos cultores do Direito, os jurisconsultos. Era, no dizer de W Kunkel 1 um verdadeiro "Juristenrecht", um "direito de juristas" emanado exclusivamente dos responsa ou da produção literária dos iurisprudentes, independentemente da atividade judicial dos magistrados ou da legislação formal. 2 O equívoco, entanto, está em dizer, simplesmente, que a Iurisprudentia corresponderia à doutrina (no sentido que modernamente se dá à palavra), ou, pior ainda, em afirmar, muito simplesmente, que ela poderia ser entendida como o "direito científico", ou como uma "ciência do direito" Trata-se, é claro, de um grave exagero. E m primeiro lugar, pelo emprego abusivo da palavra "ciência" nesse contexto. É evidente l.Roinische Reclits^escliiclite, 12. ed, Kõln, Bohlau, 1990, pp. 115-116. 2. É verdade que parte expressiva da obra dos jurisconsultos romanos se constitui de comentários cul eclictum, e está claro que a interpretatio também se aplicava a leis e senatusconsultos, e não apenas ao iitx civile antigo ou aos mores maiorum. Entretanto, W. Kunkel (cit. nota \h 1 supra) ressalta que em seu sentido mais estrito, Iurisprudentia era o resultado da pura criação doutrinária, e com certeza foi nesse sentido que o "Jurisrenrecht" constituía a mais importante fonte de produção do Direito Romano.

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Abstração e Sistematização Na Iurisprudentia RomanaDireito RomanoIurisprudentia RomaHistória do DireitoCiência do Direito

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  • ABSTRAO E SISTEMATIZAO NA IURISPRUDENTIA ROMANA

    Drcio Roberto Martins Rodrigues Professor Doutor do Departamento de Direito Civil

    da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo

    Resumo: O presente ensaio um breve panorama da lenta evoluo da

    Iurisprudentia romana em direo a um grau mais elevado de abstrao e sistematizao.

    Abstract: In this essay the author presents a bird's eye view of the gradual

    evolution of ancient Roman legal science toward a higher degree of abstraction and systematization.

    Unitermos: Jurisprudncia romana; mtodo casustico; processo de abstrao; emprego das distinctiones; dialtica grega.

    I. Introduo.

    Quando se fala na Iurisprudentia romana, si-se, com acerto, salientar antes de mais nada, que esse termo tinha para os romanos u m significado bem distinto daquele que hoje damos a ele. D e fato, jurisprudncia no era entendida como u m conjunto de solues reiteradas de u m rgo jurisdicional - como a definimos hoje -mas sim como o resultado da interpretatio iuris praticada pelos cultores do Direito, os jurisconsultos. Era, no dizer de W Kunkel1 u m verdadeiro "Juristenrecht", u m "direito de juristas" emanado exclusivamente dos responsa ou da produo literria dos iurisprudentes, independentemente da atividade judicial dos magistrados ou da legislao formal.2

    O equvoco, entanto, est e m dizer, simplesmente, que a Iurisprudentia corresponderia doutrina (no sentido que modernamente se d palavra), ou, pior ainda, e m afirmar, muito simplesmente, que ela poderia ser entendida como o "direito cientfico", ou como uma "cincia do direito" Trata-se, claro, de u m grave exagero. E m primeiro lugar, pelo emprego abusivo da palavra "cincia" nesse contexto. evidente

    l.Roinische Reclits^escliiclite, 12. ed, Kln, Bohlau, 1990, pp. 115-116. 2. verdade que parte expressiva da obra dos jurisconsultos romanos se constitui de comentrios cul

    eclictum, e est claro que a interpretatio tambm se aplicava a leis e senatusconsultos, e no apenas ao iitx civile antigo ou aos mores maiorum. Entretanto, W . Kunkel (cit. nota \h 1 supra) ressalta que e m seu sentido mais estrito, Iurisprudentia era o resultado da pura criao doutrinria, e com certeza foi nesse sentido que o "Jurisrenrecht" constitua a mais importante fonte de produo do Direito Romano.

  • 24 Drcio Roberto Martins Rodrigues

    que cincia, entendida como u m sistema organizado de conhecimentos adquiridos e coordenados consoante uma metodologia que chamamos de "cientfica" - em sentido cartesiano -, sem dvida uma idia definitivamente alheia ao pensar do jurista romano.

    Certamente bem conhecida a clssica definio de Ulpiano (Ulp I inst D. 1,1,4), segundo a qual "iurisprudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque iniusti scientia" (a Jurisprudncia o conhecimanto das coisas divinas e humanas, a noo do justo e do injusto). H que se pr tento, porm, ao fato de que a palavra scientia e m latim no tinha, evidentemente, o sentido hodierno de cincia, podendo ser traduzida simplesmente por "conhecimento" de acordo com a prpria etimologia da palavra, que se liga ao verbo scire (saber, conhecer). Por outro lado, a invocao da "humanarum atque divinarum rerum notitia" torna patente que a Jurisprudncia era muito mais o resultado da aplicao do bom-senso e da experincia humana vivida, temperada pelo sentimento tico e de eqidade ("iusti atque iniusti scientia")* do que do simples emprego de uma tcnica "cientfica" de busca de respostas a questes tericas. O vocbulo prudentia (presente no composto imprudentia), por outro lado, provm de pro + videre, literalmente "conhecer de antemo", donde o prudens aquele que age "com conhecimento de causa"; o que leva a palavra prudentia a significar muito mais sabedoria do que conhecimento cientfico.4

    3. No nos escapa que iustus liga-se etimologicamente a ius, e portanto significa apenas "conforme o ius", ou seja, "fundado no direito"; a idia de "justo", como a entendemos hoje, seria mais propriamente expressa e m latim pelo vocbulo aequus. evidente, porm, que o sentimento tico de Justia no era e nem poderia ser de todo alheio ao sentido romano de iustus. Ademais, j indicam H. Heumann e E. Seckel (Handlexikon zu den Quellen des romischen Rechts, 9a ed., Jena, Gustav Fischer, 1926.) que, entre as demais acepes, o termo iustus admite a de "gerecht handelnd", o que referendado nas fontes por expresses como "iudex iustus" (Ulp. 25 ad. ed. D. 11,7,14,13 - texto deveras interessante, porquanto o jurisconsulto afirma ser prprio do iudex iustus decidir mais livremente, "solutius". e sempre "aequitatem sequi") ou "iustius facere" (Pap. 3 Quaest. D. 28,6,12). Entretanto, adentrar e m maiores digresses filosficas acerca do conceito romano de Justia, ou filolgicas sobre o emprego e semntica desses vocbulos, e m muito extrapolaria o modesto escopo deste nosso trabalho.

    4. Acerca dessas etimologias, A. Walde - J. B. Hoffmann, Lateinisches Etymologisclies Wrterbucli. 5 ed., Heidelberg, Carl Winter, 1972; A. Ernout - A . Meillet, Dictionnaire Etymologique de Ia Lingue Latine Paris, Klincksieck, 3.ed., 1951; e tambm F. Martin, Les Mots Latins, Paris, Hachette, 1976. Quanto acepo exata de prudens, H. Menge, (Lateinische Synonimik, 7. ed., Heidelberg, Carl Winter Universittsbuchhandlung, 1988) traduz por "umsichtig, (welt)klug", ressaltando a conotao de u m conhecimento mundano, de uma experincia vivida ("im praktischen Leben erfahren, wer die vorliegende Verfuiltnisse gewandt undsicherzu behandeln wei/S"); e m oposio, a idia de uma cincia era expressa por termos como doctrina, disciplina, ars; nunca se usava scientia para designar uma disciplina cientfica, mas sim o conhecimento subjetivo que uma pessoa tem, de u m modo geral ("die erlangte Kenntnis ais Summe dessen, was einer weifi oder verstehf) - o que pode incluir tambm, mas no exclusivamente, o conhecimento cientfico. O termo notitia, que igualmente aparece na definio de Ulpiano, significava tambm conhecimento, mas j no sentido de informao, de estar ciente ou informado de alguma coisa ("die Bekanntschaft mit, das Wissen um etwas"). O baralhamento desses termos numa traduo desavisada poder levar o exegeta das fontes romanas a concluses muito distantes da verdade, como entender que os romanos julgassem possvel ter conhecimento "cientfico" (no sentido moderno, cartesianio) das coisas do esprito ("humanarum atque divinarum rerum") ou do universo tico ("iusti atque iniusti').

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  • Abstrao e Sistematizao na Iurisprudentia Romana 25

    Tampouco convm a noo de doutrina para explicar a Iurisprudentia dos romanos. Os jurisconsultos clssicos no criavam doutrina, no sentido de estabelecerem u m sistema lgico e coordenado de conceitos abstratos, como o faz a civilstica moderna. U m a "Begriffsjurisprudenz" (Jurisprudncia de conceitos), tal como foi admiravelmente praticada pela pandectstica do sculo XIX, distancia-se muito do pensamento jurisprudencial clssico, ou mesmo se ope por completo a ele. sabido que jamais interessou aos romanos formular conceitos tericos ou desenvolver sistemas para explicar os fenmenos jurdicos.

    Outro aspecto que desperta a ateno o mtodo estritamente casuslico da Jurisprudncia romana. O jurista romano nunca pensava no Direito como um sistema de institutos abstratos, no pensava no todo ordenado: pensava sempre no caso prtico, na congrie de situaes particulares, cada uma delas merecendo ums soluo individual - e no entanto, em vez de conduzir a um conjunto de decises arbitrrias, tal metodologia permitiu o desenvolvimento de uma ordem jurdica notavelmente coesa.

    Diante disso, torna-se grande o interesse em indagar de que forma operava o pensar dogmtico dos jurisprudentes romanos, o qual como vimos no correspondia nem ao conceito moderno de cincia nem ao de doutrina. Maior se torna a relevncia do assunto quanto se tem em vista que o Direito Romano constitui um admirvel monumento de conceitos jurdicos perfeitamente harmnicos e solidamente coerentes. De que forma foi possvel - por paradoxal que parea - erigir um sistema to perfeito sem adotar nenhuma sistemtica! Ou, rectius, como conseguiram fazer funcionar com a perfeio de u m sistema u m conhecimento jurdico organizado de forma assistemtica?

    Sabemos que o tema delicado e complexo, tendo j merecido a ateno de grandes estudiosos do presente e do passado. No nosso intento apresentar u m estudo exaustivo de to complexa matria, nem m e s m o acrescentar algo de revolucionariamente novo ou original, mas to-somente oferecer algumas ponderaes acerca do mtodo do pensamento jurisprudencial romano na formao de suas regras e conceitos tericos. Visamos, destarte, chegar mais prximos, no j de uma total elucidao, mas ao menos de uma boa compreenso das questes fundamentais que envolvem o problema em tela.

    II. A Gnese de uma "Cincia" do Direito.

    A formulao de princpios gerais, conceitos tcnico-jurdicos ou regras de Direito o resultado de u m processo de abstrao que parte do singular para o genrico, isto , da soluo de u m problema caso a caso para a induo de u m conceito geral presente no substrato de cada uma das solues individuais, abstradas de seus elementos acidentais. F. Schulz5 exemplifica esse processo partindo de uma primeira

    5. Primipien des romischen Rechts, Mnchen, Duncker & Humbolt, 1934. (reimpr. Berlin, Duncker & Humbolt, 1954), p. 27 e ss).

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    hiptese e m que se estabelecesse a responsabilidade do vendedor de u m cavalo pelo prejuzo causado em razo do atraso na entrega do mesmo. Dessa deciso isolada, e e m face de uma pluralidade de situaes anlogas, poder-se-ia transitar para u m primeiro grau de abstrao e concluir que o vendedor de u m animal qualquer (e no apenas de u m cavalo) ser responsvel pelo atraso na entrega ao comprador. Ainda segundo F. Schulz, esse passo inicial em direo generalizao j estaria presente nos primeiros documentos jurdicos de que temos notcia, como o Cdigo de Hamurabi, o Pentateuco e mesmo a Lei das XII Tbuas.

    E m u m momento seguinte, seria atingido u m segundo grau de abstrao com a extenso do mesmo princpio a todo e qualquer vendedor, e no-somente aos vendedores de animais. O estgio seguinte seria alcanado quando houvesse o reconhecimento de que no apenas o vendedor, mas todo devedor em uma relao contratual deveria estar sujeito mesma responsabilidade. Finalmente, o grau superior de abstrao viria ao se verificar que o atraso no adimplemento nada mais do que uma das inmeras maneiras possveis de violao do direito de crdito, resultando da o princpio ou regra geral da responsabilidade contratual: o devedor est obrigado a indenizar o credor por qualquer prejuzo decorrente do no-cumprimento de uma obrigao contratual.

    Os romanos, como sabido, foram de u m modo geral infensos a abstraes e conceitos gerais. O que as fontes romanas nos fornecem so, sobretudo. coletneas de casos prticos e pareceres, pouco prdigos em normas de aplicao generalizada. At os institutos fundamentais do Direito Privado, como dominium, possessio, contractus etc, ficaram sem uma definio perfeita e abstrata/' E mesmo quando os jurisconsultos romanos permitiam-se a enunciao de regras de Direito, jamais ousavam afastar-se demasiado da concretude da casustica, valendo-se de exemplos prticos para fundamentar suas idias. N o dizer de L. Wengcr,7 a Jurisprudncia romana gostava sempre de manter os dois ps no cho.

    No foi por outra razo, diga-se de passagem, que a prpria idia de lei, entendida como declarao geral de direito estatuda pelo Estado, era muito pouco prestigiada no ordenamento jurdico romano.* De fato, durante todo o perodo clssico

    6. Dizia Javoleno: "Omnis definido in iure civili periculosa est: parum est enim, ut non subverti possit." (lav. II epist. D. 50,17,202): "Toda definio no direito civil perigosa: pois quase nada impede que seja subvertida ".

    1. Die Quellen des romischen Rechts, Wien, Holzhausens, 1953, p. 487, nota 150.

    8. Com isto pretendemos dizer apenas que a elas foi atribuda diminuta relevncia prtica, quando confrontadas com outras fontes do Direito, quais a Iurisprudentia ou os edicta dos magistrados. No se entenda, contudo, que s leges faltasse prestgio no sentido de respeito e autoridade. A o contrrio, sendo a lex a manifestao da vontade legiferante do prprio populus romanus, era ela o verdadeiro prottipo da fonte do Direito, e servia de parmetro e modelo para a fora vinculante das demais; Gaio, por exemplo, aproxima das leis os plebiscitos, senatusconsultos, constituies imperiais e responsa prudentium ao dizer que estes "legis vicem optinenf (Gi. 1,3-7). Nesse sentido M.K.aser,ZurProblematikderReclitsquellenlelire, in Romische Rechtsquellen und angewandte Juristenmethode, Wien-Kln, Bhlau, 1986, p. 14 e ss.

  • Abstrao e Sistenuttizao na Iurisprudentia Romana 27

    virtualmente no existiu regulamentao estatal atinente s reas centrais do Direito Privado, tais como a propriedade, os contratos, p matrimnio ou a sucesso hereditria." N o Direito Romano clssico, a principal forma de expresso do Direito era a atividade prtica dos jurisconsultos e pretores, que corrigiam e integravam o antigo ius civile de acordo com as necessidades sociais. Mas a lex, proposta pelo magistrado e votada pelos comcios populares, tinha carter sempre excepcional, sendo utilizada apenas para os casos e m que era indispensvel a objetivao de -uma norma geral (e.g. para quantificar o valor de uma indenizao, como por exemplo no caso da iniuria). Durante cerca de 500 anos de atuao dessa fonte produtora de Direito (ou seja, do final do sculo VI a.C. at o incio do principado), os estudiosos costumam enumerar no mais de cerca de 800 legesi,10 a maioria delas para fins de organizao estatal ou regulamentar algum detalhe de utilidade prtica econmica e social" - quantidade irrisria, diante da pletora de leis e decretos que vemos hoje despejados nos dirios oficiais a cada dia. . -'

    O que mais espanta que o desinteresse pela teorizao e pela abstrao era to grande, que faltam at m e s m o no latim jurdico clssico expresses tcnicas para designar conceitos que hoje, com o modo de pensar do jurista moderno, so vistos como elementos basilares do direito, tais como o de capacidade jurdica, sujeito de direitos ou ato jurdico. At m e s m o noes menos abstratas, mais concretamente ligadas a u m interesse prtico, dificilmente eram formalizadas e m teoria. Falava-se, por exemplo, e m actiones in rem e actiones in personam, sem contudo chegar a uma idia - e muito menos a uma palavra - para direitos reais e direitos obrigacionais.12

    No-obstante, houve um momento na histria da Jurisprudncia romana no qual se observa, ao invs dessa averso por generalizaes, o surgimento de uma

    9. "Das 'Volk des Rechts' ist nicht das Volk des Gesetz.es", j observou F. Schulz Prinzipien..., (cil. supra nota \h 5) pag. 4.

    10. Para estudos a este respeito, de importncia fundamental o trabalho de G. Rotondi, que executou uma exaustiva pesquisa, arrolando-as uma a uma e m ordem cronolgica. Ver o seu verbete Comicialis Lex, na Enciclopdia Giuridica Italiana (posteriormente publicado e m forma de livro sob o ttulo Leges Publicae Populi Romani, Hildesheim, Olms, 1962).

    11.0 mesmo se pode dizer dos senatusconsulta e mesmo das constitutiones principiou, que tambm eram normas gerais.

    12. A inexistncia de um termo tcnico para expressar tais conceitos no significa que eles no pudessem e m muitos casos ser inferidos intuitivamente e tacitamente admitidos de maneira indireta, no formalizada. Por exemplo, no se chegou nunca a uma distino terica entre os negcios translati vos de direitos (como a mancipatio ou a in iure cessio) e os meramente geradores de relaes jurdicas pessoais (como o contrato de compra e venda), semelhante noo no chegou a ser formulada. Na prtica, porm. a diferenciao era feita de maneira cristalina e meridiana. Note-se por exemplo com que zelo os romanos insistiam na distino entre a dotis dictio e a dotis datio. (A essse respeito, ver K. Ayiter, Systematisches Denken und Theorie im romischen Recht, in Studi in onore di Arnaldo Biscardi I, Milano, Cisalpino -Goliardica, 1981, pp. 9 e ss.).

  • 28 Drcio Roberto Martins Rodrigues

    corrente doutrinria com manifesto pendor para a teorizao e a criao de regulae abstratas. Foi o perodo da chamada "jurisprudncia regular" (''Regulaijurisprudenz'', nome que lhe foi dado pela romanstica moderna13), que assinalou o incio da elaborao cientfica do direito e m Roma. A partir dos responsa a diversos casos concretos, comeava a emergir a idia unificadora que servira de embasamento a cada u m deles, elevando gradativamente o pensamento jurdico da pura casustica emprica para uma abordagem terica, ainda que incipiente, do fenmeno jurdico. Foi u m processo lento, verdade, mas, no fraseado peculiar de L. Wenger, estava escancarado o porto da mera prxis para a cincia14 Teria sido esse, ento, o perodo mais frtil para a criao das regulae iuris, muitas das quais se perpetuariam nos textos dos jurisconsultos clssicos e, posteriormente, na compilao de Justiniano, sobretudo no ltimo ttulo do Digesto (D. 50,17 "De Diversis Regulis Iuris Antiquis").

    Muito se tem debatido na doutrina acerca da determinao precisa da poca e m que teria tido incio essa tendncia na Jurisprudncia republicana romana. D e acordo com a controversa teoria de P. Jrs15 o precursor teria sido Marco Prcio Cato (234 - 149 a.C.)16 filho de Cato, o censor. Teria sido ele o primeiro a afastar o mtodo puramente casustico a fim de buscar na analogia entre casos, responsa e legis actiones semelhantes u m novo elemento para a deciso de casos futuros: as regulae iuris. Da o chamar-se esse perodo de "jurisprudncia regular" Contestando essa idia, E. Gandolfo17 aps afirmar que os passos do Digesto em que Jrs se estriba para corroborar sua tese no so conclusivos, insiste e m que a Jurisprudncia romana desde as XII tbuas sempre fora "regular" demonstrando a existncia de regras pr-catonianas, que se referem a institutos do Direito antigo. Poder-se-ia a isto replicar que o prprio Jrs no negava que j Cato pai e outros antes dele houvessem cunhado

    13. Cf. e. g. G. Dulckeit - F. Schwarz - W. Waldstein, Romische Rechstgeschichte, 4 ed., Mnchen, Beck, 1989, p. 167 ess.

    14 Die Quellen... (cit. supra nota 7), p. 487.

    15. Romische Rechtswissenschaft zurZeit der Republik, Berlin, Miiller, 1888. Contra esse autor: E. Gandolfo, Ca tone e le Regole di Diritto, in Archivo Giuridico, v. 43, p. 409 e ss. U m detalhado escoro de ambas as argumentaes est e m G. Cervi, Regole di Diritto (Regulae Iuris), verbete na Enciclopdia Giuridica Italiana. Cervi, no entanto, acolhe a tese de Gandolfo.

    16. Seu nome est ligado chamada "regula Catoniana", uma das mais antigas regulae iuris, contida no ttulo D. 34,7, cujo primeiro fragmento (Cels. 35 dig) enuncia: "Catoniana regula sic definit. quod, si testamentifacti temporedecessissettestator, inulile foret, idlegatum quandocunique decesserit. non valete. ("A regra catoniana assim define: sendo nulo um legado na hiptese de que o testador morresse no momento em que o testamento estivesse sendo feito, ento aquele legado no ter validade, seja quando for que o testador morra "). C o m o se v, originalmente se referia apenas aos legados, mas e m Paul 8 ad Sab.D. 50,17,29, Paulo exprime a mesma regra em termos gerais: "Quod initio vitiosum est non potest tractu temporis convalescere" ("aquilo que j est viciado no seu incio no pode convalescer com o decurso do tempo").

    17. Citado supra, nota\h 15.

  • Abstrao e Sistematizao na Iurisprudentia Romana 29

    regras jurdicas, mas que, como propugna L. Wenger1* o mrito de Cato filho foi o de por primeiro trabalhar essas regras de modo sistemtico, dando-lhes uma forma literria prpria e transformando-as em ponto de partida das discusses tanto de casos prticos quanto do prprio contedo do Direito aplicvel.

    No interessa, todavia, para os fins do presente estudo, adentrar na discusso deste ponto, nem examinar com maior vagar os argumentos de uma ou outra parte. Parece-nos, em verdade, de somenos importncia contender acerca do momento histrico em que ocorreu essa transformao ou das razes para atribuir os louros a este ou quele personagem. Releva, na ordem destas ponderaes, compreender o processo m e s m o da evoluo do pensar jurdico que conduziu gnese das regulae iuris.

    No h negar que os dois ltimos sculos da Repblica romana foram da maior relevncia para o desenvolvimento da Jurisprudncia como verdadeira cincia (se que se pode usar esta expresso com relao ao Direito Romano; cf. supra parte I). Refere-nos por exemplo Pompnio, em Pomp. I. s. enchir. D. 1,2,2,41, que Quinto Mcio (cnsul em 95 a.C, morto em 82 a.C.) foi o primeiro a expor sistematicamente ("generatim") todo o Direito Civil, o que j , em si, u m fato de grande significncia. Ademais, sabe-se que a maior parte das regulae iuris provm do final da era republicana19. O que teria levado a Jurisprudncia dessa poca a alar tais vos, to contrrios ndole da cultura romana, qual, conforme j apontamos, repugnavam o pensamento sistemtico e as abstraes?

    A resposta, no entender de F. Schulz20 estaria na influncia grega exercida sobre as artes e cincias romanas, mormente aps a segunda guerra pnica. E bem verdade, e no o nega F. Schulz, que essa influncia marcante jamais deixou de existir, mas foi particularmente intensa no perodo indicado, quando floresceu o movimento intelectual que os historiadores chamam de helenismo.

    Para F. Schulz, a contribuio definitiva do helenismo foi a introduo do pensamento dialtico em Roma. Devemos aqui, claro, entender a palavra dialtica no seu sentido platnico, significando o estudo dos gneros e das espcies, a busca do conhecimento por meio da distino (em grego dia...resij) por u m lado e da sntese (gr. sungwg ou sUnqesij) por outro. Esse mtodo de discernimento sistemtico de gneros e espcies arrancou os estudos jurdicos do torpor da casustica estril, e levou os jurisprudentes de ento a imitar os dialticos gregos, procurando dividir e m categorias distintas os vrios institutos jurdicos.

    O nome tcnico para essas distines era, em grego, como j foi dito, dia...resij, termo que corresponde em latim a divisio, differentia ou distinctio. Este

    18. Die Quellen...,(c\t. supra, nota\h 7) p. 487, nota 151.

    19. Cf. S. Riccobono, Regulae Iuris, verbete no Novssimo Digesto Italiano, que apresenta uma interessante eptome deste tema. Mas v. tb. F. Schulz, Priimpien... (cit. supra, nota \h 5), p. 33-37.

    20. F. Schulz, History of Roman Legal Science, London, Oxford University Press, 1946, p. 60 e ss.

  • 30 Drcio Roberto Martins Rodrigues

    ltimo consagrou-se na Idade Mdia, a partir da Escola de Bolonha, e tornou-se vocbulo tcnico na terminologia dos glosadores.21

    A importncia do emprego das distinctiones pelos jurisconsultos romanos no pode ser subestimada. Foi o que permitiu, por exemplo, a sistematizao do ius civile por Quinto Mcio. O no dispormos de material suficiente para reconstitur sua obra uma grande lstima para o estudo da histria da Jurisprudncia romana.

    N o Direito Clssico encontramos e m estgio avanado a tcnica de classificar por gneros e espcies os institutos jurdicos, o que conspcuo em Gaio, cujas institutas so uma exposio bastante metdica. Gaio distingue as espcies de pessoas (G. 1,9-12; G. 1,48; G. 1,142), de coisas (G. 2,2; G. 2,12; G. 2,18), de heranas (G. 2,99), de legados (G. 2,192), de obrigaes (G. 3,88-89), de aes (G. 4,1), e assim por diante. Muitas dessas distines do perodo clssico remontam na verdade fase anterior, e o prprio Gaio nos aponta algumas distinctiones republicanas (G. 1,188; G. 3,183, e.g.), fazendo mesmo referncia a Quinto Mcio, cujas distinctiones ao que parece eram muito bem acolhidas e discutidas pelos jurisconsultos da Repblica.

    Foi a distinctio, portanto, uma contribuio fundamental da dialtica, trazida pelo helenismo. Mas certo que o uso de distinctiones traz em ps de si um outro fator determinante para os novos rumos do pensamento jurdico romano. Pois, diante da exposio sistemtica de vrias hipteses que incorporam caracteres contrastantes contidos no substrato de um mesmo instituto, a aplicao do raciocnio dialtico desperta no estudioso a aspirao de perquirir mais alm, chegando s razes mesmas dessas distines, aos seus princpios governantes. Se, pois, ao distinguir e.g. as vrias formas de stipulatio (como em G. 3,103), for questionado o porqu de algumas delas serem reconhecidas como vlidas e outras no, pode-se chegar a uma resposta abstrata, como fez Quinto Mcio em Muc. I. s. rwn D. 50,17,73,4 : "Necpaciscendo, nec legem dicendo, nec stipulando quisquam alteri cavere potest" ou seja, ningum pode, por ato seu, obrigar contratualmente a outrem. Outro exemplo: ao distinguir (como em Ulp. 2 inst. D. 8,3,1 ,pr.) as vrias espcies de servides rsticas, a observao de que o iter est contido no actus, mas no vice-versa, pede uma explicao geral, que o prprio Ulpiano deu em Ulp. 27 ad Sab. D. 50,17,21: "Non debet cui plus licet quod minus est non licere" que uma expresso do nosso brocardo "quem pode o mais, pode o menos". O importante que a concluso, em ambos os exemplos, enuncia um

    21. E. Seckel (Distinctiones Glossatorum Graz, Akademische Druck.und Verlagsanstalt, 1956, p. 281), assim conceitua a "distinctio" (traduo nossa do alemo): ""Distinctiones' so produes literrias que operam com diferenas no interior de u m conceito primrio original. O conceito primrio decomposto ("distinguere") tanto quanto possvel e m seus conceitos secundrios originais, por meio da atrao de caracteres particulares contrastantes; conforme o caso, o conceito secundrio submete-se ao mesmo procedimento cientfico subdistinguere'). Os conceitos primrios a dissociar so buscados j no campo dos tipos legais Tatbestand'), j no das regras de direito, j no das relaes jurdicas. Algumas das distinctiones' podem ser comparadas com os pargrafos dos nossos manuais tericos altamente sistematizados". Saliente-se, entretanto, que Seckel aqui se refere mais especificamente s distinctiones dos glosadores, que lhes deram emprego sistemtico muito mais extensivo do que os romanos.

  • Abstrao e Sistematizao na Iurisprudentia Romana 31

    princpio aplicvel a um gnero mais amplo de situaes, reunindo outros elementos alm daqueles inicialmente visados. Quando os jurisconsultos aprenderam a raciocinar dessa forma, a Jurisprudncia romana assistiu a um episdio marcante na sua evoluo: o nascimento da "regula iuris"

    A criao de uma regra de Direito consiste, ento, no ato de extrair de u m conjunto de casos anlogos o princpio geral subjacente a todos. U m exemplo famoso, bem documentado pelas fontes, permite-nos acompanhar pelos textos romanos o caminho percorrido do fato regra.

    Valrio Mximo, nos seus Factorum Dictorumque Memorabilium Libri IX, (8,2,4), relata o seguinte sucesso:

    "Multus sermo eo etiam iudicio manavit, in quo quidamfurti damnatus est, quod equo, cuius usus illi usque ad Ariciam cpmmodatus fuerat, ulteriore eius municipii clivo vectus esset." [Traduo Nossa: "Houve tambm muito falatrio em razo daquele processo no qual algum foi condenado por furto, porque foi com um cavalo, cujo uso lhe fora cedido em emprstimo atArcia, a uma colina mais alm daquele municpio."]

    Trata-se de um acontecimento isolado, do qual o texto no pretende extrair ilao alguma, mesmo porque quem o relata no jurista. Mas de se inferir que at ento no havia uma opinio assente naquele sentido, pois que, segundo o cronista, a deciso causou "muito falatrio"

    Reencontramos o problema em um outro texto, este de Aulo Glio (Noctes Atticae, 6,15), que nos d notcia de caso semelhante, enriquecido pela aluso ao parecer de importantes jurisconsultos, inclusive Quinto Cvola:

    "Labeo in libro de XII tabulis secundo acria et severa judicia de furtis habita esse apud veteres scripsit, idque Brutum solitum dicere, etfurti damnatum esse, qui iumentum aliorsum duxerat quam utendum acceperat, item qui longius produxerat quam quo utendum in quem locum petierat. Itaque Q. Scaevola in librorum, quos de iure civile composuit, XVI verba haec posuit: quod cui servandum datum est, si is usus est, sive quod utendum accipit, ad aliam rem atque accipit usus est.furti se obligavit'." [Traduo Nossa: "Labeo, no segundo livro sobre as XII tbuas, escreveu que entre os antigos houve julgamentos enrgicos e severos acerca dos furtos, e que Bruto disse ser isso comum, e que aquele que conduzira uni jumento a outro lugar que no aquele para o qual o recebera para uso, tambm foi condenado por furto, bem como quem prosseguira alm do local at o qual havia pedido para usar. Do mesmo modo Quinto Cvola, no dcimo-sexto dos livros que comps acerca do direito civil, incluiu estas palavras: 'Se aquele, a quem algo foi dado

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    para ser guardado, o usou, ou se usou para outra coisa que no aquela para a qual o recebeu, tornou-se responsvel por furto'."]

    Labeo, primeiro chefe da escola proculiana, foi contemporneo de Augusto. O Bruto a que ele faz meno deve ser Marco Jnio, jurisconsulto do sculo II a.C. V-se que com Bruto j se verifica um avano no sentido da generalizao, posto que este no faz meno a um acontecimento especfico, excepcional, como ocorre no texto de Valrio Mximo, mas fala da hiptese de um jumento emprestado (e no mais u m cavalo) e que tivesse sido levado no s alm do local combinado, mas tambm, por extenso, a qualquer lugar diverso daquele. E Quinto Cvola por sua vez elabora uma primeira regra, aplicvel a qualquer objeto ("quod") recebido quer a ttulo de comodato ("utendum"), quer a ttulo de depsito ("servandum"), o que j uma ampliao do conceito original. A regra mais geral encontramos em Gai. 13 ad ed. provinc. D. 47,2,55,1, que conceitua ofurtum usus: "furtumfieri et si quis usum alienae rei in suum lucrum convertat" (ocorre o furto tambm se algum converte o uso de coisa alheia em seu benefcio). Tal regra abraada pela Jurisprudncia, e incorporada prpria noo geral de furto, em Paul. 39 ad ed. D. 47,2,1,3 : "furtum est contrectatio rei fraudulosa lucri faciendi gratia vel ipsius rei vel etiam usus eius possessionisve" (furto a subtrao fraudulenta de uma coisa, para obter lucro, seja da prpria coisa, seja tambm do seu uso ou posse)22

    O que aqui se nos depara, e com clareza meridiana, a transio sucessiva para graus crescentes de abstrao, exatamente como teorizou F. Schulz (cf. supra, pg. \h 5). O resultado final a regula, que corresponde ao que os dialticos gregos chamavam de Oroj ou knn. Entretanto, F. Schulz repudia a denominao usual de "jurisprudncia regular" ("Reguiarjurisprudenz") para essa busca republicana por princpios, dado que qualquer tendncia formao de regras poderia ser assim rotulada, enquanto o caso romano fruto da aplicao do mtodo dialtico, da dia.. .resij grega. E preconiza, por tal motivo, o nome "jurisprudncia dialtica"23

    Percebemos ento, que foi na dialtica grega e na passagem para a "Regularjurisprudenz" que o Direito Romano encontrou o seu caminho da prxis para a cincia o que curiosamente no ocorreu no prprio Direito Grego. No se perca de vista, evidentemente, que apesar de toda essa evoluo, os jurisconsultos romanos no perderam jamais a sua perspectiva casustica e pragmtica. As definies e conceitos, que no deixaram de surgir, foram, como observa A. Sllner24, foram sempre feitas com parcimnia e com muita cautela, e ademais disso sem a menor preocupao

    22. Ver ainda Paul. 9 ad Sab. D. 47,2,40; Pomp. 38 ad Q. Muc. D. 47,2,77, pr.; Pomp. 38 ad Q. Muc. D. 13,1,16; G. 3,196. Cf. tb. M. D. Floria Hidalgo, La Casustica dei Furtum en Ia Jurisprudncia Romana , Madrid, Dykinson, 1991, p. 159-164.

    23. History, (cit., supra, nota \h 20) p. 67.

    24. Einfhrung in die romische Rechtsgeschichte, 4. ed., Mnchen, Beck, 1989, pp. 106 ss.

  • Abstrao e Sistematizao na Iurisprudentia Romana 33

    com o rigor cientfico. Muitas vezes as explicaes tericas dadas pelos juristas romanos se limitam a etimologias - no raro falsas - de palavras e expresses de uso corriqueiro. Famosa , por exemplo, a explicao de Gaio para o significado etimolgico da palavra mutuum ("quod... ex meo tuumfit". Gai. 3,90). U m a erronia to grosseira dificilmente se acredita que pudesse ter escapado a pessoas notoriamente sbias e esclarecidas como as que formavam o escol da Jurisprudncia clssica. Isso s se pode explicar pelo absoluto desinteresse por uma investigao cientfica dos conceitos: tais etimologias eram aceitas porque cumpriam a sua funo mnemnica e didtica (lembremo-nos de que Gaio era professor), pouco importando a sua validade cientfica. Tal era o carter pragmtico da Jurisprudncia romana.

    III. Concluso.

    Nesta brevssima exposio, tivemos a oportunidade de acompanhar, e m linhas muito gerais, o progressivo evolver do pensamento jurisprudencial romano no caminho da abstrao e da conceituao genrica de seus institutos - caminho esse que jamais chegou a ser perlustrado at o seu final. O que nos parece relevante perceber que a riqueza do Direito Romano brotou precisamente dessa maneira viva e dinmica com que os institutos nasciam e se desenvolviam livremente a partir das ocorrncias da casustica, qual o jurista romano nunca aceitou renunciar. M e s m o com a "Regularjurisprudenz" e a aplicao da dialtica de influncia grega, a formalizao terica do Direito foi restrita. U m sistema completo eles jamais erigiram. O que se encontra no discurso dos jurisconsultos romanos so apenas algumas poucas estruturas localizadas aqui e ali, ou, no elegante dizer de M . Kaser25, ilhas sistemticas ("systematische Inseln").

    Talvez tenha sido essa feliz combinao do esprito prtico dos romanos, apenas de leve temperado pela dialtica grega, que permitiu Jurisprudncia romana atingir o pice da arte (termo mais adequado, no caso, do que "cincia") jurdica, campo no qual se mantiveram os romanos inigualados por todos os demais povos da Antigidade (inclusive os prprios gregos), oferecendo ainda hoje esse rico repositrio de idias e inspirao para o jurista contemporneo.

    So Paulo, junho de 2002.

    25. Zur Methode der romischen Rechtsfindung, in Nachrichten der Akademie der Wissenschaften in Gottingen, I - Philologisch-historische Klasse, 1962, v. 2, p. 70; cf. tb. C o m M. Bretone, Storia dei Diritto Romano, Laterza, Roma-Bari, 1987 (trad. alem de Brigitte Galsterer Geschichte des romischen Rechts, Mnchen, Beck, 1992, p. 205).