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© 2010 por Seth Grahame-Smith

TÍTULO ORIGINALAbraham Lincoln: Vampire Hunter

CAPAElizabeth Connor

IMAGEM DE CAPA© 2012 Twentieth Century Fox

IMAGEM DE QUARTA CAPA© Scott Nobles

PREPARAÇÃOAnna Távora

REVISÃOJorge Fernando Barbosa

REVISÃO DE EPUBCristiane Pacanowski

GERAÇÃO DE EPUBSimplíssimo

E-ISBN978-85-8057-031-1

Edição digital: 2012

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA INTRÍNSECA LTDA.

Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar22451-041 – GáveaRio de Janeiro – RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

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Para Erin e Joshua

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Sumário

Introdução

PARTE IMenino

1. Criança excepcional2. Duas histórias

3. Henry4. Uma verdade terrível demais

PARTE IICaçador de vampiros

5. Nova Salem6. Ann

7. O primeiro e fatal8. “Uma grande calamidade”

9. Enfim, a paz

PARTE IIIPresidente

10. Uma casa dividida

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11. Baixas12. “Morram de fome, demônios”13. Sempre assim com os tiranos

14. Lar

Agradecimentos

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As fronteiras entre a Vida e a Morte são semprevagas e sombrias. Quem dirá onde

termina uma e começa a outra?— Edgar Allan Poe

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FATOS

1. Por mais de 250 anos, entre 1607 e 1865, os vampiros floresceramnas sombras da América. Raros eram os humanos que acreditavamneles.

2. Abraham Lincoln, que foi um talentoso caçador de vampiros deseu tempo, manteve um diário secreto sobre uma vida inteiradedicada a combatê-los.

3. Durante muito tempo, rumores a respeito da existência desse diárioforam um dos temas prediletos dos historiadores e biógrafos deLincoln. A maioria deles considera tudo isso um mito.

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Introdução

Não posso falar das coisas que vi nem buscar consolo para a dorque sinto. Se o fizesse, este país cairia em uma espécie maisprofunda de insanidade ou pensaria que seu presidente é umlouco. A verdade, receio, deve sobreviver como papel e tinta.Oculta e esquecida até que todos os homens aqui citados tenhamvirado pó.

— Abraham Lincoln, em seu diário3 de dezembro de 1863

I

Eu ainda estava sangrando… com as mãos trêmulas. Até onde eusabia, ele ainda estava ali — observando-me. Em algum lugar,atravessando um vasto abismo no espaço, havia uma televisão ligada.Um homem falava sobre união.

Nada disso tinha importância.Os livros dispostos à minha frente eram as únicas coisas que

contavam agora. Dez volumes de diversos tamanhos encadernados emcouro — cada um de um tom diferente de preto ou marrom. Alguns,apenas velhos e gastos. Outros, caindo aos pedaços, com suas capasrasgadas e páginas que davam a impressão de que se esfarelariam sefossem viradas por algo mais forte do que um sopro. Ao lado deles,havia um maço de cartas bem amarradas por um elástico vermelho.Algumas folhas tinham as bordas chamuscadas. Outras, amareladascomo os filtros de cigarro jogados no piso do porão lá embaixo. Aúnica coisa que se destacava entre essas relíquias era uma folha depapel muito mais branco. De um lado, os nomes de onze pessoas que

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eu não conhecia. Nenhum telefone. Nem e-mail. Apenas o endereço denove homens e duas mulheres… e um recado rabiscado ao pé dapágina:

Aguardando você.

Em algum lugar aquele homem continuava falando. Colonos…esperança… Selma.

O livro em minhas mãos era o menor dos dez e, seguramente, omais frágil. Sua capa de um marrom esmaecido havia sido arranhada,manchada e muito manuseada. A fivela de latão que um dia guardaraseus segredos em segurança fora rompida havia muito tempo. Dentro,cada centímetro quadrado de papel estava coberto de tinta — algunsdeles com a tinta tão negra quanto estava no dia em que secara; outrostrechos, tão apagados que eu mal conseguia ler. No total, havia 118folhas escritas na frente e no verso, à mão, presas na lombada.Estavam repletas de anseios privados; teorias; estratégias; rudesesboços de homens com rostos estranhos. Repletas de históriasouvidas e listas detalhadas. Ao longo da leitura, fui percebendo atransformação da caligrafia do autor, de uma escrita cuidadosa decriança aos rabiscos compactos de um rapaz.

Terminei de ler a última página, olhei para trás para me certificarde que estava sozinho e voltei para a primeira. Eu precisava ler denovo. Imediatamente, antes que a razão soltasse seus cachorros eespantasse as perigosas ideias que começavam a se formar em minhacabeça.

O livrinho começava com essas sete palavras absurdas efascinantes:

Este é o diário de Abraham Lincoln.

__________

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Rhinebeck é uma dessas cidades do norte do estado que o tempoesqueceu. Uma cidade onde lojas de famílias e rostos familiares seenfileiram pelas ruas, e onde o mais antigo hotel da América (ali,como qualquer morador orgulhosamente confirmará, o generalWashington, em pessoa, um dia deitou sua cabeça sem peruca) aindaoferece conforto a preços módicos. Trata-se de uma cidade em que aspessoas ainda dão de presente colchas feitas em casa e usam fornos alenha para aquecer suas casas; e onde eu já vi, mais de uma vez, umatorta de maçã esfriando na janela. O lugar parece um globo de neve debrinquedo.

Como quase tudo em Rhinebeck, o mercadinho na East MarketStreet é um pedaço vivo de um passado moribundo. Desde 1946, osmoradores vêm dependendo dele para tudo, de cronômetros paracozinhar ovos a fitas adesivas para bainha, de lápis a presentes deNatal. Se a gente não tem, você não precisa, diz a placa manchada desol da vitrine. E se você precisar muito, nós aceitamos encomendas.Do lado de dentro, entre o linóleo xadrez e as desagradáveis luzesfluorescentes, você pode encontrar toda a variedade de produtos,organizados em caixas. Os preços escritos com lápis de cera. Cartõesde débito aceitos com resmungos. Ali era minha casa, das 8h30 damanhã às 5h30 da tarde. Seis dias por semana. Toda semana.

Sempre soube que acabaria na loja depois de formado, como euhavia feito todos os verões desde os 15 anos. Eu não era da família, arigor, mas Jan e Al sempre me trataram como um de seus filhos —arranjando-me um emprego quando eu mais precisei, dando-me algunstrocados enquanto eu ainda estava na escola. No meu entender, eu lhesdevia seis meses inteiros, de junho até o Natal. Esse era o plano. Seismeses trabalhando na loja de dia, e no meu romance à noite e nos finsde semana. Era tempo suficiente para terminar a primeira versão edar-lhe uma boa polida. Manhattan ficava a uma hora e meia de trem, eera para lá que eu iria quando terminasse, com 1,5 ou 2 quilos dematerial escrito, mas não solicitado, em provas de revisão, debaixo dobraço. Adeus, vale do Hudson. Alô, circuito de palestras.

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Nove anos depois, eu ainda estava na loja.Em algum ponto entre me casar, sobreviver a um acidente de

carro, ter um filho, abandonar meu romance, começar e largar meiadúzia de outros, ter outro filho e tentar sobreviver às contas, algocompletamente inesperado e depressivamente típico aconteceu: pareide tentar escrever e comecei a tentar me importar mais com todo oresto: As crianças. O casamento. A hipoteca da casa. A loja. Passei ame irritar quando via as pessoas indo fazer compras na farmácia dofim da rua. Comprei um computador para ajudar a manter o controledo estoque. Basicamente, comecei a procurar novas formas de atrairpessoas para a loja. Quando a loja de livros usados em Red Hookfechou, comprei parte do estoque deles e coloquei uma prateleira delocação de livros nos fundos. Rifas. Liquidações. Wi-Fi. Qualquercoisa para fazer as pessoas entrarem por aquela porta. Todo ano euexperimentava uma coisa nova. E todo ano a gente mal conseguiapagar as contas.

Mais ou menos um ano depois que Henry1 começou a vir é quecomeçamos a conversar. Trocávamos as cordialidades de costume;nada além de um “Volte sempre”, “Até a próxima”. Eu só sabia seunome por ter ouvido alguém falar no burburinho da Market Street. Ahistória era que ele havia comprado uma das maiores casas na Route9G e tinha um exército de faz-tudo da região ajeitando as coisas paraele. Henry era um pouco mais jovem do que eu — talvez uns 27 anos,tinha um cabelo castanho desgrenhado, estava sempre bronzeado eusava óculos escuros diferentes para cada ocasião. Dava para ver queera rico. Suas roupas eram provas gritantes disso: camisetas vintage,paletós de lã, jeans que custavam mais caro que o meu carro. Mas elenão era como os outros ricos que apareciam na loja. Os babacas defim de semana, que gostavam de dizer o quanto nossa cidade erabonitinha e como nossa loja era uma gracinha, passando pela nossaplaca de Proibido Entrar com Alimentos ou Bebidas segurando seusimensos copos de café com aroma de avelã e jamais gastando um

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tostão. Henry era gentil. Calado. E o melhor de tudo, ele nunca iaembora sem deixar pelo menos cinquenta pratas — a maior parte emrefugos que hoje em dia só são encontrados em casas especializadas— sabonetes Lifebuoy, latas de graxa Angelus para sapato. Eleentrava, pagava em dinheiro e ia embora. Volte sempre. Até apróxima. Até que um dia, no outono de 2007, tirei os olhos do meucaderno de espiral e lá estava ele. De pé, do outro lado do balcão,olhando para mim como se eu tivesse acabado de dizer algoasqueroso.

— Por que você parou?— Eu… como?Henry apontou para o caderno à minha frente. Eu sempre deixava

um caderno ao lado do caixa, para o caso de alguma ideia brilhante oualguma observação me ocorrer (o que nunca acontecia, mas, sabecomo é, devemos acreditar sempre). Nas últimas quatro horas, euenchera meia página com ideias de apenas uma linha para futuroscontos, que nunca chegavam à segunda linha. A metade de baixo dapágina havia se transformado numa garatuja de um homenzinhomostrando o dedo médio a uma gigantesca e irritadiça águia comgarras afiadas. Embaixo, a legenda: Arremedo de pássaro assassino .Tristemente, esta havia sido a melhor ideia que eu tivera em semanas.

— O que você estava escrevendo. Fiquei curioso para saber porque você parou.

Agora era eu que estava olhando para ele. Não sei bem por que,subitamente fui tomado pela imagem de um homem com uma lanterna— vasculhando as prateleiras cheias de teias de aranha de umarmazém escuro. Não era uma ideia agradável.

— Desculpe, mas eu não…— Entendi não. Não, eu é que peço desculpas. Foi uma

indelicadeza minha interrompê-lo.Jesus… agora era eu que deveria pedir desculpas pelas

desculpas dele.

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— Imagine. É que eu… por que você acha que…— Você parecia uma pessoa que escreve.Ele apontou para a estante de aluguel de livros.— Obviamente você gosta de livros. Eu vejo você escrevendo

aqui às vezes… Achei que fosse uma aspiração sua. Só fiquei curiosopara saber por que você não continuou.

Era razoável. Um tanto pomposo (o quê? só porque eu trabalhonum mercadinho não estou correndo atrás das minhas aspirações?),mas razoável o bastante para arejar o ambiente de novo. Dei-lhe aresposta sincera — e depressivamente típica — de que “a vida é o queacontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos”. O quelevou a uma discussão sobre John Lennon, o que levou a umadiscussão sobre os Beatles, o que levou a uma discussão sobre YokoOno, o que não levou a mais nada. Conversamos. Perguntei o que eleestava achando da região. Como estava ficando a casa. Que tipo detrabalho ele fazia. Ele respondeu satisfatoriamente às três perguntas.Mas mesmo assim — mesmo estando ali conversando educadamente,apenas dois caras jovens jogando conversa fora — não pude evitar asensação de que não era eu ali. Era uma conversa da qual eu nãoestava participando. Senti as perguntas de Henry se tornando cada vezmais pessoais. Senti que minhas respostas foram no mesmo caminho.Ele perguntou sobre minha mulher. Meus filhos. Sobre o que euescrevia. Perguntou sobre meus pais. Minhas frustrações. E eurespondi tudo. Mesmo sabendo que era estranho. Nem me importei. Euquis contar. Àquele sujeito novo, rico, de cabelo desgrenhado, jeans eóculos escuros caríssimos. Alguém cujos olhos eu nunca tinha visto.Que eu mal conhecia. Quis contar tudo a ele. As coisas foram saindo,como se ele houvesse tirado uma pedra enfiada em minha boca haviaanos — uma pedra que mantivera todos os meus segredos represados.A morte de minha mãe quando eu era pequeno. Os problemas com meupai. A fuga de casa. As coisas que eu escrevia. Minhas dúvidas. Aenervante certeza de que a vida não era só aquilo ali. Nossos

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problemas financeiros. Das vezes em que pensei em largar tudo efugir. Das vezes em que pensei em me matar.

Mal me lembro de ter dito metade dessas coisas. Talvez eu nemtenha dito.

A certa altura, pedi a Henry que lesse meu romance inacabado.Fiquei pasmo só de pensar nele ou em qualquer pessoa lendo aquilo.Fiquei pasmo até mesmo com a ideia de eu ler aquilo. Mas pedi a elemesmo assim.

— Não é necessário — respondeu ele.Tinha sido (até esse ponto) a conversa mais estranha da minha

vida. Quando Henry pediu licença e foi embora, senti como se tivessecorrido uns 15 quilômetros a toda velocidade.

Nunca mais foi assim. Da outra vez que ele entrou na loja,trocamos as cordialidades de sempre; nada além. Volte sempre. Até apróxima. Ele comprou seu sabonete e sua graxa de sapato. Pagou emdinheiro. E continuou assim. Ele passou a vir cada vez menos.

Quando Henry veio pela última vez, em janeiro de 2008, eletrazia um pequeno pacote — embrulhado em papel pardo e amarradocom um barbante. Sem dizer uma palavra, deixou-o junto ao caixa. Suablusa cinza e o cachecol cor de vinho estavam salpicados de neve, eseus óculos escuros tinham gotículas de água. Nem se deu o trabalhode tirá-los, o que não me surpreendeu. Havia, sobre o pacote, umenvelope branco com meu nome escrito — a tinta havia se misturadocom a neve derretida e começara a borrar.

Alcancei, sob o balcão, a pequena televisão que eu deixava alipara ver os jogos dos Yankees e retirei o som. A TV estava ligada nonoticiário. Era o dia das primárias em Iowa, e Barack Obama vinhadisputando pau a pau com Hillary Clinton. Qualquer coisa para passaro tempo.

— Eu gostaria que você aceitasse isto aqui.Por um momento, o fitei como se ele tivesse falado em norueguês.— Espere, como assim? Isso é para mim? O que é…

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— Desculpe, mas estou com um carro me esperando. Leiaprimeiro o bilhete. Eu entrarei em contato.

E foi isso. Fiquei olhando enquanto ele saía porta afora, em plenafriagem, e me perguntei se ele nunca deixava a outra pessoa terminar afrase ou se aquilo seria só comigo.

II

O pacote ficou embaixo do balcão até o fim do dia. Eu estava louco devontade de abri-lo, mas como não fazia ideia de quem seria aquelesujeito, não estava disposto a arriscar desembrulhar uma bonecainflável ou um quilo de heroína no instante em que uma bandeiranteresolvesse entrar na loja. Deixei minha curiosidade arder até que asruas estivessem escuras e a senhora Kallop finalmente se decidissepelo carretel verde mais escuro (após excruciantes noventa minutos dediscussão), então tranquei as portas alguns minutos mais cedo. Danem-se os mendigos hoje à noite. O Natal havia passado e, afinal, omovimento estava muito devagar. Além disso, todo mundo estava emcasa assistindo à dramática disputa entre Obama e Hillary em Iowa.Resolvi fumar um cigarro escondido no porão antes de ir para casa ever o resultado. Peguei o presente de Henry, apaguei as luzes frias eaumentei o volume da televisão. Se houvesse alguma notícia daeleição, eu ouviria lá de baixo.

Não havia muitas coisas no porão. Além de umas poucas caixasestocadas rente às paredes, aquele era basicamente um cômodo vaziocom um asqueroso piso de cimento batido e uma única lâmpada dequarenta watts pendendo do teto. Havia uma velha escrivaninha demetal encostada a uma das paredes com o computador do estoque emcima, um arquivo com duas gavetas, nas quais guardávamos algunsdocumentos, e duas cadeiras dobráveis. Um aquecedor de água. Umacaixa de força. Duas janelinhas que davam para o beco lá em cima.

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Mais do que tudo, era ali onde eu fumava no auge do inverno. Puxeiuma cadeira até a escrivaninha, acendi o cigarro e comecei a desatar obarbante daquele bem embrulhado…

A carta.O pensamento me ocorreu num sobressalto naquele momento,

como uma daquelas ideias brilhantes ou observações pelas quais eusempre mantinha o caderno à mão. Eu devia primeiro ler a carta.Achei meu chaveiro com canivete suíço no bolso da calça (7,20dólares mais impostos — mais barato do que você vai achar emqualquer lugar de Dutchess County, eu garanto) e abri o envelope comum único movimento do pulso. Dentro havia um papel muito brancodobrado ao meio, com uma lista de nomes e endereços datilografadosde um dos lados. Do outro, um aviso manuscrito.

Existem algumas condições com as quais devo pedir quevocê concorde antes de abrir este pacote:

Primeiro, entenda que isto não é um presente, mas umempréstimo. Quando me for conveniente, pedirei que você medevolva estes itens. Quanto a isso, preciso que você juresolenemente que irá protegê-los a qualquer custo e tratá-los como mesmo cuidado e respeito que você tem para com qualquercoisa de extremo valor.

Segundo, o conteúdo deste pacote é de naturezaextremamente delicada. Devo pedir que você não o compartilheou comente com quem quer que seja além de mim e dos onzeindivíduos listados no verso até que receba minha permissão parafazê-lo.

Terceiro, estes itens lhe estão sendo emprestados naexpectativa de que você escreva sobre eles algo de, digamos,extensão substancial… e sujeito à minha aprovação. Você poderálevar o tempo que for preciso. Depois de completarsatisfatoriamente o seu texto, você será bem recompensado.

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Se você não puder cumprir qualquer uma dessas condiçõespor algum motivo, por favor, pare agora e espere meu contato. Noentanto, se você concordar, então pode seguir em frente.

Creio que seu propósito é fazê-lo.— H

Merda, bem… não tinha como eu não abrir agora.Rasguei o papel, revelando um maço de cartas bem amarradas

por um elástico vermelho e dez livros encadernados em couro. Abri olivro do topo da pilha. Ao fazê-lo, um cacho de cabelos loiros caiusobre a escrivaninha. Peguei-o, analisei-o e fiquei torcendo-o entre osdedos enquanto lia ao acaso um trecho da página onde a madeixaestivera comprimida:

… quem me dera desaparecer da face da Terra, pois nãoexiste mais nenhum amor por aqui. Ela foi tirada de mim, e comela, toda a minha esperança de…

Espiei o restante do primeiro livro, fascinado. Lá em cima, umamulher lia uma lista de nomes de condados. Páginas e páginas — cadacentímetro preenchido com uma caligrafia bem apertada. Com datascomo 6 de novembro de 1835; 3 de junho de 1841. Com desenhos elistas. Com nomes como Speed, Berry e Salem. Com uma palavra queaparecia a todo instante:

Vampiro.

Os outros livros eram a mesma coisa. Mudavam apenas as datas ea caligrafia. Dei uma olhada em todos.

… lá que eu vi, pela primeira vez, homens e criançasvendidos… precauções, pois sabíamos que Baltimore estava

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cheia de… era um pecado que eu não podia perdoar. Fui forçadoa rebaixar o…

Duas coisas estavam evidentes: tudo aquilo fora escrito pelamesma pessoa, e era tudo muito, mas muito velho. Além disso, eu nãofazia ideia do que era aquilo tudo nem do que teria feito Henry meemprestar aquele material. E então deparei com a primeira página doprimeiro livro, e aquelas sete palavras absurdas: Este é o diário deAbraham Lincoln. Soltei uma risada alta.

Tudo fez sentido. Fiquei estupefato. Completamente de queixocaído. Não por ter em mãos os diários há muito perdidos do GrandeEmancipador, mas por ter julgado tão equivocadamente uma pessoa.Eu havia achado que a tranquilidade de Henry era por ele ser umsujeito recluso. Havia achado que seu súbito interesse pela minha vidaera por ele ser sociável. Mas agora estava evidente. O sujeito eraclaramente maluco. Isso, ou estava de brincadeira comigo. Algum tipode brincadeira que os ricos com tempo de sobra costumam fazer. Masnão devia ser uma brincadeira, não é? Quem se daria a tanto trabalho?Ou seria? Seria aquilo um romance inacabado do próprio Henry? Umprojeto de livro numa embalagem sofisticada? Agora eu me sentiapéssimo. Sim. Sim, claro que era isso. Folheei novamente os livros,esperando encontrar algumas pistas da presença do século XX. Nãohavia nenhuma — pelo menos que eu tivesse encontrado à primeiravista. Além disso, uma coisa me intrigava: se aquilo era um projeto delivro de gozação, por que todos aqueles onze nomes e endereços? Porque Henry me pedia para escrever sobre os livros em vez de me pedirpara reescrevê-los? A agulha começou a apontar para maluco outravez. Seria possível? Será que ele realmente acreditava que aquelesdez livrinhos eram… não, ele não podia acreditar nisso. Certo?

Eu mal podia esperar para contar à minha mulher. Mal podiaesperar para compartilhar aquela pura insanidade com mais alguém.Na longa fila de malucos do interior, aquele cara ficava com o troféu.Levantei-me, reuni todos os livros e cartas, joguei meu cigarro no

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chão, esmaguei-o com o pé e me virei para…Havia alguma coisa parada a dez centímetros de mim.Recuei e tropecei na cadeira, caindo e batendo a cabeça na quina

da escrivaninha. Meus olhos ficaram desfocados. Já podia sentir ocalor do sangue se esvaindo entre meus cabelos. Alguma coisa seinclinou sobre mim. Seus olhos eram um par de bolas de gude negras.Sua pele, uma translúcida colagem de pulsantes veias azuis. E suaboca — sua boca mal podia conter as úmidas e vítreas presas.

Era Henry.— Não vou machucá-lo — disse ele. — Só preciso fazê-lo

entender.Ele me ergueu do chão pelo colarinho. Senti o sangue escorrer

pela minha nuca.Desmaiei.Volte sempre. Até a próxima.

III

Fui instruído a não entrar em detalhes sobre o local para onde Henryme levou aquela noite, nem sobre o que ele me mostrou. Basta dizerque me deixou fisicamente mal. Não por nenhum horror que eu tenhapresenciado, mas pela culpa que senti pelo fato de ter sido eu adiversão deles, voluntariamente ou não.

Fiquei com ele menos de uma hora. Nesse breve período, minhacompreensão do mundo foi abalada em suas fundações. Tudo o que eupensava sobre a morte, sobre o espaço, sobre Deus… tudo setransformou irrevogavelmente. Nesse breve período, passei aacreditar — em termos bastante seguros — em algo que me teriasoado insano uma hora antes:

Vampiros existem.

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Não dormi por uma semana — primeiro, de pavor; depois, deexcitação. Ficava até tarde na loja todas as noites, debruçado sobre oslivros e as cartas de Abraham Lincoln. Verificando as incríveisalegações contrárias aos “fatos” decantados pelas biografias deLincoln. Cobri as paredes do porão com cópias e velhas fotografias.Linhas do tempo. Árvores genealógicas. Escrevia até o amanhecer.

Nos primeiros dois meses, minha mulher ficou preocupada. Nosdois meses seguintes, ficou desconfiada. No sexto mês, nos separamos.Temi pela minha segurança. Dos meus filhos. Pela minha sanidade. Eutinha muitas perguntas, mas Henry não apareceu mais. Por fim, tomeicoragem de entrevistar os onze “indivíduos” da lista dele. Algunsforam meramente relutantes. Outros, hostis. Mas com a ajuda deles(mesmo que sob resmungos), lentamente comecei a costurar a históriaoculta dos vampiros dos Estados Unidos. Seu papel no nascimento, nocrescimento e na iminência de morte de nosso país. E do único homemque salvou esse país da tirania deles.

Ao longo de 17 meses, sacrifiquei tudo em nome daqueles dezlivros encadernados em couro. Aquele maço de cartas bem preso porum elástico vermelho. De certa forma, foram os melhores meses deminha vida. Toda manhã eu acordava no colchão inflável do porão daloja com um propósito. Sabendo que fazia algo verdadeiramenteimportante, mesmo que estivesse completa e desesperadamentesozinho. Mesmo que eu viesse a enlouquecer.

Vampiros existem. E Abraham Lincoln foi um dos maiorescaçadores de vampiros de seu tempo. Seu diário — que ele começouaos 12 anos e continuou até o dia de seu assassinato — é umdocumento ao mesmo tempo chocante, comovente e revolucionário.Um documento que lança luzes sobre diversos acontecimentosseminais da história norte-americana e agrega imensa complexidade àfigura de um homem já considerado complexo como poucos.

Existem mais de 15 mil livros sobre Lincoln. Sua infância. Suasaúde mental. Sua sexualidade. Suas opiniões sobre raça, religião e

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disputas judiciais. A maioria contém um bocado de verdade. Algunssugerem a existência de um “diário secreto” e “uma obsessão pelooculto”. Contudo, nenhum deles contém uma única palavra sobre a lutacentral de sua vida. Uma luta que acabaria desaguando nos campos debatalha da Guerra Civil.

A verdade é que o imponente mito de Abraham, o Honesto,arraigado nas lembranças de nossos primeiros dias na escola, éessencialmente falso. Nada além de uma colcha de retalhos de meiasverdades e omissões.

O que vem a seguir quase arruinou minha vida.O que vem a seguir, enfim, é a verdade.

— Seth Grahame-SmithRhinebeck, Nova York

Janeiro de 2010

1 Não era esse o nome que ele usava na época. Por uma questão de coerência, vou me referir a ele por seu nome verdadeiro ao longo de todo o livro, inclusive aqui.

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MENINO

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UM

Criança excepcionalNeste mundo infeliz, todos experimentam a tristeza; e, para osjovens, essa experiência se mescla à mais amarga agonia, porpegá-los desprevenidos.

— Abraham Lincoln, em carta a Fanny McCullogh23 de dezembro de 1862

I

O menino estava agachado fazia tanto tempo que suas pernas haviamficado dormentes — ele, no entanto, não ousava se mexer agora. Poisali, numa pequena clareira da floresta congelada, havia criaturas queele há muito esperava ver. Criaturas que ele havia sido enviado paramatar. Mordeu o braço para evitar que seus dentes batessem e fezpontaria com o rifle de pederneira de seu pai exatamente como lhehaviam ensinado. No corpo, lembrou-se ele. No corpo, não nopescoço. Tranquilamente, com cuidado, ele puxou o cão para trás eapontou o cano para o alvo, um macho imenso que ficara para trás dobando. Décadas depois, o menino se lembraria do que aconteceu emseguida:

Eu hesitei. Não por um conflito de consciência, mas pormedo que meu rifle estivesse muito molhado, e assim não fossedisparar. No entanto, esse medo se provou infundado, poisquando puxei o gatilho, a coronha bateu com um tranco tão forte

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em meu ombro que eu caí de costas.

Os perus se espalharam em todas as direções enquanto AbrahamLincoln, aos 7 anos, levantou-se do chão coberto de neve. Pondo-seem pé, ele levou os dedos até o estranho calor que sentiu no queixo.“Eu mordi o lábio”, escreveu ele. “Mas não cheguei a gritar. Estavadesesperado para saber se havia acertado o pobre-diabo ou não.”

Ele acertara. O macho imenso batia atabalhoadamente as asas,tentando se erguer através da neve em pequenos círculos. Abeobservou a distância, “receando que ele pudesse conseguir se levantare me fazer em pedaços”. O bater de asas; o arrastar das penas pelaneve. Eram os únicos sons do mundo. Aliados ao som dos pés de Abe,que tomou coragem e se aproximou. As asas batiam com menos forçaagora.

Estava morrendo.Ele havia acertado bem no pescoço. A cabeça pendia num ângulo

pouco natural — arrastada pelo chão enquanto o pássaro continuava ase remexer. No corpo, não no pescoço. A cada batida do coração, osangue brotava da ferida e caía na neve, onde se mesclava às gotasescuras sangrando do lábio mordido de Abe e às lágrimas que jácomeçavam a escorrer por seu rosto.

Ele arfava em busca de ar, mas não conseguia, e seus olhosexibiam uma espécie de medo que eu nunca vira antes. Fiquei depé sobre o miserável pássaro durante o que me pareceu um ano,implorando a Deus que apaziguasse suas asas. Suplicando porSeu perdão por ter prejudicado uma criatura que não me fizeramal algum; nem representava nenhuma ameaça à minha pessoa ouà minha prosperidade. Por fim ele parou, e, tomando coragem,arrastei-o por mais de um quilômetro de floresta e depositei-oaos pés de minha mãe — minha cabeça baixa de modo a esconderas lágrimas.

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Abraham Lincoln jamais ceifaria outra vida. E, no entanto, setornaria um dos maiores assassinos do século XIX.

O menino choroso não pregou o olho aquela noite. “Só conseguiapensar na injustiça que fizera para com outra criatura vivente e nomedo que vira em seus olhos enquanto a promessa de vida se esvaía.”Abe se recusou a comer aquilo que havia matado e alimentou-sepraticamente só de pão, enquanto a mãe, o pai e a irmã mais velhadeixaram a carcaça limpa nas duas semanas seguintes. Não existemregistros da reação deles a essa greve de fome, mas deve ter sido vistacomo uma excentricidade. Afinal, passar voluntariamente sem comida,como uma questão de princípio, era uma opção notável para qualquerpessoa naquela época — especialmente para um menino que havianascido e fora criado na fronteira norte-americana.

Mas, enfim, Abe Lincoln sempre fora diferente.A América ainda vivia sua infância quando o futuro presidente

nasceu, no dia 12 de fevereiro de 1809 — meros trinta anos após aassinatura da Declaração de Independência. Muitos dos gigantes daRevolução Americana — Robert Treat Paine, Benjamin Rush eSamuel Chase — ainda estavam vivos. John Adams e ThomasJefferson só retomariam sua tumultuada amizade dali a três anos, e sóviriam a morrer 17 anos depois — incrivelmente, no mesmo dia.Quatro de julho.

Essas primeiras décadas norte-americanas foram tempos decrescimento e oportunidades aparentemente ilimitados. Na época emque Abe Lincoln nasceu, os moradores de Boston e de Filadélfiahaviam visto suas cidades duplicarem de tamanho em menos de vinteanos. A população de Nova York triplicara durante o mesmo período.As cidades estavam se tornando mais agitadas, mais prósperas. “Paracada sitiante, há dois comerciantes de miudezas; para cada ferreiro,um teatro de ópera”, brincava Washington Irving em seu jornal nova-iorquino, o Salmagundi.

Porém, conforme as cidades se tornavam mais populosas,

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tornavam-se também mais perigosas. Como seus equivalentes emLondres, Paris e Roma, os norte-americanos urbanos passaram acontar com um certo índice de crimes. Roubos eram de longe asofensas mais comuns. Sem os arquivos de impressões digitais quetemer, os ladrões tinham como limites apenas a própria consciência ea própria astúcia. Os assaltos quase não apareciam mencionados nosjornais locais, a não ser que a vítima fosse uma pessoa importante.

Existe uma história sobre uma viúva idosa chamada AgnesPendel Brown, que vivia sozinha com seu antigo mordomo (quase tãoidoso quanto ela e surdo como uma porta) em uma mansão de trêsandares na Amsterdam Avenue. Na noite 2 de dezembro de 1799,Agnes e seu mordomo haviam se recolhido aos seus aposentos — eleno primeiro andar; ela no terceiro. Quando acordaram na manhãseguinte, toda a mobília, todas as obras de arte, cada vestido, peça delouça e candelabro (incluindo as velas) haviam sumido. As únicascoisas que os gatunos de mãos leves haviam deixado eram as camasem que Agnes e seu mordomo dormiam.

Havia também um ou outro assassinato. Antes da Guerra daRevolução, os homicídios eram extraordinariamente raros nas cidadesnorte-americanas (é impossível fornecer números precisos, mas umapesquisa em três jornais de Boston entre 1775 e 1780 menciona umtotal de apenas 11 casos, dez dos quais foram prontamentesolucionados). A maioria desses casos eram os chamados assassinatospor honra, como duelos ou querelas familiares. Na maior parte deles,nenhuma pena era aplicada. As leis do início do século XIX eramvagas e, sem que se pudesse falar então em efetivos regulares de forçapolicial, difusamente observadas. Vale mencionar que matar umescravo não era considerado assassinato, independentemente dascircunstâncias. Tratava-se de mera “destruição de propriedade”.

Imediatamente depois que conquistou sua independência, algoestranho começou a acontecer nos Estados Unidos. O índice deassassinatos nas cidades começou a crescer drasticamente, quase da

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noite para o dia. Diferentemente dos assassinatos por honra dos anosanteriores, esses assassinatos pareciam aleatórios; sem sentido. Entre1802 e 1807, houve o inacreditável número de 204 homicídios semsolução apenas na cidade de Nova York. Homicídios sem testemunhas,sem motivo e, muitas vezes, sem uma causa mortis definida. Como osinvestigadores (muitos dos quais eram voluntários sem treinamentoalgum) não faziam registros dos casos, as únicas pistas sobreviventesnos chegaram a partir de um punhado de apagados artigos de jornal.Um deles, em particular, do New York Spectator , captou o pânico quetomara conta da cidade em julho de 1806.

Um certo senhor Stokes, morador do número 210 da Tenth Street, encontrou a pobre vítima, uma mulher mulata, enquanto fazia sua caminhadamatinal. O cavalheiro observou que os olhos dela estavam arregalados e seu corpo, deveras enrijecido, como se houvesse secado ao sol. Um policialchamado McLeay informou-me de que não foi encontrado sangue nas imediações da pobre alma nem em suas roupas, e que a única ferida era umadiscreta escoriação no pulso. Esta é a quadragésima segunda vítima a ter semelhante fim este ano. O prefeito, o honorável Dewitt Clinton, respeitosamenteaconselha os cidadãos de bem a intensificar a vigilância até que o patife responsável seja capturado. Mulheres e crianças devem caminhar sempre nacompanhia de um cavalheiro, e os cavalheiros deverão caminhar em duplas depois do anoitecer.

A cena era misteriosamente semelhante a uma dúzia de outrasrelatadas naquele verão. Sem trauma. Sem sangue. Olhos arregalados ecorpo rígido. O rosto, uma máscara de terror. Um padrão surgiu entreas vítimas: eram todos negros livres, vagabundos, prostitutas,viajantes e deficientes mentais — pessoas com pouco ou nenhumvínculo com a cidade, sem família, e cujas mortes dificilmentedespertariam a ira das massas em busca de justiça. E Nova York nãoera a única cidade com esses problemas. Artigos semelhantes enchiamas páginas dos jornais de Boston e da Filadélfia naquele verão, erumores similares enchiam as bocas dessas populações em pânico.Falava-se de loucos sombrios. De espiões estrangeiros.

Falava-se até em vampiros.

II

Sinking Springs Farm ficava tão longe de Nova York quanto erapossível nos Estados Unidos do início do século XIX. Apesar do

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nome sugerir uma fazenda com uma fonte de água, a propriedade de300 acres era basicamente coberta de florestas — e o terreno, cheiode pedras típico do leste do Kentucky, tornava as perspectivas de boascolheitas, na melhor das hipóteses, improváveis. Thomas Lincoln, aos31 anos de idade, havia comprado a terra com uma nota promissóriade 200 dólares um mês antes de Abe nascer. Carpinteiro de profissão,Thomas rapidamente construiu uma cabana de um único cômodo emsua nova propriedade. Media cerca de 5,5 metros por 6 metros e tinhaum chão de terra batida que era frio o ano inteiro. Quando chovia, aágua pingava através do telhado enchendo baldes. Quando o ventouivava, a ventania abria caminho em meio às inúmeras rachaduras nasparedes. Foi nessas circunstâncias humildes, numa estranhamenteamena manhã de domingo, que o décimo sexto presidente dos EstadosUnidos veio ao mundo. Dizem que ele não chorou ao nascer, masapenas encarou sua mãe, inquisitivamente, e depois sorriu para ela.

Abe não se lembraria de Sinking Springs. Quando ele tinha 2anos, houve uma disputa sobre a posse da terra, então Thomas mudou-se com a família para menos de vinte quilômetros ao norte dali, para amenor e mais fértil Knob Creek Farm. Apesar do solo muito maispropício, Thomas — que poderia ter conseguido uma vida melhorvendendo milho e grãos para os sitiantes vizinhos — cultivou menosde um acre de terra.

Ele era um homem analfabeto, indolente, que só aprendeu aassinar o próprio nome depois de instruído por minha mãe. Nãotinha uma gota de ambição dentro de si… nem o mínimo interesseem melhorar de vida, nem em proporcionar à sua família mais doque o mínimo necessário. Ele nunca plantou uma única fileira amais do que o necessário para evitar que tivéssemos a barrigadoendo de fome, nem tentou ganhar uma moeda além do queprecisava para cobrir nossos corpos com as roupas mais simples.

Era uma avaliação excessivamente dura, escrita por um Abe de

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41 anos no dia do enterro de seu pai (ao qual ele preferira nãocomparecer — e pelo que talvez sentisse uma pontada de remorso).Enquanto ninguém jamais poderia acusar Thomas Lincoln de ser“ambicioso”, ele aparentemente fora um provedor confiável, se nãogeneroso. O fato de nunca ter abandonado sua família em tempos dedesesperadora dificuldade e tristeza, nem ter deixado a fronteira embusca dos confortos da vida urbana (como muitos de seuscontemporâneos fizeram), depõe a favor de seu caráter. E mesmo nãotendo sempre compreendido ou aprovado os interesses de seu filho,sempre os permitiu (afinal). Contudo, Abe jamais seria capaz deperdoá-lo pela tragédia que transformaria a vida dos dois.

Típica de seu tempo, a vida de Thomas Lincoln fora uma batalhacontínua e uma tragédia frequente. Nascido em 1778, mudou-se daVirgínia para o Kentucky com seu pai, Abraham, e sua mãe,Bathsheba, quando ainda era uma criança. Aos 8 anos, Thomas viu opai ser assassinado diante de seus olhos. Era primavera, e o velhoAbraham andava ocupado lavrando a terra para ser semeada, “quandofoi surpreendido por um grupo de selvagens shawnees”. Thomas ficouobservando, impotente, enquanto seu pai recebia bordoadas até amorte — sua garganta foi cortada e o escalpo, arrancado. O que teriamotivado o ataque — se é que algo o motivou —, e por que suaprópria vida fora poupada, ele não saberia dizer. Quaisquer quetenham sido os motivos, a vida nunca mais seria a mesma para ThomasLincoln. Sem herança, foi deixado a vagar de cidade em cidade, dandoduro em uma série infindável de estranhos afazeres. Aprendeu o ofícioda carpintaria, serviu de guarda penitenciário e conduziu barcas pelosrios Mississippi e Sangamon. Derrubou árvores, lavrou campos efrequentou igrejas sempre que possível. Não há evidências de que umdia tenha posto os pés em uma escola.

Esta vida profundamente desprovida de notoriedade certamenteteria escapado à atenção da história não houvesse Thomas seaventurado em Elizabethtown um dia quando tinha seus 28 e, poracaso, posto os olhos na jovem filha de um sitiante do Kentucky. O

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casamento, no dia 12 de junho de 1806, transformaria a história de ummodo que nenhum dos dois jamais sonhara.

Ao que tudo indica, Nancy Hanks era uma mulher radiante,delicada e bonita, que possuía uma “notável” habilidade com aspalavras (mas que raramente falava entre pessoas recém-conhecidaspor conta de uma dolorosa timidez). Ela sabia ler e escrever, havendodesfrutado a educação formal que seu filho jamais receberia. Nancyera uma mulher talentosa e, embora os livros fossem artigos quedificilmente chegavam ao sertão do Kentucky, sempre conseguia terpelo menos um volume emprestado ou pedido para aqueles rarosmomentos em que dava por encerradas as tarefas do dia. Começandoquando ele era pouco mais que uma criança de colo, ela leria paraAbe tudo o que lhe chegasse às mãos: o Cândido, de Voltaire, oRobinson Crusoé, de Defoe, poesia de Keats e Byron. Mas era aBíblia que o pequeno Abraham amava acima de todos os outros livros.O garotinho atento sentava-se no colo da mãe, fascinado com ashistórias fantásticas do Velho Testamento: Davi e Golias, a arca deNoé, as pragas do Egito. Ele adorava especialmente a história de Jó, ohomem virtuoso de quem era tudo tirado, todas as maldições, tristezase traições abatiam-se sobre ele, e, no entanto, ele continuava a amar ea louvar seu Deus. “Ele podia ter sido padre”, escreveria anos maistarde um amigo de infância em um panfleto eleitoral, “se a vida tivessesido mais bondosa com ele.”

Knob Creek Farm era um lugar duro para se viver no início doséculo XIX. Na primavera, as frequentes tempestades transbordavam oribeirão e transformavam as plantações em campos de lama até acintura. No inverno, todas as cores desapareciam da paisagemcongelada e as árvores viravam dedos retorcidos que se chocavam,trêmulos, uns contra os outros ao vento. Seria dali que Abe guardariamuitas de suas primeiras lembranças: correr atrás da irmã mais velha,Sarah, através de acres de faias azuis e castanheiras; agarrar-se nodorso de um pônei para uma suave cavalgada de verão; rachar lenha

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com um machadinho ao lado do pai. Ali, também, ele experimentaria aprimeira das muitas devastadoras perdas de sua vida.

Quando Abe tinha 3 anos, Nancy Lincoln deu à luz um meninobatizado de Thomas, como o pai. Filhos homens eram uma duplabênção para famílias da fronteira, e o pai sem dúvida ansiava pelo diaem que teria dois rapazes fortes para dividir o trabalho com ele. Masesses sonhos durariam pouco. O bebê morreu com apenas três dias devida. Abe escreveria sobre isso vinte anos depois, antes de ele mesmovir a enterrar dois de seus próprios filhos:

Quanto ao meu próprio luto, não me lembro. Talvez eu fossejovem demais para compreender o significado dairreversibilidade daquilo. Contudo, jamais esquecerei o tormentode minha mãe e de meu pai. Descrevê-lo seria um exercício defutilidade. Trata-se de um tipo de sofrimento ao qual as palavrasnão podem fazer justiça. Só posso dizer o seguinte: suspeito queseja uma angústia da qual uma pessoa nunca se recupera. Umamorte em vida.

É impossível saber o que matou Thomas Lincoln Júnior. Ascausas comuns variam da desidratação à pneumonia e à fragilidade nonascimento. Anomalias congênitas e cromossômicas estavam há maisde um século de serem conhecidas e diagnosticadas. Mesmo nasmelhores condições, a mortalidade infantil era de 10% no início doséculo XIX.

O pai construiu um pequeno caixão e enterrou seu filho perto dacabana. Hoje não existe sinal algum de sepultura. Nancy se recompôse se dedicou aos filhos que lhe restavam — especialmente a Abe. Elaencorajou sua curiosidade insaciável, seu amor inato por ouvirhistórias, aprender nomes e fatos e recitá-los depois incansavelmente.Mesmo com as objeções do marido, ela passou a ensinar a Abe comoler e escrever antes que ele completasse 5 anos. “Meu pai não via autilidade dos livros”, ele se recordaria anos mais tarde, “senão para

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queimá-los quando a lenha estava molhada.” Embora não existamregistros dos sentimentos dela, Nancy Lincoln deve ter sentido que seufilho era talentoso. Certamente estava decidida a vê-lo encaminhadopara um futuro melhor do que ela própria e seu marido podiamoferecer.

A velha trilha do rio Cumberland atravessava Knob Creek Farm.Era uma espécie de estrada, a via principal entre Louisville eNashville, e os tipos mais variados passavam diariamente por ali nasduas direções. O pequeno Abe, aos 5 anos, sentava-se na cerca porhoras e horas, dando risada do tropeiro, que levava uma carroça demelaço e sempre xingava suas mulas, ou acenando para o carteiro quepassava a galope em seu cavalo. Eventualmente ele via escravossendo levados para leilão.

Lembro-me de ter visto uma charrete passar, cheia denegros. Havia muitos. Todas mulheres, todas de idades variadas.Estavam (…) algemadas pelo pulso e agrilhoadas juntas no pisoda charrete, apenas com um pouco de feno solto para amorteceros solavancos da estrada ou um cobertor para protegê-las do friodo inverno. Os condutores, naturalmente, sentavam-se nos bancosacolchoados da frente, todos cobertos de lã. Meus olhos cruzaramcom os de uma menina negra, cuja idade regulava com a minha.Talvez uns 5 ou 6 anos. Admito que não fui capaz de olhar paraela mais do que um momento e depois virei os olhos — tamanhaera a tristeza em seu semblante.

Como batista, Thomas Lincoln fora criado para acreditar que aescravidão era pecado. Esta seria uma das poucas contribuiçõesdefinitivas que ele teria na formação do caráter de seu filho.

Knob Creek tornou-se um lugar onde viajantes cansados da velhatrilha do rio Cumberland podiam passar a noite. Sarah fazia as camaspara os hóspedes em uma das construções externas da propriedade(que consistia em uma cabana, um depósito e um celeiro), e Nancy

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servia uma refeição quente ao anoitecer. Os Lincoln nunca pediampagamento aos hóspedes que passavam a noite, embora a maioriafizesse contribuições — em dinheiro ou, com mais frequência, embens, como grãos, açúcar e tabaco. Depois do jantar as mulheres seretiravam, e os homens ficavam bebendo uísque e fumando cachimbo.Abe ficava acordado em sua cama no andar de cima, ouvindo seu paientreter os hóspedes com um estoque que parecia inesgotável decasos, histórias assustadoras dos primeiros colonos e da Guerra daRevolução, anedotas bem-humoradas e alegorias, bem como comhistórias verídicas (ou parcialmente verídicas) de seus própriostempos de andarilho.

Meu pai podia deixar a desejar em alguns aspectos, masnisso ele era um mestre. Noite após noite, eu ficava maravilhadocom seu poder de cativar a atenção embevecida dos ouvintes. Eleera capaz de contar uma história com tantos detalhes, tantosfloreios, que ao final os homens seriam capazes de jurar que eramsuas próprias lembranças, e não apenas uma história inventada.Eu (…) relutava em dormir até depois da meia-noite, tentando melembrar de cada palavra e tentando encontrar um modo de contara mesma história para meus jovens amigos de um jeito que elespudessem entender.

Como seu pai, Abe possuía um dom natural para contar históriase viria a dominar essa arte ao crescer. Recontava as histórias maissimples que saíam nos jornais de Louisville ou Nashville, bem comoboatos ouvidos na estrada. “Era comum ouvir sobre o mesmo bêbadocaindo na mesma vala três vezes por semana, em três vozesdiferentes.” De vez em quando, no entanto, um viajante chegavatrazendo histórias de outro tipo. Abe se lembra de como tremiaembaixo das cobertas quando uma noite um imigrante francêsdescrevera a loucura de Paris na década de 1780.

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As pessoas começaram a chamá-la de la ville des morts,disse o francês. A Cidade dos Mortos. Toda noite eram novosgritos, e a cada manhã, novos corpos pálidos, de olhosarregalados, nas ruas, ou vítimas inchadas sendo erguidas dosesgotos, que ficavam vermelhos de sangue. Eram restos humanos,homens, mulheres e crianças. Vítimas inocentes sem nenhumvínculo comum além da pobreza, e ninguém na França tinhaqualquer dúvida quanto à identidade dos assassinos. “Eram lesvampires!”, disse ele. “Nós os vimos com nossos própriosolhos!” Os vampiros, contou-nos ele, haviam sido a “maldiçãosilenciosa” de Paris durante séculos. Mas agora, com tanta fomee doenças (…), tantos pobres mendigando, amontoados noscortiços (…) eles vinham ficando cada vez mais ousados. Cadavez mais famintos. “E, no entanto, Louis não fez nada! Ele e seusaristocrates pompeux não fizeram nada enquanto os vampiros sebanqueteavam de seus súditos famintos, até que um dia finalmenteos súditos não toleraram mais.”

Naturalmente, a história do francês, como todas as histórias devampiros, foi considerada absurda, um mito criado para assustar ascrianças. Ainda assim, Abe achou-a infinitamente fascinante. Elepassava horas sonhando com suas próprias histórias de “imortaisalados”, com suas “presas brancas manchadas de sangue, esperandonas trevas pela próxima alma sem sorte que passaria por seucaminho”. Ele se empolgava testando a eficácia dessas histórias com airmã, que “se assustava mais facilmente do que um camundongo, masas achava divertidas mesmo assim”.

Thomas, por outro lado, logo ralhava com Abe se o pegavacontando histórias de vampiros. Essas histórias eram “bobagens decriança” e não tinham cabimento nas conversas educadas de adultos.

III

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Em 1816, outra disputa de terra pôs fim à estada dos Lincoln em KnobCreek. Propriedade era um conceito obscuro na fronteira, commúltiplas escrituras feitas para o mesmo terreno, e registrosaparecendo e desaparecendo misteriosamente (dependendo dotamanho da propina). Em vez de enfrentar uma custosa disputa legal,Thomas desarraigou sua família pela segunda vez quando Abe tinha 7anos, levando-os mais para oeste, através do rio Ohio até Indiana. Ali,aparentemente não tendo aprendido nada com as disputas de terraanteriores, Thomas simplesmente se ajeitou em um terreno de 160acres em uma região coberta por florestas conhecida como LittlePigeon Creek, próximo de onde hoje fica Gentryville. A decisão dedeixar o Kentucky foi tanto prática quanto moral. Prática, pois haviamuita terra barata depois que os índios foram expulsos após a Guerrade 1812. Moral porque Thomas era um abolicionista e Indiana era umterritório livre.

Comparada às propriedades de Sinking Springs e Knob Creek, onovo lar dos Lincoln era bastante selvagem — cercado pela “matafechada”, onde ursos e linces rondavam sem cercas ou medo doshomens. Os primeiros meses ali foram passados em um alpendreconstruído às pressas, grande o bastante para quatro pessoas e abertoàs intempéries de um dos lados. O frio cortante daquele primeiroinverno em Indiana deve ter sido insuportável.

Little Pigeon Creek era um lugar afastado, mas nada ermo. Haviaoito ou nove famílias a cerca de um quilômetro da casa dos Lincoln,muitas delas também oriundas do Kentucky. “Mais de uma dúzia demeninos da minha idade moravam a uma curta caminhada de casa. Nós(…) formamos uma milícia e promovemos uma campanha detravessuras que até hoje é comentada no sul de Indiana.” Mas acomunidade crescente era mais do que uma reserva de criançasimpossíveis. Como era comum na fronteira, as famílias juntavam seusrecursos e talentos para aumentar suas chances de sobrevivência,plantando e colhendo coletivamente, trocando bens e trabalho eoferecendo ajuda nos momentos de doença ou dificuldades.

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Considerado o melhor carpinteiro da região, Thomas raramente ficavasem trabalho. Uma de suas primeiras contribuições foi uma minúsculaescola, que Abe frequentaria esporadicamente nos anos seguintes.Durante sua primeira campanha presidencial, ele escreveria uma brevebiografia, na qual admitiu que todo o tempo que passara na escola“daria menos de um ano no total”. Mesmo assim, era óbvio, pelomenos para uma de suas primeiras professoras, Azel Waters Dorsey,que Abraham Lincoln era “uma criança excepcional”.

Depois do fatídico encontro com o peru, Abe anunciou que nãocaçaria nunca mais. Como castigo, Thomas colocou-o para racharlenha — achando que o esforço físico pudesse forçá-lo a reconsiderarsua decisão. Embora Abe mal conseguisse erguer o machado acima dacintura, ele passava horas desajeitadamente rachando e empilhandopedaços de madeira.

Acabou que eu mal conseguia dizer onde terminava omachado e começava o meu braço. Depois de algum tempo, ocabo simplesmente escorregava entre meus dedos, e meus braçostravavam ao lado do corpo como um par de cortinas. Se meu paime visse descansando assim, ele vinha fazendo um escândalo,pegava o machado do chão, e em um minuto rachava uma dúziade toras para me envergonhar e me fazer voltar ao trabalho. Eucontinuei do mesmo jeito, no entanto, e a cada dia que passava,meus braços foram ficando um pouco mais fortes.

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FIG. 23A. — O JOVEM ABE ESCREVENDO EM SEU DIÁRIO, À LUZ DO FOGO, AO LADO DE ALGUMAS DE SUAS PRIMEIRASFERRAMENTAS DE CAÇAR VAMPIROS.

Logo, Abe já conseguia rachar mais lenha em um minuto do queseu pai.

Dois anos haviam se passado desde aqueles primeiros meses noalpendre. A família agora vivia em uma cabana pequena e resistente,com uma lareira de pedras, telhado e assoalho de madeira elevado dochão, o que fazia com que a casa ficasse aquecida e seca no inverno.Como sempre, Thomas trabalhava apenas o bastante para dar roupa ecomida à família. A tia-avó e o tio-avô de Nancy, Tom e ElizabethSparrow, haviam vindo do Kentucky para morar em um dos cômodosexternos da propriedade e para ajudar no trabalho. As coisas iam bem.“Desde então aprendi a desconfiar da tranquilidade”, escreveu Abeem 1852, “porque é sempre, sempre o prelúdio de uma grandecalamidade.”

Em uma noite de setembro de 1818, Abe acordou assustado.Sentou-se na cama e cobriu o rosto com as mãos, como se houvessealguém em cima dele, ameaçando bater com um porrete em sua cabeça.

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Ninguém bateu. Percebendo que o perigo era imaginário, ele baixou asmãos, tomou fôlego e olhou ao redor. Todos estavam dormindo. Ajulgar pelas brasas na lareira, deviam ser 2 ou 3 horas da manhã.

Abe ousou sair de casa usando apenas seu pijama, apesar de ooutono haver chegado mais cedo naquele ano. Caminhou até o vulto dobanheiro externo, ainda meio sonolento, fechou a porta atrás de si e sesentou. Conforme seus olhos se acostumaram, o luar que atravessavaas pranchas de madeira pareceu claro o bastante para ler. Sem ter umlivro para passar o tempo, Abe passou as mãos pelos finos raios deluz, examinando os padrões que formavam em seus dedos.

Alguém estava conversando do lado de fora.Abe prendeu a respiração conforme os passos de dois homens se

aproximaram, depois pararam. Devem estar em frente à cabana. Umdeles falou num sussurro irritado. Embora não conseguisse entender aspalavras, Abe sabia que a voz não era de ninguém de Little PigeonCreek. “O sotaque era inglês, e o tom, extremamente agudo.” Oestranho falou alto por um momento, então parou, esperando umaresposta. Veio a resposta. Desta vez a voz era muito familiar. Era avoz de Thomas Lincoln.

Encostei o olho em um dos espaços entre as tábuas. Era defato meu pai, e ele estava com alguém que eu nunca tinha vistoantes. O estranho era um homem minúsculo, vestido com asroupas mais finas que eu já vira. Ele não tinha o braço direitoabaixo do cotovelo — a manga ficava presa diretamente aoombro. Meu pai, embora fosse claramente mais alto, pareciaacovardado em sua companhia.

Abe esforçou-se para ouvir a conversa, mas estavam longedemais. Ele ficou observando, tentando ao máximo interpretar seusgestos, seus lábios, até que…

Meu pai, de repente preocupado em não nos acordar, pediu

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que seu companheiro se afastasse da cabana. Prendi a respiraçãoconforme eles foram se aproximando, certo de que seriadescoberto pelas batidas aceleradas de meu coração. Elespararam a poucos metros de onde eu estava sentado. Foi assimque consegui entreouvir o final da discussão. “Eu não possopagar”, disse meu pai. O estranho parou calado e desapontado.

Por fim, o estranho respondeu: “Então vou fazer você pagar deoutra maneira.”

IV

Tom e Elizabeth Sparrow estavam morrendo. Durante três dias enoites inteiros, Nancy cuidou de sua tia-avó e de seu tio-avô comfebres altíssimas, delírios e cãibras tão fortes que fizeram Tom, demais de 1,80 metro de altura, chorar como uma criança. Abe e Sarahficaram grudados na mãe, ajudando-a a manter as compressas úmidase os lençóis limpos, enquanto rezavam por uma recuperação milagrosaque todos sabiam, lá no fundo, que não viria. Os pais já tinham vistoaquilo antes. Chamavam de “doença do leite”, um lentoenvenenamento por beber leite contaminado. Era intratável e fatal.Abe, que nunca antes vira alguém morrer, esperava que Deus operdoasse por estar um pouco curioso para ver acontecer.

Ele não ousava confrontar seu pai sobre a cena que havia vistouma semana antes. Thomas tornara-se especialmente distante (epraticamente ausente) desde aquela noite e pareceu não querer tomarparte na vigília junto ao leito de Tom e Elizabeth.

Eles morreram praticamente juntos — ele primeiro; ela algumashoras depois. Abe ficou secretamente desapontado. De certa forma,ele esperava um último e desesperado suspiro de falta de ar, ou ummonólogo comovente, como nos livros que agora ele lia sozinho à

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noite. Em vez disso, Tom e Elizabeth simplesmente entraram em coma,ficaram imóveis por horas seguidas, depois morreram. ThomasLincoln, sem uma palavra de condolência à esposa, começou aconstruir um par de caixões com tábuas e alças de madeira na manhãseguinte. Os Sparrow já estavam debaixo da terra na hora do jantar.

Meu pai jamais gostara muito da tia e do tio, e eles nãoforam os primeiros parentes que ele enterrou. Mas eu nunca ohavia visto tão calado. Ele parecia quase perdido em seuspensamentos. Inquieto.

Quatro dias depois, Nancy Lincoln começou a se sentir mal. Aprincípio, ela insistiu que não era nada, só uma dor de cabeça, semdúvida pelo nervoso passado com a morte de Tom e Elizabeth. Noentanto, Thomas mandou vir o médico mais próximo, que morava aquase 50 quilômetros dali. Quando o médico chegou, pouco antes dosol nascer no dia seguinte, Nancy delirava de febre.

Minha irmã e eu nos ajoelhamos ao lado dela, tremendo demedo e sono. Meu pai sentou-se numa cadeira enquanto o médicoa examinava. Eu sabia que ela estava morrendo. Sabia que Deusestava me castigando. Castigando pela curiosidade sobre a morteda tia e do tio. Castigando por eu ter matado uma criatura que nãome fizera mal algum. Eu era o único responsável. Quando omédico terminou, pediu para falar com meu pai sozinho lá fora.Quando eles voltaram, meu pai não conseguiu conter as lágrimas.Ninguém conseguiu.

Naquela noite, Abe sentou-se sozinho ao lado da mãe. Sarahhavia adormecido junto ao fogo, e Thomas cochilava por um momentoem sua cadeira. Nancy finalmente entrara em coma. Ela havia gritadopor horas — primeiro no delírio, depois de dor. A certa altura,Thomas e o médico amarraram-na enquanto ela gritava que estava

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“olhando o diabo nos olhos”.Abe tirou a compressa de sua testa e mergulhou-a na bacia de

água no chão. Logo precisaria acender outra vela. A que estava aolado da cama já começava a bruxulear. Quando ele retirou acompressa e a torceu, sentiu a mão da mãe agarrar seu pulso.

— Meu garotinho — sussurrou Nancy.

A transformação era total. Seu rosto estava calmo; sua voz,delicada e estranha. Havia algo como uma luz em seus olhosoutra vez. Meu coração pulou dentro do peito. Só podia ser omilagre pelo qual eu rezara tão fervorosamente. Ela olhou paramim e sorriu. “Meu garotinho”, sussurrou de novo. “Viva.” Aslágrimas começaram a escorrer por meu rosto. Pensei se aquilonão seria só um sonho cruel. “Mãe?”, chamei. “Viva”, repetiuela. Chorei. Deus havia me perdoado. Deus a devolvera paramim. Ela sorriu outra vez. Senti sua mão se soltar do meu pulso efiquei observando seus olhos se fecharem. “Mamãe?” Mais umavez, agora como pouco mais que um suspiro, ela repetiu: “Viva.”Ela nunca mais voltou a abrir os olhos.

Nancy Hanks Lincoln morreu no dia 5 de outubro de 1818, aos 34anos. Thomas enterrou-a na colina atrás da cabana.

Abe estava sozinho no mundo.Sua mãe era sua alma gêmea. Ela lhe dera amor e estímulo desde

o dia em que ele nascera. Lera para ele todas aquelas noites, sempresegurando o livro com a mão esquerda e delicadamente passando odedo por seu cabelo escuro com a direita até que ele adormecesse emseu colo. O rosto dela havia sido o primeiro a saudá-lo quando eleveio ao mundo. Ele não havia chorado ao nascer. Simplesmente olharapara ela e sorrira. Ela era o amor e a luz. E ela tinha ido embora. Abechorou por ela.

Assim que ela foi enterrada, Abe resolveu fugir. A ideia decontinuar em Little Pigeon Creek com sua irmã de 11 anos e seu pai

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amargurado pelo luto era mais do que ele poderia suportar. Menos de36 horas depois de sua mãe ter morrido, Abe Lincoln, aos 9 anos deidade, enfiou-se pelo sertão de Indiana, levando todos os seus parcoshaveres em um cobertor de lã. Seu plano era brilhantemente simples.Ele caminharia até o rio Ohio. Lá, pediria para tomar a barcaça edescer até o baixo Mississippi, depois chegaria a New Orleans, ondeconseguiria se engajar em algum dos inúmeros navios do porto. Talvezconseguisse chegar a Nova York ou Boston. Talvez fosse à Europa,para ver as eternas catedrais e os castelos que povoavam suaimaginação.

FIG. 12-B. — O JOVEM ABE PARADO JUNTO À SEPULTURA DE SUA MÃE EM UMA ANTIGA GRAVURA DO INÍCIO DOS ANOS1900, INTITULADA “UMA JURA DE VINGANÇA”.

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Se houve uma falha em seu plano, foi a hora da partida. Abedecidiu sair à tarde, e quando estava a cerca de 6 quilômetros de casa,o dia curto de inverno já começara a escurecer. Cercado pela naturezaselvagem, contando apenas com um cobertor de lã e um punhado decomida, Abe parou, encostou-se em uma árvore e começou a soluçar.Ele estava sozinho na escuridão e sentia saudades de um lugar que jánão existia. Sentia saudades de sua mãe. Saudades de sentir o cabeloda irmã roçando em seu rosto enquanto ele chorava no ombro dela.Para sua surpresa, viu-se com saudades até mesmo do abraço do pai.

Ouvi um choro distante na noite — um choro comprido,animal, que ecoava ao meu redor. Na hora achei que deviam seros ursos que nosso vizinho Reuben Grigsby vira perto do ribeirãohavia menos de dois dias e me achei burro por sair de casa sócom uma faca. Ouvi outro choro, depois mais outro. Pareciam semover à minha volta, e quanto mais eu ouvia, ficava cada vezmais óbvio que não eram ursos, panteras ou qualquer outroanimal que estava fazendo aquilo. Era um som diferente. Um somhumano. De repente entendi o que eu estava ouvindo. Sem meimportar de recolher minhas coisas, ergui-me num salto e corripara casa o mais rápido que meus pés conseguiam.

Eram gritos.

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DOIS

Duas históriasE tendo assim escolhido nosso caminho, sem engano e compureza de intenção, deixe-nos renovar nossa confiança em Deus eseguir em frente sem temor e com corações viris.

— Abraham Lincoln, discurso ao Congresso4 de julho de 1861

I

Se Thomas Lincoln alguma vez tentou consolar as crianças no funeralda mãe — se em algum momento ele perguntou como se sentiam oucompartilhou sua própria dor —, não há registros disso. Tudo indicaque ele passou os meses seguintes ao enterro em silêncio praticamenteabsoluto. Acordava antes do amanhecer. Fazia seu café. Comia odesjejum. Trabalhava até escurecer e (quase todos os dias) bebia atécair. A breve oração antes do jantar era a única ocasião em que Abe eSarah ouviam sua voz.

Esteja presente à nossa mesa, SenhorE aqui e em toda parte seja adorado.Tua misericórdia abençoa e nos permiteQue nos fortaleçamos para te servir.

Porém, com todos os seus defeitos, Thomas Lincoln tinha o queos antigos chamavam de bom senso. Ele sabia que a situação era

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insustentável. Sabia que não conseguiria cuidar da família sozinho.No inverno de 1819, pouco mais de um ano depois da morte de

Nancy, Thomas de repente anunciou que deixaria os filhos por “duasou três semanas” — e que quando ele voltasse, as crianças teriam umanova mãe.

Aquilo nos pegou de surpresa, pois mal o ouvíramos dizerqualquer palavra por mais de um ano e não fazíamos ideia de queele tivesse tais planos. Se já tinha alguma mulher em mente, elenão nos disse. Fiquei pensando se ele colocaria um anúncio naGazette ou se simplesmente andaria pelas ruas de Louisvillepropondo casamento para qualquer senhora desacompanhada quepassasse por ele. Nenhuma das duas coisas, confesso, teria mesurpreendido muito.

Sem que Abe e Sarah soubessem, Thomas já tinha em mentealguém em particular, uma conhecida que recentemente se tornaraviúva em Elizabethtown (o mesmo local onde pusera os olhos emNancy pela primeira vez havia cerca de 13 anos). Ele pretendiaaparecer sem avisar em sua porta, propor casamento e levá-la consigode volta para Little Pigeon Creek. Era isso. Esse era seu plano.

Para Thomas, a viagem marcou o fim de seu luto em silêncio.Para Abe, de 9 anos, e Sarah, de 11, foi a primeira vez que os doisficaram sozinhos.

À noite deixamos um candelabro aceso no meio do cômodo,nos escondemos debaixo das cobertas e fizemos uma barricadacom a cama de meu pai. Não sei do que nos protegíamos, só quenos sentimos melhor ao fazermos isso. Ficamos assim até altamadrugada, ouvindo sons que vinham de tudo à nossa volta.Animais. Vozes distantes levadas pelo vento. O estalar de umgraveto, de alguém andando em volta da cabana. Trememos demedo em nossas camas até que a vela finalmente acabou, então

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discutimos aos sussurros sobre quem deixaria a segurança dascobertas e acenderia a próxima. Quando meu pai voltou, levamosuma sova por termos queimado tantas velas em tão pouco tempo.

Thomas cumpriu a promessa. Quando voltou, chegouacompanhado de uma carroça. Dentro dela vinham todos os pertences(ou pelo menos tudo o que coubera) da recém-nomeada Sarah BushLincoln e suas três crianças: Elizabeth, de 13 anos; Matilda, de 10; eJohn, com 9 anos. Para Abe e sua irmã, a visão de uma carroça repletade móveis, relógios e roupa de mesa foi como contemplar “os tesourosde um marajá”. Para a nova senhora Lincoln, a visão daquelascrianças da fronteira, descalças e sujas, foi igualmente chocante. Osdois foram inteiramente despidos, lavados e esfregados naquelamesma noite.

Não havia tergiversar — Sarah Bush Lincoln era uma mulhersimples. Tinha os olhos fundos e o rosto estreito, o que contribuía paraque parecesse estar sempre faminta. A testa alta era aumentada pelofato de seu grosso cabelo castanho estar sempre puxado para trás,preso num coque apertado. Era magra, ossuda e sem dois dentes naarcada inferior. Mas um viúvo sem grandes perspectivas e nem umúnico tostão em seu nome não podia exigir muito. Nem uma mulhercom três crianças e contas para pagar. A união dos dois era fruto dobom e velho senso comum.

Abe havia se preparado para odiar a madrasta. Desde o momentoem que Thomas anunciara suas intenções de se casar, ele só pensavaem esquemas para desacreditá-la. Inventava defeitos para usar contraela.

Era inconveniente, portanto, que ela fosse bondosa,inspiradora e infinitamente sensível. Sensível, particularmente,ao fato de que sempre teríamos em nosso coração um lugarquerido para nossa doce mãe.

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Como Nancy antes dela, a nova senhora Lincoln notou a paixãode Abe pelos livros e resolveu estimulá-la. Entre os bens que trouxerado Kentucky estava um dicionário Webster, que se revelou uma minade ouro para o menino sem estudo. Sarah (que, como o novo marido,era analfabeta) sempre pedia que Abe lesse a Bíblia para ela depoisdo jantar. Ele adorava regalar sua família com passagens de Coríntiose Reis, com a sabedoria de Salomão e a loucura de Nabal. Sua fécrescera depois da morte da mãe. Ele gostava de imaginá-laobservando lá do céu, passando seus dedos de anjo pelos cabeloscastanhos do filho enquanto ele lia. Protegendo-o do perigo.Confortando-o nas horas de necessidade.

Abe também começou a gostar de seus novos meios-irmãos,especialmente de John, que ele apelidou de “o General”, de tanto queo menino adorava brincar de guerra.

Enquanto se eu não gostava de me levantar, John nãoconseguia era parar quieto, sempre preparando suas batalhasimaginárias e que requeriam o número certo de meninos paralutá-las. Sempre pedindo para que eu largasse o livro e mejuntasse a ele na brincadeira. Eu recusava, e ele me cercava,jurando fazer de mim capitão ou coronel. Prometendo que fariaminhas tarefas se eu me juntasse a ele. Cansando-me até que eunão tivesse escolha a não ser deixar o conforto de minha árvorede leitura e sair correndo atrás dele. Na época, eu o achavaingênuo. Hoje entendo que ele era sábio. Pois um menino precisade algo além de livros para ser um menino.

Quando Abe completou 11 anos, Sarah deu-lhe um pequenodiário encadernado em couro (contrariando Thomas). Comprara-o como dinheiro que ganhara limpando e consertando roupas para o senhorGregson, um vizinho mais velho cuja esposa havia morrido anos antes.Já era difícil chegarem livros à fronteira, mas diários eram umverdadeiro luxo — especialmente para garotinhos de família pobre.

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Pode-se imaginar a alegria de Abe ao ganhar tal presente. Ele nãoesperou muito para escrever a primeira entrada, zelosamenteregistrada em sua letra rústica no mesmo dia em que o ganhou.

Este é o diário de Abraham Lincoln.9 de fevereiro de 1820 — recebi este livro de presente no

meu aniversário de onse [sic] anos do meu pai e minha madrasta,que se chama senhora Sarah Bush Lincoln. Pertendo [sic] usá-lodiariamente para melhorar as letras.

— Abraham Lincoln

II

No início de uma noite de primavera, não muito depois de essaspalavras terem sido cuidadosamente escritas, Thomas chamou seufilho para sentar-se junto ao fogo lá fora. Ele estava bêbado. Abesabia disso antes mesmo de ser intimado a sair, sentar-se num toco ese aquecer. O pai só acendia o fogo ali fora quando queria beber atécair.

— Já contei do seu avô?Era uma das histórias favoritas dele quando bebia: a história de

como havia presenciado o brutal assassinato de seu pai quando eramenino, um acontecimento que o marcara profundamente. Infelizmente,o conforto do divã de Sigmund Freud ainda levaria algumas décadaspara chegar ali. Nesse caso, Thomas fez o que qualquer homem dafronteira de respeito e emocionalmente arruinado faria para lidar comseus problemas: fechou os olhos, encheu a cara e deixou que osproblemas secassem do lado de fora. Se havia algum consolo paraAbe, era o seguinte: seu pai tinha talento para contar histórias, o domde fazer cada detalhe ganhar vida. Imitava sotaques, imitava os gestos.Mudava o tom de sua voz e o ritmo da fala. Era um ator nato.

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Infelizmente, Abe já havia visto aquela apresentação muitas emuitas vezes. Era capaz de contar a história até com as mesmaspalavras: como seu avô (também chamado Abraham) estava lavrandoum campo perto de casa no Kentucky. Como Thomas, aos 8 anos, eseus irmãos o haviam visto trabalhar duro no calor daquela tarde demaio, revirando a terra. Como haviam ficado assustados com o gritode guerra dos shawnees quando eles saíram dos esconderijos eatacaram. Como o pequeno Thomas se escondera atrás de uma árvoree os vira bater e quebrar a cabeça do pai com um martelo de pedra.Ele os vira cortar sua garganta com um tacape. Ele sabia descrevertudo aquilo — até o rosto da avó quando o jovem Thomas contou anotícia ao chegar correndo em casa.

Mas não foi esta versão que Thomas lhe contou dessa vez.A história começava, como sempre, na onda de calor de maio de

1786. Thomas tinha 8 anos. Ele e seus dois irmãos mais velhos, Josiahe Mordecai, foram com o pai limpar um terreno de quatro acres lá namata, perto da casa que eles haviam ajudado a erguer alguns anosantes. Thomas observava o pai guiar o pequeno arado que ia raspandoatrás de Ben, um cavalo velho que estava com a família desde antes daguerra. O sol causticante tinha finalmente baixado além do horizonte,deixando o vale do rio Ohio naquela luz suave e quase azulada. Noentanto, ainda o clima estava “mais quente do que um fogão a lenhados infernos”, e, como se não bastasse, muito úmido. O velhoAbraham trabalhava sem camisa, deixando que o ar refrescasse seutronco comprido e vigoroso. O jovem Thomas ia no lombo de Ben,segurando as rédeas enquanto seus irmãos vinham atrás, espalhando assementes. Só esperando o aguardado toque do sino do jantar.

Até ali Abe já sabia tudo de cor. Em seguida viria a parte em queeles eram pegos de surpresa pelo grito de guerra shawnee. A parte emque o velho cavalo empinava e jogava Thomas no chão. Em que elecorria para a mata e observava os índios estraçalharem o pai até amorte. Mas os shawnee não apareceram. Não desta vez. A história era

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nova. Uma história que Abraham parafrasearia em uma carta paraJoshua Speed mais de vinte anos depois.

“A verdade”, contou-me meu pai um dia, sussurrando, “éque seu avô não foi morto por seres humanos.”

Sem camisa, Abraham trabalhava no limite externo de suaclareira, bem na linha das árvores, quando começou um “alvoroço degalhos se rachando” no bosque vizinho, a menos de 20 metros de ondeele e seus meninos estavam.

“Papai me disse para puxar as rédeas para ele ouvir melhor.Provavelmente não era nada, só um casal de cervos acasalando,mas nós já havíamos visto ursos negros ali também.”

Eles também tinham ouvido as histórias. Relatos de gruposshawnee que atacavam colonos desprevenidos — matando mulheresbrancas e crianças sem qualquer remorso. Queimando casas.Escalpelando os homens. Aquilo ainda era terra contestada. Haviaíndios por todo lado. Todo cuidado era pouco.

“Então, o alvoroço da mata veio de um lugar diferente. Oque quer que fosse, não era nenhum cervo e não estava sozinho.Papai repreendeu-se por ter esquecido o fuzil de pederneira emcasa e começou a soltar o Ben. Ele não deixaria aquelesdemônios levarem seu cavalo. Mandou meus irmãos correrem —Mordecai para buscar a arma, Josiah para ir até a Hughes’sStation1 pedir ajuda.”

O barulho então mudou. As copas começaram a balançar, comose alguém estivesse pulando de uma árvore a outra.

“Papai se apressou com as amarras. ‘Shawnee’, murmurouele. Meu coração quase fez um buraco no meu peito quando ouvi

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a palavra. Fiquei acompanhando o topo das árvores, naexpectativa de que um bando de selvagens saísse da mata,gritando e agitando suas machadinhas. Já podia ver seus rostosvermelhos me encarando. Sentia meu cabelo sendo puxado (…)meu escalpo sendo arrancado.”

Abraham ainda desamarrava o cavalo quando Thomas viu algumacoisa saltar do alto de uma árvore de uns 15 metros. Alguma coisa dotamanho e da forma de um homem.

“Era um fantasma. Pelo jeito como flutuava acima da terra.Como seu corpo branco tremulava enquanto ele se deslocava noar. Um fantasma shawnee, que tinha vindo buscar nossas almaspor termos invadido sua terra.”

Thomas viu aquele ser voar até eles, apavorado demais paragritar. Apavorado demais para avisar ao pai de que a coisa estavavindo. Bem em cima dele. Agora.

“Vi um lampejo branco e ouvi um grito que teria acordadoum morto a 1 quilômetro dali. O velho Ben se assustou, derrubou-me na lama e saiu correndo como um louco, o arado ainda presode um lado pulando atrás dele. Olhei para onde papai estavaantes. Estava morto.”

Thomas esforçou-se para ficar de pé, apesar da cabeça cheia deestrelas e (embora só fosse se dar conta disso horas mais tarde) de umpulso quebrado. O fantasma estava a uns 50 metros, de costas para ele.De pé sobre seu pai, paciente e calmo. Reluzindo diante dele como umDeus. Gozando diante de sua impotência.

“Não era fantasma. Nem shawnee. Mesmo de costas, eusabia que aquele forasteiro não passava de um menino — do

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tamanho dos meus irmãos. A camisa que ele usava era duas vezeso seu tamanho. Branca como marfim. Saindo da calça cinzalistrada. Sua pele era praticamente da mesma cor maldita, e anuca tinha um zigue-zague de pequenas linhas azuis. E lá estavaele, sem mover um músculo, sem sequer respirar, como umaestátua.”

O velho Abraham tinha apenas 42 anos. Bons genes haviam feitodele um homem alto e de ombros largos. O trabalho honesto fizeradele magro e musculoso. Nunca perdera uma briga — e não seriadessa vez. Ele ficou de pé (“devagar, como se as costelas estivessemquebradas”), aprumou o corpo e cerrou os punhos. Estava ferido, masa dor podia esperar. Primeiro, ele ia arrebentar aquele filho de uma…

“Papai ficou de queixo caído quando viu o rosto do menino.O que quer que ele tenha visto assustou-o demais.”

— O que em nome de De…?O menino desferiu um soco na cabeça de Abraham. Errou.

Abraham deu um passo atrás e ergueu os pulsos, mas só tentou socaruma vez. Ele errou. Sentiu uma picada no lado esquerdo do rosto.Errou? Uma dormência embaixo do olho. Tocou o rosto com a pontado indicador… foi só encostar. O sangue começou a esguicharprofusamente, saindo pelo corte fino como navalha que lhe ia daorelha à boca.

Ele não errou.São os últimos segundos da minha vida.Abraham sentiu a cabeça pender para trás. Sentiu a órbita do olho

esgarçar. Quanta luz. Sentiu o sangue escorrer de suas narinas. Outrogolpe. Mais outro. Seu filho gritando em algum lugar. Por que ele nãosai correndo? A mandíbula quebrada. Os dentes frouxos. Os punhos eos gritos cada vez mais longe. Dormir agora… e nunca mais acordar.

Aquele ser segurou o corpo de Abraham pelos cabelos, batendo e

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batendo até que a testa finalmente afundou, “ficando oca como umacasca de ovo”.

“O forasteiro pôs as mãos em torno do pescoço de papai e oergueu no ar. Gritei de novo — certamente ele ia estrangular atématar. Em vez disso, ele enfiou aquelas unhas compridas, aquelaslâminas, através do pomo de adão de papai e — pop — rasgou opescoço ao meio. Pôs a boca embaixo do buraco e bebeu comoum bêbado faz com uma garrafa de uísque. Engolindo golfadas desangue. Quando o sangue parou de sair rápido o bastante, elepassou o braço em volta do peito de papai e apertou. Espremeu ocoração dele até a última gota — então largou meu pai na lama ese virou. Olhou direto para mim. Então eu entendi. Então eusoube o que tinha deixado meu papai apavorado. Eram olhosnegros como carvão. Dentes compridos e afiados como os de umlobo. O rosto branco de um demônio, Deus me castigue se estivermentindo. Meu coração disparou. Fiquei sem fôlego. A criaturaestava parada ali, com o rosto coberto do sangue de papai e… eujuro a você, ele juntou as mãos na altura do peito e… cantou paramim.”

Era a voz mais sincera e afinada de um rapaz. Com umindisfarçável sotaque inglês.

Se o luto aflito fere o coração,E tristes baixios a alma oprimemEntão a música, com seus sons de prata,Em pronto auxílio presta seu consolo.2

Que um som daqueles pudesse sair de algo tão medonho — e queseu rosto branco pudesse exibir um sorriso tão afetuoso — era umapiada cruel. A canção terminou, o demônio curvou-se, com uma longamesura, e sumiu mata adentro. “Saí correndo até não ver mais nenhum

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traço de branco entre as árvores.” Thomas, aos 8 anos, ajoelhou-sesobre o cadáver dilacerado e eviscerado do pai. Seu corpo inteirotremia.

“Eu sabia que precisaria mentir. Sabia que não poderiacontar a mais ninguém o que eu havia visto; do contrário, meachariam um idiota, um mentiroso ou coisa pior. O que eu tinhavisto afinal? Eu podia muito bem ter sonhado com tudo aquilo.Quando Mordecai chegou correndo com o fuzil de pederneira —quando quis saber o que havia acontecido —, comecei a chorar econtei a ele o que eu podia contar. A única coisa em que eleacreditaria: que um bando de guerreiros shawnees matara papai.Não podia lhe contar a verdade. Não podia contar que tinha sidoum vampiro.”

Abe mal podia falar. Sentou-se diante do pai embriagado,deixando que os estalidos ocasionais da madeira queimandoenchessem o vazio.

Eu já ouvira centenas daquelas histórias dele, algumasrecolhidas da vida alheia, outras tantas recontadas da própriavida de meu pai. Mas nunca o havia visto inventar uma história,mesmo naquele estado. Francamente, não acho que ele tivessecabeça para tanto. Nem conseguia pensar em qualquer motivorazoável para ele mentir sobre uma coisa daquelas. Portanto, sóhavia uma outra possibilidade.

— Você acha que eu fiquei louco — disse Thomas.

Foi exatamente o que eu achei, mas não respondi. Tinhaaprendido a calar minha boca naquelas ocasiões, para não correro risco de irritá-lo com um comentário inocente mal-interpretado.Resolvi ficar quieto até ele me mandar embora ou cair no sono.

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— Maldição, você tem motivos para achar isso.

Ele bebeu um gole da féria da semana3 e olhou para mimcom uma doçura que eu nunca tinha visto nele antes. Deixou tudode lado por um momento e nos viu não como éramos, mas comopoderíamos ter sido em uma vida melhor. Pai e filho. O fato deseus olhos se encherem de lágrimas me deixou perplexo eapavorado. Era como se ele estivesse implorando que euacreditasse. Mas eu não podia acreditar numa tolice como aquela.Ele era um bêbado contando um caso. Só isso.

— Estou contando isso porque você precisa saber. Porque vocêmerece saber a verdade. Estou dizendo que vi dois vampiros na minhavida. O primeiro foi naquele campo. O segundo… Thomas virou orosto, tentando conter as lágrimas outra vez. O segundo se chamavaJack Barts… e eu o vi pouco antes de sua mãe morrer…

Meu pai havia passado o verão de 1817 cometendo opecado da inveja. Ficara cansado de ver os vizinhosenriquecendo com o trigo e o milho da terra deles. Cansado dedar duro para construir os celeiros que eles usavam para ganhardinheiro, sem sobrar nada daqueles lucros para ele. Ele sentiu,pela primeira vez na vida, algo parecido com ambição. Só lhefaltava o capital.

Jack Barts era um baixinho, de um braço só, que gostava deroupas caras e era dono de um próspero serviço de transportes emLouisville. Era também um dos poucos homens do Kentucky no ramode empréstimos privados. Thomas trabalhara para ele quando moço,carregando e descarregando barcaças no rio Ohio por vinte centavosao dia. Barts sempre o tratara bem e pagara prontamente, e quando oserviço terminou, eles trocaram um aperto de mãos e ele o convidoupara voltar um dia. Mais de vinte anos depois, na primavera de 1818,

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Thomas Lincoln resolveu aceitar a oferta. Com o chapéu na mão,cabisbaixo, Thomas sentou-se no escritório de Jack Barts e pediu-lheum empréstimo de 75 dólares — precisamente a quantia de queprecisava para comprar um arado, um cavalo, sementes e “tudo o queum sujeito precisa para que dê trigo, além de sol e chuva”.

Barts, “belo e fagueiro como nunca em seu paletó roxo de umbraço só”, concordou na hora. Suas condições eram simples: Thomasvoltaria com 90 dólares (o principal mais vinte por cento de juros)até, no máximo, o dia 1º de setembro. Qualquer lucro que conseguisseacima disso seria seu. Vinte por cento eram mais do que o dobro queum banco de respeito teria cobrado. Mas como Thomas não possuíarigorosamente nada (mal conseguindo se manter em seu lote em LittlePigeon Creek), ele não tinha alternativa — e mais ninguém a quemrecorrer.

Meu pai aceitou os termos e foi trabalhar derrubandoárvores, arrancando cepos, carpindo e espalhando sementes. Eraum trabalho duro. No total, ele plantou sete acres de trigosozinho. Se conseguisse trinta arbustos por acre (uma estimativarazoável), teria o bastante para pagar Barts e um pouco mais paranos ajudar no inverno. No ano seguinte ele plantaria mais. Umano depois, contrataria mais alguém para dividir o trabalho. Emcinco anos, ele seria dono da maior fazenda do condado. Em dezanos, do estado. Plantada a última semente, meu pai descansou eesperou seu futuro brotar da terra.

Mas o verão de 1818 acabou sendo o mais quente e seco de quese tinha lembrança. Quando veio julho, mal havia um talo verde paraser colhido em toda a região de Indiana.

Thomas estava arruinado.Não tinha escolha senão vender o arado e o cavalo mesmo que a

pouco dinheiro. Sem ter o que colher, não serviriam para grande coisa.Envergonhado demais para encarar Barts pessoalmente, Thomas

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enviou-lhe 28 dólares com uma carta datada de 1º de setembro (queele ditou a Nancy), prometendo mandar o resto assim que pudesse. Erao melhor que ele podia fazer. Não foi o bastante para Jack Barts.

Duas semanas depois, Thomas Lincoln se veria implorando aossussurros, os quais, no frio da noite, eram visíveis. Ele havia sidoacordado minutos antes. Despertara com algo sendo esfregado em seurosto. A manga de um paletó de seda azul. Uma mão cheia de cédulasbancárias, 28 dólares no total. O vulto de Jack Barts parado sobre suacama.

Barts não tinha ido até ali para discutir, só para avisar. Elegostava do meu pai. Sempre gostara dele. Portanto, ele lhe dariamais três dias para juntar o que faltava do dinheiro. Eramnegócios, sabe como é. Se começassem a falar por ali que JackBarts facilitara as coisas para um inadimplente, os outrospensariam duas vezes antes de pagá-lo na data. E aonde aquilo olevaria? À indigência? Não, não. Não era nada pessoal. Mas umamera questão de solvência.

Eles pararam junto ao banheiro externo, para que seus sussurrosnão acabassem por acordar alguém. Barts perguntou-lhe mais uma vez:“Você pode me pagar em três dias?” Thomas balançou a cabeça outravez. “Eu não posso pagar.” Barts sorriu e virou o rosto. “Então…”

Ele deu as costas. Seu rosto desapareceu — e o rosto de umdemônio tomou seu lugar. Uma janela aberta para o inferno. Olhosnegros, pele branca e dentes compridos e afiados como os de umlobo, Deus me castigue se estiver mentindo.

“… vou fazer você pagar de outra maneira.”Abe olhava fixo para o pai através do fogo.

Medo. Meu estômago ficou cheio de medo. Braços e pernas.Fiquei pasmo. Enjoado. Não queria ouvir mais nada. Não naquelanoite. Nem nunca. Mas meu pai não parava de falar. Não agora

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que estava tão perto do fim. Que eu já adivinhava, mas no qualnão tinha coragem de acreditar.

— Quem tirou meu pai de mim foi um vampiro…— Pare…— Quem matou os Sparr…— Já chega!— E foi um vampiro que matou a sua…— Vá para o inferno!Thomas chorou.

A própria visão dele despertou em mim um ódio até entãodesconhecido. Ódio do meu pai. De tudo. Ele me revoltava. Corrinoite afora de medo do que eu poderia dizer; do que seria capazde fazer se ficasse na presença dele por mais um momento. Minhaira me manteve longe de casa por três dias e três noites. Dormiem celeiros de vizinhos. Roubei ovos e espigas de milho. Andeiaté minhas pernas ficarem bambas de exaustão. Chorei pensandoem minha mãe. Eles haviam tirado minha mãe de mim. Meu pai eJack Barts. Odiei-me por ser pequeno demais para protegê-la.Odiei meu pai por ter-me contado aquelas coisas impossíveis,indizíveis. E, no entanto, eu sabia que eram verdade. Não seiexplicar como eu sabia com tanta certeza, mas eu sabia. O modocomo ele gritava quando contávamos histórias de vampiros. Osgritos que ouvimos no vento daquela noite. Os sussurros febris deminha mãe sobre “olhar o diabo nos olhos”. Meu pai era umbêbado. Um bêbado indolente e sem amor. Mas não era ummentiroso. Durante aqueles três dias de fúria e luto, cedi àloucura e admiti uma coisa a mim mesmo: eu acreditava emvampiros. Acreditava neles e os odiava profundamente.

Quando finalmente ele voltou para casa (diante de uma madrastaapavorada e um pai calado), Abe não disse uma palavra. Foi

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diretamente até seu diário e escreveu uma única frase. Uma frase quealteraria radicalmente o rumo de sua vida e levaria todo um paísincipiente à beira do colapso.

Juro matar todos os vampiros da América.

III

Sarah esperava que Abe fosse ler para eles depois do jantar. Estavaficando tarde, mas o fogo ainda estava bom, e havia mais do que obastante para algumas páginas das aventuras de Jonas ou da túnica devárias cores de José. Ela adorava o modo como Abe as lia. Com tantavida. Tanta expressividade e clareza. Ele sabia muito para a suaidade. Modos e delicadezas raramente encontrados em uma criança.Ele era, como ela diria a William Herndon após o assassinato de seuenteado: “O melhor menino que eu já vi ou tive a esperança de ver navida”.

Ela, porém, não estava encontrando a Bíblia. Teria emprestado auma vizinha e se esquecido disso? Será que deixara na casa do senhorGregson? Ela procurou em tudo. Em vão. Sarah nunca mais encontrariasua Bíblia.

Abe jogara a Bíblia no fogo.Fora o ato impensado de uma criança com raiva, algo de que ele

viria a se arrepender (ainda que nunca o bastante, ao que parece, aponto de contar a verdade à madrasta). Anos depois ele tentaria seexplicar:

Como eu poderia reverenciar um Deus que permitia queexistissem [vampiros]? Um Deus que deixara minha mãe cair nasgarras deles?4 Ou Ele era impotente para detê-los, ou Ele eracúmplice deles. Em ambos os casos, Ele não merecia o meu

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louvor. Em ambos os casos, Ele era meu inimigo. Assim pensaum menino de 11 anos com raiva. Que vê o mundo como umaescolha entre duas certezas disparatadas. Que acredita que umacoisa “deve ser” desse ou daquele jeito. Sim, sinto vergonha porisso ter acontecido. Mas eu não disfarçaria essa vergonhafingindo que não aconteceu.

Com sua fé arruinada, aos 11 anos Abe levou sua decisão maislonge em um manifesto sem data (por volta de agosto de 1820):

Portanto, minha vida será rigorozamente [sic] estudar e mededicar. Aprenderei tudo. Tornarei-me [sic] um guerreiro maiordo que Alexandre. Minha vida terá um único propósito. Opropósito de matar o maior número de vampiros que eu puder.5Este diário será o lugar onde escreverei sobre matar vampiros.Ninguém senão eu poderei [sic] ler isto.

Seu interesse pelos livros, que até então vinha sendo meramentevoraz, tornou-se obsessivo. Ele caminhava mais de uma hora até acasa de Aaron Stibel, um sapateiro que ostentava uma biblioteca com150 volumes em sua casa, duas vezes por semana para devolver umabraçada de livros e levar emprestado outro tanto. Ele acompanhavasua madrasta até Elizabethtown sempre que ela visitava um parente,escapando sozinho para a casa do velho Samuel Haycraft, na VillageStreet, um dos fundadores da cidade e orgulhoso proprietário de quasequinhentos livros. Abe leu sobre ocultismo; descobriu menções avampiros no folclore europeu. Compilou uma lista de seus supostospontos fracos, sinais característicos e hábitos. Era comum a madrastaencontrá-lo dormindo à mesa de manhã, a cabeça deitada sobre umlivro aberto.

Quando não estava fazendo melhorias para o espírito, Abetrabalhava duro para melhorar o corpo. Dobrou a quantidade de lenharachada diariamente. Construiu muros de pedra compridos e

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serpeantes. Praticava atirar seu machado nas árvores. A princípio, auns 10 metros de distância. Depois, a 20 metros. Quando seu meio-irmão John o convidava para brincar de guerra, ele aceitava na hora— e brigava com uma nova intensidade, o que deixou mais de ummenino da vizinhança com o lábio ferido. Com base nas informaçõesque encontrava nos livros, Abe retirou a casca de algumas toras,talhou dúzias de estacas e fez uma aljava para carregá-las. Esculpiraum pequeno crucifixo (embora houvesse declarado Deus seu“inimigo”, aparentemente não se opunha a que viesse em seu auxílio).Começou a andar com pequenas bolsas de alho e semente de mostarda.Afiou seu machado até que a lâmina “cegasse só de olhar para ela”. Ànoite, sonhava com a morte. Sonhava que caçava seus inimigos,atravessando-lhes o coração com estacas. Arrancando-lhes a cabeça.Gloriosas batalhas. Anos mais tarde, quando as nuvens da GuerraCivil se insinuavam no horizonte, Abe veria em retrospecto a volúpiade sangue de sua juventude.

Só existem dois tipos de homem que desejam a guerra:aqueles que não têm a menor intenção de participar eles mesmosda luta e aqueles que não fazem ideia do que seja uma guerra.Quanto à minha juventude, posso dizer que, decididamente, asegunda opção era a verdadeira. Eu ansiava por essa “guerra”contra os vampiros, sem nada saber de suas consequências. Semnada saber sobre ter um amigo morrendo em meus braços ousobre ter de enterrar uma criança morta. Qualquer homem quetenha visto a face da morte sabe que é melhor não procurar porela uma segunda vez.

Porém, no verão de 1812, essas lições ainda estavam muito longede fazer sentido. Abe queria sua guerra contra os vampiros e, depoisde meses de vigorosos estudos e exercícios, estava pronto para dar oprimeiro grito de ataque.

Ele escreveu uma carta.

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IV

Abe tinha uma altura incomum para um menino de 12 anos. Ele jáombreava com o pai, que era considerado um homem alto, com seu1,75 metro. Como seu malfadado avô, bons genes e anos de trabalhoduro haviam feito dele um homem extraordinariamente forte.

Era uma segunda-feira, “o tipo de dia de verão que só aconteceno Kentucky — iluminado e verdejante; a brisa levando calor esementes de dente-de-leão”. Abe e Thomas estavam sentados notelhado de uma das construções externas da propriedade, consertandoas telhas castigadas pelo inverno. Trabalhavam em silêncio. Embora oódio de Abe houvesse amainado, ele ainda achava difícil suportar apresença do pai. Uma entrada no diário datada de 2 de dezembro de1843 (pouco depois do nascimento do filho do próprio Abraham,Robert) lança alguma luz sobre a natureza de seu desdém.

A idade me tornou moderado em várias coisas, mas nesseponto continuo o mesmo. A fraqueza dele! Sua inépcia! Elefracassou em proteger sua família. Pensou apenas em suaspróprias necessidades, abandonando os outros à própria sorte. Seele tivesse simplesmente nos reunido e fugido conosco paraalgum território remoto. Se apenas tivesse pedido aos vizinhosalgum adiantamento por um serviço futuro. Mas ele não fez nada.Simplesmente ficou sentado à toa. Calado. Secretamentedesejando que de algum modo, por algum milagre, seusproblemas simplesmente desaparecessem. Não, não é precisoelaborar mais do que isso: se ele tivesse sido outro homem, elaainda estaria aqui comigo. Isto eu não posso perdoar.

Thomas, a seu favor, parecia compreender e aceitar essacondenação. Não mencionara nunca mais a palavra “vampiro” desdeaquela noite. Tampouco puxava assunto com Abe.

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Sarah levara as meninas para ajudá-la a limpar a casa do senhorGregson naquela tarde de segunda-feira e John estava fora, travandosuas guerras imaginárias. Os dois Lincoln estavam trabalhando notelhado quando chegou um cavalo com uma criança no lombo. Umacriança rechonchuda de paletó verde. Era isso ou um homem muitopequeno. Um homem baixo de óculos escuros e… um braço só.

Era Jack Barts.Thomas baixou o martelo, o coração quase furando o peito só de

pensar no que Bart poderia querer agora. Quando ele desceu ecomeçou a andar, indo ao encontro do inesperado visitante, Abe jáestava a caminho da cabana. Barts entregou as rédeas a Thomas edesmontou com alguma dificuldade, segurando no corno da sela comum braço enquanto suas pernas curtas se espichavam para alcançar ochão. Feito isso, ele pegou o leque no bolso do paletó e começou a seabanar, refrescando o rosto. Thomas não pôde deixar de notar que nãohavia uma gota de suor em seu rosto.

— Simplesmente terrível… esse calor está terrivelmente quente.— Senhor Barts, eu…— Devo admitir, sua carta me surpreendeu, senhor Lincoln. Uma

surpresa feliz, devo dizer. Mas, ainda assim, uma surpresa.— Minha carta, senhor Ba…?— Se você a tivesse escrito antes, talvez as desavenças ocorridas

entre nós tivessem sido evitadas. Terrível… uma coisa terrível…Thomas estava muito confuso para perceber que Abe vinha

andando na direção deles com um objeto de madeira comprido nosbraços.

— O senhor há de perdoar a minha pressa — disse Barts —, maseu preferiria ir embora logo. Há negócios em Louisville que precisoresolver hoje à tarde.

Thomas não conseguia pensar em nada para dizer. Nem umaúnica maldita frase.

— Então? Onde está, senhor Lincoln?

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Abe juntou-se a eles, trazendo um comprido baú com tampaentalhado à mão. Um minúsculo caixão para um cadáver esguio. Eleparou ao lado do pai. Ereto diante dele. Olhando atravessado para ele.

— Estranho — disse Abe, rompendo o silêncio. — Não esperavaque você viesse de dia.

Agora foi Barts quem sentiu um nó na cabeça.— Quem é esta criança?— Meu filho — disse Thomas, petrificado.— Aqui está — disse Abe, erguendo o baú. — Tudo aí. Cem

dólares, como dizia a carta.Thomas teve certeza de ter entendido errado. Certamente era um

sonho. Barts olhou para Abe, desconfiado. Estupefato. Um sorrisoabriu-se em seu rosto.

— Meu Deus! — disse Barts. — Por um momento achei queestávamos todos loucos!

Barts começou a dar risada. Abe abriu a tampa — só o bastantepara deslizar sua mão para dentro.

— Bom menino — disse Barts, rindo agora com gosto. — Vamosao que interessa, então.

Ele estendeu a mão e passou os dedos grossos no meucabelo. Só consegui pensar em minha mãe passando os dedos emminha cabeça enquanto lia para mim. Só consegui pensar no rostosuave de minha mãe. Olhei para baixo e encarei aquele homem.Aquela criatura. Ri com ele enquanto meu pai ficava ali, parado,inerte — um fogo se espalhando pelo meu peito. Senti a estaca demadeira em meus dedos. Eu podia fazer qualquer coisa. Eu eraum deus.

Estes são os últimos segundos de sua vida.

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Não lembro do momento em que enfiei a estaca — só seique a enfiei. Ele parou de rir e deu um passo desajeitado. Seusolhos ficaram negros num piscar de olhos, como se os tinteirosem suas pupilas subitamente se houvessem quebrado — respingoscontidos atrás de um vidro. Suas presas desceram, e então pudedivisar uma diáfana teia azul por baixo de sua pele. Era verdade.Até aquele momento ainda havia espaço para dúvidas. Mas agoraeu via com meus próprios olhos. Agora eu tinha certeza.

Vampiros existiam de verdade.Ele ergueu o braço, e sua mãozinha rechonchuda

instintivamente agarrou a estaca. Não havia medo em seu rostoainda. Apenas perplexidade, como se ele estivesse tentandoentender como um objeto daqueles podia estar ligado ao seucorpo. Então ele perdeu o equilíbrio e caiu sentado, posição emque ficou por um momento antes de desabar de costas. A mão sesoltou da estaca e o braço pendeu para o lado.

Andei ao redor dele, imaginando quando ele atacaria.Imaginando quando ele daria risada da futilidade do que eu haviafeito e começaria a me dilacerar. Enquanto eu o rodeava, seusolhos me acompanhavam. Eram as únicas coisas que ainda semexiam. Agora havia medo. Ele estava morrendo… e estava commedo. O que ainda restava de cor em sua pele agora se esvaía —e o sangue farto e escuro começou a escorrer de suas narinas;pelos cantos da boca. Algumas gotas a princípio… depois umjorro — escorrendo pelas faces e acumulando-se nas órbitas.Mais sangue do que eu jamais julguei possível. Eu poderia versua alma (se de fato ele tivesse tal coisa) partindo. Dando adeus,inesperada e apavoradamente, a uma vida muito longa —indiscutivelmente cheia de felicidades, e agonias, e lutas, esucessos. Cheia de momentos bonitos demais para compartilhar.Doloridos demais para serem lembrados. Tudo isso terminavaali, e ele estava assustado. Assustado com o nada que o

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aguardava. Ou pior, com o castigo.E então ele estava morto. Esperei que meus olhos fossem se

encher de lágrimas. Que fosse sentir remorso diante da visão doque eu havia feito. Admito que não senti nada. Lamentei apenasque ele não tivesse sofrido mais.

Thomas ficou horrorizado com o que viu. — Olha o que você fez— disse ele depois de um silêncio nauseado. — Agora vamos morrerpor sua causa.

— Ao contrário… Ele morreu por minha causa.— Mas virão outros.Abe já lhe dera as costas.— Então vou precisar de mais estacas.

1 Era comum entre os primeiros colonos construir suas casas ao redor de fortes ou “stations”. No caso de um ataque indígena, esses fortes ofereciam abrigo. Eles eram

guarnecidos por pequenos grupos de voluntários.2 Canção do século XVI, de autoria de Richard Edwards, que aparece em Romeu e Julieta, ato IV, cena 5. “When griping grief the heart doth wound,/And doleful dumps

the mind oppress/Then music, with her silver sound,/With speedy help doth lend redress.”3 Muitos fazendeiros tinham destilarias para ganhar um dinheiro além da colheita. Aqui, Abe se refere ao fato de Thomas frequentemente trocar seus serviços de

carpintaria por uísque de milho — para grande tristeza da nova esposa.4 Não se sabe como Barts matou Nancy Lincoln e os Sparrows, mas com base nas informações encontradas em outros trechos do diário, ele provavelmente lhes dera

uma dose “homeopática” do próprio sangue. Furar um dedo e pingar algumas gotas na boca da vítima adormecida é o método mais comum. Essa quantidade é apenassuficiente para produzir os efeitos colaterais da transformação (doença e morte) sem nenhum de seus benefícios duradouros.5 É interessante observar o repetido uso das palavras “matar” e “assassinar” nestas primeiras entradas do diário. Abe passará mais adiante a usar verbos mais adequedos

como “destruir” e “abater”.

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TRÊS

HenryTrata-se da eterna disputa entre dois princípios — certo e errado— em todo o mundo. São dois princípios que se enfrentam desdeo início dos tempos; e essa disputa não terminará jamais.

— Abraham Lincoln, debate com Stephen A. Douglas15 de outubro de 1858

I

O sudeste de Indiana foi tomado pelo medo naquele verão de 1825.Três crianças haviam desaparecido em menos de seis semanas desde oinício de abril. A primeira, um menino de 7 anos chamado SamuelGreene, sumira enquanto brincava na floresta perto da propriedade dafamília em Madison, uma movimentada cidade às margens do rioOhio. Grupos de busca foram formados. Vasculharam todos os lagos.Mas não encontraram nem sinal do garoto. Menos de duas semanasdepois, antes que o povo de Madison perdesse as esperanças deencontrá-lo com vida, Gertrude Wilcox, de 6 anos, desapareceu de suacama no meio da noite. Então a aflição virou pânico. Os pais serecusavam a deixar os filhos saírem de casa. Vizinhos acusavamvizinhos, enquanto três semanas se passaram sem outro incidente. Foiquando, em 20 de maio, a terceira criança foi levada — não emMadison, mas na cidade de Jeffersonville, uns 30 quilômetros rioabaixo. Desta vez o menino foi encontrado em questão de dias — juntodas outras duas crianças. Um caçador fizera a medonha descoberta,

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seguindo seus cães até uma vala rasa cheia de toras onde jaziam ostrês corpos destroçados, cobertos às pressas com galhos. Os corposestavam decompostos de modo estranho — quase sem cor. Os trêsrostos como que congelados em uma máscara de pavor de olhosarregalados.

Abe Lincoln tinha 16 anos naquele verão, e sua decisão de “matartodos os vampiros da América” estava prestes a ter um começobastante agourento. Os temores de seu pai haviam se provadoinfundados. Nenhum vampiro fora vingar Jack Barts. Em verdade, nosquatro anos desde que ele enfiara a estaca em Barts, Abe não viramais nenhum outro vampiro — e não por falta de muito empenho.Passara noites inteiras atrás dos mais distantes gritos no vento evigiando tumbas recém-cavadas para o caso de, segundo o folclore,um vampiro vir se banquetear com o cadáver. Mas só com seus velhoslivros e velhos mitos a guiá-lo, e um pai que não se dispunha a ajudar,Abe passou aqueles quatro anos em plena frustração. Havia pouco afazer além de continuar a treinar. Ele atingiria sua altura máxima de1,94 metro, cada centímetro quadrado dos quais de puro músculo. Eracapaz de bater qualquer um com o dobro da sua idade na luta e nacorrida. Cravava um machado em qualquer árvore a mais de 30 metrosde distância. Puxava um arado sozinho mais rápido que um cavalo econseguia erguer uma tora de mais de 100 quilos acima da cabeça.

O que ele não sabia fazer era costurar. Depois de passar semanastentando fazer um “traje de caça” e vê-lo se desfazer em pedaços commenos de dois dias de uso, Abe ficou arrasado e resolveu pagar umacostureira para fazer o serviço (não pediu à madrasta, com medo daóbvia pergunta sobre onde ele pretendia usar aquilo). O paletócomprido era forrado com um material grosso sobre o peito e o ventree tinha bolsos internos para guardar toda sorte de facas, réstias de alhoe um frasco de água benta com que se benzer. Abe colocou a aljava deestacas nas costas e um colarinho de couro, que encomendara a umcurtidor de Elizabethtown, no pescoço.

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Quando a notícia dos corpos destroçados chegou a Little PigeonCreek, Abe partiu imediatamente para o rio.

Disse a meu pai que tinha arranjado trabalho em umabarcaça que ia para New Orleans e que voltaria com 20 dólaresdentro de seis semanas. E foi o que fiz, apesar de não terrecebido nenhuma oferta de trabalho e de não fazer ideia de ondearranjaria o dinheiro. Não consegui pensar em nenhum outromotivo para meu pai permitir uma ausência tão prolongada.

Contrariando sua imagem de inquebrantável “honestidade”, Abetambém mentia, desde que servisse a uma causa nobre. Essa era aoportunidade pela qual ele esperava ansiosamente havia quatro anos.Oportunidade de testar suas habilidades. Suas ferramentas. De sentir oêxtase de assistir a um vampiro definhar a seus pés. Ver o medo emseus olhos.

Havia rastreadores muito melhores do que Abraham Lincoln.Homens com muito mais experiência no rio Ohio. Não havia, porém,um único ser humano em Kentucky ou Indiana que soubesse mais sobresumiços misteriosos e assassinatos sem solução.

Quando ouvi a descrição dos corpos em Jeffersonville, logovi que era coisa de vampiro e sabia muito bem aonde aquilo iriaparar. Lembrei-me de haver lido um caso parecido no livro deDugre, Sobre a história do rio Mississippi — um caso queintrigara os colonos cinquenta anos antes. Crianças de cidadespequenas da beira do rio raptadas em suas próprias camas —começando em Natchez e indo até Donaldsville. De norte a sul.Os corpos foram sendo encontrados em grupos ao longo do rio,em decomposição avançada. Estranhamente — todos com apenasalguns pequenos cortes nas extremidades. Como aquele vampiro,eu apostava que esse também havia seguido a corrente para o sul.Além disso, também podia apostar que estava em um barco. E

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que se estava em um barco, cedo ou tarde chegaria a Evansville.

Foi ali que Abe passou a noite de quinta-feira, 30 de junho de1825, escondido nos arbustos das margens de mata cerrada do Ohio.

Graças à lua cheia, via-se cada detalhe daquela noite… aneblina sobre o rio, o sereno das folhas caindo sobre meuesconderijo, as silhuetas dos pássaros dormindo em um galho deárvore, e a barcaça atracada a menos de 30 metros de mim. Nãoera muito diferente de nenhuma das pequenas embarcações queviviam subindo e descendo o rio: quarenta por doze pés; feita depranchas de madeira rústica, quase um terço do convés tomadopor quartos cobertos — mas meus olhos já estavam fixos naquelebarco em particular fazia horas, pois eu tinha certeza de que alidentro havia um vampiro.

Abe ficara dias observando as barcaças que atracavam emEvansville. Analisara cada homem que descera à terra firmeprocurando os tais sinais reveladores sobre os quais ele tanto lera arespeito: se tinham a pele pálida, se evitavam a luz, se tinham medo decruz. Chegara a seguir alguns barqueiros “suspeitos” que vinhamcuidar de seus afazeres na cidade. Mas nada surtira efeito. Por fim, foiuma barcaça que não atracou que atraiu sua desconfiança.

Eu estava indo dormir. O sol estava se pondo e os barcosque subiam o rio já estavam atracando para passar a noite. Então,eu vi. O vulto de uma barcaça passando — quase invisível noescuro. Era estranho que um barco passasse por uma das maiorescidades dessa parte do rio sem atracar. E ainda mais estranho queo fizesse à noite.

Abe correu pela margem do rio, decidido a seguir aquele barcoestranho (que, pelo que pôde ver, não vinha sendo pilotado por

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ninguém) até onde conseguisse.

Chuvas intensas haviam acelerado a correnteza, e foi difícilacompanhar o ritmo. A barcaça continuou a se afastar, e, quandosumiu na curva do rio, achei que a havia perdido para sempre.

Contudo, depois de meia hora correndo sem parar, Abe conseguiualcançá-la. O barco havia atracado na mesma margem algunsquilômetros rio abaixo, fora da cidade, e uma pequena prancha desciado convés até o chão. Ele parou a uma boa distância e começou suavigília que duraria a noite inteira. Seguiram-se horas de fome eexaustão, mas Abe manteve seu posto.

Fiquei tanto tempo parado que achei que minhas pernastalvez me traíssem quando eu precisasse delas. Porém, nãoarrisquei me mexer até vê-lo. Até ver a criatura sair do lugaronde dormia. Olhei para o machado em minhas mãos paraconfirmar que ainda estava ali. Tremi com a expectativa de vê-lovoar no peito da criatura. De ver o medo em seu rosto quandotudo o que restava dele deixasse este mundo.

Houve um discreto farfalhar de folhas e estalidos de gravetosvindos do norte. Alguém se aproximava, caminhando por entre asárvores pela margem do rio. Abe recobrou o fôlego. Conferiu omachado na mão direita. Imaginou o som que faria quandoatravessasse pele, osso e pulmão.

Eu estava esperando a criatura sair havia horas. Jamais meocorrera que o vampiro pudesse já estar por perto. Nãoimportava. Segurei meu machado e esperei para vê-lo.

“Ele” acabou se revelando uma mulher miúda, que usava umvestido preto e um chapéu combinando. As formas do corpo indicavam

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se tratar de uma velha, embora andasse com desenvoltura pelaribanceira acidentada do rio.

Não me passara pela cabeça a possibilidade de que fosseuma mulher, muito menos velha. A loucura do que eu estavafazendo de repente me pareceu evidente. Além de uma suspeitade que aquele era o barco de um vampiro, de que provas eudispunha? Eu ia simplesmente matar quem quer que fosse o donodaquele barco e torcer para que minha teoria estivesse correta?Eu estava preparado para arrancar a cabeça daquela velha semter absoluta certeza?

Abe não precisou se torturar por muito tempo, pois quando ela seaproximou, ele conseguiu ver uma coisa em seus braços. Uma coisabranca.

Era uma criança.

Fiquei olhando enquanto ela passava com o menino pelamata e chegava ao barco. Ele não tinha mais de 5 anos, usava umpijama branco — seus braços e pernas pendiam frouxos. Pudever o sangue em seu colarinho. Nas mangas. Eu não conseguiriaacertar a mulher àquela distância, pois temia que o machadoperdido matasse o menino (se ele de fato estivesse vivo).

Abe observou a vampira chegar à barcaça e pisar na prancha,onde ela parou subitamente.

Seu corpo enrijeceu. Ela farejou o ar, como eu havia vistoanimais fazendo ao sentir o cheiro do perigo. Em seguida,percorreu a escuridão da outra margem com os olhos, e então meencarou.

Abe congelou. Não respirou. Não moveu um só músculo.

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Satisfeita por não haver perigo, a velha continuou a descer pelaprancha e entrou na barcaça.

Senti náuseas. Uma fúria — dirigida mais a mim mesmo doque a ela. Como eu podia ficar parado e deixar aquele menino serlevado? Como eu podia permitir que algo tão irrisório como omedo — insignificante como a minha própria vida — meimpedisse de fazer o que devia ser feito? Não, não, antes morreragora nas mãos dela do que morrer de vergonha! Saí de meuesconderijo e corri na direção do rio. Em direção ao barco. Elaouviu meus passos. Percebeu minha intenção e jogou o menino noconvés. Enfim! Enfim minha oportunidade! Ergui o machado earremessei-o, girando na direção dela. Apesar da aparênciasugerir o contrário, ela era bastante ágil — afastou-se datrajetória do machado, que foi parar no fundo do rio Ohio.Continuei correndo, convencido de que minha força e meustreinamentos ainda seriam o bastante para salvar o dia.Convencido de que não restava outra alternativa. Tirei duas facasde meus bolsos internos, uma para cada mão. Ela esperava pormim, aqueles dedos de garras à mostra. Olhos negros como ochapéu. Meus pés pisaram a prancha. Saltei sobre ela, que mesacudiu para longe como um rabo de cavalo espanta uma mosca,jogando-me sobre o convés e expulsando o ar de meus pulmões.Caí de costas no chão, o corpo todo doído, e empunhei as facaspara mantê-la afastada. Ela pegou as facas pelas lâminas earrancou-as de minhas mãos, deixando-me apenas com ospróprios punhos para me defender. Pus-me de pé e ataquei adesgraçada da velha diaba com meus punhos descontrolados. Foicomo se eu estivesse vendado, tamanha a facilidade com que elaescapou de todos os meus golpes. De repente senti uma dorexcruciante na cintura, que quase me derrubou em cima domenino adormecido.

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A força dos punhos da vampira havia quebrado várias costelas deAbe. Ele cambaleou enquanto ela desferia socos e mais socos em seuestômago… e mais um. Abe tossiu, cuspindo sangue no rosto dela.

Então ela parou, passou o dedo asqueroso no rosto e tocou alíngua. “Delícia”, disse ela com um sorriso. Fiz o que pude paracontinuar de pé, sabendo que se caísse de novo, seria a últimavez. Pensei no meu avô, em como seu rosto havia sidoestraçalhado pelos punhos de um vampiro. Como ele nãoconseguira acertar nenhum golpe de revide. Eu me recusava a tero mesmo fim. Aproveitei a pausa a meu favor, encontrando aúltima arma do bolso do paletó, uma faca pequena. Atirei-mesobre ela com o que me restava de força e enfiei a lâmina em seuventre. Isso só aumentou seu bom humor, pois ela agarrou meupunho e arrastou-o contra o próprio ventre, cortando-se e rindoao mesmo tempo. Senti meus pés fora do convés; senti suas mãosna minha garganta. No que me pareceu um segundo, eu estavasendo afogado. Ela segurava minha cabeça embaixo d’água —minhas costas empurradas contra o barco. Esperneeidesesperadamente. Só conseguia olhar para o rosto dela. Suasrugas disfarçadas pela água. Então meus pensamentosabandonaram a luta, e fui contagiado por uma estranha alegria.Logo estaria tudo acabado, e eu descansaria. Aqueles olhosnegros mudando de forma sobre mim conforme a água seacalmava. Conforme eu me acalmava. Logo eu estaria com ela.Estava de noite.

Então ele apareceu.

Abe estava praticamente inconsciente quando a velhadesapareceu, puxada de volta para o barco. As mãos dela já não oseguravam, então ele afundou suavemente no rio.

Fui tirado das profundezas pela mão de Deus. Fui colocado

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dentro de um minúsculo barco ao lado de um menino de pijamabranco que dormia. Nessas precárias condições, assisti então aodesfecho da cena dormindo e acordando várias vezes. Ouvi amulher gritar: “Traidor!” Vi a silhueta de um homem que lutavacom ela. Vi a cabeça dela rolar pelo convés até onde eu estavadeitado. O corpo não estava junto. E então não vi mais nada.

II

“E muitas vezes, para nos seduzir ao nosso mal, os instrumentos dastrevas nos dizem verdades, seduzem-nos com insignificânciashonestas, para trair…”1

Despertei em um quarto sem janelas com um homem lendo àluz de um lampião. Devia ter uns 25 anos — magro, cabeloscastanhos até o ombro. Ao me ver acordar, ele parou de ler ecolocou um marcador de página dentro de um volume grossoencadernado em couro. Fiz a única pergunta que me importava.Aquela que perturbara meus sonhos.

— O menino… ele está…— Está salvo. Em um lugar onde será encontrado.

Seu sotaque não traía nenhuma origem em particular. Seriainglês? Americano? Escocês? Sentou-se ao meu lado em umacadeira alta e ricamente entalhada, com uma perna de sua calçaescura cruzada sobre a outra, as mangas de sua camisa azuldobradas até os cotovelos e uma pequena cruz de prata nopescoço. Meus olhos percorreram o ambiente e divisei a formado quarto pela luz da lamparina a óleo. As paredes pareciamfeitas de pedras empilhadas umas sobre as outras e argila nos

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espaços entre elas. Cada parede exibia não menos de duaspinturas em molduras douradas; algumas tinham seis. Cenas denativas de seios nus buscando água em uma fonte. Paisagensensolaradas. Um retrato de uma senhorita ao lado de um retratode uma velha senhora, de fisionomia muito semelhante. Vi meuspertences sobre um baú no outro canto do quarto. Meu paletó.Minhas facas. Meu machado — miraculosamente encontrado nofundo do Ohio. Ao redor, as mais elegantes peças de mobília queeu já havia visto. E livros! Pilhas e pilhas de livros de todas asespessuras e acabamentos imagináveis.

— Meu nome é Henry Sturges — ele disse. — Eu moro aqui.— Abraham… Lincoln.— O “pai de muitos”. Muito prazer.

Tentei me erguer, mas senti tamanha dor que pensei quefosse desmaiar. Deitei-me de costas e olhei para baixo. Meupeito e meu ventre estavam cobertos de curativos úmidos.

— Você há de desculpar a intromissão, mas você estava bastanteferido. Não se assuste com o cheiro tampouco. Esses curativos foramimpregnados em diversos óleos — todos excelentes para curar feridas,eu lhe garanto. Infelizmente, não são muito agradáveis ao olfato.

— Como…— Dois dias e duas noites. Devo dizer que as primeiras doze

horas foram bastante delicadas. Não sabia ao certo se você voltaria aacordar. É sinal de que a sua saúde é boa o fato de…

— Não… como você a matou?— Ah. Na verdade, não foi difícil. Você sabe, ela já estava

bastante frágil.

Parecia absurdo dizer aquilo para alguém cujo corpo foraestraçalhado pela “fragilidade” dela.

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— E, devo acrescentar, ela estava ocupada tentando afogá-lo.Nesse sentido, imagino que deva me sentir grato por você haverdistra… posso lhe perguntar uma coisa?

Meu silêncio foi um substituto apropriado para o “sim”.

— Quantos vampiros você já matou?

Foi chocante ouvir um estranho dizer aquela palavra. Atéaquele dia eu só ouvira meu pai falar deles como criaturas reais.Por um breve instante, pensei em me exibir, mas acabeirespondendo sinceramente.

— Um — disse Abe— Certo… certo, parece que é isso mesmo.— E o senhor? Quantos já matou?— Um.

Não consegui entender aquilo. Como alguém com tantahabilidade — que acabara com uma vampira com tanta facilidade— tinha tão pouca experiência?

— O senhor… não é um caçador de vampiros?

Henry deu uma boa risada diante da ideia.

— Posso dizer seguramente que não. Embora talvez fosse umaocupação interessante, com certeza.

Em minha confusão, eu ainda estava lento para entender oque ele queria dizer. Conforme amanhecia — e eu sentia averdade na pele, ficava ao mesmo tempo aterrorizado e furioso.Ele havia matado a vampira. Não para me livrar da morte, maspara me guardar para si. Agora eu não sentia dor. Apenas o fogo

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no meu peito. Ataquei-o com toda a minha força — toda a minharaiva. Mas meus braços abruptamente foram detidos antes dealcançar-lhe a garganta. Ele me atara os pulsos. Griteiloucamente. Puxei as amarras até ficar com o rosto vermelho.Ensandecido. Henry olhou para mim e apenas piscouconsternado.

— De fato — disse Henry. — Achei mesmo que você poderiareagir assim.

III

Nos dois dias e noites seguintes, recusei-me a falar.Recusei-me a comer, dormir ou olhar nos olhos do meu anfitrião.Como eu poderia, sabendo que minha vida podia acabar aqualquer momento? Sabendo que um vampiro (meu inimigojurado! Assassino de minha mãe!) estava apenas a poucos passosde mim? Quanto do meu sangue ele não teria provado enquanto eudormia? Escutava seus sapatos subindo e descendo a escada demadeira. Ouvia rangidos e batidas de uma porta leve abrindo efechando. Mas não escutava nada vindo do mundo externo. Nemsequer um pássaro cantando. Nem o sino da igreja. Eu não sabiase era dia ou noite. Minha única medida de tempo era o som dosfósforos acesos. Da lenha queimando. A chaleira fervendo. Dequando em quando ele entrava no quarto com um prato de sopaquente, sentava-se ao lado da minha cama e se oferecia para medar de comer. Eu recusava. Recusa aceita, Henry pegava ovolume das obras escolhidas de William Shakespeare econtinuava a ler de onde havia parado. Era o nosso jogo. Por doisdias, recusei-me a comer e a ouvir. Por dois dias, ele continuoucozinhando e falando. Enquanto ele lia, eu tentava ocupar minhamente com pensamentos triviais. Canções ou histórias que eu

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mesmo criava. Tudo… menos dar àquele vampiro o gosto daminha atenção. Porém, no terceiro dia, momentaneamenteatordoado pela fome, não pude evitar e aceitei a colherada desopa quando Henry ofereceu. Jurei que aceitaria só a primeira.Só o bastante para aliviar a dor em meu estômago, nada além.

Abe tomou três pratos fundos… um atrás do outro. Quando, porfim, estava satisfeito, ele e Henry sentaram-se em silêncio “pelo quepareceu uma hora”, até que finalmente Abe falou:

— Por que você não me matou?

Eu sentia náuseas de olhar para ele. Não me importava seele era generoso. Não me importava se ele salvara minha vida.Cuidara das minhas feridas e me dera comida. Não me importavaquem ele era. Ou o que ele era.

— Como assim? Que motivo eu teria para matá-lo?— Você é um vampiro.— E isso significa que meu destino está traçado? Não tenho a

mente de um homem? Não tenho as mesmas necessidades? De comer,de me vestir e de ter conforto? Não julgue que somos todos iguais,Abraham.

Dessa vez quem não conseguiu conter o riso fui eu.

— Você fala como se não precisasse matar para comer! Como seas suas ditas “necessidades” não tirassem as mães de suas crianças!

— Ah — disse Henry. — Então foi um de nós quem levou a sua?

Toda a razão me deixou nessa hora. Algo no modo como elefalou. A desfaçatez. O louco voltou em mim. Ataquei-o,derrubando com isso o prato de sopa no chão de pedra.Espatifou-se. Eu teria arrebentado seu rosto não fossem as

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amarras em meus pulsos.

— Nunca mais fale sobre ela! NUNCA!

Henry esperou passar meu acesso, então se ajoelhou no chãoe recolheu os cacos do prato de sopa.

— Você há de me desculpar — disse Henry. — Já faz muitotempo desde que eu tinha a sua idade. Havia esquecido as paixões dajuventude. Tentarei escolher melhor as palavras.

Com o último caco nas mãos, ele se levantou e fez mençãode sair, mas parou na porta.

— Pergunte-se a si mesmo… será que somos tão diferentes, vocêe eu? Não seríamos os dois servos involuntários da minha condição?Não perdemos ambos algo significativo? Você, a mãe, e eu, a vida?

Com isso ele desapareceu, deixando-me só com minha ira.Berrei para ele: “Por que você não me matou?!” A resposta veiocalma do quarto ao lado: “Algumas pessoas, Abraham, sãointeressantes demais para serem mortas.”

IV

Abe melhorava a cada dia que passava. Passou a comer com gosto eouvia Henry ler Shakespeare com interesse cada vez maior.

Embora o simples fato de vê-lo ainda me despertasse raiva,ou apreensão, tais sentimentos foram ficando mais fracosconforme meu corpo foi se fortalecendo. Ele afrouxara minhasamarras para que eu pudesse comer sozinho. Deixara livros ao

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lado de minha cama para que eu pudesse ler sozinho. Quanto maisia conhecendo seu caráter, mais considerava a possibilidade deque não tivesse intenções assassinas quanto a mim. Falávamos delivros. Sobre as grandes cidades do mundo. Falamos até de minhamãe. Mas, principalmente, falávamos de vampiros. Sobre esseassunto eu tinha mais perguntas do que palavras para formulá-las.Eu queria saber tudo. Durante quatro longos anos, eu tateara noescuro — confiando em suposições, esperando que a própriaProvidência viesse a me colocar face a face com um vampiro.Ali, enfim, estava a oportunidade de aprender tudo: Como elesconseguiam viver só de sangue. Se tinham alma. Qual era suaverdadeira origem, afinal.

Infelizmente, Henry não tinha resposta para nenhuma dessasperguntas. Como a maioria dos vampiros, ele passara um bocado detempo obcecado com sua “linhagem” em uma tentativa de descobrir “oprimeiro vampiro”, na esperança de que essa descoberta levasse aalguma verdade mais profunda, talvez até à cura. E, como todos osoutros antes dele, ele havia falhado. Mesmo os vampiros maispreparados só conseguem traçar duas ou três gerações anteriores.“Isso”, explicou Henry, “é resultado de nossa natureza solitária.”

Na verdade, só raramente os vampiros convivemsocialmente — e quase nunca entre eles mesmos. A escassez desangue disponível estimula uma brutal competição, e seu estilonômade de vida dificulta a formação de laços mais duradouros.São raros os casos de vampiros que agem em duplas ou bandos— mas essas alianças geralmente nascem do desespero e quasesempre são temporárias.

— Quanto à nossa origem — disse Henry —, receio que issoficará para sempre envolvido em trevas. Há quem acredite quetenhamos começado como um espírito do mal ou como um demônio,

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passando de uma alma infeliz para outra desde então. Uma maldiçãopropagada pelo sangue. Outros acreditam que nosso parentesco é como próprio diabo. E ainda existem outros tantos, eu inclusive, queacabamos por acreditar que a nossa “maldição” nunca existiu — osvampiros e o homem são animais diferentes. Duas espécies queexistiram lado a lado desde que Adão e Eva foram expulsos doparaíso. Uma raça dotada de habilidade e longevidade superiores;outra mais frágil e fugaz, embora em maior número. A única certeza éque jamais saberemos ao certo.

Em se tratando da experiência de ser vampiro, no entanto,Henry possuía conhecimentos infinitos. Tinha tamanho dom paraexplicar sua condição que mesmo tão jovem fui capaz deapreender o que dizia. O dom de humanizar a ideia deimortalidade.

— Os homens vivem presos pelo tempo — disse ele. — Assim, avida deles possui urgência. O que lhes dá ambição. Faz com queescolham as coisas mais importantes; apeguem-se mais firmemente aoque lhes é mais caro. A vida tem estações, ritos de passagem econsequências. E, enfim, fim. Mas o que é uma vida sem urgência?Onde está a ambição? E o amor?

“Os primeiros cem anos são instigantes, sem dúvida. Um mundode permissividade infinita. Dominamos a arte de nos alimentar —aprendendo onde jogar nossa rede e como melhor desfrutar nossaspresas. Viajamos o mundo, contemplando as maravilhas da civilizaçãoà luz da lua; amealhando pequenas fortunas ao roubarmos bens denossas inúmeras vítimas. Preenchemos cada desejo imaginável dacarne... oh, é tudo uma grande diversão.

“Depois de cem anos de conquistas, nossos corpos estão cheios aponto de explodir — mas nossas mentes ficaram deixadas à míngua.Então, a essa altura, a maioria de nós já desenvolveu resistência aosefeitos nocivos da luz do sol. O mundo dos vivos, portanto, já não está

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fora de nosso alcance — e somos livres para experimentar tudo o queo escuro nos impedira em nosso primeiro século. Devoramosbibliotecas, dissecamos os clássicos. Dedicamo-nos à música e àpintura, escrevemos poesia. Voltamos às cidades que mais amamos eas experimentamos como novas. Nossas fortunas ficaram mais vastas.Nosso poder, ainda maior.

“No terceiro século, contudo, a embriaguez da eternidade já seesvaneceu. Todo desejo imaginável foi satisfeito. A emoção de tiraruma vida já foi experimentada muitas e muitas vezes. E emboratenhamos todo o conforto do mundo, ele não nos conforta mais. É nesteséculo, Abraham, que a maioria de nós se suicida — ou nos deixamosmorrer de fome, ou nos empalamos pelo coração, ou inventamos algummétodo de arrancar a própria cabeça, ou, nos casos maisdesesperados, nos queimamos vivos. Apenas os mais fortes entre nós— aqueles dotados de força de vontade excepcional e motivados porpropósitos eternos — sobrevivem até o quarto ou quinto século ouainda além.”

Que um homem liberado do destino inescapável da morteescolhesse ele mesmo morrer — isto eu não entendia, e o disse aHenry.

“Sem a morte”, respondeu ele, “a vida não tem sentido. Éuma história que não pode nunca ser contada. Uma canção quenão se pode cantar nunca. Pois como terminaria?”

__________

Logo Abe estava bom o bastante para sentar-se na cama, e Henry àvontade o suficiente para tirar-lhe as amarras. Não conseguindorespostas para suas perguntas mais genéricas sobre vampiros, Abepassou a um poço sem fundo de especificidades. Sobre a luz do sol:

“Quando ainda somos novos, um único raio de luz do sol faz

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bolhas em nossa pele e nos deixa doente, como quando um homem ficaenjoado por excesso de sol. Com o tempo vamos nos tornandoresistentes a esses efeitos e somos capazes de andar livrementedurante o dia — desde que fiquemos longe da luz forte. Nossos olhos,no entanto, nunca se acostumam.”

Sobre alho:“Receio que apenas torne a pessoa perceptível a distância.”Sobre dormir em caixões:“Não posso falar por todos, mas eu me sinto muito bem na cama.”Quando Abe chegou à pergunta sobre como alguém se torna um

vampiro, Henry fez uma pausa.— Eu posso lhe contar como eu me transformei.

V

Abe fez a seguinte anotação em seu diário no dia 30 de agosto de1825, logo depois de voltar a Little Pigeon Creek:

O que vem a seguir é a história exatamente como Henry mecontou. Não tentei melhorá-la nem omiti ou conferi depoisnenhum detalhe. Meramente a reproduzi aqui, para que houvessealgum registro da história. “No dia 22 de julho, do ano de 1587”,começou Henry, “três navios levando 117 almas inglesasaportaram ao norte da ilha Roanoke, onde hoje se chama Carolinado Norte.”

Em meio à assombrosa massa de homens, mulheres e crianças,havia um aprendiz de ferreiro de 23 anos chamado Henry O. Sturges,de estatura e porte medianos, cabelos compridos e castanhos, batendo-lhe no meio das costas. Ele vinha com sua nova esposa, Edeva.

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“Ela era um dia mais nova e dois centímetros menor que eu,com os cabelos loiros mais puros e os olhos de uma estranhatonalidade de marrom. Nunca existiu criatura mais delicada, maisaprazível nos anais do tempo.”

Eles haviam acabado de passar pela viagem mais desgastante,atormentada por um mau tempo absurdo e um azar incomum. Mesmonão havendo nada de estranho em doenças e mortes na travessia doAtlântico (os navios no século XVI eram famosos pelo mofo e pelosratos, férteis culturas para inúmeras doenças contraídas pelo ar oupela comida), o falecimento acidental de duas pessoas a bordo emduas ocasiões diferentes era nefasto o bastante para levantar suspeitas.

Ambas as mortes ocorreram a bordo da Lyon, a maior caravelada esquadra, pessoalmente conduzida pelo capitão John White. White,um artista de 47 anos, havia sido indicado por Sir Walter Raleigh paraestabelecer uma presença inglesa permanente no Novo Mundo. Elefizera parte da primeira tentativa de colonizar Roanoke dois anos antes— uma tentativa que falhara quando os colonos, todos homens, ficaramdesesperadamente sem suprimentos e pegaram carona de volta para aInglaterra com Sir Francis Drake, que, quis o destino, resolveraancorar por ali durante uma pausa em seus ataques piratas contra osnavios espanhóis.

“Dessa vez”, disse Henry, “o plano de Raleigh era maisambicioso. Em vez de rudes marujos, enviou famílias jovens.Famílias que fossem criar raízes. Produzir filhos. Construirigrejas e escolas. Era sua chance de construir ‘uma novaInglaterra no Novo Mundo’. Para Edeva e para mim, era umaoportunidade de deixar para trás um lar que não ofereciafelicidades. Éramos ao todo noventa homens, nove crianças edezessete mulheres, incluindo a própria filha de John White,Eleanor Dare.”

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Eleanor, que vinha grávida de oito meses, estava acompanhadado marido, Ananias, a bordo da Lyon. Ela era uma “beldade incomum”de 24 anos, com madeixas ruivas e sardas. Pode-se imaginar odesconforto que sentia naquela caravela de 120 toneladas balançandoem pleno calor do mês de julho — calor que transformava as entranhasdos navios em fornos gigantescos.

“Mesmo alguns dos marinheiros mais experimentadosmarearam e se debruçaram nas amuradas enquanto o mar davasolavancos e o sol não parava de nos bater.”

A primeira das duas mortes ocorreu no domingo, dia 24 de maio,pouco mais de duas semanas depois que os colonos haviam embarcadoem Plymouth. Um outro marinheiro chamado Blum (ou Bloom; Henrynunca soube a grafia correta) estava no cesto da gávea à noite,encarregado de ficar de olhos atentos para as silhuetas distantes nohorizonte de um céu cheio de estrelas. Galeões espanhóis — comreputação de atacarem e pilharem navios ingleses — eram umaverdadeira ameaça. Pouco depois da meia-noite, o comandante donavio, Simon Ferdinando (que já ganhara fama em expediçõesanteriores ao Maine e à Virgínia), ouviu um “baque” no convésprincipal. Momentos depois, ele estava diante do corpo sem vida dosenhor Blum — cujo pescoço estava quebrado.

“O senhor Ferdinando achou estranho que um marinheiroexperiente — sobretudo um homem que jurava não beber —caísse assim com um mar tão calmo. Mas era assim a vida noAtlântico. Acidentes aconteciam. Além de uma oração pela almado pobre infeliz, pouco se falou sobre o senhor Blum entre ospassageiros e a tripulação.”

O capitão White registrou o acontecido de modo bastante sucintoe frio em seu diário de bordo: Homem caído da gávea. Morto. Jogado

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da amurada ao mar.

“Se esse tivesse sido o único incidente ocorrido durante atravessia, podíamos nos dar por satisfeitos. Mas nossos nervosforam testados outra vez na terça-feira, dia 30 de junho —quando Elizabeth Barrington desapareceu para sempre na noite.”

Elizabeth, uma menina comicamente miúda, de cabelos cacheadose 16 anos, havia sido praticamente arrastada a bordo por seu pai ediversos marinheiros, esperneando, gritando e mordendo a todos nocaminho. Para ela, a Lyon era um navio de prisioneiros.

Meses antes ela se apaixonara perdidamente por um jovemadvogado que trabalhava com o pai. Sabendo que o casamento nuncaseria aprovado, os dois apaixonados tiveram um pequeno casosecreto, cuja descoberta causara alguma sensação nosestabelecimentos da corte e maculara consideravelmente a reputaçãode seu pai entre seus colegas de tribunal. Constrangido, o senhorBarrington não deixou escapar a oportunidade de começar uma novavida do outro lado do Atlântico, e arrastou consigo a filha insolentecomo castigo.

“Naquela terça-feira, o tempo virou, e nossa esquadra entroupor uma parede de nuvens de tempestade. Quando anoiteceu,quase todos os marinheiros haviam descido para escapar do furordo vento e da chuva. O navio jogava tanto que o capitão Whiteordenou que se apagassem todas as velas, com medo de que asondas as derrubassem e houvesse um incêndio. Com Edeva emmeus braços, apertamo-nos na escuridão total debaixo do convés— sentimos o movimento inebriante do navio; ouvimos osgemidos das vigas de madeira e dos vários passageirosmareados. Sei que Elizabeth Barrington estava conosco quandoas luzes se apagaram. Eu mesmo a vi. Porém, de manhã ela já nãoestava.”

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Passou a tempestade e o sol voltou ao seu posto opressivo. ComoElizabeth geralmente estava sozinha lá embaixo, sua ausência só foinotada no meio da manhã. Os passageiros chamaram por seu nome,mas ninguém respondeu. Uma busca revirou o navio, porém não aencontrou. Uma segunda busca, que incluiu sacos de farinhaesvaziados e barris de pólvora revistados, foi igualmente infrutífera.Ela havia sumido. O capitão White registrou outra entrada sucinta efria em seu diário de bordo: Moça caída sobre amurada durantetempestade. Morta.

“Secretamente, todos sabíamos que a pobre garota tirara aprópria vida. Que ela havia pulado no mar e se afogado. Oraçõesforam feitas por sua alma (embora soubéssemos que ela estavacondenada ao inferno — o suicídio é um pecado imperdoável aosolhos de Deus).”

As três últimas semanas de viagem foram livres de outrosacidentes e abençoadas com melhor tempo. Mesmo assim, a visão deterra firme foi especialmente bem-vinda. Os colonos logo estavamderrubando árvores, reconstruindo abrigos abandonados, plantandosementes e fazendo contato com os nativos — especialmente os croatãou croatoan, que haviam recebido bem os ingleses antes. No entanto,desta vez a trégua durou pouco. Exatamente uma semana depois que osprimeiros navios de John White chegaram à ilha Roanoke, um de seuscolonos, George Howe, foi encontrado emborcado nas águas rasas deAlbemarle Sound. Ele estava pescando sozinho quando um grupo de“selvagens” o pegou desprevenido. White deduziu como foi o ataque apartir de evidências encontradas no local. Conforme seu diário debordo:

Esses selvagens, que se escondem secretamente entre osjuncos altos, onde muitas vezes encontram cervos adormecidos eos matam, viram nosso homem vadeando sozinho, quase nu, sem

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nenhuma arma, exceto um cajado bifurcado com o qual pegavacaranguejos, e afastado duas milhas de seu grupo, e atiraram neledentro da água, fazendo-lhe 16 feridas com suas flechas; depoisde matá-lo com suas lanças de madeira, bateram em sua cabeçaaté despedaçá-la e fugiram sobre a água.

White concluiu que Howe fora “flechado” 16 vezes porque ocorpo tinha 16 pequenos furos.

“Na verdade, nenhuma flecha foi encontrada perto do senhorHowe. O governador White também omitiu um detalhe importantede seu registro — que o corpo já estava começando a sedecompor, apesar de o senhor Howe ter sido morto apenasalgumas horas antes de ser encontrado.”

No dia 18 de agosto, a colônia parou de pensar em croatoans eexultou com a chegada do primeiro bebê, Virginia Dare — a neta deJohn White. Ela foi a primeira criança de origem inglesa a nascer noNovo Mundo e, assim, como sua mãe, tinha os cabelos ruivos. O partofoi feito pelo único médico da colônia, Thomas Crowley.

“Crowley era um homem gordo e careca, de 56 anos. Altoem estatura, tinha um rosto bondoso, marcado de varíola, e umaconhecida paixão por anedotas. Por isso e por sua habilidadecomo médico, ele era tido em alta conta, e poucas coisas lhedavam mais prazer do que fazer um paciente esquecer seusproblemas dando uma risada.”

Satisfeito por sua colônia estar prestes a começar para valer (nãoobstante o passamento do senhor Howe), John White voltou àInglaterra para relatar os progressos e buscar suprimentos. Ele deixoupara trás 113 homens, mulheres e crianças — inclusive sua neta,Virginia. Se tudo corresse bem, ele voltaria meses depois, levando-

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lhes comida, material de construção e mantimentos para trocar com osnativos.

“Tudo deu errado.”

Uma série de acontecimentos conspiraram para que John Whitesó voltasse da Inglaterra três anos depois.

Primeiro, sua tripulação não queria navegar durante os perigososmeses do inverno. A travessia no verão já havia sido perigosa efatídica o bastante. Incapaz de encontrar tripulação substituta, Whiteenfrentou o que deve ter sido um inverno enlouquecedor e aflitivo.Quando enfim chegou a primavera, a Inglaterra estava em guerra com aEspanha, e a rainha Elizabeth precisava de todos os navios àdisposição. Isso incluía os que White pretendia usar para voltar aoNovo Mundo. Ele pelejou até que encontrou um par de naviosmenores, mais velhos, de que Sua Majestade não precisaria. Todavia,logo no início da viagem ambos foram capturados e pilhados porpiratas espanhóis. Já sem suprimentos para os colonos, White deu avolta e retornou à Inglaterra. A guerra contra a Espanha duraria aindamais dois anos, deixando John White preso em seu próprio país,infinitamente frustrado. Em 1590 (tendo desistido de levarsuprimentos), ele finalmente conseguiu uma passagem em um naviomercante. No dia 18 de agosto, o aniversário de 3 anos de sua netaVirginia, ele voltou a pôr os pés na ilha de Roanoke.

Todos haviam ido embora.Até o último homem, mulher e criança. Sua filha. Sua neta de

colo. Os Barrington. Tinham sumido. Sua colônia havia simplesmentedesaparecido no ar. As construções permaneciam exatamente iguais(embora gastas pelo tempo e tomadas pela vegetação). Ferramentas esuprimentos estavam exatamente onde haviam sido deixados. Cercadospelo solo fértil e por vida selvagem abundante, como poderiam termorrido de fome? Se tivesse ocorrido algum tipo de praga, ondeestavam as sepulturas de todos? Se tivesse havido guerra, onde

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estavam os sinais? Não fazia nenhum sentido.Havia apenas duas pistas dignas de nota: a palavra “Croatoan”,

gravada em um mourão da cerca, e as letras “CRO”, gravadas na cascade uma árvore perto dali. Teriam os croatoans atacado a colônia?Parecia improvável. Eles teriam incendiado tudo, antes de mais nada.E haveria corpos. Provas. Algo. White deduziu (ou desejou que fosseassim, de todo modo) que as inscrições cifradas significavam que oscolonos, por algum motivo, haviam mudado o local do assentamentopara perto da ilha Croatoan. Mas ele não chegaria a ter chance deprovar sua teoria. O tempo estava mudando para pior, e a tripulaçãodo navio mercante se recusou a ficar mais tempo. Depois de três anostentando voltar, e apenas algumas horas em terra firme, deram-lhe umultimato: voltar para a Inglaterra e tentar formar outra expedição, ouser deixado ali para se virar sozinho em um continente estranho semnenhuma ideia de onde seus conterrâneos poderiam estar — nem seestavam mesmo vivos. White foi com o navio e nunca mais pisou noNovo Mundo. Ele passou o resto de seus dias atormentado pelatristeza, pela culpa e, sobretudo, intrigado com o desaparecimento deseus 113 colonos.

“Acho”, disse Henry, “que foi melhor ele nunca ter sabido averdade.”

__________

Pouco depois do primeiro retorno do governador White à Inglaterra,as pessoas de Roanoke foram acometidas por uma estranha doença,que provocava febre aguda em suas vítimas. Essa febre causavadelírios, coma e, por fim, a morte.

“O doutor Crowley achou que fosse uma doença nativa. Foiincapaz de debelar seus efeitos. Nos três meses seguintes à

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partida do governador White, dez de nós sucumbiram à praga.Nos três meses seguintes, mais doze. Os corpos foram levados aalguma distância na mata e queimados, para que a doença nãocontaminasse o solo perto do assentamento. Ficamos apavoradoscom a possibilidade de que os próximos corpos fossem osnossos. Uma vigília quase que constante foi observada na costaleste da ilha, na esperança de avistarmos navios em breve.Porém, nenhum apareceu. É provável que tudo continuasse assim,não fosse a descoberta de algo hediondo.”

Eleanor Dare não conseguia dormir. Não enquanto seu maridolutava por sua vida a menos de 50 metros. Ela se vestiu, envolveuVirginia, ainda bebê, no cobertor e caminhou no ar congelante até odoutor Crowley, resolvida a passar a noite em claro, rezando ao ladoda cama do marido.

“Ao entrar, a senhora Dare deparou com a pavorosa visãode Crowley com a boca no pescoço de seu marido. Ele deu umpasso para trás e mostrou suas presas, fazendo-a gritar. Com oalerta, vários de nossos homens correram até Crowley comespadas e bestas, mas encontraram a mulher assassinada, e apequena Virginia nas garras do vampiro. Crowley gritou para oshomens recuarem. Eles se recusaram. Sem nunca ter ouvido falarem vampiro, os homens logo pereceram.”

Os gritos acordaram o resto da colônia, inclusive Henry.

“Pus minha roupa e disse a Edeva que fizesse o mesmo,pensando que fosse um ataque de nativos. Saí na noite com minhapistola, disposto a proteger meu lar até o fim. Porém, ao chegarao centro do vilarejo, dei com uma extraordinária visão. Umavisão terrível. Thomas Crowley — com os olhos negros, um parde navalhas brancas na boca — rasgando Jack Barrington ao

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meio, espalhando suas entranhas por todo lado. Vi amigosdestroçados pelo chão. Alguns sem membros. Alguns sem cabeça.Crowley reparou em mim e veio em minha direção. Aponteiminha pistola e disparei. A bala fez um furo, atravessando ocentro do peito dele. Mas nem isso fez com que ele sequerdiminuísse o passo. Ele continuou vindo. Não tenho vergonha deadmitir que nessa hora perdi toda a coragem. Só pensei emescapar. Só pensei em Edeva e na criança por nascer em suabarriga.”

Henry se virou e correu os 50 metros que o separavam de suacasa o mais rápido que pôde. Edeva já esperava na porta. Ele malparou e arrastou-a pela mão, correndo até a linha das árvores. A praia.Vamos correr até a pra…

“Eu podia ouvi-lo correr atrás de nós. Seus passos partindoa terra. Cada passo mais perto que o outro. Corremos para o meiodas árvores. Corremos até sentir os pulmões queimando — atéque Edeva começou a perder o ritmo, e senti os passos dele atrásde nós.”

Nunca chegaremos à praia.

“Não me lembro de nada. Só que acordei de bruços, e nahora vi que meus ferimentos eram mortais. Meu corpo estava todoquebrado — braços e pernas imprestáveis. O sangue secara sobremeus olhos, deixando-me cego de um lado. Com o som darespiração arfante de Edeva, percebi que ela estava mais pertodo fim do que eu. Estava deitada de lado, o vestido amarelo sujode sangue. Seu cabelo loiro estava empapado de vermelho.Aproximei meus olhos dos dela — abertos e distantes. Passei amão em seu cabelo e simplesmente fiquei olhando para ela.Vendo-a respirar devagar, sussurrando: ‘Não tenha medo, amor.’

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E então ela parou.”

Quando o sol nasceu, Crowley já havia arrastado quase todos osseus companheiros colonos para dentro da mata. Não lhe restara outraalternativa. Explicar como uma praga era fácil. Quase tão fácil quantoexplicar um homem caído do cesto da gávea, ou uma garota pulandopor sobre a amurada, ou um pescador atacado por selvagens. Masgritos na noite, seguidos pelo desaparecimento de quatro homens, umamulher e uma criança? Isso ele não podia explicar. Seria interrogado.Descoberto. E isso ele não podia permitir que acontecesse. Um porum, ele arrastou os corpos vencidos. De seus 112 companheiroscolonos, apenas uma pessoa fora poupada de sua ira.

Crowley hesitara em matar Virginia Dare. Um bebê que elemesmo trouxera ao mundo? A primeira alma inglesa nascida no NovoMundo? Essas coisas tinham valor sentimental. Além disso, ela não selembraria do que havia acontecido ali, e uma companheira jovempoderia vir a ser útil nos anos vindouros.

“Ele voltou da mata com a bebê nos braços. Ouso dizer queele ficou surpreso ao me ver com vida — com o que me restavadela —, lutando para permanecer de pé enquanto gravava asletras CRO em uma árvore com uma faca. Meu último esforço deexpor a identidade de meu assassino. Do assassino de minhamulher e de meu filho. Mas seu choque logo passou, e Crowleycomeçou a rir, pois inadvertidamente eu lhe dera uma ideiabrilhante. Colocando a bebê no chão e pegando minha faca, elegravou a palavra ‘Croatoan’ em um mourão de cerca, enquantosorria ao pensar em John White massacrando levas de nativosinocentes em retaliação.”

Crowley preparou-se para arrancar a cabeça de Henry. Masentão novamente hesitou.

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“De repente ocorreu-lhe o fato de que ele seria o únicofalante de língua inglesa em milhares de quilômetros paraqualquer direção — uma perspectiva solitária para alguém quegostava tanto de piadas. Quem riria delas? Ele se ajoelhou sobremim e cortou seu pulso com a unha, deixando o sangue pingar nomeu rosto e na minha boca.”

Crowley enterrou o último colono e foi para o sul, rumo aosterritórios da Espanha, levando uma bebê chorando em um braço e ocorpo quase morto do jovem Henry no outro. Em breve, depois que adoença e as alucinações passassem — depois que seus ossos seremendassem sozinhos —, seu companheiro abriria os olhos para umanova vida em um Novo Mundo. Mas antes, Thomas Crowleycelebraria com um banquete de sangue inglês.

Ele resolvera devorar Virginia Dare.

VI

Vinte e um dias depois de Henry levá-lo inconsciente para a casa, Abeestava bem o bastante para sair do quarto e dar uma volta.

Fiquei perplexo ao ver que meu quarto sem janelas, naverdade, fazia parte de uma casa sem janelas. Uma casainteiramente escavada na terra — paredes e pisosmeticulosamente alinhados com pedra e argila. Uma cozinha ondeele preparara minha comida no forno a lenha. Uma bibliotecacom que ele saciara meu apetite por livros. Um segundo quarto dedormir. Tudo iluminado pelo óleo dos lampiões e decorado pormobiliário elegante e pinturas emolduradas em dourado, como seHenry as considerasse suas janelas para o mundo externo.

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— Isso — disse Henry —, esse foi meu propósito nos últimossete anos. Construir esta casa, uma pá de terra depois da outra.

Todos os quatro cômodos davam para uma pequenaescadaria central. Ali era o único lugar iluminado por um poucode sol, uma luz suave filtrada desde o andar de cima. Ali estava aescada de madeira que eu ouvira Henry subir e descer, subir edescer, inúmeras vezes. Subimos até uma porta fina de madeira— com o sol passando pelas frestas. Abri e passei pela porta,então fiquei surpreso ao me ver dentro de uma pequena cabana detoras, modestamente mobiliada, com um fogão a lenha aceso,tapete e uma cama. Henry deu-me um par de óculos de lentesescuras para quando saíssemos no dia claro. Agora eu podiaavaliar a genialidade de seu engenho, pois de fora sua casaparecia apenas uma cabana modesta nas encostas de uma colinasolitária. “Vamos?”, perguntou Henry.

E assim começou a única escola que Abraham Lincoln frequentouna vida.

Toda manhã, durante as quatro semanas seguintes, Abe e Henrysubiam a escada até a falsa cabana. Todo dia Henry ensinava-lhe maisalguma coisa sobre a identificação e a perseguição aos vampiros.

Toda noite a teoria era posta em prática quando Henry desafiavaAbe a lutar com ele no escuro.

Abandonei as resmas de alho e os frascos de água-benta.Joguei fora as facas. O que ficou foram minhas estacas, meumachado e minha mente. Era esta última arma que Henry passavaa maior parte do tempo aperfeiçoando — ensinando-me a meesquivar dos sentidos animalescos de um vampiro. Como usarsua rapidez a meu favor. Como fazê-los sair do esconderijo ecomo matá-los sem arriscar a pele (o pescoço). Porém, mesmocom todas as aulas de Henry, nada foi tão valioso quanto o tempo

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que passamos tentando matar um ao outro. A princípio fiqueiimpressionado com sua rapidez e sua força — convicto de que eujamais poderia me equiparar a ele. Com o tempo, no entanto,reparei que foi ficando cada vez mais difícil para ele mederrubar. Um dia me vi acertando um ou outro golpe. Logo eracomum eu ganhar três a cada dez disputas com ele.

— Estou em uma situação curiosa — disse Henry depois de Abeter conseguido derrubá-lo uma noite. — Sinto-me como um coelhoensinando uma raposa.

Abe sorriu.— E eu como o rato que é aluno do gato.

__________

Começou o outono, e com ele o final da estada de Abe. Ele e Henrypararam do lado de fora da falsa cabana ao sol da manhã — Henry deóculos escuros, Abe levando alguns pertences e comida para a viagem.Ele já estava algumas semanas atrasado no prazo dado em LittlePigeon Creek e provavelmente levaria uma bronca do pai por voltarsem o dinheiro prometido.

Henry, contudo, encontrou um meio de resolver isso dando amim 25 dólares — cinco a mais do que eu prometera ao meu pai.Naturalmente, o orgulho exigiu que eu recusasse a oferta por sergenerosidade demais. Naturalmente, o orgulho de Henry exigiuque eu aceitasse. Aceitei, e lhe fiquei muito grato. Havia pensadoem muitas coisas que dizer naquele momento: agradecer por suabondade e hospitalidade. Agradecer por ter salvo a minha vida.Por me ensinar como preservá-la no futuro. Pensei em pedirdesculpas pela rispidez com que o julgara a princípio. Noentanto, nada disso provou-se necessário, pois Henry

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rapidamente estendeu a mão e disse: “Vamos nos despedir, semdizer nada.” Apertamos as mãos, e eu fui embora. Mas havia umacoisa que eu me esquecera de perguntar. Algo que me intrigaradesde que nos havíamos conhecido. Voltei e perguntei a ele.“Henry… o que você estava fazendo no rio aquela noite?” Elereagiu estranhamente ao ouvir isso. Mais do que em qualquermomento em toda a minha estada.

“Não existe honra nenhuma em raptar crianças dormindo desuas camas”, disse ele, “ou em degustar um inocente. Já lhe deios meios para aplicar o castigo àqueles que discordarem disso…um dia eu lhe darei seus nomes.”

Com isso ele se virou e caminhou de volta até a cabana.“Não julgue que somos todos iguais, Abraham. Talvez todos

mereçamos ir para o inferno, mas alguns merecem ir antes dosoutros.”

1 Macbeth, ato I, cena 3.

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QUATRO

Uma verdade terrível demaisO Autocrata de todas as Rússias abdicará de sua coroa eproclamará seus súditos republicanos livres antes que nossosproprietários americanos voluntariamente desistam de seusescravos.

— Abraham Lincoln, em carta a George Robertson15 de agosto de 1855

I

Minha querida irmã faleceu…

Em 1826, Sarah Lincoln havia se casado com seu vizinho em LittlePigeon Creek, Aaron Grigsby, seis anos mais velho que ela. O casal semudou para uma cabana perto das duas famílias, e nove meses depoiseles anunciaram que estavam esperando um bebê. Pouco depois deentrar em trabalho de parto, no dia 20 de janeiro de 1828, Sarahcomeçou a perder uma quantidade de sangue fora do normal. Em vezde ir buscar ajuda, Aaron tentou fazer o parto sozinho, assustadodemais para sair do lado da mulher. Quando ele se deu conta dagravidade da situação e correu para chamar um médico, era tardedemais.

Sarah, então, tinha 20 anos. Ela e o bebê natimorto foramenterrados juntos no Cemitério da Igreja Batista de Little PigeonCreek. Ao saber da notícia, Abe chorou convulsivamente. Foi como se

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ele houvesse perdido a mãe outra vez. Ao saber dos detalhes dahesitação de seu cunhado, a tristeza de Abe juntou-se à raiva.

O imprestável filho de uma cadela deixou minha irmã ali,morrendo. Por isso jamais o perdoarei.

“Jamais” acabou se revelando alguns poucos anos. AaronGrigsby morreu em 1831.

__________

Quando completou 19 anos, Abraham Lincoln já havia preenchidoquase todos os centímetros de cada página de seu diário com tinta(com uma letra cada vez menor conforme se aproximava do fim). Odiário continha sete anos de registros notáveis. Declarações sobre seudesdém pelo pai. Seu ódio pelos vampiros. Relatos de suas primeirasbatalhas com os mortos-vivos.

Continha ainda nada menos que 16 cartas dobradas entre suaspáginas. A primeira havia chegado pouco mais de um mês depois queAbe deixara a cabana de Henry e voltara para Little Pigeon Creek.

Caro Abraham,Espero que, ao receber esta carta, você esteja gozando de

boa saúde. Abaixo segue o nome de alguém que merece o infernoantes dos outros. Você há de encontrá-lo na cidade de Rising Sun— três dias rio acima a partir de Louisville. Não considere estacarta uma expectativa de ação. A decisão é sua, sempre.Simplesmente desejo oferecer-lhe a possibilidade de continuarseus estudos e propiciar-lhe algum alívio pelas injustiçassofridas, assim como você também, sem dúvida, procura consolopara elas.

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Abaixo disso vinha o nome de Silas Williams e a palavra“sapateiro”. A carta estava assinada apenas com um H. Abe foi atéRising Sun uma semana depois, dizendo ao pai que iria a Louisvilleprocurar trabalho.

Eu esperava encontrar o local infestado dedesaparecimentos ou algum tipo de pestilência. No entanto, aspessoas pareciam todas de bom humor, e a cidade, em ótimasaúde. Caminhei entre eles com minhas armas escondidas sobmeu longo casaco (pois me ocorrera que a visão de umestrangeiro alto com um machado poderia gerar preocupaçõesentre os cidadãos). Abordei um gentil passante e perguntei ondepoderia encontrar o sapateiro local, pois meus sapatos estavamem péssimas condições. Tendo sido orientado na direção de umaloja modesta a cerca de 50 metros dali, entrei e encontrei umhomem barbudo, de óculos, trabalhando com afinco — as paredesestavam cobertas com sapatos velhos, caindo aos pedaços. Eleera uma criatura dócil de seus 35 anos e estava sozinho. “SilasWilliams?”, perguntei.

“Sim?”Cortei fora sua cabeça com meu machado e saí.Quando a cabeça caiu no chão, seus olhos estavam negros

como os sapatos que ele lustrava. Não faço a menor ideia dequais eram seus crimes e nem quero fazer. Só me importava ofato de que havia agora um vampiro a menos no mundo do quehavia ontem. É estranho, admito, pensar que devo este fato a umvampiro. Contudo, há tempos que se diz que “o inimigo de meuinimigo é meu amigo”.

Quinze outras cartas chegaram a Little Pigeon Creek ao longo dostrês anos seguintes, cada uma delas apenas com um nome, um local e oinconfundível H.

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Havia vezes em que duas cartas chegavam no mesmo mês.Havia outras vezes em que três meses se passavam sem quechegasse carta alguma. Independentemente de quando chegavam,eu sempre partia assim que meu trabalho permitisse. Cada caçadatrazia novas lições. Novas melhorias em minhas habilidades eferramentas. Algumas não exigiam grande esforço, como adecapitação de Silas Williams. Outras exigiam que eu ficassehoras a fio deitado ou posando de vítima — só para virar o jogoquando o vampiro atacasse. Algumas vezes precisei viajar um diaou pouco menos. Outras me levaram longe, até Fort Wayne eNashville.

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FIG. 12. — ABE DE PÉ ENTRE VAMPIROS VITIMADOS POR ELE, EM PINTURA INTITULADA “O JOVEM CAÇADOR”, DE DIEGOSWANSON (ÓLEO SOBRE TELA, 1913).

Não importava a distância da viagem, ele sempre levava osmesmos itens consigo.

Em minha trouxa eu sempre levava o máximo de comida quepudesse, uma frigideira para fritar carne de porco e uma chaleirapara ferver água. Isso tudo ia embaixo do meu casaco, que depois

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eu pagara a uma costureira para reformar, tirar todos os bolsosinternos e costurar um pedaço grosso de couro no lugar. Ali euamarrava o cabo do machado, sempre afiado a ponto de poderraspar minhas suíças. Acrescentei uma besta ao pequeno arsenal,uma arma que eu mesmo fizera a partir dos desenhos de umexemplar emprestado de Armas dos taboritas como guia.Continuei a praticar sempre que possível, mas não ousava usá-laem batalhas até que minhas habilidades melhorassem muito.

Enquanto essas caçadas a vampiros ofereciam uma dose extra devingança, não pagavam nada em termos de dinheiro vivo. Quandojovem, Abe devia trabalhar para ajudar a sustentar sua família. E,segundo os costumes da época, todo salário que recebesse pertencia aseu pai até que completasse 21 anos. Como se pode imaginar, isso nãolhe parecia certo.

A ideia de dar meu dinheiro a um homem daqueles! Do meutrabalho recompensar a falta de empenho dele. De fazer qualquercoisa em benefício de alguém tão inepto. Tão egoísta e covarde!Era um contrato de servidão!

Abe estava sempre à procura de trabalho, fosse para derrubarárvores, levar sacos de cereais ou transportar passageiros de umamargem do Ohio até um vapor em uma chata que ele mesmoconstruíra.1 No início de maio de 1828, quando Abe ainda estava deluto pela morte da irmã, apareceu um trabalho procurando por ele,para variar. Um trabalho que mudaria sua vida para sempre.

James Gentry era dono de uma das maiores e mais prósperaspropriedades de Little Pigeon Creek. Ele conhecia Thomas Lincolnhavia mais de dez anos e era diferente dele em tudo o que se pudesseimaginar. Naturalmente, Abe sempre se espelhara nele por causadisso. De sua parte, Gentry passara a admirar o alto, trabalhador emodesto menino Lincoln. Seu próprio filho, Allen, era pouco mais

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velho que Abe, mas um pouco mais imaturo. O próspero fazendeiroqueria expandir seus negócios (e lucros) vendendo milho e toucinho aolongo do Mississippi, onde o açúcar e o algodão reinavam, emboraoutros mantimentos fossem muito procurados.

O senhor Gentry perguntou se eu me juntaria a Allen paraconstruir e pilotar uma barcaça com seus produtos rio abaixo —parando ao longo do Mississippi e em alguns pontos ao sul paravender milho, porco e outros artigos de sua fazenda. Por isso, eleme pagaria a soma de 8 dólares por mês e compraria minhapassagem no vapor para voltar de New Orleans.

É provável que Abe tivesse aceitado o trabalho mesmo que nãohouvesse a promessa de dinheiro. Era uma oportunidade de escapar.Uma oportunidade de aventura.

Ele colocou seu machado (e, a bem da verdade, as habilidades decarpintaria que aprendera com seu pai) à disposição do trabalho deconstrução de uma resistente barcaça de quarenta pés feita de carvalhoverde, cortando todas as pranchas e ajustando-as na estrutura compregos de madeira. No centro, construiu um abrigo, de modo que elepudesse ficar de pé lá dentro sem bater a cabeça no teto. Ali haviaduas camas, um pequeno fogão, uma lanterna e quatro pequenas janelasque podiam ser fechadas “em caso de um ataque”. Por fim, ele revestiuos vãos com piche e construiu um leme que podia ser controlado doteto do abrigo.

Modéstia à parte, devo dizer que a barcaça ficou muito boa,considerando que foi a primeira que construí. Mesmo quando acarregamos com dez toneladas de produtos, ela afundou menos demeio metro na água.

Allen e Abe partiram com a barcaça abarrotada no dia 23 demaio. Seria uma viagem de mais de 1.600 quilômetros. Para Abe,

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seria seu primeiro contato com o chamado Sul Profundo.

Enfrentamos vento e correnteza e mantivemos os olhossempre atentos ao rio à nossa frente. Muitas vezes fomosforçados a desatolar nossa modesta embarcação da lama e davegetação depois de sermos jogados contra as margens.Enchíamos a pança com as infindáveis reservas de milho etoucinho a bordo e lavávamos nossas roupas nas onipresenteságuas do Mississippi quando ficava insuportável usá-las. Issodurou semanas. Algumas vezes percorríamos quase 100quilômetros em um dia; às vezes, metade disso ou menos.

Os rapazes berraram entusiasmados quando cruzaram o caminhode um vapor, com suas rodas milagrosas e reluzentes soltando vapor eespalhando água rio acima. O entusiasmo havia começado assim queviram fumaça adiante, depois fora crescendo conforme seaproximaram e passaram, gritando saudações e acenando para ospassageiros, pilotos e tripulação.

O barulho dos motores e da água batida. A fumaça pretasubindo pela chaminé e o vapor branco saindo dos tubos. Umbarco capaz de levar um homem de New Orleans a Louisville emmenos de 25 dias? Haveria algum limite para o engenho humano?

Passada essa excitação, eles flutuariam por quilômetros rioabaixo sem um único som.

Era um tipo de paz que raramente encontrei desde então.Como se fôssemos as duas únicas almas sobre a terra — toda anatureza só para nós desfrutarmos. Perguntei-me por que umcriador que sonhara tamanha beleza a estragaria com tamanhamaldade. Tamanha tristeza. Por que Ele não se contentara emdeixá-la intacta. É o que ainda me pergunto.

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Quando o sol mergulhava no horizonte, Allen e Abe começavam aprocurar um bom lugar para ancorar — uma cidade, se possível. Umanoite, pouco depois de passarem por Baton Rouge, Lincoln e Gentryatracaram na fazenda Duchesne, onde amarraram a barcaça a umaárvore com uma corda. Como de costume, os rapazes fritaram algopara comer, verificaram se a corda estava bem presa e se recolheramao abrigo. Ali ficariam lendo ou conversando até os olhos cansarem,apagariam o lampião e dormiriam no mais perfeito escuro.

Acordei assustado e peguei logo o porrete que eu deixava àmão. Ergui-me de um salto e vi dois vultos na entrada. Ouso dizerque eles ficaram surpresos com a minha altura — e um bocadomais surpresos com a ferocidade com que lhes bati na região dacabeça. Corri atrás deles (batendo minha própria cabeça em umaviga ao fazê-lo) até o convés, onde a lua os mostrou por inteiro.Os outros cinco estavam tentando desamarrar nossa barca.“Saiam daí, desgraçados”, gritei, “antes que eu estoure os seusmiolos!” Para que soubessem da minha sinceridade, acertei outronas costelas e levantei o porrete para bater em mais outro. Isso seprovou desnecessário. Os negros fugiram. Quando correram,pude ver os grilhões partidos nos tornozelos de um deles eentendi a verdade. Eles não eram bandidos comuns. Eramescravos. Provavelmente foragidos daquela fazenda e tentandodespistar os cães fugindo em nosso barco.

Gentry acordou com a gritaria e ajudou Abe a escorraçar osúltimos escravos para dentro da mata. Satisfeitos porque nãovoltariam tão cedo, eles zarparam, arriscando-se a descer oMississippi à noite.

Fomos embora, Allen segurando o lampião na proa efranzindo os olhos na noite, eu pilotando o leme do teto doabrigo, tentando nos manter bem no meio do rio. Não pude evitar

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olhar para trás, quando então vi na beira do rio um vulto brancovindo da fazenda para a margem. Ali estava um dos primeirossenhores vindo reclamar seus escravos. Contudo, aquele homem,aquele minúsculo vulto branco, não parou de correr ao chegar àmargem. Ele saltou até a outra margem em um único impulsoimpossível. Eles não estavam fugindo de homens nem de cães.

Estavam fugindo de um vampiro.Por um momento pensei em conduzir-nos até a margem

lamacenta. Em pegar a trouxa debaixo da cama e partir em seuencalço. Não sei dizer se achei que era uma tentativa desesperadaou que as vítimas não valiam a pena. Sei apenas que não parei.Allen (só então se dando conta de como estivera perto de ter agarganta cortada) proferia uma fieira de impropérios como eununca ouvira antes, boa parte dos quais eu nem entendi.Maldizendo-se por não ter trazido um mosquete. Condenando“aqueles assassinos filhos de uma cadela”. Fiquei calado —concentrando-me apenas em nos manter no meio do rio. Nãoconseguia odiar os invasores, pois me ocorreu que estavamapenas tentando preservar a própria vida. Ao fazê-lo, haviamconsiderado necessário privar-me da minha. Allen continuavafalando. Algo sobre aqueles “pretos de uma figa” ou coisa dogênero.

“Não julgue que são todos iguais”, falei.

II

Allen e Abe chegaram a New Orleans ao meio-dia do dia 20 de junho,adernando nas curvas cada vez mais fechadas do Mississippiconforme se aproximavam do centro, onde conseguiriam vender seusprodutos (e a barca, a preço de madeira) aos diversos compradores dabeira do cais. Uma garoa fina saudou sua chegada, um bem-vindo

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alívio para a umidade opressiva que os molestara durante quase toda aviagem rio abaixo.

Vimos primeiro a parte norte da cidade — efervescente eagitada. Fazendas virando casas. Casas virando ruas. Ruasvirando sobrados com varandas de ferro. Tantos barcos! Tantosvapores! Barcaças às centenas, todas reivindicando um pedaçodo grande rio.

New Orleans era uma cidade de 40 mil pessoas, e a porta do Sulpara o mundo. Caminhando pelas docas, era comum encontrarmarinheiros de todos os cantos da Europa e da América do Sul —alguns até mesmo do Oriente.

Estávamos ansiosos para desembarcar logo. Como havíamosdesejado explorar aquela cidade das mil maravilhas! Eu estavapasmo, pois nunca vira tanta variedade — línguas dizendo frasesem francês e espanhol. Damas se abanando na última moda, ecavalheiros trajados dos pés à cabeça com o vestuário mais fino.Ruas cheias de cavalos e carroças; comerciantes vendendo todotipo de artigos que se podia imaginar. Caminhamos pela rue deChartres; contemplamos a Basílica de St. Louis em JacksonSquare, batizada em homenagem ao nosso presidente e à suadefesa heroica. Ali, equipes de homens e mulas abriam valaspara os canos de gás. Quando o mês de trabalho terminasse, umdeles cantaria orgulhoso que a cidade “brilhava feito uma joiacintilante na noite, sem nenhuma lamparina ou vela à vista”.

Abe ficou impressionado com a agitação da cidade e daspessoas. Também se impressionou com a idade das coisas ao seuredor.

Imaginei-me transportado para aqueles lugares da Europa

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sobre os quais eu tanto havia lido. Ali, pela primeira vez naminha vida, havia casas com muros cobertos de hera. Ali haviahomens de letras. Arquitetura e arte. Ali havia vastas bibliotecascheias de ávidos estudantes e patronos orgulhosos. Ali havia tudoo que meu pai jamais entenderia.

A pensão de Marie Laveau na St. Claude Street não era nem delonge a casa em estilo espanhol mais elegante da cidade, mas era boao bastante para aqueles dois barqueiros de Indiana repousarem poruma semana.

Não muito longe da casa da senhora Laveau, havia umsaloon onde se podia beber rum e uísque. Cheios de dinheiro davenda de nossos produtos e de nossa barca, e cheios deentusiasmo por estarmos naquela cidade pela primeira vez,admito que nos permitimos beber — mais do que um par derapazes inexperientes deveria. O saloon estava repleto demarinheiros de todas as partes do mundo. Barqueiros de todos osrecantos do Mississippi, Ohio e Sangamon. Começava uma brigaa cada três minutos. Era incrível que não fossem ainda maisfrequentes.

Mas aqueles barqueiros rabugentos não seriam os únicospersonagens que Abe encontraria em suas primeiras 24 horas em NewOrleans. Na manhã seguinte, enquanto ele e Allen cambalearam pelasruas em busca de um desjejum inofensivo — segurando a cabeçadolorida e protegendo os olhos do sol —, Abe vislumbrou algoincrível vindo na direção deles pela Bienville Street.

(…) uma carruagem de um branco brilhante, puxada por doiscavalos brancos, conduzida por um menino que vestia um paletóda mesma cor. Atrás dele, vinha um par de cavalheiros sentados:um angelical e de faces rosadas, trajando um terno de uma mescla

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comum de verdes e cinzas. O outro vestia um traje de sedabranca, que complementava sua pele clara e seus longos cabelosbrancos. Com os olhos escondidos atrás de óculos escuros.Obviamente, era um vampiro, como eu nunca havia visto antes e,por todas as evidências, o mais rico deles. Elegante e refinado.Desanuviado de sombras. Livre e à vontade para se misturar. Edando risada. Ele e o cavalheiro vivo estavam em meio ao queparecia ser uma conversa bastante calorosa. Eu só conseguiapensar em enfiar uma estaca em seu coração conforme acarruagem se aproximava. Em cortar fora sua cabeça. Imaginavao sangue sobre a seda branca de seu paletó! Ah, eu só conseguiobservá-lo — contido pela ausência de armas e a presença deuma dor de cabeça. O vampiro de cabelos brancos olhou-me comuma expressão sugestiva ao passar por mim. E então senti umacoisa muito estranha… a sensação de olhos invasivos lendo aspáginas de meu diário. O som de uma voz brotando do nada…

Não julgue que somos todos iguais, Abraham.

Eles viraram na Dauphine Street e desapareceram. Mas asensação daqueles olhos invasivos continuou. Desta vez o motivoera claro como o dia. Divisei um sujeito miúdo e pálido do outrolado da rua, esgueirando-se em um beco, seus olhosinquestionavelmente cravados em mim. Vestia-se por completode preto, com cabelos desgrenhados da mesma cor e um pequenobigode sob os óculos escuros. Indiscutivelmente um vampiro.Vendo-se descoberto, o vulto se virou e sumiu dentro do beco. Eunão podia deixar aquilo passar sem investigar! Que se danasse ador de cabeça! Deixei meu amigo sozinho e corri até o forasteiro— caçando-o pelo beco que dava na Conti Street, depoisatravessando a Basin Street, onde o demônio procurou refúgioatrás dos muros do cemitério.2 Eu estava a menos de dez passosdele, mas, ao chegar aos portões, não consegui mais vê-lo. Ele

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havia sumido. Desaparecera em um labirinto de criptas.Perguntei-me se ele não teria simplesmente deslizado para dentrode uma delas; perguntei-me quantos vampiros não haveria…

“Qual é a sua intenção ao me perseguir, senhor?”Dei meia-volta e ergui os punhos. Ele estava atrás de mim

— de costas para o muro interno do cemitério, o demônio sagaz.Encarava-me, segurando os óculos escuros entre os dedos. Deolhos cansados e testa alta.

“Perseguindo-o, senhor?”, perguntei. “E qual a sua intençãoao sair correndo?”

“Bem, senhor, o modo como o senhor protegia os olhos daluz… o olhar familiar que o senhor trocou com o cavalheiro nacarruagem… Achei o que senhor fosse um vampiro.”

Eu mal pude acreditar no que havia escutado.“Você achou que eu era um vampiro?”, perguntou ele. “Pois

eu…”Um sorriso formou-se nos lábios do homenzinho. Ele olhou

para os óculos escuros que trazia entre os dedos; olhou para oforasteiro alto à sua frente. E começou a rir.

“Creio que somos ambos culpados de mau juízo um dooutro.”

“Perdoe-me, senhor, mas… devo entender então que osenhor não é um vampiro?”

“Infelizmente, não”, disse ele, rindo, “ou eu não estaria tãoofegante agora.”

Pedi desculpas e estendi a mão. “Abe Lincoln.” Ohomenzinho apertou-a.

“Edgar Poe.”

III

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Abraham Lincoln e Edgar Allan Poe nasceram com semanas dediferença. Ambos perderam a mãe quando criança. Afora isso, noentanto, tudo o mais na formação dos dois não podia ter sido maisdiferente.

Após a morte da mãe, Poe havia sido criado por um ricocomerciante, John Allan (que comerciava escravos, entre outros bens).Levado de sua Boston natal, tivera uma formação bastante completaem algumas das melhores escolas da Inglaterra. Conhecera asmaravilhas da Europa sobre as quais Abe apenas lera nos livros. Porvolta da época em que Abe jurara vingança contra os vampiros eenfiara uma estaca no coração de Jack Barts, Edgar Allan Poe haviavoltado à América, para morar com seu padrasto na Virgínia edesfrutar todos os luxos associados ao fato de pertencer a uma dasfamílias mais ricas do país. Poe tivera tudo o que Abe sempresonhara: a melhor educação de seu tempo. Os melhores lares. Maislivros do que podia contar. Um pai sem problemas com a ambição.

Mas ele e Abe eram igualmente criaturas miseráveis.Em seu primeiro ano na Universidade da Virgínia, Poe bebeu e

jogou cada centavo que padrasto lhe enviou, até que John Allanfinalmente o deserdou. Furioso e abandonado, ele trocou a Virgíniapor Boston e alistou-se no exército com o nome de Edgar A. Perry,carregando cartuchos na artilharia pela manhã e escrevendo contoscada vez mais sombrios e poemas à luz de velas. Foi ali, em umquartel de sua cidade natal, que Edgar Allan Poe conheceu seuprimeiro vampiro.

Com seu próprio dinheiro, Poe publicou uma pequenareunião de poemas, identificando-se apenas como “Umbostoniano” na capa (temendo o escárnio de seus colegasrecrutas). Dos cinquenta exemplares que mandou imprimir, menosde vinte foram vendidos. Não obstante a fraca acolhida, um leitorvislumbrou o gênio peculiar da antologia de Poe e pagou aotipógrafo para que lhe revelasse a verdadeira identidade do

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autor. “Pouco depois disso fui procurado por um certo senhorGuy de Vere — um viúvo de vastas posses. Ele me contou comodescobrira o meu nome e que ficara muito impressionado commeu trabalho. E então exigiu saber o que um vampiro estavafazendo no exército.”

Guy de Vere estava convencido de que apenas um vampiro podiater escrito poemas com tamanha percepção da morte e da tristeza.Poemas com tamanha escuridão e beleza.

“Ele ficou surpreso, então, ao descobrir que seu criador eraum homem vivo. Eu, por meu lado, fiquei igualmente surpreso aome ver falando com um homem que já não estava mais vivo.”

Poe ficou infinitamente fascinado com o suntuoso chupador desangue De Vere, e De Vere com o obscuro e brilhante Poe. Os doisiniciaram uma tênue amizade, bem semelhante à de Henry e Abe. MasPoe não estava interessado em saber sobre vampiros para melhorcaçá-los — ele queria saber mais sobre a experiência de viver nastrevas, de ir além da morte, para que pudesse escrever melhor arespeito. De Vere ficou contentíssimo em ajudar (uma vez acordadoque Poe jamais publicaria sua identidade).3

Meses depois de conhecer De Vere, o regimento de Poe foitransferido para o Forte Moultrie, na Carolina do Sul. Sem uma cidadepara satisfazer seu apetite por cultura e sem os meios para satisfazersua sede de mais conhecimentos sobre vampiros, o exércitosubitamente lhe pareceu uma prisão.

Assim, ele resolvera conceder a si mesmo uma “licençaextraoficial” e fora para New Orleans com o declarado propósitode “estudar vampiros” — pois De Vere havia insistido em que“não havia lugar melhor na América para fazê-lo”. A julgar pelonúmero de vezes que ele encheu e esvaziou seu copo de uísque,

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ele também fora para lá para beber até morrer. Sentamo-nosnaquela noite no saloon próximo à pensão da senhora Laveau.Allen Gentry fora “congraçar-se com certa variedade de damas”,deixando-nos livres para conversar sobre o tema de nossapredileção, mas que não ousávamos discutir à vontade. Falamosnoite adentro, compartilhando tudo o que havíamos lido, ouvido etestemunhado em primeira mão com relação aos vampiros.

— Como então eles aprendem a se alimentar? — perguntou Abeenquanto o dono do bar varria a taverna vazia ao redor deles. —Como eles sabem que precisam se afastar do so…

— Como um bezerro aprende a ficar de pé? Uma abelha a…construir a colmeia?

Poe serviu-se de outra dose.— É da natureza deles, pura e simplesmente. O fato de você se

dedicar à destruição dessas criaturas, senhor Lincoln, dessas criaturassuperiores, parece-me loucura.

— O fato de você falar delas com tanta reverência, senhor Poe,parece-me loucura.

— Você consegue imaginar isso? Você consegue imaginar ver ouniverso através de olhos assim? Escarnecer do tempo e da morte — eter o mundo como seu Jardim do Éden? Sua biblioteca? Seu harém?

— Sim. Também consigo imaginar o desejo de companhia, odesejo de paz.

— Bem, eu posso imaginar como deve ser nada lhe faltar! Pensena fortuna que se pode amealhar, nos confortos de que pode dispor,nas maravilhas do mundo de que se poder desfrutar ao bel-prazer!

— E quando essa embriaguez desvanece… quando todos osdesejos foram satisfeitos e todas as línguas foram aprendidas —quando lá não há mais nenhuma cidade distante a explorar; nenhumclássico ainda a estudar; mais nenhuma moeda faltando em seus cofres— então o quê? Pode-se ter todos os confortos do mundo, mas de que

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servem se neles não se encontra o conforto?Abe contou uma história popular que ele ouvira pela primeira vez

no velho curso do rio Cumberland.

Era uma vez um homem que queria viver para sempre.Desde jovem, ele rezava a Deus para que lhe concedesse aimortalidade. Ele era generoso e sincero, honesto em seusnegócios, dedicado à esposa e bom para os filhos. Era temente aDeus e pregava Suas leis a quem quisesse ouvir. E, mesmo assim,ele continuou a envelhecer com o passar dos anos, até que porfim veio a morrer velho e frágil. Quando chegou ao céu, eleperguntou: “Senhor, por que Vos recusastes a atender minhaspreces? Não vivi de acordo com Vossa palavra? Não louveiVosso nome a quem quisesse ouvir?” Ao que Deus respondeu:“Fizeste, de fato, todas essas coisas. E é por isso que não teamaldiçoei atendendo as tuas preces.”

— Você fala em vida eterna. Você fala em permitir tudo à mentee ao corpo — disse Abe. — E quanto à alma?

— E de que serve uma alma para uma criatura que nuncamorrerá?

Abe não pôde conter um sorriso. Ali estava um homenzinhoestranho… com um modo estranho de ver as coisas. O segundo homemque ele viria a conhecer que sabia a verdade sobre os vampiros. Elebebia excessivamente e falava com uma voz irritante e aguda. Eradifícil não simpatizar com ele.

— Estou começando a suspeitar — disse Abe — que vocêgostaria de ser um deles.

Poe deu risada da sugestão.— Nossa existência já não é longa e miserável o bastante? —

perguntou ele, em meio aos risos. — Quem, em nome de Deus,desejaria prolongá-la?

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IV

Na tarde seguinte, no dia 22 de junho, Abe perambulou sozinho pelaSt. Philip Street. Allen Gentry não havia voltado das depravações quedesfrutara na noite anterior, e Poe havia se arrastado sozinho até suapensão de madrugada. Depois de dormir até o meio-dia, Aberesolvera que um pouco de ar puro e uma caminhada se faziamdesesperadamente necessários para espantar a neblina de sua mente eo gosto amargo de sua boca.

Deparei com um grande alvoroço na rua à medida que meaproximei do rio — uma multidão se formara ao redor daplataforma, que havia sido decorada de vermelho, branco e azul.Uma faixa amarela drapejava sobre o palco improvisado, com aspalavras HOJE LEILÃO DE ESCRAVOS! UMA HORA DA TARDE! Mais de cem homens seacotovelavam em frente à plataforma. Mais que o dobro donúmero de negros espremidos ali ao lado. A fumaça doscachimbos enchia o ar com a aproximação dos prováveiscompradores — uma risada ocasional rompendo a balbúrdia,lápis e papel na mão conforme chegava a hora. O leiloeiro, umhomem gordo e rosado como um porco, deu então um passo àfrente deles e começou: “Estimados cavalheiros, é um prazerapresentar o primeiro lote do dia.” Nisso, o primeiro negro, umhomem de uns 35 anos, subiu ao palco e curvou-se em umasaudação vigorosa, sorrindo e voltando a se erguer em seu trajemal-ajambrado (que parecia comprado para a ocasião). “Umtouro, chamado Punho! Ainda no auge de sua forma! Mão de obrade primeira como vocês nunca viram igual e certamente umreprodutor que fará uma ninhada de filhos tão fortes quanto ele!”O fato de aquele “touro” parecer alimentar tão fervorosamente aesperança de ser comprado — todo empertigado, sorrindo efazendo mesuras conforme o leiloeiro descrevia suas tantas

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serventias — só me fez sentir pena e repugnância. O restante davida daquele homem… todas as futuras gerações de sua prole.Tudo isso dependia daquele momento. Estava tudo nas mãos deum homem que ele nem conhecia. Um homem disposto a pagar opreço mais alto.

No total, havia mais de duzentos escravos selecionados paraserem leiloados ao longo de dois dias. Faltando uma semana para oleilão, eles haviam sido colocados em dois celeiros, onde oscompradores interessados podiam ir inspecioná-los.

Essa inspeção envolvia todo tipo de invasão e humilhação.Homens, mulheres e crianças, dos 3 aos 75 anos, eram obrigadosa ficar nus diante de estranhos. Seus músculos eram apertados;suas bocas, escancaradas e seus dentes, inspecionados.Obrigavam-nos a andar, curvar-se e carregar pesos, para ver senão escondiam alguma fraqueza. Obrigavam-nos a listar seustalentos. A ajudar a subir seu próprio preço.

Isso ia contra seus próprios interesses,4 pois quanto maior opreço, menos era provável que viessem a conseguir economizar odinheiro necessário para comprar sua liberdade dos proprietários queassim permitissem.

Que teatro! Homens e mulheres! Crianças e bebêsapresentados àquela turba grosseira — àquele bando depretensos cavalheiros! Vi uma menina negra de 3 ou 4 anosagarrando-se à mãe, confusa por estar com aquelas roupas; porter sido esfregada na noite anterior; obrigada a ficar naquelaplataforma enquanto homens gritavam números e acenavam compedaços de papel no ar. Mais uma vez me perguntei por que umCriador que sonhara tamanha beleza haveria de maculá-la comtamanha maldade.

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Se Lincoln percebeu alguma ironia no fato de que ele haviadescido o rio para vender produtos para aqueles mesmos senhores,não chegou a comentar por escrito.

“Cavalheiros, peço agora sua atenção para este beloespécime de família, como nunca houve outro! Esse animal denome Israel… com dentes regulares e porte de robustez incomum.Não se encontra melhor plantador de arroz nesta ou em qualqueroutra freguesia! A esposa, Beatrice… com braços e tronco quasetão fortes quanto de um homem, e mãos delicadas o bastante paraconsertar um vestido de senhora! As crianças — um menino de10 ou 11 anos, fadado a ser tão forte para o trabalho quanto o pai,e uma menina de 4 anos, com um rosto suave como o de um anjo.Os senhores não encontrarão espécimes melhores!”

Cada escravo acompanhava sua própria venda com grandeinteresse, os olhos arregalados a cada grito de oferta. Se era compradopor um senhor com reputação de generosidade ou que havia compradoalgum outro escravo conhecido, saía do palco com uma espécie decontentamento — até de alegria no rosto. Mas se era vendido para umhomem que parecia ser especialmente cruel ou sabia que nunca maisvoltaria a ver seus entes queridos, a angústia calada em seu rosto eraindescritível.

Um comprador em particular chamou-me a atenção — umhomem cujo bolso parecia sem fundo e cujas aquisições pareciamabsurdas. Ele chegara ao leilão depois de começado (isso por sisó já era incomum) e arrematara uns 12 escravos, aparentementesem se importar com sexo, saúde ou habilidades. Na verdade, eleparecia interessar-se apenas por aqueles negros descritos como“pechinchas”. Mas suas aquisições eram apenas uma parte domotivo de me haver chamado a atenção. Tratava-se de um homemesguio, que usava um belo paletó até a cintura — mais baixo que

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eu (embora bastante alto) —, e com uma barba grisalha paradisfarçar a cicatriz que lhe atravessava o rosto de cima a baixodo olho esquerdo, passando sobre os lábios, e indo até o queixo.Ele portava uma sombrinha para se proteger do sol e usavaóculos escuros sobre os olhos. Se não era um vampiro,certamente seguia-lhes a moda. O que era aquilo tudo? Por queele comprara duas mulheres mais velhas com habilidadessemelhantes? Um menino manco? Afinal, para que precisaria detantos escravos?

Decidi segui-lo e descobrir a resposta.

V

Doze escravos caminhavam descalços, indo para o norte por umaestrada enlameada que acompanhava o Mississippi. Eram homens emulheres, com idades entre 14 e 66 anos. Alguns se conheciam a vidatoda. Alguns haviam se conhecido uma ou duas horas antes. Cada umdos 12 vinha com uma corda na cintura que os unia e atava uns aosoutros. Na frente do comboio, seu novo senhor de barba grisalha;atrás, um branco europeu, com o rifle pronto a abater qualquer escravoque ousasse sair correndo. Os dois homens vinham montadosconfortavelmente sobre cavalos. Abe tomou o cuidado de manter certadistância enquanto o grupo atravessava a mata.

Caminhei por cerca de meio quilômetro atrás do grupo.Próximo o bastante para ouvir os gritos ocasionais do europeu,mas longe o bastante para que meus passos cuidadososescapassem aos ouvidos do vampiro.

A noite havia começado a cair quando chegaram a uma fazenda acerca de 12 quilômetros ao norte da cidade e a menos de 2

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quilômetros da margem leste do rio.

Não parecia diferente de qualquer fazenda que eu já viraenquanto subia e descia o Mississippi. Uma cabana de ferreiro.Um pátio de curtume. Um moinho de grãos. Armazéns, máquinas,teares, currais, estábulos e cerca de 25 senzalas cercando a casa-grande. Essas eram cabanas de um cômodo onde uma dúzia denegros viviam juntos, dormindo em chão de terra ou em catres depalha de milho, com tochas de pinheiro acesas para que asmulheres pudessem continuar a costurar noite adentro. Durante odia os campos escuros ao meu redor estariam povoados de ruídose trabalho. Bandos de cem homens cavando valas em longasfileiras. Mulheres puxando arados no calor causticante. Osbrancos europeus passando entre elas a cavalo, procurando amínima desobediência para castigar com rebenques suas costasnuas. No centro de tudo ficava a casa-grande do senhor. Osescravos com “sorte” de trabalhar ali eram poupados de morrertrabalhando no campo, mas de modo algum tinham uma vida fácil,pois também eram açoitados ao menor sinal de transgressão.Além disso, as escravas de qualquer idade também ficavam àmercê dos caprichos inomináveis do senhor.

Abe manteve a distância enquanto os 12 escravos foram levadospara a maison principale e depois para dentro do grande celeiro, comseu interior iluminado por tochas e lamparinas de óleo penduradas.Escondido atrás de uma palhoça a menos de 20 metros dali, eleconseguia ter uma boa visão pela porta aberta.

Ali juntou-se a eles um grande negro (o senhor e o europeujá haviam ido para a casa-grande). Ele pegou um chicote, queestalou sobre os recém-chegados enquanto os mandava formarfila no centro do celeiro. Assim reunidos, eles foram obrigados ase sentar — ainda atados pela cintura com a corda. Uma mulata

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então chegou trazendo um grande cesto debaixo do braço (isso sóserviu para aumentar a apreensão dos recém-chegados, pois semdúvida haviam ouvido histórias sobre escravos marcados a ferropelos senhores). Felizmente, o cesto estava cheio de comida, daqual os escravos foram instruídos a se servirem à vontade. Viseus olhos brilhando diante da carne de porco frita e dos bolos demilho. Do leite de vaca e de punhados de doces. Vi um grandealívio em seus rostos, pois até aquele momento eles estavaminseguros quanto às crueldades que lhes esperavam. Todasencheram a barriga faminta o mais rápido que puderam.

Abe se perguntou se não teria sido leviano em sua desconfiança.Henry havia mostrado que existiam vampiros capazes de bondade. Decontenção. Teriam aqueles escravos sido comprados com o propósitode serem libertados? Afinal, seriam tratados com compaixão?

Quando o banquete já durava o que me pareceu uma meiahora, vi um grupo de homens brancos indo da casa para o celeiro.Eram dez no total, incluindo o senhor que eu seguira desde NewOrleans. Variavam em idade e porte — embora todos parecessemhomens de algumas posses. Ao chegarem ao celeiro, o negroenorme estalou o chicote outra vez e ordenou que os escravosficassem de pé e começou a retirar a corda da cintura deles. Amulata recolheu o cesto e saiu sem nenhuma pressa.

Os homens brancos reuniram-se na entrada, um delesestendeu algo para o anfitrião (seguramente algum tipo de papel— imaginei que fossem cédulas bancárias) e se aproximou da filade escravos. Observei-o ir e voltar, examinando um por um, atéque por fim ele parou atrás de uma mulher mais velha ecorpulenta e esperou. Um por um, os oito outros convidadosestenderam seus tributos ao anfitrião e pararam atrás do escravode sua escolha, até que os nove houvessem escolhido. Os negrosnão ousavam olhar para trás. Seus olhos permaneceram fixos no

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chão. Com nove escravos escolhidos, o negro enorme levou osoutros três para fora do celeiro, noite adentro. O que aconteceudepois a essas três pobres almas, não sei dizer. Só sei daangústia que senti quando desapareceram — pois alguma coisaestava prestes a ocorrer. O que poderia ser, eu não sabia. Sabiaapenas que seria algo terrível.

Ele estava certo. Satisfeito com o fato de que os outros escravosestavam longe do alcance da voz, o anfitrião de barba grisalhaassobiou. Instantaneamente, nove pares de olhos ficaram pretos, novepares de presas desceram, e nove vampiros atacaram suas vítimasindefesas por trás.

O primeiro vampiro agarrou as têmporas da mulhercorpulenta e torceu-lhe a cabeça de modo que o queixo e espinhase encontraram — seu rosto pavoroso foi a última coisa que elaviu. Outra mulher gritou e desmaiou ao sentir a mordida das duaspresas em seu ombro. Mas quanto mais ela lutava, mais funda eraa ferida, e mais livremente seu precioso sangue jorrava na bocada criatura. Vi a cabeça de um menino ser batida até que seusmiolos saíram por um buraco no crânio, e a cabeça de outrohomem ser inteiramente arrancada. Eu nada podia fazer paraajudá-los. Não diante de tantos vampiros. Sem nenhuma arma. Osenhor dos escravos calmamente fechou as portas do celeiro paraabafar os sons da morte, e eu corri noite adentro, com o rostobanhado em lágrimas. Enojado com minha própria impotência.Nauseado pelo que havia presenciado. Mas mais do que tudo…pela verdade que tomava forma em minha mente. Uma verdadeque eu fora cego demais para ver antes.

__________

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No dia seguinte, Abe comprou um diário de capa de couro preto naDauphine Street. Sua primeira entrada, embora em meras 12 palavras,foi uma poderosa declaração daquela verdade, e uma das frases maisimportantes que ele escreveria na vida:

25 de junho de 1828Enquanto este país for amaldiçoado pela escravidão,

também será amaldiçoado por vampiros.

1 Abe ficou espantado ao ver que alguns passageiros estavam dispostos a pagar um dólar para serem transportados por menos de dez metros. Como na época da velha

trilha do Cumberland, em Kentucky, ele também adorava encontrar viajantes e ouvir suas histórias, muitas das quais ele continuaria a contar pelo resto da vida.2 Abe refere-se aqui ao que hoje é chamado de Cemitério St. Louis nº 1.

3 Um acordo que Poe parece haver esquecido em 1843, quando De Vere foi usado como personagem no poema “Lenore”.

4 Um homem saudável, no auge de sua forma, podia chegar a valer 1.100 dólares (uma quantia impossível para um escravo pagar), enquanto uma velha ou alguma

pessoa com qualquer tipo de impedimento chegava a custar 100 dólares ou menos.

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CAÇADOR DE VAMPIROS

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CINCO

Nova SalemA melhor forma para um rapaz crescer é aperfeiçoando a simesmo por todos os meios possíveis, sem jamais desconfiar deque alguém deseja impedi-lo.

— Abraham Lincoln, em carta a William Herndon10 de julho de 1848

I

Abe estava tremendo.Era uma noite muito fria de fevereiro, e ele esperava um homem

vestir suas roupas havia quase duas horas. Abe andava para a frente epara trás… ia e vinha naquela neve pesada, olhando de quando emquando para o edifício inacabado do tribunal do outro lado da praça epara o segundo andar do saloon do outro lado da rua — onde aindahavia uma luz acesa atrás da janela cortinada de uma prostituta.Passara o tempo pensando nas semanas passadas sem camisa descendoo Mississippi, naquele calor insuportável. “Um calor de matar.”Pensou nas manhãs passadas rachando lenha à sombra; nas tardesrefrescando-se a nadar no ribeirão. Mas tais lembranças estavamdistantes há mais de três anos e a centenas de quilômetros. Esta noite,em seu aniversário de 22 anos, ele estava congelando nas ruas vaziasde Calhoun, Illinois.1

Thomas Lincoln havia finalmente desistido de Indiana. Recebera

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informações frequentes de John Hanks, um primo da mãe de Abe,sobre as maravilhas inexploradas de Illinois.

John escrevera sobre as pradarias “abundantes e férteis” daqueleestado. Sobre a “terra lisa que não precisava ser limpa. Sem pedras ecom preço baixo.” Era todo o incentivo de que Thomas precisava parair embora de Indiana e deixar suas amargas lembranças para trás.

Em março de 1830, os Lincoln arrumaram seus pertences em trêscarroças, cada uma atrelada a uma parelha de bois, e deixaram LittlePigeon Creek para sempre. Durante quinze dias exaustivos elesviajaram por estradas cobertas de lama e cruzaram rios congelados,“até que finalmente chegamos a Macon County e apeamos a oeste deDecatur”, cravada no coração de Illinois. Abe tinha então 21 anos.Fazia dois anos que ele testemunhara o massacre dos escravos emNew Orleans. Dois anos entregando para seu pai todos os seussalários duramente amealhados. Agora ele finalmente estava livre paraviver por conta própria. Apesar de ansiar desesperadamente por isso,Abe ainda ficou mais um ano ajudando o pai a construir uma novacabana e ajudando a família a se estabelecer no novo lar.

Porém, essa noite ele fazia 22 anos. E se tudo desse certo, seria oseu último aniversário sob o teto do pai.

[Meu meio-irmão] John foi quem insistiu para que fôssemosa Calhoun comemorar. Não dei ouvidos a princípio, não sendo daminha natureza fazer alarde com a ocasião. Como de costume, eleme importunou até que eu não suportasse mais. Ele deixou clarassuas intenções enquanto íamos a cavalo até a cidade, as quais, sebem me lembro, eram “ficarmos bêbados feito gambás e arranjaruma mulher para lhe fazer companhia”. Ele conhecia um saloonna Sixth Street. Não recordo o nome, se é que tinha nome. Lembroapenas que tinha um segundo andar, onde um homem podia searranjar mediante pagamento. Não ostante [sic] as intenções deJohn, minha consciência permanece limpa a esse respeito.

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Lincoln pode ter resistido à tentação das perfumadas damas dosaloon, mas bebeu uísque à vontade. Ele e John deram boas risadas àcusta do pai, das irmãs e um do outro. Foi tudo “muito bom para oespírito, e um modo excelente de se passar um aniversário”. Mais umavez, a insistência de John valera a pena. Perto do fim da noite,contudo, enquanto seu meio-irmão flertava com uma voluptuosamorena de nome Missy (“como o Mississippi, querido, mas duas vezesmais cheia de curvas, e um bocado mais quente”), Abe viu um homemde estatura mediana entrar no recinto, usando roupas “muito poucoadequadas para uma noite tão fria”.

Seu rosto não ostenta nem sinal do rubor que eu observaranos outros fregueses que entravam afobados na luz e no calor dosaloon — tampouco seu hálito era visível em contraste com o arfrio na entrada. Era um cavalheiro pálido, de seus 30 anos ouainda menos, mas seu cabelo, no entanto, era uma mesclacacheada de castanho e grisalho, o que resultava em algoparecido com a cor das tábuas expostas às intempéries. Ele foidireto ao taverneiro (claramente se conheciam) e sussurrou algopara ele, com o que o homenzinho correu escada acima. Ele eraum vampiro. Ele tinha de ser — maldito uísque. Mas como sabercom certeza?

De repente, Abe foi tomado por uma ideia.

Falei num tom um pouco acima de um sussurro. “Está vendoaquele homem no bar?”, perguntei a John, que dizia algo aoouvido da dama. “Diga-me, você se lembra de ter visto algumavez um homem com um rosto tão repulsivo?” John — que nãofazia ideia de como era o rosto do homem — deu uma gargalhadamesmo assim (tal era seu estado). Ao meu sussurro, o pálidocavalheiro deu meia-volta e me encarou diretamente. Sorri devolta e ergui o copo em um brinde para ele. Nenhuma outra

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criatura teria ouvido o insulto em meio àquela balbúrdia oudaquela distância! Não havia dúvida! Mas eu não poderiaenfrentá-lo. Não ali. Não com tanta gente olhando. Sorri aopensar em ser arrancado dali e acusado de assassinato. Qualseria minha defesa? Que minha vítima era um vampiro? E, alémdisso, meu casaco e minhas armas ainda estavam lá fora, emminha sela. Não — não podia ser. Devia haver outro modo.

O taverneiro voltou com três mulheres a reboque e colocou-asdiante da mesa em que estava o vampiro.

Depois de escolher duas delas, a criatura subiu a escadaatrás delas, e o taverneiro anunciou a última rodada da noite.

A cabeça de Abe, meio embargada de uísque, hesitou até receber“as bênçãos de uma outra ideia”. Sabendo que o irmão jamais lhepermitiria sair para a rua sozinho, ele disse a John que mudara deideia e fez “arranjos” para passar a noite com uma mulher.

John esperava (fervorosamente, desconfio) que issoacontecesse, de modo que rapidamente fez seus própriosarranjos. Desejou boa noite a todos, enquanto o taverneiroapagava os lampiões e arrolhava as garrafas. Tendo dado tempopara meu irmão e sua amiga chegarem ao quarto, subi as escadassozinho. Ali havia um único corredor estreito, à penumbra de umlampião, revestida com um papel de parede de um elaboradopadrão de vermelhos e rosas. Uma série de portas dos dois lados,todas fechadas. No final, outra porta fechada, que, a julgar pelaforma da construção, dava para uma escada dos fundos. Andeilentamente até o meio do corredor, de ouvidos atentos a algumapista sobre o quarto onde estaria o vampiro. Risos à esquerda.Blasfêmias à direita. Sons que não tenho palavras para descrever.Havendo chegado ao final do corredor sem sucesso, por fim ouvi

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o que esperava ouvir à minha direita — vozes de duas mulheresvindas do mesmo quarto. Deixando John a desfrutar o abraçocaloroso de uma estranha, dei as costas, saí no frio e vesti meulongo casaco. Eu sabia que provavelmente o vampiro terminariaseu serviço e iria embora antes de o sol nascer. E quando elesaísse, eu estaria esperando por ele.

Mas depois de duas horas vagando pela rua, ele já estavacansado, gelado e entediado.

O massacre de 16 vampiros havia me deixado deverasaudacioso, eu admito. Sem querer esperar mais no frio, resolvique ia acabar logo com aquilo. Caminhei até a escada coberta deneve dos fundos do edifício, tomando o cuidado de pisar de levee preparando o mártir na mão.

“Mártir” era o nome que Abe dera a uma nova arma de suaprópria criação, como dizia uma entrada anterior de seu diário:

Recentemente, eu li sobre os sucessos de um químico inglêschamado Walker, que desenvolveu um método de criar chamaapenas com a fricção. Havendo obtido os produtos químicosnecessários para reproduzir seus “congreves”,2 passei diversospequenos palitos nessa mistura. Os produtos químicos secaram,juntei-os em maços de vinte palitos bem amarrados (cadaconjunto praticamente com duas vezes a espessura de uma canetatinteiro) e mergulhei-os com exceção de uma das pontas em cola.Quando a extremidade exposta é raspada contra uma superfícierugosa, a chama resultante é breve, violenta e mais brilhante doque o sol. Tais artefatos possuem o efeito de tornar meusadversários de olhos negros temporariamente cegos, permitindo-me cortá-los em pedaços com grande facilidade. Usei-os duasvezes com tremendo sucesso (embora as queimaduras em meus

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dedos testemunhem fracassos anteriores).Fiquei parado diante da porta em questão com o mártir em

uma das mãos e meu machado na outra. A luz que passava pordebaixo da porta iluminava meus sapatos cobertos de neve. Nãohavia vozes vindo do outro lado, e fui momentaneamente tomadopelo vislumbre de duas garotas massacradas sobre a cama, seusangue manchando os lençóis, combinando com os padrões dasparedes. Usando a cabeça do machado, bati três vezes.

Nada.

Depois de dar tempo o bastante para uma resposta, bati maisuma vez. Outro momento se passou sem qualquer ruído do outrolado. Enquanto ponderava se batia outra vez ou não, ouvi a camaranger, depois o rangido de alguém caminhando sobre o assoalhode madeira. Preparei-me para atacar. A porta se abriu.

Era ele. Cabelos encaracolados, da cor da madeira exposta àsintempéries. Nada além de uma camisa comprida entre sua pele e ofrio da noite.

— O que diabos é isso? — ele perguntou.Abe raspou a cabeça do mártir na parede.Nada.

O maldito palito não acendeu, havia ficado tempo demaisdentro do meu casaco. O vampiro olhou para mim intrigado. Suaspresas não se mostraram, nem seus olhos escureceram. Mas aover o machado em minha outra mão, eles se esbugalharam, e elebateu a porta com tanta força que todo o edifício tremeu. Fiqueiali parado, olhando para a porta como um cachorro olha para umlivro, permitindo nesse ínterim que o vampiro escapasse paradentro. Pensando nisso, por fim, dei um passo para trás e chutei aporta com toda a força dos meus calcanhares. A porta se

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escancarou com um tremendo barulho — um barulho queerroniamente [sic] atribuí à madeira rachando. Não identifiquei osom como o de um tiro até a bala de chumbo passar a menos de 3centímetros da minha cabeça e se cravar na parede atrás de mim.Admito que fiquei bastante abalado com isso. Tanto que ao vê-lolargar a pistola e pular de cabeça pela janela (com seu traseirodespido me dando adeus) meu primeiro pensamento foi não depersegui-lo, mas conferir se minha cabeça não estava sangrandocom uma ferida fatal. Contente por não ser este o caso, apressei-me quarto adentro atrás dele — as duas damas bastantedesprevenidas e gritando na cama ao meu lado. Pude ouvir portassendo abertas ao longo do corredor conforme os freguesescuriosos saíam para investigar aquela comoção toda. Ao chegar àjanela, vi minha presa se pondo de pé na rua coberta de neve ecorrendo descalço noite afora, escorregando e caindo com otraseiro nu pelo menos duas vezes antes de sumir do meu campode visão, gritando por ajuda.

Aquele não era nenhum vampiro.Amaldiçoei-me em voz alta todo o caminho até em casa.

Nunca me senti tão constrangido ou cometi tamanho engano porconta da embriaguez. Nunca me senti tão tolo. Se havia algumaperspectiva consoladora, era a seguinte: finalmente eu logoestaria livre.

O inverno de 1831 foi especialmente duro, mas em março veio odegelo, e com isso, os primeiros pássaros no céu e as folhas da relvasobre a terra. Para Abe, o degelo de março pôs um fim aos 22 anoscom Thomas Lincoln. Anos que foram se tornando cada vez mais frios.É provável que tenham se despedido apenas com um aperto de mão, setanto. Abe escreveria apenas o seguinte no dia em que foi embora decasa para sempre:

Ida a Beardstown passando por Springfield. John, John e eu

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esperamos fazer a viagem em três dias.

Lincoln foi a cavalo para o oeste com seu meio-irmão John e oprimo John Hanks. Os três rapazes haviam sido contratados por umconhecido chamado Denton Offutt para construir uma barcaça etransportar produtos ao longo do rio Sangamon até New Orleans, umaviagem de três meses ida e volta.

Offutt seria lembrado por ao menos um de seus contemporâneoscomo “um filho de uma cadela esquentado, rígido e barulhento”. Mas,como a maioria das pessoas que conhecia Abe Lincoln, ele ficariaimpressionado com a capacidade para o trabalho duro, a inteligência ea disposição geral do rapaz. Ao chegar a Beardstown (em três dias,conforme esperavam), Abe liderou a equipe na construção da barcaçae no carregamento com a carga de Offutt.

Minha segunda barcaça era duas vezes maior e tinha muitomais recursos do que a primeira — e foi construída muito maisrapidamente, pois não apenas eu já tinha a experiência de haverfeito uma antes, como agora dispunha de mais mão de obra paradividir o trabalho. Terminamos e partimos em três semanas, paraa surpresa e a satisfação do senhor Offutt.

O rio Sangamon serpenteava ao longo de mais de 400quilômetros pelo centro de Illinois. Não lembrava em nada o“poderoso Mississippi” — estava mais para um riacho ou um córregoem alguns trechos do que um rio, coberto da galharia baixa e deincontáveis pedaços de madeira que flutuavam à deriva, todos à mercêda correnteza. Esse volume tortuoso se retorcia até o mais bondoso rioIllinois antes de chegar ao Mississippi.

O quarteto de barqueiros (Offutt se oferecera para acompanhá-losrio abaixo) sofreu um bocado descendo o Sangamon. Cada dia traziauma nova catástrofe — eram jogados contra as margens; passavam porcima de um tronco de árvore atravessado no rio. Diz a lenda que essa

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barcaça acabou encalhando em uma barragem perto de Nova Salem,Illinois, e começou a fazer água. Conforme os moradores locais foramaparecendo na margem, oferecendo orientação e rindo dos rapazes quepelejavam para salvar sua embarcação, Lincoln foi novamenteacometido por uma de suas ideias. Ele fez um furo na proa da barcaça(que estava suspensa sobre a barragem) e deixou toda a água escorrerpor ali. Isto fez com que a popa se erguesse apenas o suficiente paraque o barco boiasse por sobre a barragem. Com o furo tampado, oshomens conseguiram sair, e as pessoas de Nova Salem ficaram muitoimpressionadas. Denton Offutt também ficara impressionado — nãotanto com a engenhosidade de Abe, mas com o próspero, emboramodesto, povoado de Nova Salem.

Apesar do rio e de seus obstáculos, Abe conseguiu desfrutar umpouco mais daquela paz evanescente durante a viagem. Ele encontroutempo de registrar desenhos, longas lembranças e pensamentosaleatórios em seu diário praticamente toda noite depois queatracavam. Em uma entrada com data de 4 de maio, ele começou adesenvolver sua declaração sucinta sobre a ligação entre a escravidãoe os vampiros.

Pouco depois que o primeiro navio aportou neste NovoMundo, creio que os vampiros chegaram a um acordo tácito comos senhores de escravos. Creio que este país possui uma atraçãoespecial para eles, pois aqui na América eles podem se alimentarde sangue humano sem medo de serem descobertos ou sofreremrepresálias. Sem o inconveniente de viver nas trevas. Creio queisto seja especialmente verdadeiro no Sul, onde sofisticadoscavalheiros vampiros conseguiram encontrar um meio de “criar”suas presas. Onde os escravos mais fortes são postos paratrabalhar na lavoura do tabaco e de alimentos para os afortunadose livres, enquanto os mais fracos são ceifados e comidos. Eis oque eu creio ser a verdade, mas ainda não posso provar.

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Abe havia escrito a Henry sobre o que vira (perguntando tambémsobre o significado daquilo) depois de sua primeira visita a NewOrleans. Não recebera qualquer resposta. Com sua iminente partida deLittle Pigeon Creek, ele havia resolvido voltar à falsa cabana econferir como estava seu amigo morto-vivo.

Encontrei o local deserto. A mobília e a cama haviamsumido, a cabana era agora simplesmente um cômodo vazio. Aoabrir a porta dos fundos, não encontrei mais a escada que davapara os cômodos subterrâneos, mas terra compacta e lisa. Teria oesconderijo de Henry sido completamente aterrado? Ou tudoaquilo teria sido simplesmente sonhado por mim em meu estadodelirante?

Abe não ficou em Indiana tempo o bastante para descobrir. Eleescreveu algo em seu diário, arrancou a página e pendurou-a em umprego sobre a lareira de Henry.

ABRAHAM LINCOLNOESTE DE DECATUR, ILLINOIS

AOS CUIDADOS DO SENHOR JOHN HANKS

__________

New Orleans já não tinha todo aquele encanto da primeira vez, e Abese viu ansioso para concluir logo seus afazeres e pegar um vapor parao norte. Ele ficou apenas alguns dias para que seu meio-irmão e seuprimo pudessem ter uma oportunidade de conhecer a cidade, porémmal se arriscou a sair, pois não queria topar com outro leilão deescravos ou com mais algum vampiro. Fez uma parada, contudo, nosaloon da senhora Laveau — não para beber, mas com a tênueesperança de que pudesse encontrar seu velho amigo Poe. Isso, porém,acabou não acontecendo.

Denton Offutt havia ficado tão impressionado com a desenvoltura

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de Lincoln que lhe ofereceu outro trabalho para quando voltassem aIllinois. Offutt via o rio Sangamon como uma faixa de 400 quilômetrosde oportunidades. A fronteira vinha prosperando, e as cidades estavamsurgindo por toda a extensão das margens do rio. Muitos acreditavamque a navegação logo melhoraria e os vapores em breve começariam alevar passageiros e produtos de seus quintais. Offutt era um dos queacreditava nisso. “Escreva o que estou dizendo”, dizia ele, “oSangamon é o próximo Mississippi. O povoado de hoje é a cidade deamanhã.” Se havia uma coisa que Offutt sabia, é que cada cidadeflorescente precisava de um armazém e de uma dupla de homens paraadministrá-lo. E assim foi que Abraham Lincoln e Denton Offuttvoltaram a Nova Salem, Illinois, ao lado da cena de seu infame resgateda barcaça, desta vez para ficar.

Nova Salem ficava no alto de uma escarpa na margem oeste doSangamon, um aglomerado compacto de cabanas de um ou doiscômodos, oficinas, moinhos e uma escola que fazia as vezes de igrejaaos domingos. Havia, talvez, uma centena de moradores no total.

Cerca de um mês antes da inauguração do armazém dosenhor Offutt, encontrei-me na estranha situação de quem dispõede muito tempo e muito pouco o que fazer. Fiquei, portanto,bastante aliviado ao conhecer um certo senhor William MentorGraham, um jovem professor de primeiras letras quecompartilhava do meu amor pelos livros e que me apresentou àGramática de Kirkham, que eu estudei até ser capaz de recitarcada regra e exemplo de cor.

A história se lembra do alto intelecto de Abe, mas se esquece deque, naquela época, ele era mais alto do que propriamente intelectual.Assim como seu pai, ele possuía uma habilidade natural com aspalavras. No entanto, quando se tratava de escrevê-las corretamente,ele ainda era vítima de seus limitados anos de ensino formal. MentorGraham ajudaria a corrigir isso, o que desempenharia um papel-chave

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na habilidade de Lincoln para se expressar com eloquência mais tardeem sua vida.

Com o pequeno armazém enfim abarrotado e pronto, Abe foitrabalhar atendendo pedidos, fazendo o acompanhamento do estoque eseduzindo a freguesia com sua sagacidade natural e seus casos semfim. Ele e Offutt vendiam utensílios de cozinha e lampiões, tecidos epeles de animais. Medidas de açúcar e farinha, garrafas de licor depêssego, melaço, vinagre tinto de pequenos barris nas prateleiras atrásdo balcão. “Qualquer coisa para qualquer um a qualquer hora”, comoeles costumavam dizer. Além de um salário miserável, Abe recebiaum crédito em produtos e um pequeno quarto nos fundos do armazém.Ali, ele lia à luz de velas e escrevia em seu diário até bem depois dameia-noite.

E então, vela apagada, e todo o povoado adormecido, ele pegavaseu casaco e saía na noite em busca de vampiros.

II

Sem Henry para orientá-lo e preso a poucos quilômetros de NovaSalem (pois precisava voltar para abrir o armazém de Offutt todamanhã às 7 horas), a temporada de matanças de vampiros de Abe teveuma pausa no verão de 1831. Ele vagava à noite pelas matas dosarredores; aventurava-se pelas margens do Sangamon. Porém, excetopor um barulho ocasional que ia investigar, não houve grandesmomentos de excitação. Logo Abe passaria a preferir descansar doque fazer buscas, até que parou de uma vez de se aventurar.

Mas isso não quer dizer que lhe tenham faltado oportunidadespara lutar.

A cerca de meia hora de caminhada de Nova Salem ficava opovoado de Clary’s Grove, lar dos obviamente batizados Garotos deClary’s Grove, uma gangue de rapazes, quase todos aparentados, com

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uma queda para a bebedeira e o quebra-quebra.

Eles só sabiam arranjar confusão, duas por noite pelomenos, na taverna do coitado do Jim Rutledge e eram conhecidospor acabar com batizados no rio atirando pedras nos paroquianosdo meio da mata. Ninguém ousava cruzar o caminho deles, poiseles podiam jogar a pessoa pela janela — ou até mesmo enfiá-laem um barril e lançá-la à mercê do Sangamon.

Acima de tudo, os rapazes de Clary’s Grove gostavam de“valentia”. Orgulhavam-se de ser os “mais cruéis, duros e rebeldesvalentões das cercanias”. Assim, quando ouviram falar que haviaaparecido “um grandalhão para trabalhar” no armazém de NovaSalem, eles se viram na obrigação de conhecê-lo pessoalmente e, casofosse necessário, mostrar quem mandava ali.

Abe sabia que os Garotos de Clary’s Grove estavam querendobriga, como faziam havia anos com qualquer cidadão minimamentecapacitado em termos físicos que aparecesse em seu território. Erajustamente por isso que ele os evitava a todo custo, torcendo para quesimplesmente se acostumassem com ele por ali. Conseguira passarquase dois meses inteiros sem nenhum confronto (um recorde local).Infelizmente, Denton Offutt era um homenzinho com uma boca grandee, ao ver alguns dos Garotos por perto, resolveu contar vantagemsobre seu novo funcionário, dizendo que ele era não só o homem maisinteligente de Sangamon County, mas também “grande o bastante paraacabar com a raça deles todos”.

Eles vieram ao armazém sem avisar e me chamaram. Aonotar que havia mais de dez ali fora reunidos, perguntei qual erao assunto. Um deles deu um passo à frente e disse que elesqueriam apostar no “melhor homem” deles contra mim, porque osenhor Offutt me descrevera como “o sujeito mais duro que ele jáconhecera”. Expliquei-lhes que o senhor Offutt devia ter se

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enganado. Que eu não era nada daquilo e que não tinha tempo aperder com aquela conversa. Minha recusa não deve ter sido bemaceita, pois fui cercado e ameaçado por toda a gangue. Eles nãoiriam me deixar entrar, disseram, até que eu lutasse um pouco. Seeu recusasse, toda Nova Salem saberia que eu era um covarde, eeles revirariam “o armazém de pernas para o ar”. Concordei, masinsisti que fosse uma luta justa. “Oh, mas não vai demorar tantoassim”, disse um deles, e chamou Jack.

Jack Armstrong era um verdadeiro muro de tijolos em forma degente, 10 centímetros mais baixo e uns 10 quilos mais pesado do queAbe. Era o líder inquestionável dos Garotos de Clary’s Grove, equalquer um via por quê.

Ele tinha uma cara de mau e me rodeou com os braços e opeito retesados, como se todo o seu corpo fosse a corda de umarco que podia disparar a qualquer momento. Ele tirou a camisapela cabeça e jogou-a no chão, completando um círculo à minhavolta. Preferindo manter a minha, comecei a arregaçar as mangas.Mal havia começado a fazê-lo quando me vi caído de costas nochão — o ar fugiu-me dos pulmões.

Os rapazes vibraram quando Jack parou de pé e todos vaiaramquando Abe tentou se soltar.

Claramente, minha insistência em uma “luta justa” foraabsurda. Jack voltou a me atacar, mas desta vez eu estava pronto— enfrentando seus braços estendidos com os meus, nossascostas e ombros formando um tampo de mesa conforme nosatracávamos inclinados para a frente, empurrando um ao outro.Ambos com a cabeça abaixada; nossos pés chutando a terra paratrás. Desconfio que ele tenha ficado bastante surpreso com minhaforça. Eu certamente fiquei surpreso com a dele. Parecia que eu

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estava medindo forças com um urso russo.

Mas por mais forte que Jack Armstrong fosse, ele não era nada secomparado aos vampiros com quem Abe se agarrara no passado. Comos pulmões cheios novamente, Lincoln ergueu o braço e agarrou opescoço de Jack com uma das mãos e o cós de sua calça com a outra.

Segurando-o desse modo, ergui seu corpo acima do chão ebem acima de minha cabeça, mantendo-o ali enquanto ele sedebatia, esperneava e xingava. Tal espetáculo produziu em seusamigos uma grande aflição, e de repente fui atacado por todoseles, que me socaram e chutaram em bando. Era uma injustiça queeu não podia relevar.

O rosto de Abe ficou todo vermelho e ele reuniu todas as suasforças, jogando Jack Armstrong contra a parede do armazém enquantogritava: “Eu sou o valentão do bando!”

Agarrei o homem mais próximo pelos cabelos e soquei seurosto com meu punho, deixando-o desacordado. O vizinho destesentiu meu outro punho em seu ventre. Fiquei bem contente aobater em todo o grupo, um por um, e teria continuado assim seJack não houvesse se levantado e pedido a seus homens queparassem com tudo.

Agora era o corpo de Lincoln que estava tenso como a corda deum arco, seus olhos fixos em dois dos Garotos de Clary’s Grove àdistância de um braço.

Jack bateu nas calças para remover algumas lascas e parouao meu lado. “Rapazes”, disse ele, “acho que esse sujeito é odesgraçado mais forte que já pisou em Nova Salem. Quem quiserbrigar com ele, terá de enfrentar Jack Armstrong primeiro.”

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Talvez esta tenha sido a luta mais importante dos primeiros anosde Abe, pois a notícia rapidamente se espalhou por todo o condado deSangamon: havia ali um rapaz dono de um corpo e de uma cabeçapoderosos. Alguém de quem todos podiam se orgulhar. Apesar daapresentação pouco auspiciosa, os Garotos de Clary’s Groverapidamente se tornaram leais asseclas de Abe — e se provariamvaliosos correligionários políticos anos mais tarde. Alguns deles setornaram, inclusive, seus amigos íntimos, embora nenhum tão próximocomo o próprio Jack Armstrong.

Lamentei ter perdido a calma e havê-lo constrangido nafrente de seus amigos. Assim, na noite seguinte à nossa rixa,convidei-o para beber alguma coisa no armazém.

Abe e Jack dividiram uma pequena garrafa de licor de pêssegonos fundos do estabelecimento, o céu ainda ligeiramente azuladoapesar de serem quase 9 horas da noite. Abe sentou-se na beirada dacama e ofereceu a única cadeira ao convidado.

Fiquei surpreso ao descobrir que aquele corpulentoArmstrong era um homem tranquilo e pensativo. Embora fossequatro anos mais jovem que eu, sua maturidade era muito maiorque a de homens com o dobro de sua idade, e ele era dono deuma desenvoltura ao conversar que não era o que se esperariadiante de sua aparência. Ao ver meu exemplar da Gramática deKirkham, ele falou sobre a importância de ler e escrever,lamentando suas deficiências em ambas as coisas.

— A verdade é que era mais importante ser rude — disse Jack.— Esta é uma terra rude, e era preciso ser rude para viver aqui.

— Será mesmo necessário optar entre uma coisa ou outra? —perguntou Abe. — Sempre encontrei tempo para os livros e entendoalguma coisa sobre essa terra rude.

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Jack sorriu.— Não tão rude quanto Illinois.Abe perguntou o que ele queria dizer.— Você já viu alguém que você ama ser estraçalhado e

despedaçado pelo chão?Abe nunca vira, e ficou claramente surpreso com a pergunta. Jack

ficou um pouco incomodado; olhou para o chão.— Fui dar uma volta uma noite com um amigo — disse ele. —

Tínhamos 9 anos e estávamos voltando para casa depois de ficarjogando pedra nas barcaças que navegam no rio, descendo por umatrilha que a gente sabia de cor. Uma hora ele estava ali bem do meulado, conversando comigo no escuro. Em seguida, ele tinha sidolevado por uma pata de urso… puxado para o alto de uma árvore pelacabeça e arrastado até a copa. Não dava para ver nada lá em cima, noescuro. Eu só conseguia ouvir os gritos dele. Senti umas gotas quentesna cabeça… na minha boca. Corri para buscar ajuda, e os homensapareceram com suas espingardas de pederneira. Mas não tinha nadapara eles matarem. Passamos metade da manhã seguinte recolhendo ospedaços dele do chão. Jared. Jared Linder era o nome dele.

Então ficaram em silêncio, e Abe sabia que não devia ser oprimeiro a falar.

— A gente que vive aqui sabe que essa mata tem coisa — disseJack. — A gente sabe que um homem que não bate bem da cabeça…um homem que não seja forte o bastante para enfrentar o que der evier… bem, a gente sabe que um homem assim pode acabar morrendose for andar por ali. O povo fala que os Garotos andam juntos porquesão parentes. Porque a gente gosta de um barulho. Mas a verdade é quea gente só fica junto porque é o único jeito de viver mais. A verdade éque a gente dá uma de valente porque um homem fraco por essasbandas é um homem morto.

— Você tem certeza? — perguntou Abe. — Quero dizer, vocêtem certeza absoluta de que era um urso?

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— Bem, sou capaz de jurar que não foi um cavalo que subiu naárvore.

— Quero dizer… não podia ser alguma coisa mais… estranha?— Oh —, disse Jack, começando a dar risada. — Você quer

dizer alguma coisa dessas que contam em histórias? Um tipo defantasma?

— Sim.— Bem, essas histórias correm pelo rio há muitos anos. Histórias

loucas. Gente que fala em bruxas, demônios e…— Vampiros?Todo sinal de bom humor desapareceu do rosto de Jack ao ouvir

a palavra.— Bobagens que o povo diz. Só para meter medo.Talvez fosse a meia garrafa de licor de pêssego no sangue… ou a

sensação de haver encontrado uma alma gêmea. Talvez elesimplesmente não aguentasse mais guardar todos aqueles segredospara si. Qualquer que tenha sido o motivo, Abe tomou uma decisãosúbita e bastante arriscada.

— Jack… se eu lhe contar uma coisa incrível, você promete meescutar até o fim?

III

Abe andava de um lado para o outro… indo e voltando sobre a terrasolta da rua, olhando de vez em quando para o tribunal recém-construído do outro lado da praça e para o segundo andar do saloondo outro lado da rua, onde a luz ainda estava acesa atrás da cortina deuma prostituta. O clima de final de verão estava muito mais agradáveldesta vez. Assim como sua companhia.

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Foi necessário usar de muita persuasão, mas Jack por fimconcordou em ir comigo a Springfield. A princípio, ele havia serecusado a acreditar em uma palavra do que eu disse —chegando a ponto de me chamar de “maldito mentiroso” e deameaçar me “dar uma sova” por considerá-lo idiota. Implorei quetivesse paciência, contudo, e jurei que provaria a verdade do quedissera ou arrumaria minhas coisas e iria embora de Nova Salempara sempre. Fizera essa promessa na esperança de obtersucesso, pois naquela mesma manhã finalmente havia chegadouma carta.

A carta viera endereçada exatamente segundo as orientações deAbe sobre a lareira de Henry.

ABRAHAM LINCOLNOESTE DE DECATUR, ILLINOIS

AOS CUIDADOS DO SENHOR JOHN HANKS

Havia sido entregue a seus parentes duas semanas antes e foraencaminhada para Nova Salem. Abe rasgara o envelope ao ver aconhecida caligrafia e lera tudo umas dez vezes no balcão do armazémao longo do dia.

Abraham,Minhas desculpas por não ter escrito esses meses todos. O

desaparecimento de tempos em tempos, infelizmente, é partenecessária de minha existência. Escreverei com mais frequênciaquando me estabelecer em um lar mais definitivo. Nesse ínterim,espero que você esteja feliz entre os seus e que continue bem-disposto e com saúde. Se ainda for de seu interesse, quandoquiser, você pode visitar um sujeito cujo nome segue abaixo.Creio que fica a uma curta distância a cavalo de onde você estáagora. Devo avisá-lo, no entanto, que ele é um bocado maisesperto do que aqueles que você visitou no passado. Você podeaté mesmo confundi-lo com alguém da sua espécie.

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Timothy Douglas.A taverna perto da praça.Calhoun.Eternamente,— H

Abe conhecia bem a taverna. Era, afinal, o local de seu maiorconstrangimento como caçador de vampiros. Será que eu estava certoo tempo todo? Seria aquele homem que havia fugido quase nu,gritando por ajuda, um vampiro, afinal?

Entramos na taverna, vestidos em trajes comuns (eu haviadeixado meu casaco guardado lá fora, no alforje da sela). Olheipara os rostos de cada mesa, esperando que o cavalheiro decabelos cacheados devolvesse o olhar em sua camisa comprida ecoberta de neve. Será que sairia correndo ao me ver? Suanatureza de vampiro faria com que me atacasse? Mas não o vi.Jack e eu fomos até o balcão, onde o taverneiro de aventalenxugava um copo de uísque.

— Com licença, senhor. Meu amigo e eu estamos procurandopelo senhor Douglas.

— Tim Douglas? — perguntou o taverneiro, com os olhos fixosem seu trabalho.

— Ele mesmo.— E qual seria o assunto que vocês gostariam de tratar com o

senhor Douglas?— Trata-se de um assunto urgente e particular. Sabe onde ele

está?O taverneiro pareceu intrigado.— Bem, senhores, não precisam procurar mais, disso eu tenho

certeza.

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Ele guardou o copo e estendeu a mão.— Tim Douglas. E o senhor?

Jack caiu na gargalhada. Devia haver algum engano. Aquelehomenzinho inconsequente — um homem que passava as noitesenxugando copos sujos e servindo de alcoviteiro para bêbados eprostitutas? Aquele era o vampiro de Henry? Claro, não tiveoutra escolha senão apertar sua mão… e apertei. Era uma mãorosada e quente como a minha.

— Hank — disse Abe. — Abe Hanks, e eu lhe peço perdão, poispensei tê-lo ouvido dizer “Tom Douglas”. Sim, o cavalheiro queprocuramos é Thomas Douglas. O senhor saberia me dizer onde possoencontrá-lo?

— Bem, senhor, neste caso, não. Receio não conhecer ninguémpor aqui com esse nome.

— Então eu agradeço a sua atenção e desejo-lhe uma boa noite.Abe saiu às pressas da taverna, com Jack rindo o tempo inteiro

atrás dele.

Decidi esperar. Havíamos chegado até ali, e Henry nuncame enganara antes. Pelo menos, esperaríamos até que otaverneiro fechasse e o seguiríamos até em casa pelas sombras.

Depois de passar horas vagando pela praça do tribunal, Abe (quedesde então vestira seu casaco) e Jack (que não parara de provocá-lodesde que saíram da taverna) finalmente viram as luzes se apagarem eo taverneiro sair para a rua.

Ele caminhou pela Sixth Street até a Adams. Seguimos atrás,discretamente; Jack cerca de três passos atrás; o machado prontona minha mão. Eu me esgueirava para dentro das sombras todavez que o taverneiro virava a cabeça — certamente ele se viraria

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e nos descobriria (Jack mal conseguia conter o riso ao me veragir assim). O homenzinho continuava pelo meio da rua, com asmãos nos bolsos. Assobiando. Andando como qualquer serhumano andaria e me fazendo sentir um idiota a cada passo. Eleentrou na Seventh Street, e fomos atrás. Virou na Monroe, econtinuamos atrás dele. Mas ao chegar à Ninth Street, depois deperdê-lo de vista por um breve momento, não havia mais sinaldele. Não havia nenhum beco por onde ele pudesse terescapulido. Nenhuma casa onde pudesse haver entrado em tãopouco tempo. Como era possível?

“Então… é você.”A voz veio por trás de nós. Virei-me, preparado para atacar

— mas não pude. Pois ali estava o corpulento Jack Armstrong, naponta dos dedos. As costas arqueadas. Os olhos esbugalhados. Eali estava o minúsculo vampiro atrás dele, com uma presa afiadaapertando sua garganta. Se Jack fosse capaz de ver aqueles olhosnegros e as presas brilhantes, seu terror haveria duplicado. Otaverneiro sugeriu que eu soltasse meu machado no chão se nãoquisesse ver o sangue de meu amigo derramado. Achei uma boasugestão e deixei a arma cair de minha mão.

— Você é aquele de quem Henry falou. O tal com o talento paramatar os mortos.

Embora Abe tenha ficado surpreso ao ouvir o nome de Henry, seurosto não deu sinal disso. Conseguia ouvir a respiração arfante de Jackacelerar conforme as presas afundavam mais em sua garganta.

— Estou curioso — disse o taverneiro. — Você já se perguntoupor quê? Por que um vampiro teria interesse em varrer da face daTerra os de sua própria espécie? Por que ele mandaria um homemmatar em seu lugar? Ou você simplesmente o obedece cegamente…sem questionar nada, sempre um servo leal?

— Eu só sirvo a mim mesmo — disse Abe.

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O taverneiro deu risada.— Convencido como só um americano.— Ajude-me, Abe — disse Jack.— Somos todos servos — disse o taverneiro. — No entanto, de

nós dois, eu tenho a sorte de saber quem é meu mestre.Jack começou a entrar em pânico. — Po… por… por favor!

Solte-me! — Ele lutou para se soltar, mas isso só fez o taverneirocravar suas presas mais fundo.

Uma gota de sangue escorreu sobre seu pomo de adão, e ovampiro fez um reconfortante “shhhh…”.

Abe aproveitou a oportunidade para enfiar uma mão no bolso docasaco sem ser notado.

Preciso atacar rapidamente; do contrário, meus pensamentosvão acabar revelando meu plano.

— Seu amado Henry merece esse machado tanto quanto qualquerum de nós. Ele simplesmente teve a sorte de encontrá-lo prim…

Tirei o mártir do bolso e risquei-o na fivela do meu cinto omais rápido possível.

Acendeu o fogo.Mais claro que o sol — a luz branca e as centelhas

iluminaram toda a rua. O vampiro recuou e protegeu os olhos,deixando Jack livre. Ajoelhei-me, peguei o machado pelo cabo eatirei-o de joelhos. A lâmina se cravou no peito do vampiro comum estalido de osso e um ruído de ar escapando, e ele caiu,segurando desajeitadamente o cabo com uma das mãos, enquantose arrastava pela rua com a outra. Deixei o mártir aceso cair eterminar de queimar no chão e retirei meu machado do peito dacriatura. Aquele mesmo pavor familiar em seu rosto. O medo deque o inferno ou o esquecimento esperassem por ele. Não medeixei abalar por aquilo. Ergui o machado acima de minhacabeça e arranquei fora a dele.

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Jack estava trêmulo a ponto de passar mal de pavor. Trêmulopelo fato de ter estado a centímetros da morte. Pelo vislumbre captadonaqueles olhos negros; daquelas presas depois de se libertar. Ele nãodisse uma palavra enquanto cavalgavam para casa. Ninguém disse.Eles chegaram a Nova Salem ao nascer do sol e estavam prestes a seseparar em silêncio quando Jack, que já tomava seu rumo para Clary’sGrove, puxou as rédeas e se virou em direção ao armazém.

— Abe — disse ele. — Quero saber tudo o que há para sabersobre matar vampiros.

1 A cidade mudaria de nome para Springfield no ano seguinte.

2 Os fósforos de John Walker (que ele chamava de congreves) eram feitos com uma mistura de antimônio, clorato de potássio, goma e amido. Eram incrivelmente

instáveis e odoríferos.

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SEIS

AnnSinto que devem ser fracas e infrutíferas minhas palavras aotentar distraí-la da tristeza de sua perda tão devastadora… Rezopara que nosso Pai Celestial possa aliviar a angústia de suaprivação e que lhe deixe apenas com a memória querida de quemvocê amou e perdeu.

— Abraham Lincoln, carta à senhora Lydia Bixby,mãe que teve dois filhos mortos na Guerra Civil

21 de novembro de 1864

I

Nova Salem não cresceu tão depressa quanto Denton Offutt esperava;na verdade, a cidade deve ter perdido alguns moradores nos mesesseguintes à abertura de seu armazém. O Sangamon ainda estava longede se tornar “o novo Mississippi”. Sua navegação ainda era umaatividade ardilosa, e apenas alguns poucos vapores continuavampresos às águas mais largas do sul, com todos os seus passageiros ecarregamentos valiosos. Tampouco ajudou muito o fato de NovaSalem possuir então um novo armazém mais perto do centro dopovoado, que desviava os fregueses antes que tivessem a chance dechegar à sua porta. Quando o gelo começou a derreter no morosoSangamon, na primavera de 1832, o armazém de Offutt havia falido, eAbe estava desempregado. Sua raiva é evidente em uma entradadatada de 27 de março.

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Disse adeus a Offutt esta manhã, depois de ter vendido outrocado até o último produto; meus pertences foram levados paraa casa dos Herndon até eu conseguir encontrar outro lugar. Nãome importa que ele tenha ido embora. Não fiquei triste com suapartida, nem me senti minimamente tentado a seguir seu exemplode apatia. Nunca senti preguiça, e não vai ser agora que vousentir. Estou decidido a continuar. Ainda hei de prosperar.

Como sempre, Abe foi fiel à sua palavra. Ele fez o que foipreciso para conseguir dinheiro: rachou lenha, capinou terrenos,construiu cabanas. Sua relação com os Garotos de Clary’s Groverendeu seus primeiros frutos, também, na forma de estranhos serviçosque, coagidos, os moradores lhe passavam. Ele arranjou trabalho atémesmo como “machado” em um dos raros vapores que subiam oSangamon, parado na proa, cortando qualquer obstáculo quedificultasse sua luta rumo ao norte. E, ao mesmo tempo, ele nuncaparou de caçar.

Andei pensando um bocado no que o taverneiro disse. Eu jápensei em por que Henry se interessa tanto pela caça devampiros? Eu já pensei em por que ele me manda em seu lugar?Admito que passei algumas horas perplexo com essas questões.Perguntando a mim mesmo se ali não havia alguma verdade maisprofunda. No fato de eu ser um inimigo jurado dos vampiros aserviço de um outro vampiro. Não há como ignorar esse fato, nemo paradoxo inerente a isso. O fato de estar sendo usado para asfinalidades de vampiro em particular. Devo admitir essapossibilidade. Mas depois de considerar o todo, cheguei a essaconclusão:

Não importa.Se, de fato, eu não passo de um servo de Henry, que seja.

Contanto que o resultado seja haver menos vampiros, eu vouservir a ele feliz.

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As cartas de Henry começaram a chegar com mais frequência, eAbe se aventurava quando elas chegavam. Mas ele não se aventuravasozinho.

Descobri em Jack um companheiro de caçadas capaz eávido e consegui a proesa [sic] de compartilhar com ele todo omeu conhecimento com relação à destruição de vampiros (nãoprecisei lhe ensinar nada sobre agilidade ou bravura, pois eledispõe de ambas em excesso). Sou grato pela ajuda, pois ascartas de Henry passaram a ser tão frequentes que me vi correndode um estado para outro.

Uma noite Abe se viu correndo pelas ruas de Decatur com ummachado ensanguentado nas mãos, Jack a seu lado com uma besta.Cerca de dez passos à frente deles, um homem careca corria em linhareta até o rio Sangamon. O lado direito de sua camisa estava ensopadode sangue, e seu braço direito balançava ao lado do corpo, ao qualestava preso apenas por alguns tendões e pele.

Passamos correndo por uma dupla de cavalheiros na rua.Eles ficaram observando nossa pequena procissão apressada,gritando atrás de nós: “Você aí! Pare agora mesmo!” Que visãodevíamos ser! Não pude evitar rir.

Abe e Jack perseguiram o maneta até a beira d’água.

Ele mergulhou e sumiu sob a água negra. Jack teriamergulhado atrás dele se eu não o tivesse agarrado pelocolarinho e gritado “não!” com o fio de voz que eu ainda tinha.Jack ficou na margem, com falta de ar, apontando sua besta paracada bolha que subia à tona.

— Eu disse para você esperar o meu sinal! — berrou Abe.

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— Ficaríamos esperando a maldita noite inteira!— Bem, agora o perdemos de vez!— Cale a boca e fique de olho! Cedo ou tarde ele vai precisar

sair para respirar…Abe olhou para Jack, sua fúria se rendeu a um sorriso perplexo…

e depois a uma gargalhada.— Sim — riu Abe. — Acho que ele vai subir para tomar ar

qualquer dia desses.Abe pôs a mão no ombro de Jack e o levou para longe da

margem, com sua risada ecoando pelas ruas adormecidas.

Se Jack deixa algo a desejar, é em termos de paciência. Elenão consegue esperar para sair da tocaia — e, receio, estáansioso demais para contar tudo o que sabe para seus amigos deClary’s Grove. Estou sempre lembrando-o da necessidade desegredo, e da loucura que tomaria conta de todo o condado deSangamon se as notícias de nossas andanças se espalhassem paraalém de nós dois.

Ele já estava no condado havia um ano, mas naquele pouco tempoAbe se tornara uma espécie de celebridade local. Um “rapaz cujasmãos são tão habilidosas com um machado quanto com uma pena”, naspalavras de seu professor e amigo, Mentor Graham. Abe vira e ouvirao bastante de seus fregueses para saber o que eles tinham em mente.

A grande preocupação de todos é o próprio rio. Em queestado ele se encontra! Mal passa de um córrego em algunstrechos; entupido por todo tipo de detritos e obstáculos. Sequisermos desfrutar os lucros do Mississippi, ele ainda vaiprecisar de muitas melhorias, para que os grandes vaporespossam navegá-lo livremente. Tal melhoria, é claro, vaidemandar uma grande quantia de dinheiro. Só conheço um jeito(além do crime) de consegui-lo.

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Abraham Lincoln resolveu se candidatar. Ao anunciar suacandidatura para a Legislatura do Estado de Illinois para um jornal docondado, ele se valeu de um tom populista, talvez até algo derrotista:

Sou jovem e desconhecido de muitos de vocês. Nasci e vivi sempre nas mais humildes condições. Não possuo riquezas nem boas relações ouindicações de amigos. Minha proposta se dedica exclusivamente aos eleitores independentes do condado, os quais, se eu for eleito, me terão concedidotamanha distinção que procurarei compensar sendo incansável em meu trabalho. No entanto, se as pessoas idôneas, em seu entendimento, acharem por bemnão me eleger, já estou acostumado às frustrações e não ficarei muito desgostoso.

__________

Logo depois do anúncio de Abe, a notícia de uma “guerra com osíndios” chegou a Nova Salem.

Um chefe sauk chamado Falcão Negro violou um tratado eatravessou [o Mississippi] na altura do povoado de Saukenukrumo ao norte. Ele e seu Grupo de Ingleses1 pretendiam matar ouexpulsar todo colono branco que encontrassem e retomar a terraque eles acreditavam ser sua por direito. O governador Reynoldsfizera uma convocação de seiscentos vigorosos homens parapegar em armas contra esses selvagens e proteger a boa gente deIllinois.

Apesar de suas ambições políticas (ou por causa delas), Abeestava entre os primeiros voluntários de Sangamon County. Anos maistarde, ele se lembraria do entusiasmo que sentiu.

Eu vinha cobiçando uma guerra desde que era um menino de12 anos. Ali estava, enfim, a oportunidade de participar de umaem primeira mão! Imaginei a glória de travar uma batalha —disparar a pederneira e girar o machado! Imaginei que matarbandos de índios seria muito fácil, pois eles não podiam ser maisfortes ou mais rápidos que os vampiros.

Os voluntários se apresentaram em Beardstown, um povoado que

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vinha crescendo nas margens do rio Illinois. Ali, os homens receberamum curso rápido dos fundamentos básicos da guerra oferecido pormilicianos experientes. Antes de partir para o norte, a unidade de Abe— um grupo destrambelhado de voluntários que incluía homens deNova Salem e Clary’s Grove — elegeu-o seu capitão.

Capitão Lincoln! Admito que fiquei com os olhos cheios delágrimas. Era a primeira vez que eu sentia tamanha estima. Aprimeira vez que eu era eleito para liderar meus pares, e asagrada confiança deles me deu mais satisfação do que qualquereleição que venci ou qualquer posto que ocupei desde então.

Entre os que marchavam para a guerra com Abe, estavam seucolega caçador de vampiros Jack Armstrong e um jovem majorchamado John Todd Stuart. Stuart era um homem esguio, de “testa altae cabelo preto bem repartido no meio”. Tinha um nariz “proeminente”e olhos “maus”, que “não faziam jus à gentileza de seu caráter”. Stuartdesempenharia um papel crucial na vida de Lincoln depois da guerra,como seu advogado em Springfield, como um amistoso adversário noCongresso e, acima de tudo, como primo de uma beldade de cabelosnegros do Kentucky chamada Mary Todd.

A realidade da guerra se mostrou muito menos excitante do que aimaginação de Abe havia fabulado. Com milhares de milicianos deIllinois acossando os índios rebeldes para o norte, havia pouca coisaque os voluntários pudessem fazer além de sentar e bufar de calor. Emuma entrada do diário datada de 30 de maio de 1832, depois desemanas acampado a alguns quilômetros do campo de batalha, lê-se:

Meus homens sofreram imensamente (de tédio), muitosangue foi derramado (pelos mosquitos), e tenho usado muito meumachado (rachando lenha). Seguramente merecemos nosso lugarnos anais da história — pois nunca houve tão pouca guerra emuma guerra.

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No início de julho, Abe e seus homens finalmente foramdispensados e começaram a longa viagem de volta para casa, semnenhuma história de guerra para contar. Abe chegou a Nova Salem(onde encontrou duas cartas pedindo sua “atenção urgente”) a menosde duas semanas da eleição para a legislatura estadual. Ele retomousua campanha imediatamente, apertando mãos e batendo nas portas diae noite. Infelizmente a campanha havia crescido para 13 candidatosenquanto ele estivera fora guerreando contra os mosquitos. Com tantotempo perdido e tantos candidatos dividindo os votos, ele não tevechance.

Abe terminou em oitavo. Mas havia um consolo, um aspectopositivo que mesmo o abatido e derrotado Lincoln não pôde deixar denotar: de todos os trezentos votos de Nova Salem, apenas 23 nãohaviam sido para ele. Todos que o conheciam apoiaram-noveementemente. “Era mera questão de mais apertos de mão.”

Sua carreira política havia começado.

II

Lincoln precisava de um sucesso na esteira de sua primeira derrotapolítica… e sabia exatamente onde obtê-lo. Uma entrada datada de 6de março de 1833 dizia:

Vou fazer o que Offutt não conseguiu. Meu Deus, vou abrirum armazém rentável em Nova Salem! Berry2 e eu conseguimoshoje 300 dólares de crédito e temos planos de pagar tudo de voltaem dois anos. Em três anos, teremos economizado o bastante paracomprar nosso ponto comercial.

Mais uma vez a realidade se mostrou menos animadora que aimaginação de Abe. Já havia dois armazéns em Nova Salem quando

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Lincoln e Berry abriram as portas, e mal havia demanda suficientepara manter os dois primeiros. Os historiadores têm especulado sobrecomo um homem com o intelecto de Abe e o bom senso herdado de seupai não previra o problema de acrescentar um terceiro armazém àpraça. Ou por que ele teria se deixado enganar tão completamente porseu sócio, William Berry, que se provaria um sujeito volúvel, poucoconfiável e “permanentemente embriagado”.

A resposta parece ser algo mais que mera ambição. Com oarmazém à beira do colapso menos de um ano depois, as entradas dodiário de Abe foram ficando cada vez mais exangues; desesperadas.Uma em particular se destacava — não só por ser abrupta, mas pela(suposta) referência final à mãe.

Não posso desistir.Devo ser mais do que sou.Não posso falhar.Não posso falhar com ela.

Mas ele falhou — pelo menos no universo dos secos e molhadose chapéus de senhora. O armazém de Lincoln e Berry simplesmentefechou em 1834, deixando cada um dos sócios com dívidas de 200dólares. Ao final, o duvidoso Berry mal podia ser contado entre osvivos. Ele morreria poucos anos depois, deixando Abe com todo ofardo sozinho. Abe levaria 17 anos para terminar de pagar tudo.

Se o ritmo dos acontecimentos tivesse sido diferente, Abepoderia ter arrumado sua mala e ido embora de Nova Salem parasempre. No entanto, haveria outra eleição para a legislatura no estadode Illinois dentro de poucos meses. Sem muito mais o que fazer(“nenhuma carta de Henry tendo chegado ultimamente”), e estimuladopor sua boa votação no pleito anterior, Abe resolveu se candidatar denovo — e dessa vez ele estava decidido a concorrer para valer.Viajou pelo condado a cavalo e a pé, e parando para falar com todomundo que encontrava. Apertou a mão de agricultores que lavravam a

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terra seca e conquistou o respeito deles com demonstrações de suaspróprias habilidades de homem da fronteira e da força que Deus lhedera. Falou em igrejas e tabernas, em corridas de cavalo epiqueniques, apimentando seu discurso figurado (sem dúvida escritoem pedaços de papel alocados em seus bolsos enquanto viajava) comhistórias autodepreciativas de infortúnios em barcaças e guerrascontra mosquitos.

“Nunca vi um homem com tanto talento para falar”, lembrou-seMentor Graham depois da morte de Abe. “Ele era um sujeito canhestro— há quem diga que até mesmo de aparência desagradável —, altocomo uma árvore, com calças largas que terminavam a um palmo dossapatos. Seu cabelo estava sempre desgrenhado; seu paletó, sempreamarrotado, sem passar. Quando ele parava diante de uma plateia,todos olhavam para ele franzindo as sobrancelhas e cruzando osbraços. Mas quando ele começava a falar, as dúvidas desapareciam, etodo mundo se sentia irresistivelmente compelido a aplaudircalorosamente — chegando, inclusive, às lágrimas quando eleterminava.”

Desta vez ele cumprimentou gente o suficiente. Abraham Lincolnfoi eleito para a Legislatura do Estado de Illinois no dia 4 de agostode 1834.

Um pobre rapaz da fronteira, sem um só dólar em seu nomee nem sequer um ano de escola a seu favor, enviado a Vandalia3

para falar em nome de seus compatriotas! Um rachador de lenhasentado entre os letrados! Admito que estou intimidado com aperspectiva de encontrar esses homens. Será que me aceitarãocomo colega ou me eviltarão [sic] como camponês ignorante desapato furado? Em todo caso, desconfio que minha vida mudoupara sempre e não posso conter meu entusiasmo com aaproximação de dezembro.

A suspeita de Abe estava certa. Sua vida nunca mais seria a

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mesma. Logo ele contaria com políticos e eruditos entre seus amigos;trocaria a singeleza erma de Sangamon County pela florescentesofisticação de Vandalia. Ele dera o primeiro passo na direção de setornar um advogado. Seu primeiro passo rumo à Casa Branca. Porém,este fora apenas o primeiro dos dois momentos decisivos daquele ano.

Pois ele também havia se apaixonado loucamente.

III

Jack vinha pensando seriamente em apontar sua besta para Abe.Eles haviam acabado de viajar mais de 300 quilômetros para o norte,até a cidade de Chicago, dormindo sob o frio das estrelas no fim dooutono, caminhando com dificuldade com lama até o joelho e água atéa cintura, “e o destrambelhado só falando sem parar de uma garotadurante todo o caminho”.

Seu nome é Ann Rutledge. Creio que ela tenha 20 ou 21anos, mas não ouso perguntar. Não importa. Jamais criatura tãoperfeita adornou esta terra! Jamais houve homem tão apaixonadoquanto eu! Não escreverei sobre mais nada além de sua belezanestas páginas enquanto eu viver.

Armstrong e Lincoln estavam sentados com as costas apoiadas nofundo de uma baia, dentro de um estábulo, com seus traseirosacomodados em um leito de feno solto. O hálito deles era visível no arfresco da noite que vinha do lago Michigan. As ancas de um cavalo semoviam acima de suas cabeças, e cada movimento do rabo disparavaum receio de que algo naturalmente asqueroso estivesse prestes aacontecer. Eles esperavam por sua presa a noite toda, um falando aossussurros, o outro pensando em assassinato.

— Você já esteve apaixonado, Jack?Jack nem respondeu.

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— É, de fato, um sentimento estranho. Você se vê embriagado defelicidade sem nenhum motivo. Seus pensamentos se perdem nascoisas mais pitorescas…

Jack imaginou um monturo de fezes fumegantes caindo na boca deAbe.

— Eu anseio pelo perfume dela. Você acha estranho eu dizerisso? Eu anseio pelo perfume dela, e por sentir seus dedos delicadosnos meus. Eu mal posso esperar para…

As portas do estábulo se abriram. Saltos de botas pisandopranchas de madeira. Abe e Jack aprontaram suas armas.

O vampiro não podia sentir nosso cheiro por baixo do fedoranimal, nem nos escutar pisando no feno. Os passos pararam; aporta da baia se abriu. Antes que ele tivesse tempo de piscar,meu machado foi atirado em seu peito, e a flecha de Jackatravessou-lhe um olho, entrando em seu cérebro. Ele caiu paratrás, berrando e pondo a mão sobre o rosto, enquanto o sangueesguichava em torno da flecha cravada. Assustado com o barulho,o cavalo empinou — agarrei sua rédea com medo de que nospisoteasse. Enquanto eu continha o animal, Jack puxou meumachado do peito do vampiro, ergueu-o acima da cabeça edesferiu novo sobre o rosto da criatura, rachando-o em dois. Ovampiro ficou imóvel. Jack levantou o machado outra vez edesceu-o com mais força ainda. E assim ele fez uma terceira vez,e uma quarta, acertando várias vezes a cabeça da criatura com olado rombudo da lâmina até que não restasse mais do que umsaco frouxo de pele, cabelos e sangue.

— Meu Deus, Armstrong… o que foi que lhe deu?Jack puxou a lâmina do machado — crunch — do que outrora

fora o rosto do vampiro. Olhou para Abe, ofegante.— Eu fingi que era a sua cara.

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Abe ficou de boca calada durante toda a volta para casa.

__________

Ann Mayes Rutledge era a terceira de dez crianças — filha de um dosfundadores de Nova Salem, James, e sua esposa, Mary. Ela era quatroanos mais nova que Abe, mas idêntica a ele em termos de apetite porlivros. Ann estivera fora durante a maior parte do primeiro ano e meiode Abe em Nova Salem, cuidando de uma tia doente em Decatur elendo tudo o que lhe caía nas mãos para passar o tempo. Não háregistros sobre o que aconteceu com a tia (se morreu, se ficou boa ouse Ann simplesmente se cansou de cuidar dela), mas o que se sabe éque Ann voltou para Nova Salem antes ou durante o verão de 1834.Sabe-se disso porque ela e Abe se conheceram no dia 29 de julho nacasa de Mentor Graham, de cuja biblioteca os dois levavam livrosemprestados e cujos conselhos ambos requisitavam de tempos emtempos. Graham se lembrava dela como uma moça de 20 e poucosanos, com “grandes e expressivos olhos azuis”, “pele clara” e cabeloscastanhos — “não loiros, como disse alguém”. Ela possuía “uma bocabonita e de bons dentes. Era doce como mel e agitada como umaborboleta”. Ele se lembrava também do dia em que Abe a conhecera.“Nunca vi um homem ficar de queixo tão caído nem antes e nemdepois. Ele tirou os olhos de seu livro e foi atingido em cheio nocoração por aquela seta antiga. Os dois trocaram mesuras, lembro,porém, que a conversa foi unilateral, pois Lincoln mal conseguiapensar direito — de tão abalado que ficou com aquela visão adorável.Tão impressionado ficou com seu amor e seu conhecimento doslivros.”

Abe escreveu sobre Ann naquele mesmo dia.

Nunca existiu uma garota assim! Nunca existiu uma criaturatão bela e tão brilhante em um mesmo corpo! Ela é bem uns 30

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centímetros mais baixa que eu, com olhos azuis, cabeloscastanhos e um sorriso brilhante e perfeito. Ela é um tanto esguia,mas isso em nada a diminui, pois combina com sua natureza ternae delicada. Como poderei voltar a dormir sabendo que ela está láfora na noite? Como pensarei em outra coisa se ela é tudo o queme importa?

Abe e Ann voltariam a se ver, primeiro na casa de MentorGraham, onde entabulavam discussões acaloradas sobre Shakespearee Byron; depois em longas caminhadas ao final do verão, durante asquais entabulavam acaloradas discussões sobre a vida e o amor;depois ainda na colina favorita de Ann, que dava para o Sangamon,onde mal chegavam a dizer qualquer coisa.

Sinto-me quase envergonhado de registrar isso aqui, poistemo que de alguma forma isto desvalorizar a coisa em si, masnão resisto. Nossos lábios se encontraram hoje à tarde.Aconteceu quando estávamos sentados sobre uma manta,observando barcaças que às vezes passavam em silêncio láembaixo. “Abraham”, disse ela. Virei-me e fui surpreendido pelorosto dela muito junto ao meu. “Abraham… você acredita no queByron disse? Que ‘o amor encontra um caminho onde os lobostemem caçar’?” Eu disse que acreditava nisso do fundo do meucoração, e ela colou sua boca na minha sem dizer mais nada.

Eis o momento de que desejo me lembrar no meu últimosuspiro.

Ainda faltam três meses para que me chamem em Vandalia,e minha intenção é preencher cada momento na companhia deAnn. Ela é a mais encantadora… mais terna… mais brilhanteestrela do céu! Seu único defeito é lhe faltar bom senso o bastantepara evitar se apaixonar por um tolo como eu!

Abe nunca mais escreveria com tantos floreios no futuro. Nem

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sobre sua esposa; nem mesmo sobre seus filhos. Era o amor a revirar-lhe o estômago, amor obsessivo e eufórico da juventude. Um primeiroamor.

Dezembro chegou “depressa demais”. Ele se despediu de Ann àslágrimas e cavalgou até Vandalia para fazer seu juramento e serempossado como membro da legislatura. A perspectiva de ser “umrachador de lenha sentado entre os letrados” (que anteriormente lhecausara arroubos de excitação) agora mal chegava a ter importância.Durante dois meses de agonia, ele sentou-se no Capitólio pensando emAnn Rutledge e quase mais nada. Quando se encerrou a sessão ao finalde janeiro, ele “já estava na rua antes que o som do martelo terminassede ecoar”, e correu para casa em busca do que viria a ser a melhorprimavera de sua vida.

Não existe música mais doce que o som da voz dela. Nempintura mais bela que seu rosto sorridente. Sentamo-nos à sombrade uma árvore esta tarde, Ann lendo Macbeth enquanto eu deitavaa cabeça em seu colo. Ela segurava o livro com uma das mãos ebrincava com meu cabelo com os dedos da outra —delicadamente beijando minha testa a cada página virada. Eis,enfim, tudo o que é certo no mundo. Eis a vida. Ela é o antídotopara toda treva que envenena este mundo. Quando ela está perto,não me importam dívidas ou vampiros. Só ela existe.

Decidi pedir permissão ao pai dela para nos casarmos. Sóexiste um único obstáculo insignificante no caminho, eprovidenciarei sua remoção imediatamente.

O tal “obstáculo insignificante” chamava-se John MacNamar —e, ao contrário da referência petulante de Abe, ele representava umaséria ameaça à felicidade deles.

Isso porque ele e Ann já eram noivos.

[MacNamar] é, ao que tudo indica, um sujeito de caráter

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duvidoso, que declarou seu amor a Ann quando ela tinha apenas18 anos e simplesmente foi embora para Nova York antes quehouvesse tempo para o casamento. As poucas cartas que elarecebeu dele em Decatur não sugeriam que ele se tratasse de umhomem apaixonado, e ele não envia qualquer notícia para ela hádécadas. Enquanto ele não a libertar do compromisso, contudo,não ficarei satisfeito. Mas confio (pois o curso do amorverdadeiro 4 e espero que tudo seja resolvido de maneira rápida efeliz.

Abe fez o que fazia melhor. Escreveu uma carta a JohnMacNamar.

IV

Na manhã do dia 23 de agosto, Abe lançou dez palavras inócuas emseu diário:

Bilhete de Ann — não se sente bem hoje. Vou visitar.

Havia sido um verão perfeito. Abe e Ann se encontraram quasetodo dia, fazendo longas caminhadas à beira-rio à toa, roubando beijosquando tinham certeza de que ninguém os via. Não que isso importasse— todos em Nova Salem e Clary’s Grove sabiam que os dois estavamapaixonados, em parte graças a Jack Armstrong, que sempre tocava noassunto.

A mãe dela me recebeu à porta e disse que ela não queriavisitas, mas ao ouvir nossas vozes Ann me pediu para entrar.Encontrei-a na cama, com um exemplar do Don Juan sobre opeito. Com a permissão da senhora Rutledge, ficamos a sós.Peguei sua mão e comentei que estava quente. Ann sorriu da

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minha preocupação. “É só uma febre”, disse ela. “Vai passar.”Enquanto conversávamos, não pude deixar de notar que algo maisa incomodava. Algo além de um resfriado de verão. Confrontei-a,e suas lágrimas confirmaram minha suspeita. Mal pude acreditarno que ela disse então.

O noivo havia muito esquecido, John MacNamar, voltara.

“Ele veio me ver anteontem à noite”, disse ela. “Estavafurioso, Abe. Parecia doente; agia de modo estranho. Ele mecontou sobre a sua carta e exigiu que eu respondessepessoalmente. ‘Diga agora que você ama esse outro!’, disse ele.‘Diga, e eu vou embora daqui hoje à noite e não voltarei nuncamais!’”

Ann deu-lhe sua resposta: ela não amava ninguém senão AbrahamLincoln. Mantendo a palavra, MacNamar partiu naquela mesma noite.Ann nunca mais voltaria a vê-lo. A fúria de Abe fica evidente naentrada em seu diário feita naquela tarde.

Eu escrevia a esse MacNamar sobre nosso amor — pedindoque ele fizesse o que um cavalheiro deve fazer neste caso e alibertasse do compromisso. Em vez de responder, ele atravessoucentenas de quilômetros para incomodar uma mulher que eleignorara por três longos anos! Para reivindicá-la para si depoisde havê-la rejeitado! Canalha! Se eu estivesse lá quando ocovarde apareceu, teria arrebentado seu crânio e cortado suascostas em tiras de couro! Mas ainda bem, pois ele foi embora —e com ele, o único impedimento à nossa felicidade. Não vouesperar mais! Quando Ann se recuperar, vou pedir sua mão aopai.

Mas Ann não se recuperaria.

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Quando Abe voltou na manhã do dia 24, ela estava doente demaispara dizer algo além de umas poucas palavras com esforço. A febrepiorou; sua respiração ficou fraca. Ao meio-dia, ela não conseguiamais falar e passou a um estado de consciência intermitente. Quandoela despertava, era para um delírio de pesadelos — seu corpoconvulsionava a ponto de a cama tremer sobre o assoalho. OsRutledge juntaram-se a Abe ao lado dela, mantendo suas compressasfrescas e as velas acesas. O médico estava ali com as mangasarregaçadas desde o meio-dia. A princípio, ele estava “certo” de serfebre tifoide. Agora não tinha mais tanta certeza. Delírios, convulsões,coma — e tudo em tão pouco tempo? Ele nunca vira nada parecido.

Mas Abe já vira.

Um temor me arrepiou ao longo de todo aquele dia e todaaquela tarde. Um temor antigo, familiar. Eu era outra vez ummenino de 9 anos, vendo minha mãe transpirar e sofrer com osmesmos pesadelos. Sussurrando as mesmas orações inúteis;sentindo a mesma culpa insuportável. Fora eu mesmo quem lhetrouxera aquela praga. Fora eu quem escrevera a carta pedindoque ela fosse libertada. E a quem eu pedira tal coisa? A umhomem que havia partido misteriosamente e que voltara doente epálido… um homem que havia esperado a noite cair paraencontrar sua noiva… um homem que preferiria vê-la sofrer emorrer a vê-la nos braços de outro.

Um vampiro.Desta vez não houve o abraço final. Nem o adiamento

momentâneo. Desta vez ela simplesmente se esvaiu. Aquela obra-prima de Deus. Conspurcada.

Destruída.

Ann Rutledge morreu no dia 25 de agosto de 1835. Ela tinha 22 anos.Abe não aceitou bem o fato.

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FIG. 1-3. — ABE CHORA ENQUANTO ANN RUTLEDGE SE ESVAI, EM GRAVURA DO LIVRO DE TOM FREEMAN, O PRIMEIROAMOR DE LINCOLN (1890).

25 de agosto de 1835Senhor Henry SturgesLucas Place, nº 200, St. LouisCarta Expressa

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Caro Henry,Agradeço sua generosidade ao longo desses vários anos e

imploro um último favor seu. Abaixo segue o nome de um dosque merece ir antes. A única bênção desta vida é seu fim.

John MacNamarNova York— A

Nos dois dias seguintes, Jack Armstrong e os Garotos de Clary’sGrove ficaram de olho em Abe em turnos de 24 horas. Tiraram-lhe ocanivete e as ferramentas de carpintaria; levaram-lhe até o rifle depederneira. Confiscaram-lhe até o cinto por medo de que pudesse seenforcar com ele. Jack fez questão de esconder o estoque de armas decaça de Abe longe dele.

Apesar das precauções que tomaram, haviam esquecido umaarma. Ninguém cogitou de olhar embaixo de meu travesseiro,onde eu deixava escondida [uma pistola]. Jack se afastoubrevemente naquela segunda noite, peguei a pistola e encostei ocano na cabeça — decidido a dar um basta em tudo. Imaginei abala penetrando meu crânio. Pensei se eu conseguiria ouvir o tiroou sentir a dor da bala me atravessando. Pensei se veria meucérebro espatifado na outra parede antes de morrer ou se veriaapenas trevas — uma vela se apagando ao lado da cama. Deixei-a ali, mas não atirei…

Viver…

Eu não podia…Eu não podia falhar com ela. Joguei a arma no chão e chorei,

maldizendo a minha covardia. Maldizendo tudo. MaldizendoDeus.

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Em vez de se matar naquela noite, Abe fez o que sempre fazia emmomentos de imensa tristeza ou desatada alegria — feriu o papel comsua pena.

O Solilóquio do Suicídio 5

Sim! Decidi o ato cometer,E deste modo realizá-lo:O coração, com adaga atravessá-loMesmo que no inferno vá viver!

Doce aço! Desembainha-teE cintila, comunica tua força;Dilacera os órgãos do meu alentoE arranca-me o sangue em jatos!

Acerto! No coração ela se agitaE me conduz a este fim;Retiro e beijo a seta em sangue,Minha derradeira, única amiga!

Henry Sturges chegou a galope em Nova Salem na manhãseguinte.

Ele dispensou todos de uma vez, dizendo-se “um primopróximo”. Quando ficamos sós, contei tudo sobre o assassinatode Ann, sem tentar esconder minha tristeza. Henry me abraçouenquanto eu chorava. Lembro-me disso perfeitamente, pois fiqueiduplamente surpreso — por um vampiro poder ser tão caloroso epela sensação de sua pele fria.

— Sorte de quem não perde um ente amado ao longo da vida —disse Henry — e nós não tivemos essa sorte.

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— Você perdeu uma pessoa tão bonita quanto ela? Tão bondosa?— Meu caro Abraham… daria para encher um cemitério com as

mulheres que eu perdi.— Não quero viver sem ela, Henry.— Eu entendo.— Ela é tão bonita, tão… tão boa…— Eu sei.Abe não conseguia conter as lágrimas.— Quanto mais precioso é o presente Dele — disse Henry, —

mais ansioso Deus fica pela devolução.— Não posso continuar sem ela…Henry sentou-se na cama ao lado de Abe, segurando-o em seus

braços… embalando-o como uma criança… que esperneia.— Existe uma alternativa — disse ele, por fim. Abe se ergueu na

cama; enxugou as lágrimas com a manga.— Os mais velhos de nós… nós somos capazes de ressuscitar os

mortos, desde que o corpo ainda esteja íntegro o bastante e a mortetenha se dado poucas semanas.

Abe demorou algum tempo para entender o que Henry dizia.— Você jura que está dizendo a verdade…— Ela viveria de novo, Abraham… mas já vou avisando… ela

estaria amaldiçoada com a vida eterna.

Ali estava a resposta ao meu luto! Um modo de voltar a verde novo o sorriso de minha amada — de sentir outra vez seusdedos delicados nos meus! Nós nos sentaríamos à sombra denossa árvore favorita, lendo Shakespeare e Byron o tempo todo,seus dedos acariciando meus cabelos em seu colo.Caminharíamos durante anos pelas margens do Sangamon! Estepensamento me trouxe grande alívio. Tamanho bálsamo…

Porém, foi fugaz. Pois quando imaginei sua pele pálida, seusolhos negros e as presas ocas, não senti mais o amor que

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havíamos partilhado. Estaríamos juntos, sim, mas seria um dedofrio acariciando meus cabelos. Não à sombra de nossa árvorefavorita, mas na escuridão de nossa casa cortinada.Caminharíamos durante anos pelas margens do Sangamon, masapenas eu envelheceria.

Fiquei tentado às raias da demência, no entanto, não seriacapaz. Não poderia fazer concessões às mesmas trevas que ahaviam arrebatado de mim. Às mesmas trevas que haviam levadominha mãe.

__________

Ann Rutledge foi sepultada no Campo Santo de Old Concord nodomingo, dia 30 de agosto. Abe ficou de pé em silêncio enquanto seucaixão era baixado para dentro da terra. Um caixão que ele mesmoinsistira em fazer. Ele gravou um único verso de Byron no tampo:

É na solidão que estamos menos sós.

Henry estava esperando do lado de fora de minha cabanaquando voltei do enterro. Ainda não era meio-dia, e ele estavacom uma sombrinha sobre a cabeça para proteger sua pele, osóculos escuros cobrindo seus olhos. Pediu que eu oacompanhasse. Não trocamos uma palavra enquanto andamoscerca de meio quilômetro mata adentro até uma pequena clareira.Ali vi um homenzinho pálido e loiro amarrado a um poste pelosbraços e tornozelos, despido e amordaçado. Lenha e gravetosjaziam empilhados a seus pés, e ao lado dele havia um garrafão.

“Abraham”, disse Henry, “permita-me que lhe apresente osenhor John MacNamar.”

Ele estremeceu ao nos ver — sua pele coberta de bolhas eabcessos. “Ele ainda é muito jovem”, disse Henry. “Ainda é

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muito sensível à luz.” Senti a tocha de pinheiro sendo colocadaem minha mão… o calor em meu rosto quando ela foi acesa. Masmeus olhos não se desviaram dos olhos de John MacNamar.“Espero que seja ainda mais sensível às chamas”, disse Henry.Não consegui pensar em nada para dizer. Só conseguia olhar paraele enquanto caminhava em sua direção. Ele se debatia à medidaque eu me aproximava, tentando se soltar. Não pude deixar desentir pena. De seu medo. De seu desamparo.

Isto é loucura.

Mesmo assim, eu ainda queria vê-lo queimar. Joguei a tochana pilha de lenha. Ele se debateu para se desatar, mas de nadaadiantou. Gritou até seus pulmões sangrarem e não emitirem maisnenhum som. As chamas subiram-lhe até a cintura quase nomesmo instante, o que me obrigou a me afastar quando seus pés epernas começaram a ficar negros e a arder. O calor era tão forteque seus cabelos loiros eram soprados para cimaincessantemente, como se ele estivesse em um vendaval. Henrypermaneceu próximo às chamas — mais do que eu podiasuportar. Com o garrafão, ele despejava água sobre a cabeça deMacNamar, sobre o peito, as costas, mantendo-o vivo enquantoas pernas ardiam até os ossos. Prolongando-lhe a agonia. Sentilágrimas escorrendo-me pelo rosto.

Estou morto.

E isso durou mais dez, talvez quinze minutos até que — ameu pedido — finalmente lhe foi permitido morrer de vez. Henryjogou água nas chamas e esperou o cadáver carbonizado esfriar.

Henry colocou delicadamente a mão no ombro de Abe. Abedesvencilhou-se.

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— Por que você mata seus iguais, Henry? E faça-me o favor dedizer a verdade, pois eu mereço pelo menos isso.

— Eu nunca deixei de lhe dizer a verdade.— Então me diga agora e vamos acabar logo com isso. Por que

você mata os seus iguais? E por que…— Por que eu mando você em meu lugar? Sim, sim, já entendi.

Meu Deus, sempre esqueço como você é jovem.Henry passou a mão no rosto. Era uma conversa que ele preferia

ter evitado.— Por que mato meus iguais? Eu já lhe respondi: porque uma

coisa é se alimentar de sangue de velhos, doentes e traidores; outramuito diferente é raptar crianças dormindo em suas camas; outra aindaé fazer homens e mulheres caminharem acorrentados para a morte,como você mesmo viu com seus próprios olhos.

— E por que eu? Por que você mesmo não os mata?Henry fez uma pausa para organizar o pensamento.— Quando vim de St. Louis para cá — disse ele, por fim —, eu

sabia que você não estaria morto quando eu chegasse. Eu sabia nofundo do meu coração… porque eu sei do seu propósito.

Abe ergueu a cabeça e olhou nos olhos de Henry.— A maioria dos homens não tem outro propósito senão

simplesmente existir, Abraham; passam calmamente pela históriacomo personagens secundários sobre um palco que não chegam sequera ver. São joguetes nas mãos de tiranos. Mas você… você nasceu paracombater a tirania. É o seu propósito, Abraham. Libertar os homens datirania dos vampiros. Sempre foi o seu propósito, desde que saiu doventre de sua mãe. E vejo isto emanar de seus poros desde a noite emque nos conhecemos. Brilhando em você tão claro quanto o sol. Vocêacha que foi por acaso que nos aproximamos? Que foi mero acaso oprimeiro vampiro que matei em mais de cem anos ter sido aquele queme levou até você?

— Eu consigo ver o propósito dos homens, Abraham. É meu dom.

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Vejo tão claramente como vejo você agora diante de mim. O seupropósito é combater a tirania…

— … e o meu é garantir que você vença.

1 Nome dado a um grupo de cerca de quinhentos guerreiros e mil mulheres e crianças de diferentes tribos, todos sob o comando de Falcão Negro. Haviam dito a Falcão

Negro que ele receberia toda assistência dos ingleses em qualquer conflito contra os americanos (o que nunca aconteceu).2 William F. Berry, filho de um pastor local e ex-soldado da companhia de Lincoln.

3 Vandalia foi a capital do estado até 1839, quando esta então foi transferida para Springfield.

4 Abe altera a citação ou parafraseia aqui a fala de Lisandro em Sonho de uma noite de verão, ato I, cena 1, verso 136.

5 No dia 25 de agosto de 1838, aniversário de três anos da morte de Ann, o Sangamon Journal trouxe impresso este poema na primeira página. O autor preferiu manter-

se anônimo.

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SETE

O primeiro e fatalChego agora à conclusão de que nunca mais vou pensar em mecasar, e pelo seguinte motivo: nunca me sentiria satisfeito comuma pessoa obtusa o bastante para me aceitar.— Abraham Lincoln, carta à senhora Orville H. Browning

1º de abril de 1838

I

Abe estava no andar de cima de uma casa-grande de fazenda. Já viratantas em suas viagens Mississippi abaixo — aquelas imensasmaravilhas sobre quatro colunas erguidas por mãos escravas. Masnunca antes estivera dentro de uma delas. Até aquela noite.

Segurei Jack em meus braços, suas entranhas visíveis pelocorte aberto em sua barriga. Vi a cor sumindo de seu rosto… vi omedo em seus olhos. E então o nada. Meu corajoso e corpulentoamigo. O mais duro de Clary’s Grove. Partira. E eu ainda nãopodia pranteá-lo — pois eu também estava perto demais damorte.

Havia sido outra daquelas tarefas simples, outro nome da lista deHenry. Contudo, aquele lugar era diferente. Extraordinário. Abe estavapasmo, certo de que deparara com algum tipo de ninho de vampiros.

Quantos deles havia, eu não sabia dizer. Deixei o corpo de

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Jack no chão e entrei em um comprido corredor do andar decima, o machado na mão, meu casaco rasgado pelas mesmasgarras que haviam tirado a vida de meu amigo. Havia portasabertas por toda a extensão do corredor, e enquanto eu passavacom cuidado, cada quarto revelava uma cena mais horrenda que aanterior. Em um deles, os corpos de três crianças pequenaspendiam de cordas presas aos tornozelos — todas com a gargantacortada. Três baldes embaixo recolhiam seu sangue. Em outro, ocorpo seco e de olhos brancos esbugalhados de uma mulher mortaem uma cadeira de balanço. Uma das mãos desse esqueletoapoiada no topo da cabeça de uma criança em seu colo, ainda nãotão decomposta quanto ela. Em pleno corredor… os restosmortais de uma mulher deitada na cama. E o tempo todo eu ouviaos sons das tábuas do assoalho rangendo ao meu redor. De cima abaixo. Arrastei-me… para mais perto da grandiosa escadaria nofim do corredor. Ao chegar à balaustrada, virei-me para observaro corredor inteiro. De repente havia um vampiro à minha frente— embora eu não pudesse ver seu rosto contra a luz. Ele pegou omachado da minha mão e jogou-o para o lado… ergueu-me dochão pelo colarinho. Então vi seu rosto.

Era Henry.“O seu propósito é libertar os homens da tirania, Abraham”,

disse ele. “E para tanto, você precisa morrer.” Então, ele meatirou por sobre a balaustrada. Meu corpo foi caindo na direçãodo mármore do saguão da entrada. Caindo. Caindo sem parar.

Foi o último pesadelo que Abe teria em Nova Salem. Ele levarameses para sair da incapacitante depressão em que caíra com a mortede Ann — e embora isso tivesse renovado seu ódio pelos vampiros,ele se viu sem energia e paixão para caçá-los. Agora, quando chegavauma carta de St. Louis com a letra de Henry, podia levar dias até seraberta (e depois de aberta, podia levar semanas até que Abe fosseatrás do nome que trazia). Às vezes, quando a empreitada exigia

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longas viagens, ele mandava Jack Armstrong em seu lugar. Suamelancolia fica evidente em uma entrada do diário com data de 18 denovembro de 1836.

Eu já me dei demais. Doravante, só caçarei quando me forconveniente, e apenas em honra da memória de minha mãeangelical… apenas em honra da memória de Ann. Não meimporta o cavalheiro desavisado na viela escura da cidade. Nãome importa o negro vendido em leilão, nem a criança tirada dacama. Protegê-los não me trouxe nada em troca. Ao contrário,deixou-me ainda mais pobre, pois os artigos exigidos por minhasempreitadas são fornecidos à minha própria custa. E dias esemanas passados em uma caçada são dias e semanas sempagamento. Se o que Henry diz for verdade — se de fato nascipara libertar os homens da tirania —, então devo começar porlibertar a mim mesmo. Não tenho mais nada a fazer aqui [emNova Salem]. O armazém faliu, e receio que em breve o povoadoseguirá o mesmo rumo. Doravante viverei minha própria vida.

Abe havia sido estimulado a estudar direito por seu velho colegada guerra contra Falcão Negro, John T. Stuart, que tinha uma pequenafirma em Springfield. Depois de estudar sozinho (e apenas em seutempo livre), Abe obteve a licença de advogado no outono de 1836.Pouco depois, Stuart lhe propôs sociedade. No dia 12 de abril de1837, os dois colocaram um anúncio no The Sangamon Journaldivulgando o escritório, situado no “Número Quatro da Hoffman’sRow, Sobreloja”. Três dias depois, Abe chegou solenemente em umcavalo emprestado nas ruas de Springfield, trazendo todos os seuspertences em dois alforjes de sela. Ele tinha 28 anos, e não possuía umcentavo sequer — “todo o meu dinheiro ia para minhas dívidas e paraos livros necessários à minha nova profissão”. Ele apeou diante doarmazém A.Y. Ellis & Cia., do lado oeste da praça, e esgueirou-se“para dentro com uma bolota de carvalho no bolso”. O balconista era

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um sujeito magro chamado Joshua Fry Speed, de 24 anos, com cabelosnegros e um rosto “gracioso” que emoldurava dois “intranquilos”olhos azuis.

Achei-o ao mesmo tempo estranho e irritante. “O senhor énovo em Springfield? Estaria interessado em um chapéu, senhor?Alguma novidade do condado, senhor? O senhor costuma ternecessidade de abaixar para passar pela porta?” Eu nunca tinhaouvido tantas perguntas de uma vez! Nunca havia sido obrigado afalar daquela maneira! Jamais teria tratado meus freguesesdaquele modo quando trabalhava atrás de um balcão. Eu nãoconseguia passar de uma prateleira para a outra sem serinterpelado pelos zumbidos daquele mosquito que não parava deme fazer perguntas, quando tudo o que eu queria fazer eraterminar minhas compras e ir embora. Para tanto, dei-lhe minhalista — que incluía os produtos químicos de que precisava paraas caçadas.

— O senhor vai me desculpar — disse Speed —, mas é umpedido deveras estranho.

— Mas é o meu pedido. Eu também posso lhe dizer os nomes decada…

— Muito estranho, na verdade, senhor. Tem certeza de que já nãonos conhecemos?

— Senhor, vai ser possível comprar o que estou pedindo ou não?— Sim, com toda certeza! Sim… claro, eu vi o seu discurso julho

passado em Salisbury! Sobre a necessidade de melhorias noSangamon. Não se lembra, senhor? Joshua Speed? Seu conterrâneo doKentucky?

— Eu realmente tenho mais o que…— Um belo discurso, senhor! Claro, acho que o senhor estava

bastante equivocado no assunto… cada dólar gasto naquele riacho

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miserável é um dólar perdido. Mas que beleza de discurso!

Ele prontamente se comprometeu a encomendar os itens daminha lista e (para alívio dos meus ouvidos fatigados) passou aanotar cada um deles. Antes de ir embora, perguntei-lhe se sabiade algum quarto para alugar — de preferência barato, uma vezque eu não dispunha de dinheiro no momento.

— Bem, senhor… se o senhor não tem nenhum dinheiro, devoentender que por “barato” o senhor queria dizer “grátis”?

— A crédito.— Ah, “crédito”, sim… o senhor vai me desculpar a franqueza,

mas descobri que “crédito” é uma palavra francesa que significa “nãopagarei nunca mais”.

— Eu honro as minhas dívidas.— Oh, não tenho dúvidas quanto a isso. Mas, mesmo assim, o

senhor não vai encontrar quartos em Springfield. As pessoas aqui têmo estranho costume de trocar mercadorias por dinheiro.

— Entendo… bem, obrigado pela atenção. Bom-dia.

Talvez ele tenha se compadecido da minha situação ou daminha aparência exaurida. Talvez fosse alguém sem amigos comoeu. Em todo caso, ele me deteve e se ofereceu para dividircomigo seu quarto na sobreloja “a crédito — até que consiga sereerguer”. Admito que pensei em recusar. A ideia de dividir umquarto com um mosquito irritante! Seria melhor correr o risco napalha de um estábulo! No entanto, sem opção melhor, agradeci eaceitei sua oferta.

— Evidentemente, você vai precisar de algum tempo para semudar — disse Speed.

Abe foi até a rua. Em seguida, voltou com seus alforjes e oscolocou no chão.

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— Pronto.

II

Springfield prosperava. Cabanas de madeira e carros de boi davamlugar a edifícios de alvenaria e carruagens, e parecia haver doispolíticos para cada agricultor. Era um longo caminho desde NovaSalem — e ainda mais longo desde as asperezas da fronteira em LittlePigeon Creek. Mas com toda a agitação e as vantagens da vida urbana,vinham a reboque crueldades com as quais Abe não estavaacostumado. Sua descrição de um incidente oferece uma janela atravésda qual se pode entender a violência crescente de uma cidade queflorescia, assim como outras provas da prolongada melancolia deLincoln.

Testemunhei hoje uma mulher e um marido sendo baleados emortos — este último sendo parcialmente responsável por ambasas mortes. Eu estava na rua defronte de nosso escritório,conversando com um cliente, o senhor John S. Wilbourn, quandoouvi um grito e vi uma mulher de seus 35 anos sair correndo dapensão Thompsons1. Um homem saiu correndo atrás dela com umrevólver de três canos2, mirou e atirou bem em suas costas. Elacaiu de bruços na rua, levando a mão ao ventre, então rolou decostas e tentou se levantar. Não conseguiu. Wilbourn e eucorremos logo até ela, sem nos importar com o marido paradosobre seu corpo, de revólver na mão. Outras pessoas saíram àrua, assustadas com o barulho, e, ao saírem, ouviram o som de umsegundo disparo. Este fez um buraco na cabeça do marido. Eletambém caiu — o sangue escorrendo pela ferida a cada batimentode seu coração.

É estranho como o corpo morre rapidamente. Como nossa

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existência é uma força frágil. Em um instante a alma parte,deixando um vazio e insignificante recipiente para trás. Li sobreaqueles condenados enviados às forcas e gillotines [sic] daEuropa. Li sobre as grandes guerras de eras passadas e sobrehomens massacrados às dezenas de milhares. E damos poucaimportância à morte deles, pois é de nossa natureza excluir taispensamentos. Mas, ao fazê-lo, nos esquecemos de que eramindividualmente tão vivos quanto nós e de que um pedaço decorda — um projétil ou lâmina — ceifou-lhes integralmente avida naquele último e frágil instante. Ceifou seus primeiros diascomo bebês de cueiros, assim como lhes ceifou o futuro maiscinzento e interrompido. Quando se pensa em quantas almassofreram esta sina em toda a história — os assassinatos anônimosde homens, mulheres e crianças anônimos… é demais parasuportar.

Por sorte, os deveres de Lincoln como advogado e legisladormantiveram-no ocupado demais para pensar muito tempo na morte.Quando não era chamado para uma audiência de um comitê ou umavotação, provavelmente estava tomando o depoimento de um clienteem seu escritório ou entrando com um processo no tribunal deSpringfield (a maioria de seus casos envolvendo disputas de terra oudívidas insolventes). Duas vezes por ano, Abe juntava-se a um grupode colegas advogados em uma excursão de três meses pelo oitavoCircuito Judicial, uma área que abrangia 14 condados no centro e noleste de Illinois. Havia dezenas de vilarejos no circuito, e raros edisputados tribunais. Então, quando o tempo permitia, a corte dejustiça ia até esses povoados, advogados, juízes e tudo o mais. ParaAbe, tais viagens eram mais do que uma fuga de suas longas horas àluz de velas em sua escrivaninha. Eram uma oportunidade de retomarsuas caçadas a vampiros.

Sabendo que meu trabalho me levava duas vezes por ano

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pelo circuito, eu postergava algumas empreitadas para momentosmais apropriados. Durante o dia meus colegas advogados e eutrabalhávamos nos casos, usando igrejas ou tavernas comotribunais. Ao fim da tarde reuníamo-nos à mesa do jantar ediscutíamos os negócios do dia seguinte. E à noite, quando quasetodos dormiam nos quartos lotados de nossa pensão, eu meaventurava com meu casaco e meu machado.

Uma caçada em particular se destacava na lembrança de Abe:

Eu havia recebido uma carta de Henry contendo asinstruções: “E. Schildhaus. Menos de um quilômetro daextremidade norte da Mill Street, Athens, Illinois.” Em vez departir imediatamente e fazer a justiça divina, preferi esperar até omomento em que meu trabalho me levasse a Athens. E então essedia chegou, dois meses depois, quando nosso grupo itinerante foitrabalhar naquela pequena cidade ao norte, e os advogados sereuniram na taverna que serviria de tribunal. Ali foramapresentados aos queixosos e aos defensores cujos casos iriamdecidir dentro de poucas horas. Havendo me sentido mal durantepraticamente toda a noite anterior, só consegui me juntar a Stuartao meio-dia, horário em que nosso caso já estava diante do juiz.Tratava-se de uma pequena dívida de nosso cliente — umasenhora ruiva chamada Betsy. Lembro-me apenas de queperdemos e de haver contribuído apenas com um aperto de mãosde desculpas na despedida — atormentado que estava com meumal-estar. Naquela noite, depois que Stuart se recolheu comnosso grupo, tirei da mala meu casaco e meu machado esilenciosamente fui até o endereço da carta de Henry. Comoestava febril, resolvi simplesmente bater à porta e cravar meumachado em quem a abrisse, de modo a poder voltar para a camao mais rapidamente possível. A porta abriu.

Era minha cliente, Betsy — com o cabelo ruivo preso por

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um pente de marfim. Fechei o casaco na esperança de disfarçar omachado por sob a roupa.

— Posso ajudá-lo, senhor Lincoln?— Eu… eu sinto muito incomodá-la a essa hora, madame. Acho

que me confundi.— Como?— Sim. Achei que aqui era a casa de um certo E. Schildhaus.— E de fato é aqui.Um vampiro e uma mulher sob o mesmo teto?— Senhor Lincoln, desculpe perguntar, mas o senhor está bem? O

senhor está pálido.— Estou bem, madame, obrigado. Será que eu poderia… a

senhora acha que eu posso falar um momento com o senhorSchildhaus?

— Senhor Lincoln — disse ela, dando risada —, o senhor estáfalando com ela.

E. Schildhaus…Elizabeth…Betsy.

Ela reparou no machado sob o casaco. Leu a expressão emmeu rosto. Meus olhos. Meus pensamentos. Num instante euestava deitado, lutando para manter suas presas longe do meupescoço, com meu machado atirado longe. Puxei seu cabelo ruivocom a mão direita e enfiei a mão esquerda dentro do casaco. Dalitirei uma pequena faca, que usei para esfaqueá-la onde pude:pescoço, costas e nos próprios braços com que ela me sujeitava.Cravei a lâmina diversas vezes, até que por fim ela me soltou ese pôs de pé. Fiz o mesmo, e ficamos nos rodeandocautelosamente — eu com a faca à mostra na frente do corpo; elame encarando com aquelas bolas de gude negras. Então, tão

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rapidamente quanto atacara, ela parou… e levantou as mãoscomo que se rendendo.

— Gostaria de saber… qual seria nossa pendência, senhorLincoln?

— A sua é com Deus. Eu só quero oferecer a Ele a oportunidadede julgá-la.

— Pois bem. — Ela deu risada. — Muito bem. Bom, pelo seubem, espero que o senhor seja melhor combatente do que advogado.

Ela me bateu e, ao fazê-lo, jogou longe a faca que estava emminha mão — minha força estava diminuída pela febre. Seuspunhos atacavam meu rosto e meu ventre mais depressa do que euconseguia perceber, e senti o gosto salgado do sangue na boca.Ela me fazia recuar a cada golpe, até que não consegui maismanter meus pés firmes no chão. Pela primeira vez desde a noiteem que Henry salvara minha vida, senti a morte espreitar porsobre meus ombros.

Henry estava errado…

Caí no chão, e logo ela estava sobre mim — meu braçotremia quando a agarrei outra vez pelos cabelos. E então suaspresas estavam em meu ombro. Dor de carne e músculosperfurados. O calor do sangue jorrando da ferida. A pressão emminhas veias. Parei de puxá-la pelo cabelo e estapeei-a nacabeça, como quem consola um amigo abalado pela tristeza.Toda a apreensão passou. Toda a dor. O calor do uísque. Umaalegria desconhecida.

Estes são os últimos momentos da minha vida.

Risquei o mártir no pente de marfim de seus cabelos.

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Acendeu — mais claro que o sol, um halo por trás da cabeça dacriatura. Seus cabelos ruivos se incendiaram e senti suas presasme soltarem; ouvi seus gritos enquanto ela rolava pelo chão — ofogo se espalhando por suas roupas, recusando-se a deixá-la.Com minhas últimas forças, ajoelhei-me, recuperei o machado ecravei-o em seu crânio. Ela já não existia, mas me faltavamforças para enterrá-la, bem como para caminhar de volta paraminha pensão. Arrastei seu corpo para dentro, fechei a porta e —depois de fazer uma bandagem para minhas feridas com uma tirarasgada de seus lençóis — deitei-me em sua cama.

Creio que não voltarei a ter a oportunidade de defender ematar uma cliente no mesmo dia.

Quando Abe percorria o circuito, suas caçadas se restringiam àescuridão. Mas quando trabalhava fora de Springfield, gostava cadavez mais de caçar durante o dia.

Um dos meus truques favoritos era atear fogo na casa de umvampiro adormecido quando o sol estava bem alto no céu. Issodeixava o demônio com duas opções desagradáveis: enfrentar-meem plena luz do dia, onde estaria fraco e quase cego, ou continuarlá dentro e arder em chamas. Pouco me importava sua escolha.

Quando Abe foi reeleito para a Legislatura Estadual em 1838, eleestava se tornando conhecido nas redondezas de Springfield pelaeloquência de seus discursos e por sua capacidade como advogado.Um homem com habilidade e ambição equivalentes. Um homem dignode toda a estima. Estava com 29 anos e, em apenas um ano, passara deforasteiro sem tostão com um cavalo emprestado a membro da elite dacapital (embora, devido às dívidas, continuasse sem tostão). Eleencantava os convidados nos jantares com sua sociabilidade rústica eimpressionava os colegas legisladores com sua facilidade paraentender os assuntos. “Seus modos à mesa eram um tanto rudes”,

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escreveu seu colega de partido Ebenezer Ryan a um amigo, “e suasroupas sempre precisam de remendos. Mas ele é dono da mente maisarguta que já conheci, e possui o dom de transformar seus pensamentosem eloquentes floreios verbais. Acredito que um dia será governador.”

Abe também vinha pensando menos em Ann Rutledge.

É verdade o que dizem sobre o tempo. Minha melancoliamelhorou muito ultimamente, e faço minhas empreitadas com zelorenovado. Minha mãe mandou notícias dizendo que ela e meusmeios-irmãos estão com boa saúde.3 Tenho um bom sócio, Stuart;um bem-intencionado, ainda que terrível, amigo, Speed; e orespeito dos homens de bem de Springfield. Não fossem minhasdívidas, eu seria o mais feliz dos homens. E, ainda assim, nãoconsigo deixar de sentir que alguma coisa está faltando.

__________

John T. Stuart tinha um plano.Foi preciso um bocado de persuasão, mas finalmente ele

conseguiu arrastar seu sócio mais novo para dançar o cotilhão na casade sua prima Elizabeth.

Tendo muito trabalho a fazer, eu não achava que seria umaboa forma de passar meu tempo. Mas Stuart não me deixava empaz — insistindo como [seu meio-irmão] John fazia anos antes.“A vida não é só papel, Lincoln! Vamos agora! Vai ser ótimopara a sua saúde sair e ficar com outras pessoas.” Isso continuoupor mais de uma hora, até que eu não tive outra escolha senãoceder. Ao chegar ao lar dos Edward (antes ainda que eu tirasse aneve da sola dos sapatos), Stuart me empurrou casa adentro e meapresentou a uma jovem senhorita sentada na varanda. Foi entãoque o esquema dele ficou claro para mim.

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Seu nome era Mary Todd — prima de Stuart e recém-chegada aSpringfield. Abe registraria a primeira impressão que teve delanaquela mesma noite, 16 de dezembro de 1839.

Ela é uma criatura fascinante, completou esta semana 21anos, porém é muito talentosa para a conversação — e não domodo forçado, estudado, decorrente do excesso de cultura, masde um modo natural, que Deus lhe deu. Uma coisinha minúscula eesperta com um adorável rosto redondo e cabelos escuros.Fluente em francês; que sabe dançar e conhece música. Meusolhos não conseguiram deixar de voltar a ela o tempo todo. Maisde uma vez notei que ela também me olhava, com a mão emconcha dizendo algo ao ouvido de uma amiga — ambas rindo àminha custa. Oh, eu quero conhecê-la melhor! Quando a noiteestava para terminar e não pude aguentar mais, cumprimentei-acom uma mesura, dizendo: “Senhorita Todd, quero dançar comvocê, mas sou péssimo.”

Diz a lenda que Mary mais tarde comentaria com as amigas: “Eele era mesmo.”

Ela se sentiu estranhamente atraída pelo advogado alto e nadarefinado. Apesar do abismo econômico e cultural que os separava,havia algumas semelhanças cruciais que formariam a base de seurelacionamento: ambos haviam perdido a mãe muito pequenos, eseriam definidos por essa perda. Ambos eram criaturas decididas eemocionais — dados a altos voos e profundezas abissais. E ambosgostavam mais do que tudo de uma boa piada (especialmente quandoera à custa de “algum charlatão que bem merecia”). Como Maryescreveria em seu diário naquele inverno: “Ele não é o pretendentemais bonito que já conheci, nem o mais refinado — mas, sem dúvidanenhuma, é o mais inteligente. Embora haja uma tristeza queacompanhe sua astúcia. Achei-o bastante estranho… estranho, masintrigante.”

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Porém, por mais que estivesse intrigada com Abe, Mary estavadividida, pois já vinha sendo cortejada por um democrata baixinho eatarracado chamado Stephen A. Douglas. Douglas era um astro emascensão de seu partido e um homem de posses consideráveis,especialmente se comparado a Lincoln. Ele poderia oferecer a Mary oestilo de vida com que ela crescera acostumada. No entanto, emboraele fosse indiscutivelmente brilhante e indiscutivelmente rico, ele eratambém (nas palavras de Mary) “indiscutivelmente entediante”.

“Por fim”, lembraria ela em uma carta escrita anos depois,“resolvi que era mais importante rir do que comer.”

Ela e Abe ficaram noivos no final de 1840. Mas apesar de osdois estarem “profundamente apaixonados e ansiosos para casarlogo”, ainda havia um pequeno problema: conseguir a permissão dopai de Mary. O jovem casal não teria de esperar muito pela resposta.Os pais de Mary iriam a Springfield no Natal. Seria o primeiroencontro de Abe com os futuros sogros.

Robert Smith Todd era um rico homem de negócios e um motivode orgulho para a sociedade de Lexington, Kentucky. Como Abe, eleera advogado e legislador. Diferentemente de Abe, ele amealhara umaenorme fortuna, parte da qual usava para comprar escravos para amansão que dividia com sua segunda esposa e seus 15 filhos.

Estou nervoso com a perspectiva de ser julgado por umhomem de tanta influência e tamanhas realizações. E se ele meachar um tolo ou um camponês? O que será de nosso amor? Nãoconsigo pensar em nada. Isso tem me deixado bastantepreocupado essas últimas semanas.

Abe não precisava ter se preocupado. O encontro transcorreumelhor do que ele teria esperado — pelo menos segundo o poema queMary enviou a Lexington no dia seguinte, 31 de dezembro:

Meu caro Abe esteve incrível,

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e nosso querido pai, impressionado.A boa nova (vocês adivinham):o casamento foi abençoado!

Enquanto um carteiro a cavalo levava o poema dela a Lexington,outro entregava uma carta ao noivo recém-abençoado. O envelopedizia “urgente” no garrancho inconfundível de Henry — com palavrascuidadosas (como era toda a correspondência entre ele e Abe) paraevitar qualquer menção direta a vampiros, caso fosse entregue às mãoserradas.

Meu mais estimado Abraham,Recebi sua carta de 18 de dezembro. Peço que aceite meus

sinceros parabéns por seu noivado. A senhorita Todd parecepossuir muitas qualidades, e, a julgar pela detalhada descrição decada uma delas, você claramente está possuído por elas.

No entanto, devo avisá-lo, Abraham, e só o faço depois demuita consideração, pois sei que esta carta não será bemrecebida. A mulher de quem você está noivo é filha de um certosenhor Robert Smith Todd, conhecido em toda Lexington comoum cavalheiro de recursos e poder. Mas saiba a verdade: seupoder se baseia em terreno ardiloso. Que ele é mais amigo daminha espécie que da sua. Que seus aliados são justamente ospiores entre nós — do tipo cujos nomes venho lhe enviando todosesses anos. Ele tem sido seu prócer na câmara estadual. Seubanqueiro particular em matéria de negócios. Ele lucra até com avenda de negros destinados àquele fim mais cruel.

Não é minha intenção desencorajá-lo do casamento, pois afilha não pode ser responsabilizada pelos pecados do pai.Contudo, relacionar-se tão intimamente com um homem dessespode vir a ser perigoso. Peço apenas que você considereseriamente o assunto, e mantenha a cabeça no lugar — qualquerque seja sua decisão.

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Eternamente seu,— H

A história registraria o dia seguinte como o “1º de janeiro fatal” deLincoln.

Bem, está feito. Destruí a mulher que amo sem sequer umaexplicação. Destruí sua felicidade e a minha. Sou a criatura maismiserável que já existiu e mereço toda a tristeza que vier pelafrente. Espero — não… tomara que sejam muitas.

Abe havia visitado Mary naquela manhã e rompido o noivado,murmurando entre lágrimas (“não me lembro de nenhuma palavra quetenha dito”) e antes de sair correndo na friagem.

Eu sabia que nunca seria capaz de apertar a mão de seu painovamente, nem de olhá-lo nos olhos sem revelar minha raiva. Epensar que meus filhos teriam o mesmo sangue dele! Um homemque conspirava contra sua própria espécie! Um homem quelucrava com a morte de inocentes, maldito seja! Eu não poderiasuportar. E o que eu podia fazer? Contar a verdade a Mary?Impossível. Eu só tinha uma escolha.

Pela segunda vez em cinco anos ele pensou em suicídio. E pelasegunda vez em cinco anos foi o pedido no leito de morte de sua mãeque o impediu de levar a cabo essa ideia.

John T. Stuart estava visitando os parentes. Quase todos os seuscolegas legisladores haviam ido embora para passar o Ano-Novo nosrespectivos distritos. Só havia uma pessoa em Springfield a quem Abepodia recorrer.

— Mas você está apaixonado por ela! — disse Speed. — Porque diabos você faria uma estupidez dessas?

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Abe sentou-se na cama do minúsculo quarto na sobreloja da A.Y.Ellis & Cia. — a cama que ele dividia com o amalucado “mosquitoirritante” que zanzava pelo quarto.

— Eu sofro por não estar com ela, Speed… Mas não posso.— Por causa do pai dela? O mesmo homem que lhe deu sua

bênção há seis ou oito dias?— Ele mesmo.— Você sofre por não estar com ela… o pai já deu a bênção.

Você vai precisar me explicar como funcionam os namoros aqui emIllinois, porque eu acho que não entendi alguma coisa.

— Eu depois descobri que o pai dela tem parte com o mal. Queele anda nas piores companhias. Isso eu não posso aceitar.

— Se eu amasse uma mulher como você ama Mary, o pai delapoderia jantar até com o próprio diabo que isso não mudaria o meusentimento.

— Você não entende…Então me ajude a entender! Como eu posso ajudar se você só fala

em códigos?Abe estava com a verdade na ponta da língua.— Você pode me confiar qualquer segredo, Lincoln.— Quando você falou em “jantar com o diabo”, bem… chegou

bem mais perto da verdade do que imagina. É o que eu disse, ele andanas piores companhias. O que eu queria dizer é que… ele é amigo domal, Speed. Amigo de criaturas que não se importam com a vidahumana. Criaturas que matariam você ou eu e não sentiriam maisremorso do que um elefante que esmaga uma formiga.

— Ah… você quer dizer que ele é um amigo dos vampiros.Abe sentiu o sangue sumir das pontas dos dedos.

III

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Joshua Speed nunca se sentira à vontade com os “meninos de berço”da Academia St. Joseph. Ele gostava de pregar peças. Contar piadas.Gostava de sonhar com a vida selvagem na fronteira, “onde os homenseram poucos e as flechas voavam como loucas”. Ele não suportava aideia de uma vida tranquila e repleta de privilégios como a de seu pai.Ansiava por algo mais — queria sair por aí sozinho e conhecer omundo. Quando tinha 19 anos, esse anseio levara-o a Springfield, ondecomprara uma porcentagem na A.Y. Ellis. Mas fazer pedidos econtrolar estoques não era exatamente “a fronteira selvagem” que eleestava à procura.

No início de 1841, pouco depois do “1º de janeiro fatal” de Abe,Speed vendeu sua parte na sociedade e voltou para o Kentucky,deixando Lincoln sozinho com o quarto na sobreloja.

Cheguei a Farmington. Preciso dormir.

Era agosto, e Abe viajara até a propriedade da família de Speedno Kentucky, Farmington, pois precisava passar algum tempo longe deseus problemas. Ele não saía havia meses com medo de encontrarMary ou seus amigos, e seu nome era “quase um xingamento em todoestabelecimento de Springfield”. Speed escrevera ao antigo colega dequarto e insistira para que ele viesse “por quanto tempo fossenecessário para se livrar de seus tormentos”.

Abe estava relaxado como não se sentia havia anos — e comonunca mais conseguiria se sentir desde então. Passeava a esmo pelapropriedade montado em um cavalo. Ia até Lexington. Passava tardes àtoa na varanda da casa-grande (a primeira em que ele entrou deverdade, não obstante seus pesadelos). Se havia algum aspectonegativo em Farmington, era a inevitável presença de escravos à vista.Estavam em toda parte — na casa; nos campos.

Cavalgando pela estrada até a cidade hoje, vi uma dúzia denegros acorrentados juntos como se fossem peixes em uma vara.

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O desconforto que me causa estar entre eles é enorme. Estarrodeado por eles. Não só porque acho que a servidão é umpecado, mas porque eles me lembram de tudo o que desejoesquecer.

Abe e Joshua Speed conversaram sem parar todos esses dias.Falaram do poder britânico; da máquina a vapor. E falaram devampiros.

— Meu próprio pai lidou com esses demônios, sinto vergonha dedizer. — comentou Speed. — Eles não eram nenhum segredo entre oshomens da posição de meu pai; tampouco em nossa casa; meu irmãomais velho chegou a trabalhar para atrair o favor deles.

— Quer dizer que ele vendeu negros para eles?— Os velhos e aleijados, em geral. Ele achava que isso era uma

bênção duplicada; um modo de se livrar do escravo inútil e aindalucrar com isso. Uma ou duas vezes ele vendeu um garanhão saudávelou uma moça com criança. Esses atingem um preço mais alto porquetêm mais san…

— Chega! Como você ousa falar assim deles? Falar de sereshumanos como se fossem gado para o matadouro?

— Se dei a impressão de que considero esses assassinatos algonormal, sinto muito. Não é o caso, Abe. Nunca foi. Ao contrário, osvampiros são o principal motivo de eu nunca ter buscado viver sob oconforto de meu pai e ter lamentado sua morte com umas poucaslágrimas. Como eu poderia aceitar isso, depois de ter ouvido os gritosde homens e mulheres devorados para encher os bolsos dele? Depoisde ter visto o rosto daqueles demônios pelas frestas entre as tábuas?Se eu ao menos conseguisse apagar isso da minha lembrança… se eupudesse fazer alguma coisa para reparar o que já aconteceu aqui, eufaria.

— Pois então faça.

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Speed não precisou de muito para ser persuadido. Ele sóprecisou que lhe contasse que caçar vampiros era perigoso eexcitante, como a fronteira em sua imaginação. Como eu fizeracom Jack,4 dividi com ele todo o meu conhecimento —ensinando-lhe como e quando atacar; boxeando com ele paramelhorar seu equilíbrio. Como Jack, ele era impaciente, ávidodemais por se atirar de cabeça na luta. Mas se Jack podia contarcom sua força para seguir em frente, o esguio Speed não eraassim. Tentei impressioná-lo com a imensa força e agilidade dosvampiros; com a proximidade da morte em que ele se encontraria.Receava que ele não estivesse entendendo completamente asituação. Contudo, tamanha era a avidez de seu espírito, que mevi novamente entusiasmado com a perspectiva de uma novacaçada.

Abe propôs um plano audacioso, um plano que colocaria seuinexperiente amigo sob um risco mínimo e mataria dois coelhos comuma só cajadada. No final de agosto, Joshua Speed escreveu uma cartaa seis dos antigos sócios de seu pai, todos compradores frequentes deescravos. Todos vampiros.

Havendo chegado o dia, encontrei-me tomado de apreensão.Como eu pudera ser tão precipitado? Seis vampiros! E meuparceiro era um novato! Como desejei que tivéssemos maistempo! Como desejei que tivéssemos Jack ao nosso lado!

Mas era tarde demais para voltar atrás. Seis homens seapresentaram a Joshua Speed na varanda sombreada da casa doadministrador5 — um era um homem de barba grisalha de 70 anos; ooutro tinha a aparência de um rapaz na casa dos 20 anos; os quatrodemais, com idades entre aquele um e esse outro. Todos usavamóculos escuros e traziam sombrinhas dobradas.

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Speed pedira a vários negros que se aproximassem da casae mandara que cantassem “felizes seus evangelhos”. E tal era acantoria e o bater de palmas que pouco se ouvia o que tratavamna varanda. Conforme havíamos planejado, Speed convidou osvampiros um a um, pegando seu dinheiro e conduzindo-os aobanquete que os aguardava do lado de dentro.

Five can’t catch me and ten can’t hold me — ho, round thecorn, Sally…6

Mas era eu quem estava lhes esperando com meu machado— e quando eles passavam pelo corredor para entrar na saleta,eu cravava o machado na garganta com toda a minha força (quenaquele tempo era considerável). Dos primeiros cinco vampiros,só um não teve a cabeça decepada na primeira tentativa: oterceiro, que precisou de um segundo golpe, pois a lâmina secravara em seu rosto em vez de no pescoço.

I can bank, ginny-bank, ginny-bank the weaver — ho, round thecorn, Sally…7

O último vampiro era o de aparência mais jovem, mas deespírito mais velho. Ele ficou irritado por ter de esperar navaranda sozinho e foi entrando na casa. Infelizmente ele entrou noexato momento em que a cabeça de seu colega rolou até ocorredor.

O vampiro rapazote correu para seu cavalo que esperava lá fora,pulou em seu dorso e saiu em disparada, galopando para longe.

Speed foi o primeiro a sair pela porta. Pulou no segundocavalo, esporeou com os calcanhares e começou a persegui-loantes mesmo que eu conseguisse montar o terceiro cavalo. Agora

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era uma perseguição a cavalo no velho estilo, e Speed galopavasem pejo, de pé nos estribos e batendo com os pés no ventre doanimal. O vampiro viu-o ganhar terreno e resolveu fazer igual,mas seu cavalo era bem uns dez anos mais lento. Speedemparelhou com ele levando apenas um canivete para espetá-loou um pedregulho para atirar.

Speed tirou os pés dos estribos, um de cada vez, segurou o cornoda sela com as duas mãos e ficou de pé. Com os dois cavalos empleno galope, ele saltou, agarrando o vampiro e derrubando-o no chão.Os dois caíram na terra enquanto os cavalos continuaram em disparadacarreira. Speed conseguiu ficar de pé, atordoado — ofuscado pelo sol.Antes que pudesse sacudir a poeira das orelhas, um punho socou-o aquase dez metros no ar, derrubando-o de costas no chão. Ele ficou semar e levou a mão ao rosto, onde um corte se abrira do lado esquerdode seu rosto. O sol de repente foi eclipsado pela silhueta de umvampiro de pé diante dele.

— Seu patifezinho ingrato — disse ele.Speed sentiu suas entranhas se revolverem quando o vampiro

desferiu um chute em seu ventre.— Quem você acha que pagou por toda essa terra?Outro chute. Mais outro. Speed viu lampejos de cores ao sentir

dor; a boca se encheu de um gosto estranho. Não pôde evitar de sentirnáuseas.

O vampiro agarrou-o pelo colarinho.— Seu pai teria vergonha de você — disse ele.— Eu… se-seguramente espero que si-sim… — murmurou

Speed.O vampiro ergueu a mão com garras e preparou-se para enfiá-las

na garganta de Speed.Por sorte a cabeça de um machado cravou-se no peito da criatura

antes que ela tivesse a chance de fazê-lo.

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Enquanto o vampiro caía ajoelhado, agarrando inutilmente alâmina, e jorrando sangue pela boca, Abe puxou as rédeas do cavalo eapeou. Rapidamente colocou as duas mãos no cabo e um pé nas costasdo vampiro, retirou o machado e depois desferiu um golpe fatal nocrânio da criatura.

— Speed — disse ele, acorrendo ao lado do amigo. — MeuDeus…

— Bem — disse Speed —, acho que foi o bastante de reparaçãopara um dia só.

__________

Abe achou Springfield “solitária e sem vida” quando do seu retorno.Sua temporada em Farmington fizera milagres em sua melancolia,“mas sem nenhum amigo para dividir as horas de solidão, quediferença faz se eu estou de bom ou mau humor?”.

Não me importa se ele [o pai de Mary] é um canalha, apenasque eu amo sua filha incondicionalmente. Speed está certo — oque existe nesse mundo senão nossa pequena felicidade?Dediquei ao problema as mais sérias considerações. Que Henryproteste. Que venham as consequências. Decidi me declararnovamente e ver se ela me aceita.

— E por que eu me casaria com um homem que me deixousofrendo sozinha? — perguntou Mary enquanto Abe se prostrava naentrada da casa da prima dela. — Um homem que me deixou semnenhuma explicação!

Abe baixou a cabeça e olhou para o chapéu em suas mãos.— Eu não…— Que zombou do meu nome nesta cidade!— Minha queridíssima Mary, eu só queria pedir minhas

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humildes…— Desculpas, que tipo de marido um homem desses daria? Um

homem que, a qualquer momento, pode mudar de opinião e me deixarsofrendo outra vez? Diga-me, senhor Lincoln, que estímulo eu teriapara me entregar a um homem assim?

Abe ergueu os olhos de seu chapéu.— Mary — disse ele —, se você quer enumerar as minhas falhas,

ficaremos aqui uma semana. Não vim aqui para atormentá-la mais. Sóvim me prostrar a seus pés; implorar seu perdão. Vim jurar quepassarei a vida tentando compensar qualquer tristeza que eu tenha lhecausado todos esses meses. Se minha oferta é insuficiente… se ao mever você sente qualquer coisa diferente de felicidade… então vocêpode fechar essa porta sabendo que nunca mais a minha cara viráincomodá-la de novo.

Mary parou calada. Abe deu um passo para trás, esperando aporta bater na sua cara a qualquer momento.

— Oh, Abraham, eu ainda amo você! — gritou ela, pulando emseus braços.

O noivado foi retomado, e Abe não perdeu tempo. Comprou duasalianças de ouro (a crédito, é claro) na Chatteron’s, em Springfield.Ele e Mary concordaram em gravar uma única inscrição na parteinterna das alianças.

O Amor é Eterno

Abraham Lincoln e Mary Todd se casaram numa tarde chuvosa desexta-feira, no dia 4 de novembro de 1842, na casa de ElizabethEdwards, prima de Mary. No total, menos de trinta convidadosassistiram-nos trocar seus votos.

Depois da cerimônia, Mary e eu escapamos para a saletaenquanto o jantar era servido, de modo que pudéssemos passar

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nossos primeiros momentos como marido e mulher em tranquilaintimidade. Trocamos um ou dois beijos ternos e olhamos umpara o outro com certa perplexidade — pois estar casado era umacoisa estranha. Uma coisa estranha e maravilhosa.

“Meu querido Abraham”, disse Mary por fim. “Nunca maisme abandone.”

IV

No dia 11 de maio de 1843, Abe escreveu a Joshua Speed.

Que maravilha têm sido esses últimos meses, Speed! Quebênção! Mary é uma esposa tão devotada e amorosa quantoalguém poderia desejar, e estou muito satisfeito, Speed…satisfeitíssimo ao comunicar a feliz notícia de que ela estáesperando um bebê! Estamos os dois muito felizes, e Mary jácomeçou a preparar nossa casa para a chegada da criança. Queboa mãe ela será! Por favor, escreva-me imediatamente, poisdesejo saber como vai sua recuperação.

A noite de primeiro de agosto de 1843 foi estranhamente quente,e a janela aberta pouco adiantava para aliviar o calor no pequenoquarto de Abe e Mary no segundo andar da taverna Globe. Ospassantes olharam para aquela janela aberta com intensa curiosidadequando dois sons se mesclaram no ar da noite — primeiro um grito dedor de uma mulher, em seguida um choro agudo.

É menino! Mãe e filho em perfeita saúde!Mary foi perfeita. Não se passaram ainda seis horas desde o

nascimento e ela já está com o pequeno Robert nos braços,ninando-o suavemente. “Abe”, disse-me ela enquanto ele

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mamava, “olha só o que a gente fez.” Admito que as lágrimasescorreram dos meus olhos. Oh, se este momento pudesse durareternamente.

Robert Todd Lincoln (Mary insistiu; Abe mordeu a língua) nasceuapenas dez meses depois de seus pais se casarem.

Pego-me olhando para ele por horas a fio. Segurando-ocontra o peito e sentindo os ritmos delicados de sua respiração.Passando os dedos na pele fina de seus pezinhos gordos edeliciosos. Admito que cheiro seu cabelo quando ele dorme.Mordisco seus dedos quando ele os aproxima. Sou seu servo,pois faço qualquer coisa para merecer seu mínimo sorriso.

Abe encarou a paternidade com paixão. Mas duas décadasenterrando entes queridos viriam cobrar seu preço. Conforme osmeses se passavam e Robert crescia, Abe foi ficando cada vez maisobcecado com a possibilidade de perder o filho, fosse por doença oupor um acidente qualquer. Em suas entradas no diário, ele começou afazer uma coisa que não fazia havia anos: ele começou a barganharcom Deus.

Meu único desejo é vê-lo se tornar um homem feito. Tendosua própria família ao seu lado no meu funeral. Nada mais. Eutrocaria sem hesitar toda a minha felicidade pela dele. Minhaspróprias realizações pelas dele. Por favor, Senhor, não deixe quenada de mal aconteça a ele. Que nenhuma desgraça lhe aconteça.Se for preciso castigar alguém, eu suplico, que a punição recaiasobre mim.

Em conformidade com sua esperança de ver Robert chegar àidade adulta, e na esperança de preservar a felicidade conquistada navida de casado, Abe chegou a uma difícil decisão no outono de 1843.

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Minha dança com a morte deve ter um fim. Não posso correro risco de deixar Mary sem marido, nem Robert sem pai. Escreviesta manhã para Henry e disse a ele que não contasse mais commeu machado.

Após vinte anos combatendo vampiros, havia chegado a hora dependurar seu casaco definitivamente. E depois de oito anos naLegislatura Estadual, chegara também seu momento de serreconhecido.

Em 1846, ele foi nomeado candidato do partido Whig aoCongresso dos Estados Unidos.

1 Pensão localizada no quarteirão seguinte à Hoffman’s Row.

2 Pequena arma que, possuindo três canos, é capaz de disparar três tiros (um para cada cano) sem precisar ser carregada.

3 Abe começara a chamar Sarah Bush Lincoln de “mãe”. Vale notar que ele não menciona o pai.

4 Jack Armstrong resolvera ficar em Clary’s Grove quando Abe se mudou para Springfield, terminando definitivamente sua breve sociedade.

5 Uma casa de quatro cômodos na fazenda Farmington, a menos de 1 quilômetro da sede da propriedade.

6 Cinco não me pegam e dez não me prendem, ei, pelo milharal, Sally. (N. do T.)

7 Eu empilho, sem sementes, sem sementes para o tecelão, ei, pelo milharal, Sally. (N. do T.)

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OITO

“Uma grande calamidade”A verdadeira regra para determinar se aceitamos ou rejeitamosalguma coisa não é saber se ela contém algo de mal, mas se elacontém mais mal do que bem. Poucas coisas são inteiramente másou integralmente boas.

— Abraham Lincoln, em discurso à Câmara dos Representantes20 de junho de 1848

I

Quando Abe se aposentou das caçadas ao final de 1843, deixouinacabada uma das empreitadas de Henry.

Mencionei inocentemente este fato em cartas a Armstrong eSpeed, e (como secretamente era minha esperança) ambosdemonstraram interesse em retomá-la. Como ainda eramrelativamente novos na arte de caçar vampiros, achei melhor quetrabalhassem juntos.

Joshua Speed e Jack Armstrong viram-se pela primeira vez emSt. Louis, no dia 11 de abril de 1844. Se a carta de Speed (para Abe,escrita três dias depois) sugere algo, é que não foi um bom encontro.

Seguindo orientações de sua carta, nós nos encontramos naMarket Street ontem, ao meio-dia. Sua descrição [de Armstrong]foi precisa, Abe! Ele é mais touro do que homem! Maior do que

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um celeiro e mais forte do que o próprio Sansão! Mas vocêtambém se esqueceu de mencionar que ele é um patife. Umacabeça tão dura quanto o resto do corpo. Você há de me perdoara franqueza, pois sei que ele é seu amigo, mas nunca encontreinesses meus trinta anos um homem tão desagradável, briguento ecasmurro! É óbvio por que você o escolheu (pelo mesmo motivoque alguém escolhe um boi grande e tonto para puxar um carro).Mas por que você — um homem com uma mente brilhante e umótimo temperamento — quis continuar seu amigo, isso eu nuncavou entender.

Armstrong nunca escreveu sobre suas impressões de Speed, masé provável que tenham sido igualmente desabonadoras. O mocinhorico do Kentucky era espirituoso e conversador, qualidades queArmstrong teria achado apenas irritantes em homens mais duros.Speed, contudo, era delicado e leve, o tipo de dândi, portanto, que osGarotos de Clary’s Grove teriam enfiado em um barril e jogado noSangamon.

Ainda que só em respeito a você, meu caro amigo,concordamos em relevar nossas divergências e levar a cabo aempreitada.

O alvo seria um conhecido professor chamado doutor JosephNash McDowell, deão de medicina da Kemper College.

Henry havia me alertado [sobre McDowell]. O médico eraum “espécime especialmente paranoico”, como ele dissera.Paranoico a ponto de sempre usar uma malha de armadura porbaixo da roupa, para que nenhum matador pudesse lhe enfiar umaestaca no coração. Contei isso tudo a Armstrong e Speed,acrescentando minha própria advertência: como a “morte” deMcDowell causaria grande comoção em St. Louis, eles deveriam

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tomar cuidado para que não fossem vistos durante a empreitada eevitar sequer fazer perguntas sobre o doutor na cidade. As duascoisas seriam um desastre.

Armstrong e Speed seguiram ambas as recomendações.A relutante dupla parou na esquina da Ninth com a Cerre Street

naquela tarde de abril, os dois em chamativos sobretudos compridos evolumosos. “Senhor, saberia me dizer onde poderíamos encontrar odoutor Joseph McDowell?”

Até que por fim nos levaram até um anfiteatro circular eíngreme. Um coliseu em miniatura, com fileiras e mais fileiras debalaústres, onde curiosos cavalheiros apoiavam as mãos, todoscom o rosto iluminado pelos ciciantes lampiões a gás da mesa decirurgia lá embaixo, seus olhos ávidos e treinados sobre a figurapálida e de cabelos desgrenhados do cadáver de um homem, cujacarne era cortada. Sentamo-nos na fileira mais alta e ficamosobservando o doutor McDowell remover o coração e erguê-lopara que todos o vissem.

“Tirem da cabeça qualquer espécie de ideia poética”, disseele. “Isto que estou segurando aqui não sabe nada de amor oucoragem. Só sabe de contração rítmica.” McDowell apertou ocoração na mão várias vezes. “Só tem um único, belopropósito… manter o sangue, fresco e cheio de vida, fluindo emcada recôndito do corpo.”

Um vampiro ensinando anatomia para seres humanos! Vocêimagina, Abe? (Devo dizer que simpatizei na hora com o sujeito.)

Ele continuou a cortar o cadáver ao longo de suademonstração, removendo e discursando sobre cada órgão, atéque ao final o morto parecia um peixe eviscerado. (Armstrongficou o tempo todo de pernas bambas — eu, por outro lado, acheitudo muito fascinante.)

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A aula terminou “com o educado bater de bengalas nabalaustrada”, e os alunos de McDowell foram dispensados. Depois derecolher rapidamente seus instrumentos e papéis, o médico “saiu àspressas por uma porta pequena atrás do palco e sumiu”. Armstrong eSpeed foram atrás.

FIG. 12.2. — EM FOTOGRAFIA SEM DATA ( CIRCA 1850), UM GRUPO DE CIRURGIÕES EXAMINA O CORAÇÃO E OS PULMÕES DEUM HOMEM NÃO IDENTIFICADO. O FATO DE ELE ESTAR PRESO À MESA SUGERE QUE AINDA ESTEJA CONSCIENTE — E OFATO DE ESTAR USANDO ÓCULOS ESCUROS SUGERE QUE SEJA UM VAMPIRO.

Descemos por uma escada de pedra estreita na maiscompleta escuridão, tateando as pedras ásperas e úmidas, até queenfim nossas mãos deram com algo liso. Risquei um fósforo nosapato, e uma porta preta apareceu à nossa frente — com aspalavras J. N. McDowell, Doutor em Medicina, pintadas emdourado. Saquei a pistola e Armstrong, sua besta. O fósforoapagou. Meu coração empenhou-se em seu “único e belopropósito” com grande entusiasmo — pois sabíamos que umvampiro esperava do outro lado da escuridão.

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Speed tateou até a maçaneta e moveu-a silenciosamente, abrindosilenciosamente… Luz do sol.

Ali havia um cômodo comprido de paredes lisas. Muitoacima de nossa cabeça, uma fileira de pequenas janelas deixavaentrar a luz suave do fim do dia e mostrava os pés dos passantes.À nossa direita, uma longa bancada de gaiolas de ratos,recipientes de vidro e instrumentos de prata. Adiante, o queparecia ser um corpo sobre uma mesa de pedra, coberto por umlençol branco. E à nossa esquerda, Abe… à nossa esquerda…cadáveres nus por toda a extensão da sala, cada um em umaprateleira estreita, empilhados um sobre o outro até uma altura demais de 2 metros.

Estávamos em um necrotério.Eu contava encontrar o médico à nossa espera. Ser atacado

de uma vez. Mas não havia qualquer sinal dele. Armstrong e eufomos lentamente até a mesa de pedra, as armas a postos. Sóentão vi os tubos de vidro escuro passando sobre nossa cabeça,saindo dos corpos à nossa esquerda para os recipientes à nossadireita. Só então reparei no sangue que enchia aqueles vidros,aquecidos por uma fileira de pequenos bicos de gás embaixo decada um.

Só então vi os peitos daqueles “cadáveres” movendo-se acada respiração curta.

E então todo o horror da cena me abateu, Abe. Pois então medei conta de que aqueles homens estavam todos vivos.Empilhados em prateleiras como livros em uma biblioteca. Cadaum com espaço apenas para o arfar do peito. Todos sendoalimentados por furos no estômago… drenados. Fracos demaispara se mexerem, nutridos o bastante para não morrerem.Aprisionados pela criatura cujo assobio de repente ouvimosvindo da sala ao lado. Assobiando… lavando as mãos em uma

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bacia de água. Preparando-se, sem dúvida, para esquartejar apobre alma cujo peito ainda arfava enquanto jazia sob o lençolbranco.

E subitamente nosso plano ficou claro.

__________

McDowell voltou vestindo um avental e trazendo seus instrumentoscirúrgicos sobre uma bandeja. Deixou-os de lado, o tempo todoassobiando, e removeu o lençol branco.

Não era o homem que eu me lembrava de ter visto.

Armstrong ergueu-se de uma vez e disparou a seta de suabesta no coração do desgraçado — no coração, Abe! Não precisonem dizer que a seta só resvalou nele com um estalido, pois o boiimenso e tonto havia se esquecido da malha de armadura que eleusava no peito!

Foi um erro caro, Abe, pois McDowell então se revelou porinteiro e partiu para o ataque com suas garras afiadas. Jack ouviualguma coisa estalar no chão de pedra. Olhou para onde ummomento antes estava sua besta. Nem ela e nem sua mão direitaestavam mais no lugar. Seu rosto ficou pálido quando viu osangue escorrendo de seu punho — a mão decepada havia caídono chão.

Os gritos de Jack foram altos o bastante para acordar algunsdaqueles que a custo sobreviviam nas prateleiras da parede oposta.

Não tive escolha senão sair de meu esconderijo e atirar comminha pistola na cabeça do vampiro. Mas minhas mãos trêmulasnão conseguiram boa mira. A bala passou por ele e atingiu os

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preciosos recipientes de vidro! Imagine o estrago, Abe! Imagineo volume de sangue que escorreu pelo chão de pedra! Dava parase afogar ali! Tamanha era a engenhosidade daquele invento, quetodos os tubos sobre nossa cabeça estilhaçaram em uníssono, e oefeito foi uma chuva de sangue vindo do teto.

“Não!”, berrou McDowell. “Vocês arruinaram tudo!”Nem vi o golpe que me atingiu. Só sei que fui atirado nas

prateleiras de corpos com tanta força que quebrei a perna direita.A dor foi a mais intensa que já senti na vida — mais do que ogolpe que havia sofrido em Farmington. Meu corpo todo ficoufrio de repente. Lembro-me de McDowell (dois dele, na verdade,pois eu quase perdera os sentidos com a pancada) vindo na minhadireção enquanto eu estava caído, sem forças, no chão todocoberto por dois dedos ou mais de sangue. Lembro-me de pensarestranha e comicamente que um morgue era um bom lugar paramorrer… o calor se esvaindo de nós… o gosto na boca. E melembro de McDowell de repente mexer em seu olho.

A ponta de uma seta lhe havia atravessado a carne sob oolho direito! O resto da seta estava cravado em seu crânio desdea nuca. Atrás dele, o imenso boi tonto segurava, hesitante, umabesta na mão que lhe restava.

Com um volume absurdo de sangue escorrendo-lhe pelo rosto(além da cena já bastante soturna), o paranoico McDowell entrou empânico e fugiu.1

Deus seja louvado, estávamos a poucos passos do melhorhospital de St. Louis. Armstrong e eu ajudamos um ao outro asubir a escada (eu me virando com a minha perna boa ecarregando a mão decepada dele), ambos encharcados da cabeçaaos pés no sangue de duas dúzias de homens.

Os cirurgiões conseguiram salvar a vida de Jack. A mão, eleperderia para sempre, Abe. Ele esteve muito perto de morrer.

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Mais perto do que ele admitiria. Foi a força dele que o salvou. Aforça dele, e as orações que você sem dúvida deve ter feito pelanossa segurança. Vou ficar firme até ele se recuperar (embora elese recuse a falar comigo). Acabam de me dizer que minha pernaficará boa e que voltarei a andar mancando muito pouco, se tanto.Não fique triste pelo seu estimado Speed, amigo — pois ele seconsidera o tolo mais sortudo entre os mortais.

II

No dia 3 de agosto de 1846, Abe foi eleito para a Câmara dosRepresentantes dos Estados Unidos. Em dezembro de 1847, mais deum ano depois de sua eleição, Abe chegou a Washington com a famíliapara começar seu mandato. Alugaram um pequeno quarto na pensão dasenhora Sprigg2 — cômodo ainda mais apinhado pela chegada de umquarto membro da família.

Fomos duplamente abençoados com outro menino, EdwardBaker, que nasceu em 10 de março [de 1846]. Ele também é umpestinha sorridente como Bob, embora eu desconfie que seu gênioseja mais afável. Meu amor não diminuiu minimamente por eleser o segundo. Sou igualmente servo do sorriso de Eddy —mordiscando seus dedinhos do pé para fazê-lo dar risada…cheirando seu cabelinho quando está dormindo… segurando seupeito adormecido sobre o meu. Que sujeito tonto esses meninosfizeram do pai!

Desta vez não houve medo de que Edward adoecesse ou viesse amorrer. Nenhuma barganha com Deus (pelo menos nenhuma que Abeachasse por bem registrar em seu diário). Talvez ele estivesse maisconfiante como pai. Talvez estivesse simplesmente ocupado demais

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para se deixar obsedar por isso. Ocupado com os compromissos desua firma de advocacia em Springfield. Ocupado em se adaptar a umanova cidade e a um outro nível de intensidade da política. Ocupadocom tudo menos com caçar vampiros.

As cartas [de Henry] chegam todo mês. Ele me pede que eureconsidere. Insiste que é crucial que eu retome minhasempreitadas. Respondo a todas elas com a mesma verdadesimples: não vou arriscar deixar minha mulher viúva e meusfilhos órfãos do pai. Se de fato nasci para libertar os homens datirania, digo a ele, então devo fazer algo no espírito do velhoadágio sobre a pena e a espada. Minha espada já fez sua parte.Minha pena me levará doravante.

Washington revelou-se uma decepção em praticamente todos osaspectos. Abe chegara esperando encontrar uma metrópole reluzente erepleta “das melhores cabeças dedicadas ao serviço de seusconstituintes”. O que ele encontrou foram “uns poucos faróis em meioa um nevoeiro de idiotas”. Quanto aos seus sonhos de viver em umacidade grande, Washington D.C. estava mais para Louisville ouLexington — ainda que com um bocado de maravilhas arquitetônicasimponentes. “Uns poucos palácios na pradaria”, como Abe gostava dedizer. A pedra fundamental do Washington Memorial ainda seriacolocada. Nem o Memorial nem o Capitólio ficariam prontos em suaépoca.

Uma das maiores decepções de Washington era a abundância deescravos. Eles trabalhavam na própria pensão da senhora Sprigg ondeAbe era hóspede com a família. Eram leiloados nas ruas pelas quaisele passava para ir ao trabalho. Ficavam engaiolados onde um diaseria construído o National Mall, local em que a imagem gigantesca deAbe ficaria eternamente vigilante.

Vê-se pelas janelas do Capitólio uma espécie de estábulo,

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onde os negros são reunidos, em tropas, temporariamentemantidos e finalmente levados para os mercados do sul,exatamente como tropas de cavalos. Homens — acorrentadosjuntos e vendidos! Aqui, à sombra de uma instituição fundadasobre a promessa de que “todos os homens nascem iguais”!Fundada com gritos de “liberdade ou morte!”. Isso é mais do queum homem honrado pode suportar.

Em um dos poucos destaques de sua carreira como congressista,Abe enviou um projeto proibindo a escravidão na capital. Ele tomarao cuidado de redigi-lo de tal modo que “não parecesse nem severo aosdonos de escravos nem inofensivo aos abolicionistas”. Mas não iamuito além disso o que um congressista em seu primeiro mandatopodia fazer, fosse ele brilhante ou não. O projeto nunca chegou a servotado.

Apesar de seus fracassos legislativos, Abraham Lincoln causouforte impressão nos salões do Congresso — e não só por conta de suaestatura elevada. Seus contemporâneos o descreviam como“desajeitado e desengonçado”, com suas pantalonas “que paravam adez centímetros dos tornozelos”. Embora ainda não tivesse 40 anos,muitos Democratas (e uns poucos de seus colegas do partido Whig)passaram a chamá-lo de “Velho Abe” por conta de “sua aparênciarude e desmazelada e de seus olhos fatigados”.

Contei isso a Mary uma noite enquanto ela dava banho nosmeninos e confessei que me incomodava. “Abe”, disse ela semerguer os olhos ou hesitar por um momento, “é possível que hajahomens no Congresso duas vezes mais alinhados que você, masnenhum deles tem a metade do seu bom senso.”

Sou um homem de sorte.

Mas apelidos pouco lisonjeiros eram a menor de suaspreocupações, conforme ele escreveria dias depois de assumir seu

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cargo.

É impossível passar de um lado ao outro da câmara semouvir alguém falar de vampiros! Nunca tinha ouvido o assunto sertão discutido — e por tanta gente! Todos esses anos me acheidetentor de um segredo obscuro — um segredo que mantiveoculto até de minha mulher e de minha família. Mas aqui, noscorredores do poder, trata-se de um segredo que todos parecemconhecer. Muitos da nossa delegação estão sempre sussurrandosobre “aqueles malditos sulistas” e seus amigos “de olhosnegros”. Contam-se piadas durante as refeições a respeito. Até o[senador Henry] Clay3 participa! “Por que Jeff Davis usa ocolarinho tão alto? Para esconder as marcas de mordida nopescoço.” Deve haver algo de verdade nessas anedotas, noentanto, pois ainda estou para conhecer um congressista sulistaque não sirva aos interesses de vampiros, não seja simpático àcausa deles ou que pelo menos não tema suas represálias. Quantoà minha própria experiência [com vampiros], permanecerei emsilêncio. É uma parte de minha vida que não pretendo revisitar —nem na prática, nem em conversas.

__________

Abe acordou assustado com o barulho de vidros sendo quebrados.

Dois homens haviam entrado pela janela do nosso quarto nosegundo andar. Não havia pistola embaixo do meu travesseiro.Nem machado à beira da cama. Antes que eu tivesse tempo de melevantar, um deles golpeou meu rosto com tanta força que meucrânio quebrou a cabeceira de nossa cama.

Vampiros.

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Com muito custo recobrei os sentidos enquanto um dosdemônios agarrava Mary, cobrindo sua boca para abafar seusgritos. O outro pegou Bob de sua caminha, e as criaturas saírampelo mesmo lugar por onde haviam entrado — pela janela — esaltaram para a rua. Ergui-me de pronto e saí correndo atrásdeles, pulando, sem hesitar, pela janela, e ferindo-me nos cacosde vidro ao fazê-lo. Nas ruas agora escuras e quase vazias deWashington, eu podia ouvir os gritos de Bob à minha frente naescuridão. Corri atrás deles com um pânico que nunca sentiraantes. Uma fúria.

Malditos, vou fazê-los em pedaços quando os agarrar…

Lágrimas nos olhos… rosnados incontroláveis… músculosexaustos das minhas pernas. Quadra após quadra, dobrandoesquinas, aqui e ali, a voz de Bob mudando de direção. Mas seusgritos foram ficando mais distantes no vento, e minhas pernas,mais fracas. Caí… chorando ao pensar em meu filho — meumenininho indefeso levado para as trevas — trevas onde nemmesmo seu papai poderia alcançá-lo.

Abe ergueu a cabeça trêmula, prostrado diante da pensão dasenhora Sprigg.

E então… me ocorreu um pensamento terrível, e o pânicovoltou.

Eddy…

Subi correndo a escada e entrei em nosso quarto. Silêncio…camas vazias… janelas estilhaçadas… cortinas tremulando — eo berço de Eddy encostado à outra parede. Não podia ver seuinterior dali. Não suportaria olhar. E se ele não estivesse ali?

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Senhor, eu suplico…

Como pude deixá-lo? Como pude haver abandonado meumachado? Não… não, eu não conseguiria olhar — só conseguiparar no umbral da porta e chorar —, pois no fundo do coraçãosabia que ele também estava morto.

E então ouvi seu choro, graças a Deus, e entrei às pressas noquarto, ansioso por sentir seu calor nos meus braços. Porém, aoalcançar o berço dele e procurá-lo, vi seus lençóis brancosencharcados de sangue. Não era de Eddy — não, pois havia umdemônio ali, deitado em seu lugar. Sobre os lençóis empapados,uma estaca atravessada no coração e um buraco na parte de trásdo crânio. Imóvel no berço, o sangue jorrando de seu corpofamiliar… a um só tempo menino e homem-feito. Seus olhosfatigados se abrem, mas são vazios. Fitando no fundo dos meus.Eu o conhecia.

Era eu.

Abe acordou — o coração disparado. Virou-se para a esquerda eviu Mary, que dormia pacífica a seu lado. Conferiu se os meninosestavam dormindo e certificou-se de que estavam a salvo.

Ele registraria quatro palavras em seu diário naquela noite antesde tentar (sem sucesso) voltar a dormir.

Esta cidade significa morte.

III

Era uma noite de fevereiro de 1849, Abe desfrutou o calor da lareirada senhora Sprigg com um velho conhecido seu.

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[Edgar Allan] Poe esteve em Baltimore essas últimassemanas, e, com Mary e os meninos passando uns dias emLexington, achei a ocasião propícia para um encontro.

Eles haviam mantido uma correspondência esporádica ao longodos anos: um elogio eventual aos contos e poemas de Poe; parabénspelas eleições que Lincoln venceu. Porém, naquela noite, face a facepela primeira vez depois de vinte anos, falaram apenas de vampiros.

Contei a Poe sobre Henry; minhas caçadas e as terríveisverdades às quais elas me conduziram. Ele me contou sobre suaduradoura obsessão de sempre por vampiros, que fizera amizadecom um imortal chamado Reynolds e que estava prestes a revelaruma espécie de “trama sinistra”. Ele fala com grande entusiasmoe confiança, embora seja difícil de acreditar em quase tudo o queele diz, pois é dito através da máscara da embriaguez. Ele meparece combalido. Envelhecido pelo uísque e pelo azar. Os anosposteriores a nosso último encontro não foram bons para ele. Suaamada esposa faleceu e o sucesso não lhe trouxe riqueza.

— Homens mantidos à beira da morte! — disse Lincoln. —Armazenados como barris vivos em uma adega… seu sangue preciosoaquecido com chamas de gás. Será que não há limites para a maldadede um vampiro?

Poe sorriu e bebeu mais.— Você já ouviu falar na condessa Sangrenta, imagino. — disse

ele.O rosto de Abe deixou claro que nunca ouvira.— Logo você? — estranhou Poe. — Um homem do seu traquejo

no encalço de vampiros? Pois então me conceda um instante, pois elaé uma de minhas favoritas… e peça importante da história do nossopaís.

— Elizabeth Báthory era uma joia da nobreza húngara — disse

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Poe. — Linda; insuperavelmente rica. Seu único fardo era dividir acama com um homem que ela não amava, um homem a quem foraprometida desde os 12 anos: o conde Ferenc Nádasdy. Ele, contudo,era um marido generoso, e permitia a Elizabeth todos os caprichos.Mal sabia ele que seu capricho favorito era uma morena de pele clarachamada Anna Darvulia. As duas se tornaram amantes. Não se sabe aocerto quando…

— Duas mulheres… amantes?— Isso é um mero detalhe. Não se sabe ao certo quando

Elizabeth descobriu que Anna era uma vampira, nem quando elamesma se tornou uma, mas a dupla, todavia, estava ávida por penetrara eternidade juntas. Com a misteriosa morte do conde, em 1604, asamantes começaram a atrair jovens camponesas ao Čachtice Castle4

com promessas de emprego; com dinheiro para suas famíliasfamélicas. Na verdade, essas jovens se tornariam joguetes de deusesinferiores… teriam o sangue e a vida roubada. No total, Elizabeth eAnna seriam responsáveis pela morte de mais de seiscentas moças aolongo de três anos.

— Meu Deus…— Ah, mas é ainda pior, pois a dupla parecia se orgulhar da

elaboração dos mais asquerosos, degradantes e dolorosos métodos deassassinato. As jovens eram torturadas. Violadas. Consumidas aolongo de dias. Algumas eram suspensas por ganchos pelos braços epelas pernas. Elizabeth e Anna deitavam-se por baixo delas, usandofacas para ferir sua pele com pequenos cortes, deixando o sanguegotejar lentamente de seus corpos enquanto faziam amor no chão.Algumas dessas moças eram parcialmente crucificadas, com as mãospregadas ao madeiro…

— Eu lhe peço que pare de me contar isso, Poe. Já é demais.— Por fim, os camponeses já não toleravam mais os abusos e o

castelo foi atacado. Lá dentro, a multidão encontrou um calabouçocheio de gaiolas de ferro. Vítimas quase mortas com pedaços dos

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braços e do ventre arrancados por mordidas. Meninas cujas mãos e orosto haviam sido expostos a chamas a ponto de carbonizarem até oosso. Mas nenhum sinal das vampiras. Um processo foi encenado, eduas mulheres inocentes foram lançadas ao fogo para acalmar ocampesinato. Mas as verdadeiras Elizabeth Báthory e Anna Darvuliahaviam escapado.

— Os horrores, Lincoln… os horrores que essas mulheres foramcapazes de perpetrar em tão pouco tempo… a eficácia e a imaginaçãocom que matavam… existe uma beleza nisso tudo. Não se pode deixarde admirá-las.

— Isso é vil — disse Lincoln.— Certamente a vida ensinou-lhe que uma coisa pode ser ao

mesmo tempo bela e vil.— Você prometeu contar-me sobre “uma peça importante da

história do nosso país”. Por favor, existe alguma lição em toda essadesgraça, ou você simplesmente tem prazer em atormentar um velhoamigo?

— A lição, meu velho amigo, é a seguinte: Elizabeth Báthory é,em certa medida, a culpada pela existência de muitos vampiros queconhecemos aqui na América.

Agora Poe capturara a atenção de Abe.— As notícias de suas atrocidades se espalharam por toda a

Europa — disse ele. — Assim como os rumores acerca de umavampira chamada condessa Sangrenta e as centenas de jovens que elamassacrou. No espaço de dez anos, séculos de superstições até entãosussurradas viraram um ódio declarado. Nunca antes uma históriahavia causado tamanho fervor! Passara para sempre o tempo de seaceitar os vampiros como um fato da vida, assim como passara de vezo medo de desafiá-los. A caça aos vampiros começou a aparecer daInglaterra à Croácia, cada nação aprendendo com a experiência daoutra, e esses mortos-vivos foram perseguidos por todo o continente.Perseguidos até os esgotos fétidos e antros empesteados de Paris.

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Perseguidos pelas vielas escuras de Londres. Os vampiros foramobrigados a dormir em criptas. Obrigados a beber o sangue de vira-latas. Leões caçados por carneiros! Tornara-se insuportável servampiro na Europa. Eles queriam liberdade. Se livrar deperseguições. Do medo. E onde tal liberdade poderia ser encontrada?

— Na América.— Na América, Lincoln! A América era o paraíso onde os

vampiros poderiam existir sem a cruel competição pelo sangue. Umlugar onde era comum que as famílias tivessem cinco, oito ou dozefilhos. Eles adoraram esse desregramento. Essa vastidão. Adoraram osvilarejos remotos e os portos pululantes de recém-chegados. Porém,mais do que tudo, eles adoraram os escravos. Pois aqui, diferente dequalquer país feito para homens civilizados… aqui era um lugar ondeeles poderiam se alimentar do embriagante sangue humano sem temorde represálias!

— Quando os ingleses vieram dar em nossas costas,encarregados de nos levar de volta ao controle do Velho Mundo, osvampiros da América entraram na luta. Eles estiveram nas batalhas emLexington e Concord. Estavam lá em Ticonderoga e em Moore’sCreek. Alguns voltaram à sua França natal, onde convenceram o reiLuís a nos emprestar sua marinha. Eles são tão americanos quantovocê ou eu, Lincoln. Verdadeiros patriotas, pois a sobrevivência daAmérica significa a sobrevivência deles.

— Eu os ouvi discursar no Capitólio — sussurrou Abe. — Atémesmo lá, vê-se a influência deles.

— Estão em toda parte, Lincoln! E isso só deve aumentar, assimcomo aconteceu durante séculos na Europa. Quanto tempo durará aqui?Quantos vampiros entrarão em nossas terras antes que o homemcomum se aperceba de sua presença? E depois? Você acha que aspessoas de bem em Boston ou em Nova York vão ficar contentes deconviver com vampiros como vizinhos? Você acha que todos osvampiros têm a mesma disposição cordata do seu Henry ou do meu

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Reynolds?— Imagine só, Lincoln. Imagine o que podia ter acontecido na

Europa se não houvesse a América para os vampiros se refugiarem.Por quanto tempo os leões teriam deixado os carneiros lhes caçarem?Quanto tempo até começarem a se comportar como leões outra vez?

Abe não gostou do quadro que se formou em sua mente.— Ouça o que eu lhe digo — disse Poe —, uma grande

calamidade nos espera.

__________

Para Poe, pelo menos, foi uma previsão sinistra.No dia 3 de outubro de 1849, menos de oito meses depois de seu

encontro com Abe, Poe foi encontrado vagando pelas ruas deBaltimore, quase morto, confuso, vestindo roupas que não eram suas.Foi levado às pressas para o Washington College Hospital, onde osmédicos tentaram diagnosticar sua doença que se agravava.

O paciente sofre de febre alta e delírios. Chama por umcerto “Reynolds” quando está consciente. Sintomas semelhantesaos da febre tifoide, embora o progresso rápido sugira outracausa subjacente. Trata-se de um caso perdido.

No domingo, dia 7 de outubro, às 5 horas da manhã, Poe acordoucom um sobressalto. Pronunciou as palavras “Senhor, ajude minhapobre alma” e faleceu.

IV

O dia 5 de março de 1849 pôs um fim à breve e discreta carreira de

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Abe como congressista. Ele decidiria não concorrer a um segundomandato.

Minha eleição para o Congresso (…) não me agradou tantoquanto eu esperava. Deixei penosamente de lado minha queridaesposa e meus pestinhas durante esses dois anos, e não há nadaem Washington que me impeça de voltar a Illinois.

Ele voltou a Springfield e mergulhou de cabeça na advocacia,com um estagiário de 30 anos chamado William H. Herndon (queescreveria uma vasta e controversa biografia de Lincoln depois de seuassassinato). Abe tomou muito cuidado para esconder de seu jovemsócio a verdade sobre seu passado negro.

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FIG. 7-C. — EDGAR ALLAN POE POSA COM ABRAHAM LINCOLN NO ESTÚDIO DE MATHEW BRADY, EMWASHINGTON, D.C., NO DIA 4 DE FEVEREIRO DE 1849.

Ele escreveu cartas de recomendação para amigos queprocuravam indicações. Defendeu casos por todo o estado de Illinois.Brincou de luta com seus meninos e fez longas caminhadas com aesposa.

Ele viveu.

Não falo mais de grande caninos,Vida que não termina não me apraz.Meu único desejo são coisas simples,

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Meu único desejo é de paz.

Paz, ele não teria.

__________

Eddy Lincoln tinha 3 anos, 10 meses e 18 dias quando morreu.Uma entrada com data de 1º de fevereiro de 1850, horas depois

da morte de seu filho, dizia:

Perdi meu garotinho… Sinto muito a falta dele.Não há alegria nesta vida…

Não há motivos para suspeitar que a morte de Eddy tenha, dealguma forma, se relacionado aos vampiros. Ele já vinha adoentadodesde dezembro (provavelmente uma tuberculose) e foi definhandoaos poucos, a mãe em vigília ao lado de sua cama, esfregando em vãobálsamos em seu peito frágil.

Mary não suportou deixar Eddy morrer sozinho em suacama. Ela trouxe seu corpo inconsciente para a nossa própriacama, aninhando nosso garotinho em seu peito, embalando-o aolongo da noite… até que ele se fosse.

Mary jamais seria a mesma. Embora ainda viesse a enterrar doisoutros filhos, nada se compararia à tristeza da perda de seu amado“Anjinho”. Três dias depois de sua morte, ela ainda não comera, nãodormira nem parara de chorar.

[Mary] está inconsolável. Mas não há o que eu possa fazer,pois também estou sem cabeça para consolá-la. Escrevi a Speede Armstrong pedindo que venham. Recebi uma carta de Henryexpressando suas condolências e prometendo chegar [a

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Springfield] até o meio-dia de amanhã. Como ele ficou sabendodo falecimento de Eddy, não sei.

Eddy foi sepultado no cemitério de Hutchinson, a poucas quadrasda casa de Abe e Mary.

Fiquei com Bob e Mary durante todo o funeral, os três aosprantos. Armstrong e Speed ficaram ao nosso lado, assim comomuitos amigos e pessoas que nos querem bem. Henry ficouobservando a distância, sem querer aumentar meus pesaresdespertando suspeitas em Mary5. Contudo, ele fez chegar a mimum bilhete antes do enterro. Ali, além de mais pêsames… haviaum lembrete de que existia uma outra possibilidade.

Um modo de eu voltar a ver o meu menino.

Apesar da tentação enlouquecedora que deve ter sido apossibilidade de rever seu garotinho, Abe rendeu-se à razão.

Ele seria pequeno para sempre. Um assassino angelical. Eunão pude suportar a ideia de mantê-lo trancafiado no escuro. Deensinar-lhe a matar para que pudesse viver. Não poderiacondenar meu filho ao inferno.

Mary escreveu um poema (provavelmente com a ajuda de Abe),que foi publicado no Illinois State Journal por ocasião do enterro deEddy. O verso final foi gravado em sua lápide.

Tristes ficaram as estrelas,Que antes tanto brilhavam,E o rubor dos lábios e das faces,Com o calor do coração, sumiu –O anjo da Morte veio pairandoE o adorável menino foi levando.

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Ondas sedosas de seu cabelo lisoJazem imóveis na marmórea fronte,E o lábio pálido e o rosto peroladoA presença da Morte atestam.Puro botão de bondade oferecido,Por piedade, para no céu florescer.Lá será mais feliz o anjo de menino,Com a harpa e a coroa de ouro,Que ora canta aos pés do SalvadorGlórias que nos são ocultas.Eddy, agora flor de amor celestial,Habita no alto mundo do espírito.Anjo Menino — adeus, adeus,Doce Eddy,Adeus, nós lhe dizemos!O pranto do afeto já não lhe alcançaPosto que tão profundo e verdadeiro.Luz é o lar que agora lhe oferecem…Assim é o Reino dos Céus.

1 Este episódio só faria aumentar a paranoia de McDowell. Ele abandonou a Kemper e fundou sua própria faculdade de medicina na esquina da Ninth com a Gratiot

Street, dotando a cobertura do edifício de canhões e mantendo um estoque de mosquetes à mão para evitar qualquer ataque. Ele ainda serviria no Exército Confederadoantes de desaparecer por completo da história. Dizem que o edifício em St. Louis que abrigava sua faculdade continuou assombrado por seu fantasma, embora nuncatenha sido encontrado qualquer registro de sua morte.2 Uma casa modesta de dois andares que ficava onde hoje é a Biblioteca do Congresso.

3 O fundador do Partido Whig, aos 70 anos, era um velho político e ídolo de Lincoln.

4 Localizado onde hoje fica a região oeste da Eslováquia.

5 Mary não fazia ideia de quem era Henry Sturges, nem mesmo de que existiam vampiros.

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NOVE

Enfim, a pazFomos recebedores dos prêmios mais seletos dos Céus. Fomospreservados, todos esses anos, em paz e prosperidade.Aumentamos em número, saúde e poder, crescendo como nenhumoutro país. Mas nos esquecemos de Deus. Esquecemo-nos da mãograciosa que nos preservou na paz e nos fez multiplicar,enriquecer e fortalecer.— Abraham Lincoln, proclamando o Dia Nacional do Jejum

30 de março de 1863

I

Do New York Tribune de 6 de julho de 1857:

CONFLITOS VIOLENTOS ATERRORIZAM A CIDADEObservações Curiosas sobre Brigas de Gangues

por H. Greeley

Os selvagens conflitos que tomaram conta de boa parte de Manhattan nesses dois últimos dias e noites finalmente amainaram. Por ordem dogovernador, as milícias penetraram em Five Points no último domingo e os últimos combatentes foram submetidos por meio de seguidas saraivadas demosquete. Um número incontável de mortos podia ser visto esta manhã nas ruas Baxter, Mulberry e Elizabeth — vítimas da pior revolta de que esta ouqualquer outra cidade tem memória. A violência parece ter começado quando as famosas gangues de Five Points, os Plug Uglies e os Dead Rabbits,empreenderam um ataque contra seu inimigo comum, os Bowery Boys. De acordo com a polícia, as mortes começaram na Bayard Street por volta domeio-dia de sábado, antes de se espalharem por Five Points, com a rapidez e a ferocidade de um incêndio.

Os inocentes foram forçados a fazer barricadas em suas portas enquanto bandidos rivais esfaqueavam, atiravam e espancavam uns aos outros até amorte em plena rua. Os comerciantes viram suas lojas serem destruídas; seus produtos audaciosamente roubados em meio ao caos. Onze transeuntes —uma mulher e uma criança entre eles — foram surrados pelo simples motivo de estarem perto demais da balbúrdia.

OBSERVAÇÕES CURIOSAS SOBRE BRIGAS DE GANGUES

O Tribune recebeu uma avalanche de declarações de ocorrências “estranhas” e “impossíveis” desde a tarde de sábado até domingo pela manhã.Homens teriam sido vistos saltando de telhado em telhado “como que levados pelo ar”, correndo uns atrás dos outros; subindo pelas paredes dos edifícios“com a facilidade de um gato que sobe em uma árvore”.

Uma testemunha, um comerciante de nome Jasper Rubes, alega ter visto um membro dos Dead Rabbits “erguer um dos Bowery Boys acima dacabeça e atirá-lo contra a fachada do segundo andar [de uma fábrica da Baxter Street] com tanta força que fez um buraco nos tijolos”. Incrivelmente, avítima “caiu de pé”, disse a testemunha, “e continuou a brigar como se nada houvesse acontecido”.

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“Os olhos dele”, declarou Rubes, “eram pretos como fuligem.”

__________

Caçar vampiros era a última coisa que passava pela cabeça deAbraham Lincoln no início da década de 1850.

Dez meses depois de enterrar seu filho, Abe e Mary tiveram outrobebê. Chamaram-no William “Willy” Wallace Lincoln em homenagemao médico que ficara com Eddy em seu leito de morte até o fim. Em1853, tiveram mais outro menino, Thomas “Tad” Lincoln, nascido a 4de abril. Ao lado de Robert, então com 10 anos, os três formavam uma“prole ruidosa”.

“Bob chora no quarto ao lado enquanto escrevo”, dizia Abe emuma carta de 1853 a Speed. “Mary ralhou com ele por ter saídocorrendo e sumido. Desconfio que quando eu terminar esta carta, eleterá fugido e se escondido outra vez.”

Abe registrou pouquíssimas entradas em seu diário depois damorte de Eddy. Aqueles seis livrinhos e meio encadernados em couroviriam a se tornar um registro de sua vida entre os vampiros — umregistro de armas e vingança; de mortes e perdas. Mas aqueles diashaviam passado. Aquela vida havia terminado. Quando retomou asentradas, em 1865, Abe olharia retrospectivamente para aqueleperíodo de “encantamento final, pacífico e maravilhoso”.

Foram anos bons, certamente. Anos de tranquilidade. Eu nãoqueria saber de vampiros nem de política. E pensar em tudo oque perdi naquelas horas à toa em Washington! Quanto tempo dabreve vida e da beleza de Eddy passaram sem que eu visse!Não… nunca mais. Simplicidade! Eis o juramento que façoagora. Família! Eis minha empreitada. Quando não posso estarcom meus meninos em casa, deixo-os correr pelo escritório (paradesespero de Lamon1, desconfio). Mary e eu fazemos longas

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caminhadas, sem nos importar com a estação ou com o clima.Falamos sobre nossos amados garotinhos… sobre nossos amigose nosso futuro… sobre a velocidade com que nossa vida tempassado.

Não tenho recebido mais cartas de Henry. Nenhuma visitadele ou pista de seu paradeiro. Às vezes me pergunto sefinalmente ele aceitou a ideia de que não voltarei a caçar — ouse ele mesmo não terá sucumbido sob a lâmina de um machado.Qualquer que seja o motivo de sua ausência, fiquei contente porisso. Se por algum tempo nutri por ele uma enorme afeição, agoraabomino a lembrança da simples menção de seu nome.

O longo sobretudo de Abe, com seus rasgos e cicatrizes decombate, foi incinerado sem cerimônia. Suas pistolas e facas foramtrancadas em um baú e esquecidas no porão. A lâmina de seumachado, ele deixou enferrujar. O espectro da morte, que pairarasobre o velho caçador de vampiros desde os seus 9 anos de idade,parecia havê-lo enfim abandonado.

Mas retornou brevemente em 1854, quando Abe recebeu por umamigo em Clary’s Grove a notícia de que Jack Armstrong haviamorrido. Em uma carta a Joshua Speed, ele dizia:

O maldito tolo conseguiu morrer por causa de um cavalo,Speed.

O velho Jack tomou uma chuva de inverno, tentando arrastarum animal empacado pela rédea. Por quase uma hora eles ficaramse puxando. Jack (o eterno Menino de Clary’s Grove) nem pensouem levar o casaco ou gritar pedindo ajuda, apesar de maneta eencharcado até os ossos. Quando conseguiu tirar o cavalo dachuva, já estava condenado. Ardeu em febre por uma semana,apagou e morreu. Parece um final indigno para um homem tãoforte, não é? Um homem que sobreviveu a tantas contendas com amorte… Que viu as coisas terríveis que você e eu vimos…

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Na mesma carta, Abe admite que lhe deixava “nervoso” a “faltade angústia” com o falecimento de Armstrong. Ficara triste, semdúvida. Mas era “uma espécie distinta de angústia”, diferente dadepressão arrasadora que sofrera com a morte da mãe, de Ann e deEddy.

Creio que essa vida de mortes me deixou insensível aambas.

Quatro anos mais tarde, Abe defenderia o filho de Jack,“Duff”Armstrong, julgado por assassinato. Abe recusou seushonorários. Trabalhou incansavelmente, defendeu-o com todafibra e (em um lance brilhante de astúcia jurídica) conseguiu sualiberdade,2 um último agradecimento ao corajoso amigo.

II

No mesmo ano em que Abe pranteou a morte de um velho amigo, umvelho rival fez com que ele voltasse à política.

Abe conhecia o senador Stephen A. Douglas desde o tempo emque ambos exerciam a legislatura (e faziam a corte a Mary Todd).Apesar de Democrata, Douglas desde muito tempo era contra aescravidão nos territórios em que ela já não existisse. Porém, em1854, ele mudou subitamente de opinião e apoiou o Ato do Kansas-Nebraska, um projeto que desfazia a proibição federal dadisseminação da escravidão. O presidente Franklin Pierce assinou alei em 30 de maio, enfurecendo milhões de nortistas e incitandotensões que já fervilhavam dos dois lados da questão.

Por mais experiente que eu seja, não pude ignorar minharaiva, que gotejou em minha cabeça como a água nas raízes deuma árvore, até que por fim permeou todo o meu ser. O sono não

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me servia de refúgio, pois toda noite um mar de rostos negros mevisitava, todos vítimas anônimas de vampiros. E gritavam paramim. “Justiça!”, diziam. “Justiça, senhor Lincoln!”

O simples fato de [a escravidão] existir já era um insulto.Saber que a instituição era duplamente maligna tornava tudoainda pior. Mas isso! A ideia dos dedos doentios da escravidãoavançando mais para o norte e para o oeste! Chegando ao meuIllinois! É inadmissível. Eu estava afastado da política, masquando me chamaram para debater o assunto com Douglas, nãopude recusar. Aqueles rostos fantasmagóricos não mepermitiriam.

No dia 16 de outubro de 1854, Lincoln e Douglas acertariam suasarestas diante de uma multidão em Peoria, Illinois. Um repórter doChicago Evening Journal descreveu seu fascínio ao testemunhar odiscurso de Abe.

Seu rosto começou a se iluminar com os raios do gênio e seu corpo passou a se mover em uníssono com seus pensamentos. Suas palavras entravam nocoração, pois vinham do coração.

“Só posso odiá-la!”, disse o senhor Lincoln a respeito da proposta. “Odiá-la pela monstruosa injustiça que é a escravidão em si mesma!”Já ouvi oradores célebres arrancarem ovações de aplausos sem mudar a opinião de ninguém. A eloquência do senhor Lincoln era do tipo mais

elevado, do tipo que cria convicções nos ouvintes por conta da convicção do próprio orador.“Odiá-la por privar o nosso exemplo republicano de sua influência no mundo!”, continuou. “Permite que os inimigos das instituições livres, com razão,

chamem-nos de hipócritas!”Seus ouvintes sentiam que ele acreditava em cada palavra que dizia e que, como Martinho Lutero, arriscaria tudo para defender o conjunto de suas

ideias, em vez de abrir mão aqui e ali. Transfigurado naqueles momentos, ele parecia um antigo profeta bíblico das minhas aulas de catecismo na infância.

Embora não tenha conseguido persuadir Douglas ou seus aliadosno Congresso, o discurso de Abe, ainda assim, representaria umavirada na sua vida política. Sua ira no tocante ao tema da escravidão(e, por extensão, na questão dos vampiros) devolvera-o à arenapolítica. Seu gênio e sua eloquência naquela noite em Peoria seriamprova de que ele jamais abandonaria tal tema novamente. O discursofoi transcrito e impresso por todo o Norte. O nome de AbrahamLincoln começou a ganhar significado nacional entre os adversários daescravidão. Nos anos seguintes, uma de suas passagens se revelariamisteriosamente profética.

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“E não é provável que a disputa venha a acabar empancadaria e derramamento de sangue? Será que existe invençãomais fadada à colisão e à violência, na questão da escravidão, doque esta?”

__________

O senador Charles Sumner jaz inconsciente no chão do Senado,debruçado em uma poça do próprio sangue.

O abolicionista havia sido atacado por um congressista de 37anos chamado Preston Smith Brooks, um defensor da escravidão daCarolina do Sul, que se sentira ofendido quando o senador deMassachusetts zombara de seu tio em um discurso antiescravista doisdias antes. No dia 22 de maio de 1856, Brooks entrou na câmara doSenado acompanhado de seu colega de bancada Laurence Keitt e seaproximou da mesa de Sumner. “Senhor Sumner”, disse Brooks, “licuidadosamente seu discurso duas vezes. É um libelo contra aCarolina do Sul e contra um parente meu, o senhor Butler.”Antes queSumner tivesse a chance de responder, Brooks começou a bater em suacabeça com uma bengala de ponta dourada, abrindo cortes a cadagolpe. Cego com o próprio sangue, Sumner cambaleou um pouco antesde desabar. Brooks continuou a bater nele até quebrar a bengala.Quando os horrorizados senadores acorreram em socorro de Sumner,foram detidos por Keitt, que sacou uma pistola e berrou: “Deixa!”

Os golpes fraturaram o crânio e as vértebras de Sumner. Elesobreviveria, mas só conseguiria retomar seus deveres no Senado trêsanos depois. Quando souberam do ataque na Carolina do Sul, Brooksrecebeu dúzias de bengalas de presente.3

Estou mais seguro do que nunca de que fiz bem em deixarWashington… e ainda mais seguro de que aquilo é um arsenal deidiotas — assim como estou certo de que no momento estamos

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nos encaminhando para a “grande calamidade” sobre a qual Poeme alertou anos atrás. Vislumbram-se já os mastros da frotafuriosa no horizonte, e a cada semana eles parecem estarquilômetros mais perto. Se, como muitos pensam, trata-se dovento da guerra em suas velas, então é uma guerra que mecontentarei em deixar os outros lutarem. Meus meninos sãosaudáveis. Minha mulher tem bom humor. E estamos longe, muitolonge de Washington. Fico contente de fazer um ou doisdiscursos; feliz de emprestar minha pena quando precisam dela.Mas estou feliz. E a felicidade, resolvi, é uma nobre ambição. Jáperdi demais e fui escravo de vampiros ao longo desses 30 anos.Deixem-me ser livre agora. Deixem-me agora ir atrás do prazerde desfrutar o que Deus ainda possa vir a me conceder. E se estapaz for mero prelúdio de algum perigo ou outro, que seja.Desfrutarei a paz.

__________

Nenhum dos lados arrefeceu os ânimos ou a violência na questão daescravidão. Furioso com o ataque a Charles Sumner, um abolicionistaradical chamado John Brown efetuou um ataque a um assentamento emPottawatomie Creek, no território do Kansas. Na noite de 24 de maiode 1856 (dois dias depois da agressão a Sumner), Brown e seushomens assassinaram brutalmente cinco escravagistas assentados ali,arrastando os homens para fora de suas casas, ameaçando-os comespadas e disparando uma bala na cabeça de cada um por medida desegurança. Foi a primeira de uma série de represálias que ficariamconhecidas como a Sangria do Kansas. A violência continuaria pormais três anos e ceifaria mais cinquenta vidas.

No dia 6 de março de 1857, a Suprema Corte encurralou o país àbeira de um abismo.

Dred Scott era um escravo de 60 anos que vinha tentando

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conquistar sua alforria nos tribunais havia mais de uma década. Entre1832 e 1842, ele viajara com seu senhor (o major do exército JohnEmerson) pelos territórios livres do norte, trabalhando como criadopessoal. Durante essas viagens, Scott se casou e teve filhos (todos emterritório livre). Com a morte do major em 1843, ele tentou comprarsua liberdade. Mas a viúva do major se recusou a concedê-lacontinuando a usar seus serviços e embolsando os pagamentos.Aconselhado por abolicionistas, Scott entrou com processo por sualiberdade em 1846, alegando que ele deixara de ser propriedade nomomento em que pisara em territórios livres. O caso passou deinstância em instância, atraindo a atenção do país, até finalmentechegar a Washington em 1857.

Em uma decisão de 7 contra 2, a Suprema Corte decidiu-se contraScott, argumentando que os Fundadores da Nação haviam consideradoos negros “seres de ordem inferior e, ao mesmo tempo, incapazes dese associarem à raça branca” ao redigirem a Constituição.Consequentemente, os negros não podiam ser cidadãos dos EstadosUnidos, de modo que, de saída, eles não podiam sequer entrar comprocessos nas cortes federais. Tinham tantos direitos quanto os aradosque puxavam.

Esse resultado foi desastroso para Scott, mas teve implicaçõesque em muito extrapolaram sua liberdade individual. Ao emitir suadecisão, a Corte declarava que:

• O Congresso havia extrapolado sua autoridade ao impedir quea escravidão ultrapassasse determinados territórios — e queesses territórios proibissem eles mesmos a escravidão.• Os escravos e seus descendentes (livres ou não) não estavamprotegidos pela Constituição e jamais poderiam vir a sercidadãos dos Estados Unidos.• Os escravos foragidos que alcançassem os territórios livresainda eram propriedade legal de seus senhores.

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No rastro do caso de Dred Scott, o Albany Evening Journalacusou a Suprema Corte, o Senado e a recém-empossada presidênciade James Buchanan de fazerem parte de uma “conspiração” paraperpetuar a escravidão, enquanto o New York Tribune publicou umeditorial que captava a fúria de muitos nortistas:

Agora, onde quer que as estrelas e listras tremulem, elasprotegem a escravidão e representam a escravidão… Este, então,é o resultado final. Assim, todo o trabalho de nossos estadistas, osangue de nossos heróis, as vidas dedicadas e os esforços denossos ancestrais, as aspirações de nossos eruditos e as oraçõesdos homens de bem chegam ao fim! América, escravocrata eescravagista!

Os democratas do sul sentiram-se mais encorajados que nunca,alguns até se gabando de que a decisão propiciaria “leilões deescravos no parque em Boston”. Republicanos e abolicionistas nuncaestiveram tão eletrizados em sua oposição. Os Estados Unidosestavam começando a se dilacerar por dentro.

No entanto, poucos americanos sabiam do perigo que estavamcorrendo, de verdade.

III

No dia 3 de junho de 1857, Abe recebeu uma carta redigida emcaligrafia familiar. Não continha nenhuma pergunta sobre sua saúde oubem-estar; nada que se relacionasse à sua família.

Abraham,Peço que você me perdoe o fato de não ter escrito nada

durante esses cinco anos. Você também deverá perdoar minha

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rispidez, pois a situação aqui requer minha atenção urgente.Devo pedir-lhe ainda outro sacrifício, Abraham. Sei como

um pedido desses soa presunçoso depois de tudo o que vocêsofreu e diante dos poucos atrativos que lhe posso oferecer emtroca da satisfação de seu lar e de sua família. Acredite que eunão o incomodaria se a situação não fosse terrível, nem sehouvesse outro homem capaz de fazer o que lhe peço.

Envio junto com esta carta tudo o que é necessário para suabreve estada em Nova York. Se estiver de acordo, peço entãoque venha antes de 1º de agosto. Mais instruções lhe serãopassadas na chegada. Contudo, se sua resposta for negativa, nãovoltarei a perturbá-lo. Neste caso, só peço que envie logo suarecusa, para que possamos considerar uma nova estratégia. Deoutro modo, espero ansioso por nosso encontro, meu velho amigo— e para poder lhe dar a explicação que há muito tempo vocêmerece.

Chegou a hora, Abraham.Seu,— H

Em anexo vinham vários horários de trem e vapores, 500 dólares,e o nome de uma pensão em Nova York onde um quarto havia sidoreservado em nome de A. Rutledge.

Oh, como aquilo [a carta] me irritou! Henry foi esperto defato — pois, embora dissesse haver poucos atrativos paraoferecer, cada palavra havia sido pensada para me atrair: aautocensura; as lisonjas; a promessa de uma explicação — atémesmo o nome da reserva na pensão! Com aquilo ele queria queeu largasse minhas obrigações e minha família e atravessassemilhares de quilômetros com uma mera intimação de meuspropósitos!

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E, no entanto, eu não podia recusar.E isto era ainda mais irritante do que a carta em si, pois

Henry estava certo. Chegara a hora. Hora de que exatamente, eunão sabia. Apenas que toda a minha vida… o sofrimento, asempreitadas, a morte… tudo aquilo apontava para algo mais. Issoeu sentia desde criança — a sensação de que eu havia sidocolocado em um trecho longo e reto de rio, do qual não haviacomo me desviar. Levado cada vez mais rápido pelacorrenteza… cercado de mata dos dois lados… destinado achocar-me com algum objeto invisível rio abaixo. Nunca haviafalado sobre essa sensação, claro, por medo de ser consideradofrívolo (ou, pior, de me provarem que eu estava errado — pois setodo jovem crente na grandeza de seu futuro estivesse certo, omundo estaria cheio de Napoleões). Agora, contudo, o objetoestava começando a tomar forma, embora eu ainda nãoconseguisse divisar seus traços. Se milhares de quilômetros eramo preço dessa visibilidade, então que fosse. Eu já havia viajadomais por menos do que isso.

__________

Abe chegou a Nova York no dia 29 de julho. Sem querer levantarsuspeitas (nem deixar sua família desamparada), ele resolvera levarMary e os meninos junto, para uma viagem “espontânea” paraconhecer as maravilhas da cidade de Nova York.

Eles não podiam ter escolhido época pior para a visita.A cidade encontrava-se em meio a um verão violento. Duas

forças policiais rivais vinham travando uma batalha peloreconhecimento de sua legitimidade desde maio, deixando acriminalidade crescer livremente — um campo livre para ladrões eassassinos. Os Lincoln chegaram a Nova York apenas três semanasdepois da pior rebelião de gangues da história da cidade, durante a

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qual as testemunhas descreveram ter visto homens realizando “feitosimpossíveis”. Abe só estivera uma única vez em Nova York antes,quando por lá passara rapidamente, a caminho do norte. Agora teria aoportunidade de conhecer melhor a maior e mais movimentada cidadeamericana.

Os desenhos não lhe fazem justiça — trata-se de uma cidadesem fim e sem igual! Cada rua termina em outra ainda maior emais agitada que a primeira. E o tamanho dos edifícios! Nunca vitantas carruagens juntas. O ar ecoa com o som das ferradurassobre a pedra do calçamento e o rumor de centenas de conversas.Há tantas senhoras de sombrinhas pretas que se alguém olhassede um telhado, mal conseguiria ver a calçada. Lembra Roma emseu apogeu. Londres e sua grandiosidade.4 Mary está insistindopara ficarmos por pelo menos um mês! Pois como poderíamosconhecer um lugar assim de outro modo?

No domingo à noite, 2 de agosto, Abe levantou-se da cama,vestiu-se no escuro e saiu na ponta dos pés do quarto onde a famíliadormia. Precisamente às 23h30, ele atravessou a Washington Square ecaminhou para o norte, como o bilhete encontrado pela manhã sob suaporta instruía. Ele encontraria Henry na Fifth Avenue, poucosquilômetros adiante, na frente do orfanato, na esquina com a Forty-fourth Street.

A cada quarteirão que passava a cidade ia ficando maisvazia. Mais escura. Ali, os grandiosos edifícios e as calçadasruidosas mesclavam-se em fileiras de sobrados, iluminadosapenas com uma ou outra vela acesa na janela. Quase nenhumcavalheiro nas ruas. Passando, no entanto, a Madison Square,fiquei maravilhado com o esqueleto inacabado de uma estruturaimensa e desconhecida.5 Maravilhado com o silêncio absoluto.As ruas desertas. Comecei a me imaginar como a única alma em

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Nova York, até que o som de sapatos sobre o calçamento mechegou aos ouvidos.

Abe olhou de relance por sobre o ombro. Vultos de três homensvinham logo atrás.

Como eles haviam conseguido me seguir sem que eupercebesse? À luz dos recentes problemas na cidade, achei que omelhor seria me virar e voltar para a Washington Square, voltarpara a segurança da luz dos lampiões e das ruas cheias. Henrypodia esperar. Oh, mas que maldito tolo eu fui! Havia meaventurado sem armas, sabendo perfeitamente que muitoscavalheiros haviam sido roubados (ou coisa pior) naquelas ruasultimamente — e que mal se podia contar com a intervenção dapolícia. Amaldiçoando-me em silêncio, virei à esquerda naThirty-fourth Street. Meu coração quase parou quando ouvipassos virando a esquina logo atrás de mim — pois agora nãohavia dúvida sobre a intenção deles. Apertei o passo. Elestambém. “Se pelo menos eu conseguisse chegar até a Broadway”,pensei.

Ele não conseguiria. Seus perseguidores começaram a correr.Abe fez o mesmo, virando outra vez à esquerda e correndo por entredois lotes na esperança de despistá-los.

Minha velocidade ainda era algo em que confiar — mas pormais rápido que eu fosse, eles eram ainda mais velozes. Perditoda a esperança de escapar, virei-me e enfrentei-os com meuspunhos.

Abe estava com quase 50 anos. Não empunhava uma arma ouentrava em uma briga havia 15 anos. Mesmo assim, conseguiu acertaralguns socos em cada um de seus assaltantes antes que um deles o

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acertasse em cheio, apagando-o completamente.

Acordei na escuridão total, um rumor distante de rodas decarruagem sob mim.

“Apague-o de novo”, disse a voz desconhecida.Uma dor aguda, oh, tão breve, no topo de minha cabeça… o

universo diante de mim perdendo a cor e a majestade… e então…nada.

__________

— Eu sinto muito — disse a voz familiar —, mas não podemos confiarem ninguém sobre nosso esconderijo.

Era Henry.Meu capuz foi então retirado, e me vi no centro de um

grandioso salão de dois andares, com um teto alto, todotrabalhado, quase 10 metros acima de minha cabeça dolorida; ascortinas compridas, vermelho-escuras, estavam fechadas; ailuminação fraca vinha apenas de candelabros. Muito ouro, muitomármore. Entalhes e mobília refinadíssimos, e um assoalho demadeira tão escura e lustrada que podia muito bem ser de vidronegro. Era o salão mais esplêndido que eu já vira na vida ou, nocaso, que algum dia pensara ser possível que existisse.

Três homens de idades e portes distintos estavam atrás deHenry, todos encostados no centro de uma aristocrática lareira demármore. Todos com desprezo no olhar. Aqueles, supus, deviamser meus perseguidores. Havia dois sofás compridos, virados umpara o outro, diante do fogo, com uma mesa baixa entre eles.Sobre ela, um serviço de chá de prata refletia a luz do fogo,lançando padrões estranhos e fascinantes nas paredes e no teto.Um minúsculo cavalheiro grisalho estava sentado no sofá da

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esquerda, com uma xícara de chá na mão. Eu já o conhecia dealgum lugar… tinha certeza de que sim… mas em meu estado deconfusão não conseguia me lembrar de onde.

Recobrando os sentidos, percebi que havia cerca de vinteoutros cavalheiros espalhados pelo salão, alguns atrás de mim,alguns sentados em cadeiras de espaldar alto junto às paredes.Outros vinte olhavam para baixo dos mezaninos na penumbra dosdois lados do salão. Evidentemente queriam manter o rostooculto.

— Por favor — disse Henry. Ele conduziu Abe até o assento aolado do minúsculo cavalheiro.

Hesitei em me aproximar até que Henry (percebendo omotivo por trás de minha relutância) se dirigiu aos meusperseguidores, e eles saíram de perto da lareira. “Dou-lhe minhapalavra”, disse ele quando eles saíram, “de que não lheacontecerá mais nenhum mal esta noite.” Acreditando nasinceridade dele, sentei-me de frente para o cavalheiro que aindanão conseguia reconhecer, levando a mão esquerda atrás dacabeça e me equilibrando com a outra.

— Vampiros — disse Henry, indicando com a cabeça os trêshomens que agora estavam sentados nas cadeiras junto à parede.

— Sim — disse Abe. — Eu teria descoberto sozinho, obrigado.Henry sorriu.— Vampiros — disse ele, caminhando pelo salão de festas. —

Todos aqui temos a maldita sina de sermos sugadores de sangue. Comexceção de você… e do senhor Seward aqui.

Seward…O Senador William Seward era o ex-governador de Nova York,

uma das principais vozes antiescravagistas do Congresso e o homemque muitos esperavam que viesse a ser o candidato republicano à

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eleição presidencial de 1860. Ele e Abe haviam se conhecido noveanos antes, durante a campanha do general Zachary “Curto e Grosso”Taylor na Nova Inglaterra.

— É um prazer vê-lo de novo, senhor Lincoln — disse ele,estendendo a mão.

Abe apertou-a.— Igualmente, senhor Seward; o prazer é meu.— Sem dúvida você conhece a reputação do senhor Seward,

não? — perguntou Henry.— Conheço.— Então você deve saber que ele é um dos favoritos à indicação

este ano.— Claro que sei.— Claro — disse Henry. — Mas diga-me… você sabia que o

Seward aqui já caçou e aniquilou quase tantos vampiros quanto você?Abe teve de morder o lábio para não ficar boquiaberto. Então

aquele livresco, privilegiado e minúsculo senhor Seward era umcaçador de vampiros? Impossível.

— Revelações — disse Henry. — O que nos traz aqui esta noitesão revelações. — Henry passou diante da lareira. — Eu os trouxehoje aqui — disse ele — porque meus colegas queriam ver com seuspróprios olhos o propósito que eu descobri em vocês dois. Queriamver esse tal Abraham Lincoln de quem venho falando todos esses anos.Eu os trouxe aqui porque eles queriam provas de que vocês seriamcapazes de fazer o que nós queremos; queriam julgá-los diretamenteantes de seguirmos adiante.

E como eu serei julgado? Pela facilidade com que lhes arrancoa cabeça?

Uma voz de homem ecoou no escuro.— Tenho certeza de que encontraremos um método mais

agradável do que este, senhor Lincoln.

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Umas poucas risadas retumbaram pelo salão. Henry silenciou-ascom um gesto da mão.

— Já está feito — disse ele. — A partir do momento em quevocês foram trazidos a este salão, eles puderam ver seu passado e suador; penetraram em sua alma, assim como eu fiz. Se vocês tivessemsido julgados indignos, não teriam tido permissão para acordar entrenós.

— Nós… — disse Abe. — Sempre achei que vampiros não sealiavam.

— Tempos de desespero. Nossos inimigos se aliaram, de modoque nós também. Eles recrutaram homens para a causa deles, de modoque nós também.

Henry fez uma pausa.— Há uma guerra pela frente, Abraham — continuou então. —

Não será uma guerra do homem, mas será o homem quem derramaráseu sangue ao lutá-la, pois será uma guerra por seu direito à liberdade.— Uma guerra… — disse ele. — E você, dentre todos os homens,precisa vencê-la.

Agora já não havia mais nada — nenhum vampiro nos mezaninos,nem Seward, nem serviço de chá de prata… havia apenas Henry.

— Há aqueles da minha espécie — continuou ele — quepreferem permanecer na sombra. Que se aferram à última parte de simesmos que ainda é humana. Nós nos contentamos em nos alimentar eem sermos esquecidos. Seguir com nossa existência maldita emrelativa paz, matando apenas quando nossa fome se torna insuportável.Mas há outros da minha espécie… aqueles que se veem como leõesentre cordeiros. Como reis… em tudo superiores ao homem. Por que,então, esses deveriam ficar confinados às trevas? Por que haveriam detemer ao homem?

— Trata-se de um conflito iniciado muito antes de existir aAmérica. Um conflito entre dois grupos de vampiros: os que buscamcoexistir com o homem e os que querem ver toda a humanidade

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agrilhoada… cevada, criada e encurralada como gado.Não julgue que somos todos iguais, Abraham…— Nesses cinquenta anos — disse Henry — fizemos tudo o que

estava ao nosso alcance para evitar esta guerra. Cada empreitada emque o enviei… cada uma delas tinha por objetivo destruir aqueles quequeriam apressar a guerra, e seus esforços, bem como os de Seward ede outros, de fato conseguiram reduzir seu avanço. Mas já não temosesperanças de conseguir impedir a guerra. Na verdade, a menos dequatro semanas vimos a primeira batalha ser travada aqui nas ruas deNova York.

Ocorrências estranhas… feitos impossíveis…— Nossos inimigos são astutos — disse Henry. — Fizeram de

sua causa a causa do Sul. Aliaram-se com homens que defendem aescravidão com fervor igual ao deles. Mas esses homens foramenganados e anteciparam sua perdição, pois os negros serão apenas osprimeiros a ser escravizados. Se nós perdermos, Abraham, então seráapenas uma questão de tempo até que todos os homens, mulheres ecrianças da América sejam escravos.

Abe sentiu como se estivesse enjoado.— E é por isso, meu velho amigo, que não podemos perder. Por

isso nos aliamos. Somos vampiros que acreditamos nos direitos dohomem — disse Henry. — Nós somos da União… e temos planos paravocê, meu velho amigo.

1 Em 1852, Abe abriu um escritório de advocacia com Ward Hill Lamon, um homem de grande estatura que mais tarde serviria como guarda-costas da presidência.

Assim como fizera com seu antigo sócio, Abe nunca contou a Lamon sobre os vampiros.2 Uma testemunha alegou ter visto Duff cometer assassinato a uma distância de aproximadamente 45 metros, “sob a luz do luar”. Abe apresentou um almanaque para

provar que a noite em questão fora sem lua.3 Brooks morreu oito meses depois do ataque.

4 Por maior que fosse Nova York, ainda tinha apenas um quarto do tamanho de Londres em 1857.

5 Provavelmente o Fifth Avenue Hotel, completado em 1859.

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PRESIDENTE

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DEZ

Uma casa dividida“Uma casa dividida ao meio não pode se manter de pé.”Acreditoque este governo não poderá durar, enquanto for metade escravoe metade livre. Não espero que a União se dissolva — não queroque a casa caia —, mas espero que deixe de ser dividida. Elaserá inteiramente uma coisa ou outra.

— Abraham Lincoln, ao aceitar a indicação do Partido Republicanopara o Senado dia 16 de junho de 1858.

I

Algumas horas antes da alvorada do dia 23 de fevereiro de 1861, umafigura alta e encapuzada saltou às pressas na plataforma da estação daferrovia Baltimore & Ohio antes mesmo que o trem parasse, dez horasantes do previsto para sua chegada. Seus pés mal tocaram o chãoquando uma massa de homens armados conduziu-o a uma carruagemque esperava e que partiu assim que a porta reforçada foi batida. Ládentro, dois guarda-costas juntaram-se a ele atrás das cortinas negras,com seus revólveres a postos, como se esperassem que a qualquermomento a noite fosse acabar em tiroteio. Do lado de fora, um terceirohomem seguia sentado ao lado do cocheiro, seus olhos negrosespiando as ruas escuras de Washington à procura de qualquer sinal deperigo à vista. Havia outros de sua espécie esperando no hotel,garantindo que ninguém entrasse sem que eles soubessem epermitissem; garantindo que a carga preciosa fosse entregue emsegurança em sua cama. Havia até mesmo um homem parado no

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telhado do edifício do outro lado da rua, procurando qualquer um quepudesse tentar escalar a fachada e entrar pela janela.

Henry Sturges havia insistido nesse nível de segurança semprecedentes — e sua insistência se provaria prudente…

Afinal, o presidente eleito Abraham Lincoln havia acabado desobreviver à primeira tentativa de assassinato.

__________

No final de 1857, não muito depois do retorno de seu fatídico encontroem Nova York, Abe anunciou que disputaria com Stephen Douglas avaga no Senado. Sem o conhecimento de seus correligionários, esteanúncio havia sido precedido pela chegada de uma carta.

Abraham,Conforme você mesmo supôs em sua carta de 13 de

setembro, nós devemos lhe pedir que se oponha ao senhorDouglas. O senador, como você sem dúvida suspeita, é um dosmuitos homens cooptados pela influência de nossos inimigos.Não se preocupe com o resultado desta eleição — em vez disso,use sua própria paixão e suas habilidades oratórias paracombater a escravidão em todas as oportunidades. Agiremos demodo a assegurar que o resultado seja favorável à nossa causa.Confie em você mesmo, Abraham. Nunca se esqueça de que esteé o seu propósito.

Eternamente,— H

P.S.: Mateus 12:251

Abe aceitou a indicação do Partido Republicano ao Senado nodia 16 de junho de 1858, com a fala que ficaria conhecida como seu

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discurso da “Casa Dividida”. Nele, Lincoln acusou o senador Douglasde fazer parte da “máquina” destinada a espalhar a escravidão portoda a América. Sem mencionar vampiros, Abe aludiu a “elementosestranhos, discordantes e até hostis” que haviam se aliado paracombater um inimigo “orgulhoso e mimado” mais ao sul.

Entre 21 de agosto e 15 de outubro, ele e Douglas fizeram umasérie de sete debates por todo o estado do Illinois, alguns delesassistidos por cerca de 10 mil pessoas. Tornaram-se um sucessoinstantâneo, lançando os dois candidatos ao cenário nacional, uma vezque as transcrições dos debates foram publicadas em jornais do paísinteiro. Por um lado, Douglas tentou pintar Abe como um abolicionistaradical. Esmerou-se em incitar a multidão com um frenesi de imagensde escravos livres vagando por Illinois; assentamentos de negrosespreitando quintais de brancos; homens negros se casando commulheres brancas.

Se você quer que os negros votem em igualdade decondições com você e que possam ocupar cargos públicos, quepossam participar de júris e que decidam sobre o seu direito,então apoiem o senhor Lincoln e o Partido Republicano dosNegros, que são a favor da cidadania do negro!

Abe voltou a atacar o discurso apocalíptico de Douglas com umasimples verdade moral — uma verdade que ele devia (mesmo que nãoo admitisse) à criação batista de seu pai.

Concordo com o juiz Douglas — o negro não é igual a mimem muitos aspectos — certamente que a cor é um deles, talveztambém até não tenha os mesmos dotes morais e intelectuais. Masno direito a comer, sem pedir permissão a ninguém, do pão quesuas próprias mãos ganham, ele é igual a mim e ao juiz Douglas,e igual a qualquer outro homem vivente sobre a terra.

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Ainda assim, Abe estava descontente com sua incapacidade dechegar à verdadeira questão — o fato de Douglas servir a criaturasque desejariam ver toda a humanidade agrilhoada.2 Depois de umdebate em Charleston, Illinois, Abe desabafou sua frustração nodiário.

Fig. 29. — UM HOMEM E UMA MULHER (PROVAVELMENTE VAMPIROS) POSAM DIANTE DE UMA FIRMA DE LEILÕES DEESCRAVOS EM ATLANTA, GEORGIA, POUCO ANTES DA GUERRA CIVIL.

Hoje, mais sinais na multidão. “A igualdade do negro éimoral!” “América para os brancos!” Eu olho para essasmultidões… para esses tolos. Esses tolos não fazem a menorideia de como viver segundo a moral que adotam. Esses que seproclamam homens de Deus, mas não demonstram a menorreverência à Sua palavra. Cristãos pregando escravidão!Senhores de escravos pregando moralidade! Há diferença paraum bêbado pregando sobriedade? Uma prostituta pregando

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moderação? Olho para esses tolos fazendo campanha de sua ruínae me sinto tentado a lhes contar toda a verdade sobre o que lhesespera. Imagino a reação que teriam! O pânico! Oh, se eu pudessedizer uma só palavra! “Vampiro!” Oh, se eu pudesse mostrarquem é esse almofadinha3 e desgraçá-lo na frente de toda acriação! Expô-lo como o bom traidor que é! Traindo a própriaespécie! Como eu queria ver homens como Douglas e Buchananagrilhoados — vítimas da própria instituição que eles defendem!

Tanta frustração (ou seu desejo de surpreender Douglas) fez comque Abe inserisse diversas alusões veladas à ameaça vampira duranteo último debate de 15 de outubro.

Esse é um problema que continuará a existir neste paísquando essas pobres línguas, do juiz Douglas e a minha, já nãopuderem dizer mais nada. É a eterna luta entre esses doisprincípios — certo e errado — em todo lugar do mundo. São osdois princípios que já se enfrentam desde o início dos tempos, eque sempre continuarão em conflito. Um é o direito comum dahumanidade e o outro é o direito divino dos reis.

Abe havia eletrizado todas as forças antiescravistas de Illinois edo Norte. Infelizmente, os senadores ainda eram eleitos por suaslegislaturas estaduais em 1858. A maioria democrata (ou, maisprecisamente, seus apoiadores vampiros) de Springfield colocouStephen Douglas mais seis anos em Washington. “Mais seis anos”,como Abe disse em seu diário, “às ordens dos vampiros sulistas.”Pela primeira vez em anos, ele se viu às voltas com uma crise dedepressão.

Falhei com os oprimidos… os rostos desamparados quegritam por justiça. Falhei em corresponder às expectativas dosamantes da liberdade em toda parte. Será este o “propósito” de

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que Henry tanto fala? Falhar?

Sua melancolia não duraria muito. Três dias após sua derrota,Abe recebeu uma carta de Henry que consistia em três frases sucintas.

Ficamos muito contentes com sua derrota. Nossos planoscontinuam de pé. Aguarde mais instruções.

II

Ao longo dos anos, o teatro acabou se tornando uma das fugasfavoritas de Abe. Talvez se sentisse atraído por gostar de ouvir umaboa história; talvez pelos floreios teatrais que ele agregava às suasperformances minuciosamente redigidas e que permitiam aidentificação com o público. Talvez o nervosismo que sentia ao falardiante de milhares de pessoas fizesse com que ele admirasse os atores.Abe gostava de musicais e óperas, mas era especialmente fã de teatro(comédias ou tragédias, tanto fazia). Mais do que tudo, ele gostava dever seu adorado Shakespeare ganhar vida.

De modo que foi com grande prazer que Mary e eu fomosassistir a uma apresentação de Júlio César certa noitetempestuosa de fevereiro — quando enfim havia passado toda aatribulação da eleição recente. Nosso querido amigo prefeito[William] Jayne fizera a gentileza de nos oferecer seu camarotede quatro lugares.

Naquela noite, os Lincoln estavam acompanhados pelo sócio deAbe na firma de advocacia, Ward Hill Lamon, e sua esposa, Angelina,de 34 anos. A apresentação foi, segundo palavras de Abe, “umespetáculo esplêndido de indumentária antiga e cenários pintados” —com a exceção de um erro no primeiro ato.

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Quase começo a rir quando o agourento adivinho alertaCésar: “Tem cuidado com os idos de abril 4. Achei um milagre (eum alívio) ninguém na plateia cair na risada ou gritar a correção.Como um ator pôde cometer um erro desses? Será que meusouvidos me enganaram?

No terceiro ato, segunda cena, Marco Antônio está de pé junto aocorpo esfaqueado de César, atraiçoado, e começa o discurso maisfamoso da peça:

Amigos, romanos, compatriotas, sua atenção;Vim aqui enterrar César, não elogiá-lo;O mal que os homens fazem a eles sobrevive,O bem, em geral, enterra-se com os ossos…

Os olhos de Abe se arregalaram diante do apaixonadodesempenho do jovem ator.

Eu já lera aquelas palavras inúmeras vezes, maravilhadocom o gênio de sua construção. Mas só agora, nas mãos daqueletalentoso rapaz, elas soaram verdadeiras. Só agora eucompreendia todo o seu significado. “Todos vocês o amaram umdia, não sem motivo”, disse ele. “O que os impede agora dechorá-lo?” Dito isso, contudo, seu discurso fez uma pausa. Elepulou do palco e foi para a plateia.

Que interpretação estranha era aquela? Ficamos olhandopara ele, perplexos embora fascinados, enquanto ele passavapelo nosso lado do teatro e desaparecia por uma porta que davaem nosso camarote. Meu corpo todo foi tomado de apreensão,pois tive a certeza de que ele iria fazer da minha presença umespetáculo. Eu tinha motivos para me preocupar, pois aquilo jáhavia acontecido muitas vezes antes. Tanta exposição era um dosperigos da vida pública, o que sempre me deixava muito

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constrangido.

Como Abe temia, o jovem ator entrou no camarote com umfloreio, despertando risinhos e aplausos da plateia. Todos os olhos doteatro estavam voltados para ele, parado atrás dos Lincoln e seusconvidados. Abe sorriu aflito, sabendo o que viria em seguida. Mas(para sua surpresa e alívio) o ator simplesmente prosseguiu seudiscurso.

“Oh, julgamento!”, exclamou ele. “Fugiste para o meio dosbrutos animais e os homens perderam a razão!” Isto dito, elesacou um revólver do figurino, apontou para a nuca de Angelina edisparou. O barulho me assustou e por um momento eu ri, certode que era tudo parte da peça. Mas quando vi o vestido delacoberto de pedaços de cérebro, quando a vi tombar da cadeira —com o sangue jorrando não só das feridas, mas também pelasorelhas e pelas narinas como água de uma fonte —, então entendi.

Os gritos de Mary instauraram o pânico lá embaixo, aplateia se acotovelava para chegar ao fundo do teatro. Saquei afaca do colete (voltara a levá-la comigo desde o encontro com aUnião) e fui correndo atrás do bastardo enquanto Lamon acudia aesposa, mantendo sua cabeça erguida e chamando-a em vão emmeio ao sangue que escorria em suas mãos. Alcancei o atorquando ele apontava a arma para Mary. Cravei nele minhalâmina, enfiando-a inteira no músculo entre o pescoço e a cabeça,forçando-o a soltar a arma antes do tiro. Puxei a faca e enfiei denovo. Antes que eu me desse conta, o mundo virou de lado.

O jovem ator chutou as pernas de Abe, passando-lhe uma rasteiraque o derrubou no chão e fez voar a faca de sua mão. Abe olhou paraseu corpo estendido — uma dor latejante vinha de sua perna esquerda.Ela havia se torcido na altura do joelho, de modo que não dobravapara a frente nem para trás, mas grotescamente para o lado.

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Subitamente senti náuseas terríveis. Vendo-me naquelasituação, Lamon deixou a esposa e juntou-se à luta. Apontou seurevólver para o demônio, mas antes de fazer pontaria, o atorsocou-lhe a boca com tanta força que seus dentes entraram e suamandíbula se soltou da articulação.

Maldito vampiro…

Mary não suportou mais a cena e desmaiou de vez, caindono chão perto de seu assento. Lamon foi cambaleando para trásaté se encostar na balaustrada — segurava o queixo,instintivamente tentando fazê-lo voltar para o lugar. O vampirosacou sua arma, apontou para a cabeça de Lamon e disparou,lançando estilhaços de crânio por sobre o balaústre do camarote,que caíram nos assentos vazios lá embaixo. Morto. O vampiro emseguida virou a arma para Mary e, apesar de meus gritos deprotesto, baleou-a no peito enquanto ela ainda estava desmaiada.Mary nunca mais acordaria.

Ele veio atrás de mim então, de pé junto ao meu corpodesamparado. Apontou o cano do revólver para minha cabeça.Nossos olhares se cruzaram.

Eram os olhos de Henry.

“Sic temper tyran…”A última palavra foi interrompida pelo estampido do tiro.Abe acordou sobressaltado.Ergueu-se na cama e escondeu o rosto nas mãos, como fizera anos

atrás, na noite em que viu seu pai lidando com o diabo. Na noite emque Jack Barts condenara sua mãe à morte.

Mary dormia serenamente ao lado dele. Seus garotosestavam a salvo em suas camas. Uma vistoria completa na casanão indicou qualquer sinal de invasores — vivos ou não. Ainda

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assim, Abe não conseguiu mais dormir naquela noite defevereiro. Tinha alguma coisa muito familiar naquele sonho. Eramuito real. Ele podia visualizar todos os detalhes do teatro emsua cabeça; cada detalhe — desde os figurinos até o cenário.Sentia a dor nauseante em sua perna e chegava a ouvir o sanguede Angelina gotejar. Mas por mais que se esforçasse, nãoconseguia se lembrar das malditas palavras que o assassinoestava dizendo na hora em que ele acordou.5

__________

Pouco depois do sonho de Abe, William Seward, ainda o grandefavorito para a indicação republicana à presidência em 1860, tomouuma estranha decisão tática:

Seward viajou abruptamente para a Europa e deve ficar porlá pelo menos mais seis meses. Qual o significado disso àsvésperas de uma eleição tão crucial? Como essa ausência podelhe ser vantajosa? Muita gente criticou a viagem como prova desua arrogância, de sua indiferença. Eu, contudo, reluto em apoiaressa condenação — pois desconfio que ele foi enviado a mandoda União.

A suspeita de Abe seria confirmada na carta seguinte de Henry.

Abraham,Nosso amigo S foi enviado em uma empreitada — uma

empreitada que esperamos que se reverta em apoios para a nossacausa nos próximos meses e anos. Agora pedimos que você seconcentre com todas as forças em direção à maior das batalhaspolíticas.

— H

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Na ausência de Seward, os aliados políticos de Abeconcentraram-se em atrair apoios para sua candidatura à presidência,enquanto ele próprio se esforçou para se tornar conhecido em âmbitonacional. Na noite de 27 de fevereiro de 1860, no Instituto Cooper deNova York, ele faria o que alguns historiadores consideram o maiordiscurso político de todos os tempos para uma plateia de mais de milpessoas.

“Tampouco queremos ser difamados em nossos deveres porfalsas acusações contra nós”, berrou Abe, “nem ficar apavorados porameaças de destruição do governo ou de calabouços para nós.Tenhamos fé de que o direito cria a força… e com essa fé, ousemos,até o fim, cumprir nosso dever conforme nós o entendemos.”

O texto completo saiu em todos os principais jornais de NovaYork no dia seguinte, e semanas depois, panfletos contendo o discursode Abraham Lincoln no Instituto Cooper estavam disponíveis por todoo Norte. Abe vinha despontando como a liderança intelectual doPartido Republicano e como seu mais talentoso orador.

O Partido Democrata, nesse ínterim, havia rachado em dois.Os democratas do Norte indicaram o velho rival de Abe, Stephen

Douglas, para a presidência, enquanto os do Sul indicaram o vice,John C. Breckenridge. O racha não era casual. Mais do que isso, eraresultado de uma década de esforços da União. Desde o início doséculo XIX, Henry e seus aliados vinham trabalhando para minar seusinimigos em várias frentes: transportando escravos para o norte pelaUnderground Railroad, enviando espiões por todo o sul e, maisrecentemente, desencorajando rumores separatistas nas legislaturasestaduais. Mas sua maior conquista aconteceria no dia 18 de maio de1860, na terceira votação da Convenção Nacional Republicana emChicago.

Abe estava em Springfield quando ficou sabendo que ele, em vezde Seward, havia sido o indicado para a presidência.

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Mal consigo entender como tamanha honra foi depositadasobre mim, mas ainda assim (e não há como dizê-lomodestamente, de modo que nem tentarei fazê-lo), não é nenhumasurpresa. Há uma guerra pela frente. Não será uma guerra dohomem — mas será o homem quem derramará seu sangue ao lutá-la —, pois será uma guerra por seu direito à liberdade. E eu,dentre todos os homens, devo vencê-la.

III

Em 1860, os candidatos à presidência não costumavam fazercampanha para si mesmos. Os discursos e os apertos de mão eramdeixados, tradicionalmente, para os aliados políticos ecorreligionários, enquanto os próprios candidatos ficavam nosbastidores, calmamente redigindo cartas e agradecendo aossimpatizantes. Abe não tinha por que quebrar essa tradição. Enquantoaqueles que o apoiavam (incluindo Seward, que, apesar de perder aindicação do partido, deu todo o apoio a Abe) viajavamincansavelmente por todo o país difundindo seu nome, o candidatoLincoln permaneceu com a família em Springfield.

Uma entrada com data de 16 de abril dizia:

Passo a manhã toda andando pelo escritório,cumprimentando os amigos que passam, agradecendo a estranhospelo apoio. Quando isso termina, brinco com os meninos maisnovos em casa antes de levá-los para a cama, e quando o tempoestá bom, saio para passear com Mary. A vida está bem parecidacom o que sempre foi, com três exceções — a saber, os trêsvampiros que vieram para nos proteger.

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FIG. 13-2. — ABE POSA DIANTE DA CABANA ABANDONADA DA FAMÍLIA EM LITTLE PIGEON CREEK EM 1860, APOIANDO-SEEM SEU VELHO E CONFIÁVEL MACHADO. A IMAGEM PRETENDIA DIFUNDIR A REPUTAÇÃO DE UM CANDIDATO DE ORIGEMHUMILDE, E FOI CONCEBIDA PELO PRÓPRIO HENRY STURGES.

Os mesmos ágeis perseguidores de Abe haviam sido chamadosoutra vez por Henry e a União. Seriam agora seus guarda-costaspessoais, tendo jurado protegê-lo a qualquer custo.

Desconfio de que estejam um tanto incomodados com atarefa (embora seja impossível saber ao certo, pois elesraramente abrem a boca). Diversas vezes me referi a eles comominha “Paganíssima Trindade”, por brincadeira, mas isso aindanão chegou a provocar sequer um esboço de sorriso. Eles formamum grupo mortalmente circunspecto, o que, suponho, os tornaperfeitos para a tarefa de me manter vivo.

Para Mary e as crianças, eles eram “voluntários da campanha”que se dispuseram a afastar “eleitores muito afoitos”. Era umaexplicação plausível. Abe havia se tornado uma pessoa muito famosa,e a casa dos Lincoln era assediada por simpatizantes e pessoas atrás

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de favores a toda hora. Mas os guarda-costas vampiros constituíamapenas um dos segredos que o “Velho e Honesto Abe” manteveescondido da esposa e de seu público de adoradores naquele verão.

Ele também havia tirado a ferrugem do machado.E pela primeira vez seu alvo era um homem mortal.

Abraham,Devo pedir-lhe que saia em mais uma empreitada. Ele é

alguém da sua espécie — mas vive protegido por dois da minha otempo inteiro. Tome todas as precauções.

Abe quase engasgou ao ler o nome embaixo…

Jefferson Davis.

Dificilmente haveria um político sulista mais bem-sucedido naAmérica. Davis se formara em West Point, lutara bravamente naGuerra do México, servira como governador do Mississippi, haviasido membro do gabinete do presidente Franklin Pierce e fora duasvezes eleito senador. Era um prócer declarado da escravidão e, comoex-secretário da Guerra, o homem mais indicado para conduzir o Suldiante do mais bem armado e populoso Norte.

Desta vez, Abe recusou a incumbência.

Henry,Sou um velho com três filhos e uma esposa que já chorou

diante de muitas sepulturas. Não lhe infligirei mais essa tristezamorrendo eu também assassinado. Seguramente existem centenas,senão milhares entre os de sua espécie, mais indicados para atarefa. Por que você prefere a mim, que há anos perdi minhamelhor forma?

Envie outro.Seu,

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— Abraham

A resposta de Henry chegou em carta expressa quatro dias depoisde Abe enviar sua recusa a Nova York.

AbrahamÉ difícil saber o futuro. Nós o vemos refletido como que

sobre ondas na água — distorcido e sempre em movimento. Hámomentos, no entanto, em que as ondas amainam e o reflexo ficaclaro. A União viu um desses momentos de seu futuro naquelanoite em Nova York: você está destinado a derrotar JeffersonDavis, Abraham. Você sozinho. Além do mais, não creio que sejaseu destino morrer nesta empreitada. Sinto isso com todo o meuser. Não o enviaria se fosse de outro modo. Deve ser você,Abraham. Imploro que você reconsidere.

Eternamente,— H

__________

Abe estava com 52 anos. E, embora continuasse incrivelmente ágilpara a idade, estava longe de ser o jovem caçador que conseguiarachar uma tora a cinquenta passos de distância. Ele precisaria deajuda.

Escrevi para Speed chamando-o para me encontrar emSpringfield de uma vez e — depois de muita consideração —contei logo a verdade a Lamon. Ele me achou “um louco ou ummaldito de um idiota mentiroso” quando lhe contei a história dosvampiros e seus desígnios malignos contra o homem… e quaseperdeu a paciência — até que convenci um dos guarda-costas aconfirmar minha história, o que ele fez de forma dramática. São

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poucos os homens em quem se pode confiar nesta guerra, e,embora Lamon e eu discordemos em muitas coisas (a escravidãoé apenas uma delas), ele se mostrou um amigo fiel. Sem Jack, éprudente arregimentar um homem com sua estatura —principalmente sendo Speed tão magro e eu, tão avançado emanos.

Meu Deus… sinto-me como Henrique [V] em Harfleur.6

Em julho, os três caçadores foram de trem a Bolivar County,Mississippi, onde Abe ouvira dizer que Jefferson Davis vinha serecuperando de uma cirurgia no olho. Escondido na bagagem, haviaum arsenal de revólveres, facas, bestas e o machado de Abe — recém-afiado e outra vez reluzente. O candidato Lincoln passara dias fazendonovas estacas para seu conjunto e criando uma nova armadura para opeito que ia por baixo do casaco. Sumira na mata com seu machado epraticara sua pontaria atirando-o em troncos a princípio de 10 edepois a 20 e poucos metros de distância. Ele ressuscitara até suavelha receita dos mártires e havia preparado uma nova leva.

Insisti para que a Trindade ficasse em Springfield cuidandode minha família. Era uma empreitada comum, expliquei. Nossohomem não passava de um mortal — e ainda doente, cego de umolho recém-operado. Speed, Lamon e eu éramos mais do que osuficiente para lidar com Davis e seus seguranças vampiros.

Os caçadores apearam nos limites da propriedade de Davis,pouco depois da 1 da madrugada de segunda-feira, dia 30 de julho.Ficaram a certa distância da casa principal, deitados, de tocaia namata circundante por meia hora, sussurrando vez ou outra, aguardandona luz desmaiada de um luar atrás das nuvens.

Abe havia recebido uma segunda carta de Henry antes de saíremde Springfield, uma carta com novas informações. Os espiões daUnião haviam descoberto que Davis vivia confinado em um quarto da

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face oeste no andar de cima. No intuito de deixá-lo tranquilo enquantose recuperava, a esposa, Varina, passara a dormir em um quartocontíguo com os filhos bebês e a filha de 5 anos. À noite, os doisseguranças de Davis se revezavam na patrulha do terreno, ficandosempre um na casa.

Achei estranho, entretanto, que não víssemos ninguémpatrulhando nem luz acesa em qualquer janela. As instruções deHenry, contudo, haviam sido precisas, e tínhamos vindo de muitolonge. Não podíamos cogitar voltar atrás. Satisfeitos depois detanto esperarmos, aprontamos nossas armas e nos esgueiramos atéa clareira ao redor do sobrado. Era branco (ou amarelo, não pudedistinguir no escuro), de alpendre e primeiro andar altos, uma vezque essas partes da casa geralmente eram inundadas nas cheias,quando o Mississippi transbordava. Eu já esperava encontrar umvampiro vigiando a porta da frente, alertado da nossa presençapelos relinchos de nossos cavalos a distância e pelo cheiro dosmártires em meu casaco. Mas não havia ninguém. Sótranquilidade. Sentia-me inundado de dúvidas, enquantosubíamos os degraus da entrada. Será que eu ainda tinha forçapara derrotar um vampiro? Havia preparado Lamon para lidarcom um adversário tão rápido e tão forte? Speed ainda estava àaltura da tarefa? Na verdade, o machado em minhas mãos pareciaainda mais pesado do que quando eu era uma criança.

Abe lentamente chegou até a porta, enquanto Lamon lhe davacobertura, pronto para atirar no vampiro que certamente saltaria dassombras assim que a porta se abrisse.

Mas ninguém veio abrir.

Entramos — eu com o machado suspenso acima da cabeça;Speed apontando o cano de seu rifle 44; Lamon com um revólver

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em cada mão. Revistamos o primeiro andar, escuro e poucomobiliado, e fomos anunciados a cada passo pelos rangidos dastábuas do piso. Se houvesse um vampiro vigiando Davis lá emcima, agora saberia que estávamos ali. Sem encontrar sinal dealma viva (ou morta) embaixo, voltamos para a entrada e suaescada estreita.

Abe subiu primeiro. Havia vampiros ali — ele podia sentir.

Eu já podia antever os momentos seguintes desenrolando-seà minha frente enquanto subia a escada. Chegando ao alto, um dosvampiros apareceria de repente e o atacaria pela minha direita.Eu viraria o machado para ele e cravaria a lâmina em seu peitoquando nos víssemos, mas, ao fazê-lo, seria jogado para trás — enós dois rolaríamos escada abaixo. Em meio à luta, o segundovampiro atacaria Speed e Lamon lá em cima. Lamon entraria empânico (sendo esta sua primeira caçada) e disparariadesvairadamente, mas suas balas errariam o alvo. Caberia entãoa Speed e seu rifle silenciar a criatura, o que ele faria acertandoem cheio seu coração e sua cabeça. O barulho despertaria asenhora Davis e as crianças que dormiam, que viriam correndono exato momento em que eu estivesse desencravando o machadodo peito do vampiro e arrancando sua cabeça no pé da escada.Seus gritos atrairiam o frágil e zarolho Jefferson Davis, que viriacambaleando do quarto, ao que Speed e Lamon atirariam paramatá-lo. Com nossas sinceras desculpas à família, fugiríamoscorrendo noite adentro.

Mas ao chegar no alto da escada, Abe não encontrou ninguém.Todas as portas estavam abertas. Todos os quartos, vazios.

Estaríamos no lugar errado? Teria Davis súbita einexplicavelmente levantado da cama e ido para Washington?

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Não, não — as instruções de Henry haviam sido detalhadas. Eraesta a casa. Eram estes o dia e a hora do nosso ataque. E estavatudo errado.

Aqui tem vampiro… Sou capaz de sentir.

A verdade então se formou na minha cabeça. Ah, como euhavia ignorado meus instintos! Como pudera aceitar vir! MalditoHenry e suas ondulações na água! Como eu pudera ser tãocelerado? Como pude arriscar minha vida com três filhos emcasa? Com uma mulher já abalada pelo luto? Não… eu não podiamorrer esta noite. Eu me recusava.

— Já para fora — sussurrou Abe. — Já… e deixem suas armasprontas… fomos traídos.

Começamos a descer a escada até a porta da frente, masquando chegamos à porta, a encontramos trancada por fora. Osom de madeira sobre madeira então se ouviu à nossa voltaquando as venezianas se fecharam em todas as janelas, e um corode martelos bateu pregos nos batentes, garantindo que nãopudessem ser abertas. “Para cima!”, exclamei. Mas ali também asjanelas haviam sido fechadas e lacradas.

— É uma cilada! — disse Lamon.— Sim — disse Speed. — Mas, verdade seja dita, prefiro estar

aqui preso conosco do que lá fora com eles.Abe não disse nada. Ele sabia que não demoraria muito para que

eles sentissem o cheiro da fumaça; para que sentissem o calor do fogoque consumiria as paredes e tábuas do assoalho. Como em resposta aoseu pensamento, Lamon exclamou:

— Veja! — e apontou para a luz alaranjada e flamejante queentrava pela fresta da porta da frente.

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Eles não tinham escapatória.Quaisquer que fossem os horrores do lado de fora, certamente

não seriam piores do que morrer queimado. As chamas agora eramvisíveis por todos os lados pelas frestas das venezianas.

Eu tinha um plano. Assim que passássemos pela porta,permaneceríamos bem unidos, os três, e atacaríamos diretamenteem frente, até chegarmos à linha das árvores. Eu ficaria no meio,usando meu machado para cortar o que nos aparecesse pelafrente. Speed e Lamon ficariam à minha direita e à minhaesquerda, atirando no que quer que aparecesse pelos lados. Eraum plano fadado ao fracasso (baseado na velocidade com que asjanelas haviam sido fechadas à nossa volta, devia haver pelomenos uma dúzia de homens, vampiros, ou uma mistura dos doislá fora), mas era o único plano que tínhamos. Ergui meu machadoe me aprontei. “Cavalheiros”, falei.

A porta da frente foi rachada ao meio com um único golpe domachado de Abe, espalhando fumaça e cinzas quentes na varanda.

O calor veio imediatamente. A princípio recuamos, diantedas bolhas que se formaram em nossa pele, e nossas roupas quasepegaram fogo. Quando meus olhos se acostumaram com aschamas na varanda (agora totalmente tomada), reparei que a portaderrubada formara uma pequena ponte para fora dali. Prendi arespiração e puxei a fila. Passamos correndo por cima da porta,descemos os degraus e chegamos ao jardim. Assim que meus péstocaram o chão me dei conta da inutilidade de nossos esforços.Pois no clarão da casa em chamas atrás de nós, contei não menosde vinte vultos alinhados — alguns apontando rifles, outros deóculos escuros para proteger os olhos do fogo. Homens evampiros — conspirando para eliminar qualquer possibilidadede fuga. Um dos homens, um velho cavalheiro, deu um passo à

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frente e parou a cerca de três metros de mim.

— Senhor Lincoln, eu presumo — disse ele.— Senhor Davis — disse Abe.— Eu agradeceria muito — disse Davis — se seus amigos

baixassem essas armas. Eu odiaria se algum dos meus homens sedescontrolasse e enchesse vocês três de buracos de bala.

Abe virou-se para Speed e Lamon e ordenou com a cabeça.Ambos soltaram as armas.

— O maior está escondendo uma pistola — disse um dosvampiros atrás de Davis. — Ele está pensando em pegá-la neste exatomomento.

— Bem, se ele fizer isso — disse Davis —, então sugiro quevocê o mate. — Davis voltou-se para Abe. — O seu machado também,se possível.

— Se não fizer diferença, senhor Davis — disse Abe —, nãoespero viver mais do que alguns instantes… e gostaria muito demorrer segurando o machado que meu pai me deu quando menino.Certamente um de seus homens atirará em mim se eu o erguer com másintenções.

Davis sorriu.— Gostei do senhor, caro Lincoln… gostei mesmo. Natural do

Kentucky, como eu. Vindo do nada. Um orador como nenhum outro… emuito dedicado, senhor! Veio até aqui só para matar um homem!Deixando a família sozinha e desamparada em Springfield… não,senhor, ninguém poderá dizer que não se trata de um homem deconvicções. Eu mesmo poderia cantar em seu louvor até amanhecer odia, senhor, mas alguns dos meus sócios são bastante sensíveis à luzdo dia e… receio não dispormos de todo esse tempo. — Diga-me —disse Davis —, com tantas qualidades e uma cabeça tão privilegiada,como foi parar do lado errado desta luta?

— Eu? — perguntou Abe. — Acho que não escutei direito,

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senhor, pois, entre nós dois, apenas um está conspirando contra aprópria espécie.

— Senhor Lincoln, os vampiros são superiores ao homem, assimcomo o homem é superior ao negro. É a ordem natural das coisas,como o senhor pode ver. Certamente concordamos até este ponto, não?

— Eu concordo que alguns vampiros são superiores a algunshomens.

— Então eu estou errado ao reconhecer que é inevitável que elesditem as regras? Estou errado ao ficar do lado mais forte na guerra quevem pela frente? Senhor, não sinto nenhum prazer ao pensar emhomens brancos engaiolados. Mas se isso vier a ocorrer… se osvampiros se tornarem os reis sobre os homens, então vamos trabalharcom eles enquanto há tempo. Vamos regular a coisa… limitá-la aosnegros e aos indesejáveis de nossa raça.

— Ah — disse Abe. — E quando o sangue dos negros não formais o bastante; quando os “indesejáveis” da nossa raça já estiveremexauridos, diga-me, senhor Davis… quem então alimentará os seus“reis”?

Davis ficou calado.— A América — continuou Abe — foi forjada do sangue

daqueles que se opunham à tirania. Você e seus aliados… nãopercebem que a estão entregando na mão de tiranos?

— A América está longe daqui, senhor Lincoln — riu Davis,apontando para o norte. — O senhor está no Mississippi. — Ele deuum passo à frente, até o limite em que o machado de Abe poderiaatingi-lo se ele resolvesse usá-lo. — E falemos claramente, senhor.Nós dois servimos aos vampiros. Mas quando essas hostilidadesterminarem, eu poderei desfrutar a paz dos anos que me restam comconforto e riqueza, e você estará morto. E isto é tudo.

Davis fez uma pausa, curvou-se ligeiramente e se retirou.Três de seus homens então se aproximaram — cada um com um

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rifle apontado para nós. Aguardando a ordem de Davis.

— Maldição, Abe — disse Lamon. — Nós vamos ficar aquiparados sem fazer nada?

— Estou com um relógio — disse Speed aos seus algozes com avoz alquebrada. — Era do meu avô, eu… eu só queria que alguémdevolvesse à minha esposa em Louisville.

São os últimos segundos da minha vida.— Bem, se eu vou morrer — disse Lamon —, vou morrer com

uma arma na mão. Ele enfiou a mão no casaco.— Rapazes — disse Abe aos amigos —, sinto muito por tê-los

arrastado para es…Tiros de espingarda encheram a noite antes que ele pudesse

terminar a frase.

Naquele instante vi o rosto de meus entes queridos quehaviam partido desta terra: meu querido e doce garotinho; meuvigoroso Armstrong e minha amada Ann. Vi minha irmã e minhamãe angelical. Mas quando este instante passou, e meus olhos sederam conta, meus algozes ainda estavam no clarão da casaincendiada, chocados. Speed e Lamon ainda estavam ao meulado.

Nós ainda estávamos vivos. Nossos algozes, no entanto, nãotiveram a mesma sorte. Os três caíram ao mesmo tempo, baleadosna cabeça.

Era um milagre.

O milagre era Henry Sturges.

Ele surgiu da escuridão com 11 vampiros da União. Algunstraziam rifles, outros, revólveres, e dispararam assim queentraram em cena. Os vampiros sulistas mais próximos a Daviscorreram com ele dali, enquanto os outros se prepararam para

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enfrentar seus rivais nortistas. Um deles, contudo, lembrou-se deque a tarefa de minha execução ainda não estava cumprida. Elesaltou mais de 20 metros e parou na minha frente, com suaspresas e garras à mostra e seus olhos negros por trás das lentesescuras. Arremessei meu machado e a lâmina acertou o alvo —mas minha força não era mais a mesma, e a arma penetrou menosde 5 centímetros em seu peito. Ele caiu momentaneamente paratrás e olhou para as tripas negras saindo da ferida em seu ventre.Não era nada grave. Ele pegou meu machado do chão e tornou ase aproximar. Enfiei a mão no casaco, procurando uma faca quejá não estava ali havia vinte anos… sem efeito. Com o vampiro amenos de 1,5 metro de mim, Lamon mirou por sobre meu ombro eatirou, diminuindo para sempre minha audição do lado esquerdo,mas calando a criatura com uma bala no rosto.

Com a fumaça do revólver de Lamon ainda no ar sobre suacabeça, Abe se deu conta de uma dor aguda em seu queixo.

Coloquei a mão no queixo. [O vampiro] havia seaproximado o bastante para abrir um corte com a ponta do meumachado. O sangue escorria da ferida, encharcando minhacamisa, enquanto assistíamos aos vampiros combatendo à luz daslabaredas — saltando distâncias impossíveis, batendo-se comtanta força que o chão tremia sob nossos pés.

Ali, pela primeira vez, vi Henry Sturges lutar. Observei-oatirar-se de frente contra um vampiro sulista empurrando odemônio contra uma árvore — o resultado foi que a árvore separtiu ao meio. Mas o adversário de Henry quase não se abalou,pois o empurrou de volta e começou a girar rapidamente as mãos,como se tivesse uma espada em cada uma. Henry defendeu-se decada um desses ataques com suas próprias mãos em garra, atéque, sendo o melhor espadachim dos dois, viu uma oportunidadee acertou o adversário no peito — enfiando cinco dedos

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esticados no ventre do vampiro até saírem pelas costas,quebrando-lhe a espinha no processo. Henry retirou a mão e seuadversário caiu no chão, sem conseguir se mover. Observei-otorcer a cabeça do vampiro para trás e arrancá-la do pescoço.

Os homens que para sua infelicidade estavam no meio dessapeleja foram destroçados, seus membros arrancados por garrasensandecidas, seus ossos esmigalhados pela força do impactocontra os vampiros. Notando que os números não estavam a seufavor, os últimos vampiros sulistas bateram em retirada àspressas. Vários vampiros da União foram atrás — os demais,inclusive Henry, vieram ao nosso encontro ali, onde estávamosparados.

— Abraham — disse ele. — Que bom que você está vivo, meuvelho amigo.

— Que bom que você está morto.Henry sorriu. Arrancou a manga de sua camisa e apertou-a no

queixo de Abe para conter o sangramento, enquanto seus companheirosacudiam Lamon e Speed (que estavam tremendo de pavor, mas semferimentos graves).

A União havia recebido informações falsas, dadas por umespião traidor — informações que levariam à minha morte. Henrye seus aliados só ficaram sabendo da traição depois que jáhavíamos saído de Springfield. Sem conseguir nos avisar (poisviajáramos com nomes falsos), eles cavalgaram dois dias e duasnoites para nos alcançar, bem como mandaram a Trindade tratarde cuidar e esconder Mary e os meninos.

— Tem certeza de que estão a salvo? — perguntou Abe.— Tenho certeza de que estão bem escondidos e protegidos por

três dos meus aliados mais astutos e empedernidos — disse Henry.Era o bastante. Abe sabia que a Trindade levava seu trabalho a

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sério.— Henry — disse ele depois de uma pausa —, eu tinha certeza

de que ia…— Eu disse, Abraham… não era a sua hora.Esta seria a última caçada da vida de Abe.

__________

No dia 6 de novembro de 1860, Abe entrou em um apertado postotelegráfico em Springfield.

O volume de declarações de apoio e pessoas querendomarcar reuniões subiu para níveis insuportáveis conforme aeleição se aproximava. Quando finalmente chegou o dia 6,anunciei que não queria ver ninguém até que a votação estivesseencerrada. Minha única companhia seria o jovem operador dotelégrafo. Se o resultado fosse o que eu e meus apoiadoresesperávamos, haveria pouquíssimos dias de paz nos próximosanos.

Ele deixara a barba crescer pela primeira vez na vida paraesconder a cicatriz em seu queixo.7 A barba tornou seu rosto maischeio, com uma aparência mais saudável. “Mais distinto”, como disseMary. “Um rosto apropriado para o próximo presidente.”

A princípio, Mary ficou bastante contrariada com minhacandidatura — não tendo gostado nada da primeira experiênciaem Washington e ciente do tempo que tal empreitada requereriade mim. Conforme minha campanha foi tendo um sucesso cadavez maior, contudo, a posição dela começou a mudar. Desconfioque ela passou a gostar de que as pessoas passassem em nossacasa declarando seu apoio o tempo inteiro; dos casais de posses

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que nos convidavam para jantar; dos eventos luxuosos feitos emminha homenagem. Desconfio que ela passou a enxergar asdiversas possibilidades sociais de estar casada com o presidentedos Estados Unidos.

Conforme os resultados da apuração começaram a chegar peloscabos telegráficos naquela tarde de terça-feira, parecia cada vez maiscerto que Abe de fato se tornaria aquilo mesmo.

Admito que foi uma pequena surpresa, pois eu achava que aUnião garantiria a minha vitória — quer eu a merecesse ou não.8Eu não podia, portanto, sentir a mesma honra que sentira ao sereleito capitão por meus colegas soldados. O peso daquilo eraimenso. Era impossível saber de todos os inúmeros desafios eangústias que eu tinha pela frente.

O telegrama de Henry foi um dos primeiros a chegar naquelamanhã — muito antes de um único voto ser contado.

PARABÉNS SR PRESIDENTE ETERNAMENTE H

IV

A viagem do presidente eleito Abraham Lincoln até a Casa Brancacomeçou em Springfield, na sexta-feira, 11 de fevereiro de 1861. Umtrem particular foi contratado para conduzir Abe, sua família, seusassessores mais próximos e sua segurança pessoal até WashingtonD.C.

Não foi uma transição tranquila.Um mês depois da eleição, os deputados da Carolina do Sul

votaram por separar-se da União. Um por um, mais estados sulistasaderiram — um total de sete até o dia da posse: Louisiana,

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Mississippi, Alabama, Flórida, Georgia, Carolina do Sul e Texas. Abenão pôde fazer nada senão observar enquanto o presidente Buchanannão tomava qualquer medida para conter a crise.

[Buchanan] continua sentado em seu traseiro enquanto o paísse desintegra. Enquanto os navios de nossa marinha e nossosfortes diariamente se rendem ao sul, e a União se dissolve diantedos nossos olhos. A fraqueza dele é algo impressionante. Estáclaro que prefere empurrar essa crise com a barriga. Eu, poroutro lado, espero ansiosamente poder empurrá-lo para o olho darua.

Três dias antes de o trem de Lincoln sair de Springfield, osautoproclamados “Líderes do Povo Sulista” encontraram-se emMontgomery, Alabama, para adotar formalmente uma constituição eanunciar a Confederação dos Estados da América.

Escolheram Jefferson Davis como presidente.

__________

A Trindade de Abe patrulhava o trem dia e noite. Oficialmente, eram“detetives” de Springfield que se haviam oferecido voluntariamentepara proteger o novo presidente. A segurança incluía ainda doishumanos — um detetive chamado Allan Pinkerton e seu velho amigoWard Hill Lamon. Lamon se oferecera para ser guarda-costas de Abesimplesmente por estar preocupado com sua segurança. Ele era um dospoucos no grupo que cercava o novo presidente que conhecia agravidade das ameaças que ele enfrentava. Nos anos seguintes, aequipe da Casa Branca se acostumaria a ver Lamon patrulhando oterreno quando escurecia ou dormindo na porta do quarto dopresidente. Ele era grande, forte, habilidoso com uma arma eprofundamente fiel — e sua ajuda seria desesperadamente necessária.

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O trem de Abe estava marcado para parar pelo menos em dez dasmaiores cidades do caminho até Washington. Em cada uma delas,milhares (quando não dezenas de milhares) de moradores vinham vero novo presidente com os próprios olhos. Abe costumava fazer umdiscurso de improviso do último vagão — às vezes a poucoscentímetros daqueles que se acotovelavam para ouvi-lo falar. Entãoele saía das estações de carruagem para encontrar-se com lídereslocais, participar de banquetes ou assistir a desfiles em suahomenagem. Era um pesadelo para qualquer segurança.

Os dias têm sido avassaladores. Mas os meninos estão debom humor — correndo pelo trem, vendo o país passar pelajanela. Bob acha “tudo muito interessante”, enquanto Willie eTad não parecem abalados pelas multidões nem pela presença detantos rostos novos para eles. Mary também parece não levar amal, embora suas dores de cabeça tenham sido especialmentepreocupantes nesta viagem.9

Apesar de toda a animação, havia uma evidente tensão no ardentro do trem. Todos a bordo sentiam isso, mas ninguém tocava noassunto abertamente.

Há quem diga que eu não chegarei vivo à Casa Branca.Essas conversas criam esse silêncio sepulcral (um tipo desilêncio apropriado ao caso) entre meus protetores. Eu, contudo,posso dizer honestamente que isso não diminui em nada meu sono— pois conheci a morte a vida inteira e passei a olhar para elacomo uma espécie de velha amiga. É claro, Mary fica em umestado de grande aflição com esses rumores (mas, afinal, ela ficanesse estado de grande aflição por uma grande variedade demotivos). Contanto que os meninos não fiquem sabendo, estousatisfeito.

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A viagem continuou sem qualquer incidente por dez dias,atravessando Indiana, Ohio, Nova York, Nova Jersey e Pensilvânia —e começou a parecer que toda aquela conversa de assassinatos nãopassava de boato. Mas no dia 22 de fevereiro, em Filadélfia, Aberecebeu uma visita urgente do filho de William Seward, Frederick. Eletrazia uma carta lacrada.

Caro senhor presidente eleito,Nosso conhecido em comum deseja que o senhor saiba que

uma conspiração foi descoberta em Baltimore. Quatro homens omatarão a facadas e tiros quando o senhor fizer a baldeação naestação da Calvert Street. Ele achou melhor que o senhorestivesse ciente disto, de modo a tomar todas as precauções paraevitá-lo.

Sinceramente,— W. Seward

Ficou combinado que Abe, acompanhado de Pinkerton e Lamon— e usando um chapéu e uma capa para esconder sua identidade dosdemais passageiros —, pegaria um outro trem de Baltimorediretamente para Washington. Pinkerton e Lamon estariam armados;Abe, não.

Lembro que isso gerou um bocado de alvoroço. Lamon (quesabia que eu manejava bem uma arma) insistiu para que medessem um revólver e uma faca grande. Pinkerton se recusou.“Não deixarei que digam que o futuro presidente dos EstadosUnidos entrou armado na capital!” Os dois quase foram às viasde fato sobre isso, até que eu propus um meio-termo: Lamonlevaria duas armas de cada que me seriam dadas caso fôssemosatacados. Foi o combinado, e nos preparamos para partir.

Mas os planos deles mudaram quando Pinkerton percebeu que a

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Trindade havia sumido.

[Eles] simplesmente haviam desaparecido em algum pontoentre Filadélfia e Harrisburg — sem dizer o motivo da ausência.Como eu me recusei a deixar Mary e os meninos sem uma escoltaarmada, rapidamente decidiu-se que Pinkerton ficaria para trás ecuidaria deles, enquanto Lamon iria comigo no outro trem. Oscabos telegráficos entre Pensilvânia e Maryland haviam sidocortados, de modo que nenhum conspirador conseguisse avisarsobre nossa partida de Harrisburg.

Pouco depois da meia-noite no dia 23, o trem “secreto” de Abepassou por Baltimore a caminho de Washington.

Houve momentos de aflição ao passarmos pelo coração dacidade (mais lentamente, pareceu-me, do que qualquer outro tremque eu já tivesse tomado). Será que os assassinos haviamdescoberto nosso expediente? Estariam eles, naquele exatomomento, preparando-se para bombardear nosso trem com tirosde canhão?

Abe não precisava ter se preocupado. Quando o trem saía daestação, três de seus algozes já estavam mortos — e o quarto estavamorrendo logo abaixo de seus pés.

__________

Os corpos despedaçados de quatro homens foram encontrados perto daestação da Calvert Street na manhã seguinte. Da edição de 23 defevereiro do Baltimore Sun:

Dois cavalheiros tiveram a cabeça arrancada. Outro foi cruelmente espancado, a ponto de a polícia até o momento não conseguir determinar suaidade ou raça. O quarto, ao que tudo indica, foi cortado ao meio pelas rodas de uma locomotiva. Incrivelmente, uma testemunha afirma que o cavalheiroainda sobreviveu por vários minutos — com a espinha cortada de tal modo que ele conseguia mover a cabeça e os braços. Ele foi visto emitindo gritos fracose tentando arrastar o corpo que lhe restava para fora dos trilhos antes de morrer.

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Embora eles nunca tenham comentado nada sobre o incidente,Abe jamais duvidou de que seus três vampiros protetores haviam sidoos responsáveis pela carnificina.

V

No dia 4 de março de 1861, Abraham Lincoln — filho ilustre deSinking Springs Farm, luz dos olhos de sua falecida mãe, sobreviventedas provações de Jó e um dos mais gloriosos caçadores de vampirosdo país — foi empossado como o décimo sexto presidente dosEstados Unidos.

Não somos inimigos, mas amigos. Não precisamos serinimigos. Ainda que as paixões tenham se acirrado, nãoprecisamos romper nossos laços de afeto. Os acordes místicos damemória, vindos de cada campo de batalha e de cada sepulturade um patriota e chegando a cada coração que bate e a cada lardesta imensa terra, ainda ressoarão com o coral da União quandoforem novamente tocados, e certamente serão, pelos melhoresanjos da nossa natureza.

Dezenas de milhares de pessoas se reuniram diante de umaplataforma de madeira construída nas escadarias do Capitólio paraouvi-lo falar. Mal sabiam que estavam testemunhando à maioroperação de segurança da história. Soldados estavam posicionadospela cidade, prontos a debelar qualquer manifestação de violência ouataque em larga escala. A polícia (de uniforme ou não) fez a guarda aoredor do palco onde Abe falou, de olho em qualquer pessoa quepudesse portar um revólver ou um rifle. Junto ao presidente eleito,Ward Hill Lamon ficou na plataforma, portando dois revólveres nocasaco e uma faca grande na cintura. Os vampiros da Trindade foram

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posicionados em locais distintos, mas nunca muito longe de Abe.

Só mais tarde eu ficaria sabendo que dois homens armadostiveram o coração discretamente atravessado durante meudiscurso. Diferentemente dos assassinos em Baltimore, esses doiseram vampiros.

__________

Cinco semanas depois de Abe assumir a presidência, os “laços deafeto” do país finalmente se romperiam.

O Forte Sumter, um baluarte federal no porto de Charleston, naCarolina do Sul, havia sido cercado pelos confederados em janeiro.Os sulistas exigiam que as tropas da União (comandadas pelo majorRobert Anderson) entregassem o forte, uma vez que ficava na Carolinado Sul, e, portanto, não era propriedade do governo federal. Abefizera tudo o que estava em seu poder para evitar hostilidades, mas oshomens de Anderson estavam ficando desesperadamente semsuprimentos, e o único modo de se reabastecerem era enviando barcospara dentro do território dos confederados.

Sou agora obrigado a escolher entre dois males. Ou deixoque alguns soldados morram de fome, ou provoco uma guerra queindiscutivelmente matará contingentes inteiros de homens. Pormais que me esforce, não consigo encontrar uma terceira opção.

Abe mandou os barcos.O primeiro chegou ao porto de Charleston no dia 16 de abril. Na

manhã seguinte, antes do raiar do dia, o coronel confederado JamesChestnut Jr. ordenou fogo contra o forte.

Foi o primeiro tiro da Guerra Civil.

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1 Todo reino dividido contra si mesmo é devastado e toda cidade ou casa dividida contra si mesma não subsistirá.

2 Não existem provas de que Douglas tivesse conhecimento desses planos; apenas de que estava coligado com vários dos vampiros seus artífices.

3 Abe se refere a Douglas (“portly runt”).

4 A fala do adivinho é: “Cuidado com os idos de março” (15 de março), Júlio César, ato I, cena 2.

5 Angelina Lamon de fato morreu dois meses depois do sonho de Abe. A causa de sua morte permanece desconhecida. Há dúvidas sobre a eventual participação de

vampiros.6 Referência ao Henrique V de Shakespeare. Na primeira cena do terceiro ato, o rei Henrique faz um inflamado discurso para seus soldados, começando com a famosa

fala: “Uma vez mais à brecha, caros amigos, uma vez mais!”7 Muita gente acredita que Abe deixou a barba crescer a pedido da pequena Grace Bedell, de 11 anos. Embora seja verdade que Bedell lhe havia escrito com essa

sugestão (insistindo que “as mulheres gostam de suíças” e que, portanto, iriam insistir para que seus maridos votassem nele), ele já havia começado a deixar a barbacrescer antes que a famosa carta chegasse.8 Não houve necessidade da intervenção da União — Abe venceu a eleição com folga e por seus próprios méritos.

9 Mary sofreu de dores de cabeças terríveis (prováveis enxaquecas) durante toda a sua vida adulta. Vários historiadores sugerem que estavam associadas a crises de

depressão. Alguns chegam a sugerir que ela era esquizofrênica, mas é impossível saber ao certo.

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ONZE

BaixasConcidadãos, não podemos fugir à história. Nós do Congresso edesta administração seremos lembrados a despeito de nósmesmos. Nenhuma relevância pessoal ou insignificância poderápoupar um ou outro dentre nós. A terrível provação por quepassamos nos iluminará, com honra ou desonra, aos olhos dasfuturas gerações.

— Abraham Lincoln, mensagem ao Congresso1º de dezembro de 1862

I

No dia 3 de junho de 1861, Stephen A. Douglas foi encontrado mortona escadaria de sua casa em Chicago.

Acabei de saber da notícia chocante. Embora todos os fatosainda não tenham vindo a lume, não tenho a menor dúvida de quese trata de obra de vampiros — e de que eu tenho algumaresponsabilidade por este assassinato.

Publicamente, a causa da morte relatada foi febre tifoide, emboranenhum dos amigos de Douglas se lembrassem de ele ter se sentidomal na noite anterior. O corpo foi levado de carruagem ao MercyHospital, onde foi examinado por um jovem médico, o doutor BradleyMilliner. Constava no laudo da autópsia:

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• Quatro pequenas picadas circulares no cadáver — duas noombro esquerdo diretamente sobre a artéria axilar; duas nopescoço diretamente sobre a artéria carótida.• Os dois conjuntos circundados por escoriações significativas:com espaçamento regular de dois e meio centímetros e trêscentímetros.• Cadáver em avançado estado de decomposição integral e decoloração azul cinzenta; rosto encovado; pele quebradiça,sugerindo que o óbito tenha ocorrido semanas ou meses antes doexame.• Conteúdo estomacal de coloração brilhante, pedaços inteirosde alimentos indigeridos, sugerindo que o indivíduo se alimentoupouco antes do óbito e que o óbito ocorreu menos de 24 horasantes do exame.

Ao lado dessas observações, o doutor Milliner rabiscou umaúnica palavra na margem do relatório:

“Inacreditável.”O laudo em si foi considerado “inconclusivo” e jamais seria

divulgado pelos superiores de Milliner, que acharam que a liberaçãode tais informações apenas fariam piorar o “clima de especulação edesconfiança” em torno da morte do senador.1

__________

Lincoln e Douglas haviam sido os mais famosos rivais dos EstadosUnidos. Durante duas décadas, eles haviam competido em tudo, desdeo amor de uma mulher até o cargo mais alto do país. No entanto,apesar de toda a antipatia política, os dois acabaram se respeitando —e até se gostando — com o passar dos anos. Douglas havia sido paraAbe, afinal, um dos “faróis brilhantes” na “neblina de tolices” deWashington. E, apesar de o então chamado Pequeno Gigante haver

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passado anos incitando as paixões sulistas, ele, no fundo, não eraoriundo do sul. Na verdade, Douglas odiava a ideia da desunião,chegando até a chamar os secessionistas de “criminosos” e a declarar:“Precisamos lutar por nosso país e esquecer nossas diferenças. Sópode haver dois partidos: o partido dos patriotas e o partido dostraidores. Nós pertencemos ao primeiro.”

Quando a União começou a se esfacelar no rastro de suamalfadada campanha de 1860, foi Stephen Douglas quem primeiroprocurou seu antigo rival — o novo presidente eleito.

Ele quer se juntar a mim na causa da oposição à secessão.Para tanto, pedi-lhe que fizesse uma série de discursos nosestados confederados que faziam fronteira com estados da Uniãoe no nordeste do país (locais onde a chama da unidade talvezpudesse ser arejada pelos nossos esforços ou apagada pela faltadeles). Não consigo pensar em um mensageiro melhor nem emaliado mais simbólico da necessidade da unidade. Admitirei quesua oferta me pegou de surpresa. Suponho que ele possivelmentelamentou sua associação com o sul vampiresco, e que estejaprocurando meios de se redimir. Quaisquer que sejam seusmotivos, sua ajuda é bem-vinda.

Douglas fez discursos a favor da União em três estados antes devoltar a Washington. Na posse de Abe, com a ameaça de assassinatopairando no ar, ele se colocou perto do palanque e declarou: “Sealguém atacar Lincoln, estará me atacando!” E no domingo, 14 de abrilde 1861, enquanto o Forte Sumter se rendia aos Confederados,Stephen Douglas estava entre os primeiros a visitar a Casa Branca.

Ele veio hoje sem hora marcada, e eu estava reunido commeu Gabinete — e ali fiquei por um bocado de tempo. [Osecretário da presidência John] Nicolay pediu-lhe que voltasseoutra hora, mas o juiz Douglas recusou-se categoricamente.

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Quando não aguentei mais ouvir suas familiares imprecações debarítono no corredor, escancarei minha porta e exclamei: “PorDeus, deixem o homem entrar ou teremos duas guerras paralutar!”

Conversamos em particular por uma hora ou mais. Jamais ovira em tamanho pânico! “Eles virão diretamente paraWashington e me matarão!”, exclamou ele. “Vão nos matar atodos! Exijo saber quais são seus planos para combater essaameaça, senhor!” Disse-lhe, com a voz mais calma do mundo, averdade — que na manhã seguinte eu arregimentaria uma milíciade 75 mil homens; que eu reprimiria essa rebelião com todas asforças do meu cargo e todas as armas do meu arsenal. Taisconfirmações, contudo, só fizeram aumentar seu pânico. Ele meinstou a conclamar três vezes aquele número de homens. “Senhorpresidente”, disse ele, “o senhor não conhece os propósitosdesonestos desses homens como eu conheço. O senhor nãoconhece, e digo isto com o mais profundo respeito, senhor, nãosabe o verdadeiro inimigo que está enfrentando.”

“Oh, pois eu lhe asseguro, senhor Douglas: eu os conheçobem até demais.”

Graças a Henry, Abe sabia das relações de Douglas com osvampiros sulistas desde a disputa pelo Senado há três anos. Douglas,no entanto, jamais desconfiou que aquele homem alto e magro, jáficando grisalho, que estava diante dele um dia fora o mais vigorosocaçador de vampiros do Mississippi.

Mal posso descrever sua perplexidade ao ouvir a palavra“vampiros” dos meus lábios. Agora, com a verdade enfimrevelada entre nós, cada um contou ao outro sua história: eu,sobre a morte de minha mãe; dos anos que passei caçandovampiros. Douglas, do dia fatídico em que — quando era umjovem e ambicioso democrata de Illinois — foi abordado por

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dois sujeitos “pálidos” do sul. “Foi então que pela primeira vezeu fiquei sabendo [dos vampiros]”, disse ele. “Foi quando mesenti embriagado por seu dinheiro e sua influência.”

Douglas compensaria seus apoiadores discursando contra osabolicionistas no Senado e usando seu talento natural de orador emcomícios a favor das forças escravistas do país. Mas ele haviacomeçado a questionar seus patronos vampiros nos últimos anos.

“Por que eles se recusam a chegar a um acordo com onorte?”, perguntou ele. “Por que eles parecem desejar a guerra aqualquer custo? E por que, meu Deus, eles se importam comtamanho fervor com a instituição [da escravidão] afinal? Eu nãoconseguia ver a lógica daquilo nem conseguia, em sã consciência,continuar seguindo o caminho da desunião.”

Ficou evidente para mim que Douglas não conhecia toda averdade; era evidente que, embora culpado de uma pequenatraição, ele não podia ser julgado como o grande traidor[Jefferson] Davis. Movido pelo remorso, resolvi contar-lhe tudo:o casamento da escravidão com os vampiros sulistas. Seu planode escravizar a todos exceto os poucos afortunados da nossaespécie; de nos manter engaiolados e agrilhoados como havíamosfeito com os negros. Contei-lhe sobre o plano deles de criar umanova América; um país de vampiros — livre da opressão, livredas trevas e abençoado com uma abundância de homens vivospara alimentá-los.

Quando terminei de falar, Douglas chorou.

__________

Naquela noite, Abe sentou-se à cabeceira de uma longa mesa em seuescritório, com o secretário de Estado William Seward à sua

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esquerda. Estavam acompanhados pelo resto do Gabinete, todosansiosos para saber por que eles haviam sido tirados de suas mesas dejantar e chamados de volta à Casa Branca.

“Cavalheiros”, disse eu por fim, “esta noite desejo lhes falarsobre vampiros.”

Abe vinha se reunindo com seu Gabinete quase que diariamentedesde a posse. Eles haviam discutido cada detalhe da guerra iminente:uniformes, suprimentos, comandantes, cavalos, provisões — tudo,menos a verdade sobre o que eles realmente estariam defendendo, econtra quem de fato estariam lutando.

E, no entanto, eu pedira àqueles homens que me planejassemuma guerra! Não seria algo semelhante a pedir a um grupo decegos que pilotassem um barco a vapor?

O encontro com Douglas mudara as ideias de Abe. Quando sesepararam naquela noite, ele ordenara a Nicolay que voltassem areunir o Gabinete imediatamente.

Achei crucial que todos esses homens — homens queformariam o meu conselho ao longo de angústias inauditas —soubessem exatamente o que tinham pela frente. Não haveria maisnenhuma surpresa em meu Gabinete. Mais nenhuma meia-verdadeou omissão. Agora, como eu havia feito com Douglas, eu lhescontaria toda a verdade — com Seward ali para confirmar cadapalavra. Minha história. Minhas caçadas. Minha aliança com umpequeno bando de vampiros chamado de União, e as impensáveisconsequências da guerra que se acercava.

Alguns deles ficaram chocados à simples menção devampiros. [O secretário da Marinha, Gideon] Wells e [osecretário do Tesouro, Salmon] Chase, aparentemente, haviam

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passado a vida inteira achando que os vampiros não passavam demito. Wells sentou-se pálido em silêncio. Chase, contudo, ficouindignado. “Eu não vou ficar ouvindo essas loucuras diante daameaça de guerra”, declarou. “Não vou sair da minha casa paraser feito de bobo para divertir o presidente!” Seward saiu emminha defesa, insistindo em que cada palavra era verdadeira eadmitindo que fora meu cúmplice na tarefa de ocultar a verdadedo resto do Gabinete. Ainda assim, Chase não se convenceu.

Ele não era o único incrédulo. [O secretário da Guerra,Edwin] Stanton — que sempre achara que os vampiros eramreais, mas viviam confinados à sombra — falou em seguida.“Mas que sentido faz isso?”, perguntou. “Por que [Jefferson]Davis… por que qualquer homem conspiraria contra si mesmo?Por que alguém iria querer ser escravizado?”

“Davis só pensa em sua própria sobrevivência”, falei. “Elee seus aliados são como as rêmoras — limpando os dentes dostubarões para evitar que virem comida. Talvez eles tenhamprometido poder e riqueza nessa nova América, isentando-o dosgrilhões. Mas não se esqueçam — o que quer que eles tenhamprometido, é mentira.”

Chase não suportou mais. Levantou-se da cadeira e saiu dasala. Achei que outros fossem sair com ele.

Satisfeito por ninguém mais ter saído, prossegui.“Mesmo agora”, disse eu, “existe uma parte de mim que

acha tudo isso impossível de acreditar. Uma parte de mim queespera acordar desse sonho que já dura cinquenta anos. Mesmodepois de todos esses anos, e de tudo o que já testemunhei. E porque não? Afinal, acreditar em vampiros é ignorar a razão!Reconhecer trevas que supostamente já não existem. Não aqui,nessa era grandiosa, em que a ciência iluminou quase todos osmistérios. Não… não, essas trevas são do Antigo Testamento; dastragédias de Shakespeare. Não daqui.

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“Eis, cavalheiros… eis por que eles obtêm sucesso. Essacrença — de que estamos a salvo do alcance das trevas — é umaideia na qual os vampiros têm trabalhado incansavelmente paraque atravesse os séculos. E eu lhes digo que é simplesmente amaior mentira já contada para a humanidade.”

II

Três dias depois da queda do Forte Sumter, a Virgínia separou-se daUnião, e a capital dos Confederados foi transferida para seu coraçãoindustrial, Richmond. Ao longo das semanas seguintes, Arkansas,Tennessee e Carolina do Norte foram atrás. Agora havia 11 estados naConfederação, com uma população conjunta de nove milhões depessoas (dos quais, quatro milhões eram escravos). Mesmo assim, amaioria dos nortistas estava convencida de que a guerra seria curta eque os “sechers” (secessionistas) seriam derrotados antes do fim doverão.

Eles tinham razões para tanta confiança. A população do Norte,afinal, era mais do que o dobro da do Sul. O Norte tinha ferroviasrápidas, que levariam soldados e provisões aos campos de batalha emquestão de horas; fábricas mais avançadas forneceriam botas emunição; barcos de guerra que bloqueariam portos e destruiriamcidades costeiras. Jornais pró-União exigiam do presidente que “desseum basta nessa situação desagradável”. Gritos de “Avancemos sobreRichmond” se ouviam por todo o Norte. Henry Sturges aceitou ochamado. Em um telegrama datado de 15 de julho, ele usou umacitação de Shakespeare para enviar a Abe uma mensagem cifrada:2

atacar Richmond agora.

Abraham,“Em nome de Deus, alegremente em frente, amigos

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corajosos, ceifar os frutos da paz perpétua, por este processosangrento da guerra cortante.”3

— H

Abe seguiu o conselho. No dia seguinte à chegada da carta, eleordenou que a maior força de combate já arregimentada no territórionorte-americano — 35 mil homens — marchasse de Washington atéRichmond sob o comando do general de brigada Irvin McDowell. Amaior parte dos soldados de McDowell vinha dos 75 mil milicianosconvocados às pressas depois da queda do Forte Sumter. Eram, na suamaioria, lavradores e comerciantes. Adolescentes imberbes e velhosdebilitados. Alguns jamais haviam disparado um único tiro na vida.

McDowell reclama que seus homens são inexperientes.“Você é inexperiente”, disse-lhe eu, “mas os confederadostambém são. São todos igualmente inexperientes! Não podemosesperar que o inimigo chegue a Washington. Devemos enfrentá-los na casa deles. Rumo a Richmond, por Deus!”

Para chegar lá, McDowell e seus homens precisariam marcharpor mais de 40 quilômetros em direção ao sul, até a Virgínia, onde ogeneral Pierre Beauregard e 20 mil confederados esperavam por eles.No calor escaldante da segunda-feira, 21 de julho de 1861, os doisexércitos encontraram-se próximo à cidade de Manassas, no que serialembrado como a Primeira Batalha de Bull Run — literalmente,“tourada” em memória ao pequeno córrego que logo ficaria tingido devermelho.

Dois dias depois da batalha, um soldado da União chamadoAndrew Merrow escreveu para sua noiva em Massachusetts.4 Essacarta pinta um quadro grotesco dos acontecimentos daquele dia eoferece uma das primeiras provas de que o Exército Confederadotinha vampiros entre suas fileiras.

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Havíamos batido os confederados a princípio. Graças aonosso maior número, obrigamos os demônios a recuar para o sulaté uma colina, Henry House Hill, com um grupo de árvores nocume. Que espetáculo vê-los bater em retirada como ratos! Vernossas fileiras avançarem por quase um quilômetro! Ouvir osestampidos de pólvora por toda parte! “Vamos escorraçá-los atéa Georgia!”, berrou o coronel Hunter, para delírio de nossoshomens.

Conforme nos aproximamos do alto da colina, os rebeldescobriram sua retirada, atirando contra nós. A fumaça das armasera tão espessa que mal se via poucos metros à frente na direçãodas árvores onde eles se escondiam. Por trás dessa cortina defumaça, de repente ergueu-se um coral de berros selvagens.Vozes de vinte ou trinta homens, ficando mais altas a cadainstante. “Soldados! Baionetas!”, ordenou o coronel. Enquantoeles obedeciam, um pequeno bando de confederados surgiu porentre a fumaça, vindo em nossa direção — mais velozes do quequalquer homem seria capaz de correr. Mesmo a distância, pudedivisar seus olhos estranhos, ensandecidos. Não traziam um únicorifle ou pistola, nem sequer uma espada.

Nossa linha de frente abriu fogo, mas seus rifles pareciamnão surtir efeito. Melissa, juro pela minha morte que vi nossasbalas atingindo aqueles homens no peito. Nos membros e norosto. Mas eles continuaram atacando como se não tivessem sidoferidos! Os rebeldes chocaram-se conosco e começaram adilacerar nossos homens diante de meus olhos. Não estou dizendoque os rasgaram com baionetas, nem que os balearam comrevólveres. Estou dizendo que esses rebeldes — trinta homensdesarmados — dilaceraram cem homens em pedaços com aspróprias mãos nuas. Vi braços sendo arrancados. Cabeças sendotorcidas para trás. Vi gargantas jorrando sangue e ventres sendoeviscerados apenas por dedos; um menino cobria os buracosonde momentos antes estavam seus olhos. Um soldado a um passo

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de mim teve seu rifle arrancado das mãos. Eu estava perto obastante para sentir seu sangue espirrar em meu rosto enquanto acoronha era usada para esmagar-lhe o crânio. Perto o bastantepara sentir o gosto de sua morte em minha língua.

Nossas fileiras foram dispersadas. Não me envergonho dedizer que larguei meu rifle e saí correndo com os outros, Melissa.Os rebeldes nos caçaram, agarrando e massacrando homens aomeu lado enquanto fugíamos. Seus gritos me perseguiram colinaabaixo.

Relatos de “ataques rebeldes” semelhantes começaram a chegardos comandantes de McDowell. “Bem”, dizem que ele teriacomentado (ao saber que a União havia recuado), “nós trouxemos umexército maior, mas parece que eles trouxeram homens melhores.”McDowell não fazia ideia de que esses “homens melhores” estavamlonge de pertencer à humanidade.

A luta durou uma questão de horas. Quando a fumaça dosdisparos se dispersou, mais de mil homens estavam mortos, outros trêsmil estavam grave ou mortalmente feridos. Do diário do major-generalda União Ambrose Burnside:

Passei a cavalo por um lago ao anoitecer e vi homenslavando suas feridas. A água ficara bem vermelha comoconsequência — mas isso não impediu os desesperados de bebê-la ao chegar à beira do lago. Perto dali, vi o corpo de um meninorebelde atingido por uma bala. Apenas seus braços, seus ombrose sua cabeça permaneciam no lugar — os olhos estavam abertos,e o rosto, sem expressão. Um bando de milhafres rodeava ocorpo, bicando-lhe as entranhas. Comendo pedaços de seucérebro espalhado pelo chão. Foi uma visão de que nunca meesquecerei.

E, no entanto, eu já vira uma centena desses horroresnaquele dia. Um homem podia caminhar um quilômetro em

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qualquer direção sem que seus pés tocassem o chão — tal era onúmero de corpos. Enquanto escrevo isto, ouço os gritos dosferidos enchendo o ar. Implorando por ajuda. Por água. Emalguns casos, implorando pela morte.

Não tenho mais medo do inferno, pois hoje eu o conheci commeus próprios olhos.

__________

O Norte ficou em estado de choque e luto após Bull Run.

Se eu tivesse dado ouvidos a Douglas! A McDowell! Se eutivesse convocado mais homens e lhes dado mais tempo para sepreparar — esta guerra poderia estar terminada, e o sofrimento ea morte de milhares teriam sido evitados. Está claro, agora, que oSul quer compensar o menor contingente com vampiros noscampos de batalha. Pois que seja. Passei uma vida caçandovampiros com meu machado. Agora passarei mais algum tempocaçando-os com meu exército. Se esta será uma luta longa ecustosa, redobremos, pois, nossa tenacidade em vencê-la.

Passado o choque, o Norte seguiu a orientação do presidente eobstinou-se no ataque. Mais homens se apresentaram para oalistamento, e os estados ofereceram novos regimentos e provisões.No dia 22 de julho de 1861, dia em que assinou um projetoconclamando 500 mil novos soldados, Abraham Lincoln registrou umpensamento visionário em seu diário.

Rezemos agora pelos futuros mortos. Embora ainda nãosaibamos seus nomes, sabemos que serão de fato muitos.

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III

Havia sido um inverno amargo e frustrante para o presidente e seuGabinete. Com os rios congelados e as estradas cobertas de lama eneve, havia pouca coisa que ambos os exércitos pudessem fazer, senãoconservar suas fogueiras e esperar o degelo. No dia 9 de fevereiro de1862, seu 53º aniversário, Abe estava em seu escritório quando oprimeiro sinal da primavera finalmente chegou.

Acabo de receber notícias do sucesso do general [UlyssesS.] Grant no Forte Henry, Tennessee. Trata-se de uma vitóriacrucial para nós no oeste… e de uma bem-vinda mudança nesseslongos meses de expectativa. Somando-se isso ao som dos meuspestinhas brincando lá fora, que belo domingo é este!

Os “pestinhas” Tad e Willie Lincoln — de 7 e 10 anos,respectivamente — eram indiscutivelmente a vida (alguns diriam oterror) da Casa Branca. Os garotos passavam horas a fio correndodesenfreadamente pela mansão e pelos jardins durante o primeiro anoda presidência do pai, fato que perturbava infinitamente algunsassessores de Abe, mas que oferecia ao presidente a necessáriadistração diante do estresse de administrar um país e uma guerra.

O som dos meus meninos brincando é (muitas vezes,confesso) a única alegria que tenho do nascer do sol até a hora dedormir. Fico então muito feliz de brincar de luta com eles e decorrer atrás deles sempre que se apresenta uma oportunidade — eindependentemente de quem esteja olhando. A menos de umasemana, [o senador de Iowa, James W.] Grimes entrou em meuescritório para uma reunião e me viu preso ao chão por quatromeninos: Tad e Willie segurando as minhas pernas, Bud e Holly,os meus braços.5 “Senador”, disse eu, “se o senhor pudesse fazer

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a gentileza de negociar os termos da minha rendição… Mary achainadequado para a dignidade de um presidente brincar dessejeito, mas se não fossem esses momentos — esses ternospedacinhos da vida —, eu enlouqueceria em menos de um mês.

Abe era um pai coruja e amoroso para seus três garotos, mas comRobert em Harvard (onde era protegido por um punhado de homens evampiros) e Tad “muito novo e irrequieto demais para parar quieto”,ele acabou ficando mais próximo a Willie.

Ele tem um apetite insaciável por livros; adora resolverenigmas. Quando há uma briga, ele sempre intervém para fazer aspazes. Há quem já aponte semelhanças entre nós, mas não nosvejo tão parecidos assim — pois Willie tem um coração melhorque o meu, e uma cabeça mais ágil.

Enquanto comemorava as boas-novas naquela tarde de domingo,Abe viu de relance seus meninos brincando no gramado coberto degelo diante da janela de seu escritório.

Tad e Willie estavam ocupados aplicando a corte marcialem Jack6 como sempre faziam — acusando-o disso ou daquilo. Amenos de 10 metros de onde brincavam, dois jovens soldados(não muito mais velhos que os próprios meninos) cuidavam deles— ambos tremendo de frio, sem dúvida se perguntando o quehaviam feito para merecer aquele serviço.

Eram apenas dois dentre dezenas de guardas que patrulhavam aCasa Branca e seus jardins durante o dia inteiro. A pedido de Abe, aesposa e as crianças eram acompanhadas por pelo menos dois homens(ou vampiros) sempre que saíam da casa. Não havia cercas entre a ruae a mansão em 1862. O público podia entrar no jardim — e até mesmono primeiro piso da mansão. Como escreveu o jornalista Noah

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Brooks: “As pessoas, limpas ou sujas, estão sempre livres para ir evir.” As pessoas, contudo, não podiam portar armas de fogo napropriedade.

Às 15h30, um homem miúdo e de barba, portando um rifle, foivisto se aproximando da Casa Branca vindo da Lafayette Square. Osentinela da entrada norte apontou para sua arma e ordenou que ohomem parasse — gritando a plenos pulmões.

FIG. 3A-1 — GRAMADO SUL DA CASA BRANCA SOB VIGILÂNCIA PESADA, CIRCA 1862. ACREDITA-SE QUE O HOMEM NAENTRADA SEJA UM MEMBRO DA TRINDADE DE ABE.

O alvoroço me levou às janelas da face norte, de onde pudever o homenzinho que se aproximava com um rifle nas mãos. Osguardas vieram correndo de todos os cantos do jardim, alertados,como nós todos, pelos gritos de “pare ou eu atiro!”.

Três desses guardas chegaram correndo bem mais depressaque os outros e foram diretamente para cima do invasor semmedo de que ele atirasse. Vendo que avançavam (e suponho quenotando suas presas), o homenzinho por fim soltou o rifle e

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ergueu as mãos. Mesmo assim ele foi violentamente derrubado nochão, e Lamon revistou seus bolsos enquanto a Trindade prendiaseus braços e pernas. Mais tarde me disseram que ele pareciaapavorado; confuso. “Ele me deu dez dólares”, ele teria dito comlágrimas nos olhos. “Ele me deu dez dólares.”

Só então, passado o perigo imediato, meus olhos repararamem dois dos soldados do círculo ao redor do invasor.

O coração de Abe parou. Eram os mesmos dois rapazes queestavam cuidando de Willie e Tad.

Eles haviam deixado as crianças sozinhas.

Os meninos estavam entretidos demais para prestar atençãoaos gritos ou para reparar que os guardas haviam saído correndopara investigar. Nesse momento vulnerável, viram-se diante deum desconhecido.

Ele também teria passado despercebido dos garotos se nãolhes houvesse pisado no boneco com o salto da bota einterrompido sua brincadeira. Willie e Tad olharam para cima eviram um homem de estatura mediana parado diante deles, usandoum casaco preto comprido, de cachecol e cartola combinando.Seus olhos estavam escondidos pelos óculos escuros e seu lábio,por um grosso bigode castanho. “Olá, Willie”, disse ele. “Tenhoum recado para o pai de vocês. Gostaria muito que você passassea ele.”

Foi quando Tad gritou chamando a atenção dos guardas.

Os vampiros foram os primeiros a chegar, com Lamon ediversos soldados vindo logo atrás. Desci correndo a escada doPórtico Sul e vi Tad apavorado e chorando, mas aparentementeincólume. Willie, contudo, estava esfregando a língua com amanga do casaco e cuspindo sem parar. Peguei-o no colo e

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examinei-o — virando seu rosto e seu pescoço para olhar dosdois lados —, rezando para que não houvesse nenhum ferimentoem seu corpo.

“Ali!”, berrou Lamon, apontando para um vulto que corriapara o sul. Ele e a Trindade foram atrás, enquanto os demais noslevaram para dentro de casa. “Vivos!” gritei para eles. “Quero-osvivos!”

Lamon e a Trindade atravessaram a Pennsylvania Avenue ecruzaram o Ellipse7 perseguindo o sujeito. Quando ficou claro que nãoconseguiria acompanhar o ritmo, Lamon, ofegante, sacou o revólver e,sem pensar nos passantes inocentes que pudesse atingir, atirou no vultodistante até ficar sem balas.

A Trindade estava conseguindo alcançá-lo. Os quatro vampiroscorreram para o Sul em direção ao inacabado Monumento deWashington, rumo aos campos do entorno onde pastava o gado. A obrado imenso obelisco de mármore (ainda com 45 metros, tinha apenasum terço da altura atual) já havia sido erguida, e um matadouroprovisório fora instalado à sua sombra para suprir as necessidades deum exército faminto. Foi nessa construção comprida, de madeira, queo desconhecido então sumiu, no afã de despistar os matadores agora amenos de cinquenta metros. Talvez houvesse lâminas ali dentro…sangue para lhes confundir o olfato… qualquer coisa.

Mas não havia nenhuma carcaça no matadouro naquela tarde dedomingo. Ninguém cortando garganta de boi. Apenas dezenas deganchos de metal pendurados em correntes no teto, todos refletindo osol do fim do dia que se filtrava pelas duas pontas do amplo galpão. Odesconhecido passou correndo sobre o piso de madeira com manchasde sangue buscando um lugar onde se esconder, alguma arma que lheservisse. Nem uma coisa, nem outra encontrou.

O rio… posso despistá-los no rio…Escapou por uma porta aberta quase nos fundos, decidido a ir

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para o sul até o Potomac. Uma vez ali, mergulharia e fugiria nadandopara longe. Mas sua fuga foi bloqueada pelo vulto de um homem.

A outra porta…O desconhecido parou e deu meia-volta — havia outros dois

vultos atrás dele.Não havia como escapar. Ele parou no meio do galpão enquanto

seus perseguidores avançavam pelos dois lados, lenta ecuidadosamente. Pretendiam capturá-lo. Torturá-lo. Exigir saber quemo enviara e o que fizera com o garoto. E, se capturado, era provávelque lhes contasse tudo. Isso ele não podia permitir.

O desconhecido sorriu enquanto os perseguidores seaproximavam dele.

— Saibam de uma coisa — disse ele. — Que sois escravos deescravos. — Ele respirou fundo, fechou os olhos e saltou sobre um dosganchos que pendiam do teto, perfurando o peito na altura do coração.

Gosto de pensar que nesses momentos finais, enquanto seucorpo convulsionava e seu sangue escorria do nariz e da boca —juntando-se ao dos animais lá embaixo —, ele viu as labaredasdo inferno sob seus pés e sentiu a primeira de suas agoniaseternas. Gosto de pensar que ele sentiu esse medo.

__________

Quando os guardas já haviam fechado toda a Casa Branca e verificadotodos os jardins, Willie sentou-se no escritório do pai e calmamenterelatou tudo o que acontecera, enquanto um médico o examinava.

O desconhecido agarrara seu rosto, disse ele, abrira suaboca e colocara uma coisa “amarga” lá dentro. Meuspensamentos logo se voltaram para a morte de minha mãe comuma dose de sangue de vampiro, e calei-me desesperado ao

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pensar em ver meu amado garotinho sofrendo o mesmo destino. Omédico não encontrou nenhum sinal de envenenamento, mas fezWillie engolir várias colheradas de carvão em pó,8 porprecaução (experiência que ele achou muito pior do que oassédio em si).

Naquela noite, enquanto Mary ficava com Tad (que estavamuito abalado pelos acontecimentos daquele dia), fiquei ao ladode Willie, vendo-o dormir; atento a qualquer mal-estar quedemonstrasse. Para meu grande alívio, ele pareceu melhor namanhã seguinte, e comecei a alimentar uma pequena esperança deque tudo não tivesse passado de um susto.

Mas na segunda-feira seguinte, Willie sentiu-se muito cansado ecom dores — e na segunda noite estava com febre. Tudo parou quandoWillie piorou, e os melhores médicos de Washington foram chamadospara atendê-lo.

Fizeram tudo o que podiam para tratar seus sintomas, masnão conseguiram encontrar uma cura. Por três dias e noites, Marye eu ficamos acordados ao lado da cama dele, rezando por suarecuperação, fervorosamente, na esperança de que a juventude e aProvidência o salvassem. Li para ele passagens de seus livrosfavoritos enquanto ele pegava no sono; passava os dedos em seucabelo castanho e macio e enxugava o suor de sua testa. Noquarto dia, nossas preces foram atendidas. Willie começou amelhorar sozinho, e minha pálida esperança voltou. Não devia tersido sangue de vampiro, pensei comigo — pois certamente ele jáestaria morto agora.

Mas depois de algumas horas de recuperação, a saúde de Willievoltou a piorar. Ele não conseguia comer nem beber nada sem passarmal do estômago. Seu corpo foi se encolhendo e definhando, e a febrese recusava a passar. No nono dia, ele não acordou mais de seu sono.

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E no décimo, apesar de todos os melhores esforços dos melhoresmédicos que havia, ficou claro para todos que Willie morreria.

Mary não conseguia se conformar com a ideia de ter desuportar outro de nossos garotinhos deixando esta terra. Resolvipegar nosso filho no peito e delicadamente embalá-lo noiteadentro… até a manhã seguinte… e também no outro dia.Recusei-me a deixá-lo ir; recusei-me a abandonar aquela últimaesperança de que Deus não seria tão cruel.

Na quinta-feira, 20 de fevereiro de 1862, às 5 horas da tarde,Willie Lincoln morreu nos braços do pai.

FIG. 19-1. — MARY TODD LINCOLN POSA COM DOIS DOS TRÊS FILHOS QUE ELA ENTERRARIA. WILLIE (ESQUERDA) E TAD(DIREITA).

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Elizabeth Keckley era uma escrava alforriada que trabalhavabasicamente como costureira de Mary Lincoln. Anos mais tarde, ela selembrava de Lincoln chorando diante de todos, com toda aquela altura,tomado de emoção. “Gênio e grandeza”, disse ela, “chorando sobreum ídolo do amor perdido.” John Nicolay lembra-se do alto e austeropresidente entrando em seu escritório “como que em transe”. “Bem,Nicolay”, disse ele, olhando para o vazio, “meu menino morreu…morreu de fato.” Abe mal conseguiu cruzar a porta e caiu em prantos.

Nas quatro horas seguintes, Abe governou muito pouco. O quefez, no entanto, foi preencher quase 12 páginas de seu diário. Algumasdelas com lamentações…

[Willie] jamais conhecerá a sensação do toque suave de umamulher ou experimentará as peculiares alegrias de um primeiroamor. Jamais conhecerá a paz de segurar nos braços o própriofilhinho. Jamais lerá as grandes obras da literatura ou verá asgrandes cidades do mundo. Jamais verá outro sol nascer ousentirá outra gota de chuva em seu rosto delicado…

Outras com ideias suicidas…

Chego a pensar que a única paz nesta vida é o seu fim.Quero acordar logo deste pesadelo… desse breve pesadelo semsentido de perda e de luta. Do sacrifício sem fim. Tudo o queamo jaz além da morte. Quero ter a coragem de abrir meus olhospor fim.

E, às vezes, uma fúria cega…

Quero ver o rosto do Deus covarde que se delicia com essasdesgraças! Que se diverte aniquilando crianças! Roubando filhosinocentes de pais e mães! Ah, quero ver a cara dele e arrancarseu coração negro! Aniquilá-lo como fiz com tantos de seus

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demônios!

__________

Foram feitos os preparativos para o transporte do corpo de Williepara Springfield, onde seria sepultado próximo à residênciapermanente dos Lincoln. Mas Abe não podia suportar a ideia de seumenininho tão longe, e no último minuto foi decidido que Willieficaria em uma cripta em Washington até o final da presidência de seupai. Dois dias depois do funeral (ao qual Mary, em profundo luto, nãopôde comparecer), Abe voltou à cripta e ordenou a abertura do caixãodo filho.

Sentei-me ao lado dele, como fizera tantas noites durante suabreve vida; como que esperando que ele acordasse e meabraçasse — a habilidade do embalsamador foi tamanha que eleparecia apenas adormecido. Fiquei com ele uma hora ou mais,falando-lhe docemente. Rindo ao contar-lhe histórias de suaprimeira travessura… seus primeiros passos… sua risadapeculiar. Contando como ele seria sempre amado. Quando nossotempo acabou, e a tampa foi pregada ao caixão outra vez,comecei a chorar. Não podia suportar a ideia de ele ficar alisozinho naquela caixa fria e escura. Sozinho sem que eu opudesse confortar.

Com Mary confinada ao leito, Abe buscou refúgio trancando-seem seu escritório na semana seguinte à morte de Willie. Temendo porsua saúde, Nicolay e Hay cancelaram todas as reuniõesindefinidamente, e Lamon e a Trindade vigiaram sua porta dia e noite.Dezenas de admiradores foram oferecer condolências ao presidentenaquela semana. Eles agradeceram pela presença de todos eeducadamente os dispensaram — até a noite de 28 de fevereiro,

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quando apareceu um homem que eles levaram diretamente aoescritório.

O nome que ele usou jamais seria rejeitado.

IV

— Não posso imaginar o fardo que você carrega — disse Henry. — Opeso de um país nos ombros… de uma guerra. E, agora, o peso deenterrar outro filho.

Abe sentou-se diante da lareira, sobre a qual estava pendurado ovelho machado. — Foi para isso que você veio, Henry? Para lembrara minha tristeza? Se é esse o caso, então posso lhe garantir… eu jáestou bastante ciente dela.

— Vim expressar meus sentimentos a um velho amigo… eoferecer-lhe a chan…

— Não! — Abe engasgou. — Não quero nem ouvir! Não meatormentarei com isso nunca mais!

— Minha intenção não é atormentá-lo.— Então qual é, Henry? Diga-me… o que você quer com isso?

Quer me ver sofrer? Quer ver as lágrimas molhando o meu rosto?Olhe, este rosto assim está bem para você?

— Abraham…Abe levantou-se da cadeira.— Eu passei a minha vida inteira nas suas empreitadas, Henry! A

minha vida inteira! E para quê? E a minha felicidade? Tudo o que eusempre amei foi morto pela sua espécie! Eu dei tudo o que tinha. Oque você me deu em troca?

— Eu lhe dei minha eterna lealdade; minha proteção da…Morte! — disse Abe. — Você me deu morte!Abe olhou para o machado sobre a lareira.

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Tudo o que eu sempre amei…— Abraham… não sucumba ao desespero. Lembre-se de sua

mãe… lembre-se do que ela sussurrou quando de seu último alento.— Não tente me manipular, Henry! E não finja se importar com o

meu sofrimento! Você só se importa com suas próprias vantagens!Com a sua guerra! Você não entende o que é perder alguém!

Então Henry se levantou.— Eu passei os últimos trezentos anos chorando uma esposa e

uma criança, Abraham! Chorando a vida que me foi roubada; milamores perdidos no tempo! Você não sabe o que eu passei paraprotegê-lo! Tudo o que eu sof…

Henry se recompôs.— Não — disse ele. — Não… não deve ser assim. Já fomos

longe demais por isso. Ele pegou o casaco e o chapéu.— Meus sentimentos, e minha oferta está de pé. Se você preferir

deixar Willie enterrado, que assim seja.

O som do nome de Willie despertou tamanha selvageria emmim — o tom altivo de Henry tamanha fúria — que peguei meumachado do prego e atirei contra sua cabeça com um grito,errando por menos de três centímetros e despedaçando o relógioda parede. Peguei-o de volta e atirei-o de novo, mas Henryinterceptou-o pela lâmina. A porta do escritório foi escancaradaatrás de nós, e dois dos membros da Trindade entraram àspressas. Ao nos ver, congelaram — sem saber a quem cabia sualealdade. Lamon, contudo, não tinha nenhuma dúvida. Ao entrar,ele sacou seu revólver e apontou para Henry, mas foi detido porum dos vampiros antes de atirar.

Henry estava no meio da sala, seus braços pendendo ao ladodo corpo. Ataquei outra vez — com o machado erguido enquantocorria. Henry nem piscou ao meu avanço. Em vez disso, pegou omachado pelo cabo quando golpeei sua cabeça, tirou-o de mim e

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quebrou-o ao meio, jogando os pedaços no chão. Fui para cimadele com os punhos, mas ele também os segurou e torceu,obrigando-me a cair de joelhos. Comigo assim imobilizado, elese ajoelhou atrás de mim e aproximou suas presas do meupescoço. “Não!”, gritou Lamon, vindo em meu socorro. Os outroso detiveram. Senti a ponta daquelas navalhas na carne.

“Vamos logo com isso!”, exclamei.

A única paz nesta vida é seu fim…

“Vamos, morda, eu suplico!”Senti minúsculas gotas de sangue no pescoço quando suas

presas me atravessaram a carne. Fechei os olhos e me prepareipara encontrar o desconhecido; para ver novamente meus amadosmeninos… mas não foi assim.

Henry recolheu as presas e me soltou.“Algumas pessoas são interessantes demais para matá-las,

Abraham”, disse ele, ficando de pé. Pegou de volta o casaco e ochapéu e foi em direção à porta, em direção aos três guardasaflitos, que tinham o coração batendo ainda mais acelerado que omeu.

— Henry…Ele se virou.— Vou continuar nesta guerra até o final… mas não quero ver

mais nenhum vampiro enquanto eu viver.Henry fez uma ligeira mesura.— Senhor presidente…Com isso, ele desapareceu.Abe nunca mais o veria pelo resto da vida.

1 O laudo foi dado por perdido no Grande Incêndio de Chicago em 1871, até ser encontrado durante uma reforma do Mercy Hospital, em 1967. No dia em que essas

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informações se tornaram públicas, o Mercy recebeu uma doação anônima de um milhão de dólares. No dia seguinte, o laudo foi declarado fraudulento pelaadministração do hospital.2 Temendo espiões, todas as mensagens de Henry para Abe eram cifradas de um modo ou de outro.

3 Fala do personagem Richmond em Ricardo III, ato V, cena 2.

4 A carta de Merrow, hoje nos arquivos da Universidade de Harvard, foi durante muito tempo erroneamente considerada uma peça de ficção epistolar.

5 Horatio “Bud” Nelson Taft Jr. e Halsey “Holly” Cook Taft eram os melhores amigos de Willie e Tad. Estavam quase sempre na companhia de sua irmã adolescente,

Julia, que Abe chamava afetuosamente de “flibbertigibbet” (diabinha tagarela). Cinquenta e nove anos depois, ela escreveria sobre suas lembranças de Abe e seusgarotos em Tad Lincoln’s Father.6 Um soldadinho de brinquedo que Tad ganhara de presente. Ele e o irmão gostavam de aplicar a corte marcial por traição ou abandono de serviço, sentenciando-o à

morte, enterrando-o — e depois repetindo todo o processo. Os garotos chegaram a ponto de implorar a Abe que redigisse um perdão para o brinquedo, com o que eleprontamente concordou de bom grado: “O boneco Jack está perdoado por ordem do presidente. A. Lincoln.”7 Um parque, de cerca de 200 mil metros quadrados, muito usado como acampamento dos soldados da União.

8 Carvão ativado vem sendo usado há muito tempo para tratar envenenamento. Funciona absorvendo as toxinas no intestino antes que cheguem à corrente sanguínea.

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DOZE

“Morram de fome, demônios”De boa-fé esperamos, fervorosamente rezamos, que o flagelodessa guerra possa passar rapidamente. Contudo, se Deus quiserque ela continue… até que cada gota de sangue derramado peloaçoite seja pago com outra pela espada, como há três mil anos sediz, então ainda assim será preciso dizer “os preceitos do Senhorsão retos e alegram o coração”.

— Abraham Lincoln, Segundo Discurso de Posse4 de março de 1865

I

Washington, D.C., estava sendo atacada, e Abe não pretendia perdera oportunidade de ver a luta de perto.

No dia 11 de julho de 1864, ignorando os apelos de sua guardapessoal, ele foi sozinho a cavalo até o Forte Stevens,1 onde o generalconfederado Jubal A. Early liderava 17 mil rebeldes em um ferozataque às linhas nortistas de Washington. O presidente foi saudadopelos oficiais da União e conduzido diretamente ao forte, onde poderiarelaxar e beber algo fresco na segurança de suas paredes de pedra.

Eu não fora até ali para ser poupado nem para ouvir umadescrição da batalha — eu fora testemunhar os horrores da guerracom meus próprios olhos. Ver o que os outros haviam sofridoaqueles três longos anos, enquanto eu permanecera atrás dos

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muros do calor e da fartura. Por mais que tentassem, os oficiaisnão conseguiram me dissuadir de espiar por sobre o parapeito ever os rapazes alinhados e cerimoniosamente atirando uns contraos outros — sendo dizimados por tiros de canhão e varados porbaionetas.

A visão de Abraham Lincoln contemplando o campo de batalhade cartola deve ter parecido um presente divino para os atiradoresrebeldes no Forte Stevens naquele dia. Em poucos minutos três balaspassaram raspando por ele, cada uma provocando em seus guarda-costas ataques de ansiedade. Por fim, quando um oficial da Uniãoparado ao lado dele foi atingido na cabeça e morreu, o presidentesentiu um puxão na barra do casaco e ouviu o primeiro-tenente (efuturo membro da Suprema Corte de Justiça) Oliver Wendell Holmesberrar: “Abaixe-se, seu maldito idiota!”

Mas ele não se abaixou.Ele havia perdido completamente o medo de morrer.

__________

Já não havia mais nenhum vampiro na Casa Branca. Abe os haviabanido depois da morte de Willie e de seu confronto com Henry. Atémesmo a Trindade — seus mais ferozes e capacitados protetores —havia sido mandada de volta a Nova York.

Devo salvar esta União porque ela merece ser salva. Devosalvá-la para homenagear os homens que a construíram com seusangue e seu gênio, e as futuras gerações que merecem sualiberdade. Dedicarei cada uma das minhas horas à causa davitória e da paz — mas maldito seja se puser os olhos em outrovampiro.

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A família do presidente agora era protegida exclusivamente porhomens comuns, e o presidente era cada vez menos protegido porinsistência do próprio Abe. Cada dia trazia novas restrições à suaguarda; a cada dia, eram recebidos em menos aposentos. Contrariandoas objeções de Ward Hill Lamon, Abe insistia em sair em carruagemaberta quando o tempo estava agradável e em caminhar sozinho entre amansão e o Departamento de Guerra depois que anoitecia. ComoLamon registraria em suas memórias anos mais tarde: “Acredito quese tratasse de mais do que ausência de medo. Acredito que fosse maisum convite para a morte.”

Uma entrada do diário de 20 de abril de 1862 demonstra ofatalismo crescente de Abe.

Ao longo de uma semana, cumprimentei mil rostos estranhosna Casa Branca. Deveria considerar cada um deles como o rostode meu assassino? De fato, qualquer homem disposto a arriscar aprópria vida para acabar com a minha teria pouco trabalho paratanto. Devo então me trancar em uma caixa de ferro e esperar queesta guerra termine? Se Deus quer minha alma, sabe muito bemonde pode vir buscá-la — e Ele poderá fazê-lo na hora e daforma que bem entender.

Com o tempo, por meio de grande força de vontade, ele sairiadessa depressão, como fizera com todas as demais antes. Poucodepois da morte de Willie, quando seu velho amigo WilliamMcCullough foi morto lutando pela União, Abe enviou uma carta depêsames para a filha que McCullough deixara. O consolo e osconselhos que ele ofereceu a ela serviam tanto para ele quanto para amenina.

O consolo perfeito é impossível, exceto com o tempo. Agoravocê não conseguirá imaginar que um dia se sentirá melhor. Nãoé assim? E, no entanto, é um engano. Sem dúvida você se sentirá

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melhor outra vez. Saber disso, que certamente é verdade, farávocê se sentir menos infeliz agora. Tive o bastante dessasexperiências para saber do que estou falando; e basta vocêacreditar, que logo se sentirá melhor. A lembrança de seu queridopai, em vez de uma agonia, será, na verdade, um doce e tristesentimento em seu coração, de uma espécie mais pura e maissagrada do que qualquer coisa que você já sentiu antes.

Mas enquanto Abe se recompunha e mostrava serviço, Mary sófazia piorar.

Ela não consegue sair da cama por mais de uma hora. Nemconsegue cuidar de Tad, que sofre não só pelo irmão, mastambém pela mãe. Sinto vergonha de admitir que às vezes asimples visão dela me dá raiva. Vergonha porque não é por suaculpa que ela sofre ataques de fúria ou acredita que os charlatões“enganaram” nossos amados filhos por dinheiro. Ela suportoumais do que qualquer outra mãe poderia suportar. Receio que suacabeça não funcione mais — e que nunca mais volte a funcionar.

II

Embora Abe se recusasse a ter qualquer contato direto com Henry oucom a União, ele era pragmático o bastante para aceitar sua ajuda paravencer a guerra. Em Nova York, o grande salão de festas (onde Abesoube pela primeira vez da existência da União e de seus planos paraele) havia sido transformado em uma sala de guerra, cheia de mapas,quadros-negros e um telégrafo. Eles trabalhavam como enviados dosvampiros aliados da Europa. Lutavam onde podiam e apoiavam ainteligência da Casa Branca com o material recolhido por seuspróprios espiões. Essas informações foram entregues a Seward, que

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— depois de ler e queimar as mensagens — relatou seu conteúdo aopresidente. Em uma entrada com data de 10 de junho de 1862 lê-se:

Hoje chegou a notícia de que os Confederados estãoentregando prisioneiros da União para que os vampiros sulistasos torturem e executem. “Ficamos sabendo de homens”, disseSeward, “pendurados pelos pés e esticados entre dois postes.Usando uma serra de lenhador, dois vampiros lentamente cortamo prisioneiro ao meio começando pela virilha. Enquanto isso, umterceiro vampiro se deita de costas por baixo do pobrecondenado — engolindo o sangue que lhe escorre do corpo.Como a cabeça do prisioneiro fica mais próxima do chão, océrebro continua a funcionar, e ele permanece consciente até quea serra lentamente, indo e vindo, atravesse seu estômago, depoisseu peito. Os outros prisioneiros são obrigados a assistir a tudoantes de passarem pela mesma tortura.”

Rumores de “fantasmas” e “demônios” Confederados raptandohomens de suas tendas e bebendo seu sangue se espalharam entre ossoldados da União durante o segundo verão da guerra. À noite, podia-se ouvir os soldados cantando uma música muito popular nosacampamentos.

Da Flórida à Virgínia ouvimos seu delírio tantã,Pois o velho Johnny Rebel fez um pacto com satã.Mandaram satã para o Norte, com seus olhos de serpente,Atrair nossos rapazes para dentro do lago fervente…

Em pelo menos um caso, esses rumores levaram um grupo desoldados da União a se voltar contra um de seus próprios homens. Nodia 5 de julho de 1862, o soldado raso Morgan Sloss foi morto porcinco de seus colegas enquanto acampavam perto da fazenda Berkley,na Virgínia.

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Tiraram-no de sua tenda na calada da noite e bateram nele,enquanto o acusavam de ser um “demônio chupador de sangue”.(Se o menino fosse de fato um vampiro, ele teria sabido como sedefender melhor.) Amarraram-no em um poste e espetaram-nocom paus e pás de ferro — exigindo que confessasse. “Diga logo,seu demônio chupador de sangue, e deixaremos você ir embora!”,exclamavam, batendo-lhe até que ele chorasse e implorassepiedade. Depois de um quarto de hora disso, a confissãomurmurada enfim saiu de seus lábios ensanguentados. Desconfioque o menino teria confessado até que era o próprio Cristo desdeque parassem com aquela agonia. Confissão registrada,derramaram óleo de lamparina sobre ele e queimaram-no vivo. Omedo que ele deve ter sentido… a confusão e o medo… nãoconsigo pensar nisso sem que meus punhos se cerrem de raiva. Sepor algum milagre do tempo e dos céus eu pudesse ter estado alipara intervir…

Abe considerou o incidente profundamente perturbador — nãoapenas pela crueldade, mas porque significava que a estratégia dosConfederados estava funcionando.

Como podemos esperar vencer esta guerra se nossos homenscomeçaram a se matar entre si? Como podemos esperar vencer semuito em breve nossos homens estarão assustados demais paralutar? Para cada vampiro aliado à nossa causa, existem dez dolado do inimigo. Como poderei debelá-los?

Como costumava acontecer com Abe, a resposta veio em umsonho. Em uma entrada com data de 21 de julho de 1862, lê-se:

Eu era menino outra vez… sentado na cerca de casa, nofrescor de um dia nublado, vendo os viajantes que passavam pelavelha trilha do rio Cumberland. Lembro que vi uma carroça cheia

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de negros, todos agrilhoados pelos pulsos, contando apenas comum punhado de feno para aliviar os solavancos da estrada e umcobertor para protegê-los do ar frio do inverno. Meus olhoscruzaram com os de uma menina negra de 5 ou 6 anos quepassava. Quis desviar o olhar (tamanha a tristeza daquelesolhinhos), mas não consegui… pois eu sabia aonde ela estavasendo levada.

A noite havia caído. Fui atrás da menina (não sei como) atéum grande celeiro — cujo interior estava iluminado por tochas elamparinas. Fiquei observando da escuridão enquanto ela eoutros eram colocados em fila, todos com os olhos fixos no chão.Observei os vampiros se posicionando atrás de cada escravo. Osolhos dela encontraram os meus quando um par de presascravaram-se por trás dela e duas mãos em garra agarraram seupescoço frágil.

“Justiça…”, disse ela, olhando para mim.As presas penetraram mais fundo.Seus gritos juntaram-se aos meus e acordei.

__________

Abe convocou seu Gabinete na manhã seguinte.

“Cavalheiros”, começou ele, “nós vimos falando um bocadosobre a verdadeira natureza desta guerra; sobre nosso verdadeiroinimigo. Vimos discutindo — sempre no espírito da amizade —sobre o modo mais prudente de enfrentar esse inimigo, elamentando seu poder de infundir medo no coração de nossoshomens. Ouso dizer que chegamos até a compartilhar esse medo.Isso não pode continuar.

“Cavalheiros… que o nosso inimigo tenha medo de nós.“Recusemos ao nosso inimigo a mão de obra que mantém as

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fazendas de seus aliados; que constrói suas guarnições e carregasua pólvora. Recusemos ao nosso inimigo os pobres condenadosque são criados para ser consumidos pelas trevas. Agora,cavalheiros, vamos fazer esses demônios morrerem de fome evamos derrotá-los ao declarar livres todos os escravos do Sul.”

Aplausos vieram de toda a mesa. Até Salmon Chase (que ainda serecusava a acreditar que os vampiros eram reais) percebeu agenialidade da estratégia que atacava a máquina de guerra sulista.Seward, juntando-se aos outros na aprovação, ofereceu um humildeconselho:

[Ele] sugeriu que essa proclamação fosse feita ao país logoapós uma vitória, para não parecer um ato de desespero.

“Bem”, falei, “então imagino que precisemos de umavitória.”

III

No dia 17 de setembro de 1862, os exércitos da União e dosConfederados enfrentaram-se em Antietam Creek, perto da cidade deSharpsburg, Maryland. As forças confederadas eram comandadas pelogeneral Robert E. Lee, que desfrutara uma relação afetuosa com opresidente antes da guerra. As forças da União eram comandadas pelogeneral George B. McClellan, um democrata que desprezava AbrahamLincoln com todas as fibras de seu ser. Abe escreveu:

[McClellan] me acha um bufão — incapaz de comandar umhomem de criação e intelecto superiores como ele. Isso não meincomodaria nem um pouco se ele vencesse mais batalhas! Emvez disso, ele senta em seu acampamento, usando o Exército do

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Potomac como sua guarda pessoal! Ele sofre de excesso deprecaução: observando quando devia atacar, recuando quandodevia manter posição e lutar. Esse é um pecado que não possoperdoar em um general.

Os exércitos de Lee e McClellan esperaram pacientemente pelashoras que antecederam a madrugada daquela quarta-feira, 17 desetembro, sem saber que estavam prestes a dar início ao dia maissangrento da história militar americana. Ao raiar da primeira luz dodia, ambos os lados abriram fogo com suas artilharias. Por quase umahora, as bombas zuniram uma após a outra, muitas delas com pavioscronometrados para explodirem sobre seus alvos, lançando estilhaçosincandescentes através dos corpos de qualquer infeliz soldado queestivesse por perto. Do diário do soldado da União ChristophNiederer,2 20º Batalhão de Infantaria de Nova York, 6ª unidade doexército:

Eu tinha acabado de me acomodar quando uma bombaexplodiu em cima de mim e me deixou completamente surdo.Senti um impacto no ombro direito, e minha jaqueta ficou cobertade uma coisa branca. Mecanicamente procurei sentir se aindatinha o meu braço, e graças a Deus ele ainda estava inteiro. Aomesmo tempo senti algo úmido em meu rosto; passei a mão paratirar. Era sangue. Então olhei primeiro para o homem ao meulado, Kessler. Ele estava sem a parte de cima da cabeça, e quasetodo o seu cérebro tinha ido parar no rosto do homem ao seulado, Merkel, de modo que ele mal podia enxergar. Como aqualquer momento a mesma coisa podia acontecer a qualquer umde nós, ninguém prestou muita atenção àquilo.

Quando os canhões silenciaram, os soldados da União receberamordem de aprontar suas baionetas e avançar através de um milharal,atacando as trincheiras confederadas. Mas uma bateria da artilharia

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estava esperando por eles no meio da plantação, e quando seaproximaram, os canhões rebeldes dispararam metralhas,3 dilacerandocabeças e espalhando partes de corpos pelo campo. De uma carta dotenente Sebastian Duncan Jr.,4 13º Batalhão de Infantaria de NovaJersey, 12ª unidade do exército:

Balas e destroços perdidos começaram a zunir sobre nossacabeça e a explodir à nossa volta… logo adiante das nossaslinhas havia um grande número de mortos e feridos. Um pobrecoitado jazia logo à nossa frente com uma perna arrancada; outro,estraçalhado e bastante ferido, tremia com muito medo.

Quando passou o ataque, o milharal parecia uma ruínaabandonada e chamuscada, coberta por mortos e moribundos de umextremo ao outro. Os feridos foram deixados sofrendo sozinhosenquanto as bombas continuavam a cair — rasgando membros edespedaçando os que já haviam sido mutilados. A batalha então tinhaapenas duas horas de duração.

Mais de seis mil homens perderiam a vida em Antietam naqueledia, e outros 20 mil sofreriam ferimentos, muitos deles fatais.

Lee acabaria sendo forçado a bater em retirada. Mas depois deusar apenas dois terços das forças disponíveis na batalha (fato quecontinua a intrigar os historiadores militares), o general George B.McClellan simplesmente ficou observando enquanto o ExércitoConfederado derrotado voltava cambaleante para se reagrupar naVirgínia. Se ele tivesse continuado a atacar, teria desferido um golpefatal nos sulistas e apressaria o final da guerra.

Abe ficou furioso.— Maldição! — exclamou ele para Stanton ao saber que

McClellan não havia perseguido e atacado o inimigo em retirada. —Ele já me causou mais tristezas do que qualquer confederado!

Abe foi imediatamente até o acampamento de McClellan, emSharpsburg.

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Existe uma famosa fotografia de Abraham Lincoln e George B.McClellan sentados, frente a frente, na tenda do general emSharpsburg. Ambos parecem formais e incomodados. A história contaque Abe disse com insolência a McClellan: “Se você não quer usar oexército, eu gostaria muito de tomá-lo emprestado.” O que a histórianunca registrou, contudo, foi o que aconteceu pouco antes daquelafotografia constrangida.

Ao cumprimentar [McClellan] em sua tenda e apertar asmãos dos oficiais, pedi um momento em particular com o general.Fechando a porta da tenda, coloquei meu chapéu sobre umamesinha, ajeitei meu casaco e parei de pé diante dele. “General”,falei, “preciso lhe fazer uma pergunta.”

“Qualquer coisa”, disse ele.Agarrei-o pelo colarinho e puxei-o para perto de mim — tão

perto que nossos rostos ficaram a poucos centímetros um dooutro. “Posso vê-las?”

“Por Deus, do que você está falando?”Puxei-o para ainda mais perto. “Suas presas, general!

Deixe-me dar uma olhada nelas!” McClellan começou aespernear, mas seus pés já não encostavam no chão.

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FIG. 8-47. — ABE SENTADO DIANTE DE UM TENSO GENERAL GEORGE MCCLELLAN IMEDIATAMENTE DEPOIS DECONFRONTADO EM SHARPSBURG. VÊ-SE O MACHADO APOIADO NA CADEIRA DO PRESIDENTE — TRAZIDO PARA O CASO DESEU PALPITE SOBRE MCCLELLAN SE PROVAR CORRETO.

“Certamente devem estar aí”, falei, abrindo sua boca comuma das mãos. “Pois, do contrário, como um homem pode quererprolongar a agonia da guerra? Vamos! Mostre-me esses olhosnegros! Quero ver essas presas afiadas e quero que olhe paramim!” Sacudi-o com violência. “Mostre-me!”

“Eu… eu não estou entendendo”, disse ele, por fim.A perplexidade dele era genuína. Seu medo, palpável.Soltei-o, subitamente envergonhado por haver permitido que

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meu mau humor extravasasse. “Não”, falei. “Não, estou vendoque você não está mesmo.” Arrumei o casaco novamente e abri aporta da tenda.

“Venha”, falei. “Vamos deixar o Gardner5 fazer suafotografia e acabar logo com isso.”

Abe dispensou McClellan do comando um mês depois.

__________

Depois de sair do acampamento em Sharpsburg, Abe passou emrevista os resultados da guerra. A visão dos corpos mutilados, rígidos,espalhados por Antietam Creek foi o bastante para levar o presidenteemocionalmente exaurido às lágrimas.

Chorei, pois cada um daqueles meninos era Willie. Cada umdeles havia deixado um pai amaldiçoado como eu, e uma mãechorando como Mary chorava.

Abe ficou sentado no chão ao lado do cadáver de um soldado daUnião por quase uma hora. Disseram-lhe que aquele garoto havia sidoatingido na cabeça por um tiro de canhão.

Sua cabeça estava dilacerada atrás, já quase sem nada docrânio e do cérebro — o resultado era que seu rosto e o courocabeludo jaziam frouxos no chão como um saco de trigo vazio.Essa visão me repugnou, mas não consegui desviar os olhos.Aquele menino — aquele menino sem nome — havia acordadonaquela manhã de setembro sem saber que seria sua últimamanhã. Vestira-se, comera. Havia corrido corajosamente para aluta. E então morrera — cada momento de sua vida se reduzira auma única desventura. Todas as suas experiências, passadas e

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futuras, esvaziaram-se em um milharal desconhecido longe decasa.

FIG. 27-C. — UM GRUPO DE ESCRAVOS FORROS RECOLHE CADÁVERES CONFEDERADOS EM COLD HARBOR, VIRGÍNIA, DEPOISDA GUERRA, EM 1865. AS PRESAS SÃO VISÍVEIS NO CRÂNIO À ESQUERDA DO HOMEM AJOELHADO.

Chorei por sua mãe e por seu pai; por seus irmãos e irmãs.Mas não chorei por ele — pois passei a acreditar no velhoadágio do fundo do meu coração…

“Só os mortos viram o fim da guerra.”

IV

Por mais que Antietam tivesse sido horrível, foi a vitória pela qualAbe esperava. No dia 22 de setembro de 1862, ele faria a primeiraProclamação de Emancipação, declarando todos os escravos dosestados rebeldes “livres para sempre”.

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A reação não demorou. Abolicionistas argumentavam que, aolibertar apenas os escravos dos estados sulistas, Abe não tinha ido tãolonge quanto poderia. Os moderados temeram que a medida servisseapenas para que o Sul lutasse com mais determinação. Algunssoldados nortistas ameaçaram se amotinar, argumentando que estavamlutando para preservar a União, não pela “libertação dos negros”.

Abe não se abalou.A única reação que lhe interessava era a dos próprios escravos.

E, a julgar pelos relatos que começaram a aparecer durante os últimosmeses de 1862, aconteceu justamente o que ele queria.

Recebi hoje grandes notícias dos nossos aliados em NovaYork (relatadas por Seward) de um levante recente em umafazenda perto de Vicksburg, Mississippi. Tenho certeza de quenão há exagero, sendo o relato de um menino negro quetestemunhou o ocorrido em primeira mão. “Quando a feliz notícia[da Proclamação de Emancipação] chegou aos seus aposentosnaquela manhã”, contou Seward, “os negros comemoraramcantando músicas animadas. A alegria deles, no entanto, foiinterrompida pelos som dos azorragues dos senhores e de umamoça presa e agrilhoada pelos tornozelos — que era o modocostumeiro de levar embora quem nunca mais eles voltariam aver. Em vez de deixar que ela sofresse a triste sina, como tantasvezes haviam deixado, os negros formaram uma turba e rodearamo curral para o qual ela havia sido levada. Quando entraram,carregando foices e gadanhos, depararam com uma cena que fezaté o mais corajoso entre eles gritar de pavor. Dois cavalheirosde olhos esbugalhados, ajoelhados sobre a moça acorrentada,ambos com as bocas ensanguentadas e fixas em seus seios nus.Ela estava desacordada, àquela altura já quase sem nenhuma cor.Recompondo-se, vários negros ergueram suas armas e atacaramos demônios — crendo se tratar de comuns mortais. Os vampiros,no entanto, moviam-se com tanta rapidez que os negros ficaram

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pasmos. Saltavam pelo redil, pendurando-se nas paredes com afacilidade de insetos, enquanto as lâminas rasgavamviolentamente o ar ao seu redor. Os que lideravam o ataque forammassacrados — tiveram a garganta aberta por garras pontiagudas;a cabeça atingida com tanta força que morreram antes de sequercair no chão. Mas os negros eram tantos que a turba conseguiusuplantar os cavalheiros. Embora tenha sido preciso seis homenspara conter cada um, os vampiros finalmente foram arrastadospara fora do curral, imobilizados sobre uma cocheira edecapitados.”

FIG. 11.2 — AS ESPERANÇAS DE ABE SE TORNARAM CONCRETAS QUANDO OS ESCRAVOS COMEÇARAM A SE REVOLTARCONTRA OS SENHORES VAMPIROS LOGO APÓS A PROCLAMAÇÃO DE EMANCIPAÇÃO.

A notícia se espalhou. Os dias dos vampiros nos Estados Unidosestavam contados.

__________

No dia 19 de novembro de 1863, Abe se dirigiu a uma multidão de 15

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mil pessoas. Tirou um pedacinho de papel do bolso, desdobrou-o,pigarreou e começou a falar:

Há 87 anos nossos antepassados criaram neste continenteuma nova nação, concebida em liberdade e dedicada àproposição de que todos os homens foram criados iguais…

Ele fora a Gettysburg para inaugurar um memorial aos oito milhomens que haviam perdido a vida naqueles três dias vitoriosos para aUnião. Enquanto ele falava, Ward Hill Lamon (que pode ser vistosentado ao lado de Abe em uma das poucas fotos existentes desseevento), aflito, esquadrinhava a multidão — com a mão no revólverpor dentro do paletó e o estômago queimando — pois era o únicohomem protegendo o presidente naquele dia.

Durante três horas ficamos sentados naquele palanque. Trêshoras de preocupação incessante — pois eu tinha certeza de queum assassino atacaria. Cada rosto parecia ter uma expressão deódio pelo presidente. Cada movimento parecia o prelúdio de umatentado contra a vida dele.

A princípio, Abe havia insistido para ir a Gettysburg semnenhuma escolta, preocupado com o fato de que a visão de homensarmados fosse “inapropriada” em um evento que homenageava aquelesque haviam morrido por seu país. Só depois que Lamon, brincando,ameaçou sabotar o trem do presidente para evitar que ele viajasse,Abe concordou em levá-lo consigo.

… que nós aqui decidamos altivamente que esses mortosnão tenham dado a vida em vão — que este país, temente a Deus,tenha um novo nascimento da liberdade e que o governo do povo,pelo povo e para o povo, não pereça neste mundo.

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Abe dobrou a folha e voltou a se sentar diante dos aplausosmoderados. Ele falara por cerca de dois minutos. Naquele curtoperíodo de tempo, fizera, talvez, o mais importante discurso do séculoXIX, discurso que ficaria entranhado na consciência de todo o país. Enaquele breve momento, Ward Hill Lamon, o mais dedicado guarda-costas de Abraham Lincoln, tomou uma decisão que alteraria parasempre a história americana.

FIG. 14C-3 — WARD HILL LAMON SENTADO IMEDIATAMENTE À DIREITA DE ABE NO MOMENTO SEGUINTE AO DISCURSO DEGETTYSBURG, ESQUADRINHANDO NERVOSAMENTE A MULTIDÃO EM BUSCA DE VAMPIROS ASSASSINOS. UM OLHAR MAISATENTO AO CANTO DA FOTO SUGERE QUE SEU TEMOR NÃO ERA INFUNDADO.

A aflição em Gettysburg havia sido mais do que ele podiasuportar. No caminho de volta para Washington, Lamonrespeitosamente comunicou ao presidente que já não poderia maisprotegê-lo.

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V

Na noite de 8 de novembro de 1864, Abe saiu andando sozinho nachuva e no vento.

Resolvi ficar na sala do telégrafo sozinho e esperar asnotícias, como fizera em Springfield quatro anos antes. Se euperdesse, não queria ser consolado. Se vencesse, não queria sercumprimentado. Pois havia muitos motivos para torcer peloprimeiro caso e lamentar pelo segundo.

A guerra já cobrara quase 500 mil vidas quando chegou o dia daeleição. Apesar das perdas inimagináveis, do cansaço cada vez maiorcom a guerra e das profundas divergências sobre a emancipação noNorte, Abe e seu novo vice-presidente, o democrata Andrew Johnson,do Tennessee, tiveram uma vitória esmagadora na disputa contraGeorge B. McClellan (o mesmo McClellan que Abe confrontaradepois de Antietam). Oitenta por cento do Exército da União votoupara reeleger seu comandante em chefe, um número impressionantediante do fato de que Abe concorria contra um ex-general da União, edadas as péssimas condições pelas quais haviam passado ao longodaqueles anos. Ao saber do resultado da eleição, os soldados daUnião do lado de fora da capital confederada de Richmond fizeramtamanha algazarra que os cidadãos sitiados tiveram certeza de que oSul havia se rendido.

Tinham motivos para contar com uma derrota. Richmond estavasitiada havia meses. Atlanta (o coração manufatureiro do Sul) haviacaído. Por todo o Sul, escravos emancipados continuavam fugindopara as linhas nortistas às dezenas de milhares — prejudicando aagricultura sulista e forçando os vampiros confederados a rapinarcadáveres para obter sangue fácil. Como resultado, os temíveis“soldados-fantasma” que haviam massacrado e aterrorizado os

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soldados da União foram se tornando cada vez mais escassos. QuandoAbe foi empossado pela segunda vez, no dia 4 de março de 1865, aguerra havia acabado de terminar.

Sem nenhuma maldade contra ninguém, mas caridade paratodos, firmes no que é certo, na medida em que Deus nos faz vero certo, esforcemo-nos para terminar o trabalho que começamos,fechar as feridas da nação, cuidar daquele que teve de suportar abatalha e de sua viúva e de seu órfão, fazer tudo o que pudermosfazer e valorizar uma paz justa e duradoura entre nós e entre todasas nações.

Durante o cortejo que se seguiu ao discurso, um batalhão desoldados negros juntou-se aos outros que marchavam diante dopalanque do presidente.

Fiquei comovido até as lágrimas quando eles passaram —pois em cada um daqueles rostos eu vi o rosto de uma vítimaanônima pedindo justiça; de uma menininha passando pela velhatrilha do rio Cumberland tantos anos atrás. Em cada um daquelesrostos vi a angústia do passado, e a promessa do futuro.

__________

O general Robert E. Lee rendeu-se com seu exército no dia 9 de abrilde 1865, pondo fim de maneira definitiva à Guerra Civil. No diaseguinte, Abe recebeu uma carta escrita em uma caligrafia familiar.

Abraham:Peço-lhe que deixe de lado as inimizades por tempo o

bastante para ler algumas palavras de parabéns.É com alegria que soube que nosso inimigo iniciou seu

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êxodo — muitos de volta à Europa, outros para a América do Sule o Oriente, onde é menos provável que sejam perseguidos. Elesolharam para o futuro, Abraham — e viram que a América éagora, e será para sempre, uma nação de viventes. Como o seupróprio nome diz, você foi um “pai para muitos” ao longo dessesquatro anos. E conforme o seu nome ainda, Deus lhe pediusacrifícios impossíveis. Mas você os superou com umbrilhantismo que todo homem desejaria ter. Você abençoou ofuturo daqueles que desfrutam desse tempo na terra, e daquelesque ainda viverão.

Ela ficaria orgulhosa de você.Eternamente,— H

Quando garoto, Abe havia jurado “matar todos os vampiros daAmérica”. Se isso se provara impossível, ele conseguira pelo menosfazer a segunda melhor coisa: expulsara os piores deles do país.Havia, contudo, um vampiro que se recusara a partir… que acreditavaque o sonho de uma nação de imortais ainda era possível — desde queAbraham Lincoln morresse.

Seu nome era John Wilkes Booth.

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FIG. 3E — JOHN WILKES BOOTH (SENTADO) POSA PARA UM RETRATO AO LADO DO PRESIDENTE CONFEDERADO JEFFERSONDAVIS EM RICHMOND, CIRCA 1863. É O ÚNICO RETRATO CONHECIDO DE BOOTH EM SUA VERDADEIRA FORMA VAMPÍRICA.

1 A batalha do Forte Stevens marca a única ocasião na história americana em que um presidente em exercício do mandato esteve sob fogo em um combate.

2 Civil War Misc. Collection, USAMHI [Miscelânea da Guerra Civil, Coleção do Instituto de História Militar do Exército dos Estados Unidos].

3 Metralha é um tipo de munição semelhante aos projéteis de metralhadora. Os projéteis são preenchidos por pequenas bolas de metal. Quando disparados, as bolas se

espalham e provocam estragos ainda mais graves. Os projéteis de metralha eram embalados em caixas e usados em confrontos à queima-roupa.4 Duncan Papers, Nova Jersey Historical Society.

5 Alexander Gardner, o fotógrafo de Washington, DC, que também faria o último retrato de Abe.

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TREZE

Sempre assim com os tiranosDeixo-os com a esperança de que a luz da liberdade continuaráacesa em seus corações até que não haja mais dúvidas de quetodos os homens nascem livres e iguais.— Abraham Lincoln, em um discurso em Chicago, Illinois

10 de julho de 1858

I

No dia 12 de abril de 1865, um homem sozinho caminhou pelogramado da Casa Branca em direção às imensas colunas do PórticoSul — onde, em tardes claras de primavera como aquela, o própriopresidente muitas vezes podia ser visto na sacada do terceiro andar. Ohomem andava depressa, levando uma pequena pasta de couro. A leique criaria o Serviço Secreto estava na mesa de Abraham Lincolnnaquela tarde de quarta-feira, e onde permaneceria pelo resto da vidadele.

Três minutos antes das 4 horas, o homem entrou no edifício edisse seu nome a um dos mordomos.

— Joshua Speed, preciso falar com o presidente.Uma vida de guerras finalmente cobrava seu preço de Abe. Ele

sentia-se cada vez mais fraco desde a morte de Willie. Sombrio einseguro. As linhas de expressão em seu rosto se aprofundaram, e apele embaixo dos olhos formara bolsas que faziam com que eleparecesse sempre exausto. Mary estava quase sempre deprimida eseus poucos momentos de leveza eram passados em frenéticos acessos

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de decoração e redecoração ou em “sessões” em que entrava emcontato com seus amados Eddy e Willie. Ela e Abe mal se falavamalém do mero protocolo. Em algum momento entre 3 e 5 de abril,durante uma viagem rio abaixo para o reconhecimento da cidadetomada de Richmond, o presidente registrou o seguinte poema àmargem de seu diário.

Melancolia,minha velha amiga,sempre me visita,e mais uma vez.

Desesperado por alguma distração e companheirismo, Abeconvidou seu velho amigo e companheiro caçador de vampiros parapassar uma noite na Casa Branca. Ao ser notificado da chegada deSpeed, Abe educadamente pediu licença de uma reunião e foi correndoà recepção. Speed recordaria a entrada de Abe em uma carta aocolega caçador William Seward, depois da morte do presidente.

Colocando a mão direita em meu ombro, o presidente fezuma pausa quando nossos rostos se encontraram. Chego a crerque ele deve ter achado meu rosto surpreso e tristonho, poisquando olhou para mim, vi uma fragilidade que nunca tinha vistoantes. O gigante de ombros largos que era capaz de rachar umvampiro ao meio com um machado tinha sumido. Assim como osolhos sorridentes e o ar confiante. Em seu lugar, havia umcavalheiro curvado e esquelético, cuja pele ganhara uma palidezmortiça e cujas feições lembravam as de um homem vinte anosmais velho. “Meu caro Speed”, disse ele, e então me abraçou.

Os dois caçadores jantaram juntos, Mary havendo se retiradopara seus aposentos com dor de cabeça. Depois do jantar, foram parao escritório de Abe, onde ficaram até as primeiras horas da

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madrugada, dando risadas e lembrando o tempo em que viviamnaquela sobreloja em Springfield. Falaram de sua época de caçadores;da guerra, dos rumores de que os vampiros estavam indo embora emlevas. Mas, acima de tudo, jogaram conversa fora: falaram dasfamílias, dos negócios, do milagre da fotografia.

Foi exatamente como eu queria. Meus problemas distantes,meus pensamentos tranquilos, e me senti outra vez como eu eraantigamente — ainda que apenas durante algumas poucas horasefêmeras.

Em algum momento bem depois da meia-noite, depois que Abe jáhavia feito seu amigo rir com seu poço sem fundo de anedotas, ele lhecontou sobre um sonho. Um sonho que o vinha incomodando haviadias. Em uma de suas últimas entradas do diário, Lincoln deixaria osonho registrado para a posteridade.

Parecia haver uma tranquilidade mortal ao meu redor. Entãoouvi soluços abafados, como se várias pessoas estivessemchorando. Saí de minha cama e desci as escadas. Ali o silênciofoi rompido pelo mesmo soluçar sentido, mas não consegui verquem chorava. Fui de sala em sala; nenhuma alma à vista, mascontinuavam os sons de choro e aflição quando eu passava…Fiquei intrigado e com medo. Qual seria o significado de tudoaquilo? Continuei assim até chegar à Sala Leste, onde entrei.Então deparei com uma surpresa nauseante. Diante de mim haviaum cadafalso, onde jazia um cadáver envolvido em mortalha. Aoredor, soldados que agiam como guardas; e uma fila de pessoas,umas olhando enlutadas para o corpo, cujo rosto estava coberto,outras chorando copiosamente. “Quem está morto na CasaBranca?”, perguntei a um dos soldados. “O presidente”, foi suaresposta. “Ele foi morto por um assassino.” Então ouvi umlamento retumbante da multidão, que me acordou do sonho. Não

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consegui voltar a dormir naquela noite.

II

John Wilkes Booth odiava a luz do sol. Irritava sua pele; era demaispara seus olhos. Fazia o rosto corado e gordo dos orgulhosos nortistasofuscá-lo quando passavam por ele na rua, jactando-se das vitórias daUnião, celebrando o fim da “rebelião”. Vocês não fazem ideia do queé uma guerra. O rapaz de 26 anos sempre preferira a escuridão —mesmo antes de se tornar um servo das trevas. Seu lar sempre fora opalco. As cordas trançadas e as cortinas de veludo. O calor e apenumbra dos lampiões a gás. O teatro sempre fora o centro de suavida, e foi em um teatro que ele entrou pouco antes do meio-dia parabuscar sua correspondência. Sem dúvida haveria cartas deadmiradoras — talvez de alguém que tivesse assistido em Nova Yorkao seu lendário Marco Antônio ou se emocionado com seu maisrecente Pescara em O Apóstata, encenado naquele mesmo tablado sobsuas botas.

A porta de trás do teatro ficava aberta para deixar o sol entrar,assim como as saídas dos fundos da casa, mas o Teatro Ford estavaquase sempre no escuro. A primeira e a segunda fileiras de camaroteseram encobertas pelas sombras, e toda vez que Booth punha ocalcanhar no palco, os ecos resultantes enchiam o vazio. Não havialugar mais agradável — mais natural para ele do que ali. Boothcostumava passar as horas claras do dia em teatros escuros, dormindoem um praticável, lendo em um camarote à luz de velas ou ensaiandocom uma plateia de fantasmas. Um teatro vazio é uma promessa . Nãoera isso que diziam? Um teatro vazio é uma promessa não cumprida .Dentro de poucas horas, tudo à sua volta seriam luzes e barulhos.Risos e aplausos. Pessoas sofisticadas reunidas em suas melhoresroupas. Hoje à noite, a promessa seria cumprida. E então, depois que

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caísse o pano e os lampiões fossem apagados, voltariam as trevas.Essa era a beleza daquilo. Aquilo era teatro.

Booth reparou em dois homens trabalhando nos camarotes sobreo palco, cerca de 3 metros acima de sua cabeça. Estavam retirando adivisória entre dois pequenos camarotes para fazer um único camarotemaior, sem dúvida para algum figurão. Ele reconheceu um dosempregados, Edmund Spangler, um velho conhecido, calejado erubicundo homem de teatro.

— E quem serão seus convidados de honra, Spangler? —perguntou Booth.

— O presidente e a primeira-dama, senhor, acompanhados dogeneral e da senhora Grant.

Booth saiu correndo do teatro sem dizer mais nada. E deixou lásua correspondência.

__________

Havia amigos a serem contatados, planos a serem traçados, armas aserem providenciadas — e pouquíssimo tempo para deixar tudopronto. Tão pouco tempo, mas que oportunidade! Ele foi diretamenteà pensão de Mary Surratt.

Mary, uma viúva típica, rechonchuda, de cabelos castanhos,havia sido amante de Booth e uma ardente simpatizante da causasulista. Ela o conhecera anos antes, quando ele fora convidado dataverna de sua família em Maryland. Embora fosse 14 anos maisvelha, apaixonara-se perdidamente pelo jovem ator, e os doiscomeçaram um caso. Depois da morte do marido, Mary vendera ataverna e se mudara para Washington, onde abrira uma modestapensão na H Street. Booth era um hóspede constante — mas nosúltimos anos parecia menos interessado nos “assuntos da carne”. Ossentimentos de Mary por ele, contudo, continuavam os mesmos. Demodo que quando Booth lhe pediu que fosse a cavalo até a antiga

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taverna e dissesse ao atual proprietário, John Lloyd, para “aprontar aspistolas”, ela sequer hesitou. Booth havia deixado algumas armas comLloyd semanas antes, para um frustrado plano de raptar Lincoln etrocá-lo por prisioneiros confederados. Agora ele usaria as mesmasarmas em uma abordagem mais direta.

O amor de Mary por Booth seria sua ruína. Por entregar seurecado, ela seria enforcada três meses depois.

Enquanto Mary passava o recado fatal, Booth foi rapidamentevisitar Lewis Powell e George Atzerodt em suas casas. Ambos haviamestado envolvidos no sequestro abortado e seriam necessários paralevar adiante o novo plano audacioso que ainda tomava forma namente de Booth. Atzerodt, um velho imigrante alemão de aparênciarude, que consertava carruagens, era um antigo conhecido de Booth. Obelo e jovial Powell, que ainda nem completara 22 anos, era um ex-soldado rebelde, membro do Serviço Secreto Confederado, e amigodos Surratt. Foi marcado um encontro para as 19 horas. Booth nãoexplicou o motivo.

Disse apenas que não podiam se atrasar e que estivessemdispostos a tudo.

III

Abe estava de bom humor.“As gargalhadas foram ouvidas em seu escritório a manhã

inteira”, escreveria Nicolay anos mais tarde. “A princípio achei queeram outra coisa — de tão acostumado que estava com a melancoliado presidente.” Hugh McCullough, secretário do Tesouro, lembrariaque “nunca tinha visto o senhor Lincoln tão contente”. Abe ficaraanimado com a reunião com seus caçadores e pelos telegramas quechegavam quase de hora em hora com notícias da guerra. Lee havia serendido a Ulysses Grant cinco dias antes no tribunal de Appomattox,

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na Virgínia, confirmando, efetivamente, o fim da guerra. JeffersonDavis e seu governo haviam desaparecido.

No intuito de parabenizar pessoalmente Ulysses Grant por suabrilhante vitória sobre Robert E. Lee, os Lincoln o haviam convidadoe à esposa para irem ao teatro naquela noite. Havia uma nova comédiano Ford, e algumas horas de risos descontraídos eram exatamente oque o presidente e a senhora Lincoln precisavam. Todavia, o generalrespeitosamente declinara do convite, pois ele e Julia deixariamWashington no trem daquela noite. Isso desencadeou uma enxurrada deconvites substitutos, todos prontamente (e respeitosamente) recusadospor um motivo ou outro. “Parecia que estavam sendo convidados parauma execução”, dizem que Mary teria comentado durante aquele dia.Pouco importava para Abe. Nenhuma rejeição — respeitosa ou não —poderia anuviar seu humor naquela tarde quente de Sexta-feira Santa.

Sinto-me estranhamente animado. [O porta voz da CasaBranca Schuyler] Colfax apareceu esta manhã para discutirmos areconstrução e, depois de me observar por 15 minutos, fez umapausa e perguntou se eu havia trocado meu café por uísque — talera minha disposição. Nem o Gabinete nem [o vice-presidenteAndrew] Johnson conseguiram perturbar meu humor no dia dehoje (ainda que ambos tenham tentado de todo modo). No entanto,não ouso falar alto sobre essa felicidade, pois Mary certamenteveria tal presunção como um mau agouro. Ela sempre foi assim— e eu também — desconfiada desses momentos de paz comoprelúdio de um desastre imprevisto. E, contudo, as árvores hojeflorescem lindamente, e não consigo deixar de reparar.

A entrada do diário tem a data de 14 de abril de 1865. Foi aúltima que Abe faria na vida.

No final da tarde, encerrado o expediente oficial, o presidente sepreparou para tomar uma carruagem com a esposa. Embora menosjovial que o marido, Mary também parecia estranhamente bem-

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disposta e convidou Abe para acompanhá-la em uma “brevecaminhada pelo jardim”. Quando o presidente saiu pelo Pórtico Norte,um soldado maneta (que estivera ali o dia inteiro à espera de umencontro como aquele) gritou:

— Eu daria minha outra mão se pudesse apertar a mão deAbraham Lincoln!

Abe se aproximou do rapaz e estendeu-lhe a mão.— Você pode apertá-la e não lhe custará nada em troca.

IV

Booth chegou ao quarto alugado de Lewis Powell às 19 horas emponto, acompanhado de um farmacêutico baixo, nervoso, de 22 anos,chamado David Herold, que conhecera por intermédio de MarySurratt. Atzerodt já estava lá. Booth não perdeu tempo.

Em poucas horas, os quatro fariam a União se ajoelhar.Precisamente às 22 horas, Lewis Powell deveria matar o

secretário de Estado William Seward, que naquele exato momentoestava de cama depois de cair de uma carruagem. Powell, que nãoconhecia bem a cidade, seria levado até a casa de Seward pelonervoso farmacêutico. Depois que o secretário estivesse morto, osdois conspiradores passariam a cavalo pela ponte Navy Yard echegariam a Maryland, onde se encontrariam com Booth. Ao mesmotempo, Atzerodt deveria atirar no vice-presidente Andrew Johnson emseu quarto em Kirkwood House, antes de se juntar ao grupo emMaryland. Quanto a Booth, ele voltaria ao teatro Ford. Ali, mataria opresidente com um pequeno revólver Derringer antes de cravar umafaca no coração do general Grant.

Com o governo da União sem comando, Jefferson Davis e seuGabinete teriam tempo de se reorganizar. Generais confederados comoJoseph E. Johnston, Meriwether Thompson e Stand Watie, cujas tropas

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estavam lutando bravamente com os malditos ianques até aquelemomento, conseguiriam se rearmar. De Maryland, Booth e seus trêsasseclas continuariam a descer para o sul, contando com a bondade deseus correligionários para comida e abrigo enquanto fossemperseguidos pela União. Conforme a notícia de seus feitos seespalhasse, um coro de vozes satisfeitas ecoaria do Texas àsCarolinas. A maré viraria. Seriam aclamados como heróis, e JohnWilkes Booth seria chamado de “o Salvador do Sul”. Atzerodtprotestou, insistindo em que havia concordado com um sequestro, nãocom um assassinato. Booth disparou um discurso inflamado. Não háregistro do que ele teria dito — apenas que foram palavras elevadas ebastante convincentes. Provavelmente continham referências aShakespeare. Certamente ensaiadas para a ocasião. Quaisquer quetenham sido as palavras de Booth, o fato é que elas funcionaram.Atzerodt relutou, mas concordou em seguir adiante. Mas o que oapreensivo alemão não sabia — o que nenhum dos conspiradoresjamais saberia, mesmo quando subiram os 13 degraus de suasexecuções — era a verdade por trás do ódio que o jovem ator nutriapor Lincoln.

__________

Aparentemente, não fazia sentido. John Wilkes Booth havia sidoconsiderado “o homem mais bonito da América”. O público lotava osteatros de todo o país para vê-lo em cena. As mulheres seacotovelavam para vê-lo de relance. Ele nascera em uma eminentefamília de teatro e fizera sua estreia nos palcos ainda adolescente.Diferentemente de seus famosos irmãos mais velhos Edwin e Junius,que eram atores clássicos, John era direto e instintivo — pulando pelopalco, gritando a plenos pulmões. “Cada palavra, mesmo que inócua,parece ser proferida com raiva”, escreveu um resenhista para oBrooklyn Daily Eagle, “no entanto, é impossível não ser cativado.

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Trata-se de um cavalheiro com uma qualidade quase etérea.”Uma noite, depois de uma apresentação de Macbeth no Teatro

Richmond, Booth foi visto levando seis moças para seu quarto napensão, onde permaneceu incomunicável por três dias. Ele era rico.Adorado. Fazia o que amava. John Wilkes Booth era para ser o homemmais feliz do mundo.

Só que ele não era um homem.

A vida é uma sombra ambulante, um pobre atorQue gesticula em cena uma hora ou duas,Depois não se ouve mais. Um contoDito por um idiota, cheio de som e fúria,Significando nada.1

Quando tinha 13 anos, Johnny Booth pagou a uma velha ciganapara ler sua mão. Ele sempre fora obcecado pelo destino,especialmente pelo seu próprio — em parte por conta de uma históriaque sua excêntrica mãe sempre contava. “Na noite em que vocênasceu”, dizia ela, “pedi a Deus um sinal do que esperava o meu filhorecém-nascido. E Deus respondeu.” Pelo resto da vida, Mary AnnBooth juraria que labaredas subitamente brotaram de dentro da lareirada casa e formaram a palavra “país”. Johnny passaria inúmeras horasrefletindo sobre o significado dessa palavra. Ele sabia que algumacoisa especial teria pela frente. Ele era capaz de sentir.

“Oh… mão ruim”, disse a cigana prontamente, recuandohorrorizada. “Tristeza e problemas… tristeza e problemas, onde querque eu olhe.” Booth fora até a cigana no intuito de vislumbrar suafutura grandeza. Mas o que obteve foram previsões de ruína. “Vocêmorrerá jovem”, disse a cigana, “mas não antes de amealhar umamultidão enfurecida de inimigos.” Booth protestou. Ela estava errada!Ela tinha de estar errada! A cigana balançou a cabeça. Nada seriacapaz de evitar aquilo…

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John Wilkes Booth “não terminaria bem”.Sete anos mais tarde, a primeira parte da soturna previsão se

tornaria realidade.

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Das seis moças que Booth levou para sua pensão em Richmondnaquela noite, apenas uma estava ali pela manhã. Ele colocara asoutras porta afora antes do nascer do sol, ainda com os cabelosdesgrenhados e os vestidos embolados nas mãos. Depois que a nuvemde uísque passara, ele percebera que elas não passavam das mesmasoportunistas, tolas e tagarelas que o cumprimentavam na porta dosteatros de qualquer cidade. Ele não sabia o que fazer com elas além doque já havia feito.

A garota na cama com ele, contudo, era um caso inteiramentediferente. Ela era uma beldade miúda, de cabelos castanhos, com umapele de marfim no esplendor dos 20 e poucos anos, mas se portavacom a segurança tranquila de uma mulher muito mais velha. Tinha algode dissimulada e, embora falasse muito pouco, quando o fazia, eracom humor e inteligência. Fizeram amor durante horas sem parar.Nenhuma mulher — nem Mary Surratt ou outra de suas incontáveisconquistas de porta de teatro — já fizera Booth sentir-se daquele jeito.Ele se sentia atraído por ela como só se sentira atraído antes peloteatro.

Todas as mulheres antes dela foram uma promessa nãocumprida.

Nos momentos de descanso, Booth preencheu os silêncios comhistórias de sua juventude: a palavra “país” no fogo… a cigana… ainevitável sensação de que ele estava destinado à grandeza — algoque a fama e o dinheiro não podiam oferecer. A garota de peleebúrnea colou os lábios no ouvido dele e disse que havia um modo deele atingir a grandeza. Talvez ele tenha acreditado nela; talvez ele

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estivesse apenas brincando com sua jovem amante — mas o fato é que,a certa altura da segunda noite, John Wilkes Booth bebeu-lheavidamente o sangue.

Durante os dois dias seguintes, ele passou muito mal — e pelaúltima vez na vida. Encharcou os lençóis de suor; sofreu horríveisvisões e teve convulsões tão violentas que as pernas da cama bateramem solavancos contra o assoalho.

Três dias depois de ter sido visto em público pela última vez,Booth despertou. Levantou-se e ficou parado no meio do quarto —sozinho. A garota de pele de marfim tinha sumido. Ele jamais saberiaseu nome nem a veria de novo. Pouco importava. Nunca se sentira tãovivo como naquele momento; nunca vira ou escutara com tamanhaclareza.

Ela dissera a verdade.Booth ansiara pela imortalidade desde criança. Agora ela era

sua. Sempre soubera que havia um destino especial esperando por ele.Ali estava. Ele seria o maior ator de sua geração… de todas asgerações. Seu nome seria conhecido de uma forma que Edwin e Juniusnão podiam sequer imaginar. Ele abrilhantaria os teatros do mundointeiro; veria impérios reduzidos a pó; saberia cada palavra deShakespeare de cor. Era o senhor do tempo e do espaço. Booth nãopôde conter um sorriso quando um outro pensamento lhe passou pelacabeça. A velha cigana tinha razão. Ele morrera jovem, como eladisse que seria. E agora viveria para sempre.

Sou um vampiro, pensou. Graças a Deus.

__________

A imortalidade, contudo, a princípio mostrou-se, de certa forma,frustrante. Como muitos vampiros, Booth precisou aprender as duraslições da morte sozinho. Não havia mentor para explicar os milharesde sussurros que agora enchiam sua cabeça quando encarava uma

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plateia. Não havia qualquer lojista a sugerir-lhe os melhores óculosescuros ou o melhor modo de remover o sangue da manga de seucasaco. Quando os primeiros desejos vieram, ricocheteando em ondasem sua mente, ele perambulou pelas ruas escuras de Richmond durantehoras, seguindo bêbados cambaleantes por becos escuros, ainda semter a coragem de atacar.

Quando o desejo chegou a um ponto tal que ele estava quaseficando louco, Booth juntou coragem — mas não foi em Richmond.Vinte dias depois de haver sido feito imortal, ele montou em seucavalo depois de escurecer e partiu para uma fazenda próxima aCharles City. Um rico produtor de tabaco chamado Harrison haviaassistido ao seu Hamlet e convidara o ator para jantar na semanaseguinte. Booth achou melhor aceitar a oferta um pouco antes.

Amarrou o cavalo a uma árvore de um pomar a uns setenta metrosda senzala — que compreendia dez abrigos uniformes e compactos detijolos. As chaminés estavam sem fumaça. As minúsculas janelas, àsescuras. Booth parou na mais próxima (por uma questão deconveniência) e espiou por uma janela. Não havia nenhum fogo acesolá dentro, e a lua no céu era quase invisível — e, no entanto, eleenxergava como se tudo ali estivesse iluminado pelos lampiões a gásque o cegavam toda noite.

Uma dúzia de negros, de vários gêneros e idades, dormiamprofundamente, alguns em camas, outros nos pisadores. Perto dele,logo abaixo da janela, uma garotinha de 7 ou 8 anos dormia de bruçoscom uma puída camisola branca.

Minutos depois, Booth estava no pomar, soluçando, com o corposem vida da menina em seus braços, o sangue escorrendo de suaspresas pelo queixo. Ele se ajoelhou e apertou-a com força contra opeito.

Ele era o demônio.Booth sentiu suas presas furando a forte musculatura da garganta

da criança. E começou a beber novamente.

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V

Depois de um dia cheio de recusas respeitosas, os Lincoln finalmenteencontraram um casal disposto a acompanhá-los ao teatro. O majorRathbone e sua noiva, Clara Harris, filha do senador de Nova York IraHarris, foram no banco da frente, olhando para Abe e Mary, enquantoa carruagem presidencial atravessava uma leve cerração. Mary podiasentir o ar fresco em seu vestido preto de seda com chapéucombinando. Abe estava bem aquecido em seu sobretudo de lã preto esuas luvas brancas. O grupo chegou ao Teatro Ford pouco antes das20h30, momento em que a peça, Nosso primo americano, já haviacomeçado. Abe, que detestava se atrasar, pediu desculpas na portariae cumprimentou seu aliviado guarda-costas, John F. Parker.

Parker, um policial de Washington, chegara para seu turno naCasa Branca com três horas de atraso sem dar nenhuma explicação.William H. Crook, guarda-costas diurno de Lincoln, mandou-o irritadodireto para o Ford e disse que esperasse o presidente. Futuramente, opaís ficaria sabendo que Parker era um notório beberrão que já foraadvertido por pegar no sono em serviço mais de uma vez.

Naquela noite, ele seria o único responsável pela proteção davida de Abraham Lincoln.

Os Lincoln e seus convidados foram conduzidos até uma escadaestreita que dava no camarote duplo, onde quatro assentos haviam sidoarrumados. Na extrema esquerda havia uma cadeira de balanço denogueira para o presidente. Mary se sentou ao lado dele, seguida porClara e o major na outra ponta. Assim que os quatro tomaram assento,a peça foi interrompida e a chegada do presidente, anunciada. Abe selevantou, um tanto constrangido, a orquestra atacou “Hail to theChief”, e a plateia de mais de mil pessoas ficou de pé e aplaudiueducadamente. Quando a peça continuou, John Parker sentou-se dolado de fora da porta do camarote. Ali, ele poderia ver caso alguém seaproximasse do presidente.

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Nos bastidores, ninguém prestou muita atenção a John WilkesBooth quando ele chegou uma hora depois do grupo de Abe. Elefrequentava o Ford, tinha passe livre para entrar e sair quandoquisesse e costumava assistir aos espetáculos das coxias. Mas Boothnão tinha nenhum interesse naquela peça; nem tempo para jogarconversa fora com as impressionáveis jovens atrizes. Valendo-se deseu conhecimento da arquitetura do teatro, ele se esgueirou por umlabirinto de corredores e pequenos desvãos até chegar à escada quedava nos camarotes da direita. Ali, ficou chocado ao descobrir quenão havia nenhum guarda. Booth esperava haver pelo menos um e tinhaplanejado usar sua fama para ter acesso ao presidente. Um grandeator vindo cumprimentar um grande homem. Trazia inclusive umcartão de visitas no bolso com essa finalidade.

Ali havia apenas uma cadeira vazia.

John Parker ficara decepcionado com o fato de não conseguir enxergaro palco dali. Inacreditavelmente, durante o segundo ato, elesimplesmente deixara seu posto para encontrar outro assento livre. Noinício do terceiro ato, Parker saiu de vez do teatro e foi beber no StarSaloon ao lado. Então, tudo o que restou entre Booth e Lincoln foi umaescada estreita.

Lá em cima, Mary Lincoln pegou a mão do marido. Olhou derelance para Clara Harris, cujas mãos estavam pousadas no colo, esussurrou no ouvido de Abe:

— O que a senhorita Harris vai pensar de mim pendurada emvocê desse jeito?

— Ela não vai pensar nada.A maioria dos historiadores concorda que essas seriam as

últimas palavras de Abraham Lincoln.Booth subiu a escada calmamente e parou do lado de fora do

camarote, esperando uma frase que ele sabia que arrancaria uma

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gargalhada enorme.Uma risada alta o bastante para abafar o som do tiro.No palco, Harry Hawk estava sozinho, fazendo um divertido

monólogo para a plateia. Booth aguentou firme, esperando, enquanto avoz de Hawk ribombava pelo teatro. Ele avançou, mirou na nuca deLincoln e cuidadosamente… cuidadosamente engatilhou. Se Abe fossedez anos mais jovem, ele poderia ter ouvido o clique — poderia terreagido com a velocidade e a força que lhe haviam salvado a vidatantas vezes antes. Mas ele estava velho. Cansado. Só sentia a mão deMary sobre a sua. Tudo o que ouviu foi a voz forte de Harry Hawk:“Você não tem o traquejo da boa sociedade, não? Bem, eu tenho obastante para transformá-la completamente, minha menina; suamanipuladora de velhos, sua chave de cadeia!”

O público veio abaixo. Booth atirou.A bala penetrou o crânio de Abe, e ele tombou para a frente em

sua cadeira de balanço, inconsciente. Os gritos de Mary juntaram-se àensurdecedora gargalhada, enquanto Booth sacava uma faca decaçador e se voltava para o próximo alvo — mas em vez do generalGrant, ele encontrou o jovem major Rathbone, que saltou da cadeira efoi para cima dele.

FIG. 6E. — JOHN WILKES BOOTH, DE OLHOS NEGROS, DISPARA O TIRO FATAL, ENQUANTO O MAJOR HENRY RATHBONE

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REAGE.

Booth cravou a faca no bíceps de Rathbone e se aproximou dabalaustrada. Os gritos de Clara juntaram-se aos de Mary, enquanto asgargalhadas davam lugar ao burburinho e as pessoas viravam a cabeçapara o alvoroço. Rathbone agarrou o casaco de Booth com o braçobom, mas não conseguiu segurar. Booth saltou por sobre a balaustrada.No entanto, ao fazê-lo, uma de suas esporas de montaria enganchou nabandeira do Tesouro que Edmund Spangler havia colocado antes nocamarote. Booth caiu estatelado no palco, quebrando a pernaesquerda, que se dobrou grotescamente na altura do joelho.

Embora ferido, o ator nato não resistiu a fazer um floreio. Pôs-sede pé, encarou a plateia, que começara a entrar em pânico, e berrou:“Sic semper tyrannis!” O lema do estado da Virgínia. Sempre assimcom os tiranos! Com isso, John Wilkes Booth saiu de cena pela últimavez.

Assim como o discurso para seus colegas conspiradores, aquelefoi um momento que ele, provavelmente, havia ensaiado antes.

VI

Praticamente no mesmo instante, Lewis Powell saiu correndo da casado secretário Seward, gritando:

— Estou louco! Estou louco!Embora ele ainda não soubesse, sua missão também havia

fracassado.Herold, o nervoso farmacêutico, fizera sua parte. Levara Powell

até a mansão de Seward. Então ficou observando a distância, enquantoPowell bateu à porta da frente pouco depois das 10 horas. Quando omordomo atendeu, Powell disse sua frase cuidadosamente ensaiada:

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— Boa noite. Trouxe o remédio do secretário. Devo ministrá-lopessoalmente e sozinho.

Momentos depois, ele já estava no segundo andar da casa, apoucos metros de onde seu alvo doente dormia. Mas antes queconseguisse entrar sozinho no quarto de Seward, o filho do secretário,Frederick, apareceu.

— Qual o motivo da sua visita?Powell repetiu sua fala cuidadosamente ensaiada, palavra por

palavra. Mas o jovem Seward não se convenceu. Faltava algumacoisa. Ele disse que seu pai estava dormindo, que ele voltasse maistarde.

Lewis Powell não teve escolha. Sacou seu revólver, apontou paraa cabeça de Frederick e puxou o gatilho. Nada. A arma falhou.

Estou louco! Estou louco!Não havia tempo. Powell bateu com a arma na cabeça de

Frederick, derrubando-o no chão e fazendo sair sangue pelo nariz epelas orelhas do rapaz. Powell correu para dentro do quarto, ondeencontrou a filha do secretário, Fanny Seward, aos berros. Ignorando-a por um momento, ele sacou uma faca e enfiou-a no rosto e nopescoço do velho várias vezes, até que ele caiu no chão — morto.

Ou pelo menos foi o que Powell pensou. Seward vinha usandoum colar de metal desde seu acidente de carruagem. Apesar dos cortesprofundos no rosto, a lâmina não logrou encontrar sua jugular.

Powell esfaqueou Fanny Seward nas mãos e nos braços ao passaràs pressas por ela em direção ao corredor. Descendo a escada, outrofilho do secretário, Augustus, e um convidado que ali passava a noite,o sargento Robinson, tentaram detê-lo. Ambos foram esfaqueados porisso, assim como Emerick Hansell, que trazia um telegrama e por azarchegou à porta da frente justo no instante em que Powell saía correndoesbaforido.

Incrivelmente, nenhuma das vítimas morreu.Do lado de fora, o nervoso farmacêutico havia sumido. O som

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dos gritos de Fanny Seward o haviam assustado. Powell, que nãoconhecia a região, foi deixado à própria sorte. Atirou a facaensanguentada na sarjeta, desatrelou o cavalo e partiu a galope noiteadentro.

Por mais desastroso que tivesse sido o ataque a Seward, Powellpôde se consolar ao saber que havia se saído muito melhor do queGeorge Atzerodt. O relutante alemão perdera a coragem, embriagara-se no bar da pensão do vice-presidente e ficara vagando pelas ruas deWashington até o sol nascer.

VII

Charles Leale, de 23 anos, ajudou seus colegas soldados a colocar ocorpo do presidente em uma cama do primeiro andar da pensãoPetersen — que ficava do outro lado da rua em frente ao Teatro Ford.Foram obrigados a deitá-lo na diagonal, pois ele era alto demais.Leale, um cirurgião do exército que estava na plateia, fora o primeiroa acudir o presidente. Ele passara por entre a multidão, subira aestreita escada, entrara no camarote e encontrara Lincoln tombado emsua cadeira. Ao erguer o presidente e examiná-lo, não havia pulso nemrespiração. Rapidamente, o jovem médico tateara a cabeça de Lincolnaté encontrar um furo logo atrás da orelha esquerda. Depois deremovido um coágulo da ferida, Lincoln voltou a respirar.

Leale era jovem, mas não era ingênuo. Já vira muitos dessesferimentos em campo para conhecer o desfecho. Minutos após opresidente ser baleado, ele emitiu sua opinião médica, sombria eprecisa:

— A ferida é fatal. A recuperação é impossível.Mary não suportou ficar no mesmo quarto que seu marido à beira

da morte. Ela ficou no salão da pensão, chorando a noite inteira.Robert e Tad chegaram depois da meia-noite e ficaram à beira da

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cama de Abe, como Abe fizera no leito de morte de sua mãe quase 50anos antes. Estavam com eles Gideon Welles, Edwin Stanton e umainterminável procissão dos melhores médicos de Washington; todoshaviam ido oferecer seus conselhos. Mas não havia nada que pudesseser feito. O doutor Robert King Stone, médico da família Lincoln,examinou o presidente durante a noite e concluiu que era um caso “semesperança”.

Era apenas uma questão de tempo.Ao raiar do dia, uma enorme multidão se juntara lá fora. A

respiração do presidente fora diminuindo cada vez mais ao longo danoite, seu coração batendo cada vez menos. Ele estava ficando frio.Muitos médicos salientaram que um ferimento daquele teria matado amaioria dos homens em duas horas; até menos. Abe resistiu por novehoras. Mas Abe Lincoln sempre fora diferente. Abe Lincoln sempredesejara viver.

A criança amada de uma mãe zelosa;Essa mãe cujo afeto ao filho provou;O marido que a mãe e a criança abençoaram,Todos, todos eles, dormindo profundamente.2

Abraham Lincoln morreu às 7h22, do dia 15 de abril de 1865.Os homens à sua cabeceira baixaram a cabeça e rezaram. Quando

terminaram, Edwin Stanton declarou:— Agora ele pertence à eternidade.Com isso, ele voltou aos telegramas. John Wilkes Booth estava

foragido, e Stanton pretendia capturá-lo.

VIII

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Booth e Herold conseguiram ludibriar o exército da União durante 11dias, fugindo primeiro para Maryland, depois para a Virgínia. Ficaramdias inteiros escondidos em pântanos; dormiram sobre a terra fria.Booth esperava ser considerado um herói pelas pessoas, o Salvadordo Sul. Em vez disso, fora deixado ao relento.

— Você foi longe demais — disseram. — Os ianques vãoincendiar todos os celeiros de Baltimore a Birmingham atrás de você.

A segunda previsão da cigana se tornara realidade. Boothamealhara “uma multidão de inimigos”.

No dia 26 de abril, Booth acordou com gritos e entendeu tudo nahora.

Maldito traidor filho de uma cadela…Richard Garrett havia sido, a princípio, um dos poucos homens

da Virgínia que não lhes dera as costas. Dera-lhes comida e umceleiro de secagem de tabaco onde dormir. A julgar pelos soldados daUnião do lado de fora, ele também os entregara pelo dinheiro darecompensa.

Herold não foi encontrado. O covarde se entregou . Nãoimportava. Ele seria mais rápido sozinho, de todo modo. A noite caíra,e a noite era o elemento natural da espécie de Booth. Eles queesperem, pensou. Eles que esperem para ver quem eu sou. Sua pernajá estava curada, e, embora ele estivesse cansado e com fome, elesnão seriam páreo para ele. Não no escuro.

— Entregue-se, Booth! É o último aviso!Booth continuou escondido. Cumprindo a palavra dada, os

soldados da União não deram mais nenhum aviso. Simplesmenteincendiaram o celeiro. As tábuas pegaram fogo; tochas foram jogadasno telhado. O celeiro, velho e seco, foi engolido pelas chamas emquestão de segundos. As labaredas ofuscantes tornaram os cantos doceleiro mais escuros. Booth colocou os óculos escuros quando asvigas antigas começaram a rachar sobre sua cabeça e dedos de fumaçacinzenta subiram pelas paredes. Ele ficou de pé parado com as mãos

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no fundo dos bolsos do casaco — um velho costume de ator. Queriasua melhor aparência para o que viria a seguir. Ele queria que osmalditos ianques vissem exatamente quem estava diante deles…

Tem alguém aqui comigo… alguém que me quer mal…Booth ficou andando em círculos, pronto para um ataque que

podia vir de qualquer direção, a qualquer momento. Suas presasdesceram; suas pupilas aumentaram até que seus olhos ficaram comoduas bolas de gude negras. Ele estava pronto para qualquer coisa…

Mas não havia nada. Nada além de fumaça, e labaredas, esombras.

Que brincadeira é essa? Por que não consigo perceber…— Porque você está fraco…Booth se virou na direção da voz do homem.Henry Sturges surgiu do canto mais escuro do celeiro.— … e você pensa demais.De alguma forma, Booth compreendeu tudo. Talvez aquele

desconhecido quisesse que ele compreendesse — e o obrigasse aentender.

— Você me destruiria por causa de um mortal? — Booth recuavaconforme Henry avançava.

— Por causa de um mortal?Henry não disse mais nada. Haveria um momento e um local para

as palavras. Suas presas desceram; seus olhos se transformaram.Estes são os últimos segundos da minha vida.Booth não conseguiu conter um sorriso.A velha cigana estava certa.John Wilkes Booth estava prestes a terminar mal.

1 Macbeth, ato V, cena 5.

2 Trecho do poema favorito de Abe, do escocês William Knox.

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CATORZE

LarEu tenho um sonho de que um dia este país se levantará e tornarárealidade o verdadeiro significado de seu credo: “Consideramosessas verdades como evidentes por si mesmas: que todos oshomens nascem iguais.”

— Doutor Martin Luther King Jr.28 de agosto de 1963

I

Abraham Lincoln teve um sonho.Ele via sua vítima se movendo entre os homens lá embaixo; via

como circulava entre eles com confiança. Escolhendo. Olhando paraeles como um deus. Zombando deles; tripudiando de seu desamparo.Mas você, pensou ele, você é o desamparado hoje à noite.

Só mais um momento. Só mais um momento e já iria começar.Uma série de movimentos ensaiados. Uma apresentação aprimorada acada noite. Aperfeiçoada. Só mais um instante, e então a força, e acomoção e a velocidade. Ele olharia para aqueles olhos negros e veriaa vida os deixando para sempre. E então estaria tudo acabado. Porhoje.

Ele tinha novamente 25 anos e era forte. Ele era muito forte.Todas as tristezas de sua vida — todas as dúvidas, e as mortes e asfrustrações — tudo havia acontecido por causa disso. Eram os fogosque ardiam em seu peito. Eram sua força. Eram ela. Havia uma oração

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que lhe voltava à lembrança nesses momentos. Antes do grito. Antesdas súplicas e do sangue. Ele não era de muito rezar, mas gostavadessa:

Se meus inimigos forem velozes, dê-me a velocidade. Seforem fortes, Senhor, dê-me a força para derrotá-los. Pois sempreestive do lado da virtude. Do lado da justiça. Do lado da luz.

A lâmina de seu machado fora amolada e afiada muitas vezes. Seeu o atirar com força suficiente, farei o ar sangrar. Com o passardos anos, o cabo adquirira o perfeito encaixe para seus dedosimensos. Cada sulco, um bom amigo. Era difícil saber onde eleterminava e onde começava o machado. Era impossível saberquanto…

Agora.Ele saltou do telhado do celeiro e pairou sobre sua vítima. A

criatura olhou para cima. Seus olhos ficaram inteiramente negros. Suaspresas desceram, ocas e famintas. Ele atirou o machado com toda aforça e sentiu o cabo saindo de sua mão, com o corpo ainda fora dochão. Ao pousar, ele viu o rosto com o canto do olho. O rosto de umhomem indefeso, apavorado e confuso. Ainda sem saber que sua vidaestava sendo salva. Não estou fazendo isso por você, pensou ele.Faço isso por ela. Ele observou seu velho amigo girar no ar…madeira metal madeira metal madeira metal. Ele sabia. No instanteem que o arremessara, ele sabia que a lâmina acertaria o alvo.Conhecia o som que faria ao se cravar no crânio daquele falso deus,rachando aquele sorriso confiante ao meio… atingindo-o até océrebro… arrancando-lhe a vida eterna. Ele sabia, pois este era o seupropósito.

Sempre fora este o seu propósito…

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Abe acordou em seu escritório na Casa Branca.Ele se vestiu e sentou-se diante da pequena escrivaninha junto a

uma das janelas que davam para o sul. Era uma perfeita manhã do finalde agosto.

É bom estar em Washington. É estranho escrever essaspalavras, mas afinal — creio que fui pego pela agitação do dia. Odia promete ser histórico. Só rezo para que seja lembrado pelomotivo certo e não pela violência que alguns previram (e pelaqual outros anseiam). Ainda não são 8 horas, mas já posso ver amultidão marchando, passando pela praça da Elipse em direçãoao Monumento. Quantas pessoas virão? Quem falará, e como seusdiscursos serão recebidos? Saberemos dentro de poucas horas.Só queria que tivessem escolhido um local diferente. Admito quenão é pouco o incômodo que sinto por estar perto daquela coisa.Fiquei surpreso, contudo, por não me sentir mal de dormir emmeu escritório. É apropriado, imagino. Pois foi aqui, nestamesma sala, que assinei meu nome em um dia como hoje. Precisome lembrar de escrever agradecendo ao presidente Kennedy porhaver me recebido como seu convidado.

II

Na manhã de 21 de abril de 1865, o trem com o corpo de AbrahamLincoln saiu de Washington e começou sua viagem para casa emSpringfield.

Milhares de pessoas acompanhavam junto ao trilho quando o“Lincoln Special” saiu da estação da ferrovia Baltimore & Ohio às8h05 da manhã, com os nove vagões enfeitados de guirlandas negras eum retrato emoldurado do falecido presidente sobre limpa-trilhos dalocomotiva a vapor. Homens pesarosos com os chapéus nas mãos;

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mulheres cabisbaixas. Soldados, alguns que haviam saído de seusleitos no St. Elizabeth Hospital, para ver o trem partindo, eretos,fizeram continência a seu comandante em chefe que morrera.

Dois dos filhos de Abe estavam a bordo com ele, Robert, entãocapitão do exército aos 21, e Willie, cujo caixão fora removido de suacripta temporária e colocado ao lado do pai. Tad continuou emWashington com Mary, que estava muito abalada para sair da CasaBranca. Durante 13 dias e quase 3 mil quilômetros, o trem serpenteoupelo Norte, parando em determinadas cidades. Em Filadélfia, 300 milpessoas se acotovelaram para ver o corpo do presidente assassinado.Em Nova York, 500 mil fizeram fila para olhar para Abe, e TheodoreRoosevelt, aos 6 anos, assistiu ao cortejo passar. Em Chicago,centenas de milhares se reuniram ao redor de uma cabine externa devisitação entalhada com as palavras “Fiel ao Direito — Mártir daJustiça”.

No total, mais de 12 milhões de pessoas postaram-se junto àferrovia para ver o trem-funeral passar, e mais de um milhãoesperaram em fila para ver o caixão aberto do presidente.

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Na quinta-feira, 4 de maio de 1865, um mar de sombrinhas pretasprotegia do sol escaldante os milhares de presentes ao enterro docaixão de Abe, lacrado para sempre, conduzido ao Cemitério OakRidge por uma carruagem puxada por seis cavalos brancos.

Enquanto o bispo Matthew Simpson fazia um comovente discursoao “Salvador da União”, um enlutado em particular observava por trásde seus óculos escuros, com uma sombrinha preta em suas mãosenluvadas. Embora seus olhos fossem incapazes de chorar, ele sentiu aperda de Abraham Lincoln mais profundamente do que qualquerpessoa em Springfield naquele dia.

Henry permaneceu junto aos portões fechados do túmulo (onde os

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esquifes de Abe e de Willie ficariam à espera da construção de umtúmulo definitivo) até muito depois que o sol se pôs e a multidão sedispersou, guardando o corpo do homem que fora seu amigo porquarenta anos. Guardando o corpo do homem que salvara o país daescravização e fizera com que as trevas voltassem para a sombra. Eleficou ali boa parte da noite, às vezes em silenciosa contemplação, àsvezes lendo os pedacinhos de papel que as pessoas deixavam com asflores aos pés dos portões de ferro. Henry achou um delesespecialmente comovente. Dizia simplesmente:

“Sou um inimigo dos tiranos e amigo do meu país.”1

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Em 1871, Tad Lincoln — então morando com a mãe em Chicago —contraiu tuberculose. Morreu no dia 15 de julho, aos 18 anos. Seucorpo foi levado a Springfield e colocado no túmulo do pai ao ladodos irmãos Willie e Eddy. Mais uma vez, seria Robert quemacompanharia o trem-funeral, pois Mary estava abalada demais paracomparecer.

De todos os filhos de Abe, apenas Robert sobreviveu para ver onovo século. Ele se casaria, teria três filhos e mais tarde serviria adois presidentes, James Garfield e Chester A. Arthur, como secretárioda guerra. Ele morreu pacificamente em sua propriedade em Vermont,em 1926, aos 82 anos.

A morte de Tad foi o golpe final e irreversível na saúde mentalde Mary Lincoln. Nos anos seguintes, ela se tornou cada vez maisinstável, muitas vezes jurando ter visto o falecido marido olhando paraela em suas caminhadas noturnas. Ela sofria de paranoia, insistindoque desconhecidos queriam envenená-la ou roubar seu dinheiro. Umavez costurou 56 mil dólares em títulos do governo no forro de suasanáguas por segurança. Depois que Mary tentou suicídio, Robert nãoteve outra escolha senão internar a mãe em um hospital psiquiátrico.

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Quando teve alta, Mary voltou a Springfield, onde morreu em 1882,aos 63 anos. Foi sepultada ao lado dos três jovens filhos pelos quaischorara em vida.

Houve diversas tentativas de roubar o corpo de Abraham Lincolndepois da Guerra Civil — até que, a pedido de Robert Lincoln, atumba foi coberta com cimento em 1901, e o caixão nunca mais foivisto. Nenhum dos candidatos a ladrão de sepultura teve muitosucesso. Na verdade, nenhum deles conseguiu sequer espiar o pesadocaixão com a tampa aberta.

Se algum deles tivesse conseguido, ficaria chocado com o queencontraria.

III

No dia 28 de agosto de 1963, Henry Sturges estava diante do LincolnMemorial, roupas e cabelo da época, um guarda-chuva pretoprotegendo-lhe a pele, óculos escuros cobrindo-lhe os olhos. Estavaacompanhado de um amigo bem alto, também de óculos escuros,cabelo castanho até os ombros e um chapéu de aba mole. Uma grossabarba disfarçava seu rosto anguloso, o mesmo que o encarava do tronode mármore (o que o deixava muito incomodado). Ambos escutavamcom atenção, orgulhosos, um jovem pastor negro que falava a mais de250 mil pessoas.

— Cem anos atrás — começou o pastor —, um grandeamericano, em cuja sombra simbólica estamos agora, assinou aProclamação de Emancipação. Esse importante decreto foi como a luzde um farol de esperança para milhões de negros escravoscauterizados no fogo da constrangedora injustiça. Foi como o raiar deum novo dia de alegria que terminou a longa noite do cativeiro. Mascem anos depois, nós devemos encarar o fato de que o negro ainda nãoé livre.

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Abe e Henry estavam ali para terminar o trabalho começado umséculo antes. Haviam estado ali durante a Reconstrução, expulsando osvampiros que continuaram a aterrorizar os escravos emancipados…

— Eu tenho o sonho de que um dia, nas colinas vermelhas daGeorgia, os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-senhores deescravos sejam capazes de, juntos, se sentar à mesa da irmandade.

Eles haviam estado no Mississippi, matando demôniosencapuzados à luz de suas próprias cruzes em chamas…

— Agora chegou a hora de fazer da justiça uma realidade paratodos os filhos de Deus.

E também haviam estado na Europa, onde milhões deram suasvidas derrotando o segundo levante vampiro entre 1939 e 1945.

Mas ainda havia muito trabalho pela frente.— Livres enfim! Livres enfim! Graças a Deus, Todo-poderoso,

finalmente somos livres!A multidão aplaudiu e gritou, e o pastor voltou a sentar. Era um

dia perfeito do fim do verão. Um dia definitivo para a luta do homempela liberdade. Não muito diferente do dia em que Abraham Lincolnfora sepultado, noventa anos antes.

O dia em que Henry fizera uma escolha… …porque alguns homens são muito interessantes para morrer.

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1 Júlio César, ato V, cena 4.

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a Ben Greenberg, Jamie Raab, e a todos osmeus novos amigos da Grand Central por entenderem e apreciarem aideia de forma brilhante; a Claudia Ballard por fazer as coisasacontecerem; a Alicia Gordon por fazer ainda mais coisasacontecerem, e a todos da William Morris Endeavor; aomaravilhosamente incrível Gregg Gellman; a Internet (sem a qual estelivro não teria sido possível), particularmente ao Google, à Wikipediae ao Lincoln Log — fontes de pesquisa inestimáveis; ao Starbucks —você me completa; a Stephanie Isaacson por seu imenso talento com oPhotoshop; a David e todos da MTV por lidar com minha mania de darum passo maior do que a perna e ao meu destemido assistente depesquisa, Sam.

Agradecimentos especiais a Erin e Josh por me darem férias por quasetodo o ano de 2009.

E, por fim, a Abe — por ter vivido uma vida que quase não precisavade vampiros para torná-la incrível — e a Henry Sturges — onde querque esteja…

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Sobre o autor

Seth Grahame-Smith mora em Los Angeles e é autor de Orgulho epreconceito e zumbis, best-seller do The New York Times, tambémpublicado pela Intrínseca.

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Conheça os livros do autor

Orgulho e Preconceito e Zumbis

Abraham Lincoln: caçador de vampiros