abordagem intercultural no ensino da libras … · decreto nº 5626, de 22 de dezembro de 2005...

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INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 6, Edição número 25, Abril/Setembro 2017 - p 1 ABORDAGEM INTERCULTURAL NO ENSINO DA LIBRAS PARA ESTUDANTES OUVINTES DE UMA ESCOLA INCLUSIVA Michelle Nave Valadão* Sirlara Donato Assunção Wandenkolk Alves ** RESUMO: O reconhecimento legal da Língua Brasileira Sinais - Libras como uma língua própria das comunidades surdas brasileiras ressaltou a necessidade de seu uso e divulgação nos diferentes espaços da sociedade, como língua fundamental para o estabelecimento das interações comunicativas entre surdos e ouvintes. Nesse entendimento, o uso da Libras torna-se ainda mais premente nos contextos educacionais inclusivos e, em decorrência disso, necessita de discussões que considerem a pluralidade linguística e cultural dos estudantes surdos presentes nesses contextos. Este artigo tem por objetivo descrever e analisar ações de ensino e aprendizagem da Libras a partir de um enfoque intercultural. Metodologicamente, este estudo desenvolveu-se por meio de observações participantes em um curso de Libras voltado para estudantes ouvintes de uma escola inclusiva do município de Viçosa - MG. Os resultados apontaram que tal enfoque despertou o interesse dos aprendizes pela língua, pois eles compreenderam o seu valor linguístico e a sua importância para os surdos da comunidade local. A proposta é incipiente e pode contribuir para fortalecer a educação inclusiva dos surdos, bem como para ampliar o uso e a divulgação da Libras na sociedade. ABSTRACT: The legal recognition of the Brazilian Sign Language (Libras Língua Brasileira de Sinais) as one belonging to Brazilian deaf communities has pointed out the need of its use and diffusion in different spaces in society as a fundamental language through which deaf and hearing people can stablish communicative interactions. Based on this understanding, the use of Libras becomes even more urgent in inclusive educational contexts. Therefore, discussions considering the linguistic and cultural plurality of deaf learners on those contexts are needed. The aim of this paper was to describe and analyze Libras teaching and learning practices, through an intercultural approach. This study was conducted, via participant observation, within a group of hearing learners of a Libras course in an inclusive school in the municipality of Viçosa, Minas Gerais. Our results revealed that the such an approach has risen learners’ interest in the language, once they understood its linguistic value and also its importance to deaf persons belonging to the local community. This proposal is incipient, but can contribute to strengthening inclusive education for the deaf, as well as broadening the use and promotion of Libras in our society. PALAVRAS-CHAVE: Libras; Ensino e aprendizagem de línguas; Pluralidade linguística e cultural. KEYWORDS: Libras; language teaching and learning; linguistic and cultural plurality

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INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 6, Edição número 25, Abril/Setembro 2017 - p

1

ABORDAGEM INTERCULTURAL NO ENSINO DA LIBRAS PARA

ESTUDANTES OUVINTES DE UMA ESCOLA INCLUSIVA

Michelle Nave Valadão*

Sirlara Donato Assunção Wandenkolk Alves**

RESUMO: O reconhecimento legal da Língua Brasileira Sinais - Libras como uma língua própria das

comunidades surdas brasileiras ressaltou a necessidade de seu uso e divulgação nos diferentes espaços

da sociedade, como língua fundamental para o estabelecimento das interações comunicativas entre

surdos e ouvintes. Nesse entendimento, o uso da Libras torna-se ainda mais premente nos contextos

educacionais inclusivos e, em decorrência disso, necessita de discussões que considerem a pluralidade

linguística e cultural dos estudantes surdos presentes nesses contextos. Este artigo tem por objetivo

descrever e analisar ações de ensino e aprendizagem da Libras a partir de um enfoque intercultural.

Metodologicamente, este estudo desenvolveu-se por meio de observações participantes em um curso de

Libras voltado para estudantes ouvintes de uma escola inclusiva do município de Viçosa - MG. Os

resultados apontaram que tal enfoque despertou o interesse dos aprendizes pela língua, pois eles

compreenderam o seu valor linguístico e a sua importância para os surdos da comunidade local. A

proposta é incipiente e pode contribuir para fortalecer a educação inclusiva dos surdos, bem como para

ampliar o uso e a divulgação da Libras na sociedade.

ABSTRACT: The legal recognition of the Brazilian Sign Language (Libras – Língua Brasileira de Sinais)

as one belonging to Brazilian deaf communities has pointed out the need of its use and diffusion in

different spaces in society as a fundamental language through which deaf and hearing people can

stablish communicative interactions. Based on this understanding, the use of Libras becomes even more

urgent in inclusive educational contexts. Therefore, discussions considering the linguistic and cultural

plurality of deaf learners on those contexts are needed. The aim of this paper was to describe and analyze

Libras teaching and learning practices, through an intercultural approach. This study was conducted, via

participant observation, within a group of hearing learners of a Libras course in an inclusive school in

the municipality of Viçosa, Minas Gerais. Our results revealed that the such an approach has risen

learners’ interest in the language, once they understood its linguistic value and also its importance to

deaf persons belonging to the local community. This proposal is incipient, but can contribute to

strengthening inclusive education for the deaf, as well as broadening the use and promotion of Libras in

our society.

PALAVRAS-CHAVE: Libras; Ensino e aprendizagem de línguas; Pluralidade linguística e cultural.

KEYWORDS: Libras; language teaching and learning; linguistic and cultural plurality

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INTRODUÇÃO

A Língua Brasileira de Sinais – Libras – se organiza como uma língua natural própria

da comunidade surda brasileira, reconhecida oficialmente no Brasil por meio da Lei nº

10.436, de 24 de abril de 2002 (BRASIL, 2002). Sua legitimação é regulamentada pelo

Decreto nº 5626, de 22 de dezembro de 2005 (BRASIL, 2005), que instituiu

direcionamentos para o uso e a divulgação da língua, bem como assegurou aos surdos o

direito de acesso à educação e à saúde, dentre outras providências.

Essas legislações apoiaram o desenvolvimento de políticas públicas voltadas aos surdos

e de ações que inserissem a Libras na sociedade brasileira. De fato, ao analisarmos os

resultados alcançados após mais de uma década do seu reconhecimento, observamos um

aumento exponencial na oferta de cursos de Libras, de modo que essa língua passou a

ser mais usada no país, com destaque para os espaços educacionais, onde os maiores

progressos foram notados. Nesses espaços, também constatamos que a obrigatoriedade

da contratação de profissionais tradutores/intérpretes de Libras/Língua Portuguesa,

garantida pelo referido Decreto, melhorou a comunicação entre surdos e ouvintes. No

entanto, apesar desse avanço considerável, na comunidade ouvinte em geral, o número

de utentes da língua ainda é restrito, a ponto de serem poucos os contextos em que a

interação comunicativa com os surdos aconteça em Libras sem a presença daqueles

profissionais.

Preocupada com essa problemática, a área de Libras do Departamento de Letras da

Universidade Federal de Viçosa – UFV desenvolve ações nos campos do ensino, da

pesquisa e da extensão, que buscam promover a língua em diferentes ambientes sociais

do município de Viçosa - MG e regiões circunvizinhas. Tais iniciativas vão ao encontro

das reivindicações das comunidades surdas do país, as quais lutam por uma verdadeira

interação entre surdos e ouvintes que se situam no mesmo espaço geográfico, mas que

ainda não compartilham uma comunicação efetiva. Nas escolas, a necessidade dessa

comunicação torna-se ainda mais premente, dada sua relevância para o desenvolvimento

linguístico, social e educacional dos estudantes surdos, bem como para uma formação

integradora dos ouvintes, preparando-os para lidarem com as pluralidades presentes na

sociedade.

Em um cenário em que as ofertas de cursos de Libras para ouvintes ganham destaque,

faz-se necessário promover discussões sobre as práticas de ensino estabelecidas,

refletindo sobre os seus desafios e compartilhando as experiências. Tendo em vista a

indissociabilidade entre língua e cultura, julgamos que os elementos culturais devem ser

fundamentais na constituição dessas práticas. Diante disso, o presente artigo tem por

objetivo descrever e analisar os aspectos linguístico-culturais da Libras abordados em

um curso voltado para crianças e adolescentes ouvintes de uma escola inclusiva.

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O trabalho foi pautado em pressupostos teóricos que tratam da surdez a partir de uma

concepção socioantropológica. Tais pressupostos concebem os surdos como sujeitos

multiculturais que compartilham hábitos e costumes com a comunidade ouvinte, mas

que também cultivam aspectos que são próprios da comunidade surda, conforme

defendido por Skliar (2013). Nesse entendimento, ponderamos que as reflexões sobre as

questões culturais relacionadas à surdez devem ser o ponto de partida para o ensino da

língua. Acreditamos que incorporar tais questões ao conjunto das práticas pedagógicas

pode aumentar o interesse dos aprendizes pela Libras e estabelecer, na comunidade

escolar, relações interculturais promotoras da inclusão e do respeito às diversidades

presentes na escola.

1 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CULTURA SURDA E SUA IMPORTÂNCIA NO

ENSINO DA LIBRAS

Entendemos por cultura tudo o que é produzido pelo ser humano como membro de uma

sociedade. Para Maher:

a cultura é um sistema compartilhado de valores, de representações e de ação:

é a cultura que orienta a forma como vemos e damos inteligibilidade às

coisas que nos cercam; e é ela que orienta a forma como agimos diante do

mundo e dos acontecimentos. (2007, p. 261).

Nesse sentido, Skliar (2013) discute o conceito de cultura surda, tendo por base os

processos e as produções de uma comunidade integrada por sujeitos que se identificam

pela condição da surdez e, a partir dessa condição, desenvolvem e compartilham

costumes e hábitos próprios, que são pautados na maneira como percebem e se

relacionam com o mundo, ou seja, por meio da “experiência visual” (p. 28). Tal

conceito vai ao encontro dos pressupostos teóricos amplamente defendidos por

pioneiros pesquisadores internacionais, no campo dos estudos da surdez, como

diversidade linguística e cultural, tais como Padden e Humphries (1988), Sánches

(1990) e Behares (1993).

Ao tratar das características da cultura surda, Strobel (2008, p. 37) expande a discussão

e atribui novos significados ao conceito de “artefatos culturais” para se referir aos

produtos elaborados pela comunidade surda. Nesse âmbito, diferentemente do que, na

maioria das vezes, entendemos por artefatos, como uma expressão limitada aos objetos

produzidos por determinado grupo, para a autora, o termo também inclui tudo aquilo

que é visível e sensível quando se está em contato com determinada cultura. Em relação

à cultura surda, os artefatos envolvem materiais, tecnologias, tradições, valores, normas

e até a maneira como os sujeitos interagem uns com os outros. Para Strobel, os

“artefatos culturais” das comunidades surdas são as produções que demonstram seu

“modo de ser, ver, entender e transformar o mundo” (2008, p. 37). A autora também

afirma que o mais marcante artefato da cultura surda é a sua experiência visual, pois é

por meio dela que os surdos constroem as identidades surdasi.

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A opinião da autora é pautada em Bahan (2005 apud STROBEL, 2008, p. 38), ao

defender que os sujeitos surdos sejam reconhecidos como “pessoas visuais”, uma

expressão que manifesta as singularidades desses sujeitos e não as limitações

comumente atribuídas à ausência do sentido da audição. O termo é usado para designar

a condição de pessoas que vivenciam as experiências visuais na ausência do sentido da

audição, já que, obviamente, os ouvintes – desde que não apresentem acometimentos

oftalmológicos como cegueira e visão subnormal –, também vivenciam o mundo por

meio dessas experiências. Strobel (2008) defende que a cultura dos surdos se diferencia

da cultura dos ouvintes pela magnitude que as experiências visuais representam aos

primeiros, uma vez que, a partir dessas experiências, a comunidade surda constrói seus

artefatos culturais individuais e coletivos.

A questão central se coloca em como problematizar as questões linguísticas, culturais e

identitárias, relativas aos surdos, nas práticas de ensino da Libras para ouvintes, de

maneira a aproximar as duas comunidades e proporcionar um intercâmbio cultural.

Questionamentos semelhantes são discutidos por estudiosas do ensino de línguas

estrangeiras, como Maher (2007) e Orr e Almeida (2012), que defendem um ensino

pautado na abordagem intercultural, no qual a língua e a cultura são indissociáveis. Orr

e Almeida afirmam que

a língua, assim, por carregar em sua expressão valores e conceitos que

definem um determinado grupo social, quando usada em contextos de

comunicação, aparece carregada pela cultura desse grupo sob as mais

diversas formas. Pensar no ensino de uma língua exige descobertas acerca

dos modos de vida do lugar onde ela é falada. (2012, p. 4).

Para as autoras, os processos de ensino e aprendizagem de línguas devem integrar

valores culturais que levem a uma renegociação e a uma redefinição da identidade dos

aprendizes, pois, também segundo Rajagopalan, “[...] quem transita entre diversos

idiomas está redefinindo sua própria identidade. Dito de outra forma, quem aprende

uma língua nova está se redefinindo como uma nova pessoa. (2003, p. 69 apud ORR e

ALMEIDA, 2012, p. 3).

Considerando o ensino do inglês como língua estrangeira na educação básica, Orr e

Almeida (2012) apontam que desenvolver uma abordagem intercultural não é tarefa

fácil. Segundo elas, diversos problemas sociais e políticos perpassam esse ensino,

especialmente nas escolas públicas, onde o inglês, como componente curricular

obrigatório, tem sua importância desconsiderada tanto pelas instituições quanto pelos

aprendizes.

No campo dos estudos envolvendo o ensino da Libras, a abordagem intercultural

encontra desafios ainda maiores, pois, além da condição de desprestígio geralmente

atribuída às línguas sinalizadas, também deve-se levar em conta que os aspectos

culturais dos surdos são pouco representados em nossa sociedade. Considerando os

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ambientes educacionais, mesmo aqueles intitulados como inclusivos, ainda não há

espaços suficientes para manifestações que celebrem a cultura das comunidades surdas.

Tampouco existem projetos que contemplem um intercâmbio linguístico e cultural entre

estudantes surdos e ouvintes.

Nesse sentido, defendemos uma educação multicultural, que abarque tais estudantes em

um “intercâmbio teórico”, no qual “diferentes visões de mundo poderão ser

contempladas na aquisição e construção do conhecimento” (TESKE, 2013, p. 142). Por

meio da educação multicultural, os estudantes poderão desenvolver uma visão crítica

sobre as diferenças, o que possibilitará alcançar resultados positivos para a resolução de

alguns conflitos presentes nos diferentes espaços da sociedade. A educação

multicultural vislumbrada pelo referido autor preconiza uma interação social de caráter

emancipatório e fortalecedora da participação dos alunos nos ambientes em que

convivem. Também presume oferecer oportunidades para o desenvolvimento de “uma

visão sofisticada sobre a natureza” (TESKE, 2013, p. 142), cuja reflexão perpasse

contextos políticos, sociais e culturais, atrelados a ambas as comunidades, surda e

ouvinte. A proposta multicultural nas escolas, principalmente nas inclusivas, pode

possibilitar aos estudantes compreenderem que as expressões “cultura dos surdos” ou

“cultura dos ouvintes” não são inerentes aos sujeitos, mas são resultados das produções

de interação dos mesmos com uma comunidade que os represente, conforme também

discutido por Teske (2013).

Ainda sobre as dificuldades da atual conjuntura educacional inclusiva dos surdos,

concordamos com Lodi, Harrison e Campos (2012), ao relatarem que, quando a língua

de sinais está presente no ambiente escolar, ela geralmente circula apenas entre os

surdos e não se constitui em um veículo de comunicação e informação cotidiana entre a

comunidade escolar ouvinte. Restrita a um grupo, a língua deixa de ser efetivamente

usada nas práticas de ensino e na valorização daquilo que “o surdo tem a dizer, da forma

como diz” (LODI, HARRISON e CAMPOS, 2012, p. 18), tampouco é considerado seu

valor na construção linguística e cultural dos alunos surdos, nem mesmo na aquisição da

Língua Portuguesa e dos demais conhecimentos.

Com base nessas problemáticas, discorreremos, a seguir, sobre os achados de uma

pesquisaii que buscou desenvolver, em uma escola inclusiva do município de Viçosa -

MG, um curso voltado ao ensino da Libras para os alunos ouvintes, visando promover

um intercâmbio cultural e fortalecer a educação inclusiva. As discussões apresentadas

neste artigo dizem respeito às ações desenvolvidos na fase inicial do curso, que foram

voltadas, especialmente, aos aspectos culturais relacionados aos surdos e à Libras.

2 O PERCURSO METODOLÓGICO

O campo empírico de desenvolvimento do trabalho foi uma escola da rede municipal de

ensino público de Viçosa - MG, que oferece o Ensino Fundamental estruturado em 9

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anos, do 1º ao 9º ano, distribuídos entre os períodos da manhã e da tarde, e que é

referência no município para a educação inclusiva de surdos. Na ocasião da coleta de

dados, a escola contava com apenas 1 aluno surdo, matriculado no 8º ano do Ensino

Fundamental.

Os sujeitos da pesquisa foram os alunos do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental, que

participaram, na própria escola, de um curso de Libras oferecido pelo Departamento de

Letras da UFV. O curso foi ministrado por três professoras em formação inicial,

bolsistas de iniciação científica, licenciandas da universidade – duas do curso de Letras

e uma do curso de Pedagogia –, que realizaram a experiência de ensino sob a orientação

da docente da área de Libras e que também contaram com a colaboração de instrutores

surdos, membros da comunidade local, em atividades de supervisão.

O curso foi oferecido para todas as turmas do Ensino Fundamental e organizado com

carga horária semanal de 50 minutos, perfazendo um total de 30 horas. Ele foi dividido

em 3 módulos, de 10 horas cada, de acordo com as seguintes temáticas: Módulo I –

Rompendo barreiras: reflexões acerca da inclusão e da diversidade linguística e cultural

na escola; Módulo II – Introdução à Libras; Módulo III – O uso da Libras em diferentes

contextos sociais. Os resultados dos Módulos II e III foram discutidos em Valadão et al.

(2016b). Os achados aqui apresentados são relativos às ações desenvolvidas no primeiro

módulo, que ocorreram entre os meses de março e dezembro de 2013.

A proposta caracterizou-se como uma pesquisa-ação, por ser concebida, segundo

Thiollent, “em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema

coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do

problema estão envolvidos do modo cooperativo ou participativo” (2005, p. 14). Para a

coleta de dados, a metodologia utilizada foi a observação participante, ferramenta que

nos possibilitou perceber as dinâmicas do ambiente, sem interferir no processo de

ensino e aprendizagem. De acordo com Gil, por meio da observação participante “[...] a

subjetividade, que permeia todo o processo de investigação social, tende a ser reduzida”

(2011, p. 100). Os resultados obtidos foram analisados e interpretados a partir de

referenciais teóricos que discutem as singularidades linguísticas e culturais dos surdos,

bem como a inserção do ensino da Libras em ambientes educacionais inclusivos. O

projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFV.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

O primeiro passo da pesquisa consistiu na observação do contexto escolar quanto ao

espaço físico, ao corpo docente, aos funcionários e aos estudantes que iriam participar

do curso de Libras. Nessa etapa, priorizamos o conhecimento do ambiente e a

compreensão das relações entre os discentes, sobretudo as que envolviam o único

estudante surdo da escola.

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A partir das observações, constatamos que poucas relações eram estabelecidas entre o

estudante surdo e seus colegas ouvintes e que a escola não dispunha de mecanismos que

valorizassem as variedades linguísticas e culturais dos educandos, apesar de ser

considerada polo para a educação inclusiva. Em se tratando do surdo, não havia

tradutor/intérprete de Libras/Língua Portuguesa, nem quaisquer condições que

evidenciassem a língua de sinais, seja em situações de ensino e aprendizagem ou de

interação no cotidiano escolar. Nossas observações foram ao encontro das constatações

de Dorziat, Araújo e Soares (2011), ao reconhecerem que, no sistema educacional

inclusivo, os alunos surdos, geralmente, não compartilham de interações comunicativas

com a comunidade escolar, composta, em sua maioria, por pessoas ouvintes. Também

para Gesser (2012, p. 91), a barreira linguística entre surdos e ouvintes é causa de

“desconforto” aos diversos atores que convivem no espaço educacional. Para essa

autora, os professores ouvintes sentem-se constrangidos e incapazes de lidar com

surdos; o intérprete, quando presente, sente-se solitário e despreparado para resolver

todas as demandas que lhe são atribuídas; e os alunos surdos, nesse “jogo de tensões”

(GESSER, 2012, p. 91), sentem-se excluídos e impotentes em estreitar relações sociais

permeadas pela língua de sinais.

Nesse embate, Gesser (2012) destaca que os ouvintes não são indiferentes aos surdos e à

Libras, no entanto, na proposta inclusiva, não se trata apenas de aceitar a língua, mas de

viabilizá-la em todo um processo pedagógico, que inclui:

a questão curricular, as didáticas para o ensino da LIBRAS, a formação de

professores surdos e ouvintes, a formação de intérpretes, a participação de

professores surdos nesses contextos, a relação escola-trabalho, o

envolvimento das famílias, a dinâmica inclusão/exclusão [...]. (GESSER,

2012, p. 95).

Assim, acreditamos que, para incentivar a comunicação entre surdos e ouvintes daquela

comunidade escolar, as práticas para o ensino e a aprendizagem da Libras deveriam se

iniciar por ações que proporcionassem momentos de discussões e reflexões sobre as

diversidades linguísticas e culturais inerentes ao ambiente educacional inclusivo. Para

isso, direcionamos nosso trabalho aos estudantes ouvintes e buscamos iniciar, junto à

referida escola, um debate que impactasse na formação desses estudantes, tornando-os

mais preparados para lidarem com possíveis conflitos advindos dessas diversidades.

Nessa conjuntura, as primeiras intervenções foram destinadas a apresentar à

comunidade escolar questões relacionadas à cultura, à língua e à identidade dos surdos,

e intitulamos o momento como “Rompendo barreiras”. Nessa fase inicial, o intuito foi

despertar o interesse e a curiosidade dos ouvintes pela Libras e por questões

relacionadas aos surdos. Para atender a esse objetivo, foram confeccionados cartazes

provocativos, por exemplo, com os seguintes dizeres: “Você sabia que a Libras é a

língua dos surdos?” ou “Não entendeu? Então vamos aprender Libras”. Aos cartazes,

foram associadas imagens que representavam os sinais da Libras, cujo entendimento só

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era possível àqueles que conhecessem a língua. Também foram elaborados banners,

com figuras em Libras, relacionadas a algumas temáticas específicas, como datas

comemorativas, alfabeto manual, materiais escolares, alimentos, lugares, entre outros.

Esses recursos visuais foram dispostos nos locais de maior circulação da escola (espaço

de entrada, corredores das salas de aula e pátio) e, semanalmente, eram substituídos por

novos conteúdos. Destacamos que os recursos visuais utilizados nos banners variaram

de acordo com o perfil do público-alvo: naqueles dispostos próximos às turmas

correspondentes às séries iniciais do Ensino Fundamental, foram usadas figuras lúdicas,

com características infantis; nos afixados próximos às séries finais, as imagens

correspondiam a objetos e situações reais. Os referidos cartazes despertaram a atenção

dos estudantes, que começaram a questionar o motivo da exposição, bem como a sugerir

novos temas, o que foi prontamente atendido pelas bolsistas. Por meio desse trabalho

inicial, conseguimos inserir a Libras na escola, de uma maneira lúdica e interessante,

despertando a curiosidade dos estudantes.

Alguns dias após essas primeiras abordagens com a língua, o curso de Libras foi

iniciado. A aula inaugural foi destinada à apresentação da equipe, dos objetivos do

projeto e das dinâmicas que seriam desenvolvidas. Feitas as apresentações iniciais, uma

das professoras questionou os alunos sobre os cartazes que estavam espalhados pela

escola. Para desencadear a discussão, reproduziu as perguntas dos cartazes e, com base

nas respostas, identificou alguns mitos e crenças que permeavam o imaginário dos

estudantes. O inventário das crenças foi coincidente com o encontrado por Gesser

(2009) e apontou alguns mitos sobre a língua de sinais e a surdez, dentre eles: a não

universalidade das Línguas de Sinais; os conceitos de língua natural e língua artificial; a

Libras como uma linguagem agramatical; a incapacidade de expressar conceitos

abstratos em sinais; e a redução da língua de sinais ao alfabeto manual ou a uma versão

sinalizada da língua oral.

Nesse debate acerca dos mitos e das crenças, objetivamos traçar com os alunos um

caminho de menor resistência aos conceitos que emergiam das discussões. Preocupamo-

nos também em não atribuir juízo de valor, mas engajá-los em uma reflexão que lhes

possibilitasse o interesse e a aproximação do aprendizado da nova língua. A proposta

foi sustentada nas recomendações de Gesser ao defender que, nas aulas de Libras, o

professor dever promover “[...] momentos informativos que discutam aspectos da

identidade surda, desmitificando crenças, preconceitos sobre as pessoas surdas e sobre a

língua de sinais.” (2012, p. 47).

Ainda amparados nos preceitos dessa autora, intensificamos nossas ações,

desenvolvendo situações que possibilitassem aos aprendizes refletirem e discutirem

sobre temáticas envolvendo a cultura e a identidade das pessoas surdas. Nesse momento

do trabalho, devido à variabilidade do público – composto por estudantes do 1º ao 9º

ano, com idades entre 5 e 15 anos –, foi preciso diferenciar as atividades de maneira a

contemplar os interesses pertinentes às diversas faixas etárias. Para atender a esse

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propósito, elegemos, como recurso didático-pedagógico, para as turmas do 1° ao 5° ano,

o gênero conto; enquanto, para os alunos do 6° ao 9° ano, optamos pelas tirinhas. Entre

as diversas práticas desenvolvidas, destacaremos o trabalho com a história O Patinho

Surdo, de Rosa e Karnopp (2005), e com as tirinhas That Deaf Guy, de Matt e Kay

Daigle (2010), na versão em Língua Portuguesa.

Nas turmas do 1° ao 5° ano, a equipe iniciou a atividade perguntando aos alunos se eles

conheciam uma história chamada O Patinho Feio. Após os participantes responderem

afirmativamente, a equipe explicou que iria apresentar-lhes, então, a história de O

Patinho Surdo, chamando a atenção para o fato de que haveria algo diferente nessa

história: o patinho era surdo. Em seguida, foi apresentado o livro em sua versão

impressa e foram explorados os elementos da capa e da contracapa, atentando para as

informações sobre os autores, especialmente para o fato de um dos autores e a

ilustradora serem surdos. Tal informação despertou o interesse dos estudantes, pois

desconheciam a existência de produtos e processos elaborados por surdos, em língua de

sinais, pertinentes às artes e à literatura.

Após as considerações iniciais, foi contada a história de um pato surdo, que nasceu em

um ninho de cisnes ouvintes, com os quais não conseguia se comunicar e,

consequentemente, se identificar. Nesse momento, a narrativa foi interrompida e não foi

contado o final, propondo que os estudantes se reunissem em grupos para discutirem os

possíveis acontecimentos vivenciados pelo pato surdo. Ao chegarem a um consenso,

eles elaboraram alguns desfechos para a história e os apresentaram por meio de

desenhos, de produção textual escrita em Língua Portuguesa e de manifestações teatrais.

Após as exposições, concluiu-se a narrativa da história original.

As discussões abordaram as diferenças linguísticas na família e na sociedade e

ressaltaram a importância da comunicação entre surdos e ouvintes. Na maioria das

produções, os alunos descreveram que o patinho encontrava outros patos surdos,

aprendia com eles a língua de sinais e descobria sua história de vida, desfechos muito

semelhantes ao original, proposto no livro. Alguns ainda acrescentaram personagens

tradutores-intérpretes e situações em que os cisnes da sua família adotiva, bem como

outros animais que conviviam com ele, se interessavam por aprender a língua de sinais e

a lagoa se tornava um ambiente bilíngue.

Tal atividade possibilitou aos alunos perceberem que O Patinho Surdo era uma história

adaptada de um clássico da literatura e que os autores, ao reconhecerem na história

alguns valores culturais, realizaram a “adaptação para a cultura surda” e para uma

narrativa que trouxesse a representação do ser surdo, conforme analisado por Mourão

(2011, p. 54). Para a maioria dos aprendizes, esse foi o primeiro contato com um texto

que retratava personagens surdos que se comunicavam em Libras. De acordo com

Karnopp (2006) e Mourão (2011), ainda são escassos os livros de literatura com

temáticas voltadas à cultura visual e à construção da identidade das pessoas surdas. No

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entanto, segundo os autores, as histórias entre os surdos são contadas em língua de

sinais e, por meio delas, a cultura surda é transmitida de geração em geração. A partir

dos seus relatos, os surdos transmitem histórias de vida e experiências, geralmente

relacionadas ao fato de conviverem com duas línguas e transitarem em “universos

linguísticos diferentes” (KARNOPP, 2006, p. 107).

A apresentação da literatura surda como uma possibilidade de demonstração cultural

estimulou, entre os alunos, o reconhecimento dos surdos como membros de uma

comunidade que se identifica pelo uso da língua de sinais e pelo compartilhamento de

experiências visuais. Nesse sentido, corroboramos as afirmações de Karnopp:

A literatura surda está relacionada com a cultura surda. A literatura da cultura

surda, contada na língua de sinais de determinada comunidade linguística, é

constituída pelas histórias produzidas em língua de sinais pelas pessoas

surdas, pelas histórias de vida que são frequentemente relatadas, pelos

contos, lendas, fábulas, piadas, poemas sinalizados, anedotas, jogos de

linguagem e muito mais. O material, em geral, reconta a experiência das

pessoas surdas, no que diz respeito, direta ou indiretamente, à relação entre as

pessoas surdas e ouvintes, que são narradas como relações conflituosas,

benevolentes, de aceitação ou de opressão do surdo. (2008, p. 15-16).

A história escolhida possibilitou tematizar a importância de se ampliar os contextos de

uso da Libras, a fim de que surdos e ouvintes compartilhem de experiências

comunicativas em línguas de sinais nos diferentes espaços da sociedade, sobretudo na

escola.

Para as turmas do 6° ao 9° ano, as atividades também tiveram o propósito de abarcar

temáticas voltadas à inclusão e à diversidade cultural, mas o gênero textual escolhido foi

a tirinha. Para tanto, foram utilizadas duas produções do That Deaf Guy, traduzidas para

a Língua Portuguesa.

As bolsistas iniciaram a aula distribuindo as tirinhas aos alunos. Após a leitura do

material, elas informaram que se tratava de um texto produzido por um cartunista

americano, chamado Matt Daigle, que é surdo, e por sua esposa Kay,

tradutora/intérprete. Os episódios retratados nas tirinhas referiam-se às situações

cotidianas decorridas com ele, sua esposa e seu filho, que é ouvinte e bilíngue – fluente

em inglês e Língua Americana de Sinais, denominado CODA, referência para Children

of Deaf Adults.

A primeira tirinha, representada na Figura 1, abordou o uso da tecnologia pela

comunidade surda. Nela, é possível identificar o marido surdo comunicando à sua

esposa onde ele se encontra, por meio de mensagem de texto, em um telefone celular.

Ao perceber que ele está na piscina, a esposa questiona a veracidade da informação, já

que não acredita ser possível que ele esteja usando o celular na água. Para surpresa, o

marido lhe explica tal possibilidade a partir do uso de um saco plástico com fecho.

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Figura 1. O uso das tecnologias pelos surdos (The use of technologies for deaf people).

Fonte: Surdalidade.

Esse episódio demonstra o quanto as tecnologias estão presentes na vida das pessoas

surdas. De acordo com Isaac e Valadão (2014), nas últimas décadas, as inovações

tecnológicas se modificaram de maneira intensa, principalmente nas áreas de

telecomunicações e informática. A expansão do acesso da população aos dispositivos de

tecnologia pessoal, bem como a evolução no sistema de telefonia, possibilitaram um

aumento exponencial do alcance da comunicação em massa, o que influenciou o estilo

de vida da população no que se refere a hábitos e a padrões de comportamentos.

Segundo as autoras, “para as pessoas surdas não foi diferente, e a infinita possibilidade

de recursos tecnológicos disponíveis derrubou muitas barreiras comunicativas” (ISAAC

e VALADÃO, 2014, p. 12).

Nesse entendimento, as professoras iniciaram uma discussão, questionando os alunos

sobre a importância das tecnologias em suas vidas, considerando suas experiências

pessoais com os diferentes recursos tecnológicos. As respostas fizeram menção, em

ordem de importância, ao uso de telefones celulares, especialmente dos smartphones,

microcomputadores, tablets e televisores. Elencados os principais recursos, as bolsistas

expandiram a reflexão e questionaram as possibilidades de uso desses dispositivos pelas

pessoas surdas. Nesse momento, os alunos refletiram que, pelo telefone celular, a

comunicação dos surdos não poderia ocorrer por chamada em áudio, mas por meio de

mensagens de texto e de vídeo-chamada. Nesse sentido, foram ressignificadas as

possibilidades desse uso na comunicação das pessoas surdas, ressaltando-se que as

chamadas em vídeos, diferentemente das chamadas em áudio, não impõe nenhuma

restrição à língua de sinais. Alguns alunos manifestaram interesse em saber se os surdos

conseguiam ler e escrever em Língua Portuguesa e, como demonstrado na tirinha, fazer

uso de mensagens de texto. O questionamento foi oportuno e possibilitou

esclarecimentos sobre a importância da escrita como um objeto cultural de intercâmbio

social também para os surdos.

Ampliando a discussão sobre as tecnologias e os meios de comunicação, foi perguntado

aos alunos como a televisão poderia ser utilizada pelos surdos, uma vez que eles não

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acessam as informações auditivas veiculadas pela maioria da programação televisiva.

Assim, os alunos responderam sobre o uso das legendas, do closed captioniii

, e alguns

ainda ressaltaram o papel do tradutor intérprete, que, em suas palavras, é “a pessoa que

fica no quadradinho do lado da tevê”. As legendas e o closed caption reiteraram as

reflexões sobre a necessidade de os surdos saberem a Língua Portuguesa. Partindo dessa

questão, discutimos sobre a condição bilíngue dos surdos brasileiros, cuja primeira

língua é a Libras e a segunda, a Língua Portuguesa, na modalidade escrita. Embasamos

nossas considerações na opinião de Karnopp, ao afirmar que

a escrita da língua portuguesa hoje faz parte do mundo surdo, indispensável

aos surdos brasileiros para a defesa dos seus interesses e cidadania. Há quem

pense que a escrita pode contribuir para a destruição da riqueza em sinais;

mas a escrita, por si só, não é necessariamente um fator contrário. Pode-se

pensar na escrita como a busca por tradução das raízes culturais, associada a

outras formas de arte, como teatro e vídeo. (2006, p. 103).

Aproveitando a indicação da presença do tradutor intérprete em alguns programas e

canais de televisão, as bolsistas teceram algumas ponderações sobre o papel e a

importância desse profissional na sociedade, apresentando a segunda tirinha dos

mesmos autores. Nesta, a esposa, que é intérprete, aparece munida de equipamentos

tradicionalmente usados na construção civil, quebrando uma parede na qual se revela,

de um lado, uma paciente surda e, do outro, um médico ouvinte, como pode ser

observado na Figura 2.

Figura 2. O trabalho do tradutor intérprete Libras/Língua Portuguesa. (The work of the

interpreter translator Libras/Portuguese). Fonte: Surdalidade.

A metáfora usada pelos autores faz menção ao papel desse profissional como mediador

da comunicação entre surdos e ouvintes nos diferentes espaços da sociedade, rompendo

as barreiras comunicativas que existem entre eles. Nesse ponto, as licenciandas teceram

importantes considerações sobre o papel do intérprete, sobretudo no contexto escolar,

conforme discutido por Dorziat, Araújo e Soares, ao defenderem que o tradutor

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intérprete educacional é “peça fundamental para amenizar as dificuldades

comunicativas entre os alunos surdos e os demais componentes da escola regular”

(2011, p. 54). Essa discussão foi bastante nova para os alunos, pois a escola não contava

com a presença desse profissional e, embora eles já tivessem visto alguns intérpretes na

televisão, jamais haviam pensado na necessidade desse profissional para atuar com o

seu colega surdo. Com isso, imediatamente, questionaram os motivos pelos quais a

escola ainda não contava com o referido profissional e mostraram-se interessados em

compreender quais seriam as possibilidades da sua atuação naquele contexto. Ademais,

compreenderam que, além do intérprete, era necessário que toda a comunidade escolar

adquirisse um conhecimento básico em Libras, para que interagissem, espontaneamente,

com o aluno surdo, sem dependerem da mediação desse profissional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao promovermos o ensino da Libras para estudantes ouvintes que convivem com surdos

em uma escola inclusiva, focamos nossos esforços em desenvolver uma prática

educacional que possibilitasse uma inserção linguística significativa a esses estudantes

e, ao mesmo tempo, a ampliação dos espaços de circulação da língua naquele ambiente.

O caráter pioneiro da proposta foi proporcional à complexidade envolvida durante sua

execução, já que vários fatores tiveram que ser ponderados a fim de que a qualidade dos

resultados fosse alcançada. Um dos principais fatores foi atender aos interesses e às

particularidades do público-alvo, dada as suas diferentes faixas etárias. O

desenvolvimento de atividades adequadas às características dos estudantes despertou o

interesse e os motivou para a aprendizagem da língua.

Quanto à opção pela abordagem cultural, avaliamos que ela foi fundamental nessa fase

do trabalho, pois possibilitou a desconstrução de muitos preconceitos em relação aos

surdos e à Libras. A esse respeito, destacamos que a concretização da proposta não foi

uma tarefa fácil, pois, para as Línguas de Sinais, o ensino com um viés cultural, voltado

especialmente para crianças e adolescentes, ainda é bastante incipiente. Em nossas

ações, avaliamos que a abordagem escolhida possibilitou um melhor entendimento dos

aprendizes acerca da Libras, das singularidades linguísticas dos surdos e das relações e

interações sociais que permeiam o ambiente educacional, sobretudo na proposta

inclusiva.

Em relação ao ensino da Libras no contexto da escola inclusiva, o trabalho expandiu as

discussões fomentadas por Valadão et al. (2016a; 2016b), que advogam pela ampliação

de ações promotoras do uso da língua nesse contexto e de pesquisas que embasem seu

ensino. As informações coletadas no início da implementação do projeto demonstraram

que, na referida escola, os estudantes surdos não dispunham de um ambiente no qual a

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língua de sinais fosse considerada importante para os processos de interação e de

aprendizagem. Tampouco os ouvintes eram contemplados com situações que

tematizassem as pluralidades linguísticas e culturais presentes naquele espaço. Diante

disso, o ensino da Libras para os estudantes ouvintes dessa escola inclusiva foi uma

iniciativa que contribuiu para iniciar a implementação de uma educação bilíngue

naquele ambiente.

Temos ciência de que o trabalho foi inicial e de que muitas ações ainda precisam ser

promovidas e discutidas a fim de que uma política bilíngue possa se efetivar nos

ambientes inclusivos. No entanto, acreditamos que os resultados desta pesquisa, ainda

que incipientes, podem incentivar novas propostas que visem ao ensino da Libras para

ouvintes, pautadas em abordagens interculturais, e que também sejam voltadas à

promoção do respeito pelas diferenças, dentre as quais destacamos a valorização da

língua, da cultura e da identidade das pessoas surdas.

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p. 125-147, 2016b.

i O conceito de identidades surdas é definido por Perlin como as identidades que “estão presentes no

grupo no qual entram os surdos que fazem uso da experiência visual propriamente dita” (2013, p. 63).

ii Este artigo é parte de um projeto de pesquisa que foi contemplado com apoio financeiro pelo edital

13/2012 CAPES/FAPEMIG – Pesquisa em Educação Básica, desenvolvido no período compreendido

entre março de 2013 e maio de 2016.

iii O closed caption é o termo utilizado na Língua Inglesa para legenda oculta, que é um sistema de

transmissão de legendas, via sinal de televisão, para os aparelhos que disponibilizam dessa função.

Doutora em Neurociências e Ciências do Comportamento pela Faculdade de Medicina de Ribeirão

Preto, da Universidade de São Paulo FMRP-USP. Professora Adjunta do Departamento de Letras da

Universidade Federal de Viçosa DLA-UFV. Orientadora do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu

em Letras do DLA-UFV. Professora de Libras. Atua na área de formação de professores e de ensino e

aprendizagem de Libras.

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Graduada em Letras Língua Portuguesa/Língua Francesa pela Universidade Federal de Viçosa –

UFV. Mestranda do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras do DLA-UFV. Professora de

Libras.