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  • RepResentaes digitais e inteRao incoRpoRada

    MANA 16(1): 227-245, 2010

    DUARTE, Luiz Fernando Dias; GOMES, Edlaine de Campos. 2008. Trs famlias: identidades e trajetrias transgeracionais nas classes populares. Rio de Janeiro: Editora FGV. 316pp.

    Tania Salem Doutora em antropologia social pelo Programa

    de Ps-Graduao em Antropologia Social

    (PPGAS) do Museu Nacional/UFRJ

    Trs famlias tem como objetivo examinar a trajetria transgeracional em trs redes familiares de classe popular no Grande Rio de Janeiro. Elege-se, como referncia inicial do percurso, a relao entre um casal fundador e uma casa e, a partir da, acompanha-se o destino social de suas descendncias ao longo de, pelo menos, trs geraes. Na famlia Duarte o casal original se constitui em 1900 no bairro do Estcio, dando incio tambm a uma longa vinculao ao servio pblico municipal. Nas outras famlias, Costa e Campos, as parcerias inaugurais se formam entre os anos 1940 e 1950, respectivamente nos bairros de Jurujuba (Niteri) e den (Bai-xada Fluminense): enquanto a primeira perpetua uma antiga associao com a atividade da pesca, a segunda apresenta uma maior heterogeneidade em termos profissionais e educacionais.

    Os captulos 2, 3 e 4 empreendem um primoroso mergulho etnogrfico e

    histrico em cada uma das redes, reve-lando suas similaridades e significativas diferenas. no captulo 6, contudo, que a comparao sistemtica entre as trs famlias assume sua forma final.

    Os autores apresentam o trabalho como um experimento. A qualificao parece atrelar-se a seu carter pouco ortodoxo: alm de serem membros de linhagens socialmente ascendentes de duas dessas redes (Duarte e Campos), um dos autores Duarte mantm uma estreita relao pessoal, iniciada numa situao de pesquisa em 1970, com o homem do casal fundador da famlia Costa. Dessa insero peculiar no objeto de estudo e da inviabilidade do recurso ao anonimato decorrem inmeras ques-tes ticas, cuidadosamente deslindadas tanto na introduo quanto no captulo 1. A tarefa de observar e estranhar o familiar, justamente porque literal, exige esforo e controle redobrados. Alm disso, ser simultaneamente pesquisador e membro da famlia (seja por laos de sangue ou de profunda amizade) gera uma espcie de dupla lealdade que estipula exigncias e compromissos nem sempre coinci-dentes. Mesmo reconhecendo que as famlias tm suas defesas prprias, cabe aos pesquisadores decidir do que lhes dito e/ou do que j sabem por nelas se inserirem o que revelar, o que silenciar e o que camuflar. H tambm um delicado dbito moral implicado nessa transao,

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    que, associado a uma reiterada nostalgia dos autores pelo desentranhamento perdido, parece elucidar a nfase na so-lidariedade, dignidade e correo moral (sobretudo das geraes passadas) a ex-pensas de tenses e conflitos familiares. Embora o leitor seja advertido que esse modelo mais harmonioso enfatizado pelos prprios informantes (:177), pode-se ainda assim especular se, ao lado do compartilhamento de um saudosismo, essa idealizao no se atrela tambm a um pacto implcito, no necessaria-mente consciente, entre pesquisadores e informantes.

    Seja como for, o fato que os benefcios desse empreendimento pouco cannico so, para o pblico leitor, inquestionveis. Trs famlias no s uma obra sensvel e comovente no que respeita preservao e/ou recuperao de memrias familiares como tambm um trabalho exemplar em termos sociolgicos.

    Conforme anunciado j na abertura do livro, a anlise dos trajetos transgera-cionais realizada luz da tenso entre, de um lado, permanncia e resistncia, e, de outro, mudana e rompimento. O primeiro polo se explicita numa intensa relao com a casa e no compartilhamen-to de um ethos fundado na solidariedade e na prevalncia da relacionalidade sobre a individualizao. J a mudana no arca-bouo fsico e moral familiar se expressa numa eventual retrao da casa original em contraste com sua permeao e aco-lhimento primitivos e, no que concerne aos novos ncleos descendentes, em afastamentos mais ou menos dramticos da rede familiar e da localidade, desem-bocando, no limite, em processos radicais de individualizao.

    O captulo 5, Casa e famlia nas classes populares, trata, entre outras coisas, dessa tenso sempre relativa e diferencial nas trs redes examina-das. Observa-se, nas famlias Duarte e

    Campos, movimentos em direo a uma autonomia, interiorizao e distino, ou seja, a uma individualizao no sentido pleno do termo. Em outros casos a mu-dana relativamente menos notvel, e a famlia Costa , nesse sentido, modelar. H ainda situaes que evidenciam um nem l, nem c, nas quais, por exem-plo, o afastamento da casa original no implica simultaneamente adeso moral ao individualismo. As transformaes nas redes familiares so creditadas a fatores vrios, como a sucesso de geraes, o afastamento das linhagens, as diferen-ciaes sociais geradas no seu interior e tambm a mudanas mais gerais impostas pelo processo histrico. Especial ateno conferida ao modo como o pluralismo religioso insinuado na sociedade bra-sileira a partir dos anos 1970 impacta, mais uma vez diferencialmente, nas redes familiares, ocasionando mesmo, em alguns casos, fissuras e rompimentos internos significativos. A famlia Campos, em particular, destacada como palco de disputa entre catolicismo como crena atribuda/valorizao dos laos de sangue/sincretismo, de um lado, e pentecostalis-mo/primado da escolha religiosa/ nfase na famlia de f/proselitismo, de outro. Por meio de uma impecvel anlise da plurali-dade religiosa nas famlias, seus conflitos internos, muitas vezes subordinados no livro, emergem com potncia.

    Em suma, a diversidade do universo examinado j notvel na apresentao dos casais fundadores, mas secundria em relao sua origem social comum se revela, com o passar do tempo e das geraes, muito mais aprofundada. O reconhecimento de trajetrias sociais e morais to dspares em famlias de origem popular , em si, fato sociolgico importante e conduz questo de como esclarecer esse cenrio mais plural com base em razes que extrapolam qualida-des pessoais.

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    Num captulo primoroso, Condies diferenciais de reproduo (captulo 6), os autores, ao mesmo tempo em que em-preendem uma comparao extremamen-te interessante entre as trs famlias, se dispem a elucidar, recorrendo a fatores fundamentalmente sociolgicos, traje-trias de maior ou menor afastamento da casa original, bem como incitaes diferenciais para elas. A anlise aclara, por exemplo, o maior conservadorismo da famlia Costa, discorrendo sobre razes vrias que fazem com que ela seja, com-parativamente s outras, mais retentiva, mais guetificada e, portanto, relativamen-te menos submetida a mudanas e menos disposta a processos de autoafirmao e individualizao. Seria interessante especular sobre possveis implicaes decorrentes do fato de esta famlia bem como o bairro de Jurujuba constar como referncia importante para a construo do modelo holista proposto por Duarte para as classes populares em seu Da vida nervosa (1986).

    O reconhecimento da pluralidade de trajetrias da classe popular nas ltimas dcadas e o foco em nveis etnografica-mente menos abstratos tm igualmente implicaes tericas significativas. No captulo final os autores admitem a necessidade de matizar, tambm no plano propriamente analtico e terico, a polaridade entre o modelo holista e o individualista. Ao mesmo tempo, revelam insatisfao com conceitos intermedi-rios disponveis para a interpretao de fenmenos de escala microssociolgica. Assim, por exemplo, critica-se com justeza, alis a excessiva generalidade da noo de individuao, por mim pro-posta em 1987. Emerge da a proposta da autoafirmao.

    Comparativamente ao conceito de individuao, o de autoafirmao me-nos abrangente e sociologicamente mais preciso justamente por se reportar, de

    modo adequado e necessrio tendo em vista o tema e os tempos em pauta ao individualismo. Conforme insistido pelos autores, a autoafirmao, ao mesmo tem-po em que pressupe um contexto indivi-dualista como cenrio de fundo, guarda alguma particularidade diferencial com relao aos processos de autonomizao, interiorizao e distino (:253).

    Parece residir, precisamente nesse carter mais especfico do conceito, sua maior fora, mas tambm suas maiores complicaes. Abre-se mo, com perti-nncia, dos grandes modelos e oposies, mas em compensao passa-se a transitar por reas mais cinzas e esfumaadas onde afloram imprecises conceituais. Com efeito, um dos maiores embaraos do conceito de autoafirmao advm do fato de ser um entre. Trata-se de um entre individuao e individualizao; entre resistncia e mudana; entre relacionalidade e individualizao; en-tre pertencimento e desenraizamento etc. Justo porque comprometido com o suposto de um continuum, as fronteiras entre os processos de autoafirmao e individualizao revelam-se, por vezes, tnues tanto no plano etnogrfico quanto no analtico. Numa passagem, por exem-plo, estipula-se uma equivalncia entre a autoafirmao e uma relativa indivi-dualizao (:183). No resta dvida ser mais fcil e confortvel lidar com as di-ferenas, mais claramente qualitativas e mais marcadamente estabelecidas, entre a cosmologia holista e a individualista.

    O outro problema inerente ao conceito de autoafirmao e ainda relacionado ao esfumaamento relativo entre o ethos das classes populares e o das camadas mdias diz respeito a qual seria sua identidade contrastiva. Tome-se como ilustrao o que os autores consideram ser uma das caractersticas morais centrais das classes populares e uma dimenso fundamental do que resiste:

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    o pertencimento familiar ou o senti-mento de entranhamento natural. Con-tudo, o que apresentado como seus con-trapontos uma sbita secesso da rede familiar originria, ou ainda um afas-tamento absoluto da relacionalidade so movimentos no aplicveis nem mesmo s camadas mdias individua-listas mais prototpicas. De fato, como j mostrado, os preceitos ideolgicos indi-vidualistas, inclusive os que concernem famlia e relao entre gneros, esto permeados de tantas ambivalncias, contradies e contratendncias que plausvel postular que a adeso a eles situa-se mais no plano do valor que no do fato. Esta , alis, outra maneira de abor-dar o dilema inerente s novas propostas dos autores: ao aludirem aos preceitos individualistas, parecem aproximar-se do plano do valor ou dos ideais, ao passo que ao tratarem da autoafirmao esto mais colados ao fato.

    Essas complicaes no comprome-tem, de modo algum, a importncia da empreitada. Pelo contrrio, Trs famlias uma obra que veio para ficar no s como marco na literatura sobre famlia e classes populares brasileiras, mas certamente tambm para muito alm da.

    DURO, Susana. 2008. Polcia e proximida-de: uma etnografia da polcia em Lisboa. Coimbra: Edies Almedina.565 pginas.

    Paula PoncioniProfessora da ESS da UFRJ

    Polcia e proximidade: uma etnografia da polcia em Lisboa, originalmente tese de doutorado em antropologia de Susana Duro, versa sobre a maneira como o mandato policial realizado por agentes policiais no cotidiano das ruas da cida-

    de de Lisboa e no contexto da cultura organizacional da Polcia de Segurana Pblica portuguesa (PSP), com enfoque privilegiado na dimenso simblica e nas classificaes socioprofissionais recorren-tes neste grupo ocupacional especfico. Trata, ainda, de compreender as articu-laes entre a dimenso das prticas pro-fissionais e os contornos que adquirem as carreiras nesta organizao. O texto, embora longo, bastante convidativo no s para especialistas e operadores da rea de segurana pblica mas tambm para leitores interessados no assunto. A linguagem usada pela autora extrema-mente clara, precisa e coerente.

    Na introduo so apresentadas as diferentes perspectivas presentes na literatura das cincias sociais (majo-ritariamente de lngua inglesa) sobre as organizaes policiais e expostos os temas dominantes que, ao longo de diferentes momentos scio-histricos, predominaram como foco dos estudos sobre o trabalho policial, como tambm a contribuio da antropologia no estudo das organizaes, em particular das orga-nizaes policiais. tambm nesta seo que se encontra explicitada a trajetria que a autora percorreu para a realizao do estudo: as questes da pesquisa, os procedimentos metodolgicos seguidos, os critrios adotados e os aspectos ticos que envolveram o trabalho.

    O primeiro captulo oferece uma discusso sobre as vrias concepes tericas do conceito de cultura das organizaes e suas implicaes para a interpretao da vida organizacional, apontando os encontros e desencontros entre a antropologia e os estudos sobre organizaes e polcia. feito um resgate do debate terico desenvolvido nos estu-dos de polcia entre os estudiosos de ln-gua inglesa e de lngua francesa entre cultura policial e culturas policiais. Tambm apresentada ao leitor a estru-