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Lisados de órgãos no tratamento de doenças - História A zooterapia no âmbito da medicina civilizada: I. Organoterapia humana e animal stricto sensu. Apresentação Frente à universalidade do fenômeno zooterápico, faz-se imprescindível comentar a sua presença marcante não somente nas culturas ditas primitivas, mas também no âmbito da medicina civilizada. No presente trabalho, deixando para uma segunda parte, a ser posteriormente publicada, o fenômeno contemporâneo dos transplantes e das células tronco humanas, recontaremos aqui algo da história, natureza e metodologia de emprego da organoterapia, ou a utilização de órgãos (humanos e animais) na terapêutica, e dos seus primeiros sucedâneos no século XX, a lisadoterapia russa e a terapia celular por xenotransplantação, de origem suíça. 1. Introdução Le cannibalisme régnait en thérapeutique. Professeur GILBERT (1902) Correspondência: Professor Ricardo Chequer Chemas, M.D., Rua Ilhéus 200 Bairro: Rio Vermelho, Salvador, Bahia, Cep: 41940-570, Brasil. e-mail: <[email protected]>

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Page 1: A zooterapia no âmbito da medicina civilizada: I

Lisados de órgãos no tratamento de doenças - História

A zooterapia no âmbito da medicina civilizada: I. Organoterapia humana e animal stricto sensu.

Apresentação Frente à universalidade do fenômeno zooterápico, faz-se imprescindível comentar a sua presença marcante não somente nas culturas ditas primitivas, mas também no âmbito da medicina civilizada. No presente trabalho, deixando para uma segunda parte, a ser posteriormente publicada, o fenômeno contemporâneo dos transplantes e das células tronco humanas, recontaremos aqui algo da história, natureza e metodologia de emprego da organoterapia, ou a utilização de órgãos (humanos e animais) na terapêutica, e dos seus primeiros sucedâneos no século XX, a lisadoterapia russa e a terapia celular por xenotransplantação, de origem suíça.

1. Introdução

Le cannibalisme régnait en thérapeutique.

Professeur GILBERT (1902)

Correspondência: Professor Ricardo Chequer Chemas, M.D., Rua Ilhéus 200 – Bairro: Rio Vermelho, Salvador, Bahia, Cep: 41940-570, Brasil. e-mail: <[email protected]>

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A organoterapia, ou o tratamento das enfermidades por meio da ingestão deliberada de órgãos animais e humanos, é uma prática extremamente antiga, provavelmente com milhões de anos de existência. Senso estrito, a alimentação carnívora é o seu ancestral mais remoto, seguido de perto pelo devoramento ritual dos órgãos dos mortos, sejam estes parentes próximos, guerreiros de outra tribo ou da própria, tradicionalmente realizado no propósito de absorver parte das virtudes supostamente ali encerradas, tais como a coragem no coração dos valentes, ou a virilidade nos testículos daqueles mais férteis. A etapa seguinte consistiu no uso propriamente medicinal dos materiais orgânicos, o qual ainda se encontrava indissociável de elementos mágico-religiosos, como de resto todas as práticas curativas, não apenas na pré-história, porém ainda assim, continuando pelos milhares de séculos que se seguiriam, até os finais do século XVIII. A organoterapia é, por assim dizer, uma medicação instintiva: desde a sua origem, encontra-se a idéia, muito simples, de que as vísceras, separadas dos corpos, conservam uma parte de suas propriedades e que a sua ingestão supre a insuficiência dos órgãos similares. Assim, os antigos Egípcios atribuíram poderes medicinais aos testículos. De uma maneira similar, no Ayurveda, o Susruta (em torno de 1000 a.C.) já recomendava a ingestão de tecido testicular como tratamento da impotência. Respaldados por esta escritura sagrada, os Hindus se serviam, a despeito da sua repugnância pela carne animal e da sua crença na metempsicose, de um remédio composto de testículos de rãs, de crocodilos, de pardais e de ratos, o qual daria ao homem uma potência de coito infinita, desde que este não tocasse o solo (in Lepinois, 1899).

Já em plena civilização moderna, no primeiro dia do mês de junho de 1889, o Professor Charles-Édouard Brown-Séquard, eminente médico e neurofisiologista francês, escandalizou o mundo científico e leigo ao relatar para a Societé de Biologie, em Paris, o impressionante (e ao mesmo tempo objetivo) aumento de força e vigor físico e mental experimentado em si mesmo após a injeção subcutânea de um líquido extraído dos testículos de cães e de cobaias (Brown-Séquard, 1893). Embora esta corajosa e lúcida experiência tenha se tornado o marco inicial do nascimento da endocrinologia, por permitir a Brown-Séquard reconhecer e formular com palavras exatas o fenômeno e a existência das glândulas de secreção interna (à parte do já conhecido fenômeno de secreção exócrina), o viés reducionista de um século vinte obcecado com a idéia de um princípio ativo único, de natureza monomolecular, atribuiu os efeitos terapêuticos assombrosos, descritos pelo respeitável e sério pesquisador, (observados não somente em si mesmo como também em centenas de outros indivíduos, dentre médicos e pacientes, muitos destes portadores de

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afecções extremamente graves, a exemplo do câncer e da tuberculose) ao “efeito placebo“ ou, conforme expressão corrente na época, à “autosugestão“. Partindo de uma isenção histórica maior, dada pela atual posição temporal privilegiada, situada em pleno alvorecer do século vinte e um, e na qual se encontra o autor neste momento, o presente trabalho propõe-se a demonstrar, com análises e argumentos tirados tanto do método científico quanto da abordagem relativista do fenômeno histórico, em que medida o julgamento retroativo do século vinte mostra-se colorido pelo preconceito e por ideologias, disfarçado por detrás da suposta neutralidade do método científico (vide Grossinger, 1987).

Tal postura essencialmente a-crítica motivou o descarte sumário de todo um precioso sistema terapêutico, a organoterapia (ou opoterapia, segundo Landouzy, do grego opós = suco, e terapein = tratamento), a qual consiste no tratamento pela administração criteriosa aos pacientes de extratos de órgãos e glândulas homólogos provenientes de animais (Gilbert e Carnot, 1911).

Sua origem nas brumas dos primórdios da pré-história em muito transcende a tentativa de limitação desta às luzes da era vitoriana, assim como também o seu alcance e potenciais terapêuticos, que se estendem para bem mais além da estreita visão da indústria farmacêutica de síntese, limitada pela herança conceitual fragmentada do século que imediatamente nos precedeu. Conclui-se pela proposta de retomada crítica da técnica da organoterapia, do método séquardiano ou opoterapia como importante instrumento terapêutico.

1. A antropoterapia como uma modalidade particular da organoterapêutica.

A publicação do livro “The Origin of Species”, de Charles Darwin, no dia 22 de novembro de 1859 pode ser considerada como data oficial da remoção do Homo sapiens da posição antinatural onde foi colocado, numa categoria à parte como espécie “superior” do reino animal, para a sua real situação, muito mais modesta, de apenas uma espécie zoológica dentre milhões de outras, a despeito de suas peculiares habilidades intelectuais que lhe permitem, inclusive, chegar a esta própria constatação biológica (Haeckel, 1874, 1910). No século XXI, como consequência, a hipótese da universalidade zooterápica (Marques, 1994), para ser de fato abrangente do ponto de vista epistemológico, necessita situar novamente o Homem em seu

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lugar próprio, humilde, na scala naturae, incluindo esta espécie do grupo dos primatas antropóides entre os seus agentes terapêuticos, inclusive dos mais importantes. De maneira independente das nossas classificações puramente teóricas, a antropoterapia ou a utilização terapêutica do homem e de seus órgãos, secreções e excreções remonta seguramente às origens remotas da organoterapia, em plena pré-história. Tudo se inicia com a antropofagia. A partir da mesma lógica vigente para com a organoterapia de origem exclusivamente animal stricto sensu, o devoramento ritual do coração dos guerreiros mortos em batalha tinha como finalidade incorporar assim as suas virtudes mais nobres, a exemplo da coragem (do latim cor agire, agir com o coração), no organismo do paciente. Os antigos Chineses, por sua vez, serviam-se do sêmen de jovens vigorosos, adquiridos a um preço determinado (usualmente bastante alto), para o preparo de medicamentos utilizados contra a impotência e os males da senilidade. Os nobres patrícios romanos, já na antiguidade clássica, costumavam precipitar-se por sobre os corpos dos gladiadores mortos na arena, para sofregamente beber o sangue ainda quente que jorrava das feridas recém-abertas, no intuito de curar a anemia e a epilepsia. A partir da Idade Média, o emprego judicioso do crânio, do cérebro e, especialmente, da gordura retirada dos enforcados alcançou uma popularidade inusitada, a ponto de gerar um comércio lucrativo e, até mesmo, criminoso. No século XV, ainda na Escola de Salerno, Nicolaus Myrepse, em sua De Compositione Medicamentorum, ousa preconizar o cérebro humano, extraído dos cadáveres ainda frescos de indivíduos acometidos de morte violenta, como medicamento contra a epilepsia. Na renascença, Paracelsus, após queimar publicamente as obras de Galeno (provocando então um escândalo sem precedentes), emprega preferencialmente o sangue humano. No ano de 1500 d.C., Jean Fernel foi autor de uma Terapêutica que permaneceu clássica por um longo tempo, e na qual numerosas substâncias orgânicas extraídas do homem morto ou vivo foram experimentadas. Por volta de 1646, o alquimista David Planis Campy, chamado de o Edelpho, elabora arcanos do gênero dos de Paracelsus: segundo aquele, a água destilada do sangue humano é admirável contra a pleurisia e as infecções internas. O emprego do outrora famoso elixir de crânio humano, bem como das memoráveis gotas da Inglaterra, elaboradas pela destilação cuidadosa e prolongada do encéfalo de cadáveres frescos acometidos de morte violenta, generalizou-se principalmente por conta de suas celebradas virtudes como drogas antiepilépticas de atestada eficácia, perdurando

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até às primeiras três décadas do século XVIII. A esta paisagem um tanto macabra, soma-se o escatológico, e o uso terapêutico da urina e das fezes humanas como medicamentos preciosos nunca perdeu o seu lugar universal, desde os tempos mais remotos, no Egito, passando pelos árabes, chineses e pela Idade Média e continuando-se, sem interrupção, em algumas culturas atuais, a exemplo da Índia de hoje com a medicina ariuvédica, e daí até a sua difusão, cada vez maior, pelo ocidente atual, ávido de práticas medicinais complementares (in Fataccioli, 1911). As transfusões de sangue, prática rotineira na medicina oficial ocidental, haveriam de iniciar-se muito antes da presente era, mais precisamente em finais do século XV. A primeira tentativa histórica registrada de uma transfusão sanguínea foi descrita pelo cronista do século XVII Stefano Infessura. Este relata que, em 1492, enquanto o Papa Inocêncio VIII mergulhava num coma profundo, o sangue de três garotos era infundido no pontífice moribundo por sugestão de seu médico clínico, só que pela boca, já que o conceito de circulação sanguínea e os métodos para acesso intravenoso ainda não existiam àquela altura da história. Os garotos tinham apenas dez anos, e tinha sido prometido a estes um ducado cada. Entretanto, não apenas o Papa morreu, como também as três crianças agonizaram aos pés do cadáver do pontífice (de Rossa, 1988). Depois, no século XVII, vieram as verdadeiras transfusões de sangue (Libavius, François Pottler, Folli, Lower, Denys), com tantos abusos e acidentes, que a Corte de Roma termina por condenar o procedimento, no que em breve é seguida pelo Parlamento de Paris (in Grasset, 1900). Assim, as transfusões de sangue só viriam a ser retomadas com relativa segurança e eficácia terapêutica, em finais do século XIX e no início do século XX.

2.História

Podem-se distinguir seis períodos históricos na organoterapia (apud Lepinois, 1899):

2.1. Período greco-latino

Os antigos gregos utilizavam numerosos remédios animais. Homero conta como o centauro Quíron fortificou Aquiles fazendo com que este ingerisse a medula óssea dos leões. Os sacerdotes nos templos de Esculápio recomendavam aos leprosos a carne das víboras. Hipócrates (460 a.C.) deixou uma longa lista de medicamentos opoterápicos, dos quais bem poucos foram conservados até nossa época (Hipócrates, 2003). A bílis de touro, por exemplo, formulada em

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supositórios elaborados juntamente com mel de abelhas, consistia num remédio hipocrático clássico contra a obstipação intestinal, e que se revela funcional até os dias de hoje. No primeiro século de nossa era, os seus sucessores Dioscórides de Anazabe (ano 100 d.C.), em seu grande tratado Sobre a Matéria Médica, e Plínio, o Velho (23–79 d.C.) (que haveria de morrer vítima de sua própria curiosidade científica, queimada pelas lavas do Vesúvio), já empregavam alguns órgãos mais: de acordo com o Livro XVIII da sua vasta Enciclopédia de História Natural, este último autor prescrevia o fígado nas hepatites, o baço contra os tumores, os ovários das lebres para os distúrbios ginecológicos, a carne das víboras contra as mordidas das serpentes, os pulmões nas afecções respiratórias, e vários outros órgãos de espécies distintas de animais, de acordo com a mesma linha de raciocínio: similia similibus curantur. Ainda Plínio afirmava que os medicamentos feitos a partir de animais se mostravam mais eficazes que aqueles elaborados a partir de plantas, sendo assim, consequentemente, remédios um tanto vivos. Musa introduziu em Roma a carne das víboras contra as úlceras malignas; Andrômaco, médico de Nero, inventou a teriaga, impressionante exemplo de polifarmácia antiga cujo principal componente era ainda a carne das víboras. Galeno (131 d.C.), sobretudo, empregou racionalmente a organoterapia. É sua, assim, a utilização do fígado dos lobos contra a icterícia.

2.2 Árabes e a Idade Média

Em pleno século VIII, Mêsuê (777–857 d.C.), cujo verdadeiro nome era Abou Zakaria Yahia Ben Nasouiah, médico árabe do califa Haroun, em Bagdad, escreveu em forma erudita e detalhada sobre os medicamentos animais e das medicações orquítica e pulmonar. Elabora em seguida uma lista de drogas animais que o boticário deveria ter em estoque, as quais são em número de cinqüenta e seis. Dentre estas, está a sua prescrição do sangue das lebres para os anêmicos. Por sua vez, o sangue das cabras para a litíase renal, o sangue das hienas contra os terçóis e a bílis das perdizes contra a catarata, são descritos minuciosamente por Avicena; a seu nome podemos acrescentar os de Rhazes e Albucasis. Já na Itália medieval, a Escola de Salerno, na pessoa de Nicolaus Praepositus (980-1036 d.C.), deu indicações precisas acerca da organoterapia, e dentre estas se encontra também o uso do sangue das lebres, desta vez contra as hemorragias. Alberto Magno, no século XIII, afirma que todo ser comunica às coisas às quais se une suas propriedades naturais. Com base nisto, prescreve os testículos dos porcos aos homens impotentes, o útero

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das lebres às fêmeas inférteis, o cérebro dos camelos, leões e lebres contra a epilepsia e a loucura etc (in Mousson-Lanauze, 1926).

2.3 Renascença

A Renascença é, ainda, bastante a favor dos produtos orgânicos: Symphorien Champier fala acerca destes em seu Espelho dos Boticários e Farmacêuticos. Wurtz, um dos discípulos de Paracelsus, considerava que: “[...] o corpo produz um bálsamo natural, que varia de acordo a cada tecido e que é o agente da restauração.” Não soa já esta afirmativa como uma protoformulação da endocrinologia? Dusseau e Jacques Sylvius preconizam o sangue das cabras, a gordura, a pele, os ossos, o fel de animais tais como galos, cabras, raposas, e chegam a fornecer detalhes numerosos e complexos de sua preparação (in Davies, 1902).

2.4 Séculos XVII e XVIII

Van Helmont (1655 d.C.), nos Países Baixos, e Duchesne e Rebecque, na França, citam algumas preparações. Por detrás de todas essas aplicações, pode ser percebido o mesmo princípio geral resumido assim por Daniel Becker (1622): “[...] é possível tirar grandes remédios do corpo [...], as coisas semelhantes estando preservadas por seus semelhantes. Pois é verdadeiro que certas partes das feras aliviam e curam as mesmas partes do corpo humano: por exemplo, o cérebro das lebres é bom para males da cabeça, assim como o pulmão das raposas e das vitelas aos tísicos e aos asmáticos, o coração dos cervos é um grande cordial, a moela dos galos fortifica o estômago, o fígado dos lobos é bom para os hepáticos, o falo dos cervos auxilia a procriação” (apud Lepinois, 1899). Van Helmont, o criador da teoria dos fermentos internos localizados nos órgãos, trata a si próprio pelo sangue das cabras quando acometido de pleurisia. Mas é com Nicolas Lémery (cerca de 1730) que o método atinge o seu apogeu; sua Pharmacopée Universelle (1787) reafirma a preparação de todos os órgãos: o coração dos lobos, das lebres, dos cervos, pulmões de raposas, mamilos de novilhas, bexiga, testículos de javalis, rins de galos, cérebro de pardais, até mesmo a urina e os excrementos de diversos animais (e do homem) eram utilizados. Depois, a organoterapia declina; a civilização ocidental torna-se paulatinamente mais cética e os progressos realizados pelas ciências mais exatas, naturais e químicas, fazem com que as farmacopeias do século XIX não mencionem outro medicamento opoterápico que não o

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caldo de carne de vitela ou o xarope do mesmo órgão. Se bem que os toureiros ainda continuem a comer os testículos dos touros sacrificados “para adquirirem músculos e sangue-frio”; os caçadores, os órgãos genitais dos javalis para aumentar a sua resistência à fadiga; os selvagens, o coração de um inimigo valoroso para absorverem as qualidades do vencido etc. Mas a medicação organoterápica propriamente dita tornou-se bem menos importante que outrora. O esquecimento se faz então durante um século (ao menos dentre o mundo medico), quanto às propriedades dos remédios animais; mas as tradições populares iriam conservar seu uso (Costa-Neto et al., 2009).

2.5 Século XIX

Período científico da opoterapia: como disse Lépinois (1899): “[...] desde a Idade Média, já se encontra com bastante clareza a hipótese que serviu de idéia-guia neste método, hipótese que não difere sensivelmente das teorias de Brown-Séquard sobre as funções das glândulas de secreção interna e de suas aplicações em Medicina”. No entanto, com as admiráveis descobertas fisiológicas do século XIX, em pleno surgimento da Medicina Experimental, entramos então numa era verdadeiramente científica, e não apenas empírica. Claude Bernard enuncia o princípio das secreções internas: “Eu denominei”, disse ele, “secreções externas aquelas que se escoam ao exterior, e secreções internas aquelas que não são lançadas dentro do meio orgânico interior” (Bernard, 1855). Reconhece-se, assim, o seu papel na fisiologia, bem como o das diástases ou fermentos glandulares (futuramente chamadas de enzimas) e das sinergias interglandulares. Emprega-se então, já no século XIX, em Terapêutica, certos extratos digestivos, a pepsina, a pancreatina, a bílis, o óleo de fígado de bacalhau etc; e nesta época utiliza-se também a hemoglobina e o soro sanguíneo com fins terapêuticos. Brown-Séquard, em 1899, erige a opoterapia em um verdadeiro corpo de doutrina, reafirmando, assim, embora não nos mesmos termos e sem uma concepção demasiado simplista das coisas, aquilo que, à vontade, haviam proclamado todos os povos antigos, dos Hindus aos Chineses, dos Gregos e dos Latinos aos alquimistas da Idade Média. Assim a humanidade, veloz em esquecer, descobre de novo coisas muito velhas das quais apenas se guardava uma impressão embotada e adormecida. Consequentemente, no final do século XIX, Brown-Séquard iria expressar suas noções empíricas realmente racionais e científicas e a organoterapia, a despeito do pouco crédito que lhe atribuíram (e ainda lhe atribuem) certos terapeutas médicos, seria adotada com

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entusiasmo por muitos dentre estes, a ponto mesmo de originar futuramente, no alvorecer do século XX e com o isolamento e a caracterização química dos primeiros hormônios (adrenalina, tiroxina, insulina, foliculina [hoje progesterona], androsterona, testosterona), a então novíssima ciência da Endocrinologia. A partir de 1889, a Opoterapia tornou-se a modalidade de tratamento médico mais conhecida e praticada do final do século XIX e princípio do século XX, estendendo-se, em progressivo declínio, até meados da década de 1950 e mesmo até os anos 1960. Foi sistematicamente ensinada nas melhores faculdades do mundo durante todo esse tempo, e era preconizada para o tratamento de quase todas as patologias, desde tuberculose a distúrbios nervosos, de gastrite à artrose, passando por hemoptises, hipogonadismos, taquicardia, câncer, esclerodermia, ictiose, senilidade, reumatismos, convulsões, coqueluche, conjuntivites etc. Assim, conforme vimos acima, apesar de ser uma das mais antigas maneiras de se tratar doenças, como atestam os papiros egípcios, como o Papiro de Ebers, e o relato bíblico da cura da cegueira de Tobit, filho de Tobias (curado, de acordo com a receita explícita do Arcanjo Raphael, pela aplicação direta da bílis fresca de peixe diretamente no globo ocular, à forma de colírio), a opoterapia só foi efetivamente incorporada à moderna medicina a partir, e principalmente, depois dos trabalhos pioneiros de Brown-Séquard e d’Arsonval.

2.6 Século XX

Após Hallion, a Opoterapia pode ser classificada, conforme seu mecanismo de ação, em pelo menos cinco tipos diferentes (Hallion, 1911): 1) Opoterapia substitutiva: o exemplo típico seria o extrato de tireóide. Ao ser introduzido no organismo, irá substituir a ação do hormônio não produzido pela glândula em questão. Nesta classe se encontram quase todos os opoterápicos derivados de extratos das glândulas de secreção interna.

2) Opoterapia homoestimuladora: observou-se que certos extratos, notadamente os glandulares, exerciam também um efeito estimulador sobre os órgãos humanos correspondentes, aumentando-lhes a capacidade funcional. Extratos de tireóide, supra-renal, hipófise (anterior e posterior), estômago, duodeno e fígado estavam entre eles.

3) Opoterapia sintomática: certos extratos exerciam ação direta sobre os sintomas da doença, aonde quer que fosse esta, como por

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exemplo, o extrato da medula supra-renal nas hemorragias, sendo ele próprio um vaso-constrictor.

4) Opoterapia reguladora: se um órgão está superexcitado, em atividade acima do normal, pequenas doses do extrato podiam exercer ação frenadora, regulando a atividade deste órgão – provavelmente (embora não o saibamos de verdade) por mecanismo de feedback neuro-endócrino, desconhecido à época, porém já antevisto décadas antes por Brown-Séquard.

5) Opoterapia antagonista: num certo número de casos, os extratos opoterápicos eram chamados a desempenhar um papel ao qual se deu o nome de antagonista. Registrou-se que existe uma correlação entre certas glândulas, a exemplo do ovário e da glândula tireóide, do ovário e das glândulas mamárias etc. Um doente apresenta, por exemplo, em seguida à extirpação dos ovários, uma doença de Graves-Basedow, o que quer dizer uma síndrome de hipertiroidismo. A opoterapia ovariana, ao reintroduzir na economia orgânica o suco ovariano, aonde sua ausência coincide com o desequilíbrio da função tiroidiana, poderá estabelecer o equilíbrio, exercendo assim um papel regulador antagonista. Acerca do mesmo papel antagonista referiu-se o caso tornado clássico do paciente Kendle, oito anos de idade, exibindo cretinismo e apresentando já uma puberdade completa e no qual a opoterapia tiroidiana, ao mesmo tempo em que melhorando bastante o quadro mental, propiciou a regressão dos sinais da puberdade. A terapêutica com extrato testicular nos distúrbios do climatério, paralelamente e em oposição ao emprego da modalidade clássica de terapêutica utilizando extrato ovariano, é outro exemplo similar, embora distinto, de opoterapia antagonista. O decréscimo da popularidade ou do “modismo terapêutico” da Opoterapia se deveu ao fato de que a cada descoberta de que a um determinado constituinte de um determinado extrato de órgão se devia sua ação farmacológica, e que este constituinte podia ser isolado e purificado, aumentando sua eficácia e segurança, permitindo dosagem mais precisa e maior rendimento terapêutico, passou-se a preferir a substância laboratorial ao seu opoterápico. Além do que, como resultado do segredo industrial na obtenção desses produtos, pôde-se ao processo laboratorial agregar um mais alto valor final de venda da substância purificada que a obtida pelo extrato do órgão, essa última uma tecnologia farmacêutica pouco sofisticada e accessível a praticamente qualquer um. Vale a pena comentar que esta filosofia da substituição do extrato opoterápico pelo hormônio de síntese é bastante parcial, e só se aplica, mesmo assim com reservas, ao primeiro tipo na classificação de Hallion (opoterapia substitutiva), permanecendo intacto o valor

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em si da organoterapia em todos os outros quatro tipos. Ademais, não somente o hormônio purificado age na técnica opoterápica, porém todos os outros princípios bioquímicos – peptídeos, nucleotídeos, aminoácidos e vitaminas – presentes no tecido íntegro, atuam em sinergia com a molécula isolada artificialmente, dita “princípio ativo”. Ainda no século XX, no rastro da Opoterapia, outra modalidade de tratamento nasceu, semelhante na concepção filosófica, mas diversa na preparação técnica dos componentes, cuja ação obedeceria a outras premissas farmacológicas. Assim, surgiu com o fisiologista russo I. N. Kazakov, na década de 1930, a Lisadoterapia.

3. A lisadoterapia

A terapêutica com lisados de órgãos, criada e sistematizada pelo cientista russo I.N. Kazakov, por volta de 1930, tem como característica principal a restauração e reativação das funções biológicas pelo uso de hidrolisados de tecidos e órgãos animais (Kazakov, 1942). A lisadoterapia pode ser definida como o tratamento realizado com hidrolisados enzimáticos de células específicas, extraídas de órgãos de origem bovina, suína e de outras espécies zoológicas, e utilizados para o tratamento de casos de esgotamento físico ou mental, deficiência imunológica, processos alérgicos, processos degenerativos, deficiências hormonais e, de maneira geral, para otimização do metabolismo intra e intercelular. Os lisados são obtidos por meio de procedimentos laboratoriais assépticos que garantem a obtenção de produtos com as qualidades necessárias para utilização terapêutica, sendo que a mais importante delas é a organoespecificidade.

3.1 Organoespecificidade

Os lisados têm uma ação inespecífica, caracterizada pelo aporte de elementos vitais, e uma ação específica de órgão = organoespecificidade = devido ao fato de que mantém a sequência molecular adequada para conservar as características das proteínas específicas dos órgãos que lhes deram origem, perdendo, no entanto, a característica da espécie. Isso permite que sejam injetados ou ingeridos sem nenhum tipo de inconveniente do tipo choque anafilático ou rejeição imunológica. O peso molecular correto (em Daltons) do produto final é também muito importante porque dele depende sua organoespecificidade. Os polipeptídeos presentes nos lisados têm peso médio de 6000 D = seu

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peso ideal. Acima de 9000 D o produto desencadearia o processo digestivo, portanto, seria degradado a aminoácidos, moléculas de baixo valor bioinformacional, perdendo assim a capacidade organotrópica. Abaixo de 4000 D, o produto careceria de organotropismo. A característica mais importante destes produtos é que se comportam como nutrientes específicos de cada órgão, portanto, não provocam intolerância de nenhuma natureza, não possuem superdosagem nem efeitos colaterais, dentro das margens terapêuticas, até mesmo em doses dezenas ou mesmo centenas de vezes maiores. A terapêutica com lisados de órgãos é uma medicação de terreno = que ativa notavelmente as respostas orgânicas, mas não tem efeitos colaterais apreciáveis = restaura e revitaliza exclusivamente. Porém, o êxito de sua utilização está ligado, principalmente, à precisão do critério médico.

3.2 Nucleotídeos

Se partirmos do princípio de que o processo patológico danifica a função específica da célula e que esta função específica é dada pela produção de proteínas específicas (que por sua vez depende do RNA que foi transcrito do gene correspondente do DNA), podemos dizer que é provável que este DNA esteja também danificado (como demonstram as últimas teorias acerca do conceito de enfermidade) e sua transcrição se tornou, portanto, defeituosa. Se considerarmos que a especificidade do gene está contida na sequência das bases (púricas e pirimídicas) que formam seu nucleotídeo, podemos concluir que o aporte de oligonucleotídeos específicos, contidos também nos lisados, pode-se até reverter o processo patológico, mesmo em nível genético. Este material chega pela corrente sanguínea ao espaço extracelular, de onde penetra na célula. Uma vez dentro da célula, pode chegar ao núcleo, onde exerce ação benéfica sobre o DNA nuclear devido ao aporte de nucleotídeos provenientes de órgãos sãos e vitais. Este material pode, além do mais, ser utilizado pela célula como material regulador em seu metabolismo. A lisadoterapia é, portanto, em essência, uma terapêutica que funciona por transferência de bioinformação entre dois organismos: o animal doador, e o paciente receptor.

3.3 Aminoácidos e peptídeos

Os aminoácidos são as unidades elementares constitutivas das moléculas denominadas proteínas. São os “tijolos” com os quais o organismo reconstrói permanentemente suas proteínas específicas

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consumidas pela ação de viver. Proteínas são os compostos nitrogenados mais abundantes no organismo. Devido à sua grande variedade, e como consequência de sua estrutura, as proteínas cumprem funções diversas, participando de todos os processos biológicos e constituindo estruturas fundamentais para os seres vivos. Atuam acelerando reações químicas necessárias à vida (enzimas), que de outro modo não poderiam ocorrer a tempo; transportando substâncias (como a hemoglobina do sangue, que transporta oxigênio aos tecidos); cumprindo funções estruturais (como a da queratina, no cabelo); servindo como reserva energética (albumina do ovo) etc. Os alimentos que ingerimos contêm as proteínas de que necessitamos, mas tais proteínas não são absorvidas na sua constituição original. No processo de digestão ocorre a hidrólise, ou “ruptura”, e as proteínas atravessam a parede intestinal na forma de aminoácidos e cadeias curtas de peptídeos, no que se denomina circulação entero-hepática. Essas substâncias se incorporam inicialmente à corrente sanguínea e de lá são distribuídas para os tecidos que delas necessitam para formar as proteínas, consumidas durante o ciclo vital. Sabe-se que dos 20 aminoácidos protéicos conhecidos, oito resultam indispensáveis (ou essenciais) para a vida humana e dois são semi-indispensáveis. São esses dez aminoácidos que precisam ser incorporados ao organismo em sua nutrição quotidiana e, em especial, nos momentos em que o organismo mais necessita deles: na disfunção ou doença. Nos períodos em que se atravessam crises funcionais (sejam elas desnutrição [aguda ou crônica], traumatismos ou comprometimentos articulares e/ou musculares, alterações no trato gastrointestinal, hepatites, afecções renais, deficiências cerebrais ou nervosas etc.), demandas extras por razões mecânicas (como nos atletas etc.) ou cerebrais (estresse, exames, provas etc.), produz-se aumento no consumo dos aminoácidos, sendo muitas vezes conveniente suplementar a dieta habitual com a administração exógena dos mesmos. Por estas razões, a ingestão de lisados, e seus aminoácidos, significa um extraordinário recurso preventivo, já que incorpora ao organismo mecanismos de fortalecimento frente a previsíveis compromissos extras, sejam esses derivados de circunstâncias especiais (excessos de atividade física ou mental, por exemplo) ou da inevitável decadência das funções orgânicas, derivada do envelhecimento natural. Portanto, pode-se dizer que os lisados complementam as dietas habituais no que se refere a aminoácidos essenciais, tanto em condições normais como nos casos em que se encontra aumentada a demanda pelos mesmos. Sem esquecer, os oligonucleotídeos resultantes da hidrólise

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controlada da carga nuclear, os lisados contêm ainda uma grande quantidade de peptídeos de diferentes tamanhos que contribuem eficazmente no tratamento e para a prevenção de um grande número de afecções orgânicas – através da transferência de bioinformação. Isso tem sido demonstrado ao longo de mais de cem anos de experiência clínica e laboratorial de uso, em várias partes do mundo.

3.4 Doenças auto-imunes e lisadoterapia

O sistema imunológico é o sistema de defesa mais importante que o organismo tem frente às agressões de vírus, bactérias e outras substâncias estranhas. Sua função consiste em reconhecer cada um dos tecidos, das células e das proteínas do organismo para distinguí-las de uma ampla variedade de agentes patogênicos, os quais deve destruir. Nesse processo, têm grande importância os linfócitos T, que fazem parte dos glóbulos brancos sanguíneos. Normalmente, durante o desenvolvimento fetal (ontogenia), o sistema imune “aprende” a distinguir as substâncias próprias do organismo, mantendo inativos ou destruindo os linfócitos T que reagiram às mesmas. Mas se essas células não são desativadas ou destruídas, com o passar do tempo podem desenvolver clones incapazes de distinguir o próprio do impróprio, gerando uma reação auto-imune. Como consequência dessa reação, gera-se um processo inflamatório do órgão ou órgãos que contêm essa substância, denominado órgão branco. Isto danifica o órgão branco, resultando em perda da funcionalidade do mesmo, e deteriorando a qualidade de vida do paciente, pondo sua vida em risco. Em alguns indivíduos, as doenças auto-imunes manifestam-se após anos de funcionamento normal do sistema imune. Isto ocorre logo depois de uma infecção por uma bactéria ou vírus comum, que contém uma proteína com uma fração similar a outra de um tecido do indivíduo. Tal fração é, algumas vezes, de cinco aminoácidos somente. As doenças auto-imunes manifestam-se principalmente entre mulheres (dois terços dos casos) e vêm se tornando cada vez mais comuns (atingem 5% da população dos Estados Unidos). Alguns exemplos delas são a artrite reumatóide, a fibromialgia, a esclerose múltipla, a diabetes tipo I, a miastenia gravis, o lúpus eritematoso e a psoríase, etc. Veremos a seguir como a lisadoterapia utilizando órgãos animais homólogos pode ajudar a reverter estas patologias.

3.5 Tolerância oral e lisadoterapia

Nos últimos anos, uma nova terapia, conhecida como Tolerância Oral, vem sendo desenvolvida, com a utilização dos hidrolisados de

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órgãos animais, para auxiliar no tratamento de tais doenças. Ela utiliza um mecanismo natural do corpo humano e animal, permitindo, assim, que o organismo não rejeite os alimentos (ou os medicamentos hidrolisados), que seriam considerados substâncias estranhas. A terapia por tolerância oral utiliza o mecanismo natural do sistema imunológico para permitir o processo da nutrição sem provocar rejeições ou reações de hipersensibilidade a alimentos e/ou medicamentos proteolisados. Isso é conseguido por meio da supressão da resposta imune frente a substâncias estranhas, da qual participa o tecido linfóide associado ao intestino, principalmente nas placas de Peyer. Os resultados obtidos com esta terapêutica foram bem sucedidos tanto em animais como em humanos (Gavrilov, 1947). Nesse mecanismo se encontram envolvidos o tecido linfóide intestinal, as placas de Peyer, as células epiteliais das veias, os linfócitos intra-epiteliais e os linfócitos disseminados pela própria lâmina. As placas de Peyer são nódulos ricos em linfócitos B e T (Th1 e Th2), macrófagos, células dendríticas, um centro germinal que contém linfócitos B e células M, estas últimas encarregadas de permitir o ingresso e a transferência dos antígenos. As proteínas que ingressam no tubo digestivo podem permanecer intactas, parcialmente hidrolisadas ou se degradarem em aminoácidos. Estas moléculas ingressam através das células M (nas placas de Peyer) ou de células especializadas, que se encontram nas veias. Pequenos peptídeos que faziam parte da proteína hidrolisada surgem sobre a superfície das células liberadoras de antígenos e estimulam os linfócitos T e B a reagir frente a este peptídeo. Alguns dos linfócitos T estimulados são induzidos a atuar como células reguladoras, Th2. Essas células, quando são estimuladas pelo mesmo peptídeo, liberam substâncias supressoras da reação imune, como IL-4, IL-10 e TGF-beta. Tais substâncias reduzem a reação inflamatória produzida nas doenças auto-imunes. Existem três mecanismos conhecidos que induzem o efeito de tolerância oral, dependendo da dose de auto-antígeno: supressão ativa, anergia clonal e deleção clonal. Esses três mecanismos podem atuar individualmente ou de maneira combinada. O mecanismo de supressão ativa é favorecido pelas doses baixas de auto-antígeno ao passo que as doses altas favorecem a anergia e a deleção clonal. Na supressão ativa, as doses baixas de auto-antígeno oferecidas pelas células liberadoras de antígeno do intestino estimulam as células reguladoras (Th2), que logo passam à circulação geral. Aí se encontram com auto-antígenos similares aos ingeridos (que provocam a doença) e começam a secretar citoquinas inibitórias, suprimindo a reação auto-imune e atenuando a doença.

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A anergia clonal, por sua vez, é produzida quando as doses altas de auto-antígenos induzem a uma falta de resposta dos linfócitos Th1, principais responsáveis pela auto-imunidade. A anergia pode vir da alta concentração de citoquinas, capazes de gerar uma resposta secundária que acaba por inibir a reação inflamatória própria da doença. O terceiro mecanismo conhecido é a deleção clonal que consiste na eliminação do clone responsável pela reação auto-imune, quando este está em contato com altas doses de auto-antígeno. Esse mecanismo é similar ao que ocorre no timo durante o desenvolvimento ontogenético ou individual, mas neste caso o processo é realizado nas placas de Peyer, no intestino. Qualquer que seja o método pelo qual se induza o efeito de tolerância oral trata-se de um processo imunológico natural que pode ser empregado com sucesso no tratamento das patologias auto-imunes pelos hidrolisados de órgãos. Além disso, a doença nem sempre é provocada pelo mesmo antígeno e às vezes produz-se pela presença de múltiplos auto-antígenos, os quais não necessitam estar intactos para produzir o efeito desejado.A lisadoterapia, neste sentido, representa a terapêutica ideal para induzir um estado quase fisiológico (e neste sentido, natural) de tolerância oral pela lisadoterapia. É muito importante recordar que, independentemente da eficácia das técnicas terapêuticas parciais empregadas, e de quaisquer que sejam estas, inclusive a lisadoterapia, o êxito de qualquer tratamento médico está no enfoque integral do paciente (Grossinger, 1987). Não se deve esquecer nunca, portanto, o antigo (e absolutamente verdadeiro) aforismo grego, com mais de dois mil anos: A enfermidade não existe, mas sim o enfermo. - Hipócrates de Cós (cerca de 460 a.C.).

3.6. Acerca da fabricação dos hidrolisados de órgãos e tecidos de animais

O hidrolisado é o produto da degradação total, ou parcial, de proteínas animais ou vegetais, mediante processos físicos, químicos ou enzimáticos. A degradação total implica em um produto formado quase exclusivamente de aminoácidos e outros componentes que participam como fração prostética da proteína. A degradação parcial implica em um produto formado por uma mistura de aminoácidos, peptídeos de baixo, médio e alto peso molecular e outros agregados comuns aos obtidos por hidrólise total, tais como ácido fosfórico, nucleotídeos, sais minerais etc. A proporção dos componentes, tanto em uma hidrólise física, química e enzimática, depende do grau de hidrólise que sofre o substrato e isto depende fundamentalmente do tempo que dura o processo de hidrólise. A atividade enzimática é

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altamente específica. Isto implica especificidade de substrato e de ação química. No primeiro caso, um tipo determinado de enzima atua com um determinado tipo de substrato e, dentro deste determinado tipo de substrato, em uma determinada ligação química ou função química. Por exemplo, as proteases atuam sobre as proteínas. Duas proteases distintas geram produtos distintos porque atuam em partes distintas da molécula de proteína e, inclusive, em condições distintas. A hidrólise de uma proteína pode ser: física (pressão e temperatura); química (ácida ou básica) e enzimática (em meio neutro, ácido ou básico); Geralmente, a hidrólise química conduz, em determinadas condições, a aminoácidos, quase exclusivamente, e se realiza a altas temperaturas e, em alguns casos, a alta pressão. A hidrólise enzimática se realiza a temperatura, pressão e pH determinados, obtendo, assim, o produto buscado. Uma hidrólise enzimática controlada, com uma só enzima ou um pool de enzimas, sempre nas mesmas condições, permite sempre obter os mesmos produtos. Obtêm-se as peptonas por um método composto de lysis aliado à combinação apropriada do complexo enzimático em condições determinadas e aplicadas aos tecidos, órgãos e glândulas de origem bovina. Seguem-se uma série de etapas complementares que implicam em outras: cascata de filtrações a diferentes porosidades, processos de esterilização e precipitações por frio e calor. As peptonas são também denominadas extratos ou extratos tissulares desalbuminizados, oligopeptídeos, peptonas, proteolisados, lisados etc. Na hidrólise com proteases (tripsina, pepsina, quimotripsina, papaína, bromelina, protease-K etc.), destroem-se, em forma parcial, as frações protéicas da célula, liberando todos os componentes não protéicos e permanecendo em solução todos aqueles que são solúveis no meio em que se realiza a hidrólise; os produtos não solúveis precipitam e são separados do sistema. Uma peptona, ou hidrolisado, não contém células nem lipídeos, ácidos graxos livres e macromoléculas, como proteínas. Todas estas frações se separam durante o processo de elaboração. A elaboração de uma peptona começa com a seleção da matéria-prima e os controles sanitários, seguidos pelas seguintes etapas:

a) Trituração e homogeneização; b) Degradação; c) Filtração grossa; d) Filtração fina; e) Esfriamento;

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f) Filtração ultrafina; g) Filtração esterilizante com placas; h) Fracionamento; i) Produto final, pronto para consumo.

Os hidrolisados com atividade fisiológica estão formados por frações de peptídeos de baixo e médio peso molecular e baixo teor de aminoácidos. Também é importante que o conteúdo intracelular, tanto citoplasmático como nuclear, esteja presente sem haver sido desnaturado. Os processos de degradação física ou química, pela sua natureza, não conduzem às frações de peptídeos com atividade fisiológica e tendem a desnaturar o resto dos componentes não protéicos, tanto citoplasmáticos como nucleares (Gavrilov, 1950).

4. Terapia celular por xenotransplantação

4.1 Definição

A Terapia Celular, ou Celuloterapia por Xenotransplantação, é um procedimento de ordem biológica que consiste no implante de suspensões celulares de origem animal (xenotransplantação) em estado embrionário ou fetal, conservadas por congelamento ou liofilização, com morfologia íntegra e bioquimicamente intactas, administradas por via intramuscular ou subcutânea ao ser humano, para tratamento de diversas enfermidades, notadamente aquelas de características degenerativas, tais como problemas neurológicos (do tipo esclerose múltipla e esclerose lateral amiotrófica, acidentes vasculares cerebrais, sequelas de traumatismos cranianos de etiologia variada), distúrbios do sono, fibromialgia, artrites, artroses, distrofias musculares, atrofias orgânicas de causalidades distintas (oculares, cerebrais e outras), distúrbios endócrinos, demência senil, demência de Alzheimer, psoríase, mongolismo, retardo mental infantil etc. Este tipo de terapêutica é realizado através da implantação de células de uma espécie distinta daquela do receptor, porém compatível com esta (Fishman, 1998). As células, que estão suspensas em uma solução especial (salina fisiológica, soro de Quinton, solução de Ringer, lisado de órgãos ou uma combinação de dois ou mais destes, de acordo com o caso específico) para uso intramuscular ou subcutâneo, porém nunca intravenoso, provém de embriões, fetos ou espécimes jovens não-humanos, e são aplicadas ao paciente de acordo a uma ordem e frequência estabelecidas pelo profissional

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médico responsável, adequadas à patologia específica de cada caso (apud Molnar, 2006).

4.2 História

Do ponto de vista histórico, o Dr. Paul Niehans de Basiléia (Suíça), em 1931, foi o primeiro a injetar uma suspensão celular de paratireóides de origem bovina fetal para tratar (com sucesso) um caso terminal de tetania espástica grave (a paciente permaneceu assintomática por mais de 23 anos, ocasião da sua morte por causas naturais e de outra ordem). Alguns atribuem a primazia da descoberta do procedimento uma maior anterioridade (Küttner, 1929). No entanto, foi Alexis Carrel que no início do século XX observou o fato experimental de que uma cultura de tecidos que perde vitalidade dirigindo-se para a morte (por destruição necrótica), modifica-se biologicamente se são adicionadas células fetais a este meio de cultura, mais especificamente células de embrião em desenvolvimento. Por outro lado, a estimulação tissular com células biologicamente vivas já havia sido antes experimentada por autores russos (Filatov, 1955, 1957), precursores de Paul Niehans. Os tecidos frescos são obtidos de animais bovinos, ovinos ou outros, inclusive tubarões (escola do Doutor Wolfram Kühnau), devidamente selecionados de forma prévia por sorologia específica contra diversas patologias, dentro de rigorosos critérios de medicina sanitária (Kühnau, 1983).

4.3 Fundamentação científica

O emprego da Celuloterapia implica, de acordo com o princípio da organoespecificidade da ação, na revitalização dos órgãos enfermos. Esta primeira concepção se traduz no fato experimental de que cada tipo de célula ou de tecido embrionário implantado tem a propriedade de atuar nos órgãos homólogos como excitante (após a sua fagocitose e subsequente transporte seletivo por meio dos leucócitos ou macrófagos), através dos fatores de crescimento celular (growth factors), além de fornecerem como nutrientes e fatores reparadores todas as suas substâncias próprias, componentes do microcosmos celular, tais como proteínas, polipeptídeos, aminoácidos, fosfolipídios, ácidos nucléicos (DNA e RNA), nucleotídeos e oligoelementos (Edwards, 1992). Assim, os constituintes das células cardíacas implantadas, qualquer que seja o lugar do corpo onde sejam injetadas, dirigem-se ao coração do paciente; as substâncias componentes das células hepáticas ao fígado, e assim sucessivamente. O mais interessante é que estas células atuam por

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organoespecificidade e não por espécie-especificidade, o que quer dizer que a sua atuação é por afinidade com o órgão do receptor, indiferentemente ao fato de sua espécie biológica ser distinta da do animal doador. É isto que nos permite, na prática, utilizar células bovinas ou de tubarões, por exemplo, para tratar disfunções orgânicas e doenças degenerativas em seres humanos. Denominamos revitalização ao restabelecimento do equilíbrio e da atividade biológica normal (fisiologia), quando ambos se encontravam deteriorados por desgaste (estresse) ou por uma enfermidade. O doutor Kment define a revitalização como a preservação ou a recuperação de um nível de vitalidade significativamente próprio de uma idade biológica inferior à que corresponde cronologicamente ao organismo. (Kment, 1961). Na prática, não se costuma empregar, na Celuloterapia, células de um único órgão, senão combinações destas, injetadas em tempos diversos, dado que na maior parte dos casos a patologia ou enfermidade afeta a curto ou em longo prazo os distintos órgãos do paciente. A partir de um adequado diagnóstico e contando com um material terapêutico proveniente de laboratórios especializados, o profissional determina a forma de aplicação do tratamento (o número de órgãos/células utilizados, bem como a frequência e a simultaneidade das injeções). O interrogatório (anamnesis) e a história clínica correspondente se fazem da forma médica clássica ou convencional. A isto se somam os exames complementares que podem estar constituídos seja por estudos ou provas rotineiras e especializadas de laboratório, assim como também métodos de diagnóstico por imagem, tais como radiografias, tomografias, ecografias, ressonância magnética nuclear etc.

4.4 Indicações

As indicações da Terapia Celular costumam ser as seguintes:

a) Diminuição das funções orgânicas, por enfermidades, estresse ou intoxicações (deficiência hepática por hepatite, alcoolismo ou iatrogenia; quadros reumáticos, LER = Lesão por Esforço Repetitivo = e fibromialgia; deficiências cardio-respiratórias, sexuais, endócrinas; climatério masculino ou feminino; neoplasias [câncer]).

b) Como imunomodulação em enfermidades autoimunes (artrites, alergias, asma, psoríasis, esclerose múltipla, diabetes tipo I, lupus eritematoso sistêmico etc.) e neoplásicas (câncer).

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c) Em quadros de deficiências congênitas (atraso de desenvolvimento mental ou corporal, síndrome de Down etc.).

d) Envelhecimento precoce, morféia, doença de Alzheimer, demência senil, demência vascular e outras formas de decadência física e mental.

4.5 Precauções e cuidados especiais

A Terapia Celular por Xenotransplantação é uma forma de tratamento completamente natural, por utilizar apenas materiais de origem biológica e, portanto, não-artificiais. No entanto, como em todo tratamento médico, existem algumas precauções e cuidados antes, durante e logo após o tratamento que devem ser levados seriamente em consideração. Na celuloterapia, os pacientes não devem ingerir carne bovina (se o implante é de origem bovina) desde a manhã do dia do implante até 24 horas depois deste. Deve-se evitar também a ingestão de enzimas proteolíticas vegetais (mamão devido à papaína, abacaxi devido à bromelina) por 48-72 horas antes e após o implante. Após três dias de realizada a xenotransplantação, o paciente deve começar a ingerir Vitamina C (ácido ascórbico) na dose de 10g/dia (10.000 mg/24h) durante cerca de três semanas. Pesquisas recentes demonstraram que este procedimento estimula e acelera a regeneração das células do próprio organismo do paciente após o implante xenólogo, inclusive quando se trata de células nervosas (neurônios e fibras). Nas duas horas prévias e nas duas posteriores à implantação não devem ser realizados exercícios violentos, fumar nem beber álcool ou outras drogas, inclusive (caso seja possível) medicamentos de nenhum outro tipo. Se os pacientes não respeitam estas regras, podem ser afetados por pruridos do tipo urticária localizados na zona do implante, assim como mal-estares generalizados, prostração, sudorese, leve descida da temperatura corporal etc. O eritema urticante, que é a reação mais importante, embora pouco frequente (um em cada dez mil casos, aproximadamente), se houver, corrige-se com a aplicação de um antialérgico (antihistamínicos ou corticoesteróides). Esta reação é devida à presença de pequenas quantidades de histamina nos hidrolisados, quando utilizados como veículo. Se o quadro for mais grave, devido à existência de uma sensibilidade particular idiossincrática (alergias), pode-se utilizar um corticóide maior (como a dexametasona) administrada de forma intramuscular. Alguns profissionais prescrevem antihistamínicos aos pacientes com história de hipersensibilidade prévia a medicamentos, três dias antes e

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depois de cada implante, e outros inclusive usam, nestes mesmos casos, um corticoesteróide (como a betametasona) simultaneamente à implantação e nos três dias posteriores à esta, tudo isto como extrema prevenção de qualquer reação alérgica indesejável. Na prática, certamente devido ao elevado grau de purificação e elaboração dos produtos celuloterapêuticos atuais, a probabilidade de aparecimento de reações alérgicas tem se minimizado e até mesmo desaparecido quase por completo.

4.6 Tratamento

O Tratamento Celuloterapêutico em si consiste na aplicação, em uma sequência adequada, do material terapêutico específico e apropriado para cada paciente. As precauções, como vimos acima, são escassas, os efeitos relativamente lentos (uma média de três meses de latência do período de implantação até o aparecimento dos resultados), porém quase que invariavelmente bem sucedidos (convém aqui lembrar que uma expectativa de acerto de 100% em qualquer procedimento biomédico é simplesmente não-realista). Sobre a base do diagnóstico, o médico determina quais serão os preparados que aplicará e em que dose administrará cada um, qual será a ordem de aplicação e quanto deverá durar o tratamento. As diferentes variáveis são determinadas de acordo com as características clínicas do paciente e a importância de cada uma das diversas patologias que o afetam, assim como o tempo disponível e, o mais importante, de acordo com a resposta clínica do paciente. São comuns as perguntas dos pacientes sobre a duração do tratamento e, assim, é importante dar uma resposta adequada. O médico é quem deve estabelecer esta duração tendo em vista cada situação particular e a otimização dos resultados. A sequência padrão típica que emerge da experiência médica acumulada em Celuloterapia nos últimos 70 anos compreende, em média, de uma a oito aplicações à razão de uma ou às vezes seis por sessão e, portanto, dura entre um mínimo de uma semana e um máximo de duas, dado que o interlúdio entre as sessões é de cerca de uma semana. Toda a sequência deve repetir-se (reforço) no espaço de seis meses, para consolidar a cura. O tratamento completo consiste, portanto, em duas sequências semestrais.

4.7 Contra indicações

Quanto às contraindicações e incompatibilidades com outros métodos terapêuticos, a Celuloterapia não tem antagonismos com nenhum tratamento médico de qualquer natureza, seja este alopático ou homeopático, à exceção da quimioterapia antineoplásica e da

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radioterapia e, mesmo assim, somente durante o uso destas e em suas vizinhanças temporais imediatas, após as quais o paciente encontra-se novamente apto a receber os implantes celulares. No entanto, a Celuloterapia como método terapêutico encontra-se fortemente contra-indicada para certas patologias, entre as quais se contam as seguintes:

a) Estado terminal de um paciente; b) infecções respiratórias Agudas; c) quadros infecciosos em geral; d) enfermidades que cursam com febre; e) infarto agudo do miocárdio; f) fase aguda de uma enfermidade crônica; g) neuroses graves.

Algumas das situações acima são habitualmente reversíveis (enfermidades infecciosas, ou fases agudas de enfermidades crônicas, febre) e, superadas estas condições, o paciente pode então dar início à Terapia Celular (Reigosa, 1998). Concluindo este breve resumo acerca da Celuloterapia, e lembrando a extrema atualidade revolucionária do seu emprego, já em pleno século vinte e um, repetimos aqui o conceito do Prof. Dr. Wolfram Kühnau, emitido na década de noventa do século imediatamente anterior, após mais de 50 anos de experiência clínica e laboratorial, acerca desta forma avançada de tratamento: “A Terapia Celular não é uma ‘técnica alternativa’ no campo da medicina. É muito mais que isto. É a medicina do futuro em sua mais pura forma de expressão”.

5. Conclusões

No presente trabalho faz-se uma breve revisão histórica do conceito de organoterapia, humana e animal, dentre as sociedades ditas civilizadas, em suas diferentes modalidades, tais sejam a opoterapia, a lisadoterapia e a terapia celular por xenotransplantação, deixando para uma segunda parte, a ser publicada posteriormente, os transplantes de órgãos íntegros propriamente ditos e as terapias contemporâneas utilizando células-tronco humanas, embrionárias ou não. Neste olhar retrospectivo ressalta claramente a universalidade temporal e não apenas espacial da prática zoo-organo-terapêutica, fazendo exceção, e mesmo assim relativa, um breve hiato no contexto da medicina européia de pouco mais de cem anos (de meados do século XVIII à penúltima década do século XIX), por conta do ceticismo introduzido naquela época com o fascínio provocado pela

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recém-nascida iatroquímica. Estendendo a abrangência da hipótese da universalidade zooterápica para incluir a prática medica da urbis planetária, foram brevemente revisados, assim, a natureza, os mecanismos de ação e as aplicações terapêuticas das formas de organoterapia abordadas bem como a sua pertinência clínica, tanto mais atual quanto à margem dos interesses econômicos meramente capitalistas da indústria farmacêutica oficial, baseada quase que exclusivamente no emprego dos altamente custosos produtos de síntese, seja esta química ou mesmo biotecnológica. Reflexo ainda, embora tardio, do fascínio cético, quase religioso, pela iatroquímica? A simplicidade relativa e a alta eficácia, também atestada pelo uso por vezes multimilenar dos métodos organoterapeuticos, aliada ao baixíssimo custo de sua produção, partindo de vísceras animais de diferentes espécies e que são usualmente consideradas rejeitos zootécnicos de pouco valor comercial, permite recolocar a organoterapia novamente no centro gravitacional de uma verdadeira política de saúde visando soluções terapêuticas de âmbito social realista.

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Agradecimentos

Agradeço aos amigos Professor Doutor Eraldo Medeiros Costa-Neto, Professor Doutor Fábio Macêdo Nunes e, last but not least, Herr Professor Doktor Johann Karl MacDuff von Kesselring pelas estimulantes discussões sobre o tema e o auxílio prestado na leitura e correção do manuscrito.