a voz como ato performÁtico e cultivo de si – aproximaÇÕes interdisciplinares

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42 A VOZ COMO ATO PERFORMÁTICO E CULTIVO DE SI – APROXIMAÇÕES INTERDISCIPLINARES Celina Nunes de Alcântara* Resumo – Este artigo trata da voz numa perspectiva performática e da possibilidade de pensar a partir daí a relação entre voz, ato performático e cultivo de si. Para balizar essa reflexão, foram delimitadas algumas questões que são constituido- ras dessa perspectiva: a exploração das noções de voz, oralidade, fala e performance no âmbito do trabalho teatral; um necessário comprometimento e implicação do sujeito participante, que pode redundar numa experiência ascética. A voz é pensada como uma (in)disciplina do corpo, num itinerário interdisciplinar, como um modo de se fazer, de se transformar, de acessar a si. Apresenta-se a ideia de voz/fala como prática de si, como um modo de formular-se de uma determinada maneira, como uma prática de autocriação que engloba uma experiência radicada no corpo e de autoelaboração que, por sua vez, se processa na medida da relação consigo e com o outro. Palavras-chave: voz, performance, fala, teatro, interdisciplinaridade. The voice as a performative act and as culture of self – an interdisciplinary approach Abstract – The following article discusses the voice as performative act and as culture of self, from an interdisciplinary point of view. The article intends to analyze: a) the voice – through the investigation about the notions of orality, speaking and performance in the scope of the theatre; b) the necessary commitment of the participant (actor) which may result in an ascetical experience – as an implication of this engagement. The voice is also conceived as one of the (in)disciplines of the body – in the interdisciplinary way of thinking – as a path to make and transform the self, as well as way of knowledge of self. To this extend this writing presents the idea of voice/speaking as a way to formulate the self as an individual one, as a practice of self-creation that comprehends an experience constructed from and in the body – as a kind of self elaboration that happens in the center of the relationship between the self and the others selves. Keywords: voice, performance, speaking, theater, interdisciplinarity. O que este texto intenta é mostrar a relação entre voz, ato performático e cultivo de si. Trata-se de inventariar – ainda que rapidamente – a exploração das noções de voz, oralidade, fala e perfor- * Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS/Fundarte).

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Resumo – Este artigo trata da voz numa perspectiva performática e da possibilidade de pensar a partir daí a relação entrevoz, ato performático e cultivo de si. Para balizar essa refl exão, foram delimitadas algumas questões que são constituidorasdessa perspectiva: a exploração das noções de voz, oralidade, fala e performance no âmbito do trabalho teatral; umnecessário comprometimento e implicação do sujeito participante, que pode redundar numa experiência ascética. A vozé pensada como uma (in)disciplina do corpo, num itinerário interdisciplinar, como um modo de se fazer, de se transformar,de acessar a si. Apresenta-se a ideia de voz/fala como prática de si, como um modo de formular-se de uma determinadamaneira, como uma prática de autocriação que engloba uma experiência radicada no corpo e de autoelaboração que, porsua vez, se processa na medida da relação consigo e com o outro..

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  • 42

    A VOZ COMO ATO PERFORMTICO E CULTIVO DE SI APROXIMAES INTERDISCIPLINARES

    Celina Nunes de Alcntara*

    Resumo Este artigo trata da voz numa perspectiva performtica e da possibilidade de pensar a partir da a relao entre

    voz, ato performtico e cultivo de si. Para balizar essa refl exo, foram delimitadas algumas questes que so constituido-

    ras dessa perspectiva: a explorao das noes de voz, oralidade, fala e performance no mbito do trabalho teatral; um

    necessrio comprometimento e implicao do sujeito participante, que pode redundar numa experincia asctica. A voz

    pensada como uma (in)disciplina do corpo, num itinerrio interdisciplinar, como um modo de se fazer, de se transformar,

    de acessar a si. Apresenta-se a ideia de voz/fala como prtica de si, como um modo de formular-se de uma determinada

    maneira, como uma prtica de autocriao que engloba uma experincia radicada no corpo e de autoelaborao que, por

    sua vez, se processa na medida da relao consigo e com o outro.

    Palavras-chave: voz, performance, fala, teatro, interdisciplinaridade.

    The voice as a performative act and as culture of self an interdisciplinary approach

    Abstract The following article discusses the voice as performative act and as culture of self, from an interdisciplinary

    point of view. The article intends to analyze: a) the voice through the investigation about the notions of orality, speaking

    and performance in the scope of the theatre; b) the necessary commitment of the participant (actor) which may result in

    an ascetical experience as an implication of this engagement. The voice is also conceived as one of the (in)disciplines of

    the body in the interdisciplinary way of thinking as a path to make and transform the self, as well as way of knowledge

    of self. To this extend this writing presents the idea of voice/speaking as a way to formulate the self as an individual one,

    as a practice of self-creation that comprehends an experience constructed from and in the body as a kind of self

    elaboration that happens in the center of the relationship between the self and the others selves.

    Keywords: voice, performance, speaking, theater, interdisciplinarity.

    O que este texto intenta mostrar a relao entre voz, ato performtico e cultivo de si. Trata-se de inventariar ainda que rapidamente a explorao das noes de voz, oralidade, fala e perfor-

    * Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS/Fundarte).

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    mance no mbito do trabalho teatral e a partir da reflexo sobre as prticas vocais a localizadas, espraiar suas potncias para pensar entre as disciplinas do corpo, da mesma forma que aduzir um necessrio trao interdisciplinar que o trabalho da voz engendra. Assim, a voz pensada como uma (in)disciplina do corpo, como um modo de se fazer, de se transformar, de acessar a si.

    A relao que se faz comumente entre teatro e voz aquela em que se busca por uma relao de eficcia, num sentido primeiro, mas no nico, uma tcnica vocal capaz de nos possibilitar: dizer, interpretar, proferir, declamar, entoar, cantarolar, enfim, infinitas gamas de arranjos vocais que do conta de como proceder com um texto em situao de performance, texto que por sua vez , em ou por princpio, de natureza escrita. Assim, conforme Zumthor (1993, p. 220), do texto a voz em performance extrai a obra.

    Ele diz, a propsito de nossa relao com o texto escrito, que somos medievalistas, pois nos comprazemos pelo fato de ser o texto legvel, ou seja, passvel de ser visualizado. Para Zumthor (1993, p. 220), o medievalista registra com os olhos aquilo que foi destinado a uma percepo conjunta do ouvido, da vista, do prprio toque a uma cinestesia, ao passo que a performance aparece como ao oral-auditiva complexa, pela qual uma mensagem potica simultaneamente transmitida e percebida, aqui e agora (ZUMTHOR, 1993, p. 222).

    Nesse sentido, pensar a voz como ato performtico pens-la na sua complexidade de coisa es-crita, falada, ouvida, percebida e constituda pelos sujeitos desse ato. Mas tambm como ao que ocorre no tempo e no espao, reunindo expresso e fala juntas numa situao transitria e nica.

    Assim, para uma proposio de trabalho vocal no campo do teatro que intenta uma relao entre voz e performance, parece indispensvel compreender a voz como a extenso de todo um sistema corporal do qual ela um elemento constituidor e constituinte.

    Embora, no senso comum, circule a ideia de que o trabalho do ator em relao voz o de criar uma coerncia para o que ser dito em cena (texto dramtico) de forma a tornar compreensvel e verossmil o significado do texto, o ator, no seu ato de criao, necessita fazer algo mais complexo, que envolve tornar crvel no somente o texto (literrio), mas tambm o conjunto de aes corp-reo-vocais que so, digamos assim, o substrato que possibilita a veracidade e a compreenso do espetculo como um todo. Dessa forma, na experincia teatral, o espectador teria a possibilidade de relacionar-se com a obra para alm de uma compreenso intelectual do texto (fbula), ou seja, num nvel de percepo e relao que prprio do momento singular do acontecimento da performance.

    A voz como ato performtico remete, tambm, a outra questo, que o fato de que a voz comu-mente est associada de forma restrita a uma performance oralizada; entretanto, existem outros modos de se ter voz no sentido de ter a possibilidade de fala. Trata-se, ento, de pensar o que de-nomino performance da fala. Penso que a fala diz respeito a mltiplas formas de comunicar de fazer compreender algo a algum. A oralidade um desses modos de estabelecer uma interlo-cuo; entretanto, temos outras formas de falar cuja raiz no est na voz, mas no corpo como um todo. Por intermdio de aes, gestos, gesticulaes, smbolos representados corporalmente, pan-tomima, mmica, linguagem de sinais, possvel falar, comunicar algo, dar sentidos s palavras e a

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    ns mesmos por intermdio delas. Como aponta Larrosa (2004, p. 153), todo o humano tem a ver com a palavra, d-se em palavra, est tecido de palavras [...].

    Assim, a reflexo aqui empreendida busca pensar a voz como um ato de fala (oralizada ou no) e a fala como ato performtico. Um ato de fala se faz performtico na medida em que se situa num contexto singular, construdo pelos participantes, e no qual se estabelecem maneiras de falar e agir.

    Para a antroploga Esther Langdon (1996), os atos de performance da fala podem ser considera-dos momentos de ruptura do fluxo normal de uma comunicao, momentos que so sinalizados para chamar a ateno dos participantes para o ato. Essa sinalizao indica justamente o modo como essa ideia deve ser comunicada. Para Langdon (1996), os momentos de performance que ir-rompem o cotidiano comunicam para quem especta o que esperar do ato performtico. Essa autora cita como exemplo de um momento performtico o que seria, talvez, um dos mais conhecidos por todos ns (oralizados), ou seja, algum que assume a tarefa de divertir os outros contando uma piada. Esse ato introduzido por uma construo discursiva e oral que chama a ateno de todos para o que vai ser dito: Vocs conhecem aquela do portugus?. Isso provoca uma determinada atitude dos participantes do ato, aqueles que espectam/escutam o que vai ser contado saem do seu fluxo cotidiano e entram na expectativa da narrao, esperando ser agradados com uma surpresa engraada ao final, enquanto o contador de piadas, por sua vez, ocupa o centro das atenes, e da sua performance depende o desfecho dessa relao. Para Langdon (1996, p. 26), o ato performtico chama a ateno de todos os participantes por meio da produo da sensao de estranhamento do cotidiano. Embora a autora se refira fala no sentido da oralidade, tomo emprestado seu exemplo porque ele sinaliza duas caractersticas importantes em relao ao ato performtico: algo que irrom-pe o cotidiano e que se constitui na relao direta entre os participantes envolvidos no ato.

    PRTICAS DA VOZ, PRTICAS DO CORPO: MODOS DE SE FAZER A SI MESMO

    Na tentativa de propor experincias no mbito da performance da fala e trabalhar o estranha-mento necessrio para a construo do ato performtico, fao uso de exerccios da minha prtica teatral que intentam relacionar prtica corporal, prtica vocal e modos de falar. Esses exerccios visam, especialmente, fazer refletir por meio de uma prtica. Eles procuram estabelecer relaes entre corporeidade e produo vocal a partir de um trabalho que busca possibilitar: 1. a experimen-tao de diferentes formas de utilizar a voz e o corpo juntos; 2. a experincia de expressar-se vo-calmente utilizando recursos corporais de forma consciente; 3. o reconhecimento e a experimenta-o de outros modos de fala que no a oralizada.

    A instaurao e a eficcia de um trabalho com tal proposio dependem exclusivamente do modo como as pessoas envolvidas relacionam-se com essa experincia. O trabalho s acontece

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    quando os envolvidos so disponveis, permeveis, quando permitem expor-se ao trabalho. Os exer-ccios per se no so garantia de que algo vai acontecer, mas uma potncia de trabalho. Eles deman-dam um corpomente entregue, envolvido com o que est sendo proposto, pois, somente dessa forma, possvel soltar-se na experimentao dos exerccios e, ao mesmo tempo, manter-se atento ao que ocorre no corpo/voz/fala, para posteriormente perceber a reverberao disso nas perfor-mances individuais. Trata-se de uma dicotomia bastante familiar a quem exerce o ofcio de ator. O ator precisa trabalhar na duplicidade de quem se entrega com veracidade quilo que est fazendo, sem, contudo, perder de vista o como est sendo feito.

    Assim, o que importa na construo dessa base que vai possibilitar o modo performtico de abordar a fala entregar-se a algumas experincias corpreo-vocais para, a partir delas, constituir conhecimento conhecimento no sentido de autoproduo como ser abordado mais adiante e, sobretudo, um modo de conhecer que vai subsidiar a performance. A constituio dessas experin-cias pressupe algum grau de exposio daquele que aceita experimentar o trabalho. Exposio no sentido de abrir-se para algo que nada tem a ver com as experincias cotidianas de voz, de corpo, de fala que, por isso, demandam esse corpovoz numa medida de inteireza aqui denominada per-formtica. Os exerccios buscam propor, nas palavras de Fortuna (2000, p. 63), um nascedouro de dentro para fora.

    importante mencionar que as bases experimentadas com o intuito de constituir um carter performtico para experincias vocais no buscam nem proporcionam uma fixidez, um controle sobre o ato performtico. A ideia a de que funcionem como iscas por intermdio das quais cada um pode fisgar um determinado estado, uma inteno, uma intensidade. O objetivo no congelar ou fixar bases para uma performance da fala, mas trazer subsdios para a construo performtica pos-svel para cada indivduo participante de um determinado processo. Afinal, como afirma Langdon (1996), as performances so sempre nicas e emergem da interao entre os recursos de comunica-o, ou seja, maneiras de falar, associadas aos objetivos de cada participante no contexto perform-tico. Alm disso, h, no prprio ato, uma negociao que estabelece os papis que os participan-tes assumem e de que forma devem atuar: quem quer falar, de que modo, em que momento, quem principia falando, quem escuta, quem responde so algumas das possibilidades de lugares a assumir numa performance da fala, particularmente, quando mediada por uma experincia teatral.

    A disponibilidade como condio para a prtica dos exerccios corporais e vocais propostos , ao mesmo tempo, fundamento e diferencial para que o processo seja efetivado. Por tratar-se de um processo pessoal e intransfervel, esse trabalho exige daquele que se prope a faz-lo a concentra-o de suas energias fsicas e psquicas associadas a uma forma especial de percepo e ateno. Ateno, como sugere Kastrup (1999), concentrada e aberta, o que significa, ao mesmo tempo, voltada para si e aberta ao encontro.

    Os exerccios propostos visam, especialmente, experimentao de algumas tcnicas como um meio, um caminho, uma forma de preparao que funcione como porta de entrada para o

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    ato de criao. Objetivam, assim, ampliar os recursos expressivos do corpo e da voz sem buscar limitar esses recursos ou o uso deles; ao contrrio, tentando abrir para o ainda no experimen-tado, para o desconhecido, no campo das experincias corpreo-vocais dos participantes do trabalho.

    Essa experincia de trabalho foi constituda a partir de trs grandes tpicos que pautam as esco-lhas dos exerccios:

    1. Relaxamento e respirao: fundamentais para qualquer prtica corporal, esses dois elemen-tos so basilares na construo de um trabalho que visa conscincia e ao domnio corporal. Como afirma Fortuna (2000, p. 51), corpo relaxado canal desobstrudo para a fruio de energia psquica. Corpo tencionado canal obstrudo impedimento ao trnsito energtico. Assim, no modo de abordar o trabalho corporal e vocal, aqui referido, esses dois elementos foram abordados juntos, buscando a potencializao de um por meio do outro. Ou seja, exerccios nos quais foi trabalhada a respirao como forma de provocar a distenso mus-cular e outros que buscaram um distensionamento muscular que provocasse uma maior fruio respiratria. Essa relao entre respirao e relaxamento intenta estabelecer um re-laxamento ativo, o que significa, ao mesmo tempo, remover as tenses corporais perniciosas, instaurar o trabalho e despertar o corpo fsica e mentalmente.

    2. Jogos para o aquecimento: forma de nomear exerccios, jogos, brincadeiras, cujo objetivo, no processo de trabalho, colocar o corpo num estado diferenciado de tonicidade e energia prprias para o exerccio de aes realizadas de maneira diferente daquelas usualmente ex-perimentadas no cotidiano. Assim, o conjunto de exerccios propostos busca trabalhar desde a mudana da temperatura corporal (aquecimento), passando por diversas formas de relao do corpo com o espao, at o estado de ateno e de disponibilidade necessrio para o acon-tecimento do jogo.

    3. Trabalho com diferentes estilos de textos: trata-se de proposies para abordar algumas possibilidades textuais com caractersticas bem diferenciadas. Trabalhamos com dilogo curto, com texto descritivo, com algumas fbulas e histrias da infncia narradas por cada aluno/a. Alguns desses textos so propostos pelos alunos, e outros por quem prope o tra-balho; porm, o fundamental o modo de abordar o texto a partir de estmulos proporcio-nados pelo trabalho. Para cada estilo de texto, so feitos alguns exerccios, objetivando a experimentao de diferentes modos de abordagem corpreo-vocais. Por exemplo: um di-logo, no qual um diz as falas oralmente e o outro responde somente com reaes corpo-rais. Ter de contar uma histria somente com aes e gestos sem texto oral ou um narra a histria oralmente e outro representa por meio de aes e gestos. Eis alguns dos exerccios propostos para abordar os textos.

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    A VOZ POR ENTRE AS DISCIPLINAS DO CORPO: MODOS DE SE FAZER

    Considero importante sublinhar questes que so centrais na discusso aqui proposta acerca da voz/fala como ato performtico, bem como um cultivo de si, pensando este ltimo naquilo que possvel relacionar com processos em que o que estaria em jogo o constituir-se de determinada forma. A primeira questo a ser considerada diz respeito ao fato de o trabalho incidir sobre modos de fala radicados no corpo, o que implica, entre outras coisas, considerar a singularidade de cada corpo tanto em sua fisicalidade quanto do ponto de vista de uma experincia de fala; importante, tambm, pensar acerca de um trabalho corporal e vocal em que esses dois elementos estejam inter-relacionados, interdependentes, ou seja, um potencializando o outro, tornando possvel assim uma proposio performtica numa situao pedaggica. A segunda questo seria mencionar a retirada do texto escrito como referncia fundante de uma performance da fala mesmo numa experincia teatral, ou seja, um trabalho sobre a voz e sobre a fala que no prepara para narrar uma histria ou proferir palavras, investe antes na possibilidade de fazer aparecer modos de falar. A terceira, virar o pensar sobre o conceito de performance relacionado fala como algo que rompe com o fluxo do cotidiano, mas tambm como algo constitudo pelos atuantes-falantes. Por fim, seria preciso cir-cunscrever a relao entre o processo de criao da performance e o necessrio comprometimento e implicao do sujeito participante, como condio de possibilidade para o ato.

    Percebo, no decorrer dos processos que tenho proposto, a necessidade da disponibilizao fsica e mental de cada participante para que o trabalho possa acontecer, e, ao mesmo tempo, as neces-srias adequaes de uma proposio que depende das reaes, das formulaes de cada um e do conjunto. A condio para que algo acontea o necessrio respeito s diferentes pulsaes de vida, corpos, vozes e falas.

    O que sempre est em jogo nesse processo no um cultivo a uma boa oralidade, ou, dito de outra forma, um falar bem, mas, antes, a tentativa de pr em evidncia, por intermdio do trabalho, as potencialidades da fala de cada um e torn-las to perceptveis quanto possvel para aqueles que fazem uso delas. Arriscaria dizer um cultivo de si mediante uma prtica de fala. Um modo de au-toinventar-se medida que reinventa seu prprio modo de falar na relao com os outros. Algo que se aproximaria, talvez, de um procedimento asctico na perspectiva de Michel Foucault, a partir de seus estudos dos perodos helenstico e romano, bem como dos primeiros sculos da era crist, que do conta de um modo de constituio do sujeito sob a gide de conceitos como: cuidado de si, as prticas de si, as relaes consigo, o ocupar-se consigo.

    Para Foucault (2004, p. 265), a prtica asctica trata de um exerccio de si sobre si mesmo atra-vs do qual se procura se elaborar, se transformar e atingir um certo modo de ser. Conforme o prprio autor em A hermenutica do sujeito: [...] ocupar-se consigo no , pois, uma simples prepa-rao momentnea para a vida; uma forma de vida. Assim, segundo Foucault, para o mundo gre-co-latino com o qual ele se ocupou, o cuidado de si era tomado como cuidado da alma, compreen-

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    dido sob a forma de um cuidado que se estende para alm do plano meramente corporal, no re metendo, necessariamente, s esferas msticas ou religiosas. O cuidar de si mesmo dizia respei-to a um conjunto de atividades disciplinares, ou seja, regradas e objetivas, a serem vivenciadas ao longo da existncia. Porm, pressuporia, certamente, mais do que prestar ateno nos erros, no in-fringir as regras, evitar vcios e cultivar virtudes.

    Foucault (2004) afirma, com efeito, que o cuidado de si englobava uma sorte de procedimentos cuidadosamente elaborados, constituindo-se, ao mesmo tempo, como dever e como tcnica, ou seja, como uma obrigao fundamental. Assim sendo, o cuidado de si parecia estar fundado numa forma tica e esttica de pensar a existncia na qual somos nosso prprio objeto. Esse tipo de exerccio, como j foi mencionado, no algo momentneo, uma soluo para determinados fins, mas, antes, um modo de regrar a prpria vida, uma maneira de cultivar-se de determinada forma. Mas como pensar essas questes dentro de uma prtica to especifica quanto uma proposio de trabalho sobre a voz ainda que esta se estenda por instncias como a fala, a performance, a relao entre voz e corpo de forma indissociada, a necessria relao com o outro na constituio do trabalho?

    Em princpio, trabalhar a voz/fala na perspectiva do autocultivo estaria relacionado diretamente ao modo como nos formamos e transformamos em nossas prticas, e, por isso, uma maneira de voltar-se para si que pode redundar numa ascese. Quando refiro o trabalho vocal como procedi-mento asctico, imagino aquilo que esse trabalho pode comprometer o prprio eu do indivduo que dele participa, medida que opera transformaes em nvel psicofsico, ou seja, mobiliza os corpos como substncia fsica individual, mas tambm como potncia de encontro com outros corpos e, daquilo que pode advir disso, como referncia de fala e como possibilidade de novos modos de falar e, sobretudo, como constituio de si na medida exata da relao com o outro.

    Diferentemente do que se pensa ainda, sobretudo nas prticas teatrais, a voz no um elemento do corpo ao qual podemos nos dedicar e aperfeio-la de determinada forma, sem considerar os discursos que nos atravessam, sejam de ordem psicofsica, social, moral, econmicos, polticos, de gnero; at mesmo, porque todos esses discursos esto entrelaados em ns e atuantes em nossa voz/fala. Mas, por sua vez, pensando especialmente numa prtica como a teatral, tambm, no se trata de esquadrinh-la em vrias disciplinas para tentar captur-la qui de forma mais comple-xa. Trata-se, talvez, de buscar uma prtica que engendre as disciplinas sem engessar a experincia, que cultive o procedimento mas possibilite a criao, que promova a autoconstituio, mas tam-bm o encontro. Isso nos remete quilo que Lopes (2005) denomina funo potica da voz. Para a autora, a voz potica se diferencia da voz cotidiana por sua funo como objeto da arte quando utilizado como linguagem no teatro que se concretiza pela relao entre falante e ouvinte na per-formance teatral. Lopes (2005, p. 92) descreve da seguinte forma uma possvel experincia tanto do ponto de vista de quem fala quanto de quem especta. A voz potica para ela

    [...] uma linguagem que esteja viva no corpo, em que o pensamento seja experienciado no corpo,

    as emoes tenham existncia fsica. Em que, plenas de pensamentos e emoes, as ondas sonoras

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    fluam atravs de um corpo e sejam percebidas, sensorialmente por outros corpos que experimen-

    tem o pensamento/emoes contidos nas vibraes do som.

    Ainda sob a gide de Lopes (2005, p. 92) pode-se dizer que uma voz dotada de reais qualidades fsicas, como acredita-se ser a voz potica, [...] atribui um poder verdadeiro palavra e faz, de todo o discurso, ao efetiva. Retornamos assim ideia de voz/fala como prtica de si, como um modo de formular-se de uma determinada maneira, como uma prtica de autocriao que engloba uma experincia radicada no corpo e de autoelaborao, que, por sua vez, se processa na medida da re-lao consigo e com o outro.

    Enfim, se compreendemos a voz/fala como um ato performtico, porque a vemos e a prati-camos num espao no qual a disciplina, compreendida tanto como regulao quanto como es-pecificidade de saber, no pode ser delimitada para alm de uma fronteira marcada como saber constitudo. A voz/fala ainda que nosso estudo se localize em prticas teatrais se estende como potncia criativa a outros mbitos, e esses itinerrios interdisciplinares a qualificam como possibi-lidade asctica e como performance (in)disciplinar, tanto quanto (in)disciplinada.

    REFERNCIAS

    FORTUNA, M. A performance da oralidade teatral. So Paulo: Annablume, 2000.

    FOUCAULT, M. A hermenutica do sujeito. So Paulo: Martins Fontes, 2004.

    KASTRUP, V. A inveno de si e do mundo. Uma introduo do tempo e do coletivo no estudo da cognio. So Paulo: Papirus, 1999.

    LANGDON, E. J. Performance e preocupaes ps-modernas na antropologia. In: TEIXEIRA, J. G. L. C. (Org.). Performticos, performance e sociedade. Braslia: Editora da UnB, 1996.

    LARROSA, J. Linguagem e educao depois de Babel. Belo Horizonte: Autntica, 2004.

    LOPES, S. P. A voz em sua funo potica. Cadernos da Ps-Graduao-Instituto de Artes/Unicamp, ano 7, v. 7, n. 1, 2005.

    ZUMTHOR, P. A letra e a voz. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.