a volta do cultural na geografia

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  • 8/6/2019 A Volta Do Cultural Na Geografia

    1/10Mercator - Revista de Geografia da UFC, ano 01, nmero 01, 2002

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    A VOLTA DO CULTURAL NA GEOGRAFIA

    Prof. Dr. Paul ClavalUniversit de Paris IV-Sorbonne

    Introduo

    O presente artigo versa sobre a Geografia Cultural (Claval, 1999; Bonnemaison, 2001). Portrabalhar sobre esta temtica nos ltimos vinte anos, sou levado a concluir que o papel da geografiacultural na atualidade mais importante do que no passado, conduzindo, inclusive, nossos colegasna Inglaterra a falar, nestes ltimos anos, de uma volta do cultural (cultural turn)(Cook et al.,

    2000; Valentine, 2001; Claval, 2001-e).A Geografia Cultural, ou mais precisamente o interesse dos gegrafos pelos problemas cultu-rais, nasceu na mesma poca da Geografia Humana, final do sculo dezenove. Pode-se destacar trsmomentos no seu desenvolvimento :

    1- Final do sculo dezenove at os anos cinqenta : os gegrafos adotavam uma perspectivapositivista ou naturalista, no estudando a dimenso psicolgica ou mental da cultura. O inte-resse voltava-se para os aspetos materiais da cultura, as tcnicas, as paisagens e o gnero devida. As representaes e as experincias subjetivas dos lugares foram completa e voluntaria-mente esquecidas. Contudo, a contribuio desse perodo tambm foi importante. Esta pers-pectiva mostrou que os aspectos culturais fundamentais para a Geografia inserem-se em trs

    domnios: a) das relaes homens/meio ambiente, atravs do estudo do meio humanizado, dapaisagem, das tcnicas e das densidades; b) das relaes sociais, a partir do estudo das institui-es, da comunicao e da difuso das idias e das tcnicas; c) da organizao regional e dopapel dos lugares.Essa classificao permanece til para o entendimento dos problemas atuais, fato que me levaa utiliz-la neste trabalho.

    2- Anos sessenta e setenta : a evoluo da Geografia Cultural deu-se numa tentativa de utilizaros resultados da Nova Geografia para uma sistematizao metodolgica. Esta perspectivano me interessa atualmente.

    RESUMO

    O artigo analisa as mudanas recentes ocorridas naGeografia Cultural, que conduziram a uma volta do cultu-ral na Geografaia. Aps uma breve apresentao das no-vas bases da epistemologia cientfica, o autor descreve osnovos rumos das relaes homens/meio ambiente, trata daabordagem regional a partir do interesse da GeografiaCultural pelos lugares, enfoca as relaes sociais na abor-dagem cultural, especialmente o papel da comunicao. Aanlise assim desenvolvida conduz a concluir que a abor-dagem cultural demonstra interesse crescente pelos proble-mas morais do mundo atual, pelas Geografias Vernacularese pelas Etnogeografias.

    RSUM

    :Larticle analyse les changements rcemment

    intervenus dans le domaine de la gographie culturelle, etqui ont conduit un vritable tournant culturel delensemble de la gographie. Aprs une courte prsentationdes nouvelles bases de lpistmologie scientifique, lauteurdcrit les orientations prises rcemment par les relationshommes/ilieu; il traite de lapproche rgionale en soulignantlattention que la gographie culturelle accorde auxlieux; il met laccent le rle des relations sociales danslapproche culturelle; il insiste plus particulirement sur lerle de la communication. Lanalyse ainsi dveloppeconduit la conclusion que lapproche culturelle montreun intrt grandissant pour les problmes moraux du mon-de actuel, pour les gographies vernaculaires et pour lesethnogographies.

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    3- Aps anos setenta : ocorreu uma mudana significativa, haja vista a Geografia Culturaldeixar de ser tratada como um subdomnio da geografia humana, posicionando-se no mesmopatamar da Geografia Econmica ou da Geografia Poltica.

    O objetivo da abordagem cultural entender a experincia dos homens no meio ambiente esocial, compreender a significao que estes impem ao meio ambiente e o sentido dado s suasvidas. A abordagem cultural integra as representaes mentais e as reaes subjetivas no campo dapesquisa geogrfica.

    Para entender as mudanas recentes da geografia cultural e do seu sentido para a ao humana,procederei da seguinte forma: na parte inicial do trabalho, uma breve apresentao das novas basesda epistemologia cientfica torna-se necessria (Claval, 2001-a); na segunda parte, descreverei osnovos rumos das relaes homens/meio ambiente; na terceira, tratarei da abordagem regional, espe-cificamente do que aconteceu com a Geografia Cultural face ao crescente interesse pelos lugares; naquarta parte, enfocarei as relaes sociais na abordagem cultural, especialmente o papel da comuni-cao; na concluso, mostrarei que, graas abordagem cultural, a Geografia apresenta interessecrescente pelos problemas morais do mundo atual, pelas Geografias Vernaculares e pelasEtnogeografias.

    Novas condies da epistemologia e abordagem cultural

    a- Fenomenologia, Filosofias Crticas e nascimento de uma nova epistemologia

    A epistemologia das Cincias Humanas e Sociais comeou a mudar nos anos 1970 (Claval,2001-a). Graas fenomenologia, o interesse pela experincia direita dos lugares e pelo sentido demorar (para quem e no para que, hoje e no ontem) se desenvolveu.

    Graas s filosofias crticas, principalmente ao marxismo, aparece a idia de que no camposocial o positivismo teria um papel conservador. A necessidade de integrar perspectivas existenciaise crticas em todas as Cincias Sociais se imps, denotando uma perda de credibilidade das grandesnarrativas desenvolvidas pelas cincias sociais e histricas.

    b- A Geografia sempre ligada cultura onde se desenvolve

    A abordagem cultural impe a necessidade de repensar a Geografia Humana. Deste repenssarnasce uma primeira idia, aquela de que a Geografia Humana no pode ser totalmente desvinculadada cultura onde se desenvolveu, dado tambm vlido para as demais Cincias Sociais, a Economia,as Cincias Polticas, a Sociologia, a Etnologia...

    O econmico, o poltico e o social nunca existiram como categorias imutveis e independentesdo espao onde se encontram. Elas dependem da cultura no seio da qual funcionam. So exemplosdesta constatao o desenvolvimento de estudos sobre : a dimenso cultural do consumo, no campoda geografia econmica e da economia ; a governabilidade nas Cincias Polticas.

    Conseqentemente, o campo da abordagem cultural na Geografia Humana amplia-se, toman-do propores maiores do que o da Geografia Cultural do passado.

    c- A Geografia tem de utilizar a tcnica da descrio densa

    A realidade que os gegrafos estudam sempre aquela de uma cultura particular. Como ana-lisar essa realidade sem considerar seus recortes mais importantes, sem perder o que faz a suaespecificidade? Ao desconfiar dos relatrios simples, por serem feitos na ptica do observador, oetnlogo Clifford Geertz (1973) nos d um norte. O etnlogo e o gegrafo devem praticar a arte dadescrio densa (thick description). Trata-se da nica maneira possvel de integrar, pelo menos,algumas das particularidades culturais das populaes e dos lugares estudados.

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    d- A viso da cultura deve permanecer crtica

    O uso do termo cultura deve ser crtico. Para alguns, a dinmica das culturas aparece comouma dinmica de diferenciao a proteger. Tudo o que favorece a uniformizao do mundo deve sercensurado. Para outros, existe sempre uma dimenso de universalidade nas culturas.

    A valorizao da diversidade, ou da uniformidade e da universalidade, resulta de escolhaideolgica. Nenhuma dessas preferncias aparece como uma das componentes obrigatrias da abor-dagem cultural.

    e- Existem diferentes concepes de cultura

    A reflexo epistemolgica estabelece que existem diversas concepes de cultura.

    1- Numa primeira concepo, a cultura aparece como um conjunto de prticas, desavoir-faireou know hows, de conhecimentos e de valores que cada um recebe e adapta a situaesevolutivas. Nessa concepo, a cultura aparece ao mesmo tempo como uma realidade indivi-dual (resultante da experincia de cada pessoa) e social (resultante de processos de comunica-o). No uma realidade homognea. Ela compe muitas variaes.

    2- Numa segunda concepo a cultura apresentada como um conjunto de princpios, regras,normas e valores que deveriam determinar as escolhas dos indivduos e orientar a ao. Essaconcepo a define como imutvel.Essa concepo til para compreender a componente normativa dos comportamentos, mas asregras so interpretadas tanto para justificar escolhas diversas como para motiv-las.

    3- Numa terceira concepo, a cultura apresentada como um conjunto de atitudes e de costu-mes que do ao grupo social a sua unidade. Essa concepo da cultura tem um papel importan-te na construo das identidades coletivas.

    Existem diversos nveis de realidades culturais. Gegrafos sempre devem permanecer consci-entes da estrutura complexa desse aspecto das sociedades humanas (Bonnemaison, 2001).

    A renovao do estudo das relaes homens/meio ambiente

    a- Novas perspectivas sobre as relaes homens/meio ambiente

    A geografia cultural da primeira metade do sculo vinte desenvolveu-se antes das formulaesmodernas e sintticas da Ecologia. Estas formulaes apareceram somente em 1942 com o trabalhode Lindeman (1942) sobre o ciclo da energia na natureza, vulgarizando-se nos anos cinqenta comas publicaes de Odum (1957).

    Atualmente, os gegrafos analisam as relaes homens/meio ambiente segundo a perspectivaecolgica : a transferncia de energia solar de um ser a outro atravs das cadeias trficas; os ciclosdas matrias.

    Tal perspectiva aparece como totalmente cientfica, embora esquea o papel das representa-es do meio ambiente por parte das populaes locais, da sua compreenso dos mecanismos eco-lgicos, da sua concepo da natureza em relao com a divindade ou o sagrado. Acho que aspesquisas de Scott Hoeffle (1997) sobre as representaes populares do meio ambiente no serto doBrasil oferecem uma boa introduo s contribuies dos gegrafos nesse domnio. Na Frana,Augustin Berque (2000) publicou livro sobre o ecmeno (Lcumne),propondo um olhar globalacerca desse domnio.

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    A compreenso da parte realmente cientfica da Ecologia moderna e da parte apresentadasobretudo como ideolgica so fundamentais no entendimento da ao humana no mundo atual.Esse tipo de viso crtica est presente nas obras de Augustin Berque (1990), de Philippe Pelletier(1993), de David Harvey (1996) e de Paul Claval (2001 - b).

    b- Novas perspectivas sobre as paisagens

    As paisagens desempenharam um papel importante na Geografia da primeira metade do sculovinte, entretanto seu estudo permaneceu essencialmente baseado em duas concepes: a concepofuncional e a concepo arqueolgica. Na primeira, a paisagem era concebida como reflexo dofuncionamento social, cultural e econmico da sociedade. Na segunda, parte da paisagem no refle-tia o funcionamento atual, mas os funcionamentos passados. A dimenso esttica quase no foicontemplada, salvo na anlise da harmonia da paisagem feita por alguns gegrafos alemes.

    Atualmente a situao completamente diversa. Os gegrafos estudam a dimenso estticadas paisagens, quer sejam rurais ou urbanas, quer sejam as paisagens dos pintores.

    A idia fundamental de que os gegrafos devem conceber o estudo da paisagem como umaexplorao da convivncia que se desenvolve entre ela e os homens, segundo a viso de GillesSautter (1979). Existem muitos estudos sobre a significao filosfica e esttica da paisagem no

    Ocidente (Alain Roger, 1997), no Japo e na China (Augustin Berque, 1995; 1996).Os governantes utilizam as paisagens como suporte de suas mensagens de propaganda ou de

    sua ideologia. As classes dominantes justificam a sua supremacia social e poltica pela qualidadedas paisagens que planejam (Denis Cosgrove, 1984; James Duncan, 1990).

    Nem sempre as paisagens traduzem a vontade da manipulao ideolgica expressa pelas clas-ses dominantes. Marc Aug (1990) desenvolveu outra orientao de pesquisa. Ele considera que, nomundo moderno, uma parte importante das paisagens planejada para servir de guia aos utilizadoresdos servios pblicos, como as das auto-estradas e dos grandes aeroportos. Aug fala de um tipo decontrato social mudo entre os planejadores e os utilizadores.

    Para Kenneth Olwig (1996), a organizao da paisagem reflete a existncia de um sistema depoder: existe uma relao entre o pas como criao poltica e a paisagem como expresso dapersonalidade do grupo social. O sentido de identidade de muitas coletividades sociais est ligados paisagens da lembrana e da memria.

    c- Novas perspectivas sobre o papel das tcnicas

    Parte importante da Geografia Cultural da primeira metade do sculo vinte tratava do papel dastcnicas nas relaes homens/meio ambiente.

    Embora esse campo de pesquisa tenha sido modernizado, ele no aparece com a mesma impor-tncia de sessenta ou setenta anos atrs. Na nova abordagem cultural, no se pode isolar os aspectosmateriais das tcnicas (as ferramentas, as mquinas) dos seus aspectos mentais (os modelos usados

    pelos fabricantes das ferramentas, os gestos ligados com os seus usos e os termos para descrev-lase utiliz-las).Essa nova perspectiva abre possibilidades para a Geografia Histrica. Um bom exemplo na

    Frana oferecido pelas publicaes de Jean-Ren Trochet (1993; 1998): ele explora as relaesentre as bases tcnicas das sociedades passadas e as suas formas de organizao social (o sistemafamiliar) e polticas (do tipo tribal ou clnico, ou do tipo citadino).

    Para concluir essa parte do trabalho, pode-se dizer que a nova abordagem cultural conduziu auma renovao profunda do estudo das paisagens, a uma perspectiva crtica sobre a Ecologia con-tempornea e a um progresso importante, mas menos significativo, da anlise das bases tcnicas davida coletiva.

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    A diversidade regional das culturas e a organizao do espao

    Na primeira metade do sculo XX, a Geografia Humana focalizava a descrio e a explicaoda diversidade regional da terra. Como as culturas nunca aparecem semelhantes em lugares diver-sos, a cultura serviu como um fator importante da explicao da diversidade da superfcie terrestre.O estudo estava todavia fundado sobre um princpio frgil : o pesquisador buscou explicar as carac-

    tersticas de um lugar ou de uma regio atravs da anlise dos seus aspectos econmicos, sociais epolticos. Caso no fosse possvel faz-lo, o pesquisador recorria aos dados culturais : o fator cultu-ral sempre apareceu como um fator residual.

    Atualmente, a Geografia Regional e muitas vezes considerada como um setor secundrio dadisciplina. Tal afirmao no verdadeira. O foco dos estudos regionais simplesmente mudou : nose d mais na escala regional e sim na escala local. A ateno se focaliza sobre o lugar e o teritrio.

    Falar de regies falar de realidades sociais j existentes. Falar de lugares e de territrios falar da significao do espao para cada indivduo e da maneira de construir objetos sociais a partirdas experincias pessoais. Da a ateno dada ao corpo como fonte de todas as experincias espaci-ais dos indivduos. Da o interesse dado ao papel da imaginao - da imaginao geogrfica - na

    construo das categorias sociais e territoriais.O resultado dessa evoluo a substituio dos conceitos de territrio (na Frana, na Itlia, noBrasil) e de lugar (na Inglaterra e nos Estados Unidos) por esse de regio.

    a- O papel do corpo na experincia humana

    Nossa experincia espacial aparece inicialmente como visual. So muitos os trabalhos versan-do sobre o papel do olhar na construo do espao e no seu controle: advinda da obra de MichelFoucault (1976), essa temtica ocupa um papel fundamental.

    Entretanto, os cheiros do aos lugares parte de suas especificidades. A lembrana dos lugares

    tambm ligada aos sabores das comidas locais, da vegetao queimada e da terra mida depois dachuva.Outrossim, a experincia corporal muda com a idade e com o sexo, apresentando-se a necessida-

    de de explorar as geografias dos meninos, das mulheres e dos velhos.

    b- Uma nova maneira de entender a diversidade geogrfica : as imaginaesgeogrficas

    A Geografia Regional de ontem estudava a organizao do espao como o resultado da ao deparcela da populao que trabalhava e produzia. Hoje, os gegrafos tm interesse em todas asformas de percepo dos lugares, de construo do outro e de fixao da fronteira entre ns e os

    estrangeiros.A excluso social e a segregao espacial aparecem como formas simtricas e complementares

    na construo de grupos diferenciados e conscientes de suas especificidades (Gregory, 1994). Talconstruo resulta da capacidade imaginativa dos indivduos e das culturas. Todos conhecem otrabalho do escritor palestino Edward Said sobre a construo do Oriente no imaginrio ocidental nofinal do sculo dezoito e no sculo dezenove. Seus livros constituem exemplos clssicos de estudossobre a imaginao geogrfica. O trabalho de M. W. Lewis e de K. E. Wigen (1997) sobre o mitodos continentes denota interesse semelhante.

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    c- Reflexes sobre as identidades e territorialidades

    O espao jamais aparece como um suporte neutro na vida dos indivduos e dos grupos. Eleresulta da ao humana que mudou a realidade natural e criou paisagens humanas e humanizadas.Os lugares e as paisagens fazem parte da memria coletiva. A lembrana do que aconteceu nopassado d forte valor sentimental a certos lugares.

    Os mitos religiosos e polticos mudam a natureza de parcelas do espao: existem fontes,florestas, rvores e serras que viram sagradas, enquanto os seus arredores permanecem profanos.

    As identidades individuais e coletivas so fortemente ligadas ao desenvolvimento da conscin-cia territorial. Num tempo em que a globalizao ameaa muitas identidades, a luz que a abordagemcultural pe nas relaes entre identidades e territrio indica interessantes perspectivas de ao.

    Muitas vezes a nova Geografia Cultural apresenta-se como uma orientao, em que a imagina-o e a inventividade do pesquisador so mais importantes do que nas Geografias do passado. Nestesentido, a nova Geografia Cultural mais livre, na sua abordagem da realidade, do que as Geogra-fias do passado.

    Para muitos gegrafos, essa liberdade tem um preo: o esquecimento das dimenses sociaisda vida. Trata-se de crtica feita por Anthony Giddens Geografia do Tempo (aspecto importante danova abordagem cultural) de Torsten Hgerstrand:

    A importncia que Hgerstrand concede s praticas sociais dirias mais evidente e

    mais clara: com insistncia, ele afirma que deseja utilizar a Geografia do espao-empo

    para entender o impacto de um dia comum de uma pessoa comum sobre a organizao

    global dos sistemas sociais. Todavia, a Geografia do espao-tempo apresenta lacunas

    bem definidas [...].

    Minhas crticas principais so : primeiro, [a Geografia do espao-tempo] pressupe e

    contem uma concepo ingnua e deficiente do agente humano. Por conceder uma gran-

    de importncia corporalidade do ser humano nos contextos scio-temporais

    estruturados, Hgerstrand desenvolve idias que esto de acordo com as que tentei ela-

    borar anteriormente. Todavia, ele tem uma tendncia a considerar que as pessoas so

    constitudas independentemente dos ambientes sociais em que elas se encontram na suavida diria (Giddens, 1987, p.170).

    Embora a Geografia Cultural tenha aparecido, nos anos 1980, de forma um pouco ingnua,atualmente, essa crtica deixa de ser pertinente. Atravs do estudo da comunicao, a abordagemcultural oferece nova perspectiva de construo da sociedade.

    O problema da abordagem cultural na Geografia e a perspectiva da comunicao

    a- Como reestruturar a Geografia Humana?

    Das trs vertentes da Geografia Cultural que se desenvolveram na primeira metade do sculovinte, a que tratava da comunicao tornou-se menos rica que as outras : a difuso de inovaespermanecia o nico domnio onde existiam muitas publicaes.

    Nos estudos versando sobre as relaes homens/meio ambiente e sobre as realidades regionais,a crtica s concepes naturalistas ou neopositivistas da cincia conduziu a uma fragmentao doscampos de pesquisa. Em lugar de estudar a cultura inglesa, a civilizao chinesa, os trabalhosfalam das comunidades paquistanesas em Birmingham, dos bairros ricos de Vancouver ou dasmulheres nos subrbios da zona sul em Chicago.

    Como evitar essa fragmentao excessiva? J no se pode acreditar na possibilidade de invo-car uma razo universal para explicar a organizao da realidade social. Por isso se deve informar

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    que regularidades aparecem na vida social, que a percepo da paisagem e da realidade social uma construo social e que perspectivas semelhantes existem nos grupos sociais. Isso constitui aprimeira causa da significao da comunicao para a geografia de hoje . A segunda causa resultado impacto da revoluo das telecomunicaes sobre as formas de sociabilidade e sobre a globalizaonos ltimos quarenta anos (Claval, 2001 - c).

    b- Tcnicas de comunicao e contedo das culturas

    Nos estudos recentes na abordagem cultural, o primeiro tema pe em foco as correspondnciase as relaes entre tcnicas de comunicao e formas de cultura (Claval, 2001 - c; 2001 - d). Quandoa comunicao repousava somente sobre a palavra e a imitao dos gestos e atitudes, o alcanceespacial da transferncia das informaes permanecia muito reduzido apenas a alguns metros. Omito teve um papel importante por no existirem memrias objetivas.

    Na componente popular das sociedades histricas, a cultura tinha muitos recortes comuns comos das sociedades etnolgicas. Para suas elitesasituao demonstrava-se diferenciada. Graas escrita, elas poderiam comunicar-se facilmente com lugares afastados e manter uma memria objetivado passado. Muitas vezes, a Revelao tornou-se a base das religies.

    Com o rdio e a televiso, as culturas contemporneas delegam um papel importantssimo

    palavra e ao gesto, entretanto convm ressaltar que tal transferncia de informaes (expressassobre estas formas) no se restringe ao local. Os meninos portugueses, franceses, alemes e inglesesolham os mesmos desenhos animados americanos dos japoneses. o tempo das culturas de massa.Culturas tcnicas e cientficas dos que navegam na internet substituem as culturas das elitestradicionais.

    c- Comunicao informativa e comunicao simblica

    A comunicao tem muitas vezes um contedo prtico e tcnico. Nesse caso, o problema ode assegurar a transferncia de uma quantidade importante de informaes. A comunicao tambmpode ter um contedo simblico. Nesse caso, um sinal breve basta para fazer ressoar os coraes de

    muitas pessoas ao mesmo ritmo e dar um sentido de identidade compartilhada.A comunicao simblica resulta da construo do eu e do ns atravs da educao e da

    experincia de cada um. Os problemas de comunicao simblica, de identidade e de territorialidadeaparecem fortemente ligados.

    O papel da comunicao simblica j foi ressaltado por Jean Gottmann em 1952. A comunica-o simblica constitui o cimento das grandes construes polticas.

    d- Formas de comunicao e construo do sagrado, das religies e das ideologias : os universosnormativos

    A comunicao tambm importante por estabelecer uma ligao entre nosso mundo e os

    outros mundos (Claval, 2001 - d). Ela permite a explorao do alm. A viso do mundo a partir deum outro mundo delineia o bem e o mal. No existem valores sem o alm.

    A Geografia que se desenvolveu nos sculos dezenove e vinte era concebida como uma cons-truo puramente cientfica. O seu objetivo era o de estabelecer uma explicao do mundo concebi-do como um conjunto de mecanismos. Todos os aspectos normativos do pensamento geogrficoforam esquecidos, tais como a anlise do sagrado e do profano, da vida religiosa ou da dimensotica do planejamento e da preservao ambiental.

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    Concluso

    Para compreender a ao humana, a nova abordagem cultural na Geografia oferece muitas ericas perspectivas:

    1- A dimenso ecolgica da Geografia Humana tornou-se uma preocupao central da discipli-na. Ela deve ser conduzida numa perspectiva crtica.

    2- A paisagem no se apresenta to-somente como um reflexo do funcionamento passado oupresente da sociedade. As relaes emocionais entre a paisagem e o observador so analisadas.O papel da paisagem nas estratgias de poder e de dominao explorado. A significao dapaisagem na construo ou na preservao das identidades ressaltada.

    3- Maior ateno voltada s dimenses sociais e mentais das tcnicas.

    4- A nova abordagem regional parte do indviduo e do lugar e no do pas, da regio ou dogrupo. A experincia do lugar e do espao se faz atravs do corpo. A Geografia vivida pelosmeninos, mulheres e velhos diferem muito das Geografias dos adultos masculinos.

    5- A diversidade regional da terra no natural. Ela resulta do trabalho humano que mudou anatureza, e das categorias mentais usadas para opor o prximo e o distante, o familiar e ovizinho do estrangeiro. A construo das categorias regionais exprime a potncia da imagina-o geogrfica.

    6- O sentimento de pertena regional nunca se apresenta como automtico e natural. Nasce deum processo de integrao do eu em um meio ambiente e social particular. As regies geogr-ficas tm uma dimenso afetiva, psicolgica e simblica que cumpre um papel fundamental.

    7- O contedo e o papel das culturas dependem dos modos dominantes de comunicao. Asculturas da palavra diferem muito das culturas da escrita.

    8- A comunicao simblica une os homens que partilham uma mesma cultura e os mesmosvalores, mas, para tornar-se operacional e funcional, torna-se necessrio um longo trabalho deeducao e de construo do eu e do ns.

    9- Para entender os objetivos da ao humana, tem-se que supor ser possvel a comunicaocom outros mundos. Os gegrafos tm de estudar o papel desses outros mundos na diferen-ciao do sagrado e do profano, e na construo das categorias do bem e do mal.

    Esses nove pontos mostram que a volta do cultural facilita a compreenso da ao humana.Mas a mudana tornou-se mais profunda:

    10- Um nmero crescente de gegrafos culturais acredita que tm a responsabilidade de extrairda Geografia uma reflexo sobre a moral geogrfica. Autores como David Harvey, RobertSack, Nicholas Entrikin e Augustin Berque partilham essa preocupao, mesmo no apontan-do as mesmas solues.

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    11- Uma das ambies da geografia cientfica de inspirao naturalista ou positivista era de semostrar completamente diferente dos conhecimentos geogrficos que existiam nas culturaspopulares ou nas civilizaes tradicionais.

    A crtica moderna mostrou que parte importante dos dados geogrficos usados pela Geografiacientfica eram coletados em entrevistas com pessoas escolhidas pelo seu conhecimento dos saberesgeogrficos populares.

    A fronteira entre Geografia Cientfica e Geografias Vernaculares ou Etnogeografias nunca foicompletamente fechada. Da o desenvolvimento de uma linha de pesquisa sobre os saberes geogr-ficos vernaculares. Essa nova orientao muito importante para entender a ao humana.

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  • 8/6/2019 A Volta Do Cultural Na Geografia

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