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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Artes A VISUALIDADE POSSÍVEL Nelson Ricardo Ferreira da Costa Rio de Janeiro 2007

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Artes

A VISUALIDADE POSSÍVEL

Nelson Ricardo Ferreira da Costa

Rio de Janeiro 2007

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Nelson Ricardo Ferreira da Costa

A VISUALIDADE POSSÍVEL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes do Instituto de Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito para obtenção do título de Mestre em Artes.

Orientador: Malu Fatorelli

Rio de Janeiro 2007

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Nelson Ricardo Ferreira da Costa

A VISUALIDADE POSSÍVEL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes do Instituto de Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito para obtenção do título de Mestre em Artes.

Orientador: Maria Luiza Fatorelli

Aprovado em: ______________________________________________

Banca examinadora:

____________________________________ Sheila Cabo Geraldo

Profa. Dra. do Instituto de Artes da UERJ

____________________________________

Zalinda CartaxoProfa. Dra. da UNIRIO

____________________________________Leila Danziger (suplente)

Profa. Dra. do Instituto de Artes da UERJ

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INTRODUÇÃO

Meu interesse no assunto que pretendo discorrer é formulado a partir de questões surgidas em

trabalhos artísticos por mim desenvolvidos, onde estabeleço uma referência imediata à ambigüidade

presente em imagens e situações cotidianas. Nesse processo, utilizo meios que não faziam parte da

tradição artística, tais como o objeto conceitual, a instalação e o vídeo, mas que, desde meados do

século XX, já estão incorporadas à produção do que se chama arte contemporânea.

Importante ressaltar que em minha produção plástica aqui apresentada a visualidade é um

aspecto importante, sendo particularmente o dado que desencadeia a percepção da existência da

obra no espaço e dá início ao diálogo que esta instaura com o imaginário do observador. Emprego

uma carga conceitual específica para definir de imediato que esses trabalhos transitam numa

fronteira que chamo Espaço Intermediário, ou seja, uma área de atuação que se moveria entre e

através dos limites que estipulam cada campo de pensamento e ação, mas isto, de modo algum,

resulta que o elemento conceitual impeça ou minimize o contato físico/sensível do espectador com

as obras o que é, de fato, a sua site especificidade. O conceito se revela a partir da imagem.

Na elaboração de um maior aprofundamento teórico em minhas reflexões como artista,

pretendo analisar algumas questões fundamentais para a fluidez desse meu processo criativo e farei

isso por meio da leitura de determinados autores que teorizam sobre a forma de produção e

apreensão da arte contemporânea.

Irei, sobretudo, investigar duas abordagens∗ divergentes no modo de considerar o acesso à

obra de arte e a oposição desses argumentos fundamenta essa dissertação.

No primeiro capítulo, que tem por título A Perder de Vista, trabalharei sobre as especulações

de Arthur Danto acerca de que, com o fim de determinada História da Arte Ocidental em meados do

Refiro-me às opiniões de Arthur C. Danto e de Georges Didi-Huberman.

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século XX, se desenvolve um procedimento artístico – nomeado pelo autor de pós-histórico – que

desloca o ponto de contato com a arte, da esfera sensível, para a pura teoria (especificamente a

filosofia) e assim relacionar em que medida isso afetaria a visualidade.

Paralelamente pretendo averiguar uma opinião específica de Hans Belting sobre a condição de

produção das imagens realizadas antes da chamada Era da Arte no Ocidente, ou seja, imagens

anteriores ao Renascimento; em seguida imaginar uma possível relação de continuidade entre

aquele período (especificamente a Idade Média) e a postura intelectual adotada em nossos dias –

pós Era da Arte – por determinadas disciplinas que tem como projeto conectar a sociedade ao

fenômeno artístico, principalmente em relação aos trabalhos que aparentemente são indiferenciáveis

dos objetos e situações cotidianas.

Nesse sentido será significante um texto de Margaret Wertheim, Uma história do espaço, de

Dante à Internet, que contém elementos que podem servir de base a essa hipótese de uma provável

retomada da perspectiva bipolar material/imaterial no modo virtual/conceitual de formular as

questões da arte e as relações cotidianas.

Como contraponto, fundamentarei uma “defesa do sensível” nas palavras de Didi-Huberman e

em exemplificações de Merleau-Ponty que recuperam a noção de uma relação dialética entre os

personagens que atuam no processo artístico, reavaliando as concepções de artista, espectador e

obra.

No segundo capítulo – Imagens Ativas – primeiramente buscarei elementos que avaliem as

razões históricas que associam arte e técnica para, junto a Pierre Francastel, seguir nas

possibilidades de um pensamento artístico autônomo que tenha por instrumento a imagem em

contraponto a toda uma supremacia histórica da palavra. Em seguida, relacionarei as possíveis

aplicações do conceito de representação com o fato de uma grande parcela da produção de arte

contemporânea ter uma aparência indiscernível com o mundo, e tentar identificar quais as

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estratégias adotadas por essa forma de arte para se fazer “visível”. Fechando o capítulo, pretendo

recuperar através do mito de Narciso, todo um imaginário que relaciona imagem e realidade para

ver até que ponto é possível que a condição indiscernível desta produção seja uma atualização da

idéia da arte como espelho do mundo.

O terceiro capítulo tem por nome Espaço Intermediário. Nele apresento uma série de cinco

trabalhos que venho desenvolvendo desde 1990, quando terminava minha graduação em Pintura na

Escola de Belas Artes da UFRJ até o ano de 2007, quando concluo o mestrado em Processos

Artísticos Contemporâneos no Instituto de Artes da UERJ.

Numa afirmação do sensível, somente a partir da visão de cada uma das imagens será possível

o acesso aos textos correspondentes.

Que a visibilidade seja possível.

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1 A PERDER DE VISTA

De quem é o olharQue espreita por meus olhos?

Quando penso que vejo,Quem continua vendo

Enquanto estou pensando?(...)

Guia-me a só razão.Não me deram mais guia.

Alumia-me em vão?Só ela me alumia.

(...)Com o olhar, a razão

Deus me deu, para verPara além da visão –Olhar de conhecer. 1

Fernando Pessoa

No texto Depois do fim da Arte: Arte Contemporânea e a fronteira da História, Arthur C.

Danto se refere aos escritos de Hans Belting acerca do fim da arte2, e é interessante ressaltar que ele

comenta sobre alguma importante mudança histórica (...) nas condições produtivas das artes

visuais3. Esse foco imediato sobre visuais, e não plásticas, permanece na medida em que esse

discorre acerca do surgimento das imagens antes da era da Arte e presta significativa atenção ao

fato de certas imagens naquele período nem mesmo serem admitidas como produção humana, mas

sim como algo especial, de proveniência divina, ou seja, imaterial. O argumento segue dizendo que

embora essas mesmas imagens fossem arte numa acepção mais ampla, devemos ter em conta que

não foram produzidas como tal. O conceito de arte (assim como o de artista) como algo separado da

1 NOVAES, Adauto. O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995: p.p.330,331. PESSOA, Fernando apud PERRONE-MOISÉS, Leyla.2 DANTO, A., Después del fin del arte: el arte contemporáneo y el linde de la historia. Buenos Aires: Paidós, 2003, p.25. O autor se refere à publicação de um texto do historiador alemão Hans Belting intitulado O Fim da História da Arte? - Das Ende der Kunstgeschichte?- de 1987, ampliado e republicado posteriormente sem a interrogação e com o subtítulo de uma revisão dez anos depois - Das Ende der Kunstgeschichte: Eine Revision nach zehn Jahre, Munich – 1995.3 Ibid., p.25.

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religião ainda não havia se instaurado naquela sociedade e somente a partir de tal evento a relação

entre os homens e determinadas imagens (agora artísticas) seria regido por considerações estéticas4.

O comentário continua detalhando a distinção dos dois tipos de imagens de culto veneradas

em público pela cristandade, e é importante notar o fato de que aquelas não feitas pelo homem eram

consideradas as autênticas:

“(...) um tipo incluindo imagens ‘não pintadas’ e, portanto autênticas, de origem celestial ou produzidas por impressão mecânica durante a vida do modelo (...) o termo cheiro-poieton (‘não feitas à mão’), em latim non manufactum. (...) essas imagens eram traços físicos, como impressões digitais, e, portanto tinham o status de relíquias”.O segundo tipo admitia imagens pintadas contanto que o pintor fosse santo, como São Lucas “para quem se acreditava que Maria posasse para ser retratada durante sua vida... A própria Virgem foi levada a acabar a pintura, ou um milagre do espírito santo ocorreu para dar autenticidade ao retrato5”.

Danto se utiliza especificamente de dois textos de Belting: O fim da história da arte que traz

como subtítulo, uma revisão dez anos depois e A Imagem antes da era da Arte6, onde Belting

aborda um período que vai desde os momentos finais do Império Romano até cerca do ano 1400 de

nossa era. A partir de então teríamos, segundo o autor, o começo da chamada Era da arte iniciada

com o Renascimento.

No desenvolvimento de tal pensamento, o que se propõe é que se algo como a Era da arte teve

início, por que não admitir um momento de seu possível fim, e um período da imagem depois da era

da arte?

O autor diz que percebeu esse fato quando, particularmente, se deu conta de que algo havia

mudado no que se refere ao resultado do fazer artístico, e a constatação teria vindo após ver as

Brillo Box de Warhol numa mostra de abril de 1964, na Stable Gallery na 74th em Manhatan:

“Minha grande experiência, descrita com freqüência, foi meu encontro com Brillo Box de Warhol

(...). Foi como se os artistas começassem a fechar a brecha entre a arte e a realidade. (...) porque era

4 “Essas não eram nem mesmo pensadas como arte no sentido elementar de terem sido produzidas por artistas – seres humanos deixando suas marcas nas superfícies – mas eram consideradas como tendo proveniência miraculosa, como a impressão da imagem de Jesus no manto de Verônica”. Ibid., p.26.5 Ibid., p.p.25/26, 39/40.6 BELTING, H. Likeness and Presence: A History of the Image before the Era of Art, Chicago: University of Chicago Press, 1984, p.49.

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uma obra de arte quando os objetos aos quais se parece exatamente, ao menos sob um critério

perceptivo, são coisas comuns, ou, ao menos simples artefatos?7”

O paralelo que proponho estabelecer se dá entre a imagem não pintada do período medieval à

qual Belting se refere como marca direta do contato com o mundo espiritual/divino/imaterial, e a

produção artística surgida a partir dos anos 60 do século XX onde, no pensamento de Danto, a

aparência visível e a própria presença física do trabalho artístico seriam apenas um dado perceptível

e não mais a obra propriamente dita. Assim formulado, o elemento arte residiria em algo para além

do sensível, somente capaz de se apreender através da filosofia, o que levaria o autor até mesmo a

considerar desnecessária a presença de algo visualmente considerável. Isso estaria numa certa

medida próximo à revelação advinda do contato místico dos homens com as antigas imagens

anteriores à era da arte, de que uma realidade maior se mostrava oculta por trás das aparências do

mundo visível. Os miraculosos objetos de fé eram, portanto, apenas elementos desencadeadores no

processo de transmissão ao homem da idéia de uma verdade transcendente (porque

imaterial/espiritual) que se permitia mostrar por meio de elementos visuais-materiais, mas sem

deixar dúvida de que estava para além dessa ordem.

Observo aqui, sem pretender afirmar uma continuidade de fato entre o antes da era da arte e o

momento que Danto denomina pós-histórico, que podemos estabelecer algumas relações.

Primeiramente, pensar a possibilidade de que, até certo ponto, algo semelhante ao não

manufaturado (cheiro-poieton - não feitas à mão -, em latim non manufactum), fenômeno em que se

constatam traços “físicos” de origem divino-imaterial possa ter subsistido, ou quem sabe se

atualizado, na referência contemporânea de que obras/imagens conceitual-mentais poderiam estar

em certo momento e de algum modo, vinculadas a elementos materiais transitórios.

Esses materiais, porque transitórios, não seriam propriamente a obra – conceito puro – mas

apenas algo que demonstraria esse conceito. Assim sendo, de modo semelhante à consideração 7 Ibid., p.p.148,149.

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dada àquelas imagens de origem divina e imaterial anteriores à era da arte, miraculosas e

verdadeiras porque não feitas pelo homem, a cota imaterial do chamado objeto de arte, ou seja, o

elemento conceitual/mental referido na produção contemporânea, responderia de fato pela condição

artística propriamente dita. Esse dado específico, tido como imaterial, seria apreendido por aquele

que pretendesse compreender de fato a obra através de outros mecanismos não corpóreos, ou,

melhor dizendo, para além do sensível, filosoficamente ou como em um ato de fé.

Um segundo passo seria pensar que essa obra conceitual, segundo Danto, não mais se daria

perceptivamente através do olhar, mas filosoficamente, mentalmente, posto a arte pós-histórica ser

indiferenciavel, a nossos olhos, das outras coisas do mundo. Contrariamente à imagem pintada, essa

teria emergido através do conceito como obra de arte, separando a artesania do fazer artístico e o

olhar do ver, aqui como termo apenas ilustrativo do ato de pensar.

É possível também, a partir disso, investigar na arte contemporânea (ou pós-histórica) a

suposta perda do diálogo sujeito/objeto, talvez próximo da relação “olhar e ser olhado”, estando

essa ruptura definida, por exemplo, na desconsideração da necessidade do olhar - agora pensar - e

no conseqüente desprezo pelo ato de ser em troca olhado∗.

Assim sendo, poderíamos considerar a existência de uma visão concebida intelectualmente,

uma espécie de “olhar pensante” que definiria de fato as relações com o mundo e até mesmo o que

os olhos poderiam ou deveriam ver e como esses diferentes olhares se dariam.

Isso estaria muito próximo do que Danto diz acerca da arte conceitual explorar a relação do

objeto poder estar presente ou não8.

Um objeto fisicamente ausente faria uso de um olhar virtual/mental, um saber de outra ordem

(o que não cancelaria definitiva e tacitamente que são objetos visuais), para serem vistos a partir de

A partir desses elementos encontro subsídios para pensar as considerações de Danto através de reflexões de Georges Didi-Huberman em seu livro O que vemos, o que nos olha, São Paulo: Ed. 34, 2005.8 DANTO, op. cit., p.35. “A arte conceitual demonstrou que não precisa nem mesmo haver um objeto visual palpável para algo ser uma obra de arte visual”.

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outro olhar e de acordo com um diferente tipo de olho, não corpóreo, mas humano: como um olho

mental.

A fim de maior aprofundamento, trago algumas considerações sobre o assunto na

contribuição do texto de Didi-Huberman sobre a construção do olhar, O que vemos, o que nos olha,

e sua interpretação da idéia do ver para crer, como um ver unilateral sem objeto a ser visto, ou

como ele mesmo coloca, sem um olhar que nos olhe de volta9.

Huberman parte da integração de duas redes conceituais benjaminianas, a da aura e a da

imagem dialética, para demonstrar a necessidade dos múltiplos aspectos possíveis do olhar e ser

olhado:

“A aura (...) procura dar conta da ”dupla eficácia do volume: ser a distância e invadir” enquanto ‘forma presente’ (...) entre aquele que olha e que é olhado, a distância permite criar o espaçamento inerente ao seu encontro. É preciso um vazio que seja o não-lugar de articulação dessas duas instâncias envolvidas na percepção e no encontro entre “olhante” e “olhado”, olhante e olhado que pertencem tanto ao âmbito da obra e da imagem quanto ao do antropos10”.

Huberman traça um paralelo entre o ver e o ser olhado e é possível claramente perceber o

quanto para ele é importante pensar esse gesto como uma relação. Ele coloca que o ato de ver só se

manifesta ao abrir-se em dois11, demonstrando a existência de algo próximo ao que chamo um

espaço intermediário, um espaço de conexão que permitiria o interagir desses dois elementos (o

sujeito/objeto que olha e o objeto/sujeito que devolve o olhar) e que ele chamou de cisão12, cisão

esta desconsiderada pelo que denomina de esquiva e evidência tola do sujeito da tautologia, ou

seja, daquele que tem o exercício da visão constituído a partir da recusa do poder de latência do

objeto, como se bastasse apenas a visão imediata: “esse objeto que vejo é aquilo que vejo (...), nada

mais”.

Huberman faz uso recorrente da imagem do túmulo esvaziado que nos olha, exemplo

evidente, em vários momentos da história da arte, de Fræ Angélico ao minimalismo, de alguma

9 DIDI-HUBERMAN, op. cit., p.29. “O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha”.10 Cf. DIDI-HUBERMAN apud HUCHET, Stéphane, ibid., p.22.11 Ibid., p. 29.12 Ibid.

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possível forma de escapismo ou tentativa de evitar o enfrentamento direto com o fato de nós nos

vermos ali, naquele côncavo/convexo, em nossa futura condição de humanos que somos, justamente

pela ambígua característica do corpo, de um modo geral, de fazer volume ou demonstrar o vazio:

“Ele me olha porque impõe sobre mim a imagem impossível de ver daquilo que me fará o igual e o semelhante desse corpo em meu próprio destino futuro de corpo que em breve se esvaziará, jazerá e desaparecerá num volume mais ou menos parecido13”.

É de fato impressionante como a própria tentativa de retirada do aspecto sensível na relação

do homem com o mundo revela e reforça, contrariamente a qualquer outra expectativa, sua

condição espaço/temporal, ou seja, que tanto esse homem como o universo do qual é indissociável

não são permanentes. O sujeito que se vê refletido nos objetos tangíveis que o observam busca, com

a remoção de todos esses possíveis espelhos, evitar que o destino se anuncie e procura, como

veremos a seguir, cerrar seus olhos para poder crer.

1.1 APARIÇÃO MÍNIMA - NADA VER, PARA CRER EM TUDO

Transcender o olho físico é ter acesso aum mundo que desconhece a lei da morte.

Pitágoras

Em O que vemos, o que nos olha, há um capítulo chamado O evitamento do vazio: crença ou

tautologia, no qual existe uma citação dos evangelhos que poderia ilustrar a chamada relação

inversa entre ver para crer e o crer por não poder ver, algo próximo ao ato de fé, ainda que

elaboradamente racional.

13 Ibid., p.38.

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É citada especificamente uma passagem do Evangelho de São João, quando o discípulo –

precedido por Simão Pedro e seguido por Maria, depois por Maria Madalena – ao chegar diante do

túmulo vazio e com a pedra superior deslocada, olha o interior e crê:

“(...) chega diante do túmulo, constata a pedra deslocada e olha o interior... “e viu e creu” (et vidit et creditit), observa lapidarmente São João: acreditou porque viu, como outros mais tarde acreditarão por ter tocado, e outros ainda sem ter visto nem tocado. Mas ele, que é que ele viu? Nada, justamente. E é esse nada – ou três vezes nada: alguns panos brancos na penumbra de uma cavidade de pedra -, é esse vazio de corpo que terá desencadeado para sempre toda a dialética da crença. Uma aparição de nada, uma aparição mínima; alguns indícios de um desaparecimento14”.

Para Huberman, desde então passamos a ver em toda parte os corpos tentando escapar (e

poderíamos também pensar nos objetos) em imagens ao volume real de sua inclusão física, em um

processo que ele cita como sendo de superação gloriosa, de ressurreição sonhada, onde cada

volume seria plenamente subtraído de seu conteúdo, de sua materialidade mesmo, de sua condição

transitória e temporal.

Sendo um jogo de estratégias e inversões estruturais, para Huberman essa dialética ambígua

nos manteria fisicamente à distância, numa estrutura de crença15 que permitiria o conceituar através

de valores como essência e permanência.

Em diversos momentos, o texto demonstra que se transita por diversos olhares, olhares não

físicos (filosóficos) e físicos (sensoriais), como, por exemplo, quando cita o Ulisses de Joyce:

“Fecha os olhos e vê16”, ou quando aponta uma citação de Merleau-Ponty: “Toda visão efetua-se

algures no espaço táctil17”.

Essa pluralidade de olhares faz pensar sobre a arte pós-histórica por Danto definida puramente

como arte filosófica, e não hibridamente estabelecida a partir da visão e dos múltiplos olhares

14 Ibid., p.42.15 Ibid., p.43. “(...) toda essa estrutura de crença só valerá na verdade pelo jogo estratégico de suas polaridades e de suas contradições sobredeterminadas”.16 JOYCE, James apud DIDI-HUBERMAN, Ibid., p.29.17 Ibid., p.31. Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice apud DIDI-HUBERMAN: “(...) todo visível é talhado no tangível, todo ser táctil prometido de certo moda à visibilidade, e (...) há invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado e quem toca, mas também entre o tangível e o visível que está incrustado nele. Toda visão efetua-se no espaço tátil”.

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possíveis, como uma arte que se pretenderia talvez, estar posta à parte das artes visuais e, ao

desconsiderar o fazer enquanto artesania, também como uma arte distante das artes plásticas:

“A arte conceitual demonstrou que não precisa nem mesmo haver um objeto visual palpável para algo ser uma obra de arte visual. Isso significava que você não poderia mais ensinar o significado da arte por meio de exemplos. Significava que tanto quanto concerne às aparências, nada poderia ser uma obra de arte, significava que para você descobrir o que era arte, tinha que ultrapassar a experiência sensorial e ir dessa para o pensamento. Você tinha, em suma, que passar para a filosofia18”.

Entretanto, uma visualidade possível retorna enquanto olhar/mental e não apenas

pensamento puro, apenas como filosofia, mas como algo híbrido, espaço de um olhar filosófico, de

olhar e ser olhado, sujeito e objeto e não a retirada de ambos, já que qualquer possibilidade de

purismo estaria mais de acordo com o modernismo greenberguiano que com uma possível definição

do fazer contemporâneo:

“A essência do modernismo, repousa, como eu a vejo, no uso dos métodos característicos de uma disciplina para criticar a própria disciplina, não para subvertê-la, mas para confiná-la mais firmemente na sua área de competência19”.

Lembrando Roberto Venturi20, a conjugação de olho e mente estaria muito mais de acordo

com a consideração desse hibridismo por se tratarem de elementos ‘comprometidos/contaminados’

antes que elementos ‘limpos’, elementos ambíguos antes que ‘articulados’, elementos perversos

antes que ‘fascinantes’.

Diante desses elementos, podemos então partir passar a um outro segmento onde

determinadas perguntas abrem caminho a um maior nível de aprofundamento. O que significaria de

fato o ver? Como se encadeia uma percepção satisfatória? Vemos a partir do que pensamos ou na

verdade se dá o contrário?

18 DANTO, op. cit., p.35.19 Ibid., GREENBERG, Clement apud DANTO em seu ensaio de 1966, Pintura Modernista, p.5. 20 NOVAES, op. cit.

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1.2 O OLHAR INCORPÓREO

Há seguramente o inexprimível.Este se mostra...

Wittgenstein21

Uma interessante correlação entre ver e pensar talvez possa servir de conexão na reconstrução

do parentesco entre elementos considerados tão antagônicos:

“De eidos, que em Platão significa aquilo que é percebido pelos olhos do corpo, à palavra idéia há um percurso que vai determinar boa parte do pensamento ocidental; mas, como lembra Heidegger, Platão exige muito mais da palavra: idéia não designa apenas o aspecto não sensível do que é sensivelmente visível: é a essência daquilo que se pode escutar, ver, tocar, sentir. Apenas uma visão despojada dos sentidos e do corpo pode levar à evidência, à essência e à certeza22”.

Aqui estamos diante de duas coisas: primeiramente que se admite a possibilidade de “uma

visão despojada dos sentidos e do corpo”, uma visão incorpórea, sem “perder de vista” o fato de

ainda assim ser visão humana. Em segundo lugar, que essa visão seria platonicamente utilizada com

o objetivo de se atingir evidências, essências e certezas, algo a princípio deslocado em se tratando

de um pensar, ou um olhar, artístico contemporâneo, teoricamente avesso a permanências e

imutabilidades que comprometeriam o desenvolvimento das pesquisas e das novas linguagens

experimentadas pelos artistas. Mas, curiosamente, a aplicação do termo revela sua ambigüidade,

pois o nosso momento também foi citado como era da incerteza, elemento característico primordial

para que todo sistema bifásico∗, como foi o medieval, conduza forçosamente a valorização de uma

instância (uma verdade “real”) em detrimento de outra. A condução à verdade que se pretende

estabelecer sempre é induzida por uma aparente dúvida.

Num momento de seu já citado texto, Danto se refere diretamente a Hegel, relacionando a

idéia do filósofo em relação ao fim da arte, com a sua suposição sobre a condição artística pós-

histórica. “Meu pensamento é que o fim da arte consiste na tomada de acesso à consciência da

21 WITTGENSTEIN apud DIDI-HUBERMAN, op. cit., p.35.22 NOVAES, op. cit., p.11. Questão que desenvolverei mais adiante no texto.

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verdadeira natureza filosófica da arte”. Esse pensamento é inteiramente hegeliano na medida em

que se posiciona contra o que o pensador nomearia como uma satisfação não mediada por teoria

filosófica23.

Hegel dirá que o que nos desperta a obra de arte, não é mais essa imediatez, mas a

consideração- poderíamos dizer mediação – intelectual e, mesmo assim, essa sem o propósito de se

criar arte, mas sim levar ao conhecimento do que a arte é – o que interessa Danto – filosoficamente

falando.

Impossível não transcrever a partir daqui um modo de se pensar acerca dessas questões

muitas vezes negligenciado e às vezes minimizado como algo irrelevante, mas, entretanto, muito

interessante no que toca ao olhar.

Num artigo chamado “O Olho e o Olhar”, Alfredo Bosi relaciona etimologicamente Eidos,

forma ou figura, como termo afim a Idea, assim como em latim (...) video (eu vejo) e idea. E que

encontramos na palavra historia (grega e latina) o mesmo étimo id, que está em eidos e em idea. O

que chamamos história seria de fato uma visão-pensamento daquilo que já aconteceu24. Bosi propõe

que a situação frontal dos olhos no rosto humano remete à posição de centralidade do cérebro, o que

definiria o ato de olhar como um direcionar a mente para uma ação “in-tencional”, – que eu diria ser

como tensionar um arco para lançar uma seta ao alvo – gesto de significação que Husserl definiu

como a própria essência dos atos humanos25.

É curioso que em português as duas palavras, olho e olhar “visivelmente” se relacionam, o

que não se dá em outros idiomas quando a diferenciação é claramente percebida e leva o

pensamento a considerar as distâncias. Seria realmente uma percepção gravada no corpo dos

idiomas diferenciando os órgãos receptores externos do movimento interno do ser que se põe em

23 DANTO, op. cit., p.p. 20-22.24 NOVAES, op. cit., p.65. Cf. Alfredo Bosi, no ensaio “Fenomenologia do Olhar - O Olho e o Olhar”.25 Ibid., p.p. 65-66.

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busca de informações e de significações, e que é propriamente o ‘olhar’. Em espanhol, ojo/mirada;

em inglês, eye/look; em francês, oeil/regard/ regarder e em italiano, occhio/sguardo.

Em relação à satisfação imediata, é curioso um antigo texto de Giordano Bruno sobre a

crueldade de alguns objetos (sujeitos?) em que é dito:

“(...) cruel é o objeto que não consente dar prazer, ou pleno prazer de si mesmo, que é objeto de desejo mais que de posse, de sorte que, aquele que tem dele posse parcial não pode descansar em perfeita felicidade, uma vez que deseja ainda, com ardor que leva ao desfalecimento”. (...) “Os olhares são as razões pelas quais o objeto (como se ele nos olhasse) se faz presente a nós26”.

E completa dizendo que o desejo acende a percepção, a visão e o conhecimento. Mais uma

vez podemos perceber que se faz uma separação entre as formas de olhar, dando especial atenção

àquele movido pelo desejo.

Essa distinção seria elaboradamente foco de Merleau-Ponty na desconstrução de

possibilidades únicas, verdadeiras e singulares com que definir o olhar. Utilizando o termo “fé

perceptiva” 27, ele define como a maior e primeira certeza do homem o “ver o mundo”, acreditar

mesmo que há um mundo que se dá a ser visto, um mundo que existiria de per si, fora de nós, para

nós, perfeitamente a mercê de nossos sentidos.

Essa desconstrução, digamos assim, está longe de querer efetuar a troca de um olhar físico por

outro olhar não físico, mas sim propor que existe algo de um no outro, num convívio híbrido ainda

“ignorado”. Merleau-Ponty chama pregnância tudo aquilo que mesmo não sendo visível, permite

que vejamos e ainda que não seja pensado, nos dá a pensar através de um outro pensamento28.

“De que maneira o pensamento pode refazer o caminho sem que o corpo instaure sua superioridade sobre o espírito? Para ele, existe um campo, um ‘tecido conjuntivo dos horizontes exteriores e interiores’ que não é nem a Natureza transcendente – o em si do naturalismo – nem o espírito imanente: É neste entremeio que é preciso tentar avançar29”.

Ao afirmar que ver é por princípio, ver mais do que se vê, é aceder a um ser latente, Merleau-

Ponty faz relação entre visível e invisível, sem que necessariamente um se sobreponha ao outro ou

26 BRUNO, Giordano. Des fureurs héroiques [De gl’ Heroici Furori], edição bilíngüe, Paris, Le Belles Lettres, 1984, apud ibid., p.17.27 MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o espírito. Rio de Janeiro: Grifo, 1969.28NOVAES, op. cit., p.14.29 Ibid., p.14.

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que defina mais proximamente o chamado real. Não haveria real, mais real que qualquer irreal e os

olhares físicos e mentais seriam possibilidades humanas na invenção e reconhecimento do mundo.

Ao afirmar que somente mentalmente poderíamos encontrar diferenças entre duas coisas

visualmente indiscerníveis, Danto deixa “entrever” que avalia o olhar da mente como mais potente

que o olhar do olho; o segundo seria apenas capaz de satisfação imediata e superficial; o primeiro

necessitaria de tempo para elaborar algo próximo ao conhecimento essencial, filosófico. Só que em

suas palavras, este nega a este poder a denominação de olhar. Para ele o que considera essencial – a

capacidade de perceber a diferença – seria de fato invisível, talvez porque não do mundo, não

temporal, verdade imaterial mesmo, – enquanto para Merleau-Ponty esse invisível seria o relevo e a

profundidade do visível. Nega por se ver como um não olho, mas como puro conceito filosófico

capaz de conhecimento. Afirma sua posição de sujeito absoluto e em seu texto parafraseia o título

do livro de Belting afirmando que a separação entre a filosofia antiga e a moderna surge com

Descartes e seu conceito do eu antes da era do eu30. Ainda que a idéia de um sujeito já existisse

anteriormente, ela não representava o que veio a se tornar após a revolução cartesiana: o próprio

mote da atividade filosófica. Frente a essa declaração, Margaret Wertheim diria que mesmo

modificando o “logo sou” por um logo penso, sinto, sofro ou amo, o que resulta desde então é

sempre a contínua afirmação frontal de um Eu indissolúvel com o qual lidar 31.

Perrone-Moisés fala sobre esse olhar de conhecer como um presente de deus grego, pois que

levado ao extremo é capaz de destruição e autodestruição: “Pior do que não ver porque ’tudo é

oculto’ é ver demais, com a fúria destrutiva do Fausto (...). Conhecer o objeto é anulá-lo, é devorá-

lo pela consciência”.

Afirmação do sujeito sem objeto, auto-sabotado na impossibilidade de relações.

“Olhar sem ver (porque a vida é sonho e tudo é oculto);ver-se olhando (porque a consciência se quer soberana);

30 DANTO, op. cit., p.29. Parafraseando o título do livro de Belting, A imagem antes da era da imagem.31 WERTHEIM, Margaret. Uma história do espaço de Dante à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001,p.29.

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ser visto sem ver quem nos olha (...) ”“(...) olhos feitos para deixar de ver” 32.

O que proponho aqui é investigar o quanto poderia haver de afinidade entre esse jogo de

estratégias e inversões e o pensamento que pretende uma produção artística na qual o olhar se veria

desvalorizado.

Talvez possamos constatar de algum modo que, mesmo no chamado objeto ausente, essa

ausência física não acarreta a eliminação do olhar, já que, o olhar não estaria vinculado somente aos

olhos físicos, e assim possamos não desconsiderar o objeto, pois só pode num dado momento estar

ausente o que nos é muito real, muito presente. O que foge às nossas visões de mundo sequer é

cogitado já que não é parte integrante nas diversas formas do pensar e agir sobre o que podemos

chamar real.

Se realmente houver possibilidade de algo como o que foi aqui denominado um olhar através

da mente, no mínimo veremos multiplicar a possibilidade de pregnantes relações entre os sentidos e

o tentar fazer sentido e poderemos nos aproximar da produção artística que Danto qualifica ou

conceitua como pós-histórica, utilizando algo mais do que apenas puro pensamento.

O fato de estarmos lidando com uma oposição entre formulações de mundo faz necessário

localizar em que medida esse embate estaria fundado sobre diferentes instrumentos disponíveis à

produção de sentido, tomados a partir das muitas linguagens que participam da invenção do

pensamento humano. A seguir buscarei, junto à crítica de Pierre Francastel sobre determinada

tradição histórico investigativa, uma visão mais ampla acerca da condição produtiva do artista;

procurarei elementos que compartilhem das linguagens e sistemas de pensamento que favorecem de

fato o encontro com o objeto artístico.

2 IMAGENS ATIVAS

32 NOVAES, op. cit., p.p. 332,333. Fernando Pessoa e Jacques Lacan apud Perrone-Moisés no ensaio Pensar é estar doente dos olhos.

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A importância de um contato direto com as obras de arte é discutida por vários autores e

especificamente o estudo de Pierre Francastel desenvolve uma hipótese de que, dentre as várias

formas de pensamento disponíveis ao ser humano, a linguagem verbal, baseada exatamente na

palavra falada e escrita de uso corrente em várias culturas, tradicionalmente vem sendo utilizada por

várias disciplinas num propósito reducionista que vai de encontro à pluralidade de experiências que

toda relação de fato pode oferecer.

Para o autor33 a História da Arte, de maneira geral, se propôs inventariar, conservar e

constituir uma série de itens ordenados segundo a categoria “obra de arte”, tendo por base um modo

de classificar originado da Botânica ou da Biologia. A disciplina tradicionalmente faria uso de um

método completamente descritivo e, na maior parte das vezes, indiferente às funções sociais assim

como ao que cada obra poderia ter de significado tanto a seus criadores (os artistas) quanto ao que o

autor chama de usuários (o público). Também ficariam á margem desse tipo de abordagem as

possíveis mudanças nas significações que os trabalhos abarcariam no decorrer do tempo∗.

Esse modo de notação tradicional nunca teria reconhecido de fato as imagens e monumentos

como elementos de valor análogo ao documento escrito, sendo isso comprovado na própria acepção

de História a partir do surgimento da escrita.

Os períodos em que não se encontra esse tipo de registro, ainda que haja abundância de outros

elementos que lhes sirvam de testemunho, são referidos como Pré-Históricos; em outros, toda uma

Imaginária simultânea aos registros escritos é vista como ilustração ou acessório das verdades que

estes estabelecem por serem as verdadeiras fontes determinantes de acesso ás variadas culturas.

33FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa: elementos estruturais de sociologia da arte. São Paulo: Perspectiva, 1973, p.1. De modo semelhante, a Sociologia também não se renderia frente à outra documentação que não a escrita ou a verbal.

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Mesmo reconhecendo a importância da escrita podemos observar que a História subestima

outros modos de informação absolutamente pertinentes a uma compreensão mais ampla dos

variados aspectos do desenvolvimento das civilizações, e nesse sentido é preciso afirmar que arte

também é documento, ou seja, pode e deve ser acessada para que determinadas informações que de

outro modo escapariam à nossa compreensão não se percam.

Thierry de Duve confirma a posição das artes e mesmo afirma que estas precederam as

transformações sociais e, portanto, deveriam sim assumir as rupturas de tradição34.

Possivelmente devido ao fato de nas sociedades atuais a educação estar alicerçada na língua,

ainda que nem sempre escrita, vê-se que, para os historiadores tradicionais, uma obra de arte só é

representativa quando se reduz a um signo que permita sua integração nos códigos verbais de

significação. A procura da razão de ser e existir das obras artísticas passa a operar segundo a

“tradução” realizada por disciplinas como História, Sociologia ou Filosofia que buscam “decifrar” e

comunicar o mundo por meio do instrumental comum a essas ciências, ou seja, de uma linguagem

verbal oficialmente instituída e disseminada.

É preciso elucidar que todo conhecimento construído a partir de aquisições de outras ciências

ou disciplinas é um conhecimento que tem sua validade relativa às operações das linguagens

pertinentes a cada uma delas.

“Procurando definir a razão de ser das obras de arte, comete-se efetivamente o erro de admitir de início que essa razão deve ser buscada fora da Arte35”.

O resultado seria uma espécie de transcrição de uma disciplina em outra, com o propósito de

assim poder atingir e se aproximar da sociedade, e isto é feito sem que se perceba que todo trabalho

artístico estabelece por si mesmo o meio que possibilita a comunicação com o público. A arte

34 DE DUVE, Thierry. Voici. Bruxelas: 2000. “As artes não somente acompanharam estas transformações, elas, sobretudo as precederam, anunciadas ou reveladas, e deviam por isso assumir as rupturas de tradição, iguais em amplitude e em profundidade nas reviravoltas do século”.35 Ibid., p.2.

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também cria e exprime tanto quanto as outras linguagens, como outras “grandes formas de ação” 36,

termo utilizado por Francastel para definir as disciplinas ou grandes linguagens que preenchem de

maneira total seu papel enquanto modos produtivos e expressivos próprios de gerar e não apenas

refletir conhecimento, – ainda que esse não incida diretamente na produção econômica, política e

social. De modo semelhante às literaturas, a arte (e cada uma dessas disciplinas/linguagens) sempre

formou (e informou) as sociedades, operando na elaboração e disseminação de pensamentos e

ações.

A clássica visão histórico-sociológica da arte cooperou para cultivar a concepção do artista

com sendo um simples fabricante de luxo supérfluo, aquele que é, dentro da sociedade, capaz de

exprimir materialmente valores (dados de antemão pelo meio em que vive) e como legitimador da

razão de ser da arte na ocupação das horas vagas obtidas através de um crescente desenvolvimento

tecnológico.

De fato todo artista é produtor não somente de objetos e conceitos, mas de esquemas de

pensamento e, quanto à técnica, essa por si mesma não habilita, gera ou formata algum tipo de ação,

pelo fato de ser simplesmente o processo de aplicação que disponibiliza meios para seu

desenvolvimento.

Coloca-se a questão de que as diferentes linguagens sejam também modos diferentes de

pensar e, assim como um sem número de procedimentos humanos, não são passíveis de serem

traduzidas por outras. Haveria assim um somatório de grandes “complexos de reflexão e ação37” que

viabilizariam a observação e expressão do universo a partir de linguagens e atos específicos a cada

um. Consideremos exemplos como o pensamento matemático, o pensamento filosófico e, aqui

principalmente, o pensamento plástico.

36 FRANCASTEL, op.cit., p.6. “Digamos com mais exatidão que cada uma das grandes formas de ação preenche total e perfeitamente seu papel sem recorrer a outros meios de expressão que não sejam os que lhe são próprios: Álgebra Geometria, Pintura, Arquitetura, Música, etc.” 37 Ibid., p.4.

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Ainda que essas múltiplas formas de pensar mantenham relações entre si, não estão

subordinadas umas às outras. Francastel fala da notável, absoluta e completa desconsideração dos

historiadores, sociólogos e filósofos, especificamente para com o pensamento plástico e isto seria

devido ao fato deste não fazer uso da língua como veículo de expressão38. O artista é agente

pensante e sua imaginação é um instrumento crítico, ou seja, assim como o fazem o filósofo e o

matemático, manifesta sua produção em procedimentos que lhe são específicos, empregando outros

veículos e instrumentos que não verbais.

O pensar plasticamente não está condicionado a algum elemento material – ou conceitual –

previamente elaborado, e nem mesmo está restrito às tradicionalmente aceitas formas de expressão

da arte, como a pintura, a escultura, a gravura e outros mais. Está sim diretamente relacionado ao

fato do homem dar forma ao universo inventando e estabelecendo procedimentos expressos em atos

e linguagens específicas a esse meio especulativo. O artista, como diria Sartre, nega o que existe

pondo o que não existe em seu lugar39.

O que deve ser salientado é que, partindo de suas particularidades, toda obra de arte por si

mesma constitui o dispositivo necessário que efetiva sua comunicação e engloba em sua própria

modalidade de produção os requisitos necessários a sua inserção social. Mesmo não atingindo

imediata visibilidade como as linguagens de estreita ligação ao sistema de pensamento verbal, todo

objeto artístico, todo signo, verbal ou conceitual, é criação coletiva e terreno de encontro entre os

homens40.

38 Idem, ibidem, p.p. 5,6.39 SARTRE, Jean Paul apud SILVA, Franklin Leopoldo e, in Pensamentos Instigantes – Filosofia e Arte. Rio de Janeiro: Ciclo de palestras no Centro Cultural do Banco do Brasil, 2006.40 Francastel, ibid., p.60. “Ele encarna, em cada um deles, um comportamento que não se explica a não ser pela dupla necessidade de agir sobre o mundo que o cerca e de intercambiar idéias com seus semelhantes. Ele não decifra um universo estático, ele o amolda incessantemente de uma maneira original, criando sempre simultaneamente, as formas e as significações”.

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Um trabalho artístico nunca espera ser substituto de alguma outra coisa41 e nenhum artista de

fato aspira reproduzir em sua linguagem algo que facilmente poderia ser dito de outro modo.

“Aquilo que uma música de que eu gosto exprime não é nunca para mim um pensamento vago demais para ser encerrado numa palavra, mas, ao contrário, um pensamento preciso demais... Se me perguntarem o que pensei nessa exata oportunidade, responderei que foi a frase musical tal como ela está escrita42”.

O equívoco é pensar que em nome da difusão da arte para as massas43 habituadas a

compreender em relação direta à sua própria fala, possa-se cometer qualquer tipo de reducionismo,

inevitável quando um sistema coerente de pensamento tenta traduzir um outro. As diversas formas

de pensamento nunca encontram equivalência; nenhum é igual a outro. O fato de a linguagem

verbal ser amplamente utilizada na comunicação habitual não a abaliza como substituição possível a

outras formas de expressão e produção de conhecimento.

È importante afirmar que não se propõe aqui uma absoluta separação entre a arte e as outras

linguagens. Toda obra é num ponto ambígua e, assim como cada um de nossos atos, se situa numa

área de convergência de múltiplas atividades. Somente não existe alguma atividade tão

especializada que se determine e manifeste de forma pura e assim sendo o mais interessante é que

os estudiosos que pretendam melhor adentrar esses sistemas se tornem como que “poliglotas” da

ação e do pensamento, o que impediria toda simplificação e subtração de forma ou conteúdo.

2.1 ENCONTRO IMAGIN-ATIVO

41 “Uma obra de arte não é jamais o substituto de qualquer outra coisa; ela é em si a coisa simultaneamente significante e significada” Ibid., p.5.42 Ibid. Mendelssohn, apud Nahm, M. C. 43 Ibid., p.6.

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Todo diálogo só se estabelece a partir do encontro com o objeto artístico. Isso independe das

características Formal-conceituais da obra com a qual se dá o embate.

Estabelecendo diferenciações, Francastel nos diz que formas existem muitas, mas o

aparecimento de uma Forma é um acontecimento na História44. Sendo a descoberta de um esquema

de pensar imaginário segundo o qual o artista ordena a diversidade material, a Forma de modo

algum deve ser confundida nem com os suportes, nem com os objetos e coisas que esses

estabelecem. Ela é a própria estrutura e não a simples aparência (forma) das coisas.

Pelo fato de ser imagem-ação, a obra coloca o observador frente a uma condição inventiva

onde os pensamentos/ações se comunicam. O “enfrentamento” trans-Forma perceptivamente o

observador/participante desse encontro de um modo impossível à simples mediação de qualquer

disciplina que faço uso da linguagem verbal visto que, enquanto a palavra é indício das atividades

abstratas do espírito humano, o pensar/agir artístico é a prova de que esse não mera e

silenciosamente45 expressa, mas informa e figura o real.

O pensar plasticamente aciona a capacidade de seleção e experimentação que se corporifica

em objetos de civilização46 e, seja qual for a questão “imaginada”, esta gera outras Formas, ou seja,

inventa e institui novas ordens de relações e valores, submetendo e dispondo os elementos materiais

e conceituais certificados anteriormente em uma nova conduta.

Um dos maiores impedimentos ao encontro entre a obra e o observador é a crença do artista

como realizador e não inventor. O artesão fabrica algo tendo em mente algum modelo concreto –

forma – o qual reproduz ou mesmo altera. Técnica e intelectualmente47 o artista ao instituir uma

Forma não se baseia em modelos: inventa, seleciona e mistura realidades e tradições imaginárias

44 Ibid., p.10.45 DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974, p.248. “Mas falar, no sentido completo da palavra, supõe o verbo, e passa pelo verbo, que projeta a boca sobre a superfície metafísica e a preenche com os acontecimentos ideais desta superfície: (...) Contudo, o verbo é silencioso; e é preciso levar ao pé da letra a idéia de que Eros é sonoro e o instinto de morte, silêncio”. 46FRANCASTEL, op.cit, p.13.47 Ibid., p.p. 20-62. “A Arte constitui um fenômeno duplo: técnico e intelectual. (...) Sem arte, a técnica seria apenas uma atividade vã; sem técnica a arte não passaria de um inútil jogo de sombras fugitivas”.

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que por meio das várias técnicas informam mundos. Parte de princípios e arquiteta e cria novos

sistemas de conduta que possibilitam que a sociedade se perceba e pense a si mesma. Isso não quer

dizer que o público possa, imediata e facilmente, romper com o simples reconhecimento do que está

estabelecido e assumir a instauração de outros modos de agir e especular. 48 Nesse sentido são

tentadas as traduções ou transcrições.

Existiria, segundo o autor, por parte dos historiadores tradicionais uma atitude de considerar

apenas o que chama de coletivos duradouros, ou seja, contar a História (e poderíamos incluir a

História da Arte) segundo situações que envolveram ou interessam um grande número de

participantes49. É possível que isso possa ter justificado também as tentativas de tradução do

pensamento plástico – e outros não verbais – em linguagem mais próxima à utilizada pelas massas

como agente facilitador ou disseminador que possibilitasse um maior consumo e uma pretensa

inserção da arte no cotidiano.

Ainda que nunca atinja a unanimidade, a transcrição ou facilitação na acepção da obra não é

necessária, pois na medida em que os novos sistemas são formatados e há coerência entre intenções

e relações propostas, esse acesso se dá gradativamente, por meio inclusive dos vários trabalhos

correspondentes que aparecerem sucessivamente – feitos por ele mesmo ou por outros artistas afins

ao novo sistema de procedimento.

Nenhuma obra de arte virá confirmar àqueles com quem trava contato, figurações e certezas já

estabelecidas, mas sim propor experimentações que tragam novos significados e reconfigurem suas

perspectivas, pois a criação não se baseia necessariamente sobre uma rede de causalidade com os

aspectos e estímulos exteriores, mas sim no rompimento de hábitos e situações pré-estabelecidas, e

é o imaginário que institui outras atitudes e significados.

48 Ibid., p.13. “O latente, o virtual, não constitui o real e sempre a instauração é apreensível como um ato preciso”.49 Ibid., p.p. 11,12. “Entretanto nunca os criadores da Nova História renunciaram a considerar os indivíduos e nunca pretenderam que existisse, para uma determinada época, um comportamento-tipo sem diferenciação de todos os homens. Consiste sim no deslocamento da problemática para a consideração de tudo o que se refere ao modo de vida, material ou intelectual, do maior número possível de indivíduos, abrindo e não fechando e diluindo a História”.

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O pensamento artístico é realmente um diálogo construído na aproximação de artista,

espectador e obra, e sua possibilidade vem de que os elementos figurados e significados nas obras

de arte são comuns e conscientes a todos que nele estabeleceram, vivenciam ou ainda tomarão parte

nesse contato.

Qual seriam então as semelhanças possíveis entre um período formulado através de imagens e

palavras, como foi o medieval, e a supremacia conceitual na “leitura” da arte contemporânea? O

que ligaria o pensar conceitualmente e o pensamento verbal? No próximo seguimento faremos um

paralelo entre duas instâncias que num olhar de relance surgem distantes no espaço e no tempo, mas

que com maior acuidade podem revelar caminhar virtualmente lado a lado.

2.2 O VERBO – DO PRINCÍPIO AO FIM

Assim como os mitos já levam a cabo o esclarecimento, também o próprio esclarecimento enreda-se, a cada passo, na mitologia50.

Theodor Adorno

A partir da significação do termo conceito51 como a representação de um objeto através de

um pensamento (ou palavra) e ciente de seu desdobramento em conceito absoluto [instrumento da

lógica escolástica medieval que pretende ir além dos limites do sujeito], prossigo na hipótese de

uma possível ligação, ou mesmo uma espécie de continuidade, entre a produção e interpretação da

imageria medieval e a questão, levantada por Danto, de que numa arte pós-histórica cujo aparência

se confundiria com os objetos do cotidiano, a razão de ser da obra estaria além da presença ou

50 ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p.85.51 FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário Aurélio, p.358. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1975.Conceito: representação dum objeto pelo pensamento, por meio de suas características gerais. Ação de formular uma idéia por meio de palavras.Conceito absoluto: Lóg. Escolástica. Conceito de algo (qualidade ou relação) não submetido às condições limitativas do sujeito em que se realiza; conceito abstrato.

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mesmo da imagem do objeto de arte. Entretanto convém lembrar que, segundo Benjamin, “um olhar

lançado à esfera do semelhante deve consistir menos no registro das semelhanças encontradas que

na reprodução dos processos que engendram tais semelhanças52”.

A idéia de que se desenvolve uma relação entre a contemporaneidade e o período medieval

não é inédita. Margaret Wertheim53 observa sobre esse fenômeno identificado principalmente no

Ocidente Moderno onde grande parte da população (especialmente a norte-americana) parece não

estar satisfeita somente com uma visão materialista do mundo. A autora, que analisa as várias

concepções de espaço através da história, relaciona o dado com uma crescente “espiritualização” do

que passou a se chamar realidade virtual e diz que isso é parte integrante de um modelo cultural

muito maior.

A história está repleta de momentos em que as diversas culturas formularam a idéia de um

real em vários níveis, mas o que nos interessa aqui é o aspecto da transferência das expectativas

humanas de um nível a outro e o Cristianismo é o exemplo mais próximo.

A Idade Média é referência especial como um momento áureo onde uma estrutura bipolar de

pensamento abrangeu todos os aspectos da cultura de uma época, desde uma característica

conceitualização espaço/temporal até o que, posteriormente, chamou-se arte. Como já dito, a

produção artística do período não era nomeada como tal (e nem mesmo era considerada a figura do

artista como indivíduo) estando todo objeto “artístico” e toda imageria a serviço da religião, objetos

sagrados e miraculosos de procedência divino/imaterial.

No espaço dualista medieval os espaços do corpo e da alma se espelhavam mutuamente,

característica agora presente no mundo virtual, configurado á imagem e semelhança da realidade54.

52 BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura, vol.1. São Paulo: Brasiliense, 1996, p.108. 53 WERTHEIM, op.cit, p.29.

54 Ibid., p.41. “Para os cristãos medievais havia um entrelaçamento entre o cosmo físico e o cosmo espiritual – o espaço do corpo e o espaço da alma. Mas, uma vez que o reino espiritual significava para eles a realidade primária, era acima de tudo por uma bússola espiritual, não por uma física, que se orientavam”.

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Para todo aquele habituado a navegar pela Internet, isso se confirma imediatamente, tanto pelos

termos adotados a partir de nossa linguagem cotidiana até a repetição de comportamentos e atitudes

que são cada vez mais transferidas e adaptadas nesse novo “lugar não localizável” onde tudo se

torna possível.

Eis que novamente presenciamos uma convivência entre uma condição material e outra

imaterial, que tem muitos pontos de ligação e muitas semelhanças com aquele período anterior.

Katherine Hayles55 afirma que é impraticável, literalmente falando, qualquer experimento na

realidade virtual sem o uso dos sentidos corporais. Isso muito nos interessa, pois vai de encontro à

afirmação de que o conceito se basta – o que implica numa minimização ou eliminação do sensível.

A qualquer menção de que uma absoluta e maciça presença tecnológica impediria esse tipo de

devaneio, o historiador da ciência David Noble56 fala que desde o fim da Idade Média no Ocidente

cristão o aparato tecnológico comumente esteve imerso em religiosidade e, conseqüentemente, em

sua realidade bifásica. O início do século XXI apenas reafirma essa constante e nos coloca mais

uma vez em meio a uma condição bipolar.

Esta mais recente forma de dualismo se faz presente em múltiplas estâncias do pensamento e

atravessa várias disciplinas que formatam a atuação da sociedade e a maneira desta produzir suas

relações espaciais. Um dado que chama a atenção é a retomada científico/conceitual da antiga idéia

que opõe a corpos materiais transitórios, uma essência imaterial imortal, o que significaria reaplicar

a noção de “permanência” no imaginário coletivo, à medida que se fizer necessária essa aplicação.

Poderíamos assim tanto pensar numa sobrevivência imaterial após a morte do corpo físico quanto

numa realidade conceitual da arte para além da matéria ou da presença real do objeto. Esse

raciocínio conduz de modo semelhante duas instâncias que assumem a condição bifásica de

55 Ibid., p.168. “(...) os olhos que contemplam a tela do computador ou as projeções estereoscópicas dos capacetes da realidade virtual, as mãos que teclam os comandos no teclado e controlam os joysticks, os ouvidos que ouvem os arquivos de som do Real Áudio”.56 Ibid., p.p. 30-168.

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pensamento e atuação, com o fato de ambas privilegiarem a virtualidade em detrimento do sensível,

uma retomada da noção de eternidade ou duração que, na Idade Média, correspondia não a uma

salvação por todos os tempos, mas sim uma que transcendesse a noção de “tempo” (e

conseqüentemente a de espaço, já que são interdependentes: tempo implica movimento, o que

necessita espaço57).

O que vemos é a instauração de uma espécie de palco mental, imaterial e coletivo abolido de

cenário, de público e de atores, resultado que Wertheim chama teatro dualista da realidade. Esse

sistema, através de seu mecanismo de pensamento verbal, tende a suprimir todos os outros que

empregam diferentes formas de reflexão ou que promovem o embate direto e corporal com o real. E

isso mesmo “estando” aqui e agora, na Terra, sem que haja necessidade de espera pelo após a

morte. Menor corporeidade, maior transparência e máxima possibilidade de se estar em toda parte.

Mas, assim sendo, como consideraríamos o real?

A noção de “real” é proporcional à capacidade que cada indivíduo possui para nomear o

mundo em imagens, conceitos e palavras instauradas pelas diversas linguagens e armazenadas em

cada repertório pessoal.

Por meio da riqueza das várias linguagens as diferentes culturas sempre articularam seus

universos. O homem medieval, por exemplo, se utilizou tanto da imagem como da palavra para

exprimir, difundir e construir seu memorial. Assim a idéia de realidade estaria de acordo com a

articulação que as culturas efetivarem através desses sistemas lingüísticos e de pensamento

disponíveis.

Já foi dito58 que a imaginação científica não é simples e inofensiva, mas que possui ativo

papel na configuração das visões de mundo que definem os padrões pelos quais elegemos o que é e

o que não é possível. Podemos igualmente considerar diversas formas de pensar e agir como a

57 Ibid., p.55.58 Ibid., p.188.

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plástica, a filosófica, e outras mais. É admissível que frente a pensamentos produtivos diferentes

tenhamos uma considerável amplitude nas possibilidades eleitas, mas igualmente, soframos uma

extrema redução de repertório quando imersos num código que se propõe único.

Francastel59 se distancia de qualquer idéia de libertação do corpo ao afirmar ser evidente o

fato de o homem viver pelos olhos e pelos ouvidos e não simplesmente através da palavra. Esse

nosso mais utilizado veículo certamente não expressa qualquer tipo de realidade informe nascida de

no interior de cérebros vazios. Nem mesmo o pensamento verbal seria possível independentemente

de alguma imagem e nunca, individual ou coletivamente, se soube do surgimento de idéias puras,

isoladas de sua expressão. O que importa é que os referenciais plásticos são sistematicamente

significados na memória e no imaginário, não em um “real”; eles decorrem de uma invenção e

nunca de uma pura objetividade, de uma simples transposição ou reflexo de algo pré-existente e

destacado de qualquer invenção humana.

Se nomeando criamos, o resultado dessa criação é o espaço. Cada linguagem refere um

gênero de espaço que lhe corresponde e desse modo é dado sentido ao mundo60.

O problema colocado é que há um empobrecimento e um achatamento na produção de sentido

de um determinado grupo social, quando uma única linguagem/pensamento de pretensões

totalizantes, que se supõe veículo de ordenação, classificação e esclarecimento, prioriza uma

conceituação calcada somente na palavra e desconsidera e revoga aspectos físicos e imagéticos,

tanto do pensamento como da ação dentro dessa cultura.

Novamente, como na Idade Média, estaríamos imersos num sistema espacial único, e isso

significa um imaginário restrito á medida e semelhança desse espaço singular. Daí se compreende o

porquê da tentativa de tradução ou transcrição de outras linguagens em apenas uma, considerada a

59 FRANCASTEL, op. cit., p.61. 60 WERTHEIM, op.cit., p.40. “Não por coincidência, a Bíblia se inicia com a frase: ‘No princípio era o verbo’”.

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única possuidora do poder de esclarecimento acerca de toda a produção, material e imaterial

humana.

Somos realmente o resultado dos espaços que criamos e o próprio Einstein já apontou para

isso ao dizer que nossa linguagem, os conceitos que articulamos e as perguntas que fazemos são

determinadas – e determinam – o tipo de espaço que conseguimos ver61. Como todas as artes são

artes do espaço, desde que pensemos espacialmente desenvolvemos um pensamento plástico. As

tentativas de esvaziamento promovidas em nome de transcrições ou traduções impossíveis, que na

verdade somente empobrecem e unificam as diversas formas de acesso ao imaginário, sofrem de

desconhecimento de fato de a arte ser uma das importantes linguagens e sistemas de pensamento

formuladores de universo.

Sabendo que qualquer perspectiva de um espaço permanente ou absoluto é impraticável, posto

que os modos de se pensar a espacialidade são produções histórico/culturais, devemos visualizar

que nos cabem inúmeras configurações possíveis nos processos de invenção do imaginário. A

visualidade possível se faz a partir dessa constatação e afirma consigo toda uma corporeidade

sensível que atua como porta aberta à comunicação e troca que sempre desafia os limites que tentam

lhe impor.

A continuidade dessa investigação requer que o foco se feche ainda mais num ponto crucial

na relação entre a produção de arte contemporânea – ou pós-histórica –: a aparência das assim

chamadas obras de arte e o entorno.

Aparentar algum tipo de semelhança com o mundo sempre fez parte do imaginário artístico,

ainda que se pretendesse o rompimento com essa identificação. A partir de dado momento, o que se

vê é a manipulação direta e imediata do que há de mais banal nesse mundo e sua transfiguração em

instrumental especulativo da arte. Nesse sentido toda uma concepção de representação necessita ser

reavaliada.61 Ibid., p.223.

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2.3 APARÊNCIAS DE APARÊNCIAS

Um outro texto de Danto intitulado A transfiguração do lugar comum – uma filosofia da arte62

contém elementos importantes para o desenvolvimento e embasamento de minha hipótese e é

interessante notar que o autor também visualiza uma possível espécie de continuidade, agora entre a

antiga crença na representação, enquanto presença real de um deus, e o conceito de arte63 .

Discorrendo acerca de dois modos de entendimento para o significado de representação,

baseia-se, sobretudo no texto de Nietzsche64 sobre o nascimento da tragédia, onde o filósofo alemão

especula sobre os primeiros e originais rituais dionisíacos. Nessa perspectiva, através dos ritos em

que eram estimulados o êxtase sexual e a liberação das forças selvagens, brutais e voluptuosas

naturalmente existentes, mas culturalmente aprisionadas no homem, suspendiam-se as faculdades

racionais e as inibições morais, conduzindo à perda das identidades individuais.

Em meio à celebração coletiva, acreditava-se que o próprio deus se fazia presente, mais uma

vez e novamente presente: se re-presentava. Uma apresentação ou presentificação de fato.

Esses ritos sofreram modificações com o tempo e o que se verificaria no momento posterior

seria a gradativa substituição da presença real pela ação simbolizada, originando o que se conhece

como drama trágico, ou seja, a conversão dos celebrantes em coro e a substituição da

presentificação de Dioniso pelo chamado herói trágico em seu lugar, como um re-presentante. Esse

seria o segundo modo de entendimento do termo: algo que ocupa o lugar de outra coisa.62 DANTO, La transfiguración del lugar común. Uma Filosofia del arte. Buenos Aires: Paidós Estética, 2004.63 Ibid., p.46. “Estou convencido de que alguma crença vinculada ao primeiro sentido de representação, na forma de aparição, deve haver estado arraigado no conceito de arte, e talvez explique a freqüente associação deste com o mágico”.

64 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia, Madrid: Alianza, 1973, p.p. 47,48.

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Podemos tanto pensar que algo material poderia estar, como um ator, representando no lugar

de algo imaterial, como também e de modo inverso, que o símbolo imaterial, virtual, mental, possa

ser a representação de uma manifestação física ausente de fato. A diferença dependerá da

consideração do que é tido como originário/real.

O que sugiro é a hipótese de certa continuidade, ou seja, da sobrevivência de alguma coisa

próxima ao que (naquele período chamado por Belting de anterior à era da arte) foi considerado

como um traço material, resíduo mesmo, da passagem imaterial (etérea, espiritual) de uma entidade

(um santo ou mesmo um deus) representante (no sentido de presença de fato) de um outro mundo

tido como real, originário e verdadeiro, porque não transitório (tangível) como o nosso.

De acordo com a atualização dos termos, o mundo espiritual medieval, verdadeiro e

originário, encontraria algum tipo de paralelo em relação ao mundo artístico/conceitual

contemporâneo (pós-histórico), onde a realidade, se podemos assim dizer, se encontraria para além

do tangível (ou do sensível no caso) material utilizado na elaboração desses trabalhos. Esse material

apenas desencadearia o processo de percepção, mas a apreensão mesma só se daria mentalmente,

para Danto no caso filosoficamente. A concepção dualista continuaria presente e o sensível, o corpo

material como um todo, serviria de eco ao sistema: o trabalho pode ser visto, ainda que não seja

visual e sim mental. Ele pode ser tocado, ser manipulado, mas sua razão de ser não está de fato ali e

sim em outra área, de acesso filosófico/mental àqueles que são iniciados nessa nova fé.

Falando dessa forma de aparição semelhante ao “estar no mundo sem ser do mundo”, Danto

toma como referência o relato da transfiguração bíblica do corpo de Cristo em espírito (no caso,

luz), sendo que este, mesmo guardando semelhança visual em relação ao corpo material, já deixa

claro que não mais pertence a esse mundo:

“Pedro, João e Thiago vieram a Jesus transfigurado diante deles: ‘seu rosto brilhava como o sol, e sua veste era branca como a luz’. É possível que tenha sido a obra de arte o que brillava ∗, [sem

Na tradução em espanhol vê-se um jogo de palavras em relação ao título do trabalho de Warhol – Brillo Box – e o fato de brilhar, no caso, brillar.

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grifo no original] mas a incandescência não seria o tipo de diferença que uma definição de arte buscaria, a menos que como metáfora: tal luminosidade pode muito bem ser encontrada no mesmo evangelho de Mateus. Seja qual for a diferença, não poderia consistir naquilo que a obra de arte e o objeto real indiscernível teriam em comum65”.

A metáfora do brilho do “corpo imaterial”, após a transmutação, está em direta conexão com a

idéia de diferença relevante entre obra de arte e objeto comum.

Não seria dado à identidade aparente com as caixas reais de supermercado do sabão Brillo -

dado visível e da ordem do sensível, do corporal - que uma realidade maior daria sinal de estar

presente. Frente àquele objeto ambíguo que, tanto poderia pertencer ao mundo da arte como ser

algo absolutamente alheio a esse mundo, se instaura uma forma de ausência, a ausência de uma

clareza relativa à definição bipolar de que algo se encontra ou de um lado ou de outro. Uma terceira

via sequer é cogitada, pois seria insegura e escorregadia.

A visibilidade é fato comum aos dois objetos e, para Danto, algo que não seria possível

utilizar como base para uma definição consistente – o que é paradoxal, pois é a partir dessa

“indefinição visual” que confunde a qual mundo o objeto “responde” que o autor inicia suas

reflexões a respeito do que considera uma mudança operada na produção das obras de arte. É como

se não fosse viabilizada a possibilidade de uma interseção, do objeto híbrido, comum por pertencer

a ambos os mundos, por transitar dialeticamente entre os dois espaços e através disso requerer como

instrumental de acesso não somente o inteligível nem apenas o sensível, mas ambos

simultaneamente.

Imediatamente podemos retornar ao texto de Didi-Huberman onde se fala sobre o não ver

para crer, ou parafraseando seu texto afirmar que é como se justamente o fato de pertencer à ordem

do visível (sensível) reverter negativamente como uma espécie de falha. O sensível aqui não

confirmaria a realidade, mas sim o contrário. Ele sozinho não daria conta da compreensão total

acerca do real na obra e isso somente seria assegurado pela filosofia. Mas de qual realidade se fala?

65 DANTO, op.cit., p.16.

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Nesse sentido fica possível relacionar a idéia de uma realidade artístico/imaterial oposta à

outra que faria parte da transitoriedade e aparência do mundo. Somente selecionando estradas

seguras e não escorregadias66, cuidadosamente limpas de equívocos e indefinições onde tropeçar,

como indiretamente sugere Danto, seria possível “caminhar” ou por em andamento determinadas

idéias.

A sonhada consistência teórica viria exatamente do que é tido como intangível e imaterial; o

rosto de intensa luz, brilhando como o sol, confirmaria a quem pertence paradoxalmente por ser

absolutamente impossível de ser visto, como impossível é sustentar a visão frente ao sol. A

invisibilidade das feições do Cristo re-presentaria, naquele sentido de que algo diferente (e

imaterial) ocupa o lugar da própria coisa, assim como Nietzsche nos fala do ator grego, funcionado

como índice da presença não presente.

Em contrapartida a caixa de sabão brilhava de maneira a apagar a tênue linha divisória entre

aparência do mundo da arte e lugar comum, tornando urgente e necessário que fosse reescrita de um

modo indelével.

O indiscernível67, o ter em comum, seria “algo a ser evitado” por poder induzir ao erro

(preocupação de Platão em relação a obras de arte miméticas), levar à conclusão escorregadia,

como diz Danto ou servir de referencial aquilo impossível de ser visualizado e materializado,

porque ideal.

66 Ibid., p.15. “(...) Em relação às Brillo Box, é evidente que uma definição de arte não pode se basear num exame de tais obras de arte – escorregadia definição”. [A referência de Danto à caixa de sabão de Warhol como “elemento escorregadio” me forneceu subsídios para o desenvolvimento de uma série de novos trabalhos em vídeo, onde manejo uma espécie de “sabão” virtualmente potente capaz de apagar ou tornar imprecisos limites que especificam os diferentes espaços e áreas de atuação como, por exemplo, o espaço de produção e absorção da arte. Pode ser lido no capítulo em que descrevo alguns de meus trabalhos plástico/conceituais o texto sobre um vídeo chamado Solvente, onde simulo o desaparecimento visual gradativo do próprio espaço do Atelier do Instituto de Artes da UERJ. Desdobro essa questão em outro vídeo/performance onde literalmente lavo – e borro – com água e sabão algumas fotografias que mostram o espaço arquitetônico do referido atelier. Nesse sentido teríamos a inversão de algo que é usado para limpar (esclarecer), “sujando” e tornando indefinidos determinados contornos].67 Ibid., p.28. “A condição de indiscernível não serve para fundamentar uma boa teoria da arte; ou uma boa teoria filosófica do que seja”.

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O que se depreende do texto é um discurso que faz uso da argumentação bipolar na qual não

há a consideração da terceira via, ou seja, a hipótese de que se fala de um possível terceiro objeto,

híbrido justamente por ser comum a duas instâncias, por transitar comentando entre esses dois

espaços assim como os gregos admitiam a existência da figura mitológica dos semi-deuses,

cruzamento de dois mundos.

Ao dizer não ser necessário que sejamos capazes de notar diferenças para que essas

existam68, o autor transfere para a esfera filosófica a capacidade de discernimento pelo sensível,

desconsiderando as aparências. É uma linguagem conceitual que nomeia, através de palavras, cada

coisa em seu devido lugar. Podemos argumentar que as aparências continuam a ser notadas ainda

que não sejam mais vistas. O termo notar tanto pode significar perceber como catalogar: fazer

notações. O que se percebe então no casa da Brillo Box é que aquele objeto que teve sua condição,

seu lugar adequado previamente instituído “escorregou” para fora dos limites que lhe cabiam. Essa

indefinição aparente impossibilitaria ao sensível conceber ou categorizar aquele objeto/interseção,

categoricamente impuro em sua absurda capacidade de transitar entre duas instâncias separadas – a

real e a artístico – o que faria necessário que o pensar filosófico viesse restabelecer a clareza da

situação.

Cabe lembrar que, durante a Idade Média, a Europa esteve imersa num sistema que guardava

semelhanças em vários níveis com a proposta de pura virtualidade que atravessava diversas

disciplinas. Em primeiro lugar, era um sistema bifásico, baseado na crença em uma realidade única

sustentada por uma divindade soberana, onisciente e intangível. Outro ponto em comum é que

também tinha sua base numa constante “incerteza” a respeito dos fatos, primordial em todo sistema

bipolar para que haja “fé” no privilégio de um dos lados em detrimento de outro. Em comum a

supremacia do imaterial sobre a matéria, e vemos que tanto a fé como a razão filosófico/conceitual,

cada uma a seu modo, intercedem para que os sentidos não nos levem a cometer erros. 68 Ibid., p.39.

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Note-se que o próprio Danto se referiu, quanto à representação, a possíveis continuidades

entre um período e outro:

“Estou convencido de que alguma crença vinculada ao primeiro sentido de representação, na forma de aparição, deve haver estado arraigado no conceito de arte, e talvez explique a freqüente associação deste com o mágico69”.

Mais ainda, a referência se estende ao fato da subsistência de algo ligado tanto ao significado

inicial de representação, quanto ao fato dessa ligação se estabelecer através de algum tipo de crença,

podemos dizer de fé.

Recapitulando: no período que Belting chamou de anterior à era da arte, o termo grego

cheiro-poieton, ou seja, não manufaturado, se referia a algo como miraculoso, de origem divina e

imaterial, logo, para a cristandade, algo mais próximo ao mundo tido como real, original e

verdadeiro; essas imagens eram “autênticas” e vistas como miraculosas, traços físicos, como

impressões digitais, e, portanto tinham o status de relíquias. Ao mesmo tempo eram visíveis e

passíveis de serem tocadas e é através do contato com essas relíquias que o crente atinge uma graça.

Também devemos ressaltar que o fato arte não havia se estabelecido naquele momento e

sequer seria possível pensar que houvesse intervenção humana na produção de tais aparições (salvo

no caso das obras serem realizadas por santos).

Vestígios materiais da passagem de entes superior-imateriais ou desapegados do mundo, que

teriam como função novas conversões ou a promoção de milagres (paradoxal intervenção que

operaria segundo uma subversão ou deslocamento das leis que regem esse mesmo mundo∗) para

reforçar a fé na realidade maior do outro mundo, intangível, invisível e impossível de acesso através

de outros meios.

A hipótese é de que podemos pensar uma relação de continuidade entre a fé na imaterialidade

como porta de acesso ao outro mundo dito superior e a também crença de que uma ferramenta 69 Ibid., p.46. Exemplo: se Cristo flutua sobre as águas isso é feito através da suspensão da impossibilidade disso se dar. O milagre reforça a fé inicialmente pelo testemunho daqueles que o visualizaram. Como ele não é repetido ao infinito, posteriormente basta apenas a crença.

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filosófico/mental possibilitaria o também acesso à produção artística pós-histórica, onde o aspecto

visual e material dos trabalhos apenas serviria como índice daquela presença maior, ainda que

invisível e intangível da arte.

Este universo estaria para além das variações do mundo e seria perene e constante, ainda que

se reconfigurasse através da variação aparente desse mundo. Aquela solução encontrada pelos fiéis

diante da impermanência das coisas do mundo seria atualizada pelas testemunhas do fim dos tempos

da história da arte, agora frente à pluralidade chamada de arte pós-histórica ou contemporânea.

O próprio Belting fala da impossibilidade de uma história da arte total, a não ser de modo

dogmático/religioso:

“O que se mostrou é que um apego científico à ordem não está preparado justamente para a arte caótica do século XX e que o pretenso universalismo da história da arte é um equívoco ocidental (...) Por isso, não é absolutamente um sinal de extravagância querer fazer um balanço e eleger um posto de observação para examinar o fim de um modo de pensamento em prática não apenas na ciência especializada como também na arte70”.

O que a suposição levanta é que nem a desconsideração do conceito, nem a desvalorização do

chamado sensível isoladamente abarcariam a complexidade observada nos trabalhos de arte. Esses

fariam necessário se pensar numa outra via de acesso, num instrumental intermediário e dialético

que pudesse somar (e não subtrair) informações sobre a relação arte e mundo, sem ser presa do mito

da garantia de compreensão total e absoluta.

Significativa, portanto, é justamente essa separação, essa cisão demarcada entre o sensível e o

inteligível, aqui definida pelo texto de Danto, pelo visível desprestígio do primeiro em relação ao

segundo. Para ele, o olho, por não diferenciar de antemão a aparência do objeto de arte da aparência

do objeto comum e corriqueiro, transfere essa responsabilidade para a filosofia onde, como o texto

mesmo mostra em relação ao objeto conceitual, sequer seria necessária a presença de algo visível e

palpável. Entretanto, o que parece escapar a essa definição é que o fato de não haver essa imediata e

70 BELTING, op. cit., p.7.

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aparente diferenciação é que torna esse determinado tipo de trabalho artístico completamente outro

se comparado àqueles em que a descontinuidade com o mundo real já era um pré-requisito.

O olhar é imprescindível para que possa se dar essa constatação onde uma visualidade de

outra ordem se faz então possível. A reflexão filosófica sobre essa categoria de objeto não se daria

sem a visualização dessa “imprecisão aparente” entre trabalho artístico e objeto comum. Como

filosofar sobre uma indefinição manifesta entre uma obra de arte e um objeto cotidiano sem ver isso

diante dos olhos? O próprio Danto não deu início a suas divagações a partir da visão daquelas obras

de Warhol?

Faz parte de sua condição como objeto de arte pôr em discussão a questão do indiferenciavel,

daquilo que é contínuo ao mundo, e essa só pode ser posta quando, ao ser olhado, esse mesmo

objeto remete imediatamente a outro, pela capacidade de se desdobrar noutro, aparentemente igual,

mas já de outra ordem.

Pelo fato de ser fundado a partir de uma aparente similitude e não por uma diferença visual

imediata, esse outro modo de ordenação/qualificação de objetos agiria de modo que poderíamos

aproximar às estratégias levantadas por Lévi-Strauss no que tange aos sistemas binários de

classificação observados em diferentes culturas71. Essas sociedades, a partir da consideração de um

eixo imaginário, construiriam um sistema estrutural que oporia binariamente, a partir de pares de

contrastes, os diferentes aspectos e elementos das sociedades. A atitude classificatória não

encontraria limites e isso somente pararia quando não fosse mais possível opor, não por encontrar

algum obstáculo a seu percurso e nem mesmo por alguma disfunção nesse mecanismo, mas pelo

fato de ter alcançado seu propósito. A classificação desenfreada pode se voltar para qualquer área

na busca por uma generalização ou abstração categoricamente absoluta sem que qualquer

71 LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento Selvagem, Campinas: Papirus, 1997, p.p. 165,243/245. “O que pertence ao alto deve permanecer no alto, e o que pertence ao baixo deve permanecer no baixo”.

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diversidade impeça o processo de depuração completa dos variados planos como o real, o

simbólico, etc.

Por exemplo, numa diferenciação entre “limpo e sujo”, onde sujo seria somente aquilo fora

de lugar ou fora do eixo: A lama, por exemplo, não seria algo sujo, contanto que fora do tapete da

sala. Estamos tratando então de uma reafirmação, de uma confirmação de áreas e categorias

distintas: de um lado o mundo da arte e do outro o mundo cotidiano.

A caixa de Brillo de Warhol, idêntica visualmente (e também poderia ser materialmente) a

uma de sabão existente num supermercado, demarca sua diferença em relação às demais não por

possuir outra forma ou mesmo ser feita de outro material, mas sim por não cumprir aquele papel de

continuidade com o mundo: ser uma caixa que guarda sabão numa prateleira de supermercado e não

numa galeria de arte.

Ela [a caixa de sabão!] quase que “sujaria”, borraria, no sentido de dificultar – confundir –

uma leitura limpa e clara da pretendida linha divisória que situaria, em lados opostos, objeto comum

e objeto artístico, propondo que algo se estabeleça num lugar que não lhe é devido, ou seja,

alargando convenções e corrompendo uma estratificação cultural pré-estabelecida. O que resulta

não é a perda dos dois espaços, mas, através desse objeto-híbrido, uma afirmação da convivência

dialética dos opostos72.

No caso específico isso é percebido quando se vêem - se sabem - os dois mundos

simultaneamente num mesmo objeto. Como uma interseção.

A constatação de que algo aparenta extrema semelhança com o que não é, relacionada pela

percepção de que o sabidamente cotidiano (apenas mais uma caixa de sabão) ocupa um lugar que

não lhe é devido, numa ordem a qual não pertence (dos objetos artísticos, descontínuos com o

mundo), resolve-se como numa equação, deslocando a resposta para uma outra categorização: esta

72 DE DUVE, ibid. “O primeiro se sustenta na distância, o segundo na proximidade”.

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se encontra num espaço considerado como da arte (exposto, legitimado dentro de uma galeria de

arte e através do discurso artístico), logo não pode ser somente um objeto banal.

A separação entre objetos do mundo cotidiano e os do mundo da arte é mais uma vez

reafirmada através da utilização das convenções dispostas pela autoridade do artista e pelo espaço

institucional da arte. Admiti-se mesmo toda sorte de desvio ou “transgressão” de modo análogo ao

que se via no século XVIII, guardadas as devidas atenções, confundindo pintura e moldura por meio

de trompe l’oeil∗. Obviamente isso se dava no interior seguro das convenções, onde a pintura em

parte sugeria “escapar” do espaço que lhe cabia - o espaço da tela - tudo transcorrendo sem maiores

transtornos como se espera de um jogo ilusório percebido como tal. Isso é claramente possível

quando o trabalho de arte leva com ele a proteção do discurso artístico, que o resguarda, legitima e

diferencia do que se vê em meio às ruas. O que se reafirma é o espaço institucional da arte.

A quem interessaria uma apropriação, um deslocamento de um elemento do mundo num

trabalho de arte que passasse total e completamente despercebido, como se fosse somente mais um

objeto cotidiano ali presente sem suscitar nenhum tipo de reflexão ou questionamento, sem que se

desse a tal transfiguração de que fala Danto. Warhol dispôs suas Brillo Box na Stable Gallery e não

num supermercado (ainda que isso fosse possível bastando que, no espaço de um supermercado,

estivesse exposto o discurso do artista simultaneamente à visualização da mercadoria à venda).

A busca da aparente banalidade está longe de ser casual. Atrair a atenção através do que é

comumente visto como exótico (ex-óptico - aquilo que está em descontinuidade com nosso olhar

cotidiano) é muito fácil ou demasiado recorrente e é justamente aquilo que um trabalho como o de

Warhol busca evitar. Se o que se vê resulta de uma descontinuidade com o mundo do dia a dia,

confirma aquela demarcação histórica de uma produção formal específica (pintura, gravura,

escultura) oriunda do “diferente mundo da arte”, com suas linguagens e objetos específicos

Faz parte mesmo do trompe l’oeil o aparentar sem ser de fato, como todo truque de prestidigitação ou mágica. Se for confundido definitivamente com algo real, passa despercebido.

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antecipadamente lidos como artísticos. Ao contrário, quando falamos sobre objetos comuns, o termo

tanto pode significar tanto “banais e cotidianos” como também elementos que participam de duas

categorias simultaneamente: comuns a ambos os espaços.

Nesse momento, sim, se dá uma re-conceitualização dos pressupostos para a definição de

diferença que demarca esse tipo de trabalho: nem o que aparenta ser diferente necessariamente o é,

nem o que vemos como semelhante deve obrigatoriamente responder como tal∗ .

A impossibilidade, no caso, da simples identidade visual ou aparência significar também

“identidade total”, ou seja, definir do que se trata determinado objeto, revela ser preciso lançar mão

de algo como um “olhar/filosófico”, pré-requisito na produção do sentido nesse específico

objeto/trabalho de arte.

O que há para ser visto vai além do visível, que como parte integrante não é cancelada; a

reflexão viria a partir dessa visualização possível, dialética; olhar que conjuga olho e mente numa

espécie de ferramenta híbrida perfeitamente de acordo à leitura de trabalhos construídos,

igualmente, através de elementos híbridos.

Estamos diante do que o próprio Danto definiu como possíveis outros modos de diferenciar

ou desqualificar um objeto, como sendo ou não artístico, não somente a partir da descontinuidade

com o mundo:

Não é necessário que sejamos capazes de notar a diferença para que haja diferença, já que o prazer de comer é mais complexo, ao menos nos seres humanos, que o simples prazer do gosto, como Nelson Goodman assinalou num caso análogo: o conhecimento de que algo é diferente pode, ao fim e a cabo, fazer diferente o modo em que algo se sabe. Ou no caso contrário, a diferença entre duas coisas pode não afetar tanto as crenças mais fundamentais como para interferir no prazer de alguém73.

Em segundo lugar, devemos investigar a modificação de contexto operada em relação a esse

tipo de obras, tanto em referência a sua produção quanto à sua absorção, ao meio (ou às

convenções) que as definem como tal.

Fique claro que isso se refere especificamente a um tipo de trabalho que tem essa discussão acerca da indiscernibilidade como parte efetiva de sua razão de ser.73 DANTO, ibid., p.39.

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Se a arte que é definida como histórica, ou seja, aquela produzida desde a Renascença até

cerca do momento anterior ao que Danto tem contato com as Brillo Box de Warhol (1967), tirava

partido de sua visível separação das coisas do mundo, uma mudança muito relevante se operou

posteriormente.

Aquela produção fazia uso de materiais, linguagens e relações consideradas específicas do

mundo da arte. Poderia se discutir se o que cada artista fazia era boa ou má arte, mas se era pintura,

por exemplo, imediatamente a discussão estava inserida no contexto artístico. Pintura, escultura,

teatro, em si mesmos, já qualificavam determinada produção como integrante de um universo

particular, no caso, o da arte.

A separação entre o objeto de arte e o mundo real era como diz Danto, uma convenção

firmemente estabelecida74 e tanto o artista como o público de arte, transitavam por espaços

específicos em que se verificava e confirmava o uso e aplicação das linguagens e materiais

pertinentes ao meio. Com o tempo, essas convenções haviam estabelecido determinadas regras de

separação que efetivavam a distância entre o objeto artístico e os objetos comuns e cotidianos.

A moldura para a pintura, o pedestal para a escultura, o palco para o teatro agiam como

elementos de transição que funcionavam como forma de inserção gradativa das obras no espaço do

mundo, sem que com isso se perdesse a noção de onde começa uma e termina o outro. Eram

espaços pré-determinados e isso permitia até mesmo que alguns artistas experimentassem jogos

ilusórios ou que propusessem rupturas, atenuando justamente essas linhas divisórias que faziam

parte da relação entre público e obra.

Nesse sentido por configurar uma área de transição entre diferentes instâncias, é um

mecanismo de ação e reflexão recuperado e atualizado por muitos artistas que pensam sobre as

margens, mesmo que não se faça ver.

74 Ibid., p.61. “Somente temos as ‘convenções’ nesse espaço adotado que tem permitido que essa comédia dialética seja representada. A diferença entre arte e realidade depende somente destas convenções, e tudo aquilo que estas convenções autorizam como obra de arte, serra uma obra de arte”.

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Ainda que existam experiências antecedentes muito ativas como Magritte75 na busca de novas

demarcações para o território de ação, a arte vai de encontro às molduras estabelecidas, ou seja, aos

limites considerados do sistema, como veremos a seguir.

René Magritte - Ceci n’est pas une pipe -1928-29

2.4 ASPAS E PARÊNTESES: MOLDURAS CONCEITUAIS

Os parênteses são inibidores de crença muito poderosos 76.

75 MAGRITTE, René in FOUCAULT, Michel, Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. “O famoso cachimbo... Como fui censurado por isso! E entretanto... Vocês podem encher de fumo, o meu cachimbo? Não, não é mesmo? Ele é apenas uma representação. Portanto, se eu tivesse escrito sob meu quadro: ‘isto é um cachimbo’, eu teria mentido.” 76 DANTO, op. cit., p.52.

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Diferentemente do que se observaria no asséptico e branco interior do espaço de uma galeria,

em uma exposição de pinturas nos séculos XVIII e XIX os quadros se viam dispostos lado a lado,

cobrindo inteiramente as paredes de cima abaixo e isso, que para nossa concepção atual de que os

trabalhos necessitam de um espaço neutro em que possam respirar, soa absolutamente estranho.

O que havia então era uma certificação da “estabilidade da moldura77” quando, através da

borda, uma limitação estabelece de forma segura todo tipo de experiência que se desenvolve em seu

interior e isso permanecerá na arte de cavalete até o século XIX. A estratégia da perspectiva78

configurada numa moldura beux-arts possibilitaria um contínuo agrupamento de obras pela

inexistência de continuidade do espaço interno dos quadros para qualquer um dos lados79 e ao

selecionar apenas um trecho de uma paisagem, o artista imediatamente excluía tudo aquilo que a

circundava, incluindo o espaço fora da pintura num resultado que tornaria as molduras (e similares

como os pedestais) num tipo de recurso que colocaria a obra com que entre parêntesis ou em

perceptível descontinuidade com o mundo.

O espectador poderia manter como precaução, o que era chamado de “distância psíquica”,

para que não incorresse no risco de confundir realidade e ficção e isso era de sobremodo utilizado

em relação ao teatro, onde, como já disse, o palco se encarregaria, no caso de uma atuação

demasiado realista, de impedir que a platéia interferisse, confundindo o que se passava com a

realidade. Já para George Dicke80, a distância psíquica seria um mito, e ele afirmava que a

separação de fato se dava por termos interiorizado as convenções que definiriam que, por algo se

dar num espaço cênico, isso já seria suficiente para que o público “soubesse ver uma obra”: Saber

77 O’ DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço de arte. Notas sobre o espaço da galeria, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 9. 78 Ibid., p.p. 8,9. “A perspectiva coloca tudo dentro do quadro ao longo de um cone espacial, em relação ao qual a moldura funciona como uma grade, repercutindo esses cortes internos de primeiro plano, plano médio e distância. (...) ‘Entra-se’ decididamente num quadro desses (...)”. 79 Ibid. “Essa indicação é feita apenas esporadicamente nos séculos XVIII e XIX, quando o ambiente e a cor se desvanecem com a perspectiva. (...)” Parecendo com a paisagem que “as pinturas começam a fazer pressão sobre a moldura”.80 DANTO, ibid., p.51.

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que está ocorrendo em um teatro basta para que nos demos conta de que “não está acontecendo de

verdade”.

Seja como for, uma distância era algo considerado imprescindível na relação entre espectador

e obra de arte, já que a eficácia ilusória da obra estava diretamente ligada ao grau de atração que ela

exercia no olho espectador. Esse olho é praticamente “sugado” do corpo de que faz parte e se

projeta para a realidade do interior da obra onde passa a vivenciar e interagir com esse outro

ambiente 81.

O funcionamento desses limites convencionais entre um espaço e outro pode também ser

comparado à função das aspas num texto. Discernindo o conteúdo das palavras entre as aspas do

discurso restante propriamente dito, o resultado é que além de manter a integridade do texto se

obtém, conseqüentemente, uma aparente imunidade do autor através do seu não comprometimento

direto com algo apenas citado. Esse tipo de ação, portanto e convencionalmente, libera aquele que

escreve da responsabilidade acerca de tudo o que é dito.

De modo geral no universo da arte as chamadas “instâncias de legitimação”, ou seja, os

pedestais para as esculturas e os objetos, as molduras para todo tipo de imagem, as etiquetas e o

próprio espaço físico dos museus. De Duve diria que certas artes para existir requerem a proteção

do museu82 e de fato essas instituições metodicamente cumpriram – e ainda cumprem – seu papel de

sinalização da fronteira que serve de entrada a algum mundo diferenciado.

No caso das artes que se misturam ao cotidiano, aspas, sobretudo conceituais e institucionais,

possibilitam que as obras sejam notadas ainda que, aparentemente, se confundam com objetos,

ambientes ou gestos cotidianos.

81 Ibid., Ibid., p.9.82 DE DUVE, op. cit.

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A conclusão é que todas estas instâncias atuam informando àquele público já familiarizado a

esse tipo de convenções, que frente àquelas obras não devem manter reações – e relações – como as

que têm diante de algo trivial e comum.

É claro, portanto, que a necessidade desse tipo de artifício, em se tratando de mímeses∗, estaria

em relação direta ao grau de semelhança e persuasão alcançado na feitura da obra. Frente a uma

pintura, por maior que seja obtido um efeito ilusório, a própria bidimensionalidade do meio

empregado distancia realidade e ficção – sem esquecer que isso pode ser reforçado pela presença da

moldura e pelo próprio local em que a obra se encontra (como numa galeria ou museu).

A pintura mural, num certo sentido, perde algo em sua tentativa de estimular um completo

efeito ilusório, pois, com a aproximação – e por causa de sua própria característica arquitetônica, já

que “paredes” são sinônimos de limites que não se atravessam – quem olha de perto percebe os

recursos utilizados na fatura da obra, o que resulta numa espécie de “aproximação para fora”.

Ao contrário, na pintura de cavalete, o olhar se comporta como diante de uma janela aberta

(janela portátil), onde pode esmiuçar detalhes que o prendem literalmente e o fazem esquecer de

olhar para os lados e para trás. Ao se “afastar para dentro” dos limites dessa moldura/janela, a

pintura requer sempre maior aproximação e o olhar/espectador voluntariamente aceita o jogo.

Mas o que aconteceria com a suspensão de todas essas formas de sinalização?

Ao pensarmos sobre uma possível semelhança entre um objeto de arte e um objeto que tem

continuidade com o mundo, certamente corremos os risco da perda de discernimento entre os dois

universos. Efetivamente para que se estabeleça um sistema de crenças estável e conservador que

possa definir um mundo, é necessário o desvio que Danto chama de determinados predicados para

áreas categorizadas separadamente: É possível cogitar acerca de uma modificação no modo de produção da mímeses: anteriormente os artistas faziam uso de todo tipo de artifício para obter semelhança aparente com aquilo que intentavam; com o abandono dessas técnicas a adoção de outra solução mais imediata foi justamente utilizar o mundo para simular o próprio mundo. Nesse sentido é plausível a relação ao termo mimetismo, capacidade que certos animais possuem de, como defesa, tomar a aparência e se confundirem com próprio meio hostil em que vivem. A arte poderia ter encontrado uma forma semelhante de subsistir no hostil mundo contemporâneo.

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“Tanto ‘é um sonho’, como ‘é um reflexo’ ou ‘é um eco’, servem para neutralizar as contradições com o sistema de crenças estável e conservador que define um mundo, desviando-as até um espaço de entidades ontologicamente tão distintas que, se fossem admitidas no mundo, complicaria imensamente o sistema83”.

Se determinadas separações não existissem, tomaríamos a realidade por fantasia e vice-versa,

sem nenhuma forma que garantisse a continuidade e efetivação dos atos e das expectativas.

Podemos fazer coisas nos sonhos que temos enquanto dormimos e jamais alcançaríamos logro se

tentássemos repeti-las no estado de vigília. São realidades diferentes e o discernimento existente

entre elas permite justamente a consideração de ambas. Quando sonhando o meu caminhar não

obedece à lei da gravidade, mas sei, quando desperto, que se tratava apenas de um sonho.

Até aqui falamos de um modo de separação entre arte e realidade, especificado através de

limites e convenções, que permitia que esses dois universos coexistissem e ainda que fosse possível

ao artista (e seu público) realizar jogos de ilusão e ruptura, justamente manipulando esse “fio de

navalha”.

É interessante como exemplo, observar um trabalho do artista Ricardo Becker chamado de

Entre Algum Lugar Nenhum.

O objeto como que tridimensionalisa a figura de chaves de texto [{}], em vidro curvo

transparente, como uma cabine onde o próprio espectador

se põe entre aspas.

83 DANTO, op. cit., p.42.

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Ricardo Becker Entre Algum Lugar Nenhum, 2000cristal - 0,8mm-90x200cm de alturafoto: Luciano Bogado

O resultado é uma espécie de “revanche” na qual a plasticidade visual e material - ainda que

transparente – se apossa ironicamente do elemento gráfico usado nos textos escritos, ou seja, da

linguagem verbal, para exatamente evidenciar um determinado aspecto do pensamento.

Nesse sentido, podemos pensar que esse objeto propõe um modo de apropriação que

provavelmente agradaria a Francastel, deslocando o elemento textual verbal como uma imagem, e

ainda comentando seu próprio estatuto visual, fazendo-se transparente ao olhar.

Claro, mesmo através da manipulação dessas “demarcações”, como bem demonstrou Kosuth,

mantinha-se a consideração de que cada espaço possuía, digamos assim, leis distintas, que

assegurava a qualquer um que soubesse dos códigos, uma visão não equivocada da presença de uma

obra.

O que acontece por volta dos anos 60 do século XX, é muito diferente justamente porque se

apagam a reconhecida diferença e a tal distância segura.

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Joseph Kosuth - One and Three Chairs, 1965 -instalação

E o que se vê?

Um objeto que em nada difere de outro, entretanto um é reconhecido como arte e o outro não.

Visualmente e materialmente são iguais e isso passa a definir uma nova maneira de se olhar a

diferença.

Para avançar numa discussão do “como lidar com coisas que mimetizam e duplicam, em

termos de aparência, outras coisas”, se faz necessário o desenvolvimento de um ponto chave que é

exatamente a questão da representação. Esse assunto foi investigado por Sartre numa espécie de

“recuperação” do mito de Narciso e igualmente elucidativa é a abordagem de Nietzsche das duas

possíveis significações para o termo representação. Ambos os textos são relacionados por Danto em

seu livro A transfiguração do lugar comum – uma filosofia da arte.

Ao se aproximar do conceito de representação, Nietzsche remete a um momento especial na

história grega, quando se realizam os chamados ritos dionisíacos onde, segundo o filósofo, se

situaria o nascimento da tragédia.

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Esses eventos/rituais orgiásticos promoviam uma espécie de suspensão da percepção e da

identidade individual nos participantes, fazendo com que por meio de um transbordamento sexual

desenfreado, tivessem suas inibições morais e limitações racionais ultrapassadas no alcance de algo

como um transe coletivo. Nesse momento climático, onde todos eram convertidos em um, se fazia

presente de fato o deus Dioniso. Presença real, literal para todos os envolvidos:

“Em quase todos os lugares a parte central dessas festividades consistia num desenfreio sexual transbordante... aqui eram liberadas as animalidades mais selvagens da natureza, até chegar àquela atroz mistura de voluptuosidade e crueldade que me parece sempre o autêntico filtro de bruxaria 84”.

Essa literalidade daria o significado de representação inicial: a cada vez, que os ritos fossem

atualizados, o deus Dioniso se re-apresentaria, se mostraria presente na festividade junto a todos os

celebrantes. Entretanto, e não se sabe exatamente como ou quando, se introduz no ritual o que se

chama “drama trágico”, ou seja, ação agora simbolizada, onde os celebrantes, convertidos em coro,

não se envolvem tão completamente, passando a imitar os gestos em forma de dança. Então, no

alcance do clímax ritual, já não temos mais Dioniso em si presente à festividade, mas alguém que o

representa, que está em seu lugar. Esse seria o segundo significado do termo representação, o que

para Nietzsche significou a idéia de um herói trágico como uma forma de sublimação da antiga

epifania85 revelando o drama trágico como uma “ação simbolizada86”.

Quando percebemos a diferença entre essas duas significações do termo representação,

conceitualmente podemos nos aproximar das definições de aparição e aparência, quando aparição87

designaria a presença da coisa mesma e aparência uma outra presença no lugar da coisa mesma.

Danto diz estar convencido de que algo da crença ligada ao sentido inicial de representação

como aparição deve ter estado ligado ao conceito artístico colaborando para uma freqüente 84 NIETZSCHE, op. cit., p.p.47,48.85 DANTO, op. cit., 45,46.86 Ibid., p.47. Supõe-se que a diferença entre a aparição mística – diante certa “alma coletiva” – de um autêntico deus, e a representação simbólica – diante o que já é um público – de alguém que meramente imita ao dito deus é imensa.

87 Ibid., p.46. “(...) em inglês uma única palavra: appearence, tanto para ‘aparição’ como presença real como para ‘aparência’ como mera imagem”.

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associação entre arte e magia88. A figura do artista poderia, sempre e mais uma vez, “fazer retornar”

uma realidade através de um meio que lhe era alheio, permitindo que víssemos presenças de

homens e deuses em pedra ou acontecimentos passados feitos milagrosamente presentes de novo,

ou seja, representados no segundo sentido do termo89.

O fato de se identificar forma e aparição era uma questão para Platão, que acreditava que a

segunda guardava algum conteúdo real da primeira e isso bastaria para que tivesse todo tipo de

reserva em relação à utilização de elementos ambíguos que pudessem levar a uma indefinição entre

realidade e aparência. Considerando que é possível estabelecer uma diferença de fato entre uma

ação real e um simples gesto corporal90, é plausível admitir um paralelismo possível entre obras de

arte e coisas do mundo cotidiano.

Poderíamos demarcar então um modo de definição do fato artístico como próximo a um tipo

de transferência ou deslocamento. Estando diante da representação de uma imagem religiosa (no

sentido de que essa representa pela ausência do deus mesmo) perceberíamos a mudança de uma

congregação em audiência assim como de uma igreja em algo próximo a uma galeria de arte:

“(...) quando algo deixa de ser uma re-presentação da crucificação e se torna o que podemos chamar uma crucificação representada (uma mera pintura), a congregação à qual se dirigia se terá convertido em audiência, mais que em uma comunidade de co-participantes de uma história mística; e os muros da igreja se terão transformado quase nas paredes de uma galeria, a proximidade arquitetural ancestral na estrutura de um teatro, de onde o arquitetônico – se Nietzsche tinha razão – transmuta os limites do recinto sagrado91”.

Deve-se notar que o “acreditar em coisas falsas” não necessariamente qualifica como falsa

uma crença, pois crenças são crenças de todo modo, independentemente da questão ilusória.

88 Ibid., p.p. 46,47.89 Ibid. “(...) a crucificação em efígie é contemplada pelos verdadeiros crentes como o acontecimento mesmo, feito milagrosamente presente de novo; como dotado de uma identidade histórica completa, o mesmo acontecimento podia ter lugar em diferentes lugares e momentos, mais ou menos como se acreditava que o deus Krishna era capaz de fazer amor ao mesmo tempo com uma infinidade de camponesas, segundo conta uma lenda”.

90 Ibid., p.28. Da razão como causa mental: “(...) um movimento corporal é uma ação quando sua causa é algo interior, ou o que é o mesmo, um evento mental como uma volição ou uma razão – e um mero movimento corporal quando carece de causa mental”.

91 Ibid., p.47.

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O que podemos pensar é que não se desqualifica imediatamente um objeto que mimetiza algo

do mundo como sendo “irreal” somente pelo fato de se estar diante de uma imitação. As imitações

compreendem uma dualidade por tanto remeterem a coisas falsas como representarem coisas reais.

E ademais, o próprio conceito de obra de arte estabeleceria mesmo a eliminação do que se chama

real (ou a função imediata) nos objetos a que submete tornando-os (assim como fazem os jogos e a

magia) exteriores ao mundo (o que se diz da inutilidade do objeto artístico).

Mais uma vez voltamos aos dois significados do termo representação e a partir dessa

concepção dualista podemos abordar as diferenças entre identidade e designação.

A questão da identidade estaria diretamente relacionada à idéia de representação vista como

presença real (daquele que se re-apresenta), cabendo aos participantes da crença nessa

presentificação/aparição confirmar que ali, naquele momento, de fato estão diante do ser real. A

aparição seria identificada com a coisa mesma, numa relação direta sem que nada, ninguém se

interpusesse entre o objeto de crença e sua “congregação”. Para tanto o individual cede lugar ao

coletivo numa espécie de sintonia única que não deixa margem a nenhum tipo de dúvida acerca do

acontecimento.

Quando falamos de representação no sentido de que algo ou alguém se encontra no lugar

daquele (ou daquilo) que está ausente de fato, esse “substituto” é parte integrante de um outro tipo

de relação. A presença é de um, mas designa outro, ou seja, representa no sentido de que ocupa o

lugar de, como fazem, ou deveriam fazer, os representantes. Como em república temos uma coisa

pública, na representação uma coisa presentifica o lugar de outra. Com todas as modificações

decorrentes disso. Assim podemos, ainda que em parte, pensar uma relação entre o original e suas

representações e a distância que se percebe entre linguagem e realidade, e entender que é a partir

dessa separação com o rito que arte passa a construir sua individuação frente ao mundo.

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Até aqui falamos exatamente sobre os possíveis trabalhos de arte que fazem relação direta

com o fato de serem discerníveis do mundo, material e conceitualmente, mas agora vamos por outra

via, não mais tão clara na separação do que seria um objeto artístico e o outro puramente cotidiano.

A experiência de Danto com a visão das brilhantes “caixas” de Warhol, para ele

indiscerníveis ao olhar, impediam uma definição à que universo pertenciam de fato, o que

contribuiu para que este definisse uma “desqualificação do sensível” no que se refere a qualquer

tentativa de estabelecer claramente o acesso à obra. Esse só seria possível através da filosofia.

Desde então, a arte tem presenciado uma série crescente de trabalhos que fazem de linguagens

não tradicionalmente tidas como “artísticas” em um resultado que se mostra, tanto aparente quanto

materialmente, também indiscernível se posta essa produção em comparação direta com os objetos

e situações do cotidiano. Algumas experimentações pretendem ir ainda mais além, em apropriações

diretas de elementos mundanos (materiais ou não) alçados à categoria de objetos de arte e ainda,

muitas vezes, exibidos completamente fora dos locais que abalizam uma determinada produção

como sendo artisticamente reconhecida∗.

Poderíamos ilimitadamente mimetizar o mundo através do próprio mundo e não mais simular

artificialmente essa possível duplicação? E então onde restaria a diferença? Filosoficamente,

somente através da intenção e pelo conceito?

2.5 O MITO DE NARCISO

Por exemplo, a dança, a performance e mesmo o teatro e o cinema quando assumem o gestual e a postura de hábitos cotidianos e que podem ser vistos em meio às ruas, numa proposital mistura com aquilo que tomam como referência. O teatro do oprimido de Augusto Boal nos anos 70 realizava espécie de encenações performáticas no meio das ruas em que o público tomava parte sem perceber que se tratava de uma encenação, o que era revelado com a súbita suspensão da interpretação demonstrando por fim que o que se via era teatro, ou que se vivia “teatralmente” o dia-a-dia.

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Quando se ouve o nome de Narciso, imediatamente nossa memória lembra daquele que morre

de amar a si mesmo ou à sua própria imagem. Mais que simplesmente isso, a figura mitológica

considerada por Alberti e pelos antigos como aquele que dá início a prática da representação

artística, traz em si muitos elementos que permitiriam o aprofundamento das diferenças relativas à

idéia de representação mimética e de como se dá a relação olhar e ser olhado.

Ironicamente profetizara Tirésias, que Narciso teria uma longa vida se não chegasse nunca a

conhecer-se a si mesmo92. Morrera de autoconhecimento, o que Danto chama de “suicídio

epistemológico”, como algo a se ter em conta por aqueles que estão convencidos de que o

imperativo categórico socrático “conhece-te a ti mesmo” pode ser cumprido com total

impunidade93. Obviamente Sócrates depreciava tal consideração como nada mais que exemplo e

lição prática sim de “fascinação pelas aparências”, e pelo mimético de modo geral, o qual tratava de

rechaçar. Claro fica que Narciso se apaixonara pelo aspecto visível de sua aparência visual,

diferentemente de Eco, que se detivera sobre o aspecto sonoro de sua aparência, ou seja, o reflexo

de sua própria voz.

Mas antes de continuar, temos que pensar que, se é fato o amor de Narciso por si mesmo, ele,

a principio não percebia que era sua a imagem no espelho d’água, julgando ver um outro,

demasiado atraente, devolvido do “fundo da superfície”. Danto acrescenta o quanto seria

interessante tentar imaginar o momento exato em que Narciso se dá conta de que é ele mesmo que

devolve olhar e de como seria possível inventar-se todo um novo mundo alternativo e impenetrável

além da superfície dos espelhos.

Percebe-se a ligação entre o mito e sua atualização pelo Renascimento, ponto inicial da já dita

História da Arte, onde a representação, no sentido de aparência (ainda que não de modo simplista)

era paradigma na produção artística.

92 OVIDIO, Metamorfosis, III, 339-510.93 DANTO, op. cit., p.32.

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Se nos voltamos para as teorias desenvolvidas por Sartre acerca desse assunto, vemos que ele

diferencia conhecimento direto e imediato que alguém possui (ou que a filosofia afirma possuir) dos

próprios estados de consciência, diante do conhecimento que se tem dos objetos, dos quais pode

alguém ser muito bem, consciente, sem que se dêem aqueles estados de consciência: se é consciente

deles como objetos, enquanto coisas do próprio mundo, sem ser consciente de si mesmo como

objeto ou, o que é o mesmo, como uma coisa no mundo. A consciência consciente de si mesma – e

para Sartre não há de outra espécie – é designada ‘para si’ (pour-soi), uma consciência imediata de

si mesmo como sujeito, e imediatamente consciente de ser um dos objetos de que é consciente.

Assim sendo, nada na estrutura interna do pour-soi lhe permitiria chegar a conceber-se como

um objeto, porque pertence a uma ordem ontológica radicalmente diferente dos meros objetos. Algo

próximo ao espírito de Berkeley, e os objetos ao que este chama coisas. Uma inesperada surpresa

metafísica ocorre quando o pour-soi se dá conta de que tem ainda outro modo de ser bem diferente,

e agora ele é um objeto para outros, tem uma existência ‘para outros’ (pour-autrui), e participa

assim do degradado modo de ser das coisas que sempre havia diferenciado de si mesmo; reconhece

que tem, por assim dizer, um exterior e um interior (...) 94.

Sartre ilustra com a figura de um voyeur, a princípio pura visão se deleitando com olhadas

proibidas pelo “olho” da fechadura∗, até que subitamente ouve passos que se aproximam e se dá

conta de que ele mesmo está sendo observado, de que repentinamente tem uma identidade externa,

a de voyeur, aos olhos do outro.

Estrutura filosófica do descobrimento: dou-me conta de que sou objeto quando me dou conta

de que o outro é sujeito; que esses olhos já não são algo bonito e colorido, mas que me observam;

94 Ibid., 32,33. A imagem é interessante, pois assim como o olho, a fechadura abre – ou fecha – o acesso. Nesse sentido ambos se encontram nessa fronteira, nesse Espaço Intermediário de conecção entre os mundos. O olhar pela fechadura – olho no olho – despertaria o desejo pela adivinhação e pela descoberta do porvir.

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descubro que tenho um exterior através de uma lógica inseparável de meu descobrimento de que os

outros têm um interior.

Reconhecimento completo, talvez como o de Narciso quando, no espelho do manancial de

Tespia, vê o que os outros viram, seu próprio rosto e formas, momento no qual o que vê coincide

com aquilo de que se enamora.

Posto que a visão, na qual se percebe confundido como objeto, é sua própria visão, devolvida

pela mediação de uma superfície reflexiva, se converte em escravo de si mesmo e, sem dúvida,

morre do que Sartre chama uma ‘paixão fútil’, ao converter-se num ser autoconsciente cujo exterior

e interior são uma mesma coisa95.

Mas a partir de que atuaria essa superfície reflexiva? Ainda que possam “imitar” todas as

coisas do mundo, os “espelhos” não se parecem com nada, em si mesmos – como forma – não

imitam coisa alguma; opõem-se ao senso comum de que seriam mimese exata, imitação em si.

Poderiam sim ser pensados como metáfora de um pensamento plástico, inventor de imagens.

À arte – linguagem reflexiva – seria possível a capacidade de especular sobre possíveis

mundos, “imitando” as coisas, mas assim como todos os espelhos, não seria em si mesma nenhuma

dessas coisas.

Linguagem pensamento; Forma produtora de formas irredutível a qualquer destas.

A arte “imita o mundo” para que este possa ser visto – o que ocorre graças à “assimetria das

imagens especulares96”, ou seja, uma imagem é muito mais potente que qualquer realidade. Talvez

só tenhamos as imagens e, a partir destas, um real imaginário – não o contrário. Visuais ou mentais

elas tornam um espaço humano possível.

O próximo capítulo abre uma seqüência de trabalhos meus, desenvolvidos entre 1990 e o ano

de 2007.

95 Ibid., p.34.96 Ibid., p.32. O termo se refere ao fato das imagens refletidas pelos espelhos serem “assimétricas” ao mundo porque neles vemos coisas que não perceberíamos sem sua ajuda, como a nossa própria imagem.

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Como já disse anteriormente, foi a partir deles que busquei outros pensamentos com os quais

pudesse dialogar.

O que faço agora é um convite à participação nessa reflexão demonstrando o quanto eles

impõem sua presença como argumento a uma visibilidade possível.

3 O ESPAÇO INTERMEDIÁRIO

“Voilá” é o argumento da autoridade que coloca o interlocutor de frente ao fato consumado e faz com que ele abaixe seu olhar.

“Voici” faz levantar o olhar. É um convite a olhar e ver mais de perto. Veja este aqui, veja este, aqui, se aproxime, toque com o olhar e se deixe tocar.

Não tenha medo de avançar perto demais. Depois, diga-me o que tu terias visto, ou diga-o aos outros. Melhor, mostre o que viu ao seu entorno97.

Thierry de Duve

Essa página em que me encontro é ponto de interseção entre diálogos que afirmam a

visualização como chave de acesso a todo um imaginário que tem sua razão de ser na invenção e

oferecimento de mundos.

Apresento o conjunto de cinco trabalhos que considero representativos no meu processo como

artista e revelo que mantenho com cada um deles, um estranhamento necessário, a cada vez que

cruzamos os olhares.

Assumindo uma postura dialética, as obra transitam entre “o ver e o ser visto” admitindo a

incerteza de seu estatuto não como um problema, mas possível solução; especificidade de um olhar

97 DE DUVE, o.p cit., introdução.

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que se vê inserido numa relação indeterminada, híbrida e aberta. A inquietude nessa relação é

produto justamente de uma contínua indecisão - contínua cisão aberta - ferida que não cicatriza, mas

não mata.

Assim sendo, eis aqui...

3.1 OBJETO LOVE – OBJETO AMBIVALENTE

Objeto love -

Coqueteleira de acrílico, água e óleo

– 2001

Todos

os

elementos

utilizados

são

cotidianos e

corriqueiros.

O

objeto em

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questão deve ser algo absolutamente simples e banal, sem fazer uso de nenhum efeito especial, de

nenhum material raro ou nobre que o destaque de imediato dos outros similares, numa confirmação

das palavras de Didi-Huberman que a mais simples imagem não é simples, sossegada98.

O que se vê: uma coqueteleira de acrílico transparente com vários nomes de coquetéis ou

misturas gravados em sua superfície. Nada em especial, comprada numa loja barata do Saara, zona

de comércio popular no Centro do Rio de Janeiro.

Dentro – a parede translúcida permite o olhar – dois líquidos não se misturam: água e óleo. A

água permanece como que suportando, sobre sua densidade também transparente e incolor como o

acrílico, o óleo amarelado e mais denso. Somente com o toque/interferência do observador a

mistura se move e é possível perceber que existe algo aparentemente invisível sob o óleo.

Em parte inventado na fala99, o desencadear das ações pode também surgir a partir do nome

da obra. O aspecto relacional é intensificado pela palavra Love, gravada em letras pretas na tampa

do “ready-made” cilíndrico, sugerindo a reificação das paixões e do amor, assim como revelando

possíveis relações de afeto imediato: um objeto de desejo fetichista, daquele que submete essa coisa

em particular ou o que tem como maior prazer ser total objeto do outro. O elemento eleito não é um

objeto qualquer, mas o objeto de paixão, o mote da relação, do atrito.

A nomeação não é feita em português, mas em inglês; palavra banalizada internacionalmente,

numa irônica proximidade entre o público e o privado, massificado, demonstrando o quanto o ser

olhado de modo especial é constatação muito mais subjetiva que objetiva, não estando presente na

pura constituição física da obra.

98 DIDI-HUBERMAN, op. cit., p.79: “A mais simples imagem, por certo: puro ataque, pura ferida visual. Pura moção ou deslocamento imaginário. Mas também um objeto concreto (...) exatamente exposto ao seu olhar, exatamente transformado. Um objeto agido, em todo caso, ritmicamente agido”.99 Ibid., p.p. 80,81. Refiro-me ao comentário de Didi-Huberman – citando Lacan – acerca das considerações de S. Freud em seu texto “Para além do princípio do prazer”, quando é pensada a idéia da produção de linguagens simbólicas através de determinados posicionamentos de fonemas simultaneamente ligados a determinados objetos: “(...) a toda fala poderosa – ainda que uma ‘jaculação elementar’ , como dizia Lacan – é preciso um objeto adequado, ou seja, eficaz, ainda que ele próprio excessivamente simples e indeterminado, ainda que minúsculo, trivial e insignificante”.

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De fato, ambiguamente, o Objeto Love deveria ser o mais comum de todos para poder ser o

único: água e óleo convivendo tensamente. E não são assim, vistos de dentro, os relacionamentos?

Posto o objeto – posta a questão – lançados os dados.

Não importando se a partir de algum estranhamento ou reconhecimento, temos o início de um

jogo dialético onde ambiguamente os papéis são cambiantes, havendo rítmica alternância de

personagens.

Aquele que primeiro corresponde ao pedido de toque-me feito pelo Objeto Love inicia uma

série de movimentos que afetarão a configuração original do jogo. Se a princípio o conteúdo traz

visualmente implícita a mensagem “impossível mistura”, essa mesma impossibilidade aparente soa

como real desafio: “eu quero sacudir essa garrafa e testar essa certeza”.

O gesto realiza a possibilidade de um outro lugar, já que não há como nomear a mistura do

que não se mistura, realizada enquanto houver paciência para agitar esse coquetel.

Havendo um período de repouso, gradualmente retornará a visão inicial e assim como o

carretel do menino de que nos fala Freud100, possivelmente o jogo recomeçará.

Nada terá se revelado a não ser o lugar do jogo, a abertura de um jogo mortal ou mortificado,

que é possibilitado num espaço híbrido, intermediário e somente cabível para além de toda

ortodoxia visível ou invisível.

100 Ibid., p.p. 79/87. A saber, refiro-me ao chamado Fort-Da (“Longe, ausente”- “Aí, presente”), sobre o ato inicial de simbolização universal, relatado por Freud em Além do princípio do prazer. Vemos como paciente um menino sozinho, ainda bem pequeno, que estabelece uma espécie de jogo quando repetidamente lança um carretel para longe de si e logo a seguir o recupera por meio da linha que faz parte do próprio objeto. Essa alternância entre o ver, o não mais ver e o tornar a ver (devemos considerar também o espaço intermediário entre presença e não presença do objeto em questão) configurando uma cisão ritmicamente repetida que acaba abrindo nessa criança a possibilidade de construir uma imagem com a qual se relacionar instrumentalizando-a para uma existência feita entre ausência e presa, entre impulso e surpresa.

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O inquietante espaço-lugar desse coup de dés101 (ou pas de deux∗) é ambivalente por conter e

ser conteúdo, oscilação que alterna o ver e ser olhado, do observador/ator vertido em objeto, pois

que responde, sem recusar, à provocação do sujeito Love.

O ato de lançar fundando o sujeito 102.

A surpresa dos “jogadores” é reiniciada através do ir e vir alternado do que vê e do que é

olhado, relacionamento incondicional e apaixonado que opera além das expectativas e previsões,

num moto contínuo que resiste enquanto há possibilidade de vida.

A invisibilidade é sinônima neste objeto da “falta de retorno”, da falta de resposta ao convite

para jogar. Sinônimo também de morte, adiada constantemente pela reaparição das imagens, da

água e do óleo individuais, pela reaparição esperada como a volta do sujeito amado que fala ao

objeto: “você ainda é merecedor de meu olhar”.

“(...) a ausência dá conteúdo ao objeto ao mesmo tempo que constitui o próprio sujeito, o visível se acha de parte a parte inquietado: pois o que está aí presente se arrisca sempre a desaparecer ao menor gesto compulsivo; (...) 103”

Numa espécie de dependência mútua, os elementos que servem à demonstração do jogo

apenas confirmam que quem joga é o próprio jogo.

Se o que permanece e que dura é aquilo que tem razão para continuar como bem disse

Bachelard104, podemos afirmar que a finalidade do jogo é o próprio recomeço, a reinauguração do

momento original; banal e único, como todo sujeito/objeto humanamente lúdico.

101 TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 até hoje, Petrópolis; Vozes, 1983, p.p. 66/72. [Referência ao poema de Stéphane Mallarmé “Um coup de dês jamais n’abolira le hasard (Um golpe de dados jamais abolirá o acaso). Oeuvres complètes, Paris, Gallimard, 1945]. Comentário feito por Malu Fatorelli em paralelo ao que eu disse sobre um possível “lançar de dados”.102 DIDI-HUBERMAN, ibid., p.96. “E o que jogava verdadeiramente transpondo esses lugares, criando esses lugares, era o ato de lançamento – o ato simples e complexo do lançamento compreendido como fundador do próprio sujeito”. 103 Ibid., p.96. Fédida apud Didi-Huberman.104 BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. São Paulo: Ática, 1988.

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3.2 PLACA DE TRÂNSITO

Placa de TrânsitoObjeto/instalação: 3x1x0,60m

(madeira e ferro galvanizado pintados)Saguão da EBA/UFRJ - 1990

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O trabalho Placa de Trânsito foi executado num momento em que eu terminava meu convívio

diário com a Escola de Belas Artes (terminei o curso de Pintura em 1990 e já estava paralelamente

freqüentando as aulas de Charles Watson no Parque Lage). Eu de fato me encontrava num espaço

entre os dois sistemas de ensino, produção e absorção da arte e como minhas opiniões “subiam e

desciam” aceleradamente em relação a tudo isso, o local escolhido não poderia ser outro: logo após

sua execução, foi imediatamente posto em frente aos elevadores no saguão de entrada da EBA,

como uma metáfora do cruzamento de expectativas de quem chegava e de quem estava saindo.

A idéia desse objeto me ocorreu após observar seguidamente as placas de trânsito que

passavam por mim enfileiradas a me dar as costas repetidamente, ou seja, as placas da estrada

paralela, as da outra pista, com o trânsito em sentido contrário ao do ônibus em que me encontrava -

e por isso mesmo sempre vistas por trás - nas idas e vindas de Petrópolis ao Rio de Janeiro quando

estudava na Escola de Belas Artes da UFRJ.

Curiosamente, ainda que de fato eu estivesse em movimento, o que parecia era o contrário, ou

seja, que as placas e toda a paisagem passavam por mim em alta velocidade, sem sequer perceberem

a minha presença, sem sequer se voltarem por um segundo para trás. Essa sensação talvez possa ser

lida em paralelo com alguns elementos de um depoimento de Tony Smith sobre o seu processo

criativo e sua relação com questões como a noite, a estrada vazia e o objeto negro silencioso e

fechado em si mesmo.

Já de início, poderia começar falando do objeto como perda e recuperação, utilizando um

comentário que Didi-Huberman faz acerca do cubo negro de Smith.

“Cabe imaginar, nessa história, os objetos fazendo sinal pela última vez a Tony Smith. Mas tão tenuemente visíveis e tão distantes que não faziam senão pontuar o lugar negro onde ele próprio estava. Os objetos, signos sociais da atividade humana e do artefato, de repente haviam se evadido e se isolado em algo que não era mais, como ele diz, ‘socialmente reconhecido105’”.

105 DIDI-HUBERMAN, op. cit., p.p. 100,101.

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Mais uma vez eu afirmo a necessidade inicial de extrema semelhança física entre esse

objeto/placa e uma placa de trânsito da estrada para que se estabeleça a real diferença. Ambas são

feitas do mesmo material (madeira e chapa de ferro pintadas) e têm as mesmas cores e proporções.

A semelhança termina aqui.

O que se perde imediatamente é o objeto indicador/orientador, um tipo de seta que remete a

alguma direção em particular (trânsito) ou responde a alguma questão especifica. A nova placa

silencia, dá as costas irremediavelmente, continuamente, como se uma insistente pergunta só tivesse

como resposta o repetido silêncio. Ela só é feita de costas, ou seja, os dois lados são iguais: dois

lados negros e silenciosos, talvez algo próximo ao cubo de Smith ou, em certa medida, descreve sua

origem como Box with the sound of its own making de Robert Morris.

Uma experimentação dialeticamente reveladora desdobraria a perda em recuperação – já que

o diálogo/reflexão só se estabeleceria a partir do “falar sozinho”. Imaginemos alguém perguntando

algo e recebendo em troca um cruzar os braços e dar as costas, o que poderia ser interpretado como

descubra você mesmo, pense por si só e dispense os manuais.

Assim como na experiência de Freud com o Fort-Da106 – o já citado jogo do

aparecimento/desaparecimento do carretel nas mãos do menino – teríamos aqui um outro objeto

lúdico que giraria rapidamente nas mãos do observador, e poderíamos também pensar de modo

inverso: o observador (observado) tornado em objeto girante, enrolado e desenrolado como

brinquedo pela própria linha de pensamento que o liga ao objeto.

Ao caminhar em círculos – e em vão – em torno da placa/carretel/negro, a cada volta se

fiaria uma espécie de linha imaginada, desejada107, linha que acabaria por acionar o mecanismo de

106 Ibid., p.101. A respeito do Fort-Da, Lacan insistia sobre “o valor de objeto enquanto insignificante”, e por isso mesmo fornecendo ao sujeito o ponto de inseminação de uma ordem simbólica. Para Fedida, “uma negatividade da des-significação” fazendo com que brincar de fazer desaparecer e reaparecer acaba produzindo sentido.107 Ibid. O texto fala sobre a dialética do desejo que acaba por ultrapassar a privação.

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desconhecer/reconhecer, lançar e recolher de volta, num movimento de recuperação de sentidos já

ausentes que acabaria por produzir novos sentidos.

“(...) o caráter absolutamente neutro do objeto – carretel, cubo ou chaminé de fábrica – produz o rito de passagem de uma operação crucial na qual o sentido se constitui sobre um fundo de ausência, e mesmo como obra da ausência108”.

A ausência da paisagem vista numa estrada, ou talvez, da visualização possível nessa

paisagem imersa em escuridão, diluída na noite, acionaria na percepção de Smith a abertura do

olhar ao processo de perda, experiência de contato que iria preceder a construção da primeira caixa

preta∗. A experiência é citada em texto do próprio Tony Smith: “Era uma noite escura e não havia

iluminação nem sinalização nas laterais da pista, nem linhas brancas nem resguardos, (...) 109”.

Talvez a subtração de qualquer indicação objetiva e frontal pelo objeto/placa/negro, seja

semelhante à eliminação das figuras da paisagem pela noite escura, produzindo assim algo como

um espaço de reflexão, novamente um espaço intermediário de ação∗.

“Quando (...) o mundo dos objetos claros e articulados se acha abolido, nosso ser perceptivo amputado de seu mundo desenha uma espacialidade sem coisas. É o que acontece na noite. (...) Não estou mais entrincheirado em meu posto perceptivo para dali ver desfilar à distância os perfis dos objetos110”.

Seguindo as palavras de Smith, havia sim uma visibilidade possível através das tênues

silhuetas das fábricas, das chaminés, em contraponto com a estrada, como já, disse destituída de

qualquer sinalização, mais escura que a própria noite. A invisibilidade acionaria o desejar ver, o

produzir visibilidade através do impossível de ver.

O também negro “sinal que não sinaliza”, possibilitaria o trânsito dialético entre o ir e vir das

idéias e sensações, fazendo referência direta ao aparecer/desaparecer no Fort-Da, quando o sentido

é produzido através da ausência, elemento essencial do poder desse jogo.

108 Ibid., p.101. Huberman chama as esculturas feitas até 1967 de blocos de noite.109 Ibid., p.99. Isso também pode ser observado num outro objeto que chamei de Aqui e que comentarei mais a frente.110 Ibid., p.100.

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O cineasta alemão Win Wenders disse que “aquilo que se quer ter na imagem, se obtém pelo

que se deixa fora dela”. Talvez algo absolutamente distante de nossa cultura e que o budismo chama

de “vazio positivado111”.

A noite – a escuridão ou o não discernimento objetivo do mundo – ao demonstrar nossa perda

em termos de sentido visual, em contrapartida lança uma espécie de luz sobre a questão. A falta

revela a necessidade e como esta se constrói, como se estabelece.

Para Merleau-Ponty a noite demonstra nossa contingência: movimento gratuito e radical pelo

qual buscamos nos ancorar e nos transcender nas coisas, sem nenhuma garantia de encontrá-las

sempre112.

Esse comentário também se refere perfeitamente a meu outro trabalho chamado AQUI e de

fato é interessante pensar os dois objetos de maneira paralela.

111 Em seu filme Tokio-Ga, Wenders, no Japão, percorre os passos do cineasta japonês Yasushiro Ozu, dizendo: eu vou atrás dele porque ele fazia a imagem real, verdadeira. "Será que é possível fazer-se uma imagem verdadeira hoje?" diz Wenders. Ele atravessa os lugares onde o Ozu viveu e também onde ele filmou. Retoma e filma, além de todos os seus filmes nos mesmos locais onde ele filmou, o principal ator de Ozu, assim como o seu câmera-man. O filme de Wenders tem seu fim quase no túmulo de Ozu onde se lê a inscrição "Mu". Esta palavra de origem chinesa significa "vazio". O vazio na cultura e o fim do sentido. <http://www.eca.usp.br/nucleos/filocom/ae4.html>.112 DIDI-HUBERMAN, op. cit., p.100.

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3.3 AQUI

Aqui - objeto: 0,05 x 0,14 x 0,14m - 2005(óculos espelhados para dentro)

O objeto Aqui, assim como a Placa de Trânsito, também faz uso da extrema semelhança

aparente com um objeto cotidiano – no caso, um par de óculos escuros – para poder desencadear o

processo reflexivo/dialético.

O estranhamento se dá imediatamente pelo fato de que esses óculos são espelhados para

dentro e escuros, totalmente negros – no caso, cegos – se vistos de fora para dentro. Obviamente,

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muitos óculos de sol também são totalmente escuros vistos externamente, mas mantém ainda a

transparência ao olhar, o que Aqui não ocorre.

Como na Placa de Trânsito temos um objeto fechado em si mesmo, voltado para dentro e

silencioso ao exterior – talvez muitos ruídos no interior∗.

A experimentação, ou seja, o colocar esses óculos sobre os olhos, é seguida, como uma vez

comentou o artista plástico David Cury, de uma sensação de vertigem, que poderíamos pensar como

algo próximo à perda de estabilidade ao se deixar de ver o espaço externo. Como numa brincadeira

de cabra-cega, aquele que tem os olhos vendados e é posto a girar, estende os braços e tateia em

busca de algo sólido em que se apoiar.

Ao aproximá-lo dos olhos, percebemos uma outra contribuição possível a essa vertigem: de

início, as lentes espelhadas internamente (côncavas), refletem uma visão invertida do espaço em

torno e do observador que se aproxima; apenas quando já bem próximo do rosto, por um breve

momento, essa imagem se re-inverte gravitacionalmente e tudo parece “assentado como deve ser”.

A seguir, apenas uma única presença: nossos próprios olhos frente a eles mesmos. AQUI. Um

vendar os olhos não com a escuridão somente, mas com a visão exclusiva deles neles mesmos.

Seria o caso de pensar que a estabilidade do mundo estaria relativa à nossa visão pessoal?

Somente vemos no que nos parece, somente no que nos reconhecemos?

Essa perda remete ao comentário acerca da noite feito por Tony Smith e ao fato de se

perderem os objetos e o mundo claramente visto, e poderíamos também aproximar a questão da

vertigem sentida pelo usuário do objeto/óculos ao problema da contingência do mundo comentado

por Merleau-Ponty113.

Refiro-me aqui indiretamente, a um objeto de Robert Morris chamado Box with the sound of its own making, de 1961, por pensar a possibilidade de pensar a Placa de trânsito como um objeto “auto-contido”, preenchido pelo silêncio da recusa em responder a uma possível indicação.113 Ibid., p.99.

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Seria como se o mundo, e as coisas do mundo, perdessem em substância ao se desfazerem

visualmente, como se através da experiência da privação do visível, se desencadeasse

inesperadamente a possibilidade de abertura a uma dialética visual, sensação relatada por Smith

segundo seu contato com o que chamou noite absoluta e total, onde se percebeu sendo plenamente,

no lugar por excelência onde os objetos, inclusive os muito próximos, se instabilizavam e

fragilizavam completamente.

É esse, para Merleau-Ponty, o momento em que nos sentimos inteiros: imersos nessa

espacialidade total e sem coisas114.

A profundidade da noite, infinita e sem barreiras visuais onde tropeçar com nossos olhos –

sem a menor possibilidade de estabelecer referências – eliminaria qualquer limite ou distância

possível entre nós dois e sem nenhum lugar imediato para ancorarmos nossa reflexão115.

Ali onde estou, ali de onde olho, não vejo nada.Tony Smith

Parafraseando Smith, eu poderia dizer: Aqui onde estou, Aqui de onde olho não vejo nada.

O impedimento ao olhar nos provoca o desejar olhar. O objeto Aqui, ao vedar o acesso dos

olhos – com a visão desses mesmos olhos – às coisas do mundo, desencadearia esse jogo ambíguo e

rítmico que alterna possibilidades sem nunca se fixar em nenhuma delas. Como um esvaziar que

inquieta volumes, essa operação dialética é descrita por Didi-Huberman como aquela que conjuga e

dinamiza contradições116 sem contudo recair sobre um ponto ou outro.

A solidão e o afastamento do ali se presentificariam, incomodamente, com a única companhia

verificada Aqui: eu comigo mesmo. A vertigem vinda dessa surpresa, de fato provocaria um “perder 114 Ibid., p.99.115 Ibid., p.100. Merleau-Ponty apud Didi-Huberman: “(...) Ela não é um objeto diante de mim, ela me envolve, penetra por todos os meus sentidos, sufoca minhas lembranças, apaga quase minha identidade pessoal. (...) Todo espaço para a reflexão é sustentado por um pensamento que liga suas partes, mas esse pensamento não se faz de parte alguma. Ao contrário, é do meio do espaço noturno que me uno a ele”.116 Ibid., p.138.

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o chão”, uma perda referencial de um possível domínio sobre o mundo e de alguma certeza da

própria palpabilidade do mundo.

Importante comentar que o ficar de pé também significa tornar-se humano, falar de frente e de

igual para igual com o outro, se por de pé e caminhar117. A Placa de trânsito possui autonomia de

me dar as costas por estar como eu de pé, ou seja, de igual para igual. A sensação de vertigem, a

me ver frente a mim mesmo e a nada mais, me faz cair.

O giro de ponta a cabeça, é comparável ao enrolar/desenrolar da placa/carretel e, um como o

outro, desestabilizam as expectativas daquele que faz uso desses objetos.

O repetido dar as costas da Placa deixa quem observa, quem pergunta, sozinho em suas

indagações, tal qual se encontra aquele que, confrontado com seus próprios olhos, nada mais vê.

O quanto de dessemelhante é necessário para desencadear a operação de perda e,

consequentemente, o processo dialético do ver e ser visto118. O semelhante aciona o dessemelhante e

os lugares nesse jogo se alternam ritmicamente.

“Esses olhos tão próximos – tão desconhecidos – que se sabem apenas quando postos frente a si mesmos, e percebem: o reflexo no espelho côncavo afirma o volume convexo. Eis novamente a imagem do túmulo aberto, índice da presença do corpo em seu volume negativo119”.

Silêncio tumular. Ausência. Afinal não seria como um “se fazer de morto” o dar de ombros ao

mundo?

Ausência que presentifica, o ver possível seria muito mais que o simples abrir os olhos, esses

espelhos que recolhem indiferentemente tudo aquilo que passa ao largo.

Porque dialético, esse ver faria urgente e necessário o ser visto, o ter pelo que ser visto, o

haver o outro e até mesmo o sê-lo.

117 Ibid., p.p. 126/129. [Sobre a questão da estatura humana]. 118 Ibid., p.146. [Ao comentar sobre trabalhos minimalistas específicos, Didi-Huberman diz da dessemelhança visual que opera uma perda e faz o visível voar em pedaços].119 Ibid., p.37. [Ver o já citado capítulo O Evitamento do Vazio: Crença ou Tautologia].

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Lygia Clark – Óculos – 1968

Impossível esquecer as máscaras sensoriais de Lygia Clark e descubro Guy Brett falando de

uma em especial que, sem elementos para o ouvido e o nariz, possuía espelhos e peças para que se

pudesse mirar os próprios olhos. E de uma vaga monstruosidade das máscaras abismo, que não

possuíam aspecto externo120 .

Objetos para o olho gerar contato, pois que a lógica do excesso levaria à cegueira no tanto a

que olhar. O impedimento desse mesmo olhar constituiria a abertura ao desejar ver.

Cisão aberta e instaurada a partir de um lugar inquieto e ambíguo, incompleto e que busca ser

inteiro em sua necessária incompletude que possibilita o movimento incessante de ir e vir, de jogar

e recolher.

Ambigüidade assumida e revelada, o fechar os olhos para melhor ver estaria de igual para

igual com o se trancar por dentro para acionar a alteridade.

Antes de levantar e andar – cair.

120 BRETT, Guy. In Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias, (org.) BASBAUM, Ricardo. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p.37.

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Essa dupla distância121 funcionaria como um horizonte desejado porque mantido ao longe,

numa linha de tensão que atuaria entre o poder retornar e a perda do caminho de volta.

Basta que se retirem os óculos para que tudo se reconfigure – mas isso de fato se dá ou o

visível finalmente se quebrou e voou em pedaços?

3.4 ONDE/QUEM/QUANDO

121 DIDI-HUBERMAN, op. cit., p.146.

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Onde Quem Quando – 2005 Instalação (detalhe): bolas de cristal estilhaçadas, areia, mesas com toalhas brancas e espelho colado como fresta na parede - 3/10/2m

Atelier do Instituto de Artes da UERJ/ Expo CorrespondênciasO que se vê:

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Num espaço pensado como um longo corredor – espaço linear – o olhar que passa descobre

três mesas enfileiradas. Ritmicamente alternadas. São todas aparentemente iguais e cobertas por

idênticas toalhas brancas que as vestem inteiramente, até o chão.

Sobre cada uma dessas mesas se vê um objeto esférico que lembra uma bola de cristal. Todas

essas bolas são do mesmo tamanho e igualmente craqueladas, cada qual possuindo um pedestal de

metal polido. Três objetos a princípio idênticos assim como as mesas que os suportam, mas que

com a aproximação revelam suas particularidades.

No primeiro objeto, o olhar mais atento percebe gravado no vidro, em meio às rachaduras da

superfície, um mapa-múndi e se pode ler inscrita na base metálica a palavra Onde.

O segundo tem sua craquelada superfície totalmente espelhada. No pedestal/base se lê a

palavra Quem.

Por fim, mas não por último, o terceiro objeto bola de cristal está totalmente preenchido de

areia e em sua base se lê a palavra Quando.

Ao percorrermos as três mesas – três estações – olhamos para o final desse espaço/corredor e

encontramos o que parece ser uma porta entreaberta.

O trabalho acima descrito foi a princípio apresentado em forma de uma instalação∗ com todos

os elementos compondo uma obra única, mas, desde o início, pensei que também poderia ser

desdobrado e reapresentado como dois trabalhos dialogando entre si: um apenas com as mesas e

suas respectivas bolas e outro formado somente pela fresta/portal de espelho (que eu chamo

isoladamente de Entre). Na segunda possibilidade deve ser mantida a idéia de um espaço em forma

de corredor onde, após caminhar certa distância, o observador se percebe frente ao que pensa ver

como uma porta entreaberta e descobre a si mesmo refletido na fresta/espelho∗.

Exposição Correspondências – Atelier do Centro Cultural UERJ – 2005. A perfeita ilusão de ótica obtida se assemelha exatamente a uma porta entreaberta, pelo fato do ambiente refletido ser mais iluminado que a parede onde o espelho está colado. O recorte em ângulo favorece essa ilusão que lembra tanto uma porta que se abre quanto uma que se fecha e a espessura do espelho nunca permite que se perceba, de antemão, que a figura que se vê em movimento é exatamente daquele que se aproxima do objeto/instalação.

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Além desse desdobramento, o trabalho já gerou um vídeo de mesmo nome –

Onde/Quem/Quando – no qual foram acrescentados elementos sonoros e movimento visual que

simula percorrer esse espaço aprisionante de modo contínuo, ou seja, em loop. No vídeo, a câmera

se posiciona no lugar dos olhos de quem caminha.

As mesas, com suas respectivas bolas de cristal, funcionam como elemento desencadeador,

uma espécie de chamariz que nos leva a adentrar esse espaço/armadilha.

Ainda que não se estranhe a visão de três mesas de vidência num espaço de arte, no mínimo

seria improvável que todas estivessem assim próximas. Numa consulta a um “vidente de fato”, o

sigilo e a privacidade são pré-requisitos que cada “consulente” necessita para que suas questões

sejam colocadas com propriedade e sem nenhum constrangimento.

Aqui, o que se desenrola é um tipo de jogo que envolve gradativamente a relação entre todas

as três mesas, todas as três bolas, e um mesmo e único consulente/vidente. Este percorre

linearmente o espaço, passa por cada uma dessas mesas e lê as inscrições na base dos objetos.

Apenas depois disto é que chega à porta de saída – [à porta de entrada].

Quando me refiro a esse espaço como sendo um espaço/armadilha, falo do aspecto ilusório

que literalmente hipnotiza e prende o curioso que pretende ver o que se passa atrás daquela porta

iluminada. Se o que está atrás é o mesmo que está na frente, o que observa é também o observado,

fechando o tempo e o espaço num mesmo círculo sem fim.

Onde/Quem/Quando não estão definidas como perguntas nem como respostas. As palavras

inscritas nos objetos – e no vídeo – não são acompanhadas de pontos de interrogação.

Dialeticamente podem significar as duas coisas. Do mesmo modo, quem vai à procura desses

préstimos ouve que “aqui se vê passado, presente, futuro”, e não necessariamente nessa ordem, pois

ainda que se troquem os objetos de posição, o jogo continua.

Seriam: presente, passado e futuro, objetos do jogo?

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Onde

Onde pergunta e responde a lugares.

A bola/mapa-múndi nos olha através de sua superfície estilhaçada como um globo ocular que

tem na pele tatuada a imagem símbolo de todo e qualquer lugar do mundo.

Todo lugar é aqui “qualquer lugar”; não há hierarquia nem privilégio. É indiferente. Tudo está

sobre uma superfície que se quebrou, mas integra uma unidade – um todo feito de pequenos

fragmentos.

No vídeo, que é igualmente chamado Onde/Quem/Quando, lenta e gradativamente, ao som de

passos, se aproxima essa imagem de mundo fragmentado que vai girando transparente e acaba por

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se pixelar em meio a ruídos de aeroporto. Não está definido se é uma chegada ou partida. É

indiferente.

Quem

Quem reflete sobre todos e qualquer um.

A superfície convexa desse olhar devolve nossa imagem como um quebra-cabeça montado;

vemos uma imagem por entre os fragmentos.

O espelho não duplica o que vê, ou quem sabe, duplica “fielmente” o que é visto. A Imagem

refletida e distorcida pelo espelho curvo e por suas rachaduras, assim como nos espelhos de parques

de diversão, é sempre uma forma irreconhecível, seja minha, seja sua, seja de Quem for.

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Ainda que o olhar dê voltas e voltas sobre esse espelho tridimensional, a imagem que retorna

é sempre a mesma. Imagem cíclica refletida como espaço em suspensão.

Quando

Quando é completo silêncio diante da impossibilidade de um instante em permanência. Algo além de todo e qualquer minuto.

Pela superfície transparente vê-se o interior inteiramente preenchido de areia. Nada mais. É

como se uma ampulheta tivesse suas duas metades novamente reunidas numa só esfera onde a areia

não mais escoa.

Esfera do tempo em suspensão.

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No vídeo, à aproximação desse objeto, se alternam o som de um vento no deserto e o tique-

taque de um relógio, de uma bomba-relógio. Nem um antes, nem um depois.

A mesma areia que preenche também forma visualmente uma superfície igual, uniforme e

vazia, num tempo/espaço para além de tudo, árido e destituído de qualquer outra coisa a não ser o si

mesmo.

Vazio que enche...

É possível estabelecer conexões se pensarmos cada uma das três palavras que dão nome ao

trabalho, não somente como perguntas nem simplesmente como respostas, mas como ambas

simultaneamente – algo como respostas que trazem dúvidas. Perguntas/respostas,

intermediariamente.

Essas três palavras, onde, quem e quando, separadamente, mas mantidas cada uma em suas

duplas possibilidades (indicativa e interrogativa), denotariam uma forma de dependência e

aprisionamento, incapacidade de levar a cabo qualquer expectativa e todo e qualquer plano por

realizar. Falam do aprisionamento provocado por uma forma idealizada no lidar com o mundo e de

como essa forma leva a uma inação.

Imaginemos alguém que numa contínua e ininterrupta condição que podemos aqui chamar de

“estado de expectativa”, ou seja, a espera por uma suposta situação plenamente favorável para agir.

Alguém que continuamente requisitasse como “plenamente ideal” um outro lugar, ou uma outra

pessoa ou mesmo uma outra época. Nada lhe seria mais insatisfatório do que ser/estar aqui, eu,

agora; a condição ideal, o momento ideal, sempre estaria por vir.

Adriana Varejão, em certo momento de uma entrevista com Paulo Herkenhoff, fala de uma

obra sua chamada Alegria, como sendo o estado de aceitação sem restrições do real:

“Nessa época, eu fazia análise com a Maria Helena Junqueira, e estávamos conversando como transformar essas imagens da carne em uma imagem da alegria. O que seria a alegria? Ela apareceu com esta frase incrível: a alegria é a aceitação sem restrições do real 122”.

122 VAREJÃO, Adriana. Fotografia como Pintura. Rio de Janeiro: Funarte/Sesc, 2006.

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Essa aceitação sem restrições do real seria o contraponto absoluto a um estado de inércia

provocado por uma idealização irrestrita. Sempre um outro lugar, para um outro alguém em alguma

outra época.

O Onde/Quem/Quando seria oposto a aqui, eu, agora; desse modo, o meu trabalho pretende

provocar certo mal estar∗ em quem transita nesse espaço/corredor. Esse espaço específico e a

relação entre quem vê os objetos e o modo que estes “devolvem” o olhar, falam de questões que se

referem a frustração de expectativas humanas. Portanto, posso propor que o conjunto desses objetos

estabelece entre si e aqueles que participam dessa experiência uma relação antropomórfica.

Somente objetos antropomórficos poderiam olhar o homem de igual para igual e falar de coisas

comuns a ambos. Seria um momento angustiante aquele em que ambos se olham de frente,

silenciosamente, sem ter nada o que dizer.

Há um momento onde Didi-Huberman evoca uma traumática experiência de Michael Fried

junto aos objetos minimalistas e sua relação com o antropomorfismo de jogo de dois silêncios:

“(...) o desprazer violento que sentia só terá tornado sua visão mais aguçada. Essa experiência consiste, direi, no jogo de dois silêncios. (...) É o silêncio humano, a suspensão do discurso, instauradora da angústia e daquela “solidão parceira” que os moribundos ou então os loucos impõem às vezes com sua presença 123”.

Aquele que olha, passa por entre as mesas e suas bolas de cristal, e, de repente, se percebe

numa espécie de aprisionamento virtual.

Isso ocorre com a chegada ao final do corredor, após já ter passado pelas três mesas.

O que se vê?

Uma porta entreaberta.

Interessante, por exemplo, o relato de uma visitante à exposição na Uerj durante a apresentação do trabalho em forma de instalação, que falou sentir-se angustiada [!] com uma sensação de estar presa num eterno recomeçar que não levaria a absolutamente nada.123 DIDI-HUBERMAN, op. cit., p.p. 121,122.

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Entre – espelho cortado sobre parede – 2005

Fresta – passagem possível, ainda que estreita; ultrapassagem impossível de uma miragem

feita de espelhos que apenas devolvem o ali, aqui.

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A abertura que se oferece ao olhar recoloca o mesmo lugar em que nos encontramos – seu

duplo – como num espaço em suspensão124 – espaço intermediário.

Lugar nenhum, de ninguém, nunca. Lugar comum, de muitos, sempre.

O agora virá depois e será o ontem; fará com que tudo recomece mais uma vez. E sem alegria

nenhuma.

Passado/futuro que mantém um presente contínuo e repetitivo, como num aprisionamento,

como um destino irremediável – mesas de vidência que predizem exatamente o que já aconteceu.

Hélio Oiticica – EdenWhitechapel Gallery, Londres –1968

É possível pensar uma espécie de correspondência pela inversão, ou seja, um diálogo em espelha-

mento entre a situação apresentada em Onde/Quem/Quando e um dos mais importantes trabalhos de

124 Ibid., p.232. “Pois essa porta permanece diante de nós para que não atravessemos seu limiar, ou melhor, para que temamos atravessá-lo, para que a decisão de fazê-lo seja sempre diferida. E nessa différance se mantém – se suspende – todo o nosso olhar, entre o desejo de passar, de atingir o alvo, e o luto interminável, como que interminavelmente antecipado, de jamais ter podido atingir o alvo”.

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Hélio Oiticica chamado Éden.

Comentando esta espécie de “instalação/ambientação” na Londres dos anos 60, Oiticica,

afirma que a experimentação enquanto confirmou algumas idéias, derrubou outras, mostrando “o

que pensar” e “para onde ir125”.

Estabelece assim a noção de Crelazer – puro “lazer-prazer-fazer” – inerente a um viver não

objetivado, não programado ou planejado.

O que ocorre é um convite ao sujeito a partir de sua “desprogramação”. Ele é chamado para

participar num coletivo que o concebe enquanto presença agora em um espaço desfuncionalizado e

refundado através de experimentação artística.

Essa seria a senha para o ato criador disponível a todos, sempre e em qualquer lugar.

3.5 SOLVENTE

125 SPERLING, David, "Corpo + Arte = Arquitetura. As proposições de Hélio Oiticica e Lygia Clark," in Seguindo Fios Soltos: caminhos na pesquisa sobre Hélio Oiticica (org.) Paula Braga, edição especial da Revista do Fórum Permanente <www.forumpermanente.org> (ed.) Martin Grossmann.

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Solvente (frame) – VídeoAtelier do Instituto de Artes UERJ– 2007

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Solvente. [do lat. solvente.] Adj. 2 g. 1. Que solve ou pode solver. 2. Que paga ou pode pagar suas dívidas. 3. Diz-se do devedor cujo ativo é superior ao passivo. 4. Fis.-Quím. Numa solução, componente cuja fração molar é próxima da unidade, ou é muito maior que a dos outros, e que, nas mesmas condições de temperatura e pressão, se encontra no mesmo estado físico da solução. 5. Fis.-Quím. Numa solução, componente cuja concentração pode crescer indefinidamente sem que apareça uma fase nova no sistema. [Não são raros os casos em que nenhum dos componentes satisfaz integralmente essa condição]. 6. Fam. Líquido em que uma substância é dissolvida.

Solver. [Do lat. solvere.] Explicar, resolver126.

A proposta é realizar o “desaparecimento possível” do Atelier do Instituto de Artes da UERJ.

Essa desmaterialização é visual e obtida através da projeção de imagens fotográficas sobrepostas

aonde, gradativa e lentamente, alguns elementos presentes no espaço de experimentação de arte vão

se tornando rarefeitos até se desfazerem em pleno ar.

A princípio, somem cadeiras, cavaletes, objetos. A seguir, dissipam-se elementos da

arquitetura e as próprias paredes do ambiente dão lugar à visão do espaço externo com as ruas,

árvores e carros do estacionamento tomando lugar na superfície onde são projetadas as imagens.

É relevante comentar que esse vídeo é feito num momento em que são realizadas obras de

construção de paredes divisórias que resultarão em outros ambientes dentro do anteriormente único

e grande espaço do atelier. Estão sendo construídos uma sala auditório fechada onde serão

realizadas, entre outras coisas, as bancas de avaliação do Mestrado e também, ao lado, uma futura

galeria de arte para exibir experimentos dos alunos do Instituto de Artes ou algo que seja do

interesse de todos. Essa galeria também comportará a mostra de trabalhos paralela à defesa de tese

dos alunos que fazem parte da linha de pesquisa Processos Artísticos Contemporâneos.

Isso contribui para o caráter site specific desse meu trabalho, pois vou exibir a desaparição

visual de um determinado espaço dentro dele mesmo, e, por conseguinte, fazer sumir o próprio

ambiente de que faço parte. Falo isso porque nós alunos havíamos cogitado a viabilidade da

transferência das bancas examinadoras (e da exibição paralela dos trabalhos) para outro espaço que

126 FERREIRA, op. cit., p.p. 1331,1332.

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não o do atelier como, por exemplo, o Parque Lage, onde haveria uma maior visibilidade para os

artistas em relação ao circuito de arte. Fiquei particularmente pensando o quanto isso acarretaria

uma diminuição da potência do trabalho e se, de fato, ele continuaria a determinar o que propunha

se transferido para outro local.

Encontrei num texto de Douglas Crimp, Redefinindo Site Specificity127, algumas

considerações interessantes quanto à especificidade espaço de produção/espaço de exibição do

objeto de arte, que possibilitam relacionar meu vídeo Solvente a questões levantadas por Richard

Serra em alguns de seus trabalhos, ainda que ambos sejam aparentemente distintos.

“Remover a obra é destruir a obra”.

A afirmação é de Richard Serra e se refere a uma audiência realizada para definir o destino de

sua conhecida escultura Tilted Arc, obra que causou polêmica por, segundo parte da opinião pública

“romper as visões normais e as funções sociais” do local onde estava instalada em caráter

permanente, a Praça do Jacob K. Javits Federal Building em Lower Manhatan no verão de 1981.

A encomenda da escultura de Serra havia sido feita pelo Programa de Arte na Arquitetura do

General Services Administration (GSA) em 1981, mas em 1985 um novo administrador regional do

GSA deu início à idéia de transferir a obra para outro lugar.

127 CRIMP, Douglas. “Redefining Site Specificity”. In: On the museum’ s ruin. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1993, p.p. 150/188.

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Tilted Arc, 1981 - Aço Cor-Ten, 366cm x 36,58m x 6,5cmInstalação na Federal Plaza, Nova York

General Services Administration, Washington D.C.(Obra destruída pelo governo americano, em1989)

Ao alegar que a escultura era uma “presença conflitante” com o ambiente em que estava

inserida, aquele grupo demonstrou completo desconhecimento de que este “conflito” era de extrema

importância para a afirmação do trabalho de Serra enquanto site specific.

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Propondo a mudança da obra de onde se encontrava para uma paisagem na natureza, o que os

detratores da obra desejavam uma visualização mais agradável, um maior equilíbrio ao combinar

aparência e tamanho da peça com um possível e harmonioso entorno.

Para Serra, a idéia de site especificidade iria de encontro exatamente ao pensamento de que a

obra deve estar inserida num espaço favorável e palatável ao público, no caso, por meio de um

espaço institucional adequado para comportar tanto a escultura em suas proporções gigantescas

como um público especializado que possa digeri-la.

O interesse do artista seria exatamente estabelecer a dissonância entre a arte e seu já

institucionalizado consumo. Entretanto, mesmo a maior parte dos defensores de Tilted Arc pensava

conceitualmente site specific de um modo que remetia puramente a uma categorização estética,

enquanto a especificidade requerida por Richard Serra implicava algo mais que somente o binômio

espaço/leitura adequado à obra. O que o artista propunha era rever a própria convenção de

legibilidade aparente do trabalho artístico e suas relações entre referencialidade e percepção que

servem como facilitadores ao chamado público especializado128.

Antes de continuar, devo colocar que o conceito de site specificity entra na arte

contemporânea através do Minimalismo nos anos 60 quando esses artistas discutiam a falta de um

lugar e o idealismo na escultura moderna. Entretanto, num certo sentido essa discussão não é levada

a cabo, pois a incorporação do lugar na percepção do trabalho artístico era entendida somente de

modo formal, deslocando o idealismo também ao espaço circundante, de forma que esse restava

estetizado.

Declarações como a de Carl André dizendo que a escultura que antes era lida enquanto forma

e estrutura, deveria passar então a ser pensada enquanto localidade, e o fato das obras, de um modo

geral, percorrerem as localidades sem de fato pertencer a nenhuma delas em particular favorecia a

128 Ibid., p.154. “A especificidade do lugar de Tilted Arc é aquele de um lugar público particular. O material da obra, sua escala e forma cruzam não somente com as características físicas do ambiente mas também com os desejos e expectativas de um público muito diferente daquele condicionado aos impactos da arte do final dos anos 1960”.

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circulação comercial da obra de arte e seu enquadramento como mercadoria de luxo129 circulando

sem impedimento entre a galeria, o museu e a residência de algum comprador:

“Eu não acho que os espaços sejam assim tão singulares. (...) Eu penso que existem classes genéricas de espaços com e para os quais você trabalha. Assim, não é realmente um problema onde uma obra estará em particular”. (...) “Dentro dos espaços das galerias, dentro dos espaços das residências privadas, dentro dos espaços dos museus, dos grandes espaços públicos, e também espaços externos de diferentes tipos130”.

A partir disso, artistas como Richard Serra e Robert Smithson, vão reagir a uma dissolução da

cultura em pura mercadoria, no que Crimp chama de práticas marginalizadas e espasmódicas que

radicalizaram a idéia de site specificity.

Smithson desenvolvia uma teoria relacionando um local em particular existente no meio

ambiente que ele intitulava site e os espaços anônimos, intercambiáveis, que chamava não site, nas

galerias em que seria possível exibir seu trabalho na forma de registro fotográfico.

The Spiral Jetty - 1970 - Robert Smithson

129 Ibid., p.155. “A real condição material da arte moderna, mascarada por sua pretensão à universalidade, é aquela de artigo de luxo especializado. Produzida no Capitalismo, a arte moderna ficou sujeita à mercantilização da qual nada realmente escapa”. 130 Carl André apud Douglas Crimp. Ibid.

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Sites eram algum lugar, possuíam limites abertos e informação dispersa. Não sites possuíam

limites estabelecidos, continham informação e não eram nenhum lugar, algo como uma “abstração”.

A oposição entre elementos pertencentes à cultura, e as formações naturais não era de forma

alguma por ele considerada131 e de maneira alguma o artista via a diferenciação entre os espaços de

forma superficial e irrelevante.

Em Splashing, conhecido trabalho que Serra realiza para uma exposição organizada por

Robert Morris num velho armazém de Upper West Side de Manhatan em 1968, é lançado chumbo

derretido no encontro de uma parede com o chão e que, solidificando, forma uma espécie de massa

indefinida e sem forma específica.

Numa certa medida, Serra apaga a linha onde a parede se eleva perpendicularmente ao chão,

dissolvendo aquele referencial de orientação espacial e “sustentando aquele espaço como um

território para um tipo diferente de experiência perceptual132”.

O artista desloca a proposta de radicalidade de Splashing para a esfera pública através de

Tilted Arc e é nessa direção que é possível estabelecer a especificidade do trabalho. O equívoco

daquela parcela do público foi, mais uma vez, considerar a visualização da aparência da obra

separadamente de seu “funcionamento”.

Splashing, 1968 – Chumbo, 45,5 x 792,5cmInstalação no Castelli Warehouse, Nova York (Obra destruída)

131 ARCHER, M. Arte Contemporânea - Uma História Concisa, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.96.132 Ibid., p.151.

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O embate com as convenções do sistema de apreensão da arte através de categorizações

institucionalizadas pode ser lido em suas palavras:

“A instituição do museu invariavelmente cria auto-referencialidade mesmo onde não está indicada. A questão de como a obra funciona não é colocada. Qualquer tipo de disjunção que a obra possa buscar é eclipsado. O problema da auto-referencialidade não existe quando a obra ingressa no espaço público. Como uma obra altera um lugar específico é a questão, (...) elas passam a ser interesse de outras pessoas133”.

Como parte desse sistema pode-se ler todo tipo de facilitação em relação ao público como

“fetichização” da autoria ou mesmo a estetização da obra no sentido de viabilizar o que Crimp

chama de transformação da arte em mercadoria de luxo para consumo especializado. Desse modo

o que se consumiria de fato seria a aparência das obras e não ocorreria a experimentação que

propõem – ainda que essa mesma “aparência” confrontada com o espaço que a comporta, participe

da proposta do artista em revisar nosso processo perceptivo.

Partindo da definição dos parâmetros que eu utilizo na construção do meu trabalho em vídeo

chamado de Solvente, torna-se possível estabelecer determinadas relações no momento em que este

dialoga com a site especificidade comentada acima em referência ás obras de Richard Serra.

Interessante é que a relação é feita entre trabalhos que fazem uso de linguagens

completamente diferentes, o que numa certa medida reforça a discussão.

Entre a necessidade imediata de exibir meu vídeo dentro do próprio espaço que serviu como

material para sua produção (o atelier da Uerj) e a diferença previsível quando de sua transferência

para um outro local, algo se perderia ou no mínimo deveria ser repensado para que não houvesse

uma total subversão do funcionamento de minha proposta.

Ainda que não haja nenhuma característica arquitetônica que impressione quem ali adentre,

nenhum mobiliário muito característico ou de algum modo especial, o espaço físico do atelier não é

absolutamente neutro. A referência é com um outro tipo de espaço, impessoal como um

estacionamento de shopping ou imenso depósito vazio com seu piso em cimento cinza, as várias

133 Ibid., p.p.163,164. Richard Serra apud Douglas Crimp.

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colunas e vigamentos em concreto, às vezes recoberto com uma demão de tinta branca. Vêem-se

lâmpadas fluorescentes e algumas cadeiras, mesas e armários que poderiam estar em qualquer

refeitório, escola ou almoxarifado e nada lembram os tradicionais espaços de produção de objetos

de arte como, por exemplo, na escola de Belas Artes ou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage.

Solvente (frame) – Vídeo

Atelier do Instituto de Artes UERJ– 2007

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Nelas a profusão de cavaletes, os respingos coloridos e o cheiro característico de tinta para

pintura informam ao público leigo que ele se encontra situado especificamente num local em que

transitam objetos separados do mundo cotidiano. Deixo claro que, apesar desses espaços também

fazerem uso de linguagens convencionalmente lidas como artísticas – a pintura, por exemplo – isso

não os caracteriza como locais de uma produção convencional, mas apenas reforça a idéia de um

“ambiente de arte” àqueles que não fazem parte desse contexto.

No caso do atelier do Instituto de Artes, devido talvez à natureza das experimentações

realizadas, é mais difícil àquele que passa perceber imediatamente que ali se fazem “experimentos

artísticos”. Além disso, está cercado de um lado por uma quadra de educação física, um campo de

futebol e a construção de um futuro restaurante popular universitário.

Note-se que, além da não glamourização, esse espaço não é reconhecido como parte do

convencional circuito de arte contemporânea na cidade do Rio de Janeiro, onde, ainda que

possamos admitir uma ampliação desse circuito, é reconhecida a diferença entre a visibilidade que

se pode atingir com uma mostra de arte nesse local e outra numa galeria ou espaço alternativo já

absorvido pela mídia e freqüentado pelo chamado público especializado.

Tudo isso não vai de modo algum contra a relevância das discussões, das aulas ou eventos de

arte que ocorrem ou podem ocorrer em meio às paredes desse ambiente. São questões interligadas e

ao mesmo tempo diferenciadas, assim como exibir um trabalho plástico para uma banca numa

defesa de tese não é o mesmo que exibi-lo numa galeria ou num evento similar onde a visibilidade

em relação à mídia e ao circuito exercem um peso maior.

Nesse sentido vejo meu trabalho dialogar com questões levantadas por Serra acerca do

mercado direcionador de uma parcela determinada do público mantida dentro de limites – ou

espaços – instituídos para a percepção (e produção) do objeto de arte.

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Ao tornar gradativamente rarefeitas as paredes e o mobiliário do atelier do Instituto de Artes

da UERJ, faço lentamente surgir o mundo ao redor. Vão aparecendo os estacionamentos, as paredes

pichadas, o morro com a favela e tudo aquilo que ultrapassa a segurança institucional. Essa é de fato

a site specificity do meu trabalho. O local desse site specific não é apenas fisicamente o do atelier. É

também a própria condição ambígua de atelier contemporâneo, o lugar do “fazer arte”, num

momento em que as fronteiras entre o espaço da arte e o lugar comum se tornam menos visíveis,

enquanto certas fronteiras conceituais teimam em permanecer∗.

E se o atelier se confundisse com o mundo?

A visibilidade possível do entorno, ultrapassando essas paredes brancas134, sugere uma

contaminação entre o dentro e o fora do espaço de produção e exibição da arte e conseqüentemente

o desaparecimento ou rarefação daquela auto-referencialidade do artista e do próprio espaço.

Se em Splashing o acúmulo de chumbo derretido vinha de encontro à linha divisória que

definia parede e chão, o que se desfaz em Solvente é essa outra linha que delimita o dentro/fora

formado pelas “paredes” (físico/ conceituais) do atelier. Como parede leia-se aqui todo tipo de

aparato específico que permite que se diga “dentro e fora”: o mobiliário, os trabalhos e suas

linguagens, os artistas e o público e o próprio termo atelier.

Dissolvê-lo fisicamente/visualmente é fazer essa oficina de artista se confundir com o mundo

cotidiano a seu redor, como esse mesmo mundo é transfigurado por grande parte da arte

Desde então, o processo Solvente já se desdobrou em alguns vídeos performáticos. Num deles eu, literalmente, lavo com sabão várias imagens fotográficas do interior e do exterior do citado espaço do atelier na UERJ. Aos poucos a água e o sabão vão borrando as fotografias impressas até que reste apenas o papel em branco. Em outro, a câmera está postada atrás de um grande vidro transparente que tem como fundo uma simples parede igualmente branca e vazia; em dado momento, começa não a ser lavado, mas apenas fortemente ensaboado, das bordas para o centro, como no uso do pincel em algumas pinturas de Frank Stella, mas, em sentido inverso; o que vai restando é um espaço central transparente cada vez menor onde, por fim, só é possível avistar um olho piscando.

134 O’DOHERTY, op. cit., p.90. “Se não se pode aposentar sumariamente a parede branca, pode-se entendê-la. Esse entendimento modifica a parede branca, já que seu conteúdo se constitui de projeções mentais baseadas em presunções não enunciadas. A parede é [sic] nossas presunções. É imperativo que todo artista conheça seu conteúdo e o que ele provoca em sua obra”.

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contemporânea, muitas vezes abrindo mão do aparato e das reconhecidas linguagens específicas ao

meio.

Solvente comenta exatamente a linha divisória que, nas palavras de Crimp acerca de

Splashing, desestabilizaria os referenciais de orientação espacial vertical/horizontal separando

parede e chão. Agora a linha que se solve, que se torna borrada e menos definida é a entre o espaço

institucional e seu exterior.

Ainda que não venha solver algum problema∗, meu trabalho focaliza e afirma a questão de

que há uma tensão entre o lugar privado de produção, circulação e recepção da arte e sua proposição

em se transfigurar no mundo, mantendo-se em suspensão entre o derrubar e o restabelecer dessas

fronteiras.

O elemento que solve os conceitos é aqui o elemento visual. Em Solvente o olhar

radiográfico ultrapassa o limite físico subvertendo a autoridade que define os espaços específicos

de atuação, e permitindo ao artista abrir portas através de uma contaminação que viabiliza outras

possibilidades de configurar essas esferas. Todos os empecilhos foram removidos, exceto a “arte”

135.

Parafraseando Martin Grossmann136 na referência a Ceci n’est pas une Pipe (Magrite 1928-

29∗), o mito do espaço (e do artista) é corrompido por uma ação metalingüística a partir de uma

crítica intrínseca que utiliza objetivamente o próprio instrumental do meio em que trabalha, com

isso pretendendo desconstruir uma autoridade tanto da suporte, como da instituição e mesmo do

artista: “Trata-se de uma manobra poética, que não visa a ‘morte’ do suporte, tampouco a do artista,

mas sim possibilitar a extrapolação dos limites impostos por sua estrutura epistemológica137”.

[Do lat. solvere.] Explicar, resolver.135 O’ DOHERTY, op. cit., p.101.136 Ibid., p.11. GROSSMANN, M. apud O’ Doherty: “Isto não é uma galeria de arte”. Ver imagem na página 45.137 O’ DOHERTY, op.cit., p.11.

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Solvente não propõe “eliminar” ateliês ou artistas, mas trazer a discussão acerca do jogo de

regras e princípios da arte de modo consciente, o que poderia de fato colaborar no alargamento de

seu espaço de atuação. O que é demonstrado é o que não se mostra, ou seja, o que está por trás das

paredes, de todos os tipos possíveis de parede.

Há uma relação direta entre Onde/Quem/Quando e Solvente.

No primeiro a porta/fresta entre/aberta ilude o observador como uma possível saída, na

verdade ilusão de ótica; rebatimento pelo espelho que o aprisiona ao espaço interno. No segundo

trabalho, esse olhar agora radiográfico, híbrido da memória e da visão de outros lugares, ultrapassa

a solidez dessas paredes e se perde descobrindo os horizontes.

Horizonte. [Do gr. horízon, ôntos, ‘que limita’ (subentende-se kyklos, ‘círculo’), pelo lat. horizonte.] 138

Coincidentemente, Solvente, assim como Placa de Trânsito, se situam no espaço

intermediário entre dois momentos, duas situações que mantém aparentemente um sentido de

trânsito.

Em 1990 eu me graduava na Escola de Belas Artes da UFRJ.

Em 2007, finalizo o mestrado no Instituto de Artes da UERJ.

A percepção da existência de limites a serem ultrapassados é um dos principais motores dos

trabalhos e há um espelhamento entre a situação destes e a condição do artista que evidencia essa

passagem.

138 FERREIRA, o.p. cit., p.738.

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CONCLUSÃO

No primeiro capítulo, vimos que a consideração de que o encontro sensível com a arte,

sobretudo através da visão, estaria em vias de se perder de vista, não é de modo algum uma idéia

nova. Esta seria antes uma reafirmação conceitual de que uma disciplina como a arte, ao fazer uso

de um instrumental e de todo um imaginário que lhe é característico, necessita ser transcrita por

outra de estrutura verbal, ou seja, numa linguagem que, hipoteticamente, viabilizaria compreensão e

assimilação pública.

A aparente indiscernibilidade visual/material entre arte e cotidiano, somada a declaração de

que a arte conceitual eliminaria a necessidade da visão e mesmo a presença do objeto artístico,

resultou na proposição de Arthur Danto de que a razão de ser da arte estaria para além da

materialidade e mesmo da presença do objeto artístico; nesse sentido o chamado público deveria

buscar o acesso à arte através de outro meio, o que no caso significava a filosofia.

Vimos também que sob a proposta de Danto de tradução da arte pela filosofia, se recoloca

toda uma determinada tradição na abordagem da história da arte, pautada na suposição de que

caberia a essa disciplina – e a outras afins como a sociologia e a filosofia – equacionar as

dificuldades de discernimento imediato por parte de um público que se via frente a obras que bem

poderiam ser confundidas com objetos e gestos cotidianos.

Entretanto, como disse Francastel, essa pretensão estaria ligada ao fato de que essas

disciplinas têm seu desenvolvimento estrutural ligado a um sistema de pensamento da ordem verbal,

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ou seja, à palavra corrente falada e escrita, o que as “legitimaria” ao senso comum como processo

imediato de construção e entendimento da realidade.

O grande problema é que, mesmo sendo uma das bases fundamentais de nossa cultura, o

pensamento/linguagem verbal não é único e, assim sendo, outras formas de pensar e agir participam

ativamente da invenção e produção do vasto imaginário do homem.

Percebemos que é realmente impossível que uma linguagem, ou forma de pensamento, possa

ser traduzida em outra sem que se percam todos os relevos e particularidades inerentes a cada uma.

O resultado seria um achatamento cultural de perdas mais substanciais que os possíveis ganhos, e

isto se agrava se nos referimos a uma instancia que revela extrema complexidade ativo/reflexiva

como a que Francastel chamou pensamento plástico.

Como já foi dito não se propôs aqui um afastamento entre a arte e as outras linguagens – ou

outras formas de pensamento – mas sim evitar que na presunção de facilitar o acesso à obra, se

descarte o embate direto por todo um pensar discursivo/verbal que, pela estreita ligação ao sistema

de linguagem e comunicação de nossa cultura, se arvora da capacidade de levar compreensão e

clareza imediata a tudo àquilo que foge ao entendimento – no caso, todo um complexo imaginário

artístico.

Novamente digo que um trabalho de arte nunca se supõe como substituto de alguma outra

coisa e que todas as artes são, de fato, instrumentos críticos, de modo algum restritos à habilidade e

ao aparato técnico. Nesse aspecto, fica patente que persiste indiretamente no senso comum a antiga

idéia do artista como executor e não como instaurador de imagens, como se ele apenas formatasse,

(e não inventasse) algo previamente existente; possuiria habilidades para produzir coisas ao mundo,

mas que não teria participação crítica e ativa nessa produção – o que significa a arte como artigo de

luxo ou de lazer em separado do universo tido como intelectual.

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Nesse sentido, pudemos investigar acerca de uma possível recuperação de toda uma tradição

histórica baseada em um sistema bipolar – ou bifásico – como foi o medieval, no qual se relaciona a

crença numa realidade superior à não efetivação do contato físico/sensorial com o mundo∗ – o que

concorreria no desprestígio da visão como instrumento de acesso possível ao trabalho artístico e,

logo a seguir, na desconsideração da necessidade mesma de sua presença.

A partir daí relacionamos a imaterialidade do conceito e do espírito como supostas portas de

acesso a uma realidade superior com o crescente envolvimento contemporâneo em uma realidade

chamada virtual. Isso favoreceu a admissão de um possível e híbrido olhar reflexivo e a que

pensássemos uma diferenciação entre olhar e ver, ou ouvir e escutar – cada faculdade englobando

tanto aspectos sensíveis como intelectuais.

Em continuidade, percorremos junto a reflexões de Georges Didi-Huberman e Merleau-Ponty

os caminhos que levam ao encontro dialético do que vê e se percebe olhado, isto somado à

concepção de ver como algo que vai além do olho, mas que não o elimina para a afirmação do puro

conceito.

Recobramos assim outras possibilidades na relação sujeito/objeto, que estaria supostamente

perdida na contemporaneidade, mas agora numa “recuperação” que a pensa enquanto

experimentação e mobilidade nos papéis dialeticamente representados, onde aquele que se crê

sujeito, se permite também a condição de objeto.

Quanto à referida dificuldade de definição de determinada produção de arte frente a sua

semelhança com os objetos do mundo, discutimos os possíveis significados da noção de

representação tendo como base uma reflexão de Nietzsche sobre os ritos dionisíacos e repensamos

todo um imaginário que relaciona imagem e realidade através do mito de Narciso, aqui implicado

na atualização da noção da arte como possível “espelhamento” do mundo.

Como já foi dito é característico dos sistemas bipolares ou bifásicos a idéia de que, a partir de uma dúvida inicial, se propõe hierarquicamente uma realidade em oposição à outra, por exemplo, a imaterialidade em oposição à corporeidade.

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Nessa direção, cogitamos as possíveis “molduras” e “aspas” – literais e conceituais –

utilizadas estrategicamente pelo artista contemporâneo para fazer visível sua produção frente ao que

foi definido como indiscernibilidade aparente.

No terceiro capítulo, o Espaço Intermediário se fez presente focando o olhar reflexivo em uma

série de trabalhos por mim executados e demonstrando a coerência de percurso de um processo que

investiga as formas de visualizar, imaginar e conceituar os horizontes de atuação que permeiam as

diversas instâncias de formatação da contemporaneidade.

É importante ressaltar mais uma vez que esse olhar/reflexão teve sua origem a partir de uma

necessidade de aprofundamento surgida no interior de meu processo artístico, onde afirmo uma

possibilidade de atuação do sensível pela constatação que este abrange muito mais do que se pode

prever.

Asseguro por fim, que os trabalhos aqui apresentados, ao abrirem possibilidade ao discurso,

permitiram ser por ele olhados e assim, dialeticamente falando, viabilizaram que os textos e os

autores aqui discutidos fossem incorporados ao desenvolvimento do meu imaginário/poético.

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