a violência institucional no parto

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  • A violncia institucional no parto em maternidades brasileiras: uma anlise preliminar de

    dados da pesquisa de opinio publica Mulheres Brasileiras e Gnero nos Espaos Pblico

    e Privado - 2010

    Gustavo Venturi Jr.1 ;Janaina Marques de Aguiar2 ;Sonia Nussenzweig Hotimsky3

    Introduo

    A violncia institucional no parto tem sido objeto de denncia e reflexo no interior

    do movimento feminista desde os anos 1980 no Brasil e, a partir da dcada de 1990, tm sido

    tema de pesquisa acadmica4, e de interveno poltica. Porm, a despeito da ampliao do

    acesso aos servios de sade materna no SUS e da implementao de polticas de humanizao

    do parto, abusos cometidos por profissionais de sade contra gestantes e parturientes tm

    comprometido seriamente a sade das mulheres.

    Por se tratar de um fenmeno que se dirige especificamente s mulheres e por assumir

    particularidades em suas manifestaes que se remetem claramente aos valores tradicionais e

    relaes de poder desiguais que permeiam as relaes de gnero em nossa sociedade, ele tem

    sido denominado de violncia de gnero1. Ao mesmo tempo, diversos estudos em distintas

    cidades brasileiras, a grande maioria capitais, tm indicado que este fenmeno no atinge todas

    as mulheres de forma semelhante, havendo diferenas quanto s suas manifestaes segundo

    paridade, estado civil e/ou marcadores de raa e/ou classe social e/ou segundo o servio pblico

    ou privado no qual a mulher atendida1,2,4,5,6,8,10. Vrias destas pesquisas indicam que mulheres

    de camadas populares inclusive temem os maus tratos que podem vir a sofrer por ocasio do

    parto e que frequentemente recebem recomendaes de membros de suas redes de relaes

    acerca de com se portar diante dos profissionais, buscando evitar abusos2,4,5,6,8,10. Os indcios de

    serem os maus tratos uma experincia comum levaram DOLIVEIRA, DINIZ & SCHRAIBER

    (2002) a concluir que a violncia cometida por profissionais em maternidades afetava o acesso e

    a qualidade de servios, repercutindo sobre sua efetividade e a adeso das pacientes. Estas

    1 Socilogo, Prof. Dr. do Dep. de Sociologia, da Faculdade de Filosofia Letras e Cincias Humanas da Universidade de

    So Paulo. 2 Psicloga, Profa. Dra. de Psicologia Mdica da Faculdade de Medicina da Universidade Nove de Julho, So Paulo.

    Co-coordenadora estadual da Pesquisa Nascer no Brasil/Fiocruz 3 Antroploga, Profa. Dra., Professora de Antropologia lecionando distintas disciplinas na Fundao Escola Sociologia

    e Poltica de So Paulo. 4 Publicado em 1981, o livro Espelho de Vnus: identidade sexual e social da mulher, do Grupo Ceres parece ter sido

    pioneira entre as publicaes feministas brasileiras a trazer depoimentos e reflexes acerca da violncia institucional

    vivenciada por mulheres em servios de assistncia sade reprodutiva.

  • autoras sugerem que os fatores responsveis por este fenmeno incluem o processo de

    socializao de profissionais de sade seja durante a formao e treinamento profissional, seja

    no exerccio de suas atividades nos servios de ateno ao parto; a organizao dos servios; e,

    o acirramento da violncia estrutural e de outras manifestaes de brutalidade em nossa

    sociedade. Quatro tipos de violncia so enfocados por DOLIVEIRA, DINIZ & SCHRAIBER

    (2002): (a) negligncia; (b) violncia verbal, incluindo tratamento grosseiro, ameaas,

    reprimendas, gritos e humilhao intencional; (c) violncia fsica, considerada tambm como a

    no-utilizao de medicao analgsica quando tecnicamente indicada; e (d) abuso sexual.

    A pesquisa nacional - Fundao Perseu Abramo -SESC

    Dados de pesquisa nacional efetuada em agosto de 2010 por meio de uma parceria entre

    a Fundao Perseu Abramo e o SESC sugerem que a violncia institucional um fenmeno

    frequente em servios de ateno ao parto. Trata-se de um estudo pioneiro pela sua abrangncia

    nacional. Pela primeira vez temos indicadores da magnitude deste problema de sade pblica

    assim como de algumas de suas manifestaes mais frequentes.

    2.365 entrevistas foram realizadas com mulheres brasileiras de 15 anos e mais,

    distribudas em 176 municpios de 25 Unidades Federais nas cinco macrorregies do pas (N, S,

    SE, NE e C-O), cobrindo as reas urbanas e rurais, estratificadas por porte (tercis macroregionais:

    municpios grandes, mdios e pequenos) e mesorregio. A amostragem foi probabilstica nos

    primeiros estgios (sorteio dos municpios, dos setores censitrios, dos quarteires e dos

    domiclios), havendo controle de cotas de idade no estgio final (seleo das entrevistadas). As

    perguntas referentes ao tema da violncia institucional na ateno ao parto estavam restritas a um

    tero dos questionrios (793), em uma sub-amostra que respeitou a mesma disperso da amostra

    global, acima descrita. Filtradas as entrevistadas que tiveram filhos naturais, a pergunta sobre

    maltrato ou desrespeito em maternidade ou pr-natal foi respondida por 594 mulheres e, excludas

    as que tiveram filhos fora das redes pblica e privada, 542 entrevistadas responderam sobre

    violncia institucional na ateno ao parto.

    Pdese constatar que, quando indagadas diretamente sobre sua percepo de maus

    tratos no atendimento em maternidades e no pr-natal, houve uma menor proporo de respostas

    afirmativas (12%) do que quando as distintas formas de abuso foram descritas e as mulheres

    foram solicitadas a indicar se haviam sofrido uma ou mais daquelas formas de violncia (25%). O

    fato de se reconhecer mais frequentemente os maus tratos sofridos quando estes so

  • especificados e menos quando estes se enquadram em uma categoria e recebem uma

    denominao geral maus tratos - sugere uma aproximao com pesquisas sobre violncia

    domstica nas quais o reconhecimento de uma srie de abusos sofridos no implica no

    reconhecimento de se ter sofrido violncia9. Indicar agresses sofridas aparentemente menos

    complicado do que reconhecer essas formas de agresso como violncia ou maltrato.

    Ao comparar centros urbanos de distintos portes, constatou-se que as mulheres que

    indicaram ter sofrido uma ou mais formas de abuso se encontram em maior proporo nas

    capitais. As respostas afirmativas a esta pergunta aumentam consistentemente segundo o porte

    do municpio variando de 16% em pequenos municpios a 30% nas capitais. Trata-se de uma

    tendncia antes desconhecida e que cabe ser mais bem investigada. Segundo nossa hiptese,

    dois fatores estariam contribuindo para essa tendncia. Estudos mostram que grandes centros

    urbanos sofrem uma sobrecarga maior de trabalho na sade, por um lado pela alta demanda e por

    outro por acordos informais entre profissionais, os esquemas de planto, por meio dos quais um

    nmero menor de profissionais do que previsto pelos organogramas dos servios encontra-se

    efetivamente de planto, facilitado sobretudo pelo anonimato dos profissionais, o que seria mais

    difcil nas cidades pequenas. Alm disso, o fato de haverem poucos profissionais especialistas em

    obstetrcia nas maternidades de pequenas cidades tornaria mais fcil sua identificao e

    responsabilizao por atitudes grosseiras para com as pacientes.

    As experincias de violncia institucional vivenciadas pelas mulheres pesquisadas revelam

    que suas manifestaes so mais frequentes nos servios pblicos (27%) que nas maternidades

    particulares (17%). Esses dados parecem confirmar a percepo, por parte de mulheres de

    camadas populares, que os maus tratos so comuns ou at rotineiros em servios pblicos5.

    Tambm parecem confirmar a hiptese segundo a qual diferentes ambientes scio-clnicos

    produzem diferentes tipos de parto, sendo mais comum a existncia de um ambiente hospitalar

    desfavorvel entre mulheres atendidas no setor pblico4. possvel que essa diferena seja

    associada ao contraste entre o assim chamado parto tpico no SUS, vaginal, intervencionista e

    traumtico, e o parto tpico no setor privado, a cesrea eletiva7, j que esta ltima diminuiria, a

    princpio, o tempo de exposio das parturientes aos maus tratos dos profissionais. Infelizmente,

    os dados de nossa pesquisa no permitem confirmar esta hiptese, pois no perguntamos s

    entrevistadas sobre o tipo de parto (vaginal ou cesrea) que elas tiveram e assim no possvel

    afirmar se a percepo da violncia est associada ao tipo de parto.

  • Agrupamos as formas especficas de abuso que abordamos nesta pesquisa segundo os

    quatro tipos de violncia no atendimento ao parto descrito em DOLIVEIRA, DINIZ e SCHRAIBER

    (2002). Chama ateno que diante das distintas situaes de maus tratos, a violncia fsica foi

    vivenciada com maior frequencia (17%). Diversos estudos anteriores apontavam para os

    problemas de comunicao com os profissionais, isto , a violncia verbal, e o sentimento de

    abandono e a negligncia como os problemas mais salientes da perspectiva das gestantes e

    parturientes2,5,6,8. Nesta pesquisa, entretanto a negligncia aparece em segundo lugar (14%), a

    violncia verbal em 3 lugar (12%), e o abuso sexual por ltimo (1%).

    As formas de violncia fsica mais frequentemente identificadas pelas mulheres so o

    exame de toque feito de forma dolorosa (10%) e ter se negado ou deixado de oferecer alvio a dor

    (10%). Estes resultados sugerem que algumas intervenes efetuadas (ou no) durante a

    assistncia so objeto de questionamentos por parte de parcela das parturientes. Embora se trate

    de procedimentos tcnicos, e, portanto, aplicao do saber mdico, isto no garante que sejam

    aceitos. Pelo contrario, a identificao do toque como doloroso indica um reconhecimento que se

    trata de uma dor infligida desnecessariamente. Cabe acrescentar que o exame de toque doloroso

    no contexto da ateno ao parto frequentemente sinaliza a aplicao de uma manobra comum, a

    dilatao manual do colo do tero, que tem por intuito acelerar o trabalho de parto e , alm de

    desnecessria, proscrita5. Afirmar que se negou ou deixou-se de administrar alvio a dor sugere

    que h uma expectativa de receber algum tipo de alvio. Estamos lidando com expresses da

    crise de confiana na medicina tecnolgica que no se restringem a questionamentos e crticas no

    mbito da relao mdico/paciente, mas tambm envolvem a relao com a tcnica.

    A violncia verbal, tal como a fsica mais freqente na rede pblica (14) do que na rede

    privada (5%). Trata-se, em ambos os casos, de diferenas significativas entre as redes. A

    violncia verbal se explicita com freqncia (23%) por meio de jarges pejorativos e moralistas,

    como pudemos constatar em outra questo. Frases estereotipadas como Na hora de fazer no

    chorou, mencionadas em estudos brasileiros8 e internacionais, fazem parte das estratgias de

    que lanam mo os profissionais de sade no intuito de disciplinar as pacientes, compondo parte

    do currculo oculto no processo de socializao profissional, dentro e fora dos hospitais-escola10.

    5 Essa manobra, efetuada em centros obsttricos de hospitais-escola constitui uma dos aspectos do

    currculo oculto, isto , uma das tcnicas condenadas formalmente nos livros-textos e manuais de obstetrcia, mas ensinados por preceptores no exerccio da prtica como um dos meios de se acelerar o trabalho de parto.

    10

  • No h diferena significativa quanto percepo da negligncia nas redes publica e

    privada, isto , as mulheres atendidas em ambas frequentemente se queixam que os profissionais

    se negaram a atend-las ou lhes negaram informaes sobre determinados procedimentos que

    estavam realizando. Por outro lado, h diferenas significativas quanto s percepes de

    negligencia segundo a escolaridade. Sugere-se que mulheres com grau de instruo maior, no

    caso ensino superior, tendem provavelmente a ter expectativas maiores quanto s informaes

    que os profissionais deveriam lhes fornecer em relao aos procedimentos realizados.

    Consideraes Finais

    Pode-se perceber que a distribuio da violncia institucional comporta diferenciaes

    segundo o tipo de abuso, a rede de servios e/ou a escolaridade. Por outro lado, no houve

    diferenas significativas quanto s freqncias de violncia por marcadores de raa. Sugere-se

    que as interseces entre gnero e classe social produzem distintas formas de reproduo

    estratificada conforme as manifestaes de violncia observadas. Dada sua magnitude e

    gravidade, caberia aprofundar nosso conhecimento sobre o tema, estudando outras formas de

    violncia que emergem em estudos locais e suas relaes com os tipos de parto produzidos.

    Tambm caberia ver se h variaes quanto a profisso do prestador da assistncia.

    As prticas descritas implicam em violaes de direitos humanos, entre as quais se

    incluem o direito a integridade corporal, autonomia, a no discriminao, sade e a garantia do

    direito aos benefcios do progresso cientfico e tecnolgico. A freqncia dos comportamentos

    aferidos aponta para uma banalizao dessa violncia, indicando a relevncia de se problematiz-

    la em programas de formao e capacitao profissional com vistas ao seu enfrentamento.

    Referencias bibliogrficas

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