a vida de todos nós

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A Vida de Todos Nós Mauro Souza Por certo tem sido um dia comum, ordinário, não muito diferente dos dias passados. A enxaqueca insisti em não me deixar sozinho por muito tempo, e ainda tem a festa que prometi que iria – eu disse até breve aos companheiros no meu trabalho. A expectativa é presente aqui e lá. Talvez mais lá do que aqui. Veria as mesmas pessoas, ouviria as mesmas conversas e pouco riria das mesmas anedotas. Um, dois, três copos de vinho, música alta e a Sandra em seu vestido justo. Depois que destranquei a porta e chutei os sapatos no canto do quarto, pensei em jogar o meu corpo na cama. Parecia ser um plano razoável, e por um segundo me senti livre das garras sedutoras da festa. Se eu apenas dormisse por um momento, um momento longo, ninguém iria notar a minha ausência. Seria uma pessoa sem importância. Me desfiz da bolsa tiracolo no corredor. Um cheiro mofo me envolveu, como se viesse de um quarto que não havia sido aberto por um longo tempo, mas estava demasiadamente cansado para investigar. Minha mão apalpou a parede em busca do interruptor de luz, e algo peludo tocou a minha mão, sem poder alcançar o interruptor, caminhei na direção contrária. Quando me dei por mim estava deitado de costas na cama. A cama era macia, e havia um cobertor muito fino e azul sobre mim. Olhando para o alto, vi a luz que vinha da velha cortina da janela do quarto de dormir. Essa estranha cortina, fora da moda dos dias de hoje, estava amarelada, tinha um cordão torcido de fios dourados pendurado, com um nó desproporcional amarrado na ponta. Havia uma mancha familiar na cortina, talvez água, que mais parecia com uma cabeça de leão que sai de uma rosa, e me sentei na cama com um suspiro apático e satisfeito. Do outro lado do quarto, na parede oposta, estão duas gravuras com molduras cor-de-rosa, que por vezes olhei sem

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Pequeno conto surrealista - Mauro Souza

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A Vida de Todos NósMauro Souza

Por certo tem sido um dia comum, ordinário, não muito diferente dos dias passados. A enxaqueca insisti em não me deixar sozinho por muito tempo, e ainda tem a festa que prometi que iria – eu disse até breve aos companheiros no meu trabalho. A expectativa é presente aqui e lá. Talvez mais lá do que aqui. Veria as mesmas pessoas, ouviria as mesmas conversas e pouco riria das mesmas anedotas. Um, dois, três copos de vinho, música alta e a Sandra em seu vestido justo.

Depois que destranquei a porta e chutei os sapatos no canto do quarto, pensei em jogar o meu corpo na cama. Parecia ser um plano razoável, e por um segundo me senti livre das garras sedutoras da festa. Se eu apenas dormisse por um momento, um momento longo, ninguém iria notar a minha ausência. Seria uma pessoa sem importância.

Me desfiz da bolsa tiracolo no corredor. Um cheiro mofo me envolveu, como se viesse de um quarto que não havia sido aberto por um longo tempo, mas estava demasiadamente cansado para investigar. Minha mão apalpou a parede em busca do interruptor de luz, e algo peludo tocou a minha mão, sem poder alcançar o interruptor, caminhei na direção contrária.

Quando me dei por mim estava deitado de costas na cama. A cama era macia, e havia um cobertor muito fino e azul sobre mim. Olhando para o alto, vi a luz que vinha da velha cortina da janela do quarto de dormir. Essa estranha cortina, fora da moda dos dias de hoje, estava amarelada, tinha um cordão torcido de fios dourados pendurado, com um nó desproporcional amarrado na ponta. Havia uma mancha familiar na cortina, talvez água, que mais parecia com uma cabeça de leão que sai de uma rosa, e me sentei na cama com um suspiro apático e satisfeito.

Do outro lado do quarto, na parede oposta, estão duas gravuras com molduras cor-de-rosa, que por vezes olhei sem me aperceber que estavam lá. Em uma está a silhueta de um gato caricatural vestindo um smoking com um cravo branco na lapela e um chapéu-panamá que refletia luz diretamente nos meus olhos. Na outra, um gato em esquis, usando protetores de ouvido azuis e sentado em um banco de neve. Quando criança, eu costumava olhar da minha cama para esses gatos-metade-humanos e os imaginava como parte significativa do

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meu pequeno universo. Há também outros objetos familiares, a pequena estátua em louça esmaltada de Nossa Senhora Aparecida, que me parecia triste com os olhos melancólicos. Ao lado está uma pequena estante com livros, na sua maioria de conteúdo infantil.

A sombra provocada pela luz que vinha do lado de fora, trouxe por um segundo a presença de minha mãe naquele quarto. Embora ela não estivesse mais viva, esta sombra me trouxe a sua lembrança. “Mãe?” esta foi a minha reação natural, e a sombra voltou a ser somente sombra no quarto pouco iluminado.

Joguei novamente o meu corpo na cama, pensei em ir à festa. Neste momento a imagens do teto se transformaram em um animal selvagem que invadira a minha solidão sem pedir permissão. Seria essa besta selvagem que tocou a minha mão? Eu disse, “Se eu abrisse a janela, esta besta poderia fugir e me deixar em paz”. O animal atravessou o quarto, saltou pela janela e me deixou somente com a brisa fresca. Ainda pensando naquele momento inesperado, olhei para as árvores que deveriam estar no quintal, goiabeira, pessegueiro, e o opulente abacateiro. Quando era garoto, o quintal era o meu lugar predileto, meu porto seguro, por vezes me escondi da vovó entre os galhos da goiabeira. Naquele quintal eu era invencível e o abacateiro conhecia todos os meus segredos.

“Como eu cheguei aqui?” me perguntei. A minha voz parecia fraca e nostálgica. Pelo menos a besta selvagem foi embora.

Num sobressalto comecei a olhar ao redor. Alguns dos meus objetos ainda estavam nas prateleiras, livro do Robinson Crusoé, Moby Dick, Poesias do Fernando Pessoa e seus heterônimos, coleção do Machado de Assis, revistas do Batman, Super-Homem, e tantas outras. Por muitas vezes eu pensei em nossa antiga casa, e estava certo que poderia me lembrar perfeitamente de tudo, mas havia tantos objetos que eu havia esquecido, como o Mapa Mundi ao lado da porta e o armário do corredor. Lá estava na prateleira o álbum de fotos da família e logo abaixo, as roupas da minha mãe que cheiravam a naftalina.

O banheiro continuava o mesmo, com azulejos de cor azul claro e piso de cerâmica beije. Meu pai reformou o banheiro inúmeras vezes e finalmente o entregou desta forma à família. Olhei para o canto em direção a sala, e me perguntei se o meu devaneio estava completo.

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Estava. O velho sofá marrom, a poltrona predileta de meu pai, a televisão de 20 polegadas, tudo parecia em seu devido lugar.

Sentei-me por um momento na poltrona de meu pai e fiquei em paz. Depois atravessei o tapete trançado em direção ao quarto dos meus pais; a besta selvagem estava lá, deitada ao lado, só, como a minha mãe costumava deitar nas tardes.

Eu sabia exatamente o que fazer e não estava com medo.

Caminhei ao redor da cama e me sentei ao lado do animal. Fiquei bem próximo dos seus quadris, a besta agitada olhou em meus olhos. O animal estendeu a mão e colocou a sua pata grande sobre o meu braço. Exatamente do jeito que minha mãe costumava a fazer. Deitei-me ao lado, a besta me abraçou junto ao seu peito.

Ficamos assim por um longo tempo, em grande contentamento; quando acordei, a besta tinha ido embora. Sentia frio em minhas costas, e um sopro frio veio da janela, fazendo com que a cortina ondulasse preguiçosamente. Ao longe se ouvia o som da cidade agitada com seus carros orquestrando o som da cidade grande.

Na cozinha a besta selvagem aguardava sentada à mesa as batatas que estavam sendo preparadas e quase prontas a serem servidas. Ela olhou para cima e ignorou a minha presença. Se podia ouvir ruídos vindo do outro lado da cozinha, como o som da minha irmã fazendo suas lições de casa, ou recortando as imagens de revistas. Havia uma pequena besta selvagem fazendo exatamente isso, com uma pequena tesoura de plástico vermelho, cortava as imagens de animais das revistas antigas. Ajeitava os recortes sobre a mesa: uma vaca, uma girafa, dois cachorrinhos e um elefante.

Sentei-me na minha cadeira predileta. O pequena besta selvagem se instalou debaixo da mesa e chutava o pedestal da mesa redonda com o seu pé em forma de V, exatamente como a minha irmã costumava fazer quando estávamos à mesa. Os seus chutes eram aporrinhação, e fiquei impassível, recebi os chutes sem reclamar ou retaliar. Em vez disso, eu peguei uma revista da pilha que estava ao lado do armário da cozinha e comecei a folheá-la. Era a revista O Cruzeiro de 18 de abril 1953 – que já foi para o Brasil a “televisão de papel” antes de eu nascer, mas meus pais estavam lá em 1953. Folheei a revista que tinha a figura de uma linda mulher na capa com

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um vestido vermelho, havia a notícia da pancadaria na Praça da Sé – Comunistas, punguistas e vadios agitam São Paulo. Um anúncio do Creme Dental Gessy. Houve um editorial contundente sobre a Coréia - e termina o derramamento de sangue; eu não sabia muito sobre a guerra. As Belas de Santa Maria - pela primeira vez num hospital um concurso de beleza. Eu nunca pensei sobre 1953, no entanto, um ano todo na vida daquelas pessoas, todo um ano de história, um ano inteiro que, de certa forma, moldou os próximos anos. Eu não queria que o monstrinho selvagem de patas em forma de V cortasse as figuras daquela revista, então a escondi embaixo da mesa entre a minha coxa esquerda e o assento da cadeira.

O relógio cuco na parede da sala estava parado e apontava 3:15, parou a tarde ou durante a madrugada? Meu pai era o responsável em fazer com que o relógio cuco funcionasse precisamente como o Great Bell do Palácio Westminster de Londres. Ele entrou pela porta dos fundos, descansou o chapéu e o guarda-chuva na chapeleira como costumava fazer. Cumprimentou a todos e não olhou em meus olhos. Caminhou em direção ao cuco e se fez certo de que as horas estavam devidamente de acordo com o seu relógio de pulso, puxou as cordas e suspirou satisfeito. Mais alguns passos e alcançou o seu copo predileto, encheu-o com gelo e gin e apenas uma pitada de vermute. Olhou ao lado e tirou o pote de amendoim seco assado do armário, colocou um pouco em uma pequena tigela e chacoalhou-a até que todos os grãos de amendoim estivessem nivelados. Então sentou-se. Em breve o jantar seria servido: batatas, ervilhas, pequenos bifes de vaca cobertos com cebolas e arroz com feijão. Abri lentamente os olhos e estava com fome.

Desejei muitas vezes voltar à minha casa de infância. Por anos eu sonhei e tive pesadelos com a casa e com cada um dos seus cantos. Os monstros e monstrinhos selvagens nunca saíram de lá. Faziam parte da casa. Nos sonhos eu estava naquela casa, nos pesadelos a casa estava em mim, e eram diferentes. Em outros sonhos a casa estava em vales profundos, e não havia vizinhos, ruas ou cercas. Nada era parecido com a casa onde vivi a minha infância. Era feliz lá, a casa e o bairro não eram bonitos. Não pude entender porque ela tem me assombrado por todos esses anos.

Agora eu vejo que além da cerca que havia em volta, existiam campos, matos e capim que foram substituídos por casas e prédios modernos. O poço fora tapado por motivo cautelar da administração municipal. O quintal dos fundos estava limpo,

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sem latas ou lixos. As paredes nunca foram grafitadas, para a minha surpresa. Tudo estava como antes, seus objetos e seus monstros. Caminhei lentamente lado a lado com o pequeno animal selvagem, parecia que queríamos investigar algo que nunca tinha sido revelado. Sentei-me no velho banco de madeira rústica, lugar predileto de leitura de minha mãe. Talvez esta brisa que vem e que vai poderia iluminar a minha alma e seria o suficiente para mim.

Certa vez encontrei um cordão prateado no nosso pequeno quintal. Era um cordão pequeno com um camafeu e uma pedra pérola esculpida, cheio de lama. Minha mãe o lavou no tanque de roupas que ficava do lado de fora da casa. Nunca tinha visto algo assim, era o tesouro que eu encontrara. Comecei a cavar buracos no quintal, com esperanças de encontrar mais relíquias e antiguidades para agradá-la. Imaginei que soldados romanos passaram por ali quando marchavam em direção as batalhas. Ou então Aníbal e os elefantes em direção aos Alpes. O solo onde morávamos era muito duro e difícil de cavar. Continuei cavando. Gostava de ter um projeto em andamento. Toda semana um buraco a mais, na esperança de encontrar alguma coisa.

Este interlúdio, ou o que quer que fosse, continuou. Dias se passaram e não me lembro quando encerrei a minha carreira de caçador de tesouros. Eu mal posso me lembrar da minha vida recente. Tudo acontecia lentamente, pessoas entravam e saíam sem deixar ganho algum. Me perdi de tudo e de todos, e estar aqui não me faz feliz ou infeliz. Meus ambientes se tornaram sem importância para mim, e sempre que troco de emprego, me mudo para outro apartamento que não é melhor nem pior que o anterior. e não têm nada de comum um com o outro.

Agora estou aqui e caminho nos caminhos que caminhei na infância, olho para as casas dos amigos que deixaram de existir a muito tempo. Suas imagens se desfizeram como se desfaz a neblina da manhã. As árvores, animais e casas pareciam estar com formas e tamanhos adequados. Só os monstros continuavam os mesmos. Eu estava saboreando cada detalhe icônico. Cada encontro com as sombras, monstros e objetos me emocionava de uma forma que é impossível de descrever, e ás vezes eu me vi sorrindo tão apaixonadamente que as lágrimas vieram aos meus olhos, pura nostalgia.

E assim prossegui, curtindo cada momento, investigando todas as velhas gavetas e armários em minha casa, examinava os artefatos simples, aqueles quase sem importância, aceitando

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cada pequena ou grande besta selvagem que encontrasse no caminho. O abraço destes monstros selvagens eram dóceis, suaves e quentes. O monstrinhos brincavam alegremente, sem muita complicação. Não precisei ser outra pessoa para que eles me entendessem, não precisei lutar para me expressar, me senti incluído e estimado, e isto era o suficiente. Entendi que as palavras tinham sido a minha ruína, que, ao tentar me explicar por cada ação que havia tomado, causava um abismo entre mim e as outras pessoas. Talvez as palavras são más, talvez têm algo de diabólico entre elas.

As vezes, depois de passar uma longa tarde retirando livros das prateleiras, olhando os epígrafes, ou, na verdade, lendo-os de fato para adquirir um conhecimento maior sobre a vida e seus aspectos, eu me via sem rumo, perdido num lugar desconhecido, nestes momentos os monstros, animais selvagens e bestas vêm em círculo e me abraçam empaticamente. Existe um prazer em seus corpos quentes e suaves, e na maneira como respondem aos meus sentimentos sem se preocuparem com as minhas palavras.

Eles me alimentam com coisas antigas e novas, com lembranças, sonhos, pesadelos e realidade. O real se faz impossível, e o que é impossível se torna real. A mulher de voz macia e sem fisionomia me visita regularmente, toca os meus cabelos de uma maneira que só as mães sabem tocar. Me prepara banhos com águas perfumadas e quente, como se tivesse prazer de estar e cuidar de mim. Não usa roupas, a minha nudez é aceita, apesar das roupas estarem sempre passadas e empilhadas no guarda-roupas. O tempo colaborou com toda essa bondade que a vida me apresenta, com dias ensolarados, brilhantes e quentes. Eu estou sozinho no meio deles. Não existe a necessidade de se explicar uns com os outros, e nem reconhecer que se tem a mesma opinião.

Eu costumava comer goiaba no quintal ou um pêssego, direto do pé, mas as árvores que me conheciam por muito tempo, morreram de doença e foram derrubadas.

Estar só é uma virtude, não estou só quando estou só. A minha presença é agradável a mim mesmo, as palavras que cruzam a minha mente fazem sentido, e não existe conflito se acaso não fizerem nenhum sentido. Na essência sou eu.

Olhando ao redor do meu quarto, vi um livro na minha estante que me fez lembrar um incidente que havia esquecido há muito tempo. Tinha algumas frases no livro que me causaram alguns

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problemas, e, folheando as páginas desgastadas eu as reencontrei rapidamente. Jean Paul Sartre e a Náusea: “O corpo vive sozinho, uma vez que começou a viver. Mas o pensamento sou eu que o continuo, que o desenrolo. Existo. Penso que existo. (...) O meu pensamento sou eu: por isso é que não posso deter-me. Existo porque penso... e não posso deixar de pensar. Neste momento preciso - é odioso -, se existo é porque tenho horror a existir. Sou eu, sou eu que me extraio do nada a que aspiro: o ódio à existência, a repulsa pela existência, são outras tantas maneiras de a cumprir, de mergulhar nela. Os pensamentos nascem por trás de mim como uma vertigem, sinto-os nascer por trás da minha cabeça... se ceder, virão pôr-se à minha frente, entre os olhos - e cedo sempre, o pensamento avoluma-se, avoluma, e fica enorme, a enche-me todo, a renovar-me a existência”. De repente um contentamento, a minha existência não precisa se explicar, basta ser o que é. As bestas selvagens têm muito a dizer sobre isto.

Enquanto criança, nós não pensamos no sentido da vida. Vivemos o momento. Inexplicáveis impulsos nos conduzem as descobertas novas e também nos colocam em situações embaraçosas e muitas vezes perigosas.

A minha professora da sexta série era uma mulher alta com pernas bem torneadas, que eram bem visíveis em suas minissaias no final dos anos 60. Certo dia eu inclinei a minha cabeça ao máximo para que tivesse uma boa visão de suas pernas. Fui pego no ato. Ela me levou ao Dr. Ivo, diretor da escola. Não era a primeira vez que eu agia assim, e não me parecia justo a punição. Estava sendo quem eu era, um garoto descobrindo a sensualidade humana. A punição causou-me muita confusão e distorção da realidade.

“Por que ela se importou tanto com a minha atitude?”

Talvez ela pensou que eu estava tentando interromper sua aula. Eu não deveria olhar para sua pernas para que a aula prosseguisse sem perturbações.

“É exatamente isso...” Devo me comportar de acordo com os padrões morais estabelecidos, assim o mundo não entrará em colapso.

Eu não penso que a minha professora me odiou, ou odiou o estranho prazer que eu tive em provocá-la. Ela era uma

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mulher dócil e gentil com pernas que chamavam a atenção. Talvez já tenha falecido, enterrada e esquecida.

Voltei para a sala e sentei-me mais uma vez na poltrona predileta do meu pai. As coisas da infância estão distantes e ao mesmo tempo presentes.

Então, quando os meus pensamentos me disseram que eu existo, passei a acreditar que mereço todo esse calor e conforto, e as bestas selvagens começaram a se movimentar com grande agitação; estava claro que alguma coisa havia mudado. Teria que existir alguma explicação para toda essa comoção.

Na verdade eu parei de questionar a natureza dessa realidade, o que provocou confusão na ordem das coisas. Eu não sabia como era o mundo além da minha realidade – se o mundo era como sempre foi, ou se essa realidade era apenas um universo dentro do mundo real? Devo ficar neste universo, ou devo sair?

Saímos apressadamente, todos de uma vez, à noite.

Corri como nunca havia corrido antes, precisava acompanhar os passos largos das bestas selvagens em torno de mim, que pareciam me proteger de algo ruim que estava para acontecer. Corremos por uma longa viela que nos levaria para outro lado em direção a cidade. Agora longe do passado e da casa da minha infância, cercado pelos monstros que agora me acompanham, me resta viver o presente. Continuamos correndo e descemos a ladeira como se estivéssemos sendo perseguidos, embora não havia ninguém atrás de mim. Não podia ver ou ouvir nada. Quando, exausto, parei para recuperar o meu fôlego, os animais formaram um círculo os meu redor. Nesta inusitada ação eu me senti protegido. Então seguimos para a cidade baixa. Um dos monstros resolveu liderar o caminho sob um céu de estrelas prateadas.

“Qual o perigo que estou correndo?” Confiei neles completamente. Por certo eles me conheciam muito bem. Estiveram sempre comigo, embora eu nem sempre estive com eles.

Passamos por bares e botequins, e agora caminhamos lentamente. À frente, a luz de um poste no escuro me atraiu. Uma estranha forma surgiu na penumbra. Deixei os meus acompanhantes e segui em direção àquela forma desconhecida. Neste momento, todos os meus monstros se viraram contra mim.

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Me agarraram pelos ombros e não me deixaram caminhar. Eu estava sufocado e envergonhado. Me levaram em outra direção contra a minha vontade. Depois de alguns minutos, pude respirar e fui liberado.

As bestas selvagens continuavam agitando os braços aleatoriamente e eu pude entender que estavam decepcionados comigo. Me cercaram novamente e me olharam com os seus olhos selvagens. Quando querem podem descarregar um grande peso de culpa nos meus ombros. Mas não era necessário uma explicação. Mais uma vez o meu impulso para coisas novas causou confusão e distorção da realidade.

Não foi a primeira vez que as bestas selvagens ficaram com raiva de mim; sempre que isto acontecia eu me sentia inseguro, desanimado e desprotegido. Eu não escolhi esses monstros, eles me escolheram. São como a sombra do meu corpo.

Eu não tenho as competências linguísticas pragmáticas. As palavras para mim tem um tom malévolo, e por vezes fizeram com que o mundo em minha volta se revoltasse contra mim. Isso significa que, mesmo que eu pareça inteligente, eu não sei como falar com as pessoas no dia-a-dia. Seria isso verdade? Será que não sei falar com as pessoas sem a ajuda das bestas selvagens? Talvez um fale a linguagem que só as bestas entendem. Uma língua estranha.

Para o bem da verdade, eu sempre quis dizer algo que traduzisse os meus pensamentos e sentimentos, mas nem sempre é fácil encontrar as palavras que expressam a realidade do meu universo. Talvez eu não estava realmente falando; talvez eu só estava ouvindo.

As bestas continuaram a caminhar. Eu não tinha ideia que horas eram, mas estava cansado. Ainda tinha a festa para ir. Segui com eles. Chegamos em um lugar alto, onde se podia ver um viaduto. Havia vários caminhões estacionados na escuridão. Alguns deles estavam com a luz da cabine acesa. De repente a porta de trás dos caminhões abriram e outros monstros apareceram. O cheiro dos animais misturado com cheiro do diesel era forte. Entrei em pânico e me agarrei em um dos meus monstros por medo de me separar deles. Cansado, eu encontrei um lugar confortável para descansar a minha cabeça por um momento, sobre a coxa de uma besta selvagem, e me senti aliviado, pois entendi que tinha sido perdoado.

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Quando acordei, estava em um lugar que nunca estive antes. Um lugar deserto, empoeirado e seco. O ar estava quente, e uma areia fina soprava sobre nós. Uma mulher se aproximou de mim, ela me acenou com um lindo sorriso, e não se importou em ver que eu não era uma das bestas selvagens.

Ela provavelmente tinha trinta e poucos anos, pele escura e cabelos soltos. Usava uma jaqueta escura por cima de uma camiseta branca, com calça jeans justa. Seu olhos eram negros e vivos, e seu olhar meigo. Os pés calçavam sandálias presa no dedão-do-pé. Não era magra e nem gorda. E quando se movimentava trazia consigo uma sensualidade única. Ela se parecia muito com uma amiga do colégio.

Ela se aproximou e não disse nada, não era necessário dizer alguma coisa. Sua presença era mais expressiva do que as palavras. Me ofereceu um pouco de água. Aceitei prontamente para aliviar o calor que sentia. Queria dizer alguma coisa, e perguntei: “Onde estamos?” Não obtive resposta.

Eu estava com fome e curioso. Afinal quem é essa mulher? O que faz aqui no universo da minhas ideias e devaneios? Eu a segui com os olhos até um banco onde se sentou e passou a olhar para o nada. Acenei para ela.

Me aproximei e perguntei: “Você pode me entender”?

“Algumas vezes”, ela disse.

“Porque estamos aqui?”, perguntei.

Ela se levantou foi até um dos caminhões e trouxe café. Eu não fiz outra pergunta e tomei o café. O seu cabelo ao vento me trouxe paz. Me senti seguro, coisa que não acontecia sem a presença das bestas selvagens. Ela não era a menina do colégio, e não tínhamos um passado em comum.

Algumas das bestas selvagens começaram a desaparecer. Para onde foram? Talvez estejam morrendo. Comecei a procurá-las até que me deparei com uma que de certa forma lembrou a minha mãe. Ela estava deitada, ofegante, e com grande esforço procurava respirar. Ela era de pequena estatura como minha mãe. Segurei a sua mão e senti falta da minha mãe. Não pude estar no seu enterro. Quando a minha mãe morreu eu chorei ridiculamente, e não conseguia construir a sua imagem em meus pensamentos.

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Sentei-me com a mulher no meio da noite, quando o céu estava muito negro e as estrelas brilhavam. Segurei a sua mão. Estava com fome. Estava com frio. Eu tinha uma consciência. Eu tinha alguém. Eu não fui suficientemente feliz, nem infeliz.

Quando a aurora rompeu, eu estava só. Um contentamento invadiu todo o meu ser. Eu sou aquilo que sou. A festa... acabou.