a viagem na arquitectura portuguesa

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RESDOMUS plataforma editorial de cruzamento e de divulgação de cultura arquitectónica grupo I&D Atlas da Casa | Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo | 2009 A viagem na Arquitectura Portuguesa do século XX. José Fernando Gonçalves Palavras chave: arquitectura, viagem, experiência, conhecimento. Resumo A viagem de arquitectura marcou o pensamento e produção arquitectónica da modernidade, quer porque a experiência da viagem revelou que o conhecimento em arquitectura incorpora necessariamente uma aproximação sensorial ao espaço construído, quer porque no trânsito das ideias e culturas que esta proporciona, a história se redescobriu como uma ferramenta de projecto que propõe uma metodologia geradora de novas sínteses: ao desenhar, o arquitecto moderno questiona as formas do passado diferentemente, porque as vê com o pensamento e interpreta com a necessidade. Viajantes I – Viagens, viajantes e registos de viagem A viagem de arquitectura marcou o pensamento e produção arquitectónicas da modernidade, quer porque a experiência da viagem revelou que o conhecimento em arquitectura incorpora necessariamente uma aproximação sensorial ao espaço construído, quer porque a história se redescobriu como uma ferramenta de projecto bem mais profícua que um mostruário de estilos. O sentido e programa da viagem teve diferentes consequências na produção arquitectónica, mas no trânsito das ideias e culturas que esta proporcionou e que vai da Idade Média às primeiras décadas do século XX, podemos traçar a evolução de um percurso que fundou uma metodologia de projecto única e verdadeiramente moderna. Se olharmos a viagem dos arquitectos modernos, comparando as suas notas e experiências de viagem com as dos arquitectos e escritores que fizeram o Grand Tour de XVIII e XIX, percebemos que se para o

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Texto sobre a importância da viagem no contexto da arquitectura portuguesa.

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    grupo I&D Atlas da Casa | Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo | 2009

    A viagem na Arquitectura Portuguesa do sculo XX.

    Jos Fernando Gonalves

    Palavras chave: arquitectura, viagem, experincia, conhecimento.

    Resumo

    A viagem de arquitectura marcou o pensamento e produo arquitectnica da

    modernidade, quer porque a experincia da viagem revelou que o conhecimento

    em arquitectura incorpora necessariamente uma aproximao sensorial ao

    espao construdo, quer porque no trnsito das ideias e culturas que esta

    proporciona, a histria se redescobriu como uma ferramenta de projecto que

    prope uma metodologia geradora de novas snteses: ao desenhar, o arquitecto

    moderno questiona as formas do passado diferentemente, porque as v com o

    pensamento e interpreta com a necessidade.

    Viajantes I Viagens, viajantes e registos de viagem

    A viagem de arquitectura marcou o pensamento e produo arquitectnicas da

    modernidade, quer porque a experincia da viagem revelou que o conhecimento

    em arquitectura incorpora necessariamente uma aproximao sensorial ao

    espao construdo, quer porque a histria se redescobriu como uma ferramenta

    de projecto bem mais profcua que um mostrurio de estilos.

    O sentido e programa da viagem teve diferentes consequncias na produo

    arquitectnica, mas no trnsito das ideias e culturas que esta proporcionou e que

    vai da Idade Mdia s primeiras dcadas do sculo XX, podemos traar a

    evoluo de um percurso que fundou uma metodologia de projecto nica e

    verdadeiramente moderna. Se olharmos a viagem dos arquitectos modernos,

    comparando as suas notas e experincias de viagem com as dos arquitectos e

    escritores que fizeram o Grand Tour de XVIII e XIX, percebemos que se para o

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    conhecimento do territrio se repetem essencialmente os mesmos percursos,

    tendo por vezes os mesmos escritores e guias de viagem como referncia, nos

    resultados produtivos desse contacto com a histria e arquitecturas do passado

    encontramos diferenas essenciais. E essas diferenas resultam sobretudo do

    modo como o homem se coloca perante o passado: o arquitecto moderno

    questiona a histria diferentemente, porque a v com o pensamento e interpreta

    com a necessidade.

    As duas primeiras dcadas do sculo XX apresentam as mais relevantes

    mutaes no contexto das viagens de arquitectura de longa durao, porque

    coincidem e participam no trnsito e contaminao das ideias que naquele

    perodo acompanham o emergir das vanguardas artsticas. Com diferentes

    imperativos do regresso s origens levado a cabo no renascimento, os

    mentores da modernidade procuram no passado novos fundamentos para a arte

    da ps-revoluo industrial, num sentido que vai para alm do seu mimetismo

    lingustico. A sntese operada atravs dessa experincia de viagem ir resolver a

    esterilidade de um processo criativo que se inicia com o mote da mquina e da

    produo em srie. Ser o tema e consequncias das viagens de Lewerentz,

    Asplund, Le Corbusier, Aalto, Mies, Taut, ou Kahn.

    Lembre-se que, num dos mais clebres Grand Tour deste perodo, Le Corbusier

    comea a viagem pelo Oriente numa demanda de um territrio virgem e

    descontaminado dos efeitos perversos da industrializao, para assim descobrir

    o processo particular de sntese entre a artesana e a expresso cultural mais

    avanada. A viagem, a descoberta, a leitura e a interpretao so "provocadores

    de emoo" que lhe permitem superar o determinismo do discurso moderno e o

    estril debate sobre a arte aplicada, mas o que o distingue essencialmente dos

    arquitectos do Grand Tour do passado a noo de "recomeo" a partir de um

    estado puro que associa definio de um homem novo, caracterizado no

    manifesto Esprit Noveau e Vers une Architecture (1923). Nesses textos

    manifesta a apologia da esttica e arquitectura dos engenheiros com que

    resolver a tradicional dicotomia produtiva dos engenheiros e arquitectos; mas

    tambm um mtodo de lidar com a histria da arquitectura que explicita com a

    analogia entre a evoluo dos modelos de carros de 1907 a 1921 e a evoluo de

    Paestum para o Prtenon.

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    Esse filo da histria como ferramenta operativa para o projecto moderno, seria

    responsvel pela complexidade dos sentidos e expresses que a arquitectura

    moderna viria a incorporar. Em ltima anlise constituiu uma possibilidade de

    construo de identidade alternativa exigida pela presso da indstria e da

    metrpole, como nos demonstra a arquitectura moderna nrdica.

    I. A viagem na arquitectura portuguesa

    No foi o que aconteceu na construo da identidade moderna Portuguesa. Do

    mesmo modo que a ausncia de industrializao e da metrpole teve

    consequncias decisivas nos modelos de crescimento das cidades portuguesas e

    na produo arquitectnica, tambm os resultados da viagem nas primeiras

    dcadas do sculo XX tiveram diferentes ou nulos efeitos.

    Ao falar de arquitectura e viagem em Portugal ser importante comear por

    sublinhar que a ideia do Grand Tour chegou a Portugal mais rapidamente

    atravs da literatura, acompanhando a moda das narrativas de viagem que se

    difundem desde o sculo XVIII, que da experincia vivida e relatada pelos

    arquitectos. E esse conhecimento proporcionado pela viagem transfere-se para

    uma experincia no territrio nacional, tanto por razes ideolgicas (no perodo

    dos nacionalismos) como por razes econmicas. Na literatura portuguesa de

    XIX esse processo identifica-se por exemplo em Almeida Garret nas Viagens na

    Minha Terra (1846), que repete Laurence Stern em Uma Viagem Sentimental

    (1768). Mas tambm se reflecte nos guias ou narrativas de viagem que

    confirmam esta tendncia, incorporando uma viso geogrfica e antropolgica,

    como nas Praias de Portugal (1876) de Ramalho Ortigo ou uma reflexo

    critica sobre os processos de contaminao cultural como n A Cidade e as

    Serras (1901) de Ea de Queirs.

    Numa altura em que o comboio facilita e democratiza o acesso s cidades e

    lugares de Portugal mais longnquos, o Guia de Portugal (1907) ser outra

    manifestao de uma prtica de viagem que incentiva o turismo, replicando o

    Guia Baedecker alemo que desde a segunda metade de XIX foi a referncia

    bibliogrfica para os viajantes europeus que cruzam os territrios.

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    I.1. Academia e Grand-Prix A Viagem de formao acadmica

    Na historiografia portuguesa no existe informao que nos permita avaliar a

    influncia do Grand Tour na formao e produo dos arquitectos portugueses

    do sculo XIX, pelo menos no no sentido em que a podemos detectar na obra

    de Adam, Soane ou Schinkel. O principal momento de contacto com a grande

    cultura parece ter ocorrido na formao de alguns arquitectos que, sobretudo

    nas Beaux-Arts de Paris, encontram a oportunidade para o alargamento do

    conhecimento atravs do contacto directo com a arquitectura que ali se

    produzia. Foi o que aconteceu com a arquitectura de ferro e com a arquitectura

    das exposies internacionais. Para alguns essa experincia estendia-se mais

    tarde ao universo italiano atravs do Grand-Prix de Rome, atribudo s

    melhores classificaes de fim de curso e que lhes permitia a residncia italiana

    num perodo que podia ir at um ano.

    De entre os arquitectos portugueses que se integram nesta ltima condio

    destacamos: Jos Luis Monteiro (1848-1942), bolseiro em Paris (1873-78) e

    Roma (1878-1880); Ventura Terra (1866-1919), estudante na EBAP e depois

    nas Beaux-Arts de Paris (1886-1896); ou Marques da Silva (1869-1947),

    estudante nas Beaux-Arts de Paris (1889-1896).

    Sobre este ltimo arquitecto ser interessante destacar que, embora a residncia

    francesa no se tenha traduzido em mais que uma actualizao de vocabulrio, a

    sua visita a Paris em 1925 com o Conde de Vizela, cliente da Casa de Serralves,

    marcar uma inflexo na sua produo arquitectnica. As relaes de trabalho

    entre o arquitecto e o cliente esto expressas no livro Fantasmas de Serralves de

    Andr Tavares1. Aqui interessa sobretudo sublinhar esse bizarro processo de

    contaminao de culturas que presidiu ao desenho e construo da casa. De

    facto, embora os cruzamentos de influncias tenham sido aparentemente

    provocados mais pela aco do cliente que do arquitecto, a casa de Serralves

    apresenta um bom exemplo da modernidade gerada pela viagem. Para alm da

    influncia que resulta das participaes do arquitecto paisagista Jacques Grber,

    do arquitecto Charles Siclis e do arquitecto-decorador e produtor de mveis

    Jacques-mile Ruhlmann, Marques da Silva parece ter sofrido uma particular

    influncia na obra de Mallet-Stevens (1886-1945). Para alm das sugestes dos

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    ambientes modernistas parisienses desenhados por Mallet-Stevens que ter

    encontrado na cidade, a Villa M. Poiret, (1921-23) ou sobretudo a Villa Cavrois

    (1929-1932) parecem confirmar esta particular transferncia de modelos,

    mesmo considerando que a participao de Siclis (1929) trar uma ligao

    possvel e provvel s mesmas. [Fig.1]

    Outro arquitecto cuja formao se pode inscrever no mbito anteriormente

    apontado, Raul Lino (1879-1974)2. Porm, a sua formao no exterior no

    constituiu um complemento Beaux-Arts aos estudos acadmicos portugueses,

    antes estruturou um conhecimento disciplinar na rea das arts&crafts inglesas

    onde estudou e que viria a aprofundar na Handwerker Kunstgeweberschule,

    para onde vai aos 14 anos estudar com Haupt3. Ali conhece as teorias de

    Ruskin, Morris e Muthesius com o qual partilhar a coincidncia temtica nos

    livros: Das Englische Haus (1904) e A Nossa Casa (1918).

    A experincia acadmica adquirida e o contacto com sociedades to

    desenvolvidas econmica, social e culturalmente no conduzem contudo a um

    fascnio particular pela indstria, pela dialctica arte/tcnica, ou pela metrpole,

    nem to pouco ao desejo de ver alargado a Portugal o universo dos temas e

    problemas com que se confrontou no exterior. Ao contrrio, essa experincia da

    fractura moderna por ele vivida ir traduzir-se na no-aceitao da

    contaminao das culturas gerada no trnsito e experincia da viagem: recusa

    assim o ecletismo novecentista e Modernismo, como sinal de estrangeirismo;

    defende uma natureza sentimental portuguesa que se ope razo

    maquinista; prope o estilo nacional como afirmao da herana estritamente

    portuguesa. Esta ruptura com o pensamento moderno, globalizador, que se

    traduzir no esforo de impedir a divulgao de modelos externos4 e na

    suspenso dos prmios Valmor entre 1931-1938 por desagrado com a evoluo

    moderna da arquitectura de Lisboa, coloca uma questo disciplinar interessante:

    quais as razes da recusa da modernidade quando utiliza, ainda que por

    oposio, as mesmas aproximaes metodolgicas ao problema da cidade e da

    arquitectura adoptadas pelos arquitectos modernos?

    Seno vejamos: por felicidade ou desgraa, quando regressa em 1897, Portugal

    encontra-se envolvido em mais uma das inmeras crises de identidade que o

    1. Villa Cavrois, Mallet-Stevens, 1929/32.

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    caracterizam, desta vez provocada pelo Ultimatum Ingls. nesse contexto que

    a defesa das formas portuguesas em alternativa produo ecltica que

    decorre da eleio dos estilos, ou modernista "que participa da lisura da

    mquina..."5, ganha particular relevo. Essa recuperao, plasticamente ligada

    harmonia rural portuguesa, ser fundada nas teorias da pura visibilidade que

    propem a exercitao do olhar6 como mecanismo metodolgico para a

    criao e encontrar na idealizao da casa portuguesa o seu paradigma. Mas

    a sua proposta arquitectnica, ao contrrio da de F.L.Wright que realiza uma

    articulao plstica inovadora com o ideal romntico de W. Whitman, ficou-se

    por uma recusa terica do ecletismo, uma vez que nela so visveis influncias

    que vo de Ruskin e Morris, arquitectura morabe (Casa do Cipreste, 1911).

    Por outro lado, embora recuse o imperialismo da indstria e do moderno

    internacional, no livro de 1918 apela a um princpio de funcionamento e de

    construo onde reconhece que a arquitectura nunca pode ficar divorciada da

    lgica. Mas trata-se de uma lgica que evita o pensamento dedutivo e

    destina o trabalho do arquitecto organizao das sensaes: "h os que sabem

    e h os que sentem"7. A proporo do edifcio e a sua estratgia plstica - s

    merece realmente o nome de arquitectura o trabalho em que o autor procura

    sujeitar o conjunto da obra a certa ideia plstica, independentemente da razo

    utilitria do que pretende edificar.8- determinaro, assim, os elementos

    fundadores de uma arquitectura portuguesa descontaminada. Curiosamente e

    talvez porque ambos tm Ruskin por referncia, esta oposio conceptual

    modernidade e a tudo o que exterior coincide com a ideia de Le Corbusier de

    que a proporo pura criao do esprito; atrai o plstico. (Vers une

    architecture 1923). A experincia do exterior e o modernismo em Raul Lino

    foram pois desviados por razes intelectuais e no por desconhecimento.

    I.2. Influncia da viagem na transferncia cultural; o modernismo possvel

    Embora os esforos de Raul Lino em limitar as repercusses da contaminao

    moderna na cultura arquitectnica portuguesa tenham sido temporariamente

    acompanhados do sucesso que lhe garantiu o apoio do poder, a arquitectura

    modernista acabaria por entrar em Portugal sem grande desfasamento temporal

    do que ocorreu no resto da Europa. Mas essa influncia das sociedades

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    industrializadas num pas eminentemente rural, entrou sem urgncia urbana

    nem recepo cultural. Da que as referncias modernistas sejam importadas na

    bagagem dos arquitectos que viajam sobretudo como smbolo de uma

    renovao que se reflecte na exposio de desenhos de Cristino da Silva,

    regressado de Frana e Itlia em 1924, ou no Salo de Outono de 19259.

    Esses viajantes, de viagens reais ou imaginrias, acompanharo pois nos anos

    vinte as inovaes arquitectnicas que resultam do programa cientfico e

    tecnolgico do sculo XIX que se clarificam no programa da vanguarda

    artstica. Mas se os meios de divulgao modernos como as publicaes,

    exposies e concursos radicalizam as propostas da vanguarda arquitectnica10,

    a sua disseminao em Portugal ser condicionada por critrios editoriais pouco

    esclarecidos. Filtrados pelas limitaes impostas pela fotografia e modelos

    adoptados, o desenho e a tcnica de projecto acompanharo a tendncia

    moderna de composio, mas os seus fundamentos tericos no se alteram. Por

    isso a renovao ser sobretudo de fachada e orientada tanto pela vulgarizao

    do beto armado na construo, como pela simplificao formal e decorativa a

    que as obras modernas obedeciam. Apenas quando os filtros da distncia se

    atenuam ou quebram, pela contaminao da viagem ou pela conceptualizao

    dos processos, como ocorre no 1 Congresso de arquitectura portuguesa de

    1948, se inicia a ruptura moderna em volta da Carta de Atenas.

    Simbolicamente Raul Lino ser um dos poucos arquitectos ausentes.

    De entre os arquitectos que percorrem nesta altura o corredor europeu em

    formao e viagem destacamos Cristino da Silva (1896-1976), Cassiano Branco

    (1897-1970) e Carlos Ramos (1897-1969).

    O primeiro parte para Paris (1920-23) em busca de uma formao mais

    avanada que a das Belas Artes de Lisboa. Encontra uma cidade progressista,

    mas uma escola ainda mais conservadora que a portuguesa; por isso o objectivo

    seria alcanado apenas nos ateliers dos mestres e nas viagens pela Blgica,

    Alemanha (1922) e Itlia (1923-24). Embora sem Grand-Prix de Rome,

    consegue um estgio na Villa Mdicis onde realiza os desenhos Maison de Livie

    - tat Actuel, Domus Liviaem Anno 730AC e Domus Liviae posteriormente

    clebres aquando da exposio lisboeta [Fig.2]. Num percurso prximo do 2. Domus Liviae. Reconstituioarqueolgica. Roma, 1923

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    Grand Tour, visita ainda o Sul e a Siclia onde aprofunda estudos

    arqueolgicos. Contudo, o contacto com a arquitectura moderna que o leva ao

    desenho do Capitlio (1925-33) ou liceu de Beja (1930) ser tangencial11 e isso

    reflecte-se no s na alternncia dos registos regionalistas e modernistas dos

    anos 20/30, como na orientao posterior para uma produo "estilizada,

    tradicionalista e monumental das formas e dos smbolos"12.

    Cassiano Branco no estudou em Paris e das viagens que realizou antes da

    guerra, Paris e Bruxelas em 1919, Amesterdo em 1921, e novamente Paris em

    1925, fica claro que o universo ampliado pela experincia da viagem se reduziu

    ao contacto com as variantes art-dco descobertas na obra de Mallet-Stevens, ou

    nos desenhos de Sant'Elia. Pouco ou nada interessado nos temas fracturantes da

    cultura arquitectnica europeia, as suas obras reflectem uma abordagem

    estilstica entre o modernista e o tradicionalista at que em 1940 cedeu tambm

    ao apelo do estilo nacional. Esta assimilao, na pele, verifica-se nos prdios

    de rendimento que realizou, mas de forma exemplar est fixada nas propostas

    de desenho para o den, onde se evidencia uma aproximao obra de Perret e

    depois "escala e esttica" futurista de Sant'Elia. Apesar da construo ter

    operado uma simplificao ltima verso do projecto, o dinamismo das

    escadarias interiores resumiria uma imagem da vida moderna que conheceu em

    Paris e possivelmente nos cinemas de Charles Siclis. [Fig.3]

    Carlos Ramos toma contacto com a cultura arquitectnica internacional no

    ambiente da EBAL e dos ateliers de Lino (1916) e Ventura Terra (1919). Nesse

    perodo viaja pela Espanha (1918) e Espanha, Frana e Blgica (1920); mas ser

    com a encomenda do Pavilho do Rdio (1927-33) que a viagem de estudo

    assume papel determinante: em 192913 viaja pela Europa para estudar centros

    hospitalares e em 1947 volta a faz-lo com a Comisso de Construes

    hospitalares. Da primeira viagem realiza um relatrio (1930) que confirma a sua

    especializao no tema e dar origem a vrios projectos para institutos mdicos

    e hospitais. Esse contacto com o exterior, relevante na obra, foi-o tambm na

    pedagogia que introduz na EBAP para onde entra em 1940 para abrir a escola

    ao mundo e motivar viagem, de Fernando Tvora por exemplo. Depois de

    1950, com a presidncia da seco portuguesa da UIA, as viagens para a Europa

    e Amrica Latina sucedem-se ininterruptamente.

    3. Cinema den, Cassiano Branco, 1929/33

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    Viajantes II Os agentes da mudana

    II.1 Keil do Amaral

    Keil do Amaral (1910-1975) faz a sua formao nas Belas-Artes de Lisboa e

    logo que acaba o curso, em 1936, ganha o concurso para o Pavilho de Portugal

    na Exposio Internacional de Paris de 1937, para onde parte por um ano;

    durante esse perodo visita diversas vezes a Holanda: () tomei o avio de

    carreira, e duas horas depois entrei de chofre, sem transio, num meio

    absolutamente novo, - desconcertante () comecei porm a ver coisas que

    me impressionaram... transmitiam bem-estar e felicidade aqueles prdios

    modernos, to curiosos e bem arrumados; seduziam as escolas, rasgadas luz

    e ao sol, floridas, graciosas, com pormenores encantadores14 [Fig.4]

    Em 1939, como funcionrio da Cmara de Lisboa e na sequncia da encomenda

    de Duarte Pacheco para trs parques da cidade Monsanto, remodelao do

    parque Eduardo VII e da Alameda do Campo Grande - viaja de novo pela

    Europa para visitar parques urbanos. Frana, Alemanha, Holanda e Inglaterra

    so os pases que percorre, mas de novo ser na Holanda, no parque de

    Amesterdo ainda em construo, que encontra os modelos mais influentes para

    o seu projecto. Estas viagens, que se iniciam com a oportunidade gerada pelo

    trabalho, sero seminais na sua carreira, na medida em que as descobertas que a

    realiza iro abrir caminho a um trabalho de projecto e de interveno cvica sem

    precedentes entre os arquitectos portugueses. Sero tambm um destino a que

    regressa repetidamente, mesmo depois de perderem esse vnculo directo entre

    viagem e projecto que tiveram at ao fim dos anos 40.

    Depois da guerra volta a viajar em trabalho, desta vez para os EUA (1945-

    1946), com o objectivo de estudar Salas de concerto e Museus que sirvam de

    modelo para o projecto do Palcio da Cidade, no parque Eduardo VII. Visitou a

    costa leste entre Washington, Filadlfia, Nova Iorque, Boston, Buffalo e

    Detroit, para conhecer entre outras as obras de Harvard, o Museu de Arte

    Moderna de Nova Iorque, a obra de Wright e a de Eliel Saarinen. Em 1949,

    aps o encerramento do atelier da Cmara, viaja pelo sul de Frana e Itlia,

    altura em que visita o Bloco de Habitao de Marselha de Le Corbusier.

    4. Keil do Amaral em Amsterdo, 1936

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    Uma primeira novidade que se revela nesta sequncia de viagens ser a forma

    como articula na descoberta arquitectnica as questes conceptuais e culturais

    em que se inserem. Essa integrao, que regista em fotografia e texto ser

    regularmente traduzida em livros, relatrios ou conferncias que transpem a

    experincia pessoal da viagem para a esfera do conhecimento pblico. O

    primeiro texto, que escreve em 1936, ser mais tarde convertido no primeiro

    trabalho terico da poca sobre metodologias e modelos modernos: A moderna

    Arquitectura Holandesa (1943), texto que edita durante a 2. Guerra em

    homenagem arquitectura de que tanto gostava e onde encontrava exemplo

    para a arquitectura portuguesa15. Sobre a viagem de 1939 Keil salienta no

    relatrio que entrega Cmara, a pluridisciplinaridade do trabalho de equipa na

    Holanda, o planeamento do projecto, o faseamento da obra e a divulgao

    pblica do Bosque que se estava a construir, como exemplo a repetir na tarefa

    que lhe haviam encomendado [Fig.5]. No caso da experincia que recolhe dos

    museus nos EUA, ir proferir uma conferncia sobre Os Museus dos Estados

    Unidos da Amrica na Sociedade Nacional de Belas-Artes.

    As suas obras dos anos 40 sero directamente influenciadas por estas viagens.

    So obras que incorporam os pressupostos da arquitectura moderna e nelas se

    reconhece a influncia de William M. Dudok (1884-1974), arquitecto em cuja

    obra arquitectnica e paisagstica (Hilversum) descobre o equilbrio entre

    tradio e modernidade e entre racionalismo e regionalismo; essa descoberta

    ser ainda responsvel pelo caminho que o leva a Frank Lloyd Wright, cuja

    obra no ignorou no desenho dos edifcios que prope para os parques atrs

    referidos. [Fig.6]. Da preocupao moderna com a funo, aos sistemas

    construtivos que integram materiais e tcnicas construtivas locais, a sua obra

    construiu um discurso que ser relevante no contexto da arquitectura portuguesa

    e que culmina no Congresso de 1948. Sob a sua influncia, ali se coloca a

    necessidade de um Inqurito arquitectura portuguesa cujos resultados sero

    decisivos no percurso da arquitectura nacional nos anos 60.

    II.2 Fernando Tvora

    Fernando Tvora (1927-2005) fez a sua formao na EBAP. Talvez porque

    naquele perodo os alunos ainda fizessem cpias de originais clssicos, ao

    5. Relatrio de Viagem, 1939.

    6. Parque Florestal de Monsanto, Clube de Tnis, 1948/50.

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    mesmo tempo que exploravam a arquitectura funcionalista, a sua formao seria

    marcada por uma pedagogia que criava uma desorientao terrvel...16.

    Consequentemente, o contacto com as questes disciplinares estruturantes s se

    podia processar atravs das poucas revistas que chegavam de Itlia e Alemanha

    e das ainda mais escassas experincias de viagem. Ser nestas ltimas que

    Tvora descobre uma metodologia de investigao indissocivel do

    conhecimento e da prtica arquitectnica e portanto uma ferramenta de

    clarificao disciplinar til construo do presente: "Quero exactamente

    conhecer as manifestaes artsticas que se encontram na tradio europeia,

    atravs de uma viagem que tocaria o Egipto (Cairo), a Grcia (Atenas), a Itlia

    (Roma) e a Frana, uma viagem que me permita determinar as constantes, os

    elos de ligao entre as Pirmides, o Partenon, o Panteo e So Pedro,

    Versalhes e a Torre Eiffel... A determinao deste constante classicismo

    apresenta-se como indispensvel ao meu esprito, tanto desorganizado como

    com necessidades de certeza."17

    Embora existam referncias a viagens realizadas antes da segunda guerra, a

    primeira grande viagem conhecida Europa acontece em 1947. Faz a viagem de

    carro num percurso que dura 3 meses e o leva a San Sebastian, Lyon, Chartres,

    Paris, Bruxelas, Roterdo, Anturpia, Berna, Zurique, Milo, Siena, Roma,

    Cannes, Nice e Marselha: "no mesmo dia: de manha Picasso, tarde Leonardo

    da Vinci."18. Em 1949, no perodo em que est a desenhar o plano do Campo

    Alegre, volta a Itlia e logo depois, em 1952, regressa num destino que repetir

    sempre19. [Fig.7]

    Outras viagens que realiza sero geradas pela oportunidade da representao

    nos CIAM. Em 1951 vai ao CIAM VIII de Hoddesdon; estar tambm no de

    1953 (Aix-en-Provence), 1956 (Dubrovnick) e 1959 (Otterlo) [Fig.8]. A, no

    ambiente intelectual e produtivo mais estimulante do momento, toma contacto

    com os mestres modernos; parece evidente e natural que seja tambm a que se

    encontrem as motivaes para a sua produo arquitectnica mais interessante.

    Mas a grande viagem a que se refere o excerto acima ocorrer em 1960 na visita

    aos EUA. No contexto da Reforma que em 1957 o ensino da arquitectura tinha

    experimentado em Portugal, depois de anos de desajuste com as questes que

    7. Foto arquivo FT, Roma 1947; Santa Maria da Graa, Milo - 1949

    8. CIAMVIII , Hoddesdon 1 Gregotti, Rogers, Gropius; 2 Gregotti, Van Esteren;

    3 Bottoni, Le Corbusier, Tange, 1951.

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    percorriam estruturalmente a profisso, Tvora prope-se, atravs de uma bolsa

    da Fundao Calouste Gulbenkian que obtm com recomendao de Carlos

    Ramos, realizar um Estudo dos Mtodos do Ensino de Arquitectura e

    Urbanismo nas Universidades e Instituies americanas20. Essa viagem veria o

    seu mbito de estudo alargado presena no WoDeCo21 que se realizou no

    Japo em Maio de 1960 e a que teve acesso com reforo da bolsa. Assim,

    dirigida aos EUA mas com extenso ao Japo, a viagem iria transformar-se

    numa volta ao mundo que o levou a atravessar o continente americano para

    conhecer a costa oeste e S. Francisco, visitar o Mxico, Havai, Tailndia,

    Paquisto, Lbano, Egipto e Grcia, num roteiro histrico que vai da

    contemporaneidade para o passado: da Amrica Grcia, com o Japo no meio

    a representar o equilbrio entre o passado e o presente. [Fig.9]

    II.2.1. Em viagem

    Na visita s escolas de arquitectura e urbanismo, Tvora toma contacto com

    metodologias de trabalho centradas em equipas pluridisciplinares, mas

    sobretudo conhece professores/arquitectos em incio de carreira que tero

    grande influncia na cultura arquitectnica dos anos 60 e 70. assim que

    encontra Louis Kahn na universidade da Pensilvnia e descobre numa sua aula

    um mtodo de lidar com a histria e a cultura arquitectnica que acabar por

    assimilar22, e Paul Rudolph, Kevin Lynch, Christopher Alexander, etc.23 Nesse

    contexto v obras de arquitectos americanos ou europeus na Amrica, como

    Eliel Saarinen, Mies Van der Rohe, Gropius, Breuer e Louis Sullivan [Fig.10].

    Mas se sente que falta contaminao cultura americana, onde tudo de certa

    forma a preto e branco24, descobre em Frank Lloyd Wright uma obra que redime

    a frieza que encontra em Mies. De entre as obras que visita (da Johnson Wax s

    casas da pradaria), a aproximao arquitectura/paisagem de Taliesin East

    (1911) ser provavelmente a mais emotiva, talvez mesmo prxima das

    descries romnticas dos que, no Grand Tour, narraram o encontro com as

    runas romanas: "A paisagem sem ser grandiosa grande e os edifcios sem

    serem grandes sentem-se perfeitamente na paisagem, sem, de qualquer modo a

    desvalorizarem. A ideia de Taliesin como uma construo desfez-se nesse

    momento no meu esprito; Taliesin uma paisagem, um conjunto, em que

    porventura difcil distinguir a obra de Deus da obra do homem. Devo dizer,

    10. Foto arquivo FT, Lake Shore Drive,Mies Van der Rohe.

    9. Mapa mundo - viagem de F. Tvora em 1960.

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    alm disso, que o stio de uma beleza surpreendente"25 "Senti-me na Idade-

    Mdia, na Grcia ou no Mxico, na presena de uma Catedral, de um Partenon

    ou de um templo Azteca, tal a integridade daquela arquitectura26.[Fig.11]

    Depois do Mxico, onde encontra o esprito genuno da cultura que no sente

    nos EUA, chega ao Japo. Se do pretexto que o leva l retira pouco proveito (o

    WoDeCo revela-se desinteressante), a cultura tradicional japonesa f-lo

    descobrir novos sentidos de composio visual para a articulao entre a forma,

    construo e natureza, que mais tarde usa nos seus projectos27. [Fig.12] Sobre

    essa influncia oriental Tvora disse: "fui ao Japo depois de fazer o projecto

    do pavilho, mas antes da sua execuo. H alguns detalhes que resultaram da

    viagem (...) possvel que tambm haja [no projecto] alguma distante

    influncia oriental, porque tambm a h na arquitectura tradicional portuguesa

    a partir do sc. XVI.28 No regresso a viagem abrevia-se em estadias curtas.

    Mesmo sem os comentrios que atestam o seu desagrado com a Tailndia e

    Paquisto e a sua rpida partida para o Mediterrneo, a sua estadia no Egipto,

    Lbano e Grcia no ser longa. Em todo o caso as suas observaes sobre as

    runas do mundo antigo e do perodo clssico so muito precisas e convergem

    com as que encontramos em outros arquitectos modernos.

    II.2.2. Registo de viagem

    Dos registos de viagem, dirio, fotos e desenhos, Tvora utilizar parcialmente

    informao nas suas aulas ou em excertos dos textos que publicou. Esse

    conhecimento, que integra o conhecimento da histria e a experincia do lugar

    numa sntese prpria ao arquitecto de que a Historia da Arquitectura

    Moderna de Bruno Zevi (1950) referncia leva-o a afirmar: Quando a

    histria da arte, por exemplo e tal como geralmente ensinada, nos descreve

    formas sem as enquadrar na sua circunstncia, comete, a nosso ver, dois erros

    graves: em primeiro lugar deixa-nos supor que as formas so livres e aparecem

    um pouco por acaso () e, em segundo lugar, porque no nos fornece

    elementos para a sua melhor compreenso, d-nos apenas um conhecimento

    vago delas e no nos aproxima da sua verdadeira realidade.29

    11. Foto arquivo FT - Taliesin East, capela e campa de FLW; Hillside home

    school; Taliesin East

    12. Katsura Foto arquivo FT, 1960; Katsura, Tange, W.Gropius, 1960

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    Porm, ao contrrio da tradio do Grand Tour, estes registos no so

    divulgados como um conhecimento prprio e sistematizado. [Fig.13] Uma das

    razes poder encontrar-se no forte valor disciplinar e cientfico que d origem

    viagem. Se por um lado tem como motivao prtica um relatrio cientfico

    para entregar Fundao que o patrocinou, no final da viagem talvez tenha

    descoberto que o seu principal objectivo foi sido suplantado por resultados que

    se inscrevem mais no plano do conhecimento emocional/sensorial que no do

    cientfico. E esses so resultados muito mais complexos de sistematizar;

    recorde-se que Le Corbusier, mesmo que por razes diferentes, levou 54 anos

    para editar a sua Viagem ao Oriente.

    Viajantes III Outros destinos, outros arquitectos

    Esta viagem de Tvora, a vrios ttulos excepcional, reflecte a abertura cultural

    a novos mundos que o fim da segunda guerra permitiu. Por um lado as viagens

    areas generalizaram-se e tornaram mais fcil e rpido o acesso a destinos e

    culturas outrora inacessveis; por outro lado o aumento do nvel de vida na

    Europa permitiu a um nmero cada vez maior de arquitectos a possibilidade da

    viagem. Foi o que aconteceu com as viagens aos pases nrdicos,

    nomeadamente Finlndia, nos anos 60. Essa viagem, motivada pela obra de

    Aalto, seria um destino comum para muitos arquitectos europeus. Tvora faz

    essa viagem em 1968 na companhia de Rogrio, Ceclia Cavaca e lvaro Siza

    entre outros. Pela mesma altura Hestnes Ferreira, cuja ascendncia norueguesa

    justifica outro tipo de aproximao, far a mesma viagem antes de partir para os

    EUA para um Master que o leva a conhecer e trabalhar com Kahn.

    Dessa abertura ao mundo chegam-nos vrios registos na cultura arquitectnica

    portuguesa. Quer pela proximidade dos seus actores, quer pela multiplicao e

    banalizao da viagem, pouca sistematizao desse conhecimento tem sido

    produzido. De entre todos, porventura pela visibilidade e relevncia do seu

    processo de descoberta, registo e produo, as viagens de lvaro Siza (1933)

    adquirem inevitvel destaque. As suas viagens so-nos reveladas nos desenhos

    que pontualmente nos permite descobrir e nos textos, curtos mas sempre

    13. F. Tvora, Desenho de Viagem, Kyoto, Templo Tokukuji, 1960

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    precisos, que revelam pormenores ou aspectos no perceptveis no desenhado:

    em viagem () gosto de sacrificar muita coisa, ver apenas o que

    imediatamente me atrai, de passear ao acaso, sem mapa e com uma absurda

    sensao de descobridor. () De sbito, o lpis ou a Bic comeam a fixar

    imagens, rostos em primeiro plano, perfis esbatidos ou luminosos pormenores,

    as mos que os desenham. Riscos primeiro tmidos, presos, pouco precisos,

    logo obstinadamente analticos, por instantes vertiginosamente definitivos,

    libertos at embriaguez; depois fatigados e gradualmente irrelevantes. Num

    intervalo de verdadeira viagem os olhos, e por eles a mente, ganham insuspeita

    capacidade. Aprendemos desmedidamente; o que aprendemos reaparece,

    dissolvido nos riscos que depois traamos.30 [Fig.14]

    Para que o sentido do observado no perca preciso, Siza est sempre presente

    no no desenhado mas implcito no primeiro plano, numa contnua oscilao

    entre sujeito e objecto31. Exactamente a imagem que Luis Mansilla ir retomar

    com o trespassar a janela de Alberti, na tese Apuntes de Viaje al interior del

    tiempo (2002). Talvez tambm por isso as suas obras venham a integrar uma

    novidade particular: as respostas de projecto integram uma leitura do local

    (geogrfico, paisagstico, cultural ou tcnico) que ter como resultado uma

    naturalizao da obra e uma nacionalizao dos registos; Siza alemo na

    Alemanha, holands na Holanda, italiano em Itlia, espanhol em Espanha.

    Nota final Uma viagem em dois tempos.

    Hoje a viagem de arquitectura constitui uma aprendizagem prpria que no

    perde o propsito original de investigar nas suas formas (do passado e do

    presente), o sentido universal dos seus princpios de concepo visual e

    construtivo. Para muitos, a descoberta do sentido e importncia da viagem

    comeou com Fernando Tvora na Teoria e Histria da Arquitectura da ESBAP

    (anos 80) onde, atravs da narrao das suas viagens, introduzia os alunos numa

    perspectiva disciplinar que usa a histria como uma ferramenta para o projecto.

    Ficaram clebres as aulas sobre as viagens Grcia, Itlia, EUA ou Japo e

    nelas as sandlias de viajante com que palmilhou o percurso de acesso

    14. A.Siza, Desenho deViagem, Sem Ttulo

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    Acrpole, mais tarde integradas simbolicamente nas exposies retrospectivas

    da sua obra, como sinal do caminho de aprendizagem que a disciplina impe ao

    arquitecto. Para todos a experincia da viagem ficou assim indissocivel do

    conhecimento, da prtica arquitectnica e da vida.

    Esse ensinamento foi responsvel pela peregrinao que ns, seus alunos,

    realizmos rumo ao Prtenon, procurando respeitar o ritual do percurso que

    nos transportava da runa ao seu significado histrico e arquitectnico. De

    forma ainda mais expressiva ficou o entusiasmo da descoberta que cada

    oportunidade de viagem passou a representar. Foi isso que aconteceu, ainda

    estudante, com as viagens obra de Le Corbusier; foi ainda o que aconteceu

    quando, com um prmio de um concurso de arquitectura, rumamos a La

    Tourette onde se fundava o programa de projecto, e obra de Asplund em

    Estocolmo onde ancoramos simbolicamente algumas referncias formais. Essa

    viagem revelar-se-ia seminal na clarificao dos processos de incorporao da

    cultura arquitectnica nos mtodos de projecto que tnhamos aprendido. O

    sentido do lugar, do espao e da matria descobertos no contacto com as obras

    por que nos deixamos apaixonar, passou a constituir um legado de

    conhecimento de infinitos recursos.

    Depois disso os reencontros com a obra de Le Corbusier tm-se sucedido de

    forma mais ou menos regular. Mas no voltei Sucia seno recentemente, num

    retorno que essa primeira viagem exigiu dezoito anos depois. Essa oportunidade

    resultou de outro prmio de concurso oferecido aos colaboradores a quem

    merecidamente era devido e que generosamente o integraram numa

    repetio/concluso da primeira viagem, para ver a obra mtica de Lewerentz

    em Klippan a que no tinha sido possvel aceder pela distncia e temperatura a

    que se encontrava de Estocolmo. No voltei a alguns lugares mticos de viagens

    que realizei: Marselha, primeira obra de arquitectura moderna que descobri em

    1982 em trnsito para Itlia, Prtenon em 1983, ou La Tourette em 1989.

    Conservo na memria, mais que nas imagens, um sentido da experincia e da

    revelao arquitectnica que no se repetiu a no ser recentemente nessa obra

    de Klippan onde os pressupostos simblicos e materiais tanto se aproximam do

    caminho arquitectnico que aprendi com Le Corbusier. Talvez se faa sempre a

    mesma viagem. [Fig.15]

    15. Igreja de Klippan, pormenor

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    Origem das imagens:

    1. [Fig.01] Villa Cavrois, Mallet-Stevens http://saintsulpice.unblog.fr/2009/05/02/la-

    villa-cavrois-croix-robert-mallet-stevens

    2. [Fig.02] Desenho de Cristino da Silva - http://www.biblartepac.gulbenkian.pt , Domus

    Liviae. Reconstituio arqueolgica. Roma, 1923. 2 desenhos (1 prova fotogrfica,

    p&b; 30 x 40 cm; 1 negativo, p&b; 13 x 18 cm). LCSDA 93.27; LCSDA 93.44 (2 MB).

    3. [Fig.03] Cinema den, http://lh4.ggpht.com/_IYJi-lhses0/TTqcc9-

    ChiI/AAAAAAAAFA4/N6X8y4z0ChE/s1600-h/Cinema-Eden.48.jpg.

    4. [Fig.04] Keil na Holanda, Keil do Amaral o Arquitecto e o Humanista, CML, p.56

    5. [Fig.05] Viagem de estudo parques, Keil do Amaral o Arquitecto e o Humanista,

    CML, p.201

    6. [Fig.06] Clube de Tnis, 1948/50, Keil do Amaral o Arquitecto e o Humanista,

    CML, p.83

    7. [Fig.07] Roma, Fernando Tvora opera completa Electa, p.351

    8. [Fig.8] CIAM VIII, Hoddesdon, Fernando Tbora, Blau, p.28

    9. [Fig.9] Mapa Mundo viagem de Tvora em 1960. Imagem arquivo JFG

    10. [Fig.10] Lake Shore Drive, Foto arquivo FT, O melhor de dois mundos a viagem

    do arquitecto Tvora aos EUA e Japo Dirio 1960, ed. Autor, p.117a

    11. [Fig.11] Taliesin East, Foto arquivo FT, O melhor de dois mundos a viagem do

    arquitecto Tvora aos EUA e Japo Dirio 1960, ed. Autor, p.126

    12. [Fig.12] Katsura Foto arquivo FT O melhor de dois mundos a viagem do

    arquitecto Tvora aos EUA e Japo Dirio 1960, ed. Autor, p.169; Katsura Imperial

    Villa Electa, p. 378

    13. [Fig.13] Desenho de Viagem, Tvora, Kyoto, Templo Tokukuji, 1960, Fernando

    Tvora opera completa, Electa, p.306

    14. [Fig.14] Desenho de Viagem, Siza, Alvaro Siza - Esquissos de Viagem,

    Documentos de Arquitectura , p. 112

    15. [Fig.15] Klippan, Foto arquivo JFG

    A referncia bibliogrfica para este artigo:

    Amaral, Francisco Keil, A moderna arquitectura Holandesa (1936), Seara Nova, n.810-813,

    Lisboa, Fev-Maro, 1943.

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    Colomina, Beatriz, La Casa de Mies: exibicionismo y coleccionismo, in Mies Van der Rohe

    Casas, 2G, n.48/49, GG, Barcelona, 08.09 , p. 7

    Esposito, Antonio, Leoni, Giovanni, Fernando Tvora opera completa, Electa spa,

    Mondadori, Milo, 2005.

    Frampton, Kenneth, Il disegno veloce, Le annotazione di Alvaro Siza, Lotus, n. 68, Milo,

    1991, pag. 73.

    Frana, Jos-Augusto, O Modernismo na Arte Portuguesa, Col. Biblioteca Breve, 3ed., ICLP

    Lisboa, , 1991, (b).

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    Gonalves, Jos Fernando, Ser ou no ser moderno, e|d|arq, Edies do Departamento de

    Arquitectura da FCTUC, Coimbra, 2002.

    Kruntorad, Paul, Lorizonte ampliato. Viaggio in Italia come paradigma, Lotus, n. 68, Milo,

    1991, pags. 122-128.

    Le Corbusier (Jeanneret, Charles-Edouard), El Viaje de Oriente, Coleccin de Arquilectura.16,

    Librera Yerba, Murcia, 1993.

    Le Corbusier, Hacia una arquitectura, (1923), Editorial Poseidn, Barcelona, 1978.

    Lino, Raul, A Nossa Casa, Atlntida, Lisboa, s.d.[1919].

    Lino, Raul, Casas Portuguesas. Alguns apontamentos sobre o arquitectar das casas simples

    (1933), Valentim de Carvalho, 4ed, Lisboa, 1944.

    Mansilla, Luis Moreno, Apuntes de viaje al interior del tiempo, Coleccin Arquithesis, num.10,

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    Mesquita, Ana, O melhor de dois mundos a viagem do arquitecto Tvora aos EUA e Japo

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    Ribeiro, Irene, Raul Lino, Pensador Nacionalista da Arquitectura, Col. Argumentos (n6), Faup,

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    Tavares, Andr, Os Fantasmas de Serralves, Dafne Editora, Porto, 2007

    Tvora, Fernando, Da organizao do espao, FAUP - publicaes, Srie 2 . Argumentos, N.

    13, 4 edio, Porto, 1999.

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    Catlogos

    AA/VV

    Carlos Ramos, exposio retrospectiva da sua obra, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa,

    1986.

    AA/VV

    Cassiano Branco Uma Obra Para o Futuro, Ed. Asa, Porto, 1991.

    AA/VV

    Fernando Tvora, Editorial Blau, Lisboa, 1993.

    AA/VV

    Kail do Amaral o Arquitecto e o Humanista, CML, Pelouro da Cultura/Departamento de

    Patrimnio Cultural/Diviso de Museus e Palcios, Lisboa, 1999.

    1 - Tavares, Andr, Os Fantasmas de Serralves (2007) 2 - Gonalves, Jos Fernando, Ser ou no ser moderno (2002), p. 60/68. 3- Karl Albrecht Haupt (1852-1930). A sua tese de doutoramento, de 1890, um estudo das

    caractersticas da arquitectura renascentista portuguesa: "Die BauKunst der Renaissance in

    Portugal". Haupt assim a referncia com a qual fundamentou ou descobriu a especificidade

    arquitectnica nacional. 4 - "Foi Raul Lino que pelo trabalho prprio obstou importao dos jornais de modas de

    architectura, cujos figurinos eram to servilmente copiados pelo mau gosto nacional" - Artigo

    publicado a propsito de um projecto de Lino e assinado T.C.,in Arquitectura Portuguesa, n8-

    1909. 5 - Raul Lino, Auriverde Jornada, Recordaes de uma viagem ao Brasil, 1937. 6 - Teorias desenvolvidas por Fiedler e Wolfflin, que consideram a pintura, escultura e

    arquitectura pelos seus valores formais e aspectos puramente visuais. 7 - Raul Lino cit. por Irene Ribeiro, op. cit., p. 113 8- L'evolution de l'architecture domestique au Portugal, ed.Institut Franais au Portugal, Lisboa,

    1937. cit. por Irene Ribeiro, op. cit. 9 - Da exposio de Paris em 1925, onde estiveram alguns dos arquitectos, s h eco crtico em

    Portugal em alguns jornais que elogiam Mendelshon e Mallet-Stevens em 1925 e timidamente Le

    Corbusier em 1928. 10 - Beatriz Colomina, La Casa de Mies: exibicionismo y coleccionismo, Mies Van der Rohe

    Casas, p. 6 11 - Numa entrevista de Cristino da Silva a Arquitectura, n. 119, Jan- Fev de 1971, considera que

    a arquitectura moderna s aparece por causa dos materiais. 12 - J-A. Frana, O modernismo na arte Portuguesa, p.63 .

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    13 - Na companhia do Professor Mark Athias. 14 - Keil do Amaral, Moderna Arquitectura Holandesa, in KEIL DO AMARAL o ARQUITECTO

    E O HUMANISTA, CML, Pelouro da Cultura/Departamento de Patrimnio Cultural/Diviso de

    Museus e Palcios, Lisboa, 1999, p.58 15 - Janurio Godinho j tinha visitado a Holanda no incio dos anos 30, nomeadamente

    Amesterdo Sul; essa visita levaria a que procedesse ao redesenho de um ncleo habitacional que

    tinha feito para Ramalde antes da viagem. 16 - Fernando Tvora, Dirio 1960 - In MESQUITA, ANA, O melhor de dois mundos a viagem

    do arquitecto Tvora aos EUA e Japo, Tese de Mestrado, Coimbra, edio de autor, 2007, p. 18 17 - Tvora in Esposito, Antonio, Leoni, Giovanni, Fernando Tvora opera completa, Milo,

    Mondadori Electa spa, 2005, p.40 18 - Manuel Mendes, Ah che ansia umana di essere il fiume o la riva!, Fernando Tvora opera

    completa, Electa, p. 353 19 - Numa nota biogrfica refere a presena num curso de vero CIAM em Veneza.

    provavelmente ser o curso de 1952 que Rui Pimentel tambm frequenta. In Fernando Tvora,

    Blau, p.9 20 - in Ana Mesquita, opus cit. p. 29 a viagem inicia-se em 13 de Fevereiro de 1960 e dura

    quatro meses. 21 - World design congress 22 - ver Fernando Tvora opera completa, Electa, p. 45 23 - in Fernando Tvora, Dirio, segundo Ana Mesquita, opus cit. 24 - Ibidem. 25 - F. Tvora, Dirio, Abril, 9, 1960, Blau, 1993, p. 93 26 - Ibidem, p.95 27 - Refira-se que Tvora, por coincidncia, visitou Katsura no ano em que Kenzo Tange e

    Gropius editam o famoso livro sobre o palcio. 28 - Dirio de viagem - 09 abril 1960, opus cit, p. 30. 29 - Tvora, Da organizao do Espao, 1999, p. 22,23 30 - lvaro Siza, Esquissos de Viagem, 1988, p. 15. 31 - K. Frampton, Lotus 68, p.73