a vedação da dupla punição e o estado constitucional de direito - professor márcio eduardo...

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1 Publicado na Revista Jurídica, v. 60, n. 411 janeiro de 2012. A VEDAÇÃO DA DUPLA PUNIÇÃO PENAL E O ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO: um ensaio sobre a inconstitucionalidade da extraterritorialidade incondicionada no ordenamento jurídico brasileiro Márcio Eduardo Pedrosa Morais 1 Sumário: 1. Introdução. 2. Extraterritorialidade: princípios e espécies. 2.1. Extraterritorialidade incondicionada. 2.2. Extraterritorialidade condicionada. 3. A extraterritorialidade como afronta ao princípio do ne bis in idem. 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas. RESUMO Tem-se por objetivo, por intermédio do presente artigo, dentro da temática da aplicação espacial da lei penal brasileira, especificamente sobre a extraterritorialidade da lei penal, discorrer sobre a vedação da dupla punição penal. Neste sentido, primeiramente abordar-se-á a territorialidade e a extraterritorialidade da lei penal, para, posteriormente, analisar os casos de extraterritorialidade da lei penal brasileira, por intermédio do estudo do Código Penal brasileiro, apresentando a crítica em relação à inconstitucionalidade do artigo 7º, parágrafo 2º, ao possibilitar a aplicação de dupla punição ao agente de um fato criminoso, ferindo, assim, o princípio do ne bis in idem. Palavras-chaves : Direito Penal; Extraterritorialidade; Inconstitucionalidade; Lei Penal. ABSTRACT It has been the objective, through this article, within the theme of spatial application of criminal law in Brazil, specifically about the extraterritoriality of criminal law discuss the sealing of double criminal punishment. In this sense, first will address the extraterritoriality and territoriality of criminal law, to then analyze the cases of extra-territoriality of criminal law in Brazil, through the study of the Brazilian Penal Code, with the criticism regarding the unconstitutionality of Article 7, paragraph 2, to 1 Professor universitário, especialista em Ciências Criminais, mestre e doutorando em Teoria do Direito na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pesquisador da Universidade de Itaúna (CNPQ). Advogado.

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  • 1 Publicado na Revista Jurdica, v. 60, n. 411 janeiro de 2012.

    A VEDAO DA DUPLA PUNIO PENAL E O ESTADO CONSTITUCIONAL DE DIREITO:

    um ensaio sobre a inconstitucionalidade da extraterritorialidade incondicionada no ordenamento jurdico brasileiro

    Mrcio Eduardo Pedrosa Morais1

    Sumrio: 1. Introduo. 2. Extraterritorialidade: princpios e espcies. 2.1. Extraterritorialidade incondicionada. 2.2. Extraterritorialidade condicionada. 3. A extraterritorialidade como afronta ao princpio do ne bis in idem. 4. Concluso. 5. Referncias bibliogrficas.

    RESUMO

    Tem-se por objetivo, por intermdio do presente artigo, dentro da temtica da aplicao espacial da lei penal brasileira, especificamente sobre a extraterritorialidade da lei penal, discorrer sobre a vedao da dupla punio penal. Neste sentido, primeiramente abordar-se- a territorialidade e a extraterritorialidade da lei penal, para, posteriormente, analisar os casos de extraterritorialidade da lei penal brasileira, por intermdio do estudo do Cdigo Penal brasileiro, apresentando a crtica em relao inconstitucionalidade do artigo 7, pargrafo 2, ao possibilitar a aplicao de dupla punio ao agente de um fato criminoso, ferindo, assim, o princpio do ne bis in idem.

    Palavras-chaves: Direito Penal; Extraterritorialidade; Inconstitucionalidade; Lei Penal.

    ABSTRACT

    It has been the objective, through this article, within the theme of spatial

    application of criminal law in Brazil, specifically about the extraterritoriality of criminal

    law discuss the sealing of double criminal punishment. In this sense, first will address

    the extraterritoriality and territoriality of criminal law, to then analyze the cases of

    extra-territoriality of criminal law in Brazil, through the study of the Brazilian Penal

    Code, with the criticism regarding the unconstitutionality of Article 7, paragraph 2, to

    1 Professor universitrio, especialista em Cincias Criminais, mestre e doutorando em Teoria do

    Direito na Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Pesquisador da Universidade de Itana (CNPQ). Advogado.

  • 2 Publicado na Revista Jurdica, v. 60, n. 411 janeiro de 2012.

    allow the application of double punishment for a criminal act of an agent, injuring

    thereby the principle of ne bis in idem.

    Keywords: Criminal Law; Extraterritoriality; Unconstitutionality.

    1 INTRODUO

    O crime acompanha a humanidade desde os seus primrdios, tendo, a

    sociedade, no seu incio, desenvolvido a autotela como mecanismo de resoluo de

    conflitos, passando-se, num segundo momento, para a autocomposio e,

    posteriormente, j com o Estado solidificado, tendo o mesmo assumido a funo

    punitiva, o jus puniendi, o que, de acordo com Luis Jimnez de Asa (1997) pode

    reclamar a curiosidade da Filosofia, ao se questionar o porqu do castigo. Neste

    sentido, de acordo com Nelson Hungria e Heleno Cludio Fragoso (1977), a funo

    penal emana da soberania estatal, devendo o Cdigo Penal e as leis penais

    especiais definir os fatos punveis e cominar suas respectivas sanes. Anbal Bruno

    e Nilo Batista salientam que neste Cdigo Penal esto reunidas as regras que

    estabelecem os princpios gerais do sistema e dispem sobre a sua aplicao e os

    seus limites. (BRUNO; BATISTA, 1974, p. 11).

    Assim, no que se refere aos limites do Direito Penal e, consequentemente, da

    pena, fundamental salientar constiturem tais limites direitos fundamentais, ou seja,

    direitos imprescindveis efetivao e manuteno de um padro de vida digno a

    qualquer indivduo, como tambm garantias em face do Estado, clusulas ptreas

    do ordenamento jurdico, conforme estipula o pargrafo quarto do artigo 60 da

    Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 CRFB/88. Nestes termos,

    no que se refere temtica dos direitos fundamentais, Ingo Wolfgang Sarlet (2003)

    afirma que:

    [...] os direitos fundamentais constituem construo definitivamente integrada ao patrimnio comum da humanidade bem o demonstra a trajetria que levou sua gradativa consagrao no direito internacional e constitucional. Praticamente, no h mais Estado que no tenha aderido a algum dos principais pactos internacionais (ainda que regionais) sobre direitos humanos ou que no tenha reconhecido ao menos um ncleo de direitos fundamentais no mbito de suas Constituies. Todavia, em que pese este inquestionvel progresso na esfera da sua positivao e toda a

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    evoluo ocorrida no que tange ao contedo dos direitos fundamentais, representado pelo esquema das diversas dimenses (ou geraes) de direitos, que atua como indicativo seguro de sua mutabilidade histrica, percebe-se que, mesmo hoje, no limiar do terceiro milnio e em plena era tecnolgica, longe estamos de ter solucionado a mirade de problemas e desafios que a matria suscita. (SARLET, 2003, p. 23).

    Assim, insta salientar inicialmente que, as regras relativas aplicao das

    penas devem respeitar o princpio-maior do Direito, o princpio da dignidade da

    pessoa humana, sustentculo de todo o ordenamento jurdico democrtico. Neste

    sentido, Guillermo Yacobucci salienta que ao se falar de "dignidade humana", o que

    se quer expressar que o lugar privilegiado que possui o homem em relao aos

    outros seres, dizer, seu patamar superior e diferente respeito destes.

    (YACOBUCCI, 2002, p. 206, traduo nossa).2

    Ainda, em relao aos princpios constitucionais penais, o princpio da

    vedao da dupla punio decorre do princpio da legalidade penal, apangio do

    desenvolvimento de um direito penal garantista e democrtico. Por sua vez, o

    princpio da vedao do duplo processo, princpio esse intimamente ligado ao

    primeiro, decorre do princpio maior do devido processo legal3.

    Deste modo, o Cdigo Penal traz em seu texto, dentre outros princpios e

    institutos, princpios atinentes aplicao temporal e espacial da lei penal. No que

    se refere ao mbito de aplicao espacial da lei penal brasileira, o Cdigo Penal

    adotou, de modo predominante, o princpio da territorialidade temperada, o qual est

    previsto no artigo 5 do respectivo diploma legislativo, com redao dada pela Lei n.

    7.209 de 1984, artigo esse que traz: [...] aplica-se a lei brasileira, sem prejuzo de

    convenes, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no

    territrio nacional. (BRASIL, 2011a), considerando-se, para os efeitos penais, como

    extenso do territrio nacional, de acordo com o pargrafo primeiro do referido

    artigo:

    [...] as embarcaes e aeronaves brasileiras, de natureza pblica ou a servio do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcaes brasileiras, mercantes ou de propriedade

    2 [...] al hablar de "dignidad humana", lo que se quiere expresar es el lugar privilegiado que tiene el hombre en relacin com los otros seres, es decir, su rango superior y diferente respecto de estos. (YACOBUCCI, 2002, p. 206). 3 De acordo com Osvaldo Alfredo Gozani (1995) o princpio do devido processo legal est cunhado em uma ideia-fora que se inicia na metade do sculo XIX, quando se estabelecem verdadeiros bill of rights que serviam de freios discricionariedade legislativa e avana cobrindo espaos de controle para os demais poderes.

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    privada, que se achem, respectivamente, no espao areo correspondente ou em alto-mar. (BRASIL, 2011a).

    Neste sentido, percebe-se, como salientado, que a legislao penal brasileira

    adota o princpio da territorialidade temperada, prevendo como territrio por fico

    as embarcaes e aeronaves brasileiras, sejam as de natureza pblica, como

    tambm as de servio do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como

    as aeronaves e as embarcaes brasileiras, mercantes ou de propriedade privada,

    que se achem, respectivamente, no espao areo correspondente ou em alto-mar,

    sendo tambm aplicvel, de acordo com o pargrafo segundo do referido artigo 5

    [...] a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcaes

    estrangeiras de propriedade privada, achando-se aquelas em pouso no territrio

    nacional ou em vo no espao areo correspondente, e estas em porto ou mar

    territorial do Brasil (BRASIL, 2011a). Todavia:

    [...] embora o campo natural de aplicao da lei penal de cada povo seja o territrio do prprio pas, a universalidade do problema do crime e o interesse comum das naes em dar-lhe combate alargaram o terreno de aplicao das normas punitivas, fazendo com que a matria viesse a ser governada por cinco princpios: a) o da territorialidade; b) o da nacionalidade; c) o da defesa; d) o da justia penal universal; e) e o da representao. (BRUNO; BATISTA, 1974, p. 12).

    O princpio territorial, com carter exclusivo, insuficiente para garantir a

    estabilidade e a segurana do Estado, tendo os Estados estendido a sua

    competncia punitiva a fatos cometidos fora de seu territrio. Nestes termos, d-se o

    nome de extraterritorialidade ao fenmeno que consiste na aplicao da lei penal

    brasileira a crime cometido no exterior, podendo a extraterritorialidade ser

    incondicionada, neste caso aplica-se a lei brasileira independentemente de qualquer

    condio, ou condicionada, quando, ento, haver alguma condicionante para a

    aplicao da lei. Ainda em relao ao conceito de extraterritorialidade, De Plcido e

    Silva (2008) salienta ser extraterritorialidade o mesmo que exterritorialidade, termo

    este ltimo definido pelo respectivo jurista como:

    Formado de ex (fora) e territrio, quer o vocbulo, em sentido prprio, exprimir a fora ou ao de uma lei, fora dos limites territoriais do Estado que, por sua soberania, a estabeleceu. O vigor das leis fora do territrio do pas, que as instituiu, ou seja, seu reconhecimento no estrangeiro, que este o sentido de exterritorialidade, assenta nos princpios e convenes internacionais, pois somente eles permitiro que a lei, transpondo as

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    fronteiras do pas, v ter eficcia em territrio estranho. (SILVA, 2008, p. 338).

    Os casos de extraterritorialidade incondicionada esto elencados no inciso I,

    os casos de extraterritorialidade condicionada esto elencados no inciso II, ambos

    do artigo 7 do Cdigo Penal, tendo sido tambm a redao do artigo dada pela Lei

    n 7.209, de 11 de julho de 1984.

    Com essas consideraes introdutrias, fundamental apresentar o problema

    que permeia o presente trabalho, ou seja, as perguntas objeto da pesquisa, quais

    sejam: inconstitucional a extraterritorialidade incondicionada como positivada no

    ordenamento jurdico brasileiro? Esta extraterritorialidade incondicionada fere o

    princpios do ne bis in idem?

    Com o objetivo de se responder a tais questes, o presente trabalho se

    subdivide em trs partes: a) as espcies e os princpios atinentes

    extraterritorialidade; b) a anlise da extraterritorialidade como afronta ao princpio

    constitucional do ne bis in idem; e c) concluso.

    Deste modo, almeja-se, assim, por intermdio do presente trabalho,

    demonstrar a inconstitucionalidade do artigo inciso I do 7 do Cdigo Penal

    brasileiro, ao possibilitar a dupla punio, ferindo, destarte, o princpio do ne bis in

    idem.

    2 EXTRATERRITORIALIDADE: PRINCPIOS E ESPCIES

    Jos Afonso da Silva define princpios como as normas mais importantes do

    sistema, (SILVA, 1998), ou seja, a estrutura do ordenamento jurdico, fontes das

    quais emanaram todos os substratos para a legislao, doutrina e jurisprudncia.

    Assim, no que se refere extraterritorialidade da lei penal, a doutrina elenca

    os seguintes princpios: 1) princpio da justia penal universal ou cosmopolita; 2)

    princpio real, da proteo ou da defesa; 3) princpio da personalidade ou

    nacionalidade ativa; 4) princpio da personalidade ou nacionalidade passiva; e 5)

    princpio da representao ou bandeira.

    De acordo com o princpio da justia penal universal ou cosmopolita, tambm

    denominado de extraterritorialidade absoluta, a gravidade do crime ou a importncia

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    do bem jurdico ofendido justificam a aplicao da lei penal brasileira,

    independentemente do local do crime ou da nacionalidade do agente. Discorrendo

    sobre o referido princpio, Anbal Bruno e Nilo Batista salientam que:

    O critrio da justia penal universal, ou extraterritorialidade absoluta, vai mais longe: alarga as possibilidades da luta contra o crime, fazendo aplicar-se ao criminoso a lei penal do pas onde venha a ser detido, sem ter em conta o lugar onde o fato se praticou, nem a nacionalidade do agente ou do titular do bem ofendido. Este princpio no de fcil aplicao, sobretudo pelas diferenas que ainda separam, em diversos cdigos, as solues para a mesma matria, apesar do movimento que se vem processando no sentido de aproximar entre si as vrias legislaes penais, tendo em vista o tipo comum de civilizao que se desenvolve entre os povos modernos. (BRUNO; BATISTA, 1974, p. 14-15).

    Por sua vez, de acordo com o princpio real, da proteo ou da defesa,

    justifica-se a aplicao da lei penal brasileira sempre que um crime ofender um bem

    jurdico nacional de origem pblica, tal princpio visa proteo do patrimnio

    pblico nacional e da soberania nacional, salientando que o princpio real, da

    proteo ou da defesa visa proteo de interesses jurdicos de vital importncia

    para o Estado. Assim, o que prevalece a considerao da nacionalidade do titular

    do bem ofendido, deslocando-se o Direito para estender a sua proteo aos bens do

    pas ou de seus nacionais. (BRUNO; BATISTA, 1974).

    O princpio da personalidade ou nacionalidade ativa sustenta ser aplicvel a

    lei penal brasileira a crimes cometidos no exterior desde que tenham sido praticados

    por nacionais (no caso brasileiros), ou seja, leva-se em considerao a

    nacionalidade do agente para sua punio. J pelo princpio da personalidade ou

    nacionalidade passiva pune-se um crime cometido no exterior desde que a vtima

    seja um brasileiro, um nacional, por isso a nacionalidade passiva.4

    O princpio da representao ou bandeira sustenta ser aplicvel a lei brasileira

    a crimes cometidos dentro de embarcaes de bandeira nacional. Assim, cometido

    um crime dentro de uma aeronave privada brasileira no exterior, poder ser aplicada

    a lei penal brasileira. Em relao ao referido princpio da representao ou bandeira,

    Alberto da Silva Franco (1995) salienta que sua incluso no texto do Cdigo Penal,

    por decorrncia da Reforma de 1984, foi a alterao mais significativa, no que tange

    aos princpios gerais reguladores da matria.

    4 Insta salientar que alguns estudiosos no costumam efetivar a diferena entre princpio da

    personalidade ou da nacionalidade ativa e princpio da personalidade ou da nacionalidade passiva, considerando os mesmos como uno: princpio da personalidade ou da nacionalidade.

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    2.1 Extraterritorialidade incondicionada

    No que se refere extraterritorialidade, o Cdigo Penal brasileiro de 1940

    dispe no seu artigo 7 que:

    Art. 7 - Ficam sujeitos lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: I - os crimes: a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da Repblica; b) contra o patrimnio ou a f pblica da Unio, do Distrito Federal, de Estado, de Territrio, de Municpio, de empresa pblica, sociedade de economia mista, autarquia ou fundao instituda pelo Poder Pblico; c) contra a administrao pblica, por quem est a seu servio; d) de genocdio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil [...]. (BRASIL, 2011a).

    Inicialmente, Jlio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini (2010) salientam,

    acertadamente, a impreciso da lei ao se referir aos crimes cometidos no

    estrangeiro, em vez de fora do territrio nacional, tendo em vista o fato de

    situaes previstas no artigo 5, j abordado, serem consideradas parte do territrio

    nacional.

    De acordo com o pargrafo primeiro do artigo 7: 1 - Nos casos do inciso I,

    o agente punido segundo a lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado no

    estrangeiro. (BRASIL, 2011a). Assim, o referido pargrafo primeiro est salientando

    serem os quatro casos do inciso I, hipteses de extraterritorialidade incondicionada,

    ou seja, mesmo que o autor do fato criminoso tenha sido processado, condenado ou

    cumprido pena no exterior, o mesmo tambm poder ser processado no Brasil,

    independentemente de qualquer condio. Insta salientar ser este rol taxativo, em

    respeito aos postulados do princpio da legalidade.

    Primeiramente: os crimes contra a vida ou a liberdade do Presidente da

    Repblica; crimes contra o patrimnio ou a f pblica da Unio, do Distrito Federal,

    de Estado, de Territrio, de Municpio, de empresa pblica, sociedade de economia

    mista, autarquia ou fundao instituda pelo Poder Pblico; crimes contra a

    administrao pblica, por quem est a seu servio; e crime de genocdio, quando o

    agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil.

    No que se refere aos princpios atinentes extraterritorialidade

    incondicionada, as alneas a, b e c do inciso I adotaram o princpio real, da proteo

    ou da defesa. A alnea d, por sua vez, adotou o princpio da justia penal universal

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    ou cosmopolita, tendo em vista reprimir o crime de genocdio, crime de gravidade e

    repercusso mundial.

    importante salientar o fato de que o inciso I do artigo 7 do CP fere o

    princpio do ne bis in idem, ao permitir que, mesmo que absolvido ou condenado

    no estrangeiro, o agente ser julgado pela lei brasileira. Todavia, o CP, com o

    objetivo de amenizar a dupla incriminao, positivou em seu artigo 8 que: A pena

    cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando

    diversas, ou nela computada, quando idnticas. (BRASIL, 2010a).

    Neste sentido, de acordo com o artigo 8, a pena cumprida no estrangeiro

    atenua a imposta no Brasil pelo mesmo crime, caso sejam diversas, ou nela

    computada, quando idnticas, salientando que a redao do artigo tambm foi dada

    pela Lei n 7.209, de 11 de julho de 1984.

    Nos casos de extraterritorialidade condicionada, conforme ser abordado na

    prxima seo, a pena cumprida no exterior faz desaparecer o interesse brasileiro

    em punir o criminoso, independentemente de qual tenha sido a pena. J nos casos

    de extraterritorialidade incondicionada, caso o infrator entre em territrio nacional

    estar sujeito punio, pouco importando tenha sido o mesmo absolvido ou

    condenado no exterior.

    Nos casos de extraterritorialidade condicionada, a pena cumprida no exterior

    faz desaparecer o interesse brasileiro em punir o criminoso, independentemente de

    qual tenha sido a pena. J nos casos de extraterritorialidade incondicionada, caso o

    infrator entre em territrio nacional estar sujeito punio, pouco importando tenha

    sido o mesmo absolvido ou condenado no exterior.

    Assim, para que se impea a aplicao do bis in idem, respeitando o princpio

    do ne bis in idem, o qual impede uma dupla punio, o artigo 8 criou uma norma

    compensadora. Deste modo, de acordo com o artigo 8, a pena cumprida no

    estrangeiro atenua a imposta no Brasil pelo mesmo crime, caso sejam diversas, ou

    nela computada, quando idnticas, tendo a redao do artigo sido dada pela Lei n

    7.209, de 11 de julho de 1984. Nesse sentido, Cezar Roberto Bitencourt salienta

    que:

    Nenhum Estado Democrtico de Direito pode ignorar o provimento jurisdicional de outro Estado Democrtico de Direito, devendo, no mnimo, compensar a sano aplicada no estrangeiro, mesmo que de natureza diversa. Menos mal que o disposto no art. 8 corrige, de certa forma, essa

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    anomalia, prevendo a compensao da pena cumprida no estrangeiro. (BITENCOURT, 2010, p. 203-204).

    Destarte, caso um indivduo adentre ao territrio nacional, tendo sido

    condenado e cumprido pena privativa de liberdade l, e aqui tambm seja imposta a

    pena privativa de liberdade, ser feita a compensao. Caso tenha sido condenado

    a multa no exterior e a lei brasileira preveja pena privativa de liberdade, haver a

    aplicao de uma pena atenuada no Brasil.

    de se salientar, de acordo com Guilherme de Souza Nucci (2007a) que:

    essa previso legislativa no se coaduna com a garantia constitucional de que

    ningum pode ser punido ou processado duas vezes pelo mesmo fato consagrada

    na Conveno Americana dos Direitos Humanos, em vigor no Brasil [...]. (NUCCI,

    2007a, p. 102).

    Paulo Jos da Costa Jr. (2002) esclarece que pode haver duas hipteses de

    diversidade: a diversidade quantitativa e a qualitativa, caso a diversidade seja de

    qualidade (ex. pena privativa de liberdade no exterior e multa no Brasil) a atenuao

    se faz imperiosa, ficando o quantum de atenuao ao critrio do magistrado. Caso a

    diversidade seja quantitativa, o magistrado brasileiro dever abater no clculo da

    pena aquela j cumprida no estrangeiro, caso seja idntica ou inferior, nenhuma

    pena restar ao condenado. Assim, caso o condenado tenha cumprido 5 (cinco)

    anos de pena no exterior e seja condenado no Brasil a 7 (sete) anos, dever ser

    abatido o tempo (7 menos 5), devendo cumprir, ento, 2 (dois) anos.

    2.2 Extraterritorialidade condicionada

    Esto elencados no inciso II do artigo 7 do Cdigo Penal brasileiro os casos

    de extraterritorialidade condicionada, os quais so:

    Art. 7 - Ficam sujeitos lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: [...] II - os crimes: a) que, por tratado ou conveno, o Brasil se obrigou a reprimir; b) praticados por brasileiro; c) praticados em aeronaves ou embarcaes brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em territrio estrangeiro e a no sejam julgados. (BRASIL, 2011a).

  • 10 Publicado na Revista Jurdica, v. 60, n. 411 janeiro de 2012.

    As trs hipteses acima referem-se extraterritorialidade condicionada, ou

    seja, poder ser aplicada a lei brasileira ao fato cometido no exterior, mas devero

    ser preenchidos alguns requisitos, os quais esto elencados no pargrafo 2 do

    artigo em anlise, os quais so:

    2 - Nos casos do inciso II, a aplicao da lei brasileira depende do concurso das seguintes condies: a) entrar o agente no territrio nacional; b) ser o fato punvel tambm no pas em que foi praticado; c) estar o crime includo entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradio; d) no ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou no ter a cumprido a pena; e) no ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, no estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorvel. (BRASIL, 2011a).

    No que se refere aos princpios adotados, a alnea a do inciso II adotou o

    princpio da justia penal universal ou cosmopolita. A alnea b adotou o princpio da

    personalidade ou nacionalidade ativa. Por sua vez a alnea c adotou o princpio da

    representao ou da bandeira.

    Conforme salientado, o inciso I refere-se aos casos de extraterritorialidade

    incondicionada, no havendo a necessidade de preenchimento de qualquer

    condio para a aplicao da lei brasileira, ainda que o agente tenha sido absolvido

    ou condenado no estrangeiro.

    O pargrafo 2 traz as condies para aplicao da lei brasileira a crimes

    cometidos no exterior: a) entrar o agente no territrio nacional, o que poder se dar

    de modo espontneo ou atravs de pedido de extradio; b) ser o fato punvel

    tambm no pas em que foi praticado: deve estar preenchido o critrio da dupla

    tipificao; c) estar o crime includo entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza

    a extradio: de acordo com os incisos IV e VII do artigo 77 da Lei n. 6.815 de

    1980, o Estatuto do Estrangeiro, no poder haver extradio se a lei brasileira

    impuser ao crime a pena de priso igual ou inferior a um ano, como tambm fato

    constitudo como crime poltico; d) no ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou

    no ter a cumprido a pena: nesse caso no poder haver a extraterritorialidade; e e)

    no ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, no estar extinta

    a punibilidade, segundo a lei mais favorvel: se o agente tiver sido perdoado no

  • 11 Publicado na Revista Jurdica, v. 60, n. 411 janeiro de 2012.

    estrangeiro ou se estiver extinta a punibilidade (de acordo com a lei mais favorvel),

    no se admitir a extraterritorialidade.

    Por sua vez, o mesmo artigo 7, em seu pargrafo terceiro, traz outro caso de

    extraterritorialidade condicionada, nos seguintes termos:

    Art. 7 - Ficam sujeitos lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: [...] 3 - A lei brasileira aplica-se tambm ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil, se, reunidas as condies previstas no pargrafo anterior: a) no foi pedida ou foi negada a extradio; b) houve requisio do Ministro da Justia. (BRASIL, 2011a).

    O pargrafo 3 traz outra hiptese de extraterritorialidade condicionada, o

    crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil. Neste caso, alm de

    estarem presentes as condies do pargrafo 2 (num nmero de 5) devem estar

    presentes outras duas condies (totalizando para esse hiptese 7 condies): que

    no tenha sido pedida ou que tenha sido negada (pelo Brasil) a extradio do autor

    do crime ao pas onde o mesmo tenha sido cometido e desde que tenha havido

    requisio do Ministro da Justia.

    Assim, o pargrafo 3 do artigo 7 adotou o princpio da personalidade ou

    nacionalidade passiva, apesar de Guilherme de Souza Nucci (2007) defender

    posicionamento diverso, entendendo ter o referido pargrafo agasalhado o princpio

    real, da proteo ou da defesa.

    3 A EXTRATERRITORIALIDADE COMO AFRONTA AO PRINCPIO DO NE BIS IN IDEM

    A Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 prev no pargrafo

    segundo de seu artigo 5 que: [...] 2 - Os direitos e garantias expressos nesta

    Constituio no excluem outros decorrentes do regime e dos princpios por ela

    adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil

    seja parte. (BRASIL, 2011b). Neste sentido, a Conveno Americana dos Direitos

    Humanos, em vigor no Brasil, est inserida como emenda constitucional no

  • 12 Publicado na Revista Jurdica, v. 60, n. 411 janeiro de 2012.

    ordenamento jurdico brasileiro, por intermdio da abertura concedida pelo citado

    dispositivo constitucional.

    A referida Conveno Americana sobre Direitos Humanos, assinada na

    Conferncia Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, ocorrida em So

    Jos da Costa Rica em 22 de novembro de 1969, traz em seu texto, especificamente

    em seu artigo 8, a garantia constitucional de que ningum poder ser processado

    duas vezes pelo mesmo fato (o princpio do ne bis in idem), o qual um dos

    postulados do Direito Penal democrtico. Neste sentido, o inciso IV do artigo 8 tem

    como contedo: Artigo 8. Garantias judiciais [...] 4. O acusado absolvido por

    sentena passada em julgado no poder ser submetido a novo processo pelos

    mesmos fatos. (CIDH, 2011). Ou seja, se no poder ser submetido a novo

    processo, consequentemente no poder ser punido duas vezes pelo mesmo fato.

    Assim, Guilherme de Souza Nucci salienta que a proibio de dupla punio em

    virtude do mesmo fato criminoso decorre de dois princpios constitucionais: o

    princpio da legalidade em harmonia com o princpio da vedao do duplo processo

    pelo mesmo acontecimento. (NUCCI, 2010). Em relao a tal vedao, ainda no ano

    de 1880, Pasquale Fiore salientava que:

    Um princpio incontestvel de direito pblico que no se pode perseguir novamente, pelo mesmo delito, a qualquer pessoa que tenha sido legal e definitivamente julgada. A coisa julgada extingue a ao pblica, invocada como exceo pelo acusado, tendo mais fora que a prpria verdade. Que o acusado tenha sido condenado ou absolvido por erro, a coisa julgada uma gide que o protege. Uma consequncia destes princpios o adgio dos criminalistas antigos e modernos, bis in idem non judicatur, que foi consagrado juridicamente em todas as legislaes penais. (FIORE, 1880, p. 98, traduo nossa5).

    Buscando elementos para a anlise da vedao do bis in idem na legislao

    estrangeira, insta salientar que, de acordo com o inciso III do artigo 103 da Lei

    Fundamental alem (Grundgesetz): [...] (3) Ningum pode ser condenado mais de

    uma vez por causa da prtica do mesmo ato com base em leis penais gerais. ().

    Neste sentido, o Tribunal Constitucional alemo julgando conjuntamente oito

    5 Un principio incontestado en derecho pblico es que no se puede perseguir de nuevo, por el mismo delito, cualquiera que haya sido legal y definitivamente juzgado. La cosa juzgada extingue la accion pblica; invocada como excepcion por el acusado, tiene ms fuerza que la verdad misma. Que el acusado haya sido condenado, absuelto por error, la cosa juzgada es una egida que le protege. Una consecuencia de estos principios es el adagio de los criminalistas antiguos y modernos, bis in dem non judicatur, que ha sido consagrado jurdicamente en todas las legislaciones penales. (FIORE, 1880, p. 98).

  • 13 Publicado na Revista Jurdica, v. 60, n. 411 janeiro de 2012.

    reclamaes constitucionais, reconheceu violar o princpio do ne bis in idem o fato

    de os reclamantes, Testemunhas de Jeov, tendo recusado a prestao de servio

    militar, terem sido condenados pelos tribunais penais competentes por crime de

    desero (Dienstflucht), segundo a Lei do Servio Substitutivo Civil, tendo os

    mesmos cumprido inteiramente as penas.

    Todavia, aps o trnsito em julgado de seus processos penais, em parte,

    durante ou aps o cumprimento das penas, os reclamantes foram, pelo Ministro do

    Trabalho, como rgo competente para a convocao para o servio substitutivo

    civil, novamente intimados do chamamento [concreto] para o incio do servio ou de

    um novo aviso de convocao, que eram [administrativamente] sujeitos

    impugnao. Uma vez que os reclamantes novamente no iniciaram o servio

    substitutivo civil, eles foram novamente acusados de desero pelo Ministro do

    Trabalho, e, consequentemente, condenados.

    O Tribunal Constitucional alemo, analisando as reclamaes salientou que:

    [...] de acordo com dispositivo constitucional, ningum poder, com base nas leis penais gerais, ser punido mais do que uma vez pelo mesmo ato. 1. a) A norma jurdica ne bis in idem valeu desde sempre como preceito fundamental do direito processual penal. Ela foi claramente reconhecida pela jurisprudncia como direito vigente para as decises judiciais (Urteile) prolatadas com base em audincia (debate oral). Ela adquiriu por intermdio do Art. 103 III GG status constitucional. (MARTINS, 2005, p. 943).

    Ademais, ponderou o Tribunal que, o princpio ne bis in idem exclui a

    persecuo penal repetida do mesmo ato que fora objeto do primeiro julgamento.

    Por outro lado, quando uma outra ao est em questo, o princpio no se torna

    aplicvel pelo fato de que este ato e o primeiro tenham a mesma natureza. Neste

    sentido, decisivo o processo histrico ao qual a acusao [denncia] e a deciso

    judicial de [seu] recebimento [Erffnungsbeschluss) se referem, e no qual o acusado

    teria cometido ou participado de uma conduta tipificada.

    O Direito norte-americano tambm repudia o bis in idem, conforme se

    depreende da leitura da Quinta Emenda de sua Constituio, a carta de governo

    mais antiga do mundo, a qual traz, de modo conciso, que: ningum dever pelo

    mesmo crime [...] ser posto mais de uma vez em perigo de vida ou integridade.

    (WEINBERGER, 1965, p. 81). Em relao ao teor dessa Emenda, encontra-se na

    jurisprudncia norte-americana o Case Barkus vs. Estado de Illinois de 1959, o qual

    pode ser resumido nos seguintes termos:

  • 14 Publicado na Revista Jurdica, v. 60, n. 411 janeiro de 2012.

    O requerente foi julgado no Tribunal Federal Distrital da Regio Norte do Estado de Illinois, a 18 de dezembro de 1953, por assalto a uma caixa econmica garantida pelo Governo federal [...] O caso foi encaminhado a um jri federal e resultou em absolvio. A 8 de janeiro de 1954, um grande jri estadual de Illinois pronunciou Barkus. Os fatos articulados nessa pronncia eram substancialmente idnticos aos da precedente acusao federal. A pronncia estadual sustentava que esses fatos constituam violao da Consolidao das Leis de Illinois [...] Barkus foi ento julgado e condenado no Tribunal Criminal da Comarca de Cook e sentenciado a priso perptua. (WEINBERGER, 1965, p. 83).

    Assim, no final do procedimento, o juiz Frankfurter, relator do acrdo

    salientou que: hoje, pela primeira vez em sua histria, esta Corte confirma a

    condenao, por um Estado, de um ru absolvido do mesmo crime pelos tribunais

    federais. (WEINBERGER, 1965, p. 85). Continuando suas alegaes, Frankfurter

    afirma que um julgamento federal em seguida a uma absolvio ou condenao,

    est proibido pela clusula do Duplo-Risco da Quinta Emenda. Ainda neste sentido,

    o juiz Frankfurter fundamenta sua opinio salientando que:

    O medo e a averso ao poder governamental de julgar duas vezes a mesma conduta um dos princpios mais antigos da civilizao ocidental. Suas razes aprofundam-se nos tempos dos Gregos e dos Romanos. Mesmo na Idade Mdia, quanto tantos outros princpios de justia ficaram abandonados, a ideia de que um s julgamento e uma s punio bastavam permaneceu viva na lei cannica e nos ensinamentos dos primeiros filsofos cristos. Por volta do sculo XIII, presume-se pela primeira vez que ela estava firmemente estabelecida na Inglaterra, onde veio a ser considerada um princpio fundamental de direito costumeiro. (WEINBERGER, 1965, p. 85-86).

    Por sua vez, o Cdigo Penal portugus em seu artigo 6, inciso I, (Restries

    aplicao da lei portuguesa) traz que: 1 - A aplicao da lei portuguesa a factos

    praticados fora do territrio nacional s tem lugar quando o agente no tiver sido

    julgado no pas da prtica do fato ou se houver subtrado ao cumprimento total ou

    parcial da condenao. (PORTUGAL, 2011). Da leitura do referido dispositivo

    depreende-se que o referido dispositivo do Cdigo Penal portugus evita que

    algum cumpra duas vezes uma pena, ao permitir que se aplique a legislao penal

    portuguesa caso o agente no tenha sido julgado no lugar da prtica do crime, ou,

    caso tenha sido julgado, no tenha cumprido totalmente a pena.

    Uma outra vedao expresso dupla incriminao encontra-se no

    ordenamento jurdico paraguaio, especificamente no inciso 4 do artigo 17 da

    Constituio, trazendo tambm o Cdigo Penal paraguaio a vedao expressa em

  • 15 Publicado na Revista Jurdica, v. 60, n. 411 janeiro de 2012.

    seus artigos 6 e 8, os quais excluem a punio pela lei penal paraguaia, quando

    um tribunal estrangeiro tenha absolvido ou o tenha condenado. (MONTANA;

    ROLN, 2005).

    Um ltimo exemplo, no que se refere no aceitao da dupla, positivado no

    Estatuto do Tribunal para a ex-Iugoslvia, trazido por Rodrigo Lled Vasquz, o

    qual salienta que:

    Atendido o fato de que um grande nmero de acusados podem encontrar-se em pases cujas autoridades esto dispostas a julg-los, em conformidade com o princpio aut dedere autjudicare, o Estatuto do Tribunal para a ex-Iugoslvia consagrou o princpio do ne bis in idem, segundo o qual uma pessoa que tenha sido julgada pelo Tribunal, no ser julgada posteriormente por um Tribunal nacional. Do mesmo modo, a pessoa que tenha sido julgada por um Tribunal nacional no poder ser julgada novamente pelo Tribunal internacional. (LLED VSQUEZ, 2000, p. 209-210, traduo nossa6).

    A jurisprudncia brasileira tambm vem reconhecendo a vedao da dupla

    punio em diversos acrdos e sentenas, assim, apenas a ttulo de ilustrao, o

    Supremo Tribunal Federal na Extradio 1038-IT reconheceu, analisando um pedido

    extradicional motivado por duas condenaes do Tribunal de Apelao de Brescia

    Itlia, condenaes estas motivadas por fatos distintos, descaracterizando o bis in

    idem, que:

    Eventual ocorrncia de crime continuado entre as duas condenaes matria estranha jurisdio extradicional passiva, caracterizando juzo de mrito que deve ser enfrentado pela justia italiana. (Ext. 1.038, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 17-5-07, Plenrio, DJ de 15-6-07). (STF, 2006, p. 19).

    Assim, percebe-se que o ordenamento jurdico penal do Estado Constitucional

    de Direito moderno, repudia a possibilidade da dupla incriminao em respeito ao

    princpio da legalidade, do qual decorre o princpio do ne bis in idem, possibilitando,

    assim, a efetivao de um Direito Penal garantista que tenha o ser humano como

    sujeito de direitos.

    6 Atendido el hecho de que gran nmero de los acusados pueden encontrarse en pases cuyas autoridades ests dispuestas a juzgarlos, de conformidad al principio aut dedere autjudicare, el Estatuto del Tribunal para la ex-Yugoslavia consagr el principio non bis in dem, segn el cual una persona que haya sido juzgada por el Tribunal, no ser juzgada posteriormente por un Tribunal nacional. Del mismo modo, la persona que haya sido juzgada por un Tribunal nacional no podr ser juzgada nuevamente por el Tribunal internacional. (LLED VSQUEZ, 2000, p. 209-210).

  • 16 Publicado na Revista Jurdica, v. 60, n. 411 janeiro de 2012.

    4 CONCLUSO

    Do exposto conclui-se que o crime um fenmeno que interessa no s

    sociedade da base geogrfica na qual o mesmo foi cometido, como a toda a

    sociedade, gerando reflexos na harmonia social, poltica e institucional daquele local,

    como tambm de locais prximos e at mesmo distantes, o que faz com que as

    legislaes penais insiram em seu texto casos de extraterritorialidade, seja

    incondicionada ou condicionada. De acordo com esta realidade, Insta salientar que,

    muitos crimes possuem reflexos em toda a sociedade mundial, estando se

    desenvolvendo h muito uma moderna teoria do Direito Penal Internacional.

    Neste sentido, em relao a uma busca internacional ao combate

    criminalidade, os tratados e convenes internacionais referentes ao combate a

    crimes contra a humanidade provam esta realidade.

    Todavia, a extraterritorialidade da lei penal, como positivada no artigo 7 do

    Cdigo Penal brasileiro, fere o princpio do ne bis in idem, um dos princpios mais

    importantes do Direito Penal democrtico. No se questiona, como salientado, a

    possibilidade de o Estado brasileiro acionar seu jus puniendi em face de autores de

    infraes penais descritas, atualmente, como hipteses de extraterritorialidade

    incondicionada, mas sim o fato de se permitir que o Estado puna o autor de tais atos

    mesmo que o mesmo j tenha respondido a ao penal pelo mesmo fato no Estado

    estrangeiro.

    Assim, a soluo seria considerar como condio para punio nestas

    hipteses o que tambm est previsto no artigo 7, inciso II, alnea d, ou seja, no ter

    sido o agente absolvido no estrangeiro ou no ter a cumprido a pena, ou seja,

    seriam hipteses de extraterritorialidade condicionada, todavia com menos

    requisitos, facilitando, destarte, a aplicao da lei penal brasileira, e no ferindo o

    princpio do ne bis in idem. Assim, inexistiria a extraterritorialidade incondicionada no

    ordenamento jurdico brasileiro, sendo sempre condio para aplicao da lei penal

    brasileira a fatos cometidos no estrangeiro a condio de no ter sido o agente

    absolvido no estrangeiro ou no ter l cumprido a pena, o que afastaria tambm a

    necessidade do artigo 8 do Cdigo Penal como norma compensadora, o que

    garantir o respeito ao Direito Penal democrtico e garantista.

  • 17 Publicado na Revista Jurdica, v. 60, n. 411 janeiro de 2012.

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