a utopia nos projetos urbanos: o caso de vila planalto em brasília

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URB- 5 Utopías urbanas en América Latina. Siglos XIX y XX Prof. Dra. Christiane Machado Coêlho Centro de Estudos e Investigação em Sociologia (CIES-ISCTE), Lisboa Email: [email protected] 1 “A utopia nos projetos urbanos: o caso de Vila Planalto em Brasília” Como se constitui um espaço? Pretender-se-á discutir, a partir do projeto de “Cidades utópicas”, como os espaços se constituem, se transformam e se consolidam. Como analisar algumas tentativas de realização de projetos tidos por utópicos? O potencial do Novo Mundo enquanto espaço de experimentação urbana foi sempre promissor. No caso, pretender-se-á discutir o caso de Brasília (Brasil). Em Brasília, pode-se analisar em que medida projetos de “cidades do futuro” podem ter uma validade específica, histórica, temporal. O “futuro de ontem” pode ser materializado no tempo através de alguns projetos particulares, como o de Brasília, que refletem o projeto de uma racionalização funcional do espaço. De forma associada ao boom da indústria automobilística e ainda sob o prisma de uma “racionalização moderna”— em que princípios da Carta de Atenas são associados ao modelo das “cidades jardim” de Ebenezer Howard 1 o projeto de Brasília como uma cidade setorizada, em forma de avião, reflete ao mesmo tempo uma crença e uma tentativa de racionalizar e maximizar a utilização do espaço. A construção de Brasília no final dos anos 50 representa a tentativa de concretização de uma utopia urbana. A idéia de uma capital moderna como nova representante política do Brasil traduzia 1 Bárbara FREITAG, “Utopias Urbanas”, Conferência apresentada no X Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia, realizado entre 3 e 7 de setembro de 2001, em Fortaleza (Brasil), p. 14. 1

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Como se constitui um espaço? Pretender-se-á discutir, a partir do projeto de “Cidades utópicas”, como os espaços se constituem, se transformam e se consolidam. Como analisar algumas tentativas de realização de projetos tidos por utópicos? O potencial do Novo Mundo enquanto espaço de experimentação urbana foi sempre promissor. No caso, pretender-se-á discutir o caso de Brasília (Brasil).

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  • URB- 5 Utopas urbanas en Amrica Latina. Siglos XIX y XXProf. Dra. Christiane Machado ColhoCentro de Estudos e Investigao em Sociologia (CIES-ISCTE), LisboaEmail: [email protected]

    1

    A utopia nos projetos urbanos: o caso de Vila Planalto em Braslia

    Como se constitui um espao? Pretender-se- discutir, a partir

    do projeto de Cidades utpicas, como os espaos se constituem, se

    transformam e se consolidam. Como analisar algumas tentativas de

    realizao de projetos tidos por utpicos? O potencial do Novo Mundo

    enquanto espao de experimentao urbana foi sempre promissor. No

    caso, pretender-se- discutir o caso de Braslia (Brasil).

    Em Braslia, pode-se analisar em que medida projetos de

    cidades do futuro podem ter uma validade especfica, histrica,

    temporal.

    O futuro de ontem pode ser materializado no tempo atravs

    de alguns projetos particulares, como o de Braslia, que refletem o

    projeto de uma racionalizao funcional do espao. De forma associada

    ao boom da indstria automobilstica e ainda sob o prisma de uma

    racionalizao moderna em que princpios da Carta de Atenas so

    associados ao modelo das cidades jardim de Ebenezer Howard1 o

    projeto de Braslia como uma cidade setorizada, em forma de avio,

    reflete ao mesmo tempo uma crena e uma tentativa de racionalizar e

    maximizar a utilizao do espao.

    A construo de Braslia no final dos anos 50 representa a

    tentativa de concretizao de uma utopia urbana. A idia de uma

    capital moderna como nova representante poltica do Brasil traduzia

    1 Brbara FREITAG, Utopias Urbanas, Conferncia apresentada no X Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia, realizado entre 3 e 7 de setembro de 2001, em Fortaleza (Brasil), p. 14.

    1

  • um projeto de sociedade em um momento de grande desenvolvimento

    econmico no pas.

    As conseqncias de construo de Braslia no plano social e

    humano merecem um estudo mais detalhado, o que se prope discutir a

    partir do caso de Vila Planalto. Antigo acampamento da construo

    civil, este espao alojou desde os operrios da construo civil, aos

    engenheiros e polticos que passaram esporadicamente neste espao,

    at inaugurao de Braslia. Apesar de um longo perodo de

    clandestinidade, Vila Planalto foi reconhecida como patrimnio do

    Distrito Federal brasileiro em 1988 ano posterior ao reconhecimento

    de Braslia como patrimnio da humanidade em 1987.

    O processo associado e complementar de formao destes dois

    espaos merece ser analisado enquanto conseqncia visvel de um

    projeto urbano. Projetos de futuro e projetos de sociedade tm este

    exemplo concreto de associao entre planejamento e espontaneidade,

    projeto e realidade, utopias e inseres sociais, refundao nacional e

    experimentao social. So muitas as dicotomias presentes neste

    contexto. As questes da preservao, da memria e da histria

    merecem ser igualmente discutidas, tal como o processo de

    constituio de um patrimnio e a gesto da preservao local.

    Este estudo pretende mostrar algumas das conseqncias e

    ambigidades do processo de consolidao de Braslia, a partir do

    estudo de Vila Planalto. O processo de consolidao de Vila Planalto

    interessa enquanto conseqncia no planejada e no previsvel do

    processo de edificao de Braslia.

    Apesar de todo o projeto de Braslia como uma cidade do

    futuro, moderna, associada ao projeto de mudana poltica,

    administrativa e espacial da capital brasileira para o interior do Brasil,

    regio conhecida anteriormente pelo baixo povoamento e atraso de

    desenvolvimento econmico e social o projeto de construo de

    uma capital moderna no interior do pas visava alterar esta imagem

    2

  • associada ao interior do Brasil2.

    Como sublinha Euclides da Cunha, o serto possui

    caractersticas peculiares que o distinguem do litoral, regio onde se

    desenvolveram as maiores cidades brasileiras. conhecido como a

    terra esquecida, seja pela metrpole portuguesa; seja posteriormente

    pela monarquia brasileira:

    Porque ali ficaram, inteiramente divorciados do resto do

    Brasil e do mundo, murados a leste pela Serra Geral, tolhidos no

    ocidente pelos amplos campos gerais, que se desatam para o Piau e

    que ainda hoje o sertanejo acredita sem fins. O meio atraa-o e

    guardava-os3.

    O isolamento geogrfico e a ausncia de investimentos estatais

    dificultavam a dinamizao econmica e populacional desta parte do

    Brasil.

    No caso de Braslia, Vila Planalto representa ao mesmo tempo

    os bastidores e o outro lado da moeda da nova capital brasileira. Em

    primeiro lugar, a idia de bastidor reflete o aspecto provisrio e

    necessrio de Vila Planalto nos incios de Braslia. A ausncia de infra-

    estrutura urbana na regio onde foi planejada a cidade provocava a

    necessidade de estruturao de espaos que pudessem instalar a mo-

    de-obra e os servios necessrios para edificao de Braslia. Em

    segundo lugar, a idia de outro lado da moeda reflete as

    conseqncias imprevisveis e distintas de Braslia enquanto projeto

    sua consolidao como cidade. Vila Planalto representa as contradies

    e os aspectos no previsveis da construo de Braslia.

    Vila Planalto pode ser analisada como uma anti-Braslia, no

    sentido em que representa aspectos antagnicos, diferenciados do

    imaginrio associado a Braslia. Braslia conhecida

    internacionalmente como uma capital moderna. Em oposio, Vila

    Planalto assemelha-se a um vilarejo da provncia instalado em pleno

    2 Os Sertes, Euclides da Cunha, Campanha de Canudo, Rio de Janeiro, Laemert, 1902.3 Cf. Walnice Galvo, Editora tica, 1998, p. 190.

    3

  • corao da cidade, em que aspectos buclicos so presentes, seja nos

    tipos de casas; seja na organizao do espao em forma de pequenas

    ruas. O setor da restaurao tem crescido muito na Vila Planalto, e

    costuma ser freqentado pelo alto escalo do funcionalismo pblico

    brasileiro.

    Cidades utpicas

    A relao entre projetos urbanos e projetos utpicos no deve

    ser dissociada de modelos possveis ( e desejados) de sociedade. Como

    menciona Brbara Freitag:

    Atrs da concepo da cidade utpica escondia-se a idia de

    uma sociedade perfeita, harmnica, livre dos defeitos das cidades e

    sociedades histricas em que viviam os seus idealizadores4.

    Analisando-se o histrico de alguns projetos de cidades

    utpicas, deparamo-nos com a ausncia de projetos neste sentido

    durante o advento do cristianismo. Durante a Idade Mdia, a utopia era

    transferida para depois da morte, no Reino dos cus5. J no

    Renascimento, a utopia urbana reaparece sob o prisma de uma

    sociedade perfeita, assente no modelo de uma sociedade ideal6:

    A reviso de vrias utopias urbanas que filsofos,

    economistas, socialistas, arquitetos e urbanistas procuraram

    desenvolver para melhorar as condies de vida dos moradores neste

    planeta, raras vezes encontraram sua realizao. Na maioria das

    vezes o modelo utpico permaneceu uma virtualidade, sem chances de

    impor-se na realidade. Outras vezes, a utopia reverteu-se em seu

    contrrio, perverteu-se. Longe de realizar um sonho intensamente

    4 Brbara FREITAG, Utopias Urbanas, Conferncia apresentada no X Encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia, realizado entre 3 e 7 de setembro de 2001, em Fortaleza (Brasil), p. 3.5 Id., p.6. Em relao ao histrico de projetos urbanos utpicos, Freitag basea-se na obra de Patrice Moncan, Villes Rves, Paris, Les ditions du Mcne, 1998.6 Ibidem.

    4

  • desejado pela maioria dos seres humanos, transformou-se em um

    pesadelo. Vale aqui mencionar o desmoronamento das sociedades

    socialistas, que almejavam trazer a liberdade, igualdade, justia para

    todos que aderiam aos seus princpios norteadores e luta em favor

    do socialismo7.

    Em decorrncia dos perigos da imposio de um modelo

    utpico de sociedade, de forma generalizada sociedade como um

    todo, vale lembrar como sublinha Ernst Bloch:

    A utopia...deve ser igualmente rigorosa contra si mesma,

    desenvolvendo uma conscincia de suas prprias fronteiras...Uma

    utopia que vai se dissolvendo medida que se realiza, poderia fazer

    surgir uma situao que escape, por princpio, previso utpica:

    novos obstculos, novas dificuldades, novos nus, poderiam

    apresentar-se, que difiram completamente de tudo quanto

    conhecemos...a utopia realizada seria outra8.

    Como conceber em projetos de cidades utpicas o lugar da

    histria e da memria nos espaos em formao? Como um espao

    novo poder ter em si um espao para a memria de forma a conter no

    novo espao a possibilidade de manter vestgios de sua formao?

    Como pensar a questo da integrao urbana para sociedades presentes

    e futuras? A partir destas indagaes iniciais, debruar-nos-emos no

    estudo de Braslia.

    Braslia no contexto brasileiro

    No incio...havia o trabalho, da aurora ao crepsculo, sacos

    de cimento, tijolos, brita, disputas, acidentes mortais e uma espcie de

    sonho de construir, no meio do serto de Gois, uma capital moderna,

    futurista, capaz de mudar o caminho da histria. Parecida com o

    7 Ibidem, p. 16. 8 Op. cit. por Brbara FREITAG e Srgio ROUANET, Habermas, So Paulo, Editora tica, 1980.

    5

  • Brasil da poca (Correio Braziliense, 03/02/98).

    Braslia provavelmente a mais emblemtica das cidades

    planejadas modernas, e se constituiu rapidamente como objeto de

    interesse sociolgico. Esta cidade possui uma estruturao moderna,

    funcional do espao, enquanto a estruturao das ruas da Vila Planalto,

    bero de Braslia, principalmente do tipo tradicional.

    O carter planejado, moderno e administrativo de Braslia

    sempre suscitou uma certa estranheza para aqueles provenientes de

    outras cidades brasileiras. Braslia frequentemente considerada uma

    cidade artificial e pouco humana. James Holston (1993) descreve a

    brasilidade como uma reao de estranhamento em relao

    Braslia9. Se, de um lado, o aspecto moderno da cidade poderia

    representar uma novidade para os recm-chegados; por outro lado, a

    sensao de frieza, de artificialidade e de impessoalidade era muitas

    vezes acompanhada por um sentimento de estranheza e de no

    identificao, que originaria dificuldades de adaptao. O carter

    organizado de Braslia tornava o cotidiano mais prtico, ao mesmo

    tempo que parecia privar a cidade da espontaneidade e do movimento

    presentes em outros centros urbanos. Holston considera que o projeto

    de Braslia negava duplamente o velho Brasil: negava tanto o seu sub-

    desenvolvimento, como a sua vida urbana. O autor destaca que a

    arquitetura modernista, caracterstica da nova capital nacional,

    representa uma ruptura com as condies pr-existentes no pas,

    causando in situ uma sensao de descontextualizao10.

    Poder-se- discutir como um projeto de cidade se transforma

    numa realidade concreta a partir do estudo de sua formao. Como nos

    interpela Laurent Vidal, em que medida um projeto de cidade, na sua

    dimenso material e discursiva, portador de um projeto de

    9 Cf. Jaimes HOLSTON, A cidade modernista: uma critica de Braslia e sua Utopia. Public, So Paulo, Companhia das Letras, 1993. 10 Cf. Christiane COELHO, Changements das les coulisses de Braslia. Les ambiguits du processus de maintien de Vila Planalto (1956-2006), Paris, Tese de doutorado, EHESS, 2006, pp. 93,94.

    6

  • sociedade?11

    Braslia representava um projeto de cidade, associado

    igualmente a um projeto poltico e de sociedade. Apesar da antiguidade

    do projeto de construo de uma nova capital para o Brasil12, este

    projeto s foi colocado em prtica num momento de importante

    desenvolvimento nacional, sob a presidncia de Juscelino Kubitschek,

    cujo slogan do governo era 50 anos de progresso em 5 anos de

    governo. A deciso de construir uma capital moderna no interior do

    Brasil pretendia ultrapassar o atraso social e econmico associado ao

    interior do Brasil e, principalmente, modificar a imagem associada ao

    pas e a identidade nacional, com a criao de uma capital moderna que

    pudesse corresponder idia do Brasil como pas do futuro (Stefan

    Zweig, 196013), como a imagem de um pas capaz de se reinventar

    continuamente.

    No caso de Braslia, evidente que o progresso nacional no

    poderia se estabelecer por decreto, e que no poderia negar o passado e

    os problemas do Brasil. A herana de uma estrutura social desigual

    se fazem sentir em Braslia (e em todo o Distrito Federal), e a questo

    da moradia se constituiu num dos reflexos mais claros desta situao.

    Os incios de Braslia so marcados por uma situao de

    contraste. De um lado, a cidade representava uma espcie de viso

    mitolgica do futuro. De outro, a precariedade das condies de vida

    e de trabalho da populao operria encarregada da edificao da

    cidade, contradizia esta idia de modernidade, o que indica que, desde

    o princpio, o projeto de criao de uma capital moderna estava pleno

    de contradies, presentes desde a instalao desta capital. As

    conseqncias do processo migratrio dos trabalhadores em direo

    Braslia no foram levadas em conta no projeto original da cidade, em

    11 Cf. Laurent VIDAL, Mazago, la ville qui traversa lAtlantique. Du Maroc lAmazonie (1769-1783). Paris, Aubier-Flammarion, 2005. 12 Cf. Laurent VIDAL, De nova Lisboa Braslia: linvention dune capitale. Paris, IHEAL Editions, 2002. 13 Cf. Stefan ZWEIG, Brasil, pais do futuro. Rio de Janeiro, Editora Brasileira, S.A., 1960.

    7

  • termos de condies de moradia mais definitivas para estes

    trabalhadores14.

    Os primrdios de Braslia so marcados pela precariedade das

    condies de vida para todos aqueles que vieram participar da

    edificao da nova capital nacional. Esta precariedade, de alguma

    maneira, nivelou as condies de vida dos primeiros moradores da

    cidade.

    Apesar do projeto de Braslia, enquanto capital moderna, prever

    a construo de uma cidade diferente das outras cidades brasileiras,

    seus problemas de moradia e de emprego aproximam-na de outras

    cidades do pas. Os problemas de segmentao e de fragmentao

    social parecem ainda mais importantes em Braslia quando comparados

    a outros centros urbanos. O carter planejado da cidade provocou a

    excluso das classes populares do centro da cidade. O Plano Piloto

    parte planejada da cidade sofreu um forte processo de especulao

    imobiliria, no qual os setores menos favorecidos da populao foram

    expulsos para os subrbios distantes. Neste contexto, as diferenas

    sociais correspondem a diferenas espaciais significativas. A

    heterogeneidade social presente na maioria dos centros urbanos

    menos visvel em Braslia.

    Desde os incios de Braslia, a questo da moradia se imps

    como um problema principal. O numero considervel de trabalhadores

    necessrios para a construo da cidade sups a necessidade de

    moradia para alojar este grande numero de pessoas. A Novacap

    instituio governamental encarregada da construo de Braslia

    estabeleceu ncleos de moradia provisrios para alojar os trabalhadores

    na Cidade Livre, atual Ncleo Bandeirante, e nos acampamentos

    construdos para este efeito, dos quais Vila Planalto um exemplo.

    Nos primrdios de Braslia, a ausncia de alojamentos tornava

    uma parte importante dos trabalhadores dependentes das condies

    impostas pelas companhias da construo civil. Estas condies

    14 Id.p. 94.

    8

  • ultrapassavam as questes de moradia. A ausncia de famlia, o

    controle exercido pelas companhias sob a vida quotidiana dos

    trabalhadores (horrios regulamentados, proibio de bebidas

    alcolicas nos acampamentos) constitua uma intruso na vida dos

    trabalhadores em diferentes domnios. O espao era cercado, o que

    reforava o controle que os trabalhadores eram submetidos. Se de um

    lado, as companhias ofereciam as condies de moradia e eram

    encarregues de toda a infra-estrutura necessria para instalao da

    populao necessria como casas, supermercados, farmcias,

    clubes, etc.. Por outro lado, os trabalhadores se encontravam numa

    situao de dependncia completa frente s companhias.

    Na inaugurao de Braslia, setenta mil trabalhadores estavam

    presentes. A maioria destes trabalhadores residia nas Cidades Satlites,

    projetadas repentinamente durante a construo de Braslia. Desde o

    incio, a maior parte da populao da cidade vivia fora do Plano

    Piloto15. A nova capital traou, antes mesmo de sua inaugurao, linhas

    de excluses futuras, o que levou alguns observadores a considerem-na

    uma semi-cidade, uma capital distante da realidade nacional.

    Segundo as palavras de Hautin-Guiraut:

    Na aurora das esperanas do pas, Braslia concretizou o

    sonho de grandeza brasileiro, e sua f num futuro necessariamente

    grandioso. Mas Braslia sofre hoje, mais do que nunca, por ter de

    capital apenas o nome16.

    No entanto, o fato de Braslia ter sido construda em um espao

    sem infra-estruturas urbanas analisado, por alguns autores, como um

    aspecto vantajoso e facilitador da integrao dos migrantes recm-

    chegados Braslia :

    O eterno mito de origem constantemente revisitado em

    Braslia, onde a ausncia de lugar, e consequentemente, a ausncia de

    15 Cf. Gustavo Lins RIBEIRO, O capital da esperana. Braslia, um estudo sobre uma grande obra da construo civil, Braslia, Mestrado Universidade de Braslia (UnB), 1980. 16 Brsil, la capital mal aim, in Le Monde, 23 de maro, 1993.

    9

  • identidade, oferece a sensao que todos so incorporados cidade

    com as mesmas condies17.

    A idia de Braslia como um territrio originalmente vazio,

    parece ter facilitado a integrao local e a construo da imagem de

    uma cidade em que a histria esta se construindo, uma histria quase

    controlvel, pois possvel estabelecer um ponto de partida,

    correspondente aos incios da cidade, numa data ainda recente e

    facilmente identificvel.

    Braslia representou um novo horizonte para todos aqueles que

    encontravam dificuldades nas suas regies de origem; ela traduzia a

    esperana de uma vida melhor para uma parte importante da populao

    que vinha procura de trabalho. Segundo Aubertin e Pinto, a fora dos

    movimentos migratrios vinha da facilidade de acesso s infra-

    estruturas de sade, a leveza da legislao fundiria, mas tambm do

    fato que o Distrito Federal dispe de um dos mais altos rendimentos

    por habitante no Brasil18. Brasilmar Nunes destaca que a possibilidade

    de acesso a terrenos urbanos, mais que a procura de trabalho, constitui

    o principal motor migratrio para o Distrito Federal19.

    A transferncia de funcionrios pblicos do Rio de Janeiro,

    antiga capital brasileira para Braslia enfrentou inicialmente

    algumas resistncias. Para superar estas dificuldades, esta transferncia

    foi acompanhada pela obteno de privilgios importantes, enquanto os

    trabalhadores da construo civil no tinham sequer as suas condies

    de permanncia e de alojamento asseguradas aps a inaugurao da

    cidade. Muito destes trabalhadores foram transferidos para Cidades

    Satlites distantes. O espao da cidade ficou assim marcado por

    diferenas sociais significativas, marcadas por uma associao entre

    apropriao do espao, principalmente no Planto Piloto, e altos

    17 Brasilmar Ferreira NUNES, A lgica social do espao de Braslia. Indito cedido pelo autor, sd, p. 7.18 Oscar NIEMEYER, Minha experincia em Braslia, Rio de Janeiro, Editora Vitria, 1961.19 Brasilmar Ferreira NUNES, Braslia: a fantasia corporificada. Braslia, Paralelo 15, 2004.

    10

  • rendimentos. O distanciamento das classes sociais no Distrito Federal

    veio a reproduzir (e reforar) as diferenas sociais existentes na

    sociedade brasileira, caracterizada por um forte dualismo entre

    modernidade e excluso social20.

    O Caso de Vila Planalto em Braslia

    Vila Planalto representa aspectos no previsveis da construo

    de Braslia. Os aspectos humanos e as formaes de redes sociais neste

    espao interessam, pois, contrariamente a maior parte das cidades da

    Europa e mesmo da Amrica Latina, raro poder retratar o processo de

    formao de um espao atravs da anlise do discurso dos indivduos

    que participaram de sua formao. o caso dos moradores de Vila

    Planalto que viram o direito cidade e o direito memria

    reconhecidos em funo de sua participao nos trabalhos de

    construo civil nos incios de Braslia.

    O desafio principal deste trabalho consiste em compreender

    como um espao provisrio, que se manteve irregular muitos anos,

    conseguiu transformar-se num bairro histrico, reconhecido legalmente

    como patrimnio do Distrito Federal brasileiro em 1988. As

    complexidades do reconhecimento do tombamento de Vila Planalto so

    analisadas de forma associada ao estudo das conseqncias sociais e

    urbanas da regularizao deste espao.

    O interesse por Vila Planalto surgiu em funo do aspecto

    singular e diferenciado deste espao no centro do Plano Piloto de

    Braslia.

    Vila Planalto era composta por um conjunto de acampamentos

    instalados por diferentes companhias da construo civil, localizados a

    proximidade da atual Praa dos Trs Poderes, do Palcio da Alvorada e

    20 Cf. Caio PRADO JUNIOR, Formao do Brasil Contemporneo, So Paulo, Editora Brasiliense, 1942. Roger BASTIDE, Brsil, terre des contrastes. Paris, LHarmattan, 1957.

    11

  • do Palcio do Planalto, ou seja, no centro do Plano Piloto. As

    construes eram todas em madeira, sem possibilidades legais de

    crescimento.

    Vila Planalto era constituda por vinte e duas companhias da

    construo civil: 1) Rabelo, 2) Pacheco Fernandes responsvel pela

    construo do Palcio da Alvorada e do Braslia Palace Hotel, 3)

    Tamboril conhecida anteriormente como acampamento dos

    mineiros, ou seja, dos indivduos provenientes do estado brasileiro de

    Minas Gerais, 4) Adil, 5) Atlas, 6) Consispa, 7) CVB, 8) DFL, 9)

    DTUI, 10)EBE, 11) ECISA, 12) Emulpress, 13) Esol, 14) Nacional,

    15) Pederneiras, 16) Planalto a companhia que teria dado origem ao

    nome de Vila Planalto, 17) Telebrs, 18) WZK, 19) ECIL, 20) Etil, 21)

    Taberneira, 22) Esol. Atualmente, Vila Planalto possui ainda seis

    destes acampamentos (Rabelo, Pacheco Fernandes, DFL, Tamboril,

    Emulpress, EBE), como os vestgios do acampamento da Nacional. Os

    acampamentos que se encontram em melhor estado de preservao so

    os da Rabelo, da Pacheco Fernandes e do Tamboril. Os primeiros

    moradores de Vila Planalto referem-se com freqncia a sua

    participao nos trabalhos de uma destas companhias.

    As companhias da construo civil eram encarregadas de

    instalar toda a infra-estrutura necessria para construo de Braslia :

    casas provisrias em madeira, mercados locais, farmcias, escolas,

    clubes, bancos. Uma forte heterogeneidade social era presente na Vila

    Planalto, o espao era diferenciado segundo a classe social, a profisso

    e o estado civil. Inicialmente, existiam dois clubes (um para os ricos,

    outro para os pobres), um cinema, uma farmcia, uma escola. Aps a

    inaugurao de Braslia, o ritmo dos trabalhos das companhias da

    construo civil diminuiu e estas companhias foram progressivamente

    deixando a cidade e desmontando a infra-estrutura que tinham

    instalado. curioso observar como, mesmo os espaos provisrios

    como o dos acampamentos, foram cuidadosamente estruturados em

    termos de diferenas sociais, profissionais e familiares. Um lgica

    funcionalista parecia prevalecer igualmente nestes espaos, de forma a

    12

  • estruturar diferenciaes futuras presentes no Distrito Federal

    brasileiro.

    A partir deste estudo poder-se- analisar como um

    acampamento provisrio sobreviveu a tantos anos de clandestinidade

    at o seu reconhecimento como bairro histrico, diferenciado do Plano

    Piloto e situado numa parte central da cidade.

    Aps a inaugurao de Braslia, com a retirada da infra-

    estrutura implantada pelas companhias da construo civil, Vila

    Planalto foi progressivamente se transformando em uma espcie de no-

    mans land. Ao contrrio das invases clssicas e de muitos bairros

    clandestinos, seu espao tinha sido originalmente estruturado pelo

    poder estatal, embora de forma temporria. O carter

    instrumentalmente provisrio de Vila Planalto numa fase em que o

    espao fazia parte de um grande projeto21 fez com que ela fosse

    considerada cada vez mais ilegal, uma vez inaugurada a nova capital.

    O direito que os moradores locais tiveram inicialmente de residir neste

    espao foi substitudo por um no-direito. A ilegalidade da ocupao

    de Vila Planalto tornou-se cada vez mais acentuada, contribuindo para

    formao de uma imagem negativa deste local, vigente at o momento

    de sua regularizao e reconhecimento como patrimnio do Distrito

    Federal em 1988.

    Apesar da heterogeneidade social presente na Vila Planalto, o

    tempo de residncia neste espao apareceu como um elemento

    importante e aglutinador dos grupos presentes neste espao. O conceito

    de pioneiro apareceu como noo central nos movimentos

    reivindicativos que ocorreram nos anos oitenta em prol da

    regularizao deste espao. Ser pioneiro passou a ser reconhecido

    como um valor, criando uma hierarquizao interna baseada no tempo

    de permanncia local, de forma extra-classe, associada a participao

    nos incios da cidade.

    21 Gustavo Lins RIBEIRO, Op. cit., e Acampamento de grande projeto: uma forma de imobilizao da fora de trabalho pela moradia, in Aldo PAVIANI (org.), A conquista da cidade: movimentos populares em Braslia, 2 ed., Braslia, Editora Universidade de Braslia, 1998.

    13

  • Em geral, no discurso dos moradores de Vila Planalto, as

    referncias ao espao oscilam entre a idia de um bairro ou de uma

    cidade parte. No entanto, a idia de cidade parte apareceu de

    forma majoritria, o que parece traduzir a percepo de diferenciao

    entre a forma de estruturao do Plano Piloto moderno e o carter

    provinciano de Vila Planalto. Vila Planalto frequentemente descrita

    como um espao pioneiro, tranqilo, central, como uma espcie de

    vilarejo no corao da cidade moderna.

    Aldo Paviani realizou muitos estudos reveladores dos efeitos

    perversos da implantao da nova capital brasileira. Braslia assim

    marcada por uma lgica dupla22. De um lado se encontra o espao

    planejado e moderno do Plano Piloto. De outro lado, se localizam nos

    arredores do Plano Piloto, nas Cidades Satlites, os mesmos problemas

    presentes em outros centros urbanos brasileiros. O caso de Vila

    Planalto parece se opor a esta idia de planificao controlada de todo

    territrio urbano de Braslia, pois trata-se de um espao que no estava

    previsto no plano originrio da cidade e que conseguiu se consolidar no

    centro-vila.

    Na Vila Planalto, o direito moradia foi associado ao exercido

    de atividades profissionais associadas edificao de Braslia. A

    concesso de moradias foi igualmente considerada resultado de aes

    polticas que ocorreram na dcada de oitenta em prol da regularizao

    do espao. O espao foi legalizado e reconhecido como patrimnio a

    partir das promulgao dos decretos-leis n11 079 e n11 080, datados

    do dia 21 de abril de 1988.

    O reconhecimento de Vila Planalto como patrimnio pe em

    questo a complexidade da sobrevivncia local e a utilizao poltica

    da histria e do territrio como fonte de negociao em torno da

    memria da construo de Braslia.

    22 Cf. Aldo PAVIANI, Braslia, ideologia e realidade. Espao urbano em questo. So Paulo, Projeto, 1985; Braslia: a metrpole em crise : ensaios sobre urbanizao. Braslia, Editora Universidade de Braslia, 1989; Braslia: moradia e Excluso. Braslia, Editora Universidade de Braslia, 1996; A conquista da cidade: movimentos populares em Braslia, 2 ed., Braslia, Editora Universidade de Braslia, 1998.

    14

  • O carter inicialmente provisrio de Vila Planalto, sua situao

    de clandestinidade durante mais de 30 anos, seu reconhecimento como

    patrimnio histrico em 1988 e, finalmente, o no respeito das leis de

    preservao local, visveis no incndio da Igreja Nossa Senhora da

    Pompia uma das primeiras igrejas de Braslia, toda em madeira,

    incendiada em fevereiro de 2000 e a destruio de numerosas

    construes em madeira, teoricamente protegidas pelo patrimnio,

    revelam as ambigidades locais.

    Um pesquisa sobre um espao urbano dificilmente acabada,

    pois os espaos esto sempre em transformao. Colocar em evidncia

    uma parte das permanncias e das mudanas de Braslia, constituiu um

    dos desafios deste estudo, de forma a mostrar diferenas entre uma

    cidade enquanto projeto e sua execuo efetiva. Este estudo poder

    contribuir para o estudo das transformaes urbanas no espao, como

    tambm sobre as possibilidades de moradias para diferentes classes

    sociais nos centros urbanos.

    Consideraes finais

    Poderamos questionar-nos sobre os projetos de estruturao

    futuros para a nossa sociedade. A questo da integrao social deve ser

    pensada para os tecidos urbanos modernos. A importncia das cidades

    na estruturao das sociedades contemporneas pe em relevo questes

    como a estratificao social e o futuro do quadro urbano. Questes

    como esta constituem dilemas importantes da sociedade atual.

    O estudo de Braslia paradigmtico e exemplar das

    ambigidades e contradies que um projeto urbanstico pode adquirir

    no momento de sua implementao.

    A partir deste estudo, pode-se questionar a validade de futuros

    projetos de cidade, sejam utpicos, possveis ou imaginrios. Como a

    sociedade poder re-estruturar seus projetos urbanos de forma a

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  • abarcar diferentes estilos de vida, estilos arquitetnicos, diferentes

    projetos de futuro, de sociedade e a possibilidade de construo de

    espaos que permitam a integrao social. A experincia falhada de

    implementao de bairros sociais em muitos pases pe em relevo a

    necessidade de se repensar as formas de integrao urbana, de forma a

    evitar estigmas, excluses sociais, econmicas, polticas e espaciais, de

    maneira a que possamos ter sociedades e cidades que possam ser,

    efetivamente, de todos. Talvez resida neste desafio mais uma utopia.

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