a uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

14
A UNIÃO EUROPÉIA E A ATUAL CRISE INTERNACIONAL Francisco Carlos Teixeira da Silva * Desde a desaparição de qualquer possibilidade da reunificação da Europa sob a égide de um Império restaurado, enquanto uma Res Publica, com a emergência do Estado-nação, desde o século XVI, inclusive a falência definitiva do projeto de uma Res Publica Christiana, com as Reformas religiosas do século XVI, a unidade européia manteve como um projeto permanente das lideranças políticas do continente. Algumas vezes, poucas é bem verdade, enquanto um projeto generoso de paz e harmonia, como na Paz Perpétua de Kant, sob impacto das guerras napoleônicas, ou, no mais das vezes, enquanto busca de unidade forçada, militarmente conquistada, sob a forma de um Império continental liderado por um dos Estados-nação, então, mais poderosos. A forma mais próxima que ao longo de sua velha história a Europa pode alcançar foi, ao longo do século XIX, o arranjo político e diplomático denominado Concerto das Nações, um verdadeiro mobile de Estados- nação, guardando zelosamente seus atributos de soberania, reunidos, contudo, em uma estreita solidariedade de interesses, em especial na divisão mundial de poderes e áreas de influência. A emergência de novos estados, principalmente a Alemanha e a Itália, veio desorganizar e destruir o frágil equilíbrio do móbile europeu, acarretando três guerras de incrível capacidade destrutiva: 1870/71, 1914/18 e 1939/45. O resultado da guerra civil européia, conforme uma velha expressão de um historiador asiático, foi a destruição definitiva do móbile Concerto das Nações, com a perda do poder político e econômico do conjunto da Europa em favor das duas novas potências excêntricas ao arranjo europeu: Estados Unidos e Rússia/URSS. Embora ambas possam reclamar, a justo título, sua europeinidade ( algo que efetivamente apenas uma delas, a Rússia, faz questão de afirmar ), a verdade é que ao longo do século XX o continente viu erguerem-se poderes que lhe eram estranhos e que desenvolveram estratégias políticas voltadas para a sua divisão e subjugação, muito especialmente durante a Guerra Fria ( 1947-1991 ). Grande parte do duelo que levou a Europa à exaustão foi travado, de um lado, entre a Inglaterra e a França, potências navais, detentoras de vastos impérios coloniais e de antiga vocação universalista expressa no sucesso de seus idiomas enquanto veículos de cultura, e a Alemanha, por outro lado, potência emergente, de caráter continental, buscando freneticamente colocar seu excedente demográfico e garantir a continuidade de seu crescimento. Só mais tarde, um terceiro termo da equação – ainda uma vez excêntrico e semi-asiático - movido pelos mesmos velhos interesses estratégicos de potência continental isolada do mar, a Rússia/URSS, procurará revestir de um grande brilho ideológico seu projeto de expansão e segurança nacional. Tais embates geraram, na denominação de Philip Bobbit, a Longa Guerra do Estado-Nação: de 1914 ( ou seria 1871 ? ) até o Tratado de Paris, de 1990, passando pelas datas inesquecíveis de 1917, 1918, 1933, 1935, 1938, 1939, 1945 – especialmente com a vitória amarga dos aliados, marcada por Yalta e Potsdam -, estendendo-se até 1991, quando o último herdeiro do conflito iniciado em 1871, a URSS, entra em colapso. Mesmo antes de 1991 – quando o último poder verdadeiramente europeu, malgrado todo seu asiatismo– abandona a cena principal, os grandes poderes europeus, e seus homens mais brilhantes, entenderam o imenso risco da Europa em se tornar irrelevante. A imensidão dos recursos mobilizados pelas guerras inventadas na própria Europa havia atraído e ensejado que poderes muito mais fortes e ricos emergissem no cenário mundial, em especial o Japão e os Estados Unidos. O primeiro deles, em virtude do militarismo e do imperialismo praticados na Ásia Oriental, e em face de sua derrota, estava condenado por um ainda longo tempo, ao destino de gigante econômico e * Professor Titular de História Moderna e Contemporânea da UFRJ, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército/ECEME e coordenador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente/TEMPO. A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 1/14

Upload: antonilofp

Post on 07-Jun-2015

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

A UNIÃO EUROPÉIA E A ATUAL CRISE INTERNACIONAL

Francisco Carlos Teixeira da Silva*

Desde a desaparição de qualquer possibilidade da reunificação da Europa sob a égide de umImpério restaurado, enquanto uma Res Publica, com a emergência do Estado-nação, desde o séculoXVI, inclusive a falência definitiva do projeto de uma Res Publica Christiana, com as Reformasreligiosas do século XVI, a unidade européia manteve como um projeto permanente das liderançaspolíticas do continente. Algumas vezes, poucas é bem verdade, enquanto um projeto generoso depaz e harmonia, como na Paz Perpétua de Kant, sob impacto das guerras napoleônicas, ou, no maisdas vezes, enquanto busca de unidade forçada, militarmente conquistada, sob a forma de umImpério continental liderado por um dos Estados-nação, então, mais poderosos. A forma maispróxima que ao longo de sua velha história a Europa pode alcançar foi, ao longo do século XIX, oarranjo político e diplomático denominado Concerto das Nações, um verdadeiro mobile de Estados-nação, guardando zelosamente seus atributos de soberania, reunidos, contudo, em uma estreitasolidariedade de interesses, em especial na divisão mundial de poderes e áreas de influência. Aemergência de novos estados, principalmente a Alemanha e a Itália, veio desorganizar e destruir ofrágil equilíbrio do móbile europeu, acarretando três guerras de incrível capacidade destrutiva:1870/71, 1914/18 e 1939/45.

O resultado da guerra civil européia, conforme uma velha expressão de um historiador asiático,foi a destruição definitiva do móbile Concerto das Nações, com a perda do poder político eeconômico do conjunto da Europa em favor das duas novas potências excêntricas ao arranjoeuropeu: Estados Unidos e Rússia/URSS. Embora ambas possam reclamar, a justo título, suaeuropeinidade ( algo que efetivamente apenas uma delas, a Rússia, faz questão de afirmar ), averdade é que ao longo do século XX o continente viu erguerem-se poderes que lhe eram estranhose que desenvolveram estratégias políticas voltadas para a sua divisão e subjugação, muitoespecialmente durante a Guerra Fria ( 1947-1991 ).

Grande parte do duelo que levou a Europa à exaustão foi travado, de um lado, entre a Inglaterra ea França, potências navais, detentoras de vastos impérios coloniais e de antiga vocação universalistaexpressa no sucesso de seus idiomas enquanto veículos de cultura, e a Alemanha, por outro lado,potência emergente, de caráter continental, buscando freneticamente colocar seu excedentedemográfico e garantir a continuidade de seu crescimento. Só mais tarde, um terceiro termo daequação – ainda uma vez excêntrico e semi-asiático - movido pelos mesmos velhos interessesestratégicos de potência continental isolada do mar, a Rússia/URSS, procurará revestir de umgrande brilho ideológico seu projeto de expansão e segurança nacional. Tais embates geraram, nadenominação de Philip Bobbit, a Longa Guerra do Estado-Nação: de 1914 ( ou seria 1871 ? ) até oTratado de Paris, de 1990, passando pelas datas inesquecíveis de 1917, 1918, 1933, 1935, 1938,1939, 1945 – especialmente com a vitória amarga dos aliados, marcada por Yalta e Potsdam -,estendendo-se até 1991, quando o último herdeiro do conflito iniciado em 1871, a URSS, entra emcolapso.

Mesmo antes de 1991 – quando o último poder verdadeiramente europeu, malgrado todo seuasiatismo– abandona a cena principal, os grandes poderes europeus, e seus homens mais brilhantes,entenderam o imenso risco da Europa em se tornar irrelevante. A imensidão dos recursosmobilizados pelas guerras inventadas na própria Europa havia atraído e ensejado que poderes muitomais fortes e ricos emergissem no cenário mundial, em especial o Japão e os Estados Unidos. Oprimeiro deles, em virtude do militarismo e do imperialismo praticados na Ásia Oriental, e em facede sua derrota, estava condenado por um ainda longo tempo, ao destino de gigante econômico e

* Professor Titular de História Moderna e Contemporânea da UFRJ, professor emérito da Escola de Comando e EstadoMaior do Exército/ECEME e coordenador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente/TEMPO.

A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 1/14

Page 2: A uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

anão político, e mesmo à mercê de poderes de terceira categoria, como a Coréia do Norte. Este era oretrato, um Dorian Gray guardado no porão das consciências européias, que assombravam ocontinente. Os Estados Unidos ofereciam e garantiam a segurança continental – um continenteagora amputado na altura de uma linha traçada de Hamburgo até Veneza – e, ao mesmo tempo,impunham suas regras no quadro do atlantismo: uma visão meramente transoceânica dacomunidade histórica existente entre ambas as margens do Atlântico, expressa nas origens comunsdo Ocidente – as revoluções atlânticas ( não mais ditas burguesas ) do século XVIII – sob aliderança dos Estados Unidos e expressa, por sua vez, na constituição da NATO ou OTAN . AEuropa se retirava dos calços do Império: da Indochina, da Argélia e do Djibuti; nos anos ´60 abriamão oficialmente de todos os pontos de controle além Áden. Em suma, a Europa encolhia suavocação universalista e, amparada nos Estados Unidos, deveria conformar-se com o atlantismo.

Resolvidos os problemas imediatos da reconstrução, pós-1945, equacionado o novo jogo político– o arranjo liberal-representativo, de tipo parlamentarista,a dotado na maioria dos Estadosocidentais saídos da guerra -, bem como compensado o trauma da descolonização, surge a claraconsciência da imperiosidade da restauração não só dos Estados-nacionais mas, fundamentalmenteda Europa.

O desenvolvimento da estratégia atômica a partir dos anos ´50, em especial a plena consciênciada condição MAD/Mútua Destruição Assegurada, torna a promessa de segurança e defesa dosEstados Unidos bastante precárias. Para muitos europeus, depois que os russos testam sua bombaatômica, em 1949, as promessas de segurança afiançadas no Pacto Atlântico tornam-se inefáveis.Enquanto a América detinha o monopólio do poder atômico, a indiscutível superioridade doExército Vermelho estava paralisada, posto que a URSS entendia possibilidade de ver suas cidadesdestruídas enquanto os seus carros blindados rodassem em Paris e Madrid. A defesa atlântica daEuropa residia então no guarda-chuva nuclear americano. Entretanto, após a bomba atômica russaem 1949 e, muito especialmente a partir de 1957, com o Sputnik, o ceticismo paira sobre asinteligências européias. Qual segurança seria garantida em face ao crescimento de um poder como aURSS? Neste sentido, duas questões colocavam-se com imperiosidade, raiando o escândalo: Primo:os Estados Unidos estariam preparados para deter a marcha do Exército Vermelho em direção àspraias do Atlântico através do arsenal nuclear, mesmo sabendo que corria o risco concreto de tersuas cidades – santuários intocados ao longo de duas guerras mundiais – destruídas pela forçaatômica soviética? Para muitos europeus, e mesmo norte-americanos, uma ação plausível dos russosunificando a Europa militarmente, levaria os Estados Unidos a voltar-se sobre si mesmos,reorganizando a área América Latina/Pacífico enquanto domínio próprio, numa aceitação tácita dadivisão inexorável do mundo. No final anos ´50, quando surge a Política de Resposta Flexível – umduelo atômico pausado entre as duas superpotências – a Europa descobre, inconsolável, que talduelo para ser eficaz e não transbordar para a Política de Retaliação Maciça, deveria poupar ascidades americanas e russas, travando-se, portanto sobre o solo da Europa. Surge, então, outraquestão, Segundo: a segurança e a liberdade da Europa ensejava o risco real e concreto da destruiçãodo continente, tendo como corolário que tal destruição seria decidida em Moscou ou Washington,não tendo os europeus qualquer capacidade de decidir sobre sua própria existência.

O desencanto entre a Europa e os Estados Unidos, pondo em cheque o atlantismo , fez, contudouma rápida aparição nas relações transatlânticas – bem mais cedo do que a imprensa queacompanhou a Segunda Guerra do Iraque, em 2003, poderia supor. Em 1956, culminando um longoprocesso de enfrentamento entre o regime nacionalista egípcio de Gamal Abdel Nasser e osinteresses ocidentais da Companhia Ocidental do Canal de Suez, o raís nacionaliza o Canal. Para osinteresses franceses a atuação do líder egípcio mostrava-se absolutamente intolerável, em particularpor liderar um movimento pan-arabista que procurava abrir uma cunha entre Paris e sua antiga esólida implantação no mundo árabe. Eram os tempos da Guerra da Argélia ( 1952-1962 ), cujaFrente de Libertação Nacional era diretamente apoiada por Nasser. Assumindo claramente a postura

A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 2/14

Page 3: A uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

de campeão do anti-colonialismo, Nasser ameaçava as posições francesas da Mauritânia atéDamasco, inclusive em Tunis e Beiruth. Para os ingleses – que já haviam defendido o Canal contraturcos, italianos e alemães num passado muito recente – o pleno controle da posição estratégica deSuez por uma potência – mesmo que média potência – hostil e aliada aos soviéticos, punha em riscoas comunicações com o Oriente, fragilizando Hong Kong, Cingapura, as Índias e o Golfo Pérsico,com seus jazimentos petrolíferos. Desde longo tempo os britânicos haviam construído suasuperioridade no Mediterrâneo através da garantia das posições em Gibraltar, Malta e Chipre que secompletavam com o controle de entrada e saída do Mar Vermelho: Suez, em um lado, e Áden, nooutro extremo. Além disso, tanto para franceses como britânicos, o crescimento da figura de Nassercomo desafiante do Ocidente, cada vez mais próximo dos soviéticos, punha em risco os planos dedescolonização gradual e de manutenção dos laços entre as metrópoles européias e suas antigascolônias. Assim, o desafio de Nasser parecia não só inoportuno, como ainda insuportável face a umaestratégia longamente amadurecida. Acalentada pelos serviços especiais franceses e apresentada aLondres como incontornável, uma operação militar de retomada de Suez, e desmoralização deNasser, deveria ter o mérito, duplo, de devolver a iniciativa política ao Ocidente e manter, aomáximo, os processos de descolonização sob o controle de Londres e Paris. Ambos os paísesretomavam, pela primeira vez depois da II Guerra Mundial, o espírito da Entente Cordiale, de 1904,no âmbito de um domínio que consideravam explicitamente próprio: as relações coloniais. Paratornar mais crível, e, portanto, diplomaticamente sustentável a intervenção militar contra o Egito,trouxeram Israel para o empreendimento. A expedição ocidental contra Suez deveria, oficialmente,evitar que o Canal fosse danificado durante o ataque que Israel desferiria contra o Egito, tratando-se,portanto, ao menos em suposição, de uma ação de separação de forças em guerra. A ças em guerra.A ação franco-anglo-israelense apareceu, contudo, aos olhos da opinião pública como uma claramanobra neo-colonialista, incapaz de se auto-sustentar. Malgrado o sucesso militar doempreendimento, as lideranças do Terceiro Mundo e dos Países Não-Alinhados, ao lado dos paísessocialistas, denunciavam na ONU o neo-colonialismo ocidental. A URSS, em sua plena transiçãopós-stalinista e envolta na repressão contra os nacionalistas húngaros, via na expedição de Suez,uma ótima oportunidade para recuperar seu prestígio junto a opinião pública. De Forma brutal,direta e nada diplomática, a liderança soviética exigiu a retirada de ingleses e franceses, anunciandomedidas de retaliação militar contra Londres e Paris. Para surpresa geral dos europeus, aAdministração Eisenhower ( 1953-1961 ) concorda com os russos, condena a ação dos seus aliadosatlânticos e exige a restauração do Egito.

A partir da humilhação de Suez, ambas as potências entenderam, em perfeição, os limites do seupoderia no mundo dominado pela Bipolaridade soviético-americana. Ambas extraíram daíensinamentos fundamentais para seus destinos. Para a Inglaterra ficava claro a limitação de seupoderio, e mesmo de sua autonomia estratégica de ação, com a conseqüente necessidade de contarcom os Estados Unidos para a defesa de seus próprios intereses, inclusive nas antigas áreascoloniais. A aliança anglo-americana assumirá, doravante, um papel central, inquestionável, para aslideranças britânicas. Para a França, envolvida em conflitos violentos na Ásia e na África,enfrentando diretamente os comunistas e seus aliados, como no Vietnam, ou o novo nacionalismoárabe, parecia que os Estados Unidos não só não entendiam a dimensão da crise em curso, comoainda esperavam tirar proveito da grave situação, projetando seu poder e prestígio nas antigasesferas de influência de seus aliados. Para a França, depois da Crise de Suez, duas idéias tornar-se-iam obsedantes: de um lado, a construção de uma Europa unida e autônoma; de outro, dotar-se daarma atômica, de uma force de frappé.

Duas idéias, bem verdade, porém de profunda conexão mútua que marcarão o projeto francês deconstrução da Europa. Da mesma forma, a opção inglesa pelo Pacto Atlântico, sua simbiose com osinteresses da América, seu auto-reconhecimento como parceiro menor, porém fiel e útil, a afastariaprofundamente da França, cada vez mais europeísta,.tornando anacrônico e inútil o quadro das

A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 3/14

Page 4: A uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

relações européias marcado pela Entente Cordiale, de 1904. O miolo duro aliança ocidental quegarantira as vitórias de 1918 e de 1945 mostrava-se obsoleto no mundo bipolar.

Contemporânea à Crise de Suez, a Revolta da Hungria contra a dominação soviética, malgradotodos os belos discursos da Radio Europa Livre, fora dominada, seus líderes mortos e aprisionados emilhares de refugiados atravessavam em situação miserável a fronteira austríaca. Em Suez eBudapest a Europa assistira claramente aos Estados Unidos – malgrado todo o fervor psicótico doanti-comunismo de Forster Dulles, Joe Macarthny e Edgar Hoover – patrocinarem seus própriosinteresses, procedendo claramente a uma fria avaliação – a velha Realpolitik - de que os interesseseuropeus, mesmo de seus bons aliados, não valiam uma crise maior com os soviéticos.

A angustiante dúvida dos europeus transformava-se agora numa questão que se recusava aosilêncio: sob a condição MAD, arriscariam os Estados Unidos a destruição de suas próprias cidadesna defesa da Europa em face de um ataque convencional soviético?

Tal questão produziu um crescente mal-estar no interior da Aliança Atlântica, expresso nasexigências insistentes, por parte da França, da criação de um comando sul da NATO, sob ordenseuropéias e, sobretudo, a cessão para um comando europeu do arsenal nuclear americano depositadono continente. A recusa permanente dos Estados Unidos em atender a tais reivindicações convence amaioria da inteligência européia dos limites da dedicação estadunidense aos interesses propriamenteeuropeus.

Ao lado do cenário estratégico mundial, no qual a Europa ocupava uma incômoda posição, nosobrigamos, para um melhor entendimento da reconciliação franco-alemã – e a conseqüenteemergência da idéia de uma Europa unida - a um recuo histórico ao clima político e social daEuropa, pós-1945. Boa parte do continente estava devastado por anos seguidos de guerra, com solosdestruídos, campos abandonados e a infra-estrutura produtiva seriamente comprometida. Milhares emilhares de homens e mulheres tinham deixado de ser produtivos, e os Impérios coloniais, boa fontede recursos, estavam em grande agitação, prestes a romper as amarras com suas metrópoles. Omedo, real ou imaginário, de uma nova ocupação, para os países que haviam sofrido a derrota eocupação frente às tropas alemães – em especial a França, os Países Baixos e a Bélgica, obrigava asvelhas elites políticas nacionais a buscar a proteção junto aos Estados Unidos, que já entãomostrava-se incerta. Desde 1945, mas muito especialmente a partir de 1947, o espectro de uma novaguerra – um transbordamento incontido da Guerra Fria – povoava as preocupações. São as Crises deBerlin, de 1948 e de 1961; o risco da Guerra da Coréia, entre 1950 e 1953 ou a Crise dos Mísseisde Cuba, em 1962 e depois a Guerra do Vietnam, entre 1965 e 1975. Por outro lado, o risco de umafratura política no interior dos velhos países europeus era, também, bastante real. Na França e naItália, por exemplo, os partidos comunistas haviam saído da guerra com um vasto cacife político,acumulado em anos de resistência aos fascismos nacionais, seja Pétain, seja Mussolini, e frente aonazismo alemão ocupante. Assim, pressionados pelo avanço da Bipolaridade, que fazia a Europarecuar em todos os campos enquanto voz decisiva no cenário mundial, e pelas pressões políticas,sociais e econômicas no plano interno, as elites dirigentes entenderam, desde logo, a imperiosidadede superar os acanhados quadros do Estado-nação europeu, com suas intensas rivalidades, que jáhaviam levado a três grandes mundiais. É em torno de tais eixos centrais de debate que os chamadospais fundadores - os políticos que na França, Itália e República Federal Alemã lançaram-se naconstrução européia – romperam com séculos de defesa da prioridade nacional e saíram em buscade uma nova arquitetura européia.

Coube sem dúvida nenhuma a França o papel central em tal escolha estratégica. Para uma naçãocom a herança cultural e histórica de fundadora do Ocidente, a idéia de uma possível nova ocupação– agora soviética – e, ao mesmo tempo, de perde de autonomia, transformando-se em um peão numarranjo de poder denominado Pacto Atlântico, parecia intolerável. A imperiosidade da construção daEuropa, contudo, adquiria – em face às superpotências – um conteúdo novo, para além de Napoleão

A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 4/14

Page 5: A uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

ou de Kant, em suas situações polares. A nova Europa não poderia, de forma alguma, ser aexpressão de um expansionismo nacional, de uma vontade nacional única. Cabia, desde logo, pensara Europa enquanto expressão de uma vontade coletiva, européia, ocidental e ancorada nos valoresoriundos da tradição continental dos séculos XVIII e XIX, em especial do Iluminismo e dademocracia representativa.

Somente a experiência, ainda muito recente, da dominação fascista, da guerra e do Holocausto,poderiam iluminar a construção dessa nova Europa. Assim, alguns poucos, porém influentesintelectuais e políticos, desempenharam um papel importantíssimo em desenhar o futuro destaEuropa. Estes homens, humanistas por excelência, foram denominados os Pères Fondateurs, osresponsáveis pela Nova Europa. Não podemos deixar de lembrar aqui alguns nomes de europeusque souberam alçar-se acima do fragilizado quadro do Estado-nação. Alguns nomes, histoire obligecitar Jean Monnet ( 1888-1975 ), o verdadeiro idealizador de um Estados Unidos da Europa, homemde idéias e de ações, responsável pela criação da CECA e das bases políticas e jurídicas do Tratadode Roma, de 1957; Robert Schuman ( 1886-1963 ), malgrado ter sido prisioneiro da Gestapodesenvolve todos os seus esforças em direção da reconciliação franco-alemã, sendo o idealizador daCECA; Alcide De Gaspari ( 1881-1954 ), anima a integração da Itália na CECA; Paul Henri Spaak (1899-1972 ), que torna a Bélgica num ardente defensor da Europa e Walter Hallstein ( 1901-1982 ),reitor da Universidade de Frankfurt, conselheiro de Konrad Adenauer, a quem convence que arestauração de um papel da Alemanha no mundo só poderia se dar através da Europa.

Entretanto, dois nomes são fundamentais para que a nascente consciência europeu viesse atraduzir-se em uma expressão política: Charles De Gaulle ( 1890-1970 ) e Konrad Adenauer ( 1876-1967 ), ambos resistentes anti-nazistas, ambos combatentes contra a ocupação de seus países pelopior exemplo de barbárie que a Europa pode produzir.

Assim, bem ao contrário do que normalmente se pensa – e muito em particular entre nós, noBrasil – a aproximação franco-alemã, a CECA, a CEE e, depois, a U.E., não surgiram comoprojetos econômicos visando impulsionar os “negócios”. São projetos de Estado, onde estãoancorados destinos nacionais constituídos à base do reconhecimento da vontade coletiva, nacional eeuropéia.

O processo de construção desta nova Europa foi, contudo, difícil e conturbado.

Como vimos acima, um conjunto de fatores de amplo alcance, no plano das relaçõesinternacionais, da Crise de Suez, de 1956, até o relativo desengajamento dos Estados Unidos emrelação a Berlin, entre 1961 e 1962, revelaria aos dois principais parceiros do CEE, França eAlemanha Ocidental, a inevitabilidade de um futuro comum. Mais do que o Tratado de Roma de1957, o Tratado do Eliseu, ou de Paris, de 22 de janeiro de 1963 ( votado em 16 de maio do mesmoano ) celebrando a reconciliação franco-alemã marca o reconhecimento deste destino comum.

O processo, contudo, não foi linear ou sem percalços. Podemos em verdade vislumbrar, hoje,etapas diversas da construção da idéia de Europa una e autônoma.

As Etapas da Construção Européiai. o surgimento da idéia de construção européia: 1946-1954. Dadas as condições anteriores

alinhavadas, não é de espantar que as primeiras declarações em prol da construção de uma entidadede personalidade européia se desse em torno de uma preocupação política. Winston Churchill, RenéPleven entre outros, logo após a II Guerra Mundial, mostraram-se interessados em promover formasde colaboração política e militar que permitissem um nuançamento da Bipolaridade que sedesenhava rapidamente no cenário mundial. O Tratado de Dunquerque, de 1947, entre a França e oReino Unido apontava claramente neste sentido. O impacto, entretanto, do Plano Marshall, nomesmo ano e a exigência norte-americana para que a Europa se organizasse para uma melhor gestão

A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 5/14

Page 6: A uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

dos recursos, acaba pesando em outra direção, abrindo uma pequena brecha nas formulações depolítica externa no continente ( donde emergirão as concepções atlantistas e europeístas ). Sobreimpacto direto do Plano Marshall os europeus criam, em 1948, OECE/Organização Européia deCooperação Econômica, que passa a ser responsável pela gestão dos recursos do Plano Marshall.No mesmo ano, Bélgica, Holanda e Luxemburgo organizam uma união aduaneira, o BENELUX. Foinesse clima de busca de cooperação para além das fronteiras nacionais que Robert Schuman, em1950, faz a proposição de exploração e desenvolvimento em comum dos recursos de carvão e açoda França e Alemanha ( Declaração Schuman ), criando-se uma associação que estaria aberta aosdemais países europeus, superando em definitivo a chamada Questão do Sarre ( o uso dos recursosestratégicos da região fronteiriça entre França e Alemanha ). Um ano depois, através do Tratado deParis, é criada a CECA/Comunidade Européia do Carvão e do Aço, composta pela França eAlemanha, conforme a sugestão de Schuman, mais os países do BENELUX e a Itália. A persistênciada idéia do Estado-nação, contudo, é extremamente forte, e todos as propostas de criação de umforça militar européia ou de um organismo político supra-nacional são seguidamente rejeitadas,especialmente pelo parlamento francês. Para um grupo importante de políticos franceses eranecessário garantir, primeiramente, o sepultamento definitivo do imperialismo alemão e de qualquertentativa de revisão da vitória de 1945. Assim, enquanto prosperava a idéia de cooperaçãoeconômica, as iniciativas que deveriam amparar o nascimento da Europa política e de defesamaracavam passa, como o Tratado de Bruxelas, que havia instituído, em 1948, a UnionOccidentale, voltada para a defesa comum anti-agressão. Por sua vez, a pressão norte-americanapara a organização de todas as forças européias numa frente comum anti-soviética adquiria, então,muito mais credibilidade, acabando por desembocar no Pacto do Atlântico, de 1949, origem daNATO. Entretanto, a pressão original por uma Europa política continuará presente, em especialatravés da criação da Comunidade Européia de Defesa/CED. Em verdade, desde o início dos anos´50 se discutirá em Bonn, Paris e Bruxelas a criação de uma entidade jurídico-política quesubstituísse, em conjunto, a CECA e CED, permitindo que a integração econômica caminhasse empassos iguais com a integração política e de defesa.

ii. a elaboração do Mercado Comum Europeu: 1955-1957. A permanente rejeição de qualquerentidade política supra-nacional acaba por produzir o desenho mais duradouro da cooperaçãoeuropéia. Esta deveria ser, necessariamente, econômica, respeitar os atributos básicos da soberaniado Estado-nação e reconhecer os interesses geo-estratégicos dos membros associados. Assim, aFrança e a Holanda mantinham-se aferradas a suas estratégias de manutenção dos impérioscoloniais, que deveriam suprir algumas das necessidades básicas da metrópole e, por outro lado,exigiam, em meio a verdadeiras guerras na Indonésia e no Vietnam, a manutenção de forçasarmadas nacionais, autônomas, capazes de defender os interesses nacionais em cenários extra-europeus. As áreas de colaboração previstas pelos “Seis” da CECA restringem-se, assim, ao setoraduaneiro e a energia nuclear. Desde logo duas propostas são oferecidas ao debate, marcando bemas diferenças de abordagens acerca da construção européia: de um lado, a proposta britânica de umaampla zona de livre-troca no âmbito da OECE; de outro, a proposta apresentada na Conferência deVeneza, em 1956, de criação de um mercado comum, envolvendo inclusive itens industriais evisando certa homogenização de políticas públicas. Reino Unido e França representarãoperfeitamente as respectivas proposições, marcando, de um lado, a vocação mercantil e financeirado Reino Unido, detentor do maior sistema financeiro da Europa ( bolsa/bancos ) e profundamenteenraizado com os sistemas financeiros norte-americanos, e, de outro lado, a proposição da França,voltada para um estreitamento da cooperação industrial e agrícola no âmbito do continente, além deuma reorganização mais autônoma das antigas áreas coloniais, em especial na África. Taisdiferenças marcarão, até hoje, as linhas de tensão no interior da UE, com uma Inglaterra menosintegracionista e mais atlantista e uma França preocupada com a construção de uma Europa a um sótempo próspera e politicamente influente. Com o afastamento dos britânicos, as negociaçõesavançam em direção a um Mercado Comum Europeu ou CEE, proposto no Tratado de Roma de

A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 6/14

Page 7: A uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

1957, ao lado de uma agência de energia atômica, a EUROTOM. Da mesma forma, a Crise de Suez,nos seus aspectos anteriormente destacados, com a humilhação da Europa frente aos americanos,certificaria muitos europeus que a autonomia era o único caminho para a segurança coletiva docontinente.

iii. a nova arquitetura européia: 1958-1971. Nesta primeira fase, necessariamente difícil econflituosa, a atuação da CEE/Comunidade Econômica Européia, deu-se em direção a dois vetoresprincipais: a redução das tarifas aduaneiras intra-Estados-membros e a criação de uma TarifaExterior Comum/TEC. Embora centrada desde o início na cooperação industrial, a CEE vê-seobrigada a discutir as condições de implantação de uma política agrícola comum, que receberá adenominação de PAC e tornar-se-ia a principal atividade de desenvolvimento no interior daentidade, bem como a maior fonte de atritos entre a CEE e os demais parceiros comerciaismundiais. Da mesma forma, a insistência do fator colonial, fundamental para a França ( e suapolítica de francofonia ) produzirá outra marca determinante da CEE: o sistema de preferências.Pela Convenção de Yaundé, de 1963, dezessete países da África, e mais Madagascar, recebemtratamento preferencial na importação de gêneros de terceiros países, abrindo o caminho para que ascolônias e ex-colonias francesas, holandesas e belgas na África e Ásia assumam um quasemonopólio do fornecimento de matérias-primas e gêneros agrícolas tropicais para a CEE ( no maisdas vezes, em grave prejuízo para a América Latina, que volta-se, então, com maior intensidadepara os Estados Unidos ). No mesmo ano, completa-se o processo de Reconciliação Franco-alemão , com a assinatura do Tratado de Cooperação Mútua, por De Gaulle e K. Adenauer. Acooperação franco-alemã tornar-se-ia o pilar de toda a construção européia, centrando as decisõesfundamentais da CEE. Ambos os estadistas, responsáveis pela restauração de seus países,entenderam que a cooperação não era uma opção e sim uma exigência das novas condiçõesmundiais.

Depois da perda da parceria britânica em 1956, com o fim definitivo da Entente Cordiale, aFrança parecia isolada, envolvida em suas guerras coloniais e cada vez mais dependente dos EstadosUnidos. A construção da CEE era a resposta fundamental ao isolamento do país e ao desprestígio daEuropa. Contudo faltava, ainda, um elemento fundamental. Mesmo sendo bons amigos, oBENELUX mostrava-se por demais frágil como parceiro estratégico na construção européia, damesma forma a Itália – presa em suas crises institucionais sucessivas – não mostrava uma decisãodefinitiva em direção à nova Europa. É neste sentido que a recém criada República Federal Alemãdesempenha um papel chave para a arquitetura de uma Europa restaurada. Inicialmente vista comdesconfiança, a Alemanha Federal conheceu, entre 1961 e 1963 – no crepúsculo do prósperoreinado de Konrad Adenauer – a mesma situação de abandono que a França fora relegada em 1956.

Após os efeitos quase pirotécnicos da promessa de engajamento de John Kennedy com a defesade Berlin Ocidental e da própria Alemanha Federal, fica claro para Bonn que o governo americanoprocurava um acomodamento com os soviéticos, com a diminuição dos riscos de um conflitonuclear e com os custos da presença americana na Europa. Para Adenauer era evidente que o preçocobrado pelos soviéticos seria, como foi, o reconhecimento da Linha Oder/Neisse ( a fronteira entrea Alemanha/DDR e a Polônia, como imposta em 1945 ) e o reconhecimento da soberania da DDRsobre Berlin Oriental. No ano de 1962 as pressões americanas sobre Bonn tornar-se-iam ainda maispesadas, com a exigência de negociar com a DDR o acesso a Berlin/W e, acima de tudo, a exigênciada renúncia permanente dos alemães a um arsenal nuclear ( 12/04/1964 ). Assim, a liderança alemãse divide, mesmo no interior da coalizão CDU/CSU no poder: alguns defendem o estreitamento doslaços com os americanos e a plena confiança no Pacto Atlântico; outros, em torno do chanceler, ecom o apoio do FDP/Liberais e do SPD/Sociais-democratas, de Willy Brandt, questionam osméritos e a confiabilidade do atlantismo e propõe uma posição neutralista e de colaboração com ospaíses socialistas, sob a égide de uma versão alemã do gaulismo, o chamdo Burgfriedenplan, de1962. Ambos os governos, em Paris e Bonn, temiam que o outro assumisse uma atitude tipo fuga

A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 7/14

Page 8: A uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

para alto e para frente: a busca de um entendimento direto e estável com Moscou, poupando-se dasconseqüências de um conflito atômico no seu território – o que, evidentemente, enfraqueceriaenormemente o parceiro. Assim, abria-se, em 1962 três grandes perspectivas: i. a reafirmação doatlantismo, mesmo face a profunda crise de confiança oriunda dos incidentes de Suez e da Crise deBerlin; ii. a procura de um entendimento direto com Moscou, que poderia desembocar num projetoneutralista de tipo finlandês ou, iii. a busca de um compromisso mútuo frente a hesitação americanae a ameaça soviética. É neste contexto, que os dois estadistas decidem, depois de inúmerasdemarches, assinar em 22 de janeiro de 1963, um amplo acordo de cooperação. O acordo assinadoem Paris previa uma estreita cooperação no campo da política exterior e de defesa, estabelecendopelo menos dois encontros anuais no nível de chefes de Estado e quatro encontros de ministros doexterior, além de um mecanismo permanente de consultas. Tratava-se, acima de tudo, de desfazerrancores antigos e evitar incompreensões futuras, tornando o eixo Paris/Bonn um elemento deequilíbrio entre Washington e Moscou. O acordo será, por fim, votado pela Assemblée Nationale e oBundestag em 16 de maio de 1963.

A visita triunfal de John Kennedy a Alemanha, em junho do mesmo ano, será, em grande parteuma resposta norte-americana à construção do eixo Paris/Bonn.

No plano interno, das relações intra-comunitárias, a construção da PAC tornar-se-ia em temacentral das discussões da CEE, em especial pelas dificuldades de coordenar as necessidades deimportação de gêneros agrícolas, alimentos e matérias-primas, com os interesses franceses eholandeses em manter e apoiar uma população rural empobrecida e uma produção rotineira edeficitária. Após inúmeras crises o modelo francês de financiamento da produção agrícola tornar-se-á o núcleo da PAC.

iv. a expansão e consolidação da CEE: 1972-1980. O sucesso da nova arquitetura européia, apressão crescente dos trabalhistas ingleses temerosos do isolamento do Reino Unido face à novaEuropa, acabam por levar à candidatura inglesa. A entrada do Reino Unido na CEE implica naaceitação de países tradicionalmente ancorados na área de influência da libra, como a Irlanda, aNoruega e a Dinamarca, dimensionando agora a CEE com um formato continental. Malgrado umcerto mal-humor dos franceses – que não se sentiam convencidos da sinceridade europeísta dosingleses - a proposição britânica é irrecusável, trazendo para o interior da CEE um forte acirramentoda concorrência nas áreas industriais e de serviços.Se, de um lado, como notaram os críticos, aadmissão inglesa gerou maior concorrência industrial e, mesmo desemprego em áreas tradicionais,pode, por outro lado, incentivar a modernização técnica e a incorporação de novas tecnologias,tornando a indústria da CEE mais competitiva no plano internacional. O eixo financeiroParis/Frankfurt é enfraquecido pela competência da City, carreando para Londres grande volume dasatividades de financiamento, seguros e investimentos. O potencial industrial inglês acentua aconcorrência, enquanto a existência da vasta Comunidade Britânica das Nações coloca problemasnovos para a CEE. Evidentemente, as ex-colônias britânicas na África acabam exigindo o mesmotratamento da Convenção de Yaundé, o que fere o quase monopólio francês na importação degêneros tropicais para a CEE. Por outro lado, a condição da Austrália, Nova Zelândia e Canadá –aos quais a Convenção de Yaundé não cabia – e possuidores de um forte potencial industrial, comono caso do Canadá, ou de uma vigorosa agricultura e pecuária, como é a Nova Zelândia e aAustrália, implicam na aplicação plena dos chamados acordos preferências. O alargamento,verdadeiramente europeu, da CEE, sua projeção mundial sobre o comércio e financiamento dospaíses da África, Caribe e Ásia, implica, desde então, na busca de uma fórmula de cooperaçãofinanceira e monetária, capaz de ajustar os mecanismos de compensação no comércio intra-CEE.Assim, em 1972, dá-se um importante passo em direção a comunitarização econômica, com acriação da Serpente Monetária, um sistema de compensações recíprocas das diversas moedascirculantes no interior da CEE, autonomizando mercado financeiro europeu em face do dólar. Omecanismo será aprofundado em 1979 com o Sistema Monetário Europeu, baseado no Ecu –

A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 8/14

Page 9: A uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

european currency unit, enquanto unidade monetária européia. No mesmo ano dá-se a primeiraeleição, por sufrágio universal, do Parlamento Europeu, estabelecido na emblemática – para asrelações franco-alemães – cidade de Strasburg.

v. Do Mercado Comum à União Européia: 1981-1985. A partir de 1981 a CEE assumeclaramente o papel de um pólo de poder europeu, aceitando a demanda de associação de diversospaíses europeus, mesmo sem qualquer tradição de cooperação anterior. Esse é o caso da Grécia,aceita em 1981 e que abre as portas da CEE para o mundo mediterrâneo. Em 1984 a CEE aprova atransformação das estruturas comunitárias visando a constituição de uma verdadeira união,consumando tal transição através do Acordo de Schengen, que estabelece a livre circulação depessoas e a plena vigência do passaporte comum. Num momento de relance violento da GuerraFria, a chamada Segunda Guerra Fria, com Ronald Reagan, e o lançamento da Iniciativa de DefesaEstratégica, ou Guerra nas Estrelas, a Europa comunitária teme um abandono por parte dosEstados Unidos – protegido por um sistema de defesa anti-mísseis que transformaria o territórionacional em santuário e pronto para uma guerra nuclear tática a ser travada na Europa. Tal temorimpõe, ainda uma vez, uma nova velocidade e comunhão de vontades, expressa na estratégia derelance da união européia.

vi. a grande União Européia: 1986-1995. Com a adesão da Espanha e Portugal, em 1986, aolado da Itália e Grécia, a União Européia perde seu caráter norte-europeu e assume claramente asnovas realidades econômicas da Europa, onde um eixo de prosperidade se instala no Mediterrâneo,em especial com o fantástico crescimento da Espanha e da Itália. Desde 1986 os países-membrosaceitam a Ata Única Européia, que prevê a finalização de todos os mecanismos visando aconstituição de um mercado plenamente unificado, que acaba por ser realizado no Tratado deMaastricht, de 1992. O fim da DDR e a Reunificação alemã, com seu impacto econômico e políticosobre o conjunto da Europa, acaba por acelerar os mecanismos de integração no interior da UE. Ofim do socialismo soviético, com a abertura da Europa central e oriental, a reconstrução alemã, ostemores da França na nova e instável conjuntura pós-Guerra Fria – tudo isso obriga a um aceleradorelance da idéia de uma comunidade européia para além de uma entidade econômica. O abandonode algumas das prerrogativas clássicas do Estado-nação são previstas como caução de umentendimento num mundo pós-Bipolaridade. Se, a Bipolaridade havia dado o primeiro impulso nosurgimento da UE, o fim de um poder constrangente na fronteira de prosperidade européia colocaoutras questões. Em primeiro lugar, a definição do papel da nova Alemanha no contexto europeu ecomunitário – preocupação central da França, da Itália e da Polônia. O Acordo 4+2+1 acaba porgarantir a segurança coletiva na nova Europa, enquanto a retomada dos testes atômicos de superfíciepela França, serve para acalmar os setores franceses, e europeus em geral, sobre um eventualressurgimento do chauvinismo alemão. No âmbito comunitário a proposta aceita dá-se em torno doestreitamento dos mecanismos comunitários, com o lançamento da moeda comum, o banco centraleuropeu, e os mecanismos comunitários de controle orçamentário. Tais medidas, claramentelimitadores dos atributos de soberania do Estado-nação, atrelam de forma complexa as economiasdos Estados-membros, impossibilitando qualquer tipo de recrudescimento da concorrência ( esta,mesmo elevada entre as empresas, não deveria, de forma alguma, transbordar em direção a políticaseconômicas nacionais ). Ao mesmo tempo, o anúncio da unificação monetária lance um amplomovimento de fusões entre grandes empresas industriais e financeiras. O processo de estreitamentodas instituições comunitárias é acompanhado por graves crises monetárias, violentas flutuaçõescambiais e forte pressão orçamentária. A postura dos Estados Unidos, pós-Guerra Fria, mudaradicalmente em relação a União Européia, passando a ser um crítico feroz da PAC e da TEC. Ogoverno Clinton procurará, de todas as formas, ultrapassar a UE, promovendo o descrédito públicodos europeus enquanto força política autônoma. A ação americana dirigir-se-á para o alargamentoda NATO, com velocidade superior ao alargamento interno e externo da UE, procurando impor oconceito de que a Europa política se realiza na NATO e não na União Européia. A ação americanana Bósnia, e, principalmente, em Kossovo demonstra claramente o interesse americano de paralisar

A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 9/14

Page 10: A uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

uma Europa política. O governo Bush, lastreado em arrogante unilateralismo, aprofundará amarginalização européia, expressa, por exemplo, na busca por parte dos Estados Unidos de umaparceria estratégica com Moscou, sem consulta prévia aos europeus.

vii. a União Européia e a crise da Europa: 1995-2003. Desde 1995, com a Áustria, Finlândia eSuécia, a União Européia muda profundamente de caráter. Mais do que o peso econômico dos trêsnovos sócios, a admissão destes três países possui um caráter nitidamente político. Os três sãopaíses neutros, não associados aos antigos blocos militares da Guerra Fria – NATO e Pacto deVarsóvia – e, ao menos dois, a Áustria e a Finlândia, tiveram seu estatuto de neutralidade impostopela presença soviética pós-1945. A admissão de tais Estados representa o reconhecimento do novomapa político europeu, o fim dos constrangimentos oriundos da II Guerra Mundial, bem como avocação da União Européia de assumir um desenho geo-estratégico cada vez mais europeu. Paramuitos países, em especial a França, a admissão dos países neutros implicava em estabelecerclaramente a personalidade política, e de defesa, autônoma da Europa. Com tais países não seriapossível buscar – como queria os Estados Unidos de Clinton – uma correspondência automáticaentre NATO e EU. O novo objetivo da União passa a ser o PECO, os países da Europa Central eOriental, em transição da economia planificada sovietizada para uma economia de mercado.Particularmente a nova Alemanha, passa a ter interesses crescentes na Europa Central, tornando-serapidamente o principal investidor nos Países Bálticos, Polônia, Hungria e com fortíssimosinteresses, associados à Áustria, nos Estados da ex-Iugoslávia, em especial na Eslovênia e Croácia( as quais serão os primeiros a reconhecer a independência, em 1991, à revelia da UE ).. A grandequestão nova colocada para a União serão as condições de aceitação de um bloco novo de países,candidatos desde algum tempo haviam apresentado sua candidatura, a saber: -1997, na Conferênciade Luxemburgo: Chipre, Estônia, Hungria, Polônia, República Checa e Eslovênia; -1999, naConferência de Helsinki: Bulgária, Letônia, Lituânia, Malta, Romênia e Eslováquia.

As condições de aceitação de tais candidaturas são, evidentemente, diferenciadas, dependentesdo grau de estabilidade econômica, respeito às regras do jogo democrático e o respeito às regras deboa-vizinhança. Contudo, desde logo, devemos destacar dois pontos centrais de questionamentosgerados pela mega ampliação da União Européia: de um lado, o impacto sobre a PAC e as políticasestruturais, em especial a política para as regiões pobres; por outro lado, o próprio desenho dasinstituições comunitárias, o grau de controle popular sobre a burocracia de Bruxelas ( expresso nadifícil equação Parlamento Europeu versus Conselho Europeu ) e de preeminência do Estado-naçãosobre as instituições comunitárias.

De qualquer forma, a mega ampliação da União altera profundamente as percepções geo-estratégicas em vigor na Europa, lançando a fronteira da prosperidade européia até os Cárpatos, eexcluindo a Federação Russa.

Contudo, a U.E. trabalhou desde o fim da Guerra Fria, conforme estabelecido o Tratado deRoma, em direção a uma união plena, em busca de criar uma personalidade jurídica e políticaprópria, capaz de desempenhar um papel político condizente com a grandeza econômica doconjunto dos países envolvidos. Neste sentido, o Tratado de Maastricht, de 1991, constituiu-se nopasso central de redirecionamento da União, em vigor desde 1993, acelerou o processo deintegração européia a partir de dois vetores básicos: a consolidação da União Política e oestreitamento da união econômica através da União Monetária e Econômica, ensejada com acriação do euro. Tais vetores implicavam em um grande remanejamento de alianças e perspectivasno interior da U.E., quase sempre sob impacto das mudanças eleitorais havidas entre 2000 e 2002,em particular do fracasso da constituição de um eixo político Londres-Berlin, acalentado porGehrard Schröder/SPD, e a reafirmação da liderança na francesa na Europa vis a vis com os EstadosUnidos. Ao mesmo tempo, a realidade pós-soviética da Europa impõe a necessidade de se procedera incorporação de novos membros na União, agudizando algumas das contradições maisimportantes existentes em seu seio, em especial em relação a PAC/Política Agrícola Comum, como

A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 10/14

Page 11: A uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

ainda com a Política de Desenvolvimento para as áreas mais pobres e, mesmo, com a PESC/Política de Pesca Comum. De qualquer forma, uma Europa Política, que emergisse da U.E., deveriaminimamente recobrir o mapa europeu até a fronteira ucraniana, garantindo um espaço econômicopara a expansão dos seus interesses e reinventando os paradigmas mínimos da segurança européia.

Pelo Tratado de Amsterdam, de 1992, assinado pelos países europeus na atmosfera entãootimista do fim do socialismo soviético, todo país europeu pode depositar junto ao ConselhoEuropeu, em Bruxelas, uma demanda de associação à União Européia. Para isso deve contemplaralgumas condições estabelecidas pela UE, a saber: pertença geográfica ao Velho Mundo; defesa dosdireitos do homem, inclusive abolição da pena de morte; economia de mercado, aberta econcorrencial; e aceitação plena, sem restrições, das regras econômicas e sociais da UniãoEuropéia. Só aparentemente fácil e automático, o processo de exame dos dossiers de entrada, sãoextremamente demorados, complexos e conformados a uma rotina burocrática muitas vezesexasperante. São cerca de 80 mil páginas de regulamentos, estendendo-se desde a definição deprofissões, até a composição de determinado gênero alimentício. Os impedimentos burocráticos, sãocontudo, uma espécie de escudo protetor da União visando restringir determinadas candidaturas,desagradáveis para algum país-membro, ou indesejada por vários outros. Talvez o caso mais típicoseja da Turquia. Evidentemente um país com profundo déficit na observação dos direitos humanos,como no caso do tratamento da minoria curda, e com frágeis instituições democráticas. Entretanto,os sucessivos governos turcos vem se esforçando para cumprir plenamente as metas estabelecidaspara a adesão. Ocorre que a Grécia, com eternas disputas com os turcos, exaltadas pela situação deChipre, sistematicamente bloqueia a presença de Ancara em Bruxelas. Neste caso, a Grécia exerce opapel de obstáculo, quando na verdade Alemanha, Portugal e Espanha possuem imensas reservas,por razoes diferentes, contra os turcos. Os alemães em virtude dos problemas decorrentes da livrecirculação de pessoas e dos direitos sociais comunitários; Portugal e Espanha em virtude de umapotencial concorrência no setor agrícola. A mega adesão em curso – a ser decidida em dezembro de2002, na Conferência de Copenhague – impõe uma série de condições bastante complexas. Adecisão implica na consolidação do segundo poder econômico do planeta, com gastos da ordem de40 billhões de euros até 2006. Contudo, os países-membros possuem interesses claramente diversos,como no caso da Alemanha: interesse pela incorporação da República Tcheca ( 10 milhões dehabitantes ); Hungria ( 10 milhões de habitantes ); Eslovênia ( 1.990 mil habitantes ) e interessegenérico na adesão dos Países Bálticos ( cerca de 9 milhoes de habitantes ); e a França: interesse naadesão da Polônia, Romênia e Turquia. Da mesma forma, a França teme a incorporação exclusivada chamada Mitteleuropa dos alemães ( Tchequia/Hungria/Eslovênia), o que aumentaria o pesoalemão na UE. Enquanto isso os alemães temem que a adesão da Polônia e Romênia represente umainvasão de imigrantes, aumentando de forma insuportável o peso sobre os serviços sociais eincentivando o crescimento da xenofobia de extrema-direita. Por outro lado, portugueses eespanhóis temem profundamente a adesão da Polônia, Hungria e Romênia. Tais países possuemcondições de vida medianamente abaixo das condições de vida das regiões deprimidas dos paísesibéricos, o que implica num desvio dos recursos de projetos especiais de desenvolvimento da áreado Mediterrâneo para a Europa central. Da mesma forma, a França, Holanda, Itália e Dinamarcatemem a chegada de um bloco de países de forte contingente demográfico camponês, acusados dedumping social, capaz de promover uma forte concorrência com a agricultura ocidental. Por suavez, Inglaterra e Alemanha recusam-se a manter uma PAC que cubra os custos atuais do orçamentoagrícola e incorpore, nas mesmas condições, o novo bloco de países aderentes. Num momento depausa no crescimento econômico, crise nas relações internacionais, a posição de U.E. nunca estevetão longe da almejada Europa Política. Enquanto o eixo Paris/Berlin funciona em direção a umamaior contenção do unilateralismo americano e um maior respeito com as normas da OMC, aInglaterra, Espanha e Itália aliam-se resolutamente aos americanos, assumindo um ampla fratura noprojeto de futuro da Europa.

A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 11/14

Page 12: A uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

A Europa frente ao século XXIA emergência da Administração Bush, depois de 2001, praticando um vigoroso unilateralismo –

ou multilateralismo a la carte, como afirma Condoleeza Rice – criou mais alguns problemassuplementares para a Europa, obrigada a conviver com uma política comercial agressiva, capazproduzir estragos em setores exportadores importantes da U.E., em especial na área da siderurgia ede produtos agrícolas, como comprovam os últimos atos protecionistas da administração americana.Deve-se somar a tais dificuldades a tentativa americana de abrir o mercado europeu à produtosgeneticamente manipulados, o que encontra forte resistência européia, em especial dos diversospartidos verdes. Além disso, projetos considerados vitais pelos europeus, como o Galileo ou oAirbus vinham sendo claramente combatidos pelos Estados Unidos em função dos interesses de suaprópria indústria ( GPS/Boieng ).

Assim, dava-se uma corrida no mesmo sentido, porém com velocidades diferentes e pontos dechegada diferenciados, na construção da nova Europa: de um lado, uma Europa confederada, comum eixo de ligação militar, político e econômico com os Estados Unidos – expressa na NATO - efortalecida pela aliança histórica entre as duas potências anglo-saxães; ou, por outro lado, umaEuropa federada, mais reduzida do que no mapa anterior, mais autônoma e representada por umexecutivo único, fortalecido no tocante a sua política externa, e centrada no eixo original de podercentrado na relação Paris/Berlin.

Assim, a agenda da U.E encontrava-se, às vésperas de 11 de setembro de 2001, sobrecarregada,pela imperiosidade de importantes decisões, exatamente quando a pressão eleitoral tornou-se maisdura no plano interno dos países-chave do projeto europeísta, tais como Alemanha, Inglaterra eFrança. Tratava-se, não só, de contornar os eternos eurocéticos e atlantistas, como no caso daInglaterra – tarefa complexa, porém já enfrentada várias vezes com sucesso. Na verdade, a maiorcrise surgia em países importantes com o crescimento da extrema-direita, muitas vezes de cunhoneofascista, e uma violentamente crítica quanto ao pretenso abandono da “soberania nacional” emfavor dos burocratas de Bruxelas, como é o caso da França, frente ao fenômeno Le Pen, da Holanda,com o dramático episódio Pym Fortuin e do renitente ÖFP, de Jörg Haider, na Áustria. Em outros,como na Alemanha, exausta economicamente após os esforços da Reunificação Nacional, não setoleraria mais aumentos de impostos para continuar a pagar uma agricultura que apresenta sinaisevidentes de uma superexploração da natureza, tais como o mal da vaca louca ou o frango comdioxina. Assim, antes de resolver as questões referentes a ampliação da U.E. ter-se-ia que solucionaras questões pendentes internamente, desde da reforma institucional até a extensão da PAC. A UEnão teve, contudo, este espaço de tempo, com os acontecimentos acelerando-se dramaticamente apartir de 2001. As eleições gerais na França e na Alemanha acabariam por atrasar as medidasnecessárias de reformulação das instituições comunitárias, sucedendo-se então uma ampla crise nasrelações internacionais.

Por sua vez, boa parte dos novos candidatos irrecusáveis – Polônia, República Tcheca, porexemplo – contam com pelo menos dois dos mecanismos de fomento praticados no interior daUnião: a PAC, fundamental para um país de camponeses, como a Polônia, e a ajuda aodesenvolvimento, fundamental para todos os países pós-comunistas, mecanismos que não deveriam,contraditoriamente, nem serem extintos, como tampouco extensivos aos novos países, em função doclaro peso fiscal que tal medida representaria para as ecominas francesa e alemã.

A extensão, contudo, da PAC para os novos governos eleitos implicaria num aumento doorçamento agrícola comunitário de forma insuportável. Para as lideranças que explorarameleitoralmente o tema da redução de impostos, tais como a Tony Blair ou Gehrard Schröder, alémdo próprio Jacques Chirac, a extensão da PAC, nos seus atuais termos, aos novos países tornou-seum grande imbrolio. Assim, se a PAC já é um ônus orçamentário hoje, sua extensão em direção aoleste é um ponto de crise insuperável. Além disso, desde a Rodada de Doha, da OMC, em 2001,

A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 12/14

Page 13: A uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

ficou claro que os subsídios agrícolas da União são um fator de desequilíbrio, e mesmo um estorvo,ao comércio mundial, prejudicando principalmente ao grandes países emergentes exportadores debens agrícolas, muito especialmente na América Latina, o que torna o tão querido acordoUE/Mercosul muito menos eficaz do que seria o esperado..

Além disso, uma Europa Política deveria contar com uma cabeça política mais firme e robusta doque o papel desempenhado, por exemplo, pelo Secretário Político da União, Javier Solana frente aosconflitos na ex-Iugoslávia ou no Oriente Médio. Assim, a necessidade de um executivo europeuimpõe-se com muita clareza, obrigando a uma re-engenharia de toda a União, conforme os atuaistrabalhos da comissão presidida pelo ex-presidente Giscard D´Estaing.

Foi neste contexto que se deram os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EstadosUnidos. A reação européia, e desde o início a posição francesa expressa por Jacques de Chirac, foide profunda repulsa e, ao mesmo tempo, de plena solidariedade com Washington. De Paris aMoscou todos os meios de colaboração disponíveis foram oferecidos aos americanos, inclusive osimpressionantes serviços de inteligência da França – expert nas questões árabes – e da FederaçãoRussa – os melhores posicionados sobre as questões geo-políticas da Ásia Central. Da mesmaforma, o famoso Artigo 5 do Pacto Atlântico, que prevê a solidariedade transoceânica em caso deataque a um de seus membros, foi acionado. No entanto, os Estados Unidos preferiram optar pelachamada coligações de vontades, alianças ad hoc, definidas por Condi Rice da seguinte forma: oinimigo ( ou causa ) indica a coligação ( e, é claro, a coligação não indica o inimigo ). Dessa forma,a iniciativa americana feria de morte a própria Aliança Atlântica, tornada supérflua e sem umadoutrina própria.

Quase que simultaneamente, decidindo a Guerra contra o Afeganistão, sem provas convincentesde que os ataques partiram daquele país e de seu odioso regime fundamentalista, os Estados Unidosconfundiam e embaraçavam seus aliados. Ainda aí, a Europa acompanhou os Estados Unidos emostrou-se confiante em que, passado o espasmo do 11-S., os americanos refluiriam para osorganismos multilaterais. Em seguida a uma série de atos de desconhecimento do quadro jurídicointernacional – para muitos um exercício de arrogância – os Estados Unidos denunciavamunilateralmente inúmeros acordos internacionais, do Protocolo de Kyoto até o Tratado deLimitação de Mísseis Nucleares, com a Federação Russa. No mesmo ritmo, sem qualquer consultaprévia, a América define um Eixo do Mal, nomeando, entre outros, países com estreitos laçosculturais e econômicos com a Europa, como a Síria, o Irã e o Iraque.

Abria-se uma dura polêmica transatlântica sobre a oportunidade de se aplicar a nova Doutrina deSegurança Nacional ( dita Doutrina Bush ), anunciada pelos Estados Unidos em setembro de 2002,muito especialmente a legitimação bastante duvidosa do auto-proclamado Direito de AtaquePreventivo. Para boa parte da Europa comunitária – França, Alemanha, Bélgica -, bem como paraoutros poderes emergentes – como a China Popular, a Federação Russa, México, Brasil, África doSul – a Doutrina Bush promovia uma dura subversão dos princípios básicos das relaçõesinternacionais assentados, desde o Tratado de Westphalen, de 1648, na idéia de soberania nacional ejustificativa dos atos de guerra. Da mesma forma, os serviços especiais franceses e russos advertiamclaramente que as alegações anglo-americanas posse e produção de armas de destruição em massapor parte do Iraque não eram reais e, tão pouco, haviam sido identificadas pela missão investigadorada ONU e da AIEA.

Em pouco tempo ficaria evidente que razões mais poderosas que a destruição do alegado arsenaldo Iraque impulsionava a coligação anglo-saxã. Como no passado, o unilateralismo americanoforçava a Europa a se unir. Assim, o eixo Paris/Berlim assumiu um papel dominante no frentamentoda nova política externa americana. Se, por um lado, o fim da URSS permitia aos Estados Unidosagir com completa liberdade de ação no cenário internacional, mesmo às custas da AliançaAtlântica, o mesmo fator permitia que franceses e alemães buscassem uma parceria, impossível ao

A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 13/14

Page 14: A uniao europeia_e_a_atual_crise_internacional

tempo da Guerra Fria, capaz de criar limites, de tipo político, diplomático e ético, ao novomilitarismo americano. Com o apoio de um vigoroso movimento pacifista internacional – inclusiveno coração dos países que apoiavam os Estados Unidos -, Paris e Berlim, secundadas por Moscou,redesenharam um jogo político internacional inesperado e capaz de abrir perspectivas insuspeitaspara as relações internacionais no século XXI.

Bibliografia• ADLER, Alexandre. J´ai vu finir lê monde ancien. Paris, Grasset, 2002.

• BOBBIT, Philip. A Guerra e a Paz na História Moderna. Rio de Janeiro, Campus, 2003.

• DEUTSCHER BUNDESTAG. Fragen na die Deustsche Geschichte. Berlin, 1996.

• DIGEL, Werner ( Hrsg. ) MEYRS LEXIKON. Geschichte.Bonn, 1986.

• FRITSCH-BOURNAZEL, Renata. L’Allemagne Unie dans la Nouvelle Europe. Paris, ÉditionsComplexe, 1991.

• JOXE, Alain. Les États-Unis et l´Union européenne proposent deux conceptions très différents de ordremondial. In: CORDELIER, Serge. Le Nouvel État du Monde, Paris, Le Découverte, 2002.

• MAGNETTE, Paul. L´Union Européenne apparaît comme une tentive inédite de constructionmultinationale organisé par des États. In: CORDELIER, Serge. Le Nouvel État du Monde, Paris, LeDécouverte, 2002.

• NYE, Joseph. O Paradoxo do Poder Americano. São Paulo, UNESP, 2002.

• STEVENSON, Jonathan. Cómo se defienden Europa y Estados Unidos. In: Foreign Affairs ( enespañol ), v.3, no. 2, 2003, pp. 46-63.

• WAHL, Alfred. Histoire de Republique Fédérale d’Allemagne. Paris, Aramand Colin, 1991.

A União Européia e a Atual Crise Internacional - Francisco Carlos Teixeira da Silva – Pág. 14/14