a trilogia jogos vorazes sob a ótica do realismo clássico

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1 A TRILOGIA JOGOS VORAZES SOB A ÓTICA DO REALISMO CLÁSSICO Laís de Oliveira Carvalho 1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem por objetivo proporcionar uma análise de um caso hipotético, visto que é obra ficcional, se utilizando da trilogia Jogos Vorazes com base nas premissas da teoria Realista Clássica. Os preceitos dessa teoria serão confirmados com base no estudo da sociedade estatal distópica retratada na obra. Em um primeiro momento será exposta a teoria, seus principais pressupostos, as ideias de seus principais autores, Carr e Morgenthau, explorando as capacidades explicativas e ao mesmo tempo apontando algumas falhas na teoria. E assim com uma base teórica dessa vertente realista é possível melhor compreender a que se propõe esse trabalho. Logo após a teoria, é feita uma síntese das três obras da autora Suzanne Collins, mostrando os principais acontecimentos e personagens de cada livro. Com essa apresentação do enredo da trilogia, o leitor é apresentado a obra e fica melhor situado para compreender a relação existente nesse artigo entre a teoria e o caso literário. Ademais, se utilizando do conceitos-chave do Realismo Clássico como natureza humana, luta por sobrevivência e a política de poder, acontecimentos do livro são relacionados a esses conceitos confirmando-os e explicando-os de maneira prática. Assim é associado o estado de natureza aos Jogos

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Artigo que fala sobre analisa a trilogia Jogos Vorazes com a teoria realista clássica.

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Page 1: A trilogia Jogos Vorazes sob a ótica do Realismo Clássico

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A TRILOGIA JOGOS VORAZES SOB A ÓTICA DO REALISMO CLÁSSICO

Laís de Oliveira Carvalho

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo proporcionar uma análise de um caso

hipotético, visto que é obra ficcional, se utilizando da trilogia Jogos Vorazes com base nas

premissas da teoria Realista Clássica. Os preceitos dessa teoria serão confirmados com base

no estudo da sociedade estatal distópica retratada na obra.

Em um primeiro momento será exposta a teoria, seus principais pressupostos, as

ideias de seus principais autores, Carr e Morgenthau, explorando as capacidades explicativas

e ao mesmo tempo apontando algumas falhas na teoria. E assim com uma base teórica dessa

vertente realista é possível melhor compreender a que se propõe esse trabalho. Logo após a

teoria, é feita uma síntese das três obras da autora Suzanne Collins, mostrando os principais

acontecimentos e personagens de cada livro. Com essa apresentação do enredo da trilogia, o

leitor é apresentado a obra e fica melhor situado para compreender a relação existente nesse

artigo entre a teoria e o caso literário.

Ademais, se utilizando do conceitos-chave do Realismo Clássico como natureza

humana, luta por sobrevivência e a política de poder, acontecimentos do livro são

relacionados a esses conceitos confirmando-os e explicando-os de maneira prática. Assim é

associado o estado de natureza aos Jogos Vorazes e a revolução, como também é demonstrada

a busca por poder e dos interesses estatais com um objetivo final que é a sobrevivência.

Provoca-se então a reflexão sobre o Estado e a guerra com base na natureza humana que seria

imutável e através de uma distopia – crítica a elementos da realidade – repensar as condições

humanas e sociais da atualidade.

2 REALISMO CLÁSSICO

Em busca de legitimidade e consolidação da área acadêmica de Relações

Internacionais, estudiosos buscaram o internacional em obras filosóficas clássicas. Sendo

assim foram adaptados conceitos de autores como Hobbes, Maquiavel e Tucídides aos

pressupostos e princípios da vertente clássica do Realismo. Conceitos como natureza humana,

sobrevivência, poder, guerra e anarquia são exemplos de premissas desses pensadores

clássicos que servem de base para a teoria. Todas essas influências são centradas na natureza

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do ser humano que seria o fator explicativo do comportamento dos Estados. (NOGUEIRA;

MESSARI, 2005).

Em um cenário pós 2ª Guerra Mundial, os teóricos dessa teoria apresentam a

natureza humana como egoísta e sedenta por poder, frut.\o da lógica hobbesiana, e esse fator

constituiria a base das Relações Internacionais e seria responsável pela configuração dos

interesses estatais definidos em termos de poder para a garantia da sobrevivência. Dentre os

pressupostos básicos do realismo é possível destacar a primazia do Estado como ator

internacional que existe dentro de um sistema anárquico sendo que a anarquia é a condição de

validade da teoria e ao mesmo tempo princípio ordenador do sistema internacional, que

significa a ausência de uma hierarquia autorizada. O Estado é um ente racional, que tem seus

próprios interesses e possui o dever de garantir a segurança dos seus cidadãos. A política

internacional é um jogo de soma-zero em que um Estado ganha e necessariamente outro

perde. Esse fator juntamente com a busca pelo poder e a condição de anarquia do sistema gera

incerteza e desconfiança o que contribui para um cenário de conflito. (MINGST, 2009). Além

disso, também é importante ressaltar a visão cíclica da história enfatizada pelo realismo ao

afirmar que cada geração tende a cometer o mesmo tipo de erro das gerações anteriores.

(JACKSON; SORENSEN, 2007).

Como expoentes dessa teoria clássica têm-se os autores Edward Carr e Hans

Morgenthau. Em sua obra Vinte Anos de Crise, a maior contribuição de Carr é negar a

existência de harmonia de interesses entre os Estados visto que qualquer distribuição de poder

teria uma bagagem ideológica e a ideologia é considerada um mecanismo de poder. Ademais,

por meio de críticas aos idealistas, Carr demonstra que o realismo olharia a realidade como

ela é e a ideia de que a manutenção da paz é de interesse de todos é válida como um interesse

do Estado de manter o status quo não porque os Estados querem cooperar. (CRAVINHO,

2002).

Morgenthau (2003), principal autor realista clássico, afirma em seu livro Politics

among nations que “A política internacional, como toda política, consiste em uma luta pelo

poder. Sejam quais forem os fins da política internacional, o poder constitui sempre o objetivo

imediato.” (MORGENTHAU, 2003, p. 49) e também define quais seriam os seis princípios

do realismo. Entre os princípios de Morgenthau estão: a natureza humana como lei objetiva,

imutável e atemporal, que rege a política e a sociedade; os interesses estatais são definidos em

termos de poder; o poder e os interesses variam com o contexto, não são conceitos

estabelecidos; os princípios morais não devem ser aplicados às ações do Estado, inclusive é

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uma virtude a prudência do uso da ética da responsabilidade; os valores de uma determinada

nação não podem ser considerados universais; e por último o autor defende a autonomia da

esfera política.

Morgenthau afirma continuamente em sua obra como o Estado sempre está

buscando poder inclusive ressalta que a política interna e a política internacional são sempre

uma luta por poder. Os Estados querem manter poder, aumentar o poder ou demonstrar poder

e assim garantir a sua própria sobrevivência, que seria o objetivo máximo estatal. (LIMA,

2011).

Todo esse quadro de características e pressupostos teóricos dá margem, como toda

teoria científica à validação de hipóteses e refutação das mesmas. É fato que como toda teoria,

o Realismo Clássico é uma verdade temporária, que teve seu maior valor e capacidade

explicativa na época em que foi criado mais ainda assim permanecem pressupostos que até

hoje explicam o comportamento dos Estados, principalmente no que diz respeito aos

interesses estatais e a política de poder. É possível, contudo, apontar limitações teóricas

devidas ao foco demasiado em uma concepção de natureza humana sem considerar a anarquia

como elemento que também define o comportamento dos Estados, ao foco muito limitado no

Estado sem considerar muito o papel do indivíduo e também e a visão cíclica e pessimista da

história sem prever que haja um progresso. Entretanto, essa teoria também tem suas

contribuições atuais afinal através de sua análise da política internacional com base na

natureza humana inspirou as outras vertentes realistas.

3 TRILOGIA JOGOS VORAZES

Escrita pela autora Suzanne Collins a trilogia Jogos Vorazes é um grande sucesso

e best-seller que já ganhou adaptação cinematográfica e alcança um grande público jovem.

Divide-se em três livros: Jogos Vorazes, Em Chamas e Esperança. Como uma distopia, a

história se passa em um futuro distante e pós-apocalíptico em que segundo Collins (2010,

2011a, 2011b) a América do Norte foi destruída por crises ecológicas e guerras e deu lugar ao

surgimento de uma nova nação chamada Panem. Essa nova nação foi dividida em 13 distritos,

até que durante os Dias Escuros houve uma rebelião contra a capital que resultou na

destruição do distrito 13 e na obrigação dos distritos restantes de assinarem o Tratado de

Traição, pondo fim à guerra civil. Nesse tratado foi estabelecido que como forma de

relembrar o poder da capital aconteceria anualmente os Jogos Vorazes, uma competição

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transmitida pela televisão, em que um garoto e uma garota de cada distrito entre a idade de 12

a 18 anos são selecionados a lutar até a morte.

No primeiro livro, Collins (2010) destaca a 74ª edição dos jogos onde durante a

colheita dos tributos no Distrito Doze a protagonista Katniss se oferece para participar do

programa no lugar de sua irmã mais nova. E a história se desenrola em torno dessa

protagonista e em tudo que ela fez e irá fazer para sobreviver mostrando os horrores da

opressão da Capital e as desigualdades entre os distritos. No final dos Jogos ela tem que

escolher entre matar Peeta, seu companheiro de distrito, ou ser morta, pois só pode haver um

vitorioso. Então, contrariando as regras do jogo, Katniss propõe o suicídio através de amoras

venenosas abrindo uma exceção e os dois são declarados vitoriosos, mas isso também acende

uma chama de revolta contra a opressão da capital que será mais abordado no livro seguinte.

No livro Em chamas é mais visível que o ato de rebeldia de Katniss instigou os

distritos a se revoltarem contra a Capital e montarem uma nova rebelião com apoio do distrito

13, que conseguiu sobreviver. Então como uma tentativa de mostrar seu poder, a Capital

convoca a 75ª edição dos Jogos Vorazes onde é estabelecido que os vitoriosos de cada distrito

fossem os tributos. E assim uma nova matança começa e só termina quando Katniss destrói o

campo de força que cobre a arena e é levada para o distrito 13 para ser a porta-voz da

revolução.

No último livro da trilogia, tomamos conhecimento de como uma forma de

vingança a Capital destruiu o distrito 12, lar de Katniss, e repreende violentamente a rebelião

nos outros distritos. E assim então começa um conflito entre os interesses da Presidente Coin,

representante do distrito 13, e o presidente Snow, que representa a Capital. Nesse livro Collins

(2011b) nos mostra diversas manifestações do poder estatal e da tentativa de manutenção do

status quo, além da luta por sobrevivência que parece nunca ter fim.

4 NATUREZA HUMANA, SOBREVIVÊNCIA E PODER EM JOGOS VORAZES

Uma distopia é uma obra ficcional que capta uma tendência cultural nociva ou

negativa e fantasia um futuro ou um mundo alternativo em que essa tendência é exagerada e

dramatizada para fazer uma crítica e demonstrar uma visão menos utópica de certos aspectos

da condição humana. (MCDONALD, 2013). Na trilogia distópica Jogos Vorazes não é

diferente, aspectos que coincidem com os principais elementos do Realismo Clássico são

usados para criticar a realidade atual. Sendo assim conceitos como natureza humana, luta por

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sobrevivência, e a política de poder são encontrados na trilogia e serão objetos dessa análise

com base na vertente clássica do realismo.

Desde o primeiro princípio de Morgenthau é perceptível a importância da natureza

humana como base das Relações Internacionais onde ele afirma que “O realismo político

acredita que a política, como aliás a sociedade em geral, é governada por leis objetivas que

deitam suas raízes na natureza humana” (MORGENTHAU, 2003, p. 4). Essa perspectiva

reflete a visão pessimista hobbesiana do homem, e como leis objetivas são válidas em

qualquer contexto, inclusive na trilogia retratada.

A descrição de Hobbes do estado de natureza é semelhante às condições antes da

formação de Panem, durantes os Dias Escuros, nos Jogos e por fim na rebelião. Hobbes

(2003) afirma que no estado natural não há um poder dominante para fazer e aplicar as regras,

toda pessoa tem direito de agir conforme deseja. Por esse motivo deveria haver um Leviatã

para garantir a ordem e a segurança dos cidadãos, e para esse fim que Panem foi criada (FOY,

2013). O Estado criado por meio do Contrato Social deveria agora garantir que não houvesse

uma regressão ao estado natural e os cidadãos deveriam se submeter a um poder centralizado

e obedecê-lo em qualquer circunstância, pois qualquer situação era preferível ao caos do

estado de natureza. É possível então entender a submissão dos Distritos a Capital que por sua

vez oferece uma vez por ano os Jogos Vorazes como lembrete do caos da rebelião dos Dias

Escuros e de como isso não deve se repetir.

Os Jogos Vorazes são o maior exemplo de estado de natureza hobbesiano e é

também uma demonstração da natureza humana egoísta e da luta pela sobrevivência. Na

arena, jovens são jogados a própria sorte e sem nenhum regramento podem fazer tudo o que

for possível para sobreviver. Os recursos são escassos, o tempo é curto e todos querem ser um

vitorioso, ou para sobreviver ou pela honra – a exemplo dos carreiristas, tributos dos distritos

ricos que visam a nobreza da vitória – e Hobbes afirma que:

Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite) esforçam-se por se destruir e subjugar um ao outro. (HOBBES, 2003, p. 107).

Tanto na 74ª edição dos Jogos Vorazes quanto no Massacre Quaternário vemos o

resultado disso, uma “guerra de todos contra todos”, em que já no primeiro dia, 11 e 8,

respectivamente, dos 24 tributos foram covardemente mortos. E isso não pode ser considerado

errado já que segundo Hobbes (2003) se não há um poder comum, não tem lei e não tem certo

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ou errado, justo ou injusto. Mesmo tirar vida de um inocente é permitido em prol de um

objetivo maior: a sobrevivência.

A protagonista Katniss é a personificação de todos os dramas da natureza humana

ao ser egoísta, sempre desconfiar das boas intenções de Peeta – que apaixonado por ela, só

queria salvá-la – e fazer de tudo para sobreviver, até mesmo matar e fingir um romance, a fim

de voltar para casa. Ao se despedir de seu amigo Gale antes dos Jogos, Katniss ainda sente o

dilema moral de matar pessoas. Então quando ele diz que será fácil, pois ela é uma boa

caçadora e sabe matar, mas ela rebate dizendo que é diferente, pois se trata de pessoas, Gale

se limita a dizer: “E que diferença pode ter?”. (COLLINS, 2010, p. 47). Essa é a lógica dos

Jogos: matar ou morrer, visto que matar significa sobreviver torna-se uma ação necessária.

Além disso, é notável traços do egoísmo proveniente da natureza humana nos

cidadãos da Capital. Os Jogos Vorazes além de um simples castigo ou vingança pela rebelião

dos Dias Escuros é o entretenimento da capital. Katniss afirma que “certamente eles não se se

importam nem um pouco em assistir a crianças sendo assassinadas ano após ano”.

(COLLINS, 2011a, p. 218). Segundo Shaffer (2013), os habitantes da Capital sofreriam de

shadenfreude, que significa prazer com o sofrimento alheio. O massacre de crianças até a

morte movimenta a vida das pessoas da Capital que não precisam trabalhar como os outros

cidadãos de Panem, pois é sustentada pela produção dos distritos. A arena vira ponto turístico

e destinos das férias onde eles podem visitar o lugar das mortes e até mesmo participar de

simulações. (COLLINS, 2010). Mesmo com a comoção de ter seus ídolos – os vitoriosos –

indo novamente para os Jogos, a indignação durou apenas até o começo do massacre, quando

começaram as mortes, toda a idolatria já havia sido esquecida.

Esse entendimento sobre a natureza humana nos leva a compreender a política

internacional e o comportamento dos Estados segundo a teoria realista clássica. Não só os

tributos lutavam para sobreviver, mas a Capital também buscava sobrevivência e para isso

buscava poder. Segundo Lima (2011), o poder, na teoria de Morgenthau é um dos conceitos

chave, considerado como meio fundamental que os Estados possuem para conquistar seus

objetivos. E assim os Estados buscam manter o poder, aumentar o poder ou demonstrar o

poder. No caso da Capital ela busca manter o status quo e para isso também demonstra poder.

E isso é justificável já que Morgenthau (2003, p. 90) afirma que: “é muito comum que uma

política de status quo apareça como a defesa de um ajuste de paz que tenha concluído a última

guerra generalizada”.

Carr, segundo Cravinho (2002), já afirmava que a manutenção do status quo pode

ser tão violenta quanto uma rebelião e a Capital com certeza sabia disso. Para manter seu

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poder a Capital utilizava da ideologia do medo nos Distritos e isso era pregado através dos

Jogos. Logo no primeiro livro, ao falar sobre os jogos Katniss afirma:

Essa é a maneira encontrada pela Capital de nos lembrar de como estamos totalmente subjugados a ela. De como teríamos pouquíssimas chances de sobrevivência caso organizássemos uma nova rebelião. Pouco importam as palavras que eles utilizam. A mensagem é bem clara: “Vejam como levamos suas crianças e as sacrificamos, e não há nada que vocês possam fazer a respeito. Se erguerem um dedo, nós destruiremos todos vocês da mesma maneira que destruímos o Distrito 13.” (COLLINS, 2010, p. 25).

Os Distritos são então oprimidos, toda a riqueza produzida por eles vai para

Capital, milhares de pessoas passam fome enquanto na Capital as pessoas vão a banquetes e

tomam um tipo de purgante para comer mais, e ainda sofrem com a perda de seus filhos nos

Jogos Vorazes. E quando há indícios de uma rebelião incitada pelos atos de rebeldia da

protagonista o presidente Snow se utiliza mais uma vez da ideologia do medo convocando a

75ª edição dos Jogos Vorazes, em que os tributos são sorteados entre os vitoriosos com um

único objetivo: “para que os rebeldes não se esqueçam de que até mesmo o mais forte dentre

esses não pode superar o poder da Capital”. (COLLINS, 2011a, p. 187).

O Distrito 13, que até então tinha sido extinto, por possuir armas atômicas fez um

acordo secreto com a Capital e sobreviveu no subterrâneo, enquanto os distritos eram

massacrados. Setenta e cinco anos depois o Distrito 13 incita os outros distritos a se rebelarem

contra o centro do governo de Panem e após a retirada de Katniss da arena e ela se tornar o

símbolo da revolução, uma guerra se inicia. E conforme Melançon (2013), não importam

quais eram os arranjos políticos que havia nessa distopia futura, a América do Norte é

composta por esses dois Estados. O Distrito 13 pode então declarar guerra a Capital e vice-

versa, e nenhum está certo ou errado, são apenas Estados exercendo o poder a fim de

promover os próprios interesses em um sistema anárquico, onde não há uma hierarquia

autorizada acima deles.

A revolução significaria voltar ao estado de natureza, e então tudo seria permitido,

Coin e Snow – presidentes do Distrito 13 e de Panem, respectivamente – sabem disso e não

permitem que a ética moral afete a busca por seus interesses. (FOY, 2013). Cravinho já

afirmava que para Carr a paz interessa mais a quem quer manter o status quo e, portanto

interessava a Capital. Nessa busca de manutenção do status quo, a Capital ainda tenta se

utilizar da ideologia e do medo e para tal fim destrói o Distrito 12, destrói um hospital de

feridos da revolução no Distrito 8, reprime violentamente os levantes e tortura os vitoriosos

que estavam na arena e não foram resgatados, entre eles Peeta.

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Em uma conversa com um dos idealizadores dos Jogos, Seneca Crane, Snow diz

que a esperança é a única coisa mais forte de que o medo. E é justamente essa a arma de Alma

Coin utiliza a ideologia da esperança, para fazer com que os distritos lutem ao seu lado

esperando um futuro sem opressão. Mas ao mesmo tempo o Distrito 13 tem por real objetivo

expandir o seu poder e garantir as riquezas dos Distritos pra si em vez de corrigir as injustiças

da Capital e uma prova disso é que ao chegar ao poder é proposta uma edição dos Jogos

Vorazes com crianças da Capital.

Além do mais, os rebeldes perderam a fama de moralidade desde o ataque a Noz –

base militar que fornecia soldados a capital – onde violaram o princípio da proporcionalidade

e da necessidade militar. (FOY, 2013). A Noz era uma mina do Distrito 2 transformada em

base militar, única remanescente e obstáculo para os rebeldes conquistarem a Capital. Porém

era apenas necessário manter os Pacificadores – soldados da Capital – dentro da Noz e usar

uma pequena força para manter o cerco só que prefiram causar uma avalanche e matar tanto

Pacificadores como cidadãos do Distrito 2. O pior exemplo da falta de moralidade da

revolução foi quando a guerra já estava ganha, mas para apressar a invasão a capasa do

presidente foi ordenado um bombardeio às crianças, que formavam um escudo vivo entre os

rebeldes e o alvo final, e logo após ativar armadilhas explosivas para atingir as equipes de

socorro médico que foram salvá-las.

Mediante todos os acontecimentos Katniss perde a sua fé na humanidade. Ao ver

a natureza monstruosa existente no ser humano e como a busca por poder e por sobrevivência

é amoral. Plutarch – idealizador do Massacre Quaternário que era um rebelde infiltrado na

Capital – afirma para Katniss que o ser humano possui volúpia pela autodestruição. Após a

derrota da Capital e da morte de Alma Coin e Snow, Panem é governada por uma das líderes

da rebelião no Distrito 8 e vive um tempo de paz. Porém, a paz só se prolongaria por um

golpe de sorte, por hora todos concordam que os horrores recentes não devem se repetir mas

de acordo ainda com Plutarch o pensamento coletivo é de curta duração. (MELANÇON,

2013). E isso apenas confirma a visão cíclica da guerra e da natureza humana como uma lei

objetiva e atemporal. Jackson e Sorensen (2007) afirmam que os Estados soberanos podem

viver em paz durante um período de tempo, mas em algum momento esse equilíbrio é

quebrado e é possível que aconteça guerra. Parece então ser impossível escapar da natureza

humana e estamos destinados a repetir os erros anteriores.

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5 CONCLUSÃO

Diante dos aspectos expostos no presente trabalho é perceptível a relação entre o

caso hipotético ficcional e a teoria realista clássica. Assim é possível perceber essa relação a

partir do momento que os principais pressupostos da teoria como anarquia, natureza humana,

primazia do Estado, busca de interesses definidos em termos de poder, a desconfiança e as

alianças e equilíbrios temporários são comprovados na obra.

A presença desses elementos da teoria na obra demonstra que os mesmos também

estão presentes em nossa realidade, pois por se tratar de uma obra distópica, apesar de ser

ficcional, representa a realidade por meio de uma crítica. Por meio da experiência histórica é

um tanto utópico imaginar que a violência humana e os conflitos entre Estados sejam

erradicados. Apesar de a trilogia mostrar as monstruosidades da guerra, mostra também que o

que importa são os interesses estatais e da obra é possível concluir que: os Estados sempre

buscam seus interesses, a política internacional é sempre um jogo de soma-zero e nós somos

seres volúveis e idiotas famintos de moralidade em um mundo imoral.

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CRAVINHO, João Gomes. Visões de Mundo: as relações internacionais. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002.

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HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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MCDONALD, Brian. “A palavra final em entretenimento”: Arte mimética e monstruosa nos Jogos Vorazes. In: DUNN, George A.; MICHAUD, Nicholas (Orgs.). Jogos Vorazes e a Filosofia: uma crítica da traição pura. Trad. Patrícia Azeredo. Rio de Janeiro: BestSeller, 2013. p. 17-35.

MELANÇON, Louis. Começar incêndios pode causar queimaduras: a tradição da guerra justa e a rebelião contra a Capital. In: DUNN, George A.; MICHAUD, Nicholas (Orgs.). Jogos Vorazes e a Filosofia: uma crítica da traição pura. Trad. Patrícia Azeredo. Rio de Janeiro: BestSeller, 2013. p. 247-258.

MINGST, Karen A. Princípios das Relações Internacionais. Trad. Arlette Simille Marques. 4ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

MORGENTHAU, Hans. A política entre as nações. Trad. Oswaldo Biato. São Paulo: UnB, 2003.

NOGUEIRA, João Pontes; MESSARI, Nizar. Teoria das Relações Internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.