a transferência da família real portuguesa para o brasil explicação histórica em estudantes...

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DOI: 10.5433/1984-3356.2012v5n10p691 , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 691 A transferência da família real portuguesa para o Brasil: explicação histórica em estudantes brasileiros e portugueses The transfer of the Portuguese royal family to Brazil: historical explanation in Portuguese and Brazilian students Ronaldo Cardoso Alves 1 RESUMO Baseado na relação entre a concepção de Consciência Histórica, tal como Jörn Rüsen e Reinhart Koselleck propõem, e o conceito de Explicação Histórica, proposto por Isabel Barca, o artigo apresenta um percurso analítico que permite verificar níveis de explicação histórica em narrativas elaboradas por estudantes brasileiros e portugueses a partir da interpretação de fontes relacionadas a um fato histórico: a transferência da família real portuguesa para o Brasil (1808). Palavras-chave: Consciência histórica. Explicação histórica. Conceitos meta-históricos. Didática da história. Educação histórica. ABSTRACT Based on the relationship between the concept of Historical Consciousness, as Jörn Rüsen and Reinhart Koselleck proposed, and the concept of Historical Explanation, proposed by Isabel Barca, the article presents an analytical course that allows you to check levels of explanation in historical narratives produced by students Brazilian and Portuguese from the interpretation of sources related to a historical fact: the transfer of the Portuguese royal family to Brazil (1808). Keyword: Historical consciousness. Historical explanation. Meta-historical concepts. Didactic of history. History education. 1 Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, UNESP.

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Artigo escrito por Ronaldo Alves Cardoso, tendo como base sua tese de doutorado defendida na USP.

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  • DOI: 10.5433/1984-3356.2012v5n10p691

    , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 691

    A transferncia da famlia real portuguesa

    para o Brasil: explicao histrica em

    estudantes brasileiros e portugueses

    The transfer of the Portuguese royal family to Brazil: historical

    explanation in Portuguese and Brazilian students

    Ronaldo Cardoso Alves1

    RESUMO

    Baseado na relao entre a concepo de Conscincia Histrica, tal como Jrn Rsen e Reinhart Koselleck

    propem, e o conceito de Explicao Histrica, proposto por Isabel Barca, o artigo apresenta um percurso

    analtico que permite verificar nveis de explicao histrica em narrativas elaboradas por estudantes

    brasileiros e portugueses a partir da interpretao de fontes relacionadas a um fato histrico: a transferncia

    da famlia real portuguesa para o Brasil (1808).

    Palavras-chave: Conscincia histrica. Explicao histrica. Conceitos meta-histricos. Didtica da histria. Educao

    histrica.

    ABSTRACT

    Based on the relationship between the concept of Historical Consciousness, as Jrn Rsen and Reinhart

    Koselleck proposed, and the concept of Historical Explanation, proposed by Isabel Barca, the article presents

    an analytical course that allows you to check levels of explanation in historical narratives produced by

    students Brazilian and Portuguese from the interpretation of sources related to a historical fact: the transfer

    of the Portuguese royal family to Brazil (1808).

    Keyword: Historical consciousness. Historical explanation. Meta-historical concepts. Didactic of history. History education.

    1 Doutor em Educao pela Universidade de So Paulo. Professor da Faculdade de Cincias e Letras de Assis, UNESP.

  • DOI: 10.5433/1984-3356.2012v5n10p691

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    Os homens criam as ferramentas, as ferramentas recriam os homens.

    McLuhan

    A conhecida frase do autor britnico sintetiza a relao intrnseca existente entre o

    produto da racionalidade humana e seus efeitos na vida contempornea. Ao longo do ltimo

    sculo, a humanidade presenciou uma acelerao sem precedentes do processo de construo

    e transmisso do conhecimento, devido ao enorme avano tecnolgico que resultou no

    surgimento da televiso, do computador, da internet e de outros meios de comunicao. Nos

    ltimos anos, a tecnologia tem se esmerado em dotar esse avano da maior portabilidade

    possvel. Celulares, notebooks, i-pods, i-pads... aparelhos que personificam a mentalidade de

    tornar cada dia mais individualizado o acesso informao. Com isso, negociaes podem ser

    realizadas por pessoas situadas em diferentes lugares do planeta atravs de conferncias

    interativas transmitidas pela internet e veiculadas em celulares ou computadores portteis.

    Guerras, fenmenos da natureza, eventos de qualquer ordem so transmitidos ao vivo, seja por

    profissionais dos meios de comunicao ou mesmo por qualquer indivduo que tenha um

    celular que capte imagens, tenha acesso internet e domine, minimamente, essas tecnologias.

    Em sntese: o tempo passa por um intenso processo de compresso, enquanto o espao,

    inversamente, se alarga.

    Essa configurao do mundo contemporneo no segue revelia da cincia da Histria.

    Se a revoluo da tecnologia da informao tem influenciado as aes humanas no tempo e no

    espao, a Histria, enquanto cincia que investiga esse processo, tambm se v obrigada a

    construir caminhos que dotem os indivduos de instrumentos capazes de refletir diante da

    intensidade das mudanas (permanncias?) decorrentes desse contexto.

    A escola, como instituio tradicional de transmisso e reflexo do conhecimento

    acumulado pela humanidade ao longo da Histria, depara-se com jovens que vivem nesse

    contexto de instantaneidade da informao. Independentemente de grupo socioeconmico,

    religio, etnia ou qualquer outra categoria de classificao social, juventude se apresenta uma

    espcie de mundo do self-service no qual a proliferao de opes de tal monta que a

    probabilidade de se perder o gosto de cada alimento enorme, devido mistura de tantos

    ingredientes diferentes colocados disposio. Essa simples metfora guarda em si a ideia de

    que vivemos num contexto histrico mpar. Se, por um lado, a multiplicao da informao e a

    facilitao de sua transmisso dotam a humanidade de maior acmulo de dados disposio

    para a reflexo, de outro, ironicamente, nunca se teve tanta dificuldade no desenvolvimento de

    um pensamento sistematizado, exatamente devido a esse montante. Em outras palavras, da

    relao existente entre informao e formao que se trata aqui.

    Nas aulas de Histria comum, a cada novo assunto discutido, ouvir comentrios de

    alguns alunos a respeito de um filme, documentrio, notcia ou qualquer outra fonte de

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    informao veiculada em alguma mdia que se relacione diretamente com o tema tratado. De

    igual modo, verifica-se que os estudantes tendem a acreditar nas verses histricas

    apresentadas em documentrios televisivos ou revistas semanais simplesmente porque as

    mesmas foram apresentadas em tais veculos. claro que a proliferao da informao de matiz

    histrica por esses veculos positiva na medida em que fornece aos alunos novas fontes de

    informao que no as tradicionalmente utilizadas no espao escolar, como manuais didticos,

    por exemplo. No entanto, se tais informaes no passarem pelo crivo das operaes mentais

    da racionalidade histrica, esse acesso informativo no redundar na qualificao do

    conhecimento histrico do discente, ou seja, no se tornar formao.

    A ampliao de verses, vises e pontos de vista relativos a fatos e acontecimentos; a

    repetio exausto de propagandas de carter poltico, econmico e cultural, separados ou

    entremeados; enfim, a pluralidade informativa de progresso geomtrica exige dos receptores

    o desenvolvimento de habilidades e competncias provenientes da racionalidade histrica.

    Analisar diferentes informaes da cultura histrica provoca a necessidade de desenvolver

    caminhos cognitivos que possibilitem testar a(s) narrativa(s) apresentada(s) a respeito de

    determinado assunto por meio de processo de interpretao que rejeite ou referende esta ou

    aquela verso, ou mesmo, crie novas perspectivas a respeito do objeto estudado.

    claro que as dificuldades de construo do pensamento histrico no mbito escolar no

    se fundam somente nesse aspecto do contexto contemporneo. Problemas existentes no

    processo de formao docente, na elaborao de manuais, na prtica pedaggica, nos aspectos

    curriculares, entre outros, so tradicionalmente estudados e um enorme nmero de pesquisas

    discute essas questes. No entanto, o que se busca aqui debruar-se em torno de um

    questionamento basilar, estrutural: existe sentido na Histria para os alunos? E, caso exista,

    como se nutrem dela para dar sentido s suas prprias vidas como participantes do processo

    histrico? So essas questes que se encontram explicitadas no conceito de conscincia

    histrica desenvolvido por vrios tericos da Histria, entre eles Jrn Rsen:

    [...] conscincia histrica [] a suma das operaes mentais com as quais os

    homens interpretam sua experincia da evoluo temporal de seu mundo e de

    si mesmos de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prtica

    no tempo (RSEN, 2001, p.57).

    Ter conscincia histrica , portanto, recuperar o passado individual e coletivo com o fito

    de resolver problemas cotidianos, bem como construir identidade a partir da interpretao

    gerada perante tais demandas. Nesse sentido, pode-se compreender que todas as pessoas

    possuem conscincia histrica, pois dela se utilizam com o objetivo de tomar decises prticas,

    posicionando-se diante das prprias experincias temporais (individuais e coletivas). Para a

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    satisfao de interesses de todos os tipos, todos se veem obrigados a confrontarem-se consigo

    mesmos e com a sociedade da qual fazem parte, da a necessidade de reflexo. Assim, de

    alguma forma, todas as pessoas, independentemente de qualquer tipo de classificao que se

    possa fazer (socioeconmica, ideolgica, cultural, etc), pensam historicamente e aplicam esse

    pensamento na vida prtica com o objetivo de criar sentido para sua ao histrica.

    Quatro so os tipos de conscincia histrica para Rsen (2001). O primeiro deles,

    denominada conscincia histrica tradicional se relaciona permanncia inquestionvel de

    valores morais e modos de vida tradicionalmente estabelecidos, dando assim, ao tempo, um

    carter estvel e repetitivo. A conscincia histrica exemplar, por sua vez, mostra o passado

    como fornecedor de princpios que podem ser usados como modelo para situaes de vida no

    presente, independentemente das mudanas ocorridas na sociedade ao longo do tempo. Trata-

    se do que o filsofo da Antiguidade Ccero chamou de Historia Magistra Vitae Histria

    Mestra da Vida (KOSELLECK, 2006). Conscincia histrica crtica a denominao do terceiro

    tipo de constituio de sentido Histria elaborado por Rsen. A postura de embate em

    relao aos valores morais tradicionalmente estabelecidos caracterstica dessa concepo,

    pois pensa cultura como algo que se transforma historicamente e, por isso, modelos de

    orientao prescritos pela sociedade podem ser criticados e, at mesmo, rejeitados. Por fim, a

    conscincia histrica gentica se caracteriza por uma relao dialgica com o passado. Nela,

    mudanas e permanncias so historicizadas, bem como a experincia histrica interpretada

    luz de um pensamento histrico que considera diferentes perspectivas. Tais fatores,

    relacionados, demandam reflexo constante, permitindo a gerao contnua de novas

    possibilidades orientao temporal.

    Reinhart Koselleck2, historiador e filsofo da Histria, j havia conceituado conscincia

    histrica como um tipo de pensamento originado da relao entre o que chamou de espao

    das experincias humanas e seu horizonte de expectativas. O espao das experincias o

    conjunto de experincias passveis de serem rememoradas e transmitidas, de gerao em

    gerao, por diferentes meios (KOSELLECK, 2006, p. 309). Experincias acumuladas num

    processo histrico que tm como objetivo nutrir as expectativas dos sujeitos histricos de

    acordo com suas carncias de orientao temporal. Para Koselleck (2006, p. 307) no h

    expectativa sem experincia, no h experincia sem expectativa, pois as experincias

    humanas apontam para expectativas que podem ou no ser satisfeitas no decurso do tempo.

    Expectativas incomensurveis, pois constituem possibilidades de um futuro que deseja ser

    antecipado pelo(s) sujeito(s) por meio da interpretao das experincias vivenciadas, individuais

    e coletivas, no processo histrico. Assim, o horizonte de expectativas

    2 De maneira original, Koselleck, um dos principais mentores da denominada Begriffsgeschichte (Histria dos

    Conceitos) como campo de reflexo de aspectos tericos e metodolgicos da construo, utilizao e transformao

    dos conceitos em seu processo histrico com vistas a relacion-los com outros campos do conhecimento, sobretudo a

    Histria.

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    [...] se realiza no hoje, futuro-presente, voltado para o ainda-no, para o no

    experimentado, para o que apenas pode ser previsto. [...] Horizonte quer dizer

    aquela linha por trs da qual se abre no futuro um novo espao de experincia,

    mas um espao que ainda no pode ser contemplado. A possibilidade de se

    descobrir o futuro, apesar de os prognsticos serem possveis se depara com

    um limite absoluto, pois ela no pode ser experimentada (KOSELLECK, 2006, p.

    311).

    Destarte, as categorias espao das experincias e horizonte de expectativas so

    fundamentais para a construo de conscincia histrica, pois so inerentes condio

    humana, ao percurso histrico individual e coletivo. Tal carter antropolgico apriorstico

    mostra que sem a relao entre essas categorias no h Histria, pois

    [] elas entrelaam passado e futuro. So adequadas tambm para se tentar

    descobrir o tempo histrico, pois, enriquecidas em seu contedo, elas dirigem

    as aes concretas no movimento social e poltico (KOSELLECK, 2006, p. 308).

    Depreende-se dessa reflexo que se na concepo rseniana a conscincia histrica

    fruto da razo histrica que tem como finalidade satisfazer as necessidades de orientao

    temporal dos seres humanos no presente e futuro, na perspectiva koselleckiana, tal conscincia

    decorre de um processo hermenutico que se debrua sobre as experincias passadas com o

    objetivo de criar um horizonte de expectativas gerador de novas experincias. Assim, tais

    conceitos no s remetem ao concreta dos seres humanos no tempo, ou seja, Histria,

    como tambm anlise dessas aes, pois [...] fornecem as determinaes formais que

    permitem que o nosso conhecimento histrico decifre essa execuo [a Histria]. Eles remetem

    temporalidade do homem, e com isto, de certa forma meta-historicamente, temporalidade

    da histria (KOSELLECK, 2006, p. 309).

    O artigo se prope a refletir a respeito da construo e aplicao do pensamento

    histrico ao cotidiano vivido. Para isso, apresentar uma anlise que permite verificar diferentes

    nveis de explicao histrica gerados pelas narrativas de estudantes a partir de dado contedo

    histrico. Trata-se de uma das quatro anlises que compem a tese de doutorado intitulada

    Aprender Histria com Sentido para a Vida: conscincia histrica em estudantes brasileiros e

    portugueses3, defendida junto Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo (FE-

    USP), em 2011. Trabalho que teve como objetivo discutir as formas pelas quais grupos de

    estudantes do ensino mdio/secundrio4 de escolas brasileiras e portuguesas constroem

    3 O texto se origina de pesquisa realizada com financiamento CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de

    Nvel Superior - Ministrio da Educao do Brasil) no estgio de Doutoramento feito em Portugal (entre novembro de

    2009 e dezembro de 2010).

    4 Denominao usada em Portugal para o que chamamos no Brasil de Ensino Mdio.

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    conscincia histrica com o fim de refletir acerca das demandas de orientao da cultura

    histrica contempornea.

    Fundamentado numa epistemologia que relaciona as propostas terico-metodolgicas da

    Didtica da Histria alem s ideias da History Education (Educao Histrica) inglesa,

    portuguesa e brasileira, a pesquisa coletou informaes de jovens brasileiros (mais

    especificamente, em So Paulo) e portugueses (da regio Norte de Portugal) que cursavam os

    anos finais do ensino mdio/secundrio com a finalidade de configurar os diferentes perfis de

    carter socioeconmico-cultural dos grupos participantes. Num segundo momento, aplicou

    novo instrumento com o objetivo de recolher narrativas geradas pelos estudantes a partir da

    interpretao de um fato histrico comum aos dois pases: a transferncia da famlia real

    portuguesa para o Brasil, em 1808.5

    Historicamente, tanto o conhecimento histrico gerado nas universidades, como o ensino

    escolar da disciplina de Histria baseiam seu trabalho nos conceitos substantivos (LEE,

    2001). So conceitos que se relacionam diretamente ao contedo histrico, pois constituem

    material fundamental de aprendizagem. Revoluo, feudalismo, democracia, liberalismo,

    capitalismo, escravismo, reforma, socialismo, entre outros, so conceitos aplicados (correta ou

    incorretamente) em diferentes contextos e pocas, e esto presentes no cotidiano. Circulam

    tambm entre as pessoas nos mais diversos espaos, desde uma simples conversa num happy

    hour no final do dia de trabalho, at a complexidade das discusses no mbito acadmico.

    Alm disso, pautam os meios de comunicao, pois fundamentam matrias jornalsticas,

    documentrios, artigos, editoriais, msicas, entre muitos exemplos.

    Ocorre que, ao ensinar e aprender Histria, outros conceitos so mobilizados. Conceitos

    que conferem consistncia ao aprendizado da disciplina, pois so geradores da capacidade de

    rememorar, interpretar e externar ao mundo, por meio da narrativa, a orientao produzida

    pela aplicao do pensamento histrico. Em outras palavras, trata-se de conceitos

    estruturadores que esto subsumidos s operaes mentais do pensamento histrico sem os

    quais impossvel desenvolver esse conhecimento e, consequentemente, sua aplicao no

    cotidiano. A esses conceitos, os pesquisadores britnicos da History Education (Educao

    Histrica) chamaram conceitos de segunda ordem, tambm conhecidos como meta-

    histricos.

    A Explicao Histrica um desses conceitos meta-histricos que compem as

    operaes mentais do pensamento histrico, pois

    [] entendida como uma resposta a uma pergunta de tipo por que?

    sobre aces, acontecimentos e situaes do passado humano [...] Cada

    5 A pesquisa desenvolveu-se em duas escolas brasileiras e cinco escolas portuguesas. O instrumento que trabalhou o

    aspecto cognitivo teve a participao de, aproximadamente, 150 alunos brasileiros e 100 portugueses de todas as

    escolas participantes.

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    explicao pressupe uma seleco de factores razes, motivos, disposies,

    condies externas, estruturais, conjunturais, segundo as linhas de diferentes

    modelos explicativos. Cada autor pode atribuir uma importncia relativa

    diferente aos factores seleccionados e, entre uma gama e outra de factores

    (condies existentes), uns podem ser considerados condies necessrias,

    outros condies contributivas/facilitadoras [...]. As condies que estabelecem

    a diferena quanto a uma situao ter ocorrido, ou no, podem ser

    consideradas a causa (BARCA, 2000, p. 61).

    Para estudar as operaes mentais da conscincia histrica luz desse conceito meta-

    histrico, optou-se em elaborar um instrumento que tratasse de um tema histrico comum aos

    estudantes dos dois pases e que, concomitantemente, j tivesse sido objeto de estudo em sua

    trajetria escolar. Da a opo pela transferncia da famlia real portuguesa para o Brasil

    (1808). importante salientar que foi proposital a utilizao de um tema j estudado pelos

    alunos em algum momento de seu processo de escolarizao, pois permitiu agregar os

    diferentes grupos numa base comum. A proposio de um instrumento que tratasse de um

    tema relativamente conhecido garantiu a apresentao de conhecimentos prvios mediados

    tanto pelo processo escolar, como pelos meios de comunicao, pois esse assunto teve

    importante abordagem nos dois pases, sobretudo na comemorao de seu bicentenrio

    (2008), momento em que vrias escolas e meios de comunicao abriram maior espao para tal

    discusso. As narrativas apresentadas no instrumento (Anexo 1) foram publicadas em livros

    didticos utilizados em Escolas de Ensino Fundamental do Brasil e possuem uma linguagem

    simples, pois o objetivo foi facilitar a leitura para que o estudante incorporasse outros dados

    informativos ao conhecimento prvio de que dispunha acerca do assunto para, assim, mobilizar

    qualitativamente as operaes mentais do conhecimento histrico.

    As narrativas construdas pelos alunos apresentam interpretaes a respeito do fato

    histrico discutido e, sua efetivao, passa pela mobilizao, em maior ou menor grau, das

    operaes mentais (competncias) do pensamento histrico. Os conhecimentos prvios e as

    fontes historiogrficas contidas no instrumento de pesquisa permitem a interpretao, a

    gerao de significado da Histria para o cotidiano dos estudantes. Se conceitos meta-

    histricos so usados para a criao de tais narrativas, uma anlise metodologicamente

    concebida permitir a percepo dos diferentes nveis de sua utilizao pelos alunos. Ora, se os

    estudantes utilizam-se de conceitos meta-histricos para interpretar o passado com o objetivo

    de dar-lhe significado para o presente, um exerccio hermenutico que avalie esses conceitos

    subsumidos produo discente tambm gerar significado para o tempo presente. A

    interpretao de experincias do tempo se transforna em novas experincias e essas geram

    novas interpretaes. Nesse sentido, cada pergunta do instrumento gerou narrativas discentes

    que continham vrios conceitos meta-histricos. Para analis-los, foi necessrio escolher um

    conceito para cada pergunta. A ordem das perguntas procurou ensaiar uma sequncia didtica

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    muito comum exercida nas aulas de Histria quando da discusso de um novo tema. Nelas

    alunos explicam, utilizam ou no evidncias para construrem suas explicaes, constroem uma

    concepo de Histria, expem o que lhes mais significativo no que estudaram.

    Este artigo mostrar respostas elaboradas somente a partir da primeira pergunta do

    questionrio com o fim de analisar a incidncia qualificada do conceito meta-histrico j

    mencionado: a Explicao Histrica. Pergunta que, propositadamente, teve de ser respondida

    antes mesmo dos estudantes realizarem a leitura das fontes historiogrficas existentes no

    instrumento:

    Questo 1:

    Voc acha que a corte portuguesa ao se deslocar para o Brasil, em 1808, se

    transferiu de forma estratgica, planejada ou simplesmente fugiu da invaso das

    tropas de Napoleo Bonaparte?

    As respostas a essa pergunta inicial j permitiram a elaborao de um quadro analtico

    inicial da cognio histrica dos alunos, pois ao discutirem preliminarmente um assunto com o

    qual tiveram contato, indicaram a medida do uso de conhecimentos prvios acerca do tema e a

    mobilizao mental na tentativa de explicao ou justificativa da resposta.

    Para qualquer anlise se faz necessrio o estabelecimento de critrios ou categorias. Tais

    categorias permitem avaliar respostas que variam, desde a no explicao ou simples descrio

    fragmentria do acontecimento histrico at a explicao com um ou mais fatores que,

    entremeados logicamente ou no, permitem a construo de uma narrativa que pode variar em

    sua gradao. Lgica que utilizar a relao de fatores causais com marcadores temporais e

    sujeitos histricos participantes. Nesse contexto, a primeira categoria a ser considerada a

    que se relaciona ao tipo de resposta dada. H ou no a tentativa de explicar ou justificar, de

    alguma forma, a resposta diante da pergunta feita? Nesse quesito, respostas podem ser

    sintticas, pragmticas, sem nenhuma preocupao explicativa (do tipo, sim! ou no!, por

    exemplo). No caso da pergunta em questo, alunos poderiam pragmaticamente dizer que a

    transferncia da famlia real portuguesa para o Brasil foi uma fuga, ou uma estratgia, ou ainda

    uma fuga estratgica e no se preocupar com nenhum tipo de desdobramento explicativo em

    sua resposta. Respostas desse tipo revelam apenas uma preocupao de constatar, descrever o

    fato e no de explic-lo ou relacion-lo com causas, temporalidades ou sujeitos histricos. O

    estudante entende que houve o fato histrico e utiliza fragmentos descritivos em sua

    explicao.

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    A simples tentativa de explicao nas respostas provoca a necessidade de se

    estabelecer uma segunda categoria de anlise. Esta se norteia pela forma da explicao:

    quais so os fatores utilizados pelo estudante para elaborar sua resposta? Elenca motivos,

    causas, situaes, contextos, sujeitos? Atribui temporalidade ao seu discurso? Essas e outras

    perguntas podem ser feitas s explicaes produzidas pelos alunos a fim de avali-las quanto

    sua qualificao. Alm do tipo e da forma das respostas, tambm conhecida como modo

    explicativo (BARCA, 2000, p. 61), um terceiro critrio precisa ser estabelecido. Trata-se da

    importncia atribuda a cada fator utilizado para a elaborao da explicao, tambm conhecida

    como peso fatorial (BARCA, 2000, p. 61). Portanto, alm de citar, se faz necessrio valorar e

    relacionar os motivos, causas e situaes que compem a explicao dada pergunta de

    contedo histrico. Quatro padres de respostas surgiram dessa anlise, ordenadas em

    diferentes gradaes que variam da mais simples mais complexa, quais sejam: fragmentos

    descritivos; explicao simples; explicao emergente; e explicao densa.

    Nvel 1 Fragmentos Descritivos

    O primeiro nvel analtico apresenta respostas que variam da simples reproduo de

    informaes extradas da prpria questo feita, passando por respostas desconectadas,

    fragmentadas e superficiais que no permitem maior compreenso por parte do leitor, at

    aquelas que pretendem responder de forma definitiva a questo, porm de maneira pouco

    reflexiva. Nesse contexto, um grupo de alunos dos dois pases respondeu a questo de maneira

    extremamente simplista, sem nenhuma preocupao explicativa, apenas espelhando a prpria

    pergunta:

    - Como forma estratgica. (Viviane, 18 anos, Escola P4 - T2) 6

    - Simplesmente fugiu da invaso das tropas de Napoleo (Laura, 19 anos Escola B2 -

    T11)

    O primeiro tipo de respostas desse nvel analtico mostra que, para alguns alunos, basta

    reproduzir o que foi perguntado para se construir uma boa resposta, sem nenhuma

    preocupao explicativa. Fator que revela a dificuldade de compreenso do enunciado da

    6 - Todos os nomes de alunos citados so fictcios. A denominao P e B se refere aos pases dos estudantes -

    Portugal e Brasil, respectivamente. A denominao T se refere ao instrumento Transferncia da famlia real

    portuguesa para o Brasil. Os nmeros se referem ordenao seja para as escolas, seja para os alunos que

    participaram da pesquisa dentro dessa escola.

  • DOI: 10.5433/1984-3356.2012v5n10p691

    , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 700

    questo ou a falta de conhecimentos prvios mnimos que auxiliem na construo da

    explicao.

    Os textos dos alunos que ultrapassam a simples reproduo pragmtica de informaes

    que se encontram na prpria pergunta, tentam iniciar um processo explicativo por meio de

    descries desconectadas, fragmentadas e descontextualizadas historicamente. Geralmente

    apresentam lacunas, falta de clareza, dificultando ao leitor a realizao de alguma tentativa de

    inferncia. Esse segundo grupo, apresenta respostas que procuram relacionar as informaes

    extradas da prpria pergunta com os conhecimentos prvios que possui, de maneira pontual,

    fragmentria e desconexa. Caracterstica que remete a um incio de movimento explicativo que

    pretende descrever a razo da opo feita. Entretanto, tal movimento gera lacunas de

    compreenso para o leitor, pois prima pela simples constatao do fato (como se

    respondessem pergunta: o que aconteceu?) ou mnima descrio da situao (como

    aconteceu?) e, por isso, se perde na construo da explicao, deixando ao leitor o

    preenchimento dessa lacuna. Nota-se que esse tipo de resposta no apresenta a mnima

    coerncia explicativa. Os alunos tentam elaborar respostas que se pretendem lgicas, mas que,

    na realidade, esto desconectadas do contedo histrico que se pretende explicar.

    - Na minha opinio, eles fugiram de forma estratgica, para tentarem

    reconquistar o que perderam. (Sarah, 18 anos, Escola B2 - T5)

    - Eu acho que a deslocao da corte para o Brasil foi uma estratgia mas

    tambm uma desculpa para fugir da invaso. (Sabrina, 18 anos, Escola P3 - T16)

    O terceiro grupo desse nvel analtico cria respostas de feio pretensamente conclusivas.

    Essas respostas de carter definitivo, entretanto, ocorrem de maneira simplista, sem maior

    reflexo, utilizando-se de conhecimentos prvios que acreditam aproxim-las da realidade do

    fato. Os marcadores temporais dessas respostas foram extrados da prpria pergunta (1808 ou

    Napoleo Bonaparte) e so fortuitas, pontuais, sem nenhuma preocupao de relacion-las,

    com maior profundidade, ao contexto histrico. A tendncia maior desse grupo de evitar a

    fragmentao ou desconexo do pensamento. Para isso, privilegiam respostas que tentam

    utilizar certa logicidade, mas que literalmente trilham pela superficialidade e senso comum.

    Essas respostas, assim como as dos grupos anteriores, mostram a reproduo de um

    conhecimento previamente estabelecido:

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    , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 701

    - A corte portuguesa deslocou-se para o Brasil, em 1808, pois simplesmente

    fugiu da invaso das tropas de Napoleo Bonaparte. (Fernando, 19 anos Escola P3 -

    T17 )

    - Na minha opinio a deslocao da corte para o Brasil em 1808 foi uma fuga

    estratgica devido presso que a corte sentia naquele contexto histrico. (Olvia, 17

    anos, Escola P4 - T4)

    A tentativa de explicao conclusiva fundamentada em respostas que optam,

    geralmente, por uma das duas situaes citadas na pergunta. A utilizao dos conhecimentos

    prvios ocorre como apoio para reforar a opo. No h mobilizao do pensamento no

    sentido de criar respostas que tentem, de maneira slida, relacionar as duas possibilidades

    apresentadas na questo. As respostas do nvel fragmentos descritivos remetem a adeso

    por uma ou outra opo, sem qualquer preocupao de juzo ou argumentao. Quando ocorre

    uma tentativa de justificativa, esta se encontra na lembrana de algo como definidor da opo,

    numa simples relao de causa-efeito. No h preocupao de relacionar o fato s

    especificidades de seu contexto histrico, tampouco refletir a respeito das relaes de poder

    existentes no perodo. Explicaes histricas com essas caractersticas no representam o

    exerccio reflexivo, pois se preocupam apenas em reproduzir, copiar uma possibilidade

    apresentada na prpria pergunta ou descrever uma dada situao de maneira simplista. Elas se

    conformam facilmente a prescries estabelecidas, tendem a reproduzir experincias sem

    pensar ou questionar as expectativas delas derivadas, portanto, reproduzem uma conscincia

    histrica tradicional, permevel a um pensamento dominante.

    Nvel 2 Explicao Simples

    Outra forma de responder a perguntas acerca de um contedo histrico discutido em sala

    de aula ou no cotidiano, se relaciona tentativa de elencar uma ou vrias causas que levaram

    situao tratada. Explicaes de causalidade so uma constante nas respostas criadas a respeito

    de qualquer assunto cotidiano. As relaes humanas so norteadas por essa prtica discursiva

    correntemente, pois ela permite a citao de motivaes que determinaram ou cooperaram

    para a ocorrncia de dado acontecimento. Essa forma de pensamento, logicamente, remete a

    diferentes nveis. A explicao de uma ou mais causas que determinaram a ocorrncia de um

    evento pode variar desde a simples citao com superficial justificativa a respeito da opo, at

    a complexidade de fatores, entrelaados cognitivamente, com o fim de explicitar claramente a

    escolha feita para a anlise de um fato.

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    , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 702

    O nvel Explicao Simples apresenta respostas de contedo monocausal. Um fator pode

    ser suficiente para determinar um acontecimento. No entanto, esse fator determinante no

    requer uma explicao profunda, pois o que interessa ao aluno apresentar a razo (o por

    qu?) da ocorrncia, sem maiores preocupaes com as especificidades, inerentes ao

    processo histrico, que determinaram aquela situao.

    O grupo de respostas abaixo remete a esse tipo de explicao histrica. Causas polticas

    e/ou econmicas foram determinantes para a transferncia da famlia real portuguesa para o

    Brasil. Estas dependeram, sobretudo, de um sujeito como predominante das aes sobre os

    demais. Uma ao portuguesa, inglesa ou francesa quem, preponderantemente, determinou o

    deslocamento. No h possibilidade da associao de outros fatores derivados desses

    diferentes sujeitos para a formulao da explicao.

    - Considero que esta fuga j era planeada como meio de o pas reforar o seu

    Imprio colonial, face a decadncia de Portugal, as invases francesas contriburam

    apenas para acelerar o processo, de modo a manter a integridade da nao. (Alice, 17

    anos Escola P1 - T16)

    - Penso que a corte portuguesa ao deslocar-se para o Brasil, foi com o intuito de

    salvaguardar a sua independncia. Desta forma, Portugal manteve-se independente, e

    manteve segura toda a corte. (Vanda, 16 anos, Escola P2 T11)

    Para esses alunos portugueses, a deciso de se deslocar para a colnia foi feita pela

    metrpole com um nico objetivo: manter politicamente seu reino. As invases francesas

    atuaram nesse processo, mas foi a Corte que, de maneira estratgica e determinante, se

    transferiu para o Brasil com o objetivo de fortalecer seu reino. Observa-se, nas respostas, que

    Portugal quem atua como sujeito histrico predominante, pois quem estrategicamente

    determina seu deslocamento com o fim de defender a integridade de seu poder poltico no

    reino. Por outro lado, o protagonismo portugus tambm foi representado de maneira

    negativa. Para alguns alunos portugueses, a atitude da Coroa em se transferir ao Brasil foi

    elitista, irresponsvel e desonrada, pois o povo portugus ficou merc da luta geopoltica

    entre franceses e ingleses, enquanto milhares de portugueses foram completamente

    abandonados pelo governo de seu pas.

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    , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 703

    - Penso que a corte portuguesa, ao deslocar-se para o Brasil, aquando a invaso

    francesa, teve no seu intuito, a salvaguarda da famlia real e do trono portugus. Contudo, ao

    recordar este trecho da histria, parece ter sido uma atitude pouco corajosa e honrada. (Las,

    16 anos - Escola P2 - T9)

    - Em minha opinio, ao deslocar-se para o Brasil, em 1808, a corte portuguesa agiu de

    forma estratgica, principalmente para garantir os interesses dos nobres, pois os mais pobres

    foram abandonados junto com a capital portuguesa nas mos dos inimigos. (Flvia, 18 anos -

    Escola P2 - T15)

    Se nas explicaes dos alunos portugueses, o deslocamento foi uma estratgia

    protagonizada por Portugal com vistas manuteno de seu reino, para os alunos brasileiros,

    esse protagonismo tambm existe, mas somente num carter negativo. Duas foram as causas

    motivadoras da transferncia. A primeira delas, a tentativa de sobrevivncia poltica da

    metrpole portuguesa:

    - Eu acho que a corte portuguesa fugiu estrategicamente, pois eles vinham sendo

    atacado pelos dois lados, tanto pela Inglaterra e tambm pela Frana, sabendo que no

    teria chances, fugiu para sua colnia para sobreviver. (Jferson, 17 anos - Escola B2 -

    T53)

    - Eu vejo o deslocamento da corte como uma estratgia de sobrevivncia ou

    ento uma medida de assegurar e no perder o poder e liberdade. (Nlson, 18 anos -

    Escola B2 - T56)

    A segunda causa foi a tentativa de sobrevivncia econmica de Portugal:

    - Creio que a corte portuguesa veio para o Brasil com intenes que vo alm de

    buscar refgio como, por exemplo, combater a decadncia que Portugal vinha

    enfrentando. - (Vilma, 17 anos - Escola B2 T33)

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    - Sim eles queriam para fugir da tropa de Napoleo Bonaparte, mas tambm eles

    formaram uma estratgia que foi a liberao da Amrica Colonial e o direito de utilizar

    os portos brasileiros. (Suellen, 17 anos - Escola B2 T38)

    Uma estratgia com objetivo econmico. Esses alunos brasileiros acreditam que o

    deslocamento da Coroa portuguesa para o Brasil teve, sobremaneira, um fim econmico, pois

    era necessrio Portugal combater sua decadncia. Nada melhor, ento, que equacionar esse

    problema se deslocando para o lugar da riqueza, explorando-o ao abrir seus portos para o

    fortalecimento do comrcio. Depreende-se dessas explicaes que o protagonismo portugus

    s ocorreu devido fora econmica da colnia. Algo salutar. Se nas explicaes de alunos

    portugueses, Portugal o estrategista poltico para a manuteno de seu poder, nas

    explicaes dos alunos brasileiros, tamanha estratgia poltica s pde ser vislumbrada graas

    ao potencial econmico da colnia. Dessa perspectiva, o Brasil que se torna protagonista.

    Esse tipo de explicao simples de causa nica e com a preponderncia de um sujeito

    histrico sobre os demais remete a conscincia histrica de tipos tradicional e exemplar

    elaboradas por Rsen (2001, p. 51), pois inibe o desenvolvimento de operaes mentais que

    percebam a importncia da diversidade perspectiva e, concomitantemente, inviabiliza o

    relacionamento entre fatores intrnsecos e extrnsecos ao fato histrico discutido, tanto em seu

    prprio contexto quanto no alongamento temporal. Caractersticas que abrem espao para que

    a constituio de sentido histrico seja sempre de adeso a uma narrativa prescrita ou

    compreenso da Histria como um conjunto de acontecimentos que tm como nica funo o

    fornecimento de bons e maus exemplos para as geraes futuras. Se se pensar nas categorias

    de anlise de Reinhart Koselleck, essas narrativas apontam para uma sntese entre o espao da

    experincia e o horizonte de expectativa (KOSELLECK, 2006), pois a Histria tende a ser

    compreendida como mestra da vida, fornecedora de exemplos para a orientao temporal,

    sem passar pelo crivo da crtica.

    Nvel 3 Explicao Emergente

    Diferentemente das narrativas de explicao simples em que os alunos pesquisados

    optavam por uma das possibilidades aventadas na pergunta (fuga ou estratgia), justificando-a

    com a citao de uma causa nica, nas narrativas do nvel Explicao Emergente procuram

    relacionar as duas opes e, consequentemente, causas, razes e eventos geradores do fato

    histrico discutido:

  • DOI: 10.5433/1984-3356.2012v5n10p691

    , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 705

    Narrativas de alunos portugueses

    - Penso que esta deslocao se fundamenta um pouco em cada uma destas

    formas: naturalmente que o primeiro intuito da famlia real, ao saber que o pas seria

    invadido, foi de fugir; fugir para salvaguardar prioritariamente a sua vida. Faz parte da

    natureza humana, e creio que impossvel que a sada deles para o Brasil no tenha

    sido tambm um escape, uma fuga. Em contrapartida, ou por adio, esta sada tambm

    pode ter tido um toque estratgico, no sentido de salvaguardar uma parte da

    independncia de Portugal. (Ceclia, 16 anos Escola P2 - T10)

    - Aps a leitura das duas narrativas, considero que a fuga da famlia real se deu de

    forma tanto estratgica como planeada. Esta foi uma estratgia para fugir s invases e

    para tentar reestabelecer a economia portuguesa. Ora estas duas medidas foram

    cuidadosamente planeadas por D. Rodrigo.(Clarisse, 18 anos - Escola P1 - T6)

    - Foi um pouco destas duas coisas. Por um lado, foi uma estratgia ptima que a

    mantinha ilesa do possvel bombardeamento a Lisboa e, enquanto tomava essa deciso,

    as tropas francesas invadiriam Portugal, por isso, como forma de proteco, fugiu das

    tropas de Napoleo. (Larissa, 17 anos, Escola P1 - T8)

    Nas narrativas acima ocorre a relao entre as hipteses e as causas de forma mais

    elaborada, seja numa sntese (Clarisse, 18 anos - Escola P1 - T6; e Larissa, 17 anos, Escola P1 -

    T8), seja de maneira alargada (Ceclia, 16 anos Escola P2 - T10). Motivos econmicos e

    polticos so citados, at mesmo um motivo psicolgico apresentado: fugir para

    salvaguardar prioritariamente a sua vida. Faz parte da natureza humana (Ceclia, 16 anos

    Escola P2 T10), sempre no intuito de qualificar a explicao do fato histrico mencionado na

    questo.

    Algo a ser citado a recorrncia da centralidade de Portugal nas explicaes criadas pelos

    alunos portugueses. Tanto nas explicaes simples, quanto nas explicaes emergentes, parte-

    se de Portugal para responder a questo. No h maior preocupao em relacionar o pas luso

    a outros pases (somente o Brasil foi mencionado, mas de maneira perifrica, em algumas

    narrativas). possvel perceber uma inclinao dos alunos portugueses em ter sempre o prprio

    pas como elemento central de suas narrativas.

    Assim como em algumas explicaes simples, em vrios textos de explicao emergente

    os marcadores temporais continuam limitados datao pontual do fato histrico (1808) e

    tambm a um dos personagens motivadores do evento Napoleo - (ambos citados na

    questo geradora), por outro lado pode ser vista a emerso de outros personagens que

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    remetem temporalidade do perodo, como o caso de D. Rodrigo (Dom Rodrigo de Sousa

    Coutinho).

    Como pode ser observado at agora, nesse nvel analtico das narrativas, s foram

    discutidos textos de alunos portugueses. Isso no foi proposital. Somente dois textos de alunos

    brasileiros foram considerados de explicao emergente:

    Narrativas de alunos brasileiros

    - Eu acho que a corte portuguesa se transferiu de forma estratgica porque queriam a

    liberao do comrcio colonial e o direito de utilizar os portos brasileiros. (Luma, 17 anos,

    Escola B1 - T28)

    - Eu creio que a transferncia de Portugal foi de certo modo feita de forma estratgica

    e planejada, pois j era muito cogitada no sculo XVII por nobres e pessoas influentes do

    governo, a invaso de Portugal s foi o ponto crtico responsvel por isso. (Vincius,16 anos,

    Escola B2 - T52)

    No tocante a estudantes brasileiros, observa-se que tais produes textuais carecem de

    maior elaborao. A primeira delas (Luma, 17 anos, Escola B1 - T28) foi descrita como

    emergente prioritariamente pelo fato de elencar mais de uma motivao para a transferncia da

    corte e ambas de cunho econmico (liberao do comrcio colonial e o direito de utilizar os

    portos brasileiros.). Mesmo assim, no existe clareza na segunda motivao, pois parece que

    Portugal como Metrpole no teria ainda o direito de utilizar os portos brasileiros (na realidade,

    o que faltou a aluna foi mencionar que esta ideia beneficiaria a Inglaterra). No entanto, se

    comparada com as produes de nveis inferiores que geralmente citam apenas uma causa ou

    motivao para a ocorrncia do fato histrico, o texto de Luma, que cita mais de um motivo e

    os tematiza, j pode ser considerado emergente. Outro aspecto importante a perspectiva do

    olhar. Nas narrativas dos alunos portugueses claramente se constata a centralidade em

    Portugal, nesta explicao da aluna brasileira observa-se a mudana de perspectiva: o

    comrcio colonial e o uso dos portos que atrai Portugal para a colnia e no as motivaes

    internas portuguesas.

    A explicao emergente de Vincius, por sua vez, se preocupa com a marcao temporal

    (sculo XVII) objetivando situar temporalmente a hiptese que defende - a de estratgia da

    corte portuguesa. Para Vincius a invaso napolenica foi apenas a gota dgua que levou o

    plano, anteriormente projetado pelos governantes, a ser posto em prtica. Ele preocupa-se em

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    situar temporalmente sua explicao e o grupo protagonista do plano estratgico de

    transferncia (nobreza e pessoas influentes do governo). A partir desse raciocnio minimiza o

    fato da invaso, pois esta teve como funo apenas apressar algo j prospectado.

    A comparao das explicaes emergentes de alunos brasileiros e portugueses mostra

    que ambas apresentam mais de uma causa, motivo ou razo para construir sua explicao da

    hiptese ou da relao de hipteses. As explicaes dos alunos brasileiros so mais sintetizadas

    e no apresentam relao entre as hipteses (ambas defendem a hiptese de estratgia),

    enquanto as explicaes dos alunos portugueses se revezaram entre as hipteses,

    relacionando-as em alguns momentos. Com textos predominantemente mais detalhados, os

    alunos portugueses tendem a citar ao menos duas causas para a ocorrncia do fato e s vezes

    opinam, criticando ou elogiando a opo da corte portuguesa. Fato que Portugal

    apresentado como protagonista em todas as produes textuais, praticamente desaparecendo

    outros atores do processo, fator que revela a falta de perspectividade histrica. Marcadores

    temporais foram limitados e a relao de alongamento da temporalidade s apareceu em

    algumas explicaes (no caso brasileiro, em uma das duas analisadas).

    Assim como as explicaes simples, as explicaes emergentes tambm se encaixam na

    constituio de sentido ao pensamento histrico do tipo exemplar. Se de um lado avanam

    ao mapear maior nmero de causas originrias do fato histrico disparador da discusso, do

    outro se limitam elaborao de relaes cognitivas qualitativas entre fatos ocorridos e fatores

    geradores. Estudantes que explicam a Histria enumerando causas de determinado fato

    histrico sem conseguir relacion-las, qualitativamente, a esse mesmo fato inserido num

    processo alongado de temporalidade, so passveis de reproduzir exemplos histricos

    atemporais para resoluo de questes de orientao no tempo, sem refletir sobre as mesmas.

    Em outras palavras, tendem a assumir irrefletidamente modelos culturais existentes no espao

    da experincia que conduzem a expectativas pr-determinadas, portanto, sem abertura do

    horizonte de expectativas. Nesse sentido, a capacidade de julgar determinadas demandas

    histricas estar limitada a exemplos do passado que sabem descrever, porm sem a

    contextualizao necessria s contingncias histricas do presente, fator impeditivo para a

    instalao do poder de crtica.

    Nvel 4 - Explicao Densa

    O ltimo nvel analtico das explicaes histricas construdas a partir da questo 1,

    acerca da transferncia da corte portuguesa para o Brasil, ser chamado aqui de Explicao

    Densa. O conceito de densidade remete qualificao da explicao histrica medida que

    os alunos relacionam causas e consequncias para defender ou rejeitar hipteses, citam os

    principais atores do contexto histrico estudado promovendo um dilogo entre suas

    participaes no processo, utilizam marcadores temporais e espaciais para fortalecer sua

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    , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 708

    explicao, apresentam diferentes perspectivas a respeito do fato e, em alguns momentos, se

    valem da empatia histrica com o objetivo de proporcionar ao leitor a objetividade de algo que

    subjaz ao contedo histrico discutido. Finalmente, se colocam de forma reflexiva perante as

    hipteses apresentadas, levando o leitor a tambm pensar a esse respeito.

    As explicaes densas obedecem formatao clssica das narrativas, com introduo do

    assunto, desenvolvimento do argumento e concluso das ideias. A figura abaixo mostra a

    organizao desse tipo de explicao:

    Figura 1 Organizao de explicaes histricas densas

    Partindo dessa organizao analtica, o quadro abaixo apresenta narrativas elaboradas por

    estudantes portugueses:

    Quadro 1- Narrativas elaboradas por estudantes portugueses

    Estudante INTRODUO

    Anncio do Fato

    histrico e da(s)

    hiptese(s) /

    (o que / como

    aconteceu?)

    DESENVOLVIMENTO

    Fatores geradores /

    Argumentao

    (por que aconteceu?)

    CONCLUSO

    Retorno ao Fato histrico

    reflexo/crtica/opinio

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    Ernesta

    (16 anos,

    Escola P2

    - T12)

    Na minha

    opinio, a corte

    portuguesa fugiu

    para o Brasil

    para evitar que Junot quando

    chegasse a Lisboa encontra-se a

    famlia real e a matasse.

    Isso iria causar um grave

    problema de sucesso.

    Ento para mim foi uma

    fuga estratgica mas

    apenas um pouco

    apressada.

    Otvio

    (17 anos,

    Escola P1 -

    T24)

    Eu considero que

    essa deslocao

    foi planeada,

    pois aconteceu por o rei, de

    acordo com a nobreza

    portuguesa e com a Inglaterra,

    entender o risco que corria e o

    que representaria para o pas se a

    famlia real fosse capturada, e as

    dificuldades e instabilidade

    poltica que iria acontecer.

    Claro que isso aconteceu

    devido presso existente

    pela iminente invaso

    francesa.

    Cludio

    (17 anos,

    Escola P1 -

    T1)

    Penso que foi

    estratgica e ao

    mesmo tempo

    uma fuga,

    apesar de ser benfica apenas

    para as classes elitistas e o resto

    do povo foi completamente

    abandonado. A famlia real ao

    fugir celebra um acordo com a

    Inglaterra

    e ento evita as invases

    francesas partindo

    formaram um imprio de

    grande riqueza econmica

    e deixando Portugal nas

    mos do povo, frgil para

    ser invadido.

    A coluna Introduo apresenta a hiptese ou a relao entre as hipteses citadas na

    pergunta do questionrio. Nelas os alunos partem do fato histrico, objeto da pergunta, e

    enunciam a opo que defendero para a resoluo do problema, algo que ser apresentado

    na argumentao em seguida.

    O Desenvolvimento da narrativa ocorre com a construo da argumentao a partir da

    relao entre o fato histrico e seus fatores (motivaes, causas, eventos, aes) que,

    entrelaados com coerncia, apresentam a razo de escolha da hiptese defendida. A presena

    de vrios sujeitos histricos uma caracterstica dessas narrativas. A relao entre seus atos,

    organizados de forma lgica e coerente geram a coeso do texto. Em negrito observam-se os

    sujeitos participantes do processo histrico. So marcadores espaciais (Portugal, Brasil,

    Inglaterra, Frana, Lisboa), bem como personagens (rei, Junot) e grupos socioeconmicos

    (classe elitista, resto do povo, famlia real, nobreza portuguesa). Tais sujeitos compem, com

  • DOI: 10.5433/1984-3356.2012v5n10p691

    , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 710

    suas aes, a argumentao do estudante que visa explicar o processo histrico no qual se

    encontra inserido o fato discutido. No que concerne a marcadores temporais, alm dos

    geralmente citados na introduo (Napoleo Bonaparte e o ano de 1808), personagens (Junot,

    D. Joo) e decises de cunho polticoeconmico (Bloqueio Continental) tambm auxiliam o

    leitor na compreenso do processo histrico discutido. Diferentemente das explicaes simples

    ou emergentes, as explicaes densas apresentam maior contedo histrico, pois nelas se

    observam algumas especificidades, tais como: as relaes de poder existentes entre os

    diferentes sujeitos histricos; suas aes dentro do contexto geopoltico e histrico da poca;

    as consequncias socioeconmicas e polticas para os diferentes grupos envolvidos nesse

    processo e o alongamento da temporalidade histrica devido preocupao em se buscar as

    razes da ocorrncia do fato histrico.

    Na Concluso, as explicaes densas retornam ao contedo disparador da questo: a

    famlia real portuguesa se transferiu de forma estratgica ou somente fugiu das invases

    napolenicas? Aps a introduo da questo e do desenvolvimento argumentativo, os

    estudantes retomam a questo disparadora, imbudos de reflexo e crtica. Alguns alunos, como

    Otvio (17 anos, Escola P1 - T24) revelam certo pragmatismo em suas concluses, pois

    acreditam ser a fuga apenas um reflexo direto das invases francesas. A defesa da sucesso

    portuguesa (Ernesta, 16 anos, Escola P2 - T12) e o fortalecimento econmico da elite imperial,

    em detrimento da populao lusitana abandonada (Cludio, 17 anos, Escola P1 - T1) tambm

    foram apontados como conclusivos desse processo histrico. Alm dessas narrativas, outras

    chamaram a ateno por terem especificidades de menor ocorrncia, mas que podem se

    apresentar no desenvolvimento desse tipo de exerccio cognitivo:

    Quadro 2- Outras narrativas

    Estudante INTRODUO

    DESENVOLVIMENTO

    CONCLUSO

    Frederico

    (17 anos

    Escola P1

    T3)

    Considero que a

    transferncia da famlia

    real portuguesa para o

    Brasil tenha sido um acto

    de fuga invaso das

    tropas francesas.

    pois a passagem da famlia real no iria

    interferir com qualquer medida

    econmica que visasse o

    desenvolvimento do Imprio e mais

    certo seria a produo de uma enorme

    instabilidade poltica quanto ao facto da

    permuta do estatuto de capital do

    Imprio.

    No considero de

    modo algum uma

    opo estratgica,

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    , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 711

    Priscila

    (17 anos,

    Escola P5

    - T22)

    Na minha opinio,

    certamente que antes do

    Bloqueio Continental j

    tinha sido vrias vezes

    equacionada essa

    transferncia.

    Mas porque realiz-la no exacto

    momento em que Portugal foi invadido,

    quando mais precisava de um governo

    prximo e eficiente?

    Foi, no meu entender,

    sobretudo uma fuga.

    Dionsio

    (16 anos,

    Escola B2

    - T44)

    Primeiramente, acredito

    que tudo foi

    estrategicamente

    planejado,

    pois, Portugal sempre tentou extrair o

    mximo possvel de nossas riquezas, e

    obter o controle total.

    Mas, confesso que,

    como um aluno

    brasileiro, a tendncia

    que eu defenda

    meu pas e veja

    Portugal com um

    olhar diferente

    As narrativas de Frederico e Priscila so mais aprofundadas no que se relaciona ao

    potencial emptico e crtico. Frederico no acredita na hiptese da estratgia simplesmente por

    no acreditar que tal opo garantiria vantagens econmicas para Portugal: no iria interferir

    com qualquer medida econmica que visasse o desenvolvimento do Imprio. Pelo contrrio,

    defende a ideia de que essa opo geraria o caos poltico no pas: certo seria a produo de

    uma enorme instabilidade poltica quanto ao facto da permuta do estatuto de capital do

    Imprio. Para esse aluno, a instabilidade poltica que seria gerada na Metrpole com a

    transferncia do governo para a colnia, de forma alguma seria compensada por um possvel (e

    no convincente) fortalecimento econmico de Portugal resultante dessa deciso. De igual

    forma, Priscila (17 anos, Escola P5 - T22), na introduo de sua resposta, anuncia a hiptese que

    defender citando que esta j havia sido delineada anteriormente ao Bloqueio Continental

    imposto por Napoleo, o que leva o leitor a inferir que o contexto histrico contemporneo ao

    fato no teria sido preponderante para a elaborao da estratgia. O Bloqueio se torna um

    marcador temporal que mostra ao leitor a anterioridade do planejamento e o alongamento da

    temporalidade na qual se insere o fato. A partir dessa leitura acurada que fez do contexto

    histrico da poca, Priscila apresenta seu argumento na forma de crtica corte portuguesa,

    pois estranha o fato de um governo que se apresentou como estrategista ao longo do tempo,

    ter se mostrado na prtica ineficiente quando mais se precisou da aplicao desse

    planejamento. Essa leitura revela sua tentativa de aproximar sua argumentao, via raciocnio

    histrico, de argumentos que poderiam ser suscitados na poca.

    Frederico e Priscila parecem pensar como algum que leu a notcia da transferncia da

    Coroa portuguesa num jornal da poca e discordou frontalmente das verses descritas. Esses

    alunos no se contentaram com a simples descrio do fato ou de seu contexto histrico, pois

    se dispuseram tentativa de pensar como algum que viveu naquele perodo e no concordava

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    , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 712

    com as aes pelo simples fato de no se convencer de sua viabilidade. Esse exerccio mental

    foi chamado por estudiosos da Educao Histrica como Peter Lee, Denis Shemilt, Rosalyn

    Ashby e Alaric Dickinson, de Empatia Histrica:

    Empatizar historicamente compreender os motivos e explicar as aces dos

    homens do passado, de modo a torn-las inteligveis s mentes

    contemporneas. Tal implica um amplo conhecimento do respectivo contexto

    histrico e a interpretao da evidncia histrica diversificada e/ou

    contempladora de diferentes perspectivas, estando tambm vinculado o uso de

    imaginao histrica (FERREIRA, 2009, p. 116).

    No universo de explicaes de alunos brasileiros das escolas participantes da pesquisa,

    somente uma foi classificada como densa nessa anlise. Dionsio assume a hiptese de

    estratgia da corte portuguesa na efetivao da transferncia por compreender que essa opo

    seria coerente com a trajetria de dominao imposta pela metrpole colnia, pois assume

    que essa anlise deveria ser entendida como reflexo do posicionamento do dominado.

    Apresenta, aqui, aguada perspectividade do pensamento histrico, pois esse estudante

    expressa a relao dialgica que construiu com seu objeto de estudo e com seu prprio leitor.

    Tal dialogismo s ocorre se forem levados em considerao os contextos histricos do objeto

    de estudo e da autoria. Essa relao, subsumida na narrativa, permite que o leitor adentre esse

    universo dialgico com sua prpria perspectiva e, assim, tenha mais elementos para construir

    sua autnoma reflexo. Nesse sentido, trabalhar com a perspectividade do pensamento

    essencial para a construo do conhecimento da Histria. A narrativa desse estudante brasileiro

    mostra que ele no se refugiou na tentadora reproduo do contedo histrico estudado,

    tampouco buscou sua superficial rememorao, antes se preocupou em inserir-se no processo

    histrico com autonomia cognitiva, pois percebeu a diversidade perspectiva desse tipo de

    conhecimento. Pensar historicamente inserir-se autonomamente no processo histrico de

    forma a conhecer o objeto de estudo, avaliar as diferentes perspectivas de pensamento dele

    derivadas ao longo do tempo e desenvolver sua prpria compreenso, no tempo presente, por

    meio da criao de narrativas com potencial histrico. Embora a incidncia de explicaes

    densas nos alunos portugueses seja superior em comparao aos brasileiros, importante

    salientar que esse nvel de perspectividade do pensamento histrico no se constatou em

    nenhuma narrativa lusitana. Nota-se, claramente, que os alunos portugueses construram

    narrativas detalhadas, com complexidade superior dos brasileiros no que se relaciona

    compreenso do contedo histrico propriamente dito. No entanto, tais explicaes

    apresentam certo conservadorismo, pois deixam de utilizar as operaes mentais do

    conhecimento histrico para criar narrativas autnomas que representem seu posicionamento

    perante o objeto de estudo e, principalmente, diante de seu interlocutor. Algo que, na nica

    explicao densa de alunos brasileiros, se verificou na prtica.

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    , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 713

    As explicaes densas remetem a constituio crtica de sentido histrico, pois permite

    a tomada consciente de posio do narrador diante de prescries culturalmente construdas

    ao longo do tempo. Em concomitncia, possibilita a construo de conscincia histrica do

    tipo gentico, pois remete perspectividade do pensamento, diversidade discursiva, ao

    posicionamento crtico perante demandas de orientao temporal, ao uso da alteridade na

    relao com outras concepes. Nesse sentido, as experincias passam pelo crivo da reflexo,

    podendo ser rejeitadas ou transformadas a partir do significado construdo no processo de

    interpretao. Procedimento que permite a criao de novas experincias pela rejeio s

    experincias anteriores, ou a transformao das experincias a partir das novas demandas de

    orientao da vida prtica. O horizonte de expectativas abre-se com orientao para o futuro a

    partir da reflexo dinmica e constante acerca das experincias do passado.

    O processo analtico apresentado neste artigo permitiu verificar a incidncia de diferentes

    nveis de explicao histrica em estudantes brasileiros e portugueses. Tais nveis apontaram

    para diferentes constituies de sentido orientao temporal no cotidiano, ou seja, aos

    diversos tipos de conscincia histrica existentes na tipologia de Jrn Rsen, bem como

    relao entre as categorias de Reinhart Koselleck espao de experincias e horizonte de

    expectativas. A partir dessa reflexo, um quadro (Figura 2) pde ser construdo de forma a

    facilitar a anlise de narrativas de grupos de estudantes luz da construo da conscincia

    histrica:

    Figura 2 Relao entre os niveis de explicao histrica e a tipologia da conscincia histrica

    Tipos de

    Conscincia

    Histrica

    (Jrn Rsen)

    TRADICIONAL

    EXEMPLAR

    CRTICA

    GENTICA

    Aplicao das

    Categorias

    de Reinhart

    Koselleck

    Sntese entre

    espao de

    experincia e

    horizonte de

    expectativas

    Sntese entre

    espao de

    experincia e

    horizonte de

    expectativas

    Rejeio ao

    espao de

    experincia

    anterior como

    abertura para um

    novo horizonte de

    expectativa

    Relao dinmica

    entre espao de

    experincias e

    horizonte de

    expectativas

    EXPLICAO

    HISTRICA

    (Conceito Meta-

    histrico)

    -Fragmentos

    descritivos

    - Explicao simples

    - Explicao

    simples

    - Explicao

    emergente

    - Explicao densa

    - Explicao densa

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    , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 714

    Referncias

    BARCA, Isabel. O pensamento histrico dos jovens. Braga: Universidade do Minho, 2000.

    FERREIRA, Clarisse. O papel da empatia histrica na compreenso do outro. In: BARCA, Isabel;

    SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Educao histrica: investigao em Portugal e no Brasil. Braga:

    Centro de Investigao em Educao, 2009. p. 115-130.

    KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos.

    Traduo de Wilma Patrcia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto & Ed.

    PUC-Rio, 2006.

    LEE, Peter. Progresso da compreenso dos alunos em Histria. In: BARCA, I. Perspectivas em

    educao histrica. Actas das Primeiras Jornadas Internacionais de Educao Histrica. 2001.

    RSEN, Jrn. Razo histrica - teoria da histria I: fundamentos da cincia histrica. Traduo

    de Estevo de Rezende Martins. Braslia: Ed. Universidade de Braslia, 2001.

    SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevo de Rezende (Org.). Jrn Rsen e

    o ensino de Histria. Curitiba: Editora UFPR, 2010.

  • DOI: 10.5433/1984-3356.2012v5n10p691

    , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 715

    Anexo 1

    Nome (opcional): __________________Idade:__________Ano: _______ Sexo: M ( ) F ( )

    Escola: _______________________________________________________

    -----------------------------------------------------------------------------------------------------------------

    A atividade abaixo no se trata de uma prova, mas de um pequeno exerccio para verificar como o estudante constri seu raciocnio histrico e o aplica na vida prtica. Agradecemos por seu interesse em participar desta

    atividade.

    ATIVIDADE

    As narrativas abaixo tratam da denominada transferncia da famlia real portuguesa para o Brasil, fato que ocorreu no incio do sculo XIX, no perodo em que Napoleo Bonaparte, imperador francs, buscava conquistar toda a Europa e tinha como seu principal rival no continente, a Inglaterra.

    Leia as duas narrativas a respeito desse fato e responda as questes propostas:

    Narrativa I

    Quando Napoleo Bonaparte decretou o Bloqueio Continental em 1806 (determinao de que nenhum pas da Europa Continental poderia comercializar com a Inglaterra), o governo portugus ficou em uma situao difcil: se no aderisse ao bloqueio, as tropas francesas invadiriam Portugal; se o fizesse, a Gr-Bretanha bombardearia Lisboa. O Prncipe regente D. Joo governava Portugal, em lugar de sua me, a rainha D. Maria I, afastada por insanidade mental. Diante da presso francesa e inglesa, D. Joo vacilou muito. O governo britnico sugeriu uma soluo alternativa: a fuga de toda a famlia real para o Brasil nos navios britnicos ancorados em Lisboa. Em troca, queriam a liberao do comrcio colonial e o direito de utilizar os portos brasileiros. O embarque ocorreu no dia 29 de novembro de 1807, quando as tropas francesas j estavam prximas de Lisboa. Alm da famlia real, viajaram 15 mil pessoas, entre nobres e criados. Trouxeram com eles joias, obras de arte, prataria e quase todo o dinheiro que circulava em Portugal (O embarque foi apressado e desorganizado, feito sob chuva e diante da populao apavorada ao ver seus governantes abandonando o pas aos invasores. D. Joo foi para o cais disfarado, temendo a reao dos populares. Em meio correria, dizem que a rainha D. Maria I, sem entender o que acontecia, gritou: No corram tanto! Pensaro que estamos fugindo!) Depois de quase dois meses de viagem, os refugiados chegaram Bahia em 22 de janeiro de 1808. (trechos extrados e adaptados de RODRIGUE, Joelza Ester. Histria em Documento: imagem e texto. So Paulo: FTD, 2002, p.90 e 114)

    Narrativa II

    A transferncia da Corte para a colnia americana no era uma ideia nova. Desde o sculo XVII, homens influentes no governo defendiam essa medida como forma de tornar menos vulnervel a capital do Imprio

    Portugus. Sempre ameaada por seu vizinho espanhol, a Corte estaria mais segura do outro lado do oceano

    Atlntico. A partir do sculo XVIII, outro motivo animava aqueles que defendiam a transferncia da capital para

    a Amrica: parecia a melhor soluo para combater a decadncia enfrentada por Portugal. O Brasil era a parte

    mais rica e dinmica do Imprio e, por isso, deveria se tornar o seu centro. No incio do sculo XIX, parte dos

    dirigentes do governo lusitano continuava envolvida com projetos para modernizar o imprio, tal qual

    acontecera antes, durante a gesto do marqus de Pombal. Influenciados pela Ilustrao (Iluminismo), estes

    reformadores eram agora liderados por Dom Rodrigo de Sousa Coutinho. Mais radical que seu antecessor,

    entretanto, D. Rodrigo propunha a reforma do pacto colonial para deixar livre a economia americana, que

    poderia assim prosperar, enriquecendo todo o imprio. Na Amrica estava a parte mais rica e dinmica da

    economia lusitana. Estimular o seu desenvolvimento, retirando os entraves coloniais e transformando-a em sede

    do Imprio, poderia ser o melhor caminho. Em 1801, dom Rodrigo fez a proposta de transferncia da Corte,

    quando ocupava os ministrios da Marinha e Ultramar e dos Negcios Estrangeiros e da Guerra. Dois anos

    depois, em 1803, afirmava que restava aos portugueses irem criar um poderoso imprio no Brasil, donde se volte a reconquistar o que possa ter perdido na Europa.Quando os soldados franceses invadiram Portugal, a

  • DOI: 10.5433/1984-3356.2012v5n10p691

    , v. 5, n. 10, p. 691-716, jul./dez. 2012 716

    ideia foi considerada a melhor soluo pelo prncipe e seus assessores. Quem ganhava com isso era a elite

    colonial que, de repente, passava a habitar a capital do Imprio. (trechos extrados e adaptados de CAMPOS, Flvio de. Ritmos da Histria. So Paulo: Escala Educacional, 2006, p.173-175)

    1) Considera que a corte portuguesa ao deslocar-se para o Brasil, em 1808, se transferiu de forma

    estratgica, planejada ou simplesmente fugiu da invaso das tropas de Napoleo Bonaparte?

    2) A leitura dos textos confirmou ou modificou sua opinio? Por qu?

    3) As explicaes dadas ao fato, nos textos, so diferentes? Explique sua resposta.

    4) Em sua opinio quais foram as principais consequncias desse fato para a Histria de Brasil e

    Portugal?

    5) Construa uma frase que expresse o que significa Portugal/Brasil para voc.

    Obrigado por participar da pesquisa!