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1 A TRAJETÓRIA INTELECTUAL DO PADRE LUIZ GONZAGA DO MONTE (1919-1944) Bruna Rafaela de Lima Lopes Doutoranda PPGH-Unisinos/ IFRN Este texto pretende analisar, inicialmente, como o padre e, posteriormente, Cônego 1 , Luiz Gonzaga do Monte (1905-1944) tornou-se intelectual e, nessa condição, participou da formação e consolidação de um campo próprio da intelectualidade no Rio Grande do Norte. Apesar de religioso, a inserção do nome dele entre os “homens cultos” extrapolou os domínios da fé, atingindo as ciências e as letras. Apesar de ter vivido em Natal desde a sua chegada à cidade, em 1917, até a sua morte, em 1944, foi reconhecido como possuidor de uma cultura universal. O objetivo do trabalho, a longo prazo, é produzir uma história biográfica desse padre, enfatizando a sua trajetória intelectual. Faleceu, aos 39 anos de idade, em Natal, no dia 28 de fevereiro de 1944, às 11 horas da manhã, vítima de tuberculose, o Cônego católico Luiz Gonzaga do Monte. Para o Cônego Jorge O´Grady de Paiva, que presenciou o acontecimento, o efeito dessa morte foi desolador sobre a cidade de Natal. “Sentia-se a orfandade. E, como raras vezes, a opressão do mistério da morte.” (PAIVA, 1996, p. 331) Segundo Dom Heitor de Araújo Sales, aluno do Seminário São Pedro, naquela ocasião, foi marcante a repercussão imediata dessa morte: a Igreja Católica local organizou celebrações oficiais; o bispo, os padres e os seminaristas estavam com vestes de gala; vieram exclusivamente para as solenidades muitos religiosos e leigos de outras cidades, inclusive de outros estados; formou-se uma fila enorme de pessoas que beijavam a mão do falecido como um ato de despedida. (SALES, 2015). Os relatos dos jornais de época informam que durante o sepultamento, no Cemitério do Alecrim, havia uma grande multidão e que Luís da Câmara Cascudo fez um discurso improvisado exaltando as qualidades intelectuais, morais e religiosas do morto. Em 1947, Jorge O´Grady de Paiva que tinha sido ex-aluno de Monte no Seminário São Pedro e se considerava um discípulo do falecido escreveu uma obra, intitulada “Verdade e Vida”, dedicada exclusivamente ao seu antigo professor. Paiva, que no final de 1934 havia também se tornado Cônego e, posteriormente, foi desenvolver suas atividades religiosas no Rio de Janeiro, entre elas a de capelão da Marinha, dividiu a vida de Monte em 7 (sete) partes: predestinação; homem de ciência; homem de Deus; homem de letras; na intimidade; a obra; e, finalmente, consumação. No decorrer das décadas de 1950 e de 1960, várias homenagens foram prestadas ao Cônego Monte. Como ele havia sido sócio atuante da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, essas entidades organizaram eventos específicos para homenageá-lo. Especificamente na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, entidade de cujo lema 1 Luiz Gonzaga do Monte ordenou-se padre em 1927 e foi elevado à categoria de cônego honorário em 19 de maio de 1941. Ao longo deste trabalho ele poderá ser tratado por padre ou por cônego.

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A TRAJETÓRIA INTELECTUAL DO PADRE LUIZ GONZAGA DO MONTE (1919-1944)

Bruna Rafaela de Lima Lopes

Doutoranda PPGH-Unisinos/ IFRN

Este texto pretende analisar, inicialmente, como o padre e, posteriormente, Cônego1, Luiz

Gonzaga do Monte (1905-1944) tornou-se intelectual e, nessa condição, participou da formação e

consolidação de um campo próprio da intelectualidade no Rio Grande do Norte. Apesar de religioso, a

inserção do nome dele entre os “homens cultos” extrapolou os domínios da fé, atingindo as ciências e as

letras. Apesar de ter vivido em Natal desde a sua chegada à cidade, em 1917, até a sua morte, em 1944,

foi reconhecido como possuidor de uma cultura universal. O objetivo do trabalho, a longo prazo, é

produzir uma história biográfica desse padre, enfatizando a sua trajetória intelectual.

Faleceu, aos 39 anos de idade, em Natal, no dia 28 de fevereiro de 1944, às 11 horas da

manhã, vítima de tuberculose, o Cônego católico Luiz Gonzaga do Monte. Para o Cônego Jorge

O´Grady de Paiva, que presenciou o acontecimento, o efeito dessa morte foi desolador sobre a cidade

de Natal. “Sentia-se a orfandade. E, como raras vezes, a opressão do mistério da morte.” (PAIVA, 1996,

p. 331) Segundo Dom Heitor de Araújo Sales, aluno do Seminário São Pedro, naquela ocasião, foi

marcante a repercussão imediata dessa morte: a Igreja Católica local organizou celebrações oficiais; o

bispo, os padres e os seminaristas estavam com vestes de gala; vieram exclusivamente para as

solenidades muitos religiosos e leigos de outras cidades, inclusive de outros estados; formou-se uma fila

enorme de pessoas que beijavam a mão do falecido como um ato de despedida. (SALES, 2015). Os

relatos dos jornais de época informam que durante o sepultamento, no Cemitério do Alecrim, havia uma

grande multidão e que Luís da Câmara Cascudo fez um discurso improvisado exaltando as qualidades

intelectuais, morais e religiosas do morto.

Em 1947, Jorge O´Grady de Paiva – que tinha sido ex-aluno de Monte no Seminário São

Pedro e se considerava um discípulo do falecido – escreveu uma obra, intitulada “Verdade e Vida”,

dedicada exclusivamente ao seu antigo professor. Paiva, que no final de 1934 havia também se tornado

Cônego e, posteriormente, foi desenvolver suas atividades religiosas no Rio de Janeiro, entre elas a de

capelão da Marinha, dividiu a vida de Monte em 7 (sete) partes: predestinação; homem de ciência;

homem de Deus; homem de letras; na intimidade; a obra; e, finalmente, consumação.

No decorrer das décadas de 1950 e de 1960, várias homenagens foram prestadas ao Cônego

Monte. Como ele havia sido sócio atuante da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras e do Instituto

Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, essas entidades organizaram eventos específicos para

homenageá-lo. Especificamente na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, entidade de cujo lema

1 Luiz Gonzaga do Monte ordenou-se padre em 1927 e foi elevado à categoria de cônego honorário em 19 de maio

de 1941. Ao longo deste trabalho ele poderá ser tratado por padre ou por cônego.

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(“Ad Lucem Versus” – Rumo à Luz) Monte havia sido o autor, foram realizadas várias sessões

específicas para saudar o Cônego. Nessas oportunidades sempre eram convidados conferencistas

diferentes para falar sobre o homenageado, tais como: Berta Guilherme (da Juventude Feminina

Católica), Maria Gurgel e o intelectual católico mariano Nilo Pereira. No Colégio Atheneu, escola da

qual havia sido professor, se organizou uma solenidade especial para colocar o seu retrato em destaque

na sala da Diretoria. Fato semelhante aconteceu na Associação de professores, que o tinha como

presidente de honra. As entidades católicas de Natal o homenagearam em diferentes oportunidades.

(NAVARRO, 2009)

Em 1961, Aluísio Alves venceu as eleições para o governo do estado do Rio Grande do Norte

e, durante a sua gestão, em várias oportunidades enfatizou a importância da vida do Cônego em seus

discursos. Além disso, o escolheu como nome de duas escolas construídas pelo governo estadual na

cidade de Natal. Aluísio Alves, importante liderança política no cenário local e nacional, tinha sido ex-

aluno de Monte, era seu amigo pessoal e seu admirador desde os anos 1930. Quando Monte foi

internado, Aluísio Alves, então diretor da Legião Brasileira de Assistência (LBA no Rio Grande do

Norte), ficou ao seu lado todo o tempo. Era a Aluísio que o médico de Monte – Milton Ribeiro Dantas –

informava continuamente o estado de saúde do religioso. Foi a Aluísio que o médico informou a morte

de Monte.

Em 1974, o governo do estado, por meio da Fundação José Augusto, encomendou ao

professor Jurandyr Navarro, intelectual local, ligado à Igreja Católica, pertencente aos quadros da

Congregação Mariana, a organização de uma Antologia com os textos de Monte. A Antologia foi

publicada com mais de 261 páginas. Todavia, segundo o professor Jurandyr Navarro – essa publicação

havia reunido uma parcela insignificante dos artigos de Monte. Para Navarro foi a partir dessa obra que

se tornou possível dimensionar a grande produção de Monte que se encontrava dispersa em vários

jornais e nas mãos de algumas pessoas que tinham mantido relações próximas a ele. Assim, entre 1974

e 2007, Navarro organizou dez volumes da “Antologia do Padre Monte”. À ideia inicial de produzir um

volume, foram acrescidos mais nove. Alguns desses volumes foram publicados exclusivamente pela

Fundação José Augusto, outros tiveram a parceria entre a Fundação e a Editora da Universidade Federal

do Rio Grande do Norte, outros foram publicados pela Companhia Editora do Rio Grande do Norte em

parceria com o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte; os dois últimos volumes foram

custeados por Navarro.

Segundo o próprio Navarro, ele foi convidado2 para organizar as antologias em razão das

pesquisas que tinha feito sobre Monte ao longo da vida. Navarro afirma que desde os 14 anos admirava

o padre Monte, apesar de não ter desfrutado da sua intimidade. Monte foi professor do Colégio Marista

2 Foi convidado por Sanderson Negreiros, então presidente da Fundação José Augusto na época.

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e do Atheneu e Navarro foi seu aluno nas duas escolas. Mesmo adolescente, os discursos e as atitudes

de Monte sempre o atraiam. Posteriormente, nos anos 1950, quando leu a obra “Verdade e Vida”

(escrita por Paiva) passou a colecionar os textos do Cônego publicados em vários lugares. Por ter sido

professor do Curso de Direito da UFRN e Secretário de estado, Navarro se tornou conhecido na cidade

de Natal. Na medida em que ele conversou com as pessoas que estudava as ideias de Monte,

rapidamente se passou associar o seu nome ao do religioso. Dessa forma, ao procurar publicar uma

Antologia, o nome mais adequado para reunir os textos do Cônego era realmente o de Navarro.

(NAVARRO, 2008)

Em 2005, a médica Helenita Yolanda Monte de Holanda, sobrinha de padre Monte, publicou

uma biografia sobre o tio – intitulada “Ad lucen versus (o luminoso destino de um homem): uma

biografia do servo de Deus padre Luiz Gonzaga do Monte”. Nessa biografia, que tem como fonte

principal a memória dos familiares, foi mantido o estilo laudatório presente nos demais textos que se

dedicam a Monte.

Contemporaneamente o nome de Monte permanece vivo no Rio Grande do Norte. Em 24 de

outubro de 2005, a Arquidiocese de Natal nomeou uma Comissão (coordenada pelo Monsenhor

Francisco de Assis Pereira, então postulador da Arquidiocese de Natal) encarregada de, por um lado,

reunir documentos para fundamentar o pedido da canonização do Cônego Luiz Gonzaga do Monte e,

por outro, escrever o texto que será enviado à Santa Sé solicitando a canonização do religioso. Em razão

do falecimento do coordenador da Comissão, o processo deixou de ter os trâmites habituais. Todavia,

em 2013 a Comissão foi reformulada e os objetivos de 2005 permanecem vivos. Além da Igreja, várias

entidades locais continuam rememorando Monte e os valores que ele representa.

A trajetória de padre Monte, antes do seu ingresso no Seminário São Pedro, é muito

semelhante a vida de outras famílias pobres que viviam no Nordeste nas primeiras décadas do século

XX. Duas biografias – uma escrita pelo cônego Jorge O´Grady de Paiva e outra por Helenita Monte de

Hollanda (sobrinha de Luiz Monte), narram essa história de forma muito similar. Com base nesses

textos, podemos afirmar que Luiz Gonzaga do Monte nasceu, em 3 de janeiro de 1905, no município de

Vitória de Santo Antão (Pernambuco). Em 1907, Pedro Monte, pai de Luiz Monte, em razão das

difíceis condições financeiras em que vivia a família, empregou-se nas obras de construção da estrada

de ferro que faria a ligação entre Pernambuco e Rio Grande do Norte. Paralelamente ao vínculo

empregatício, Pedro Monte, instalou um pequeno barracão de “secos e molhados” à margem dos trilhos

que construía. Em função do trabalho na estrada de ferro, a família mudou-se primeiro para Pesqueira

(ainda em Pernambuco, onde permaneceu pouco tempo), em seguida para a cidade da Paraíba (então

capital da Paraíba, local da primeira escola de Luiz Monte), depois, em 1914, para Recanto (pequeno

distrito do município de Currais Novos / Rio Grande do Norte) e finalmente, em dezembro de 1917,

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para Natal, onde se fixou. A decisão de vir morar em Natal obrigou Pedro Monte a deixar o emprego na

estrada de ferro. Entretanto, seria a única solução para que os filhos pudessem estudar, pois em Recanto

não havia escola, nem professor, que ensinasse à população local. (PAIVA, 1996, p. 18-42);

(HOLANDA, 2005, p. 31-35)

Quando chegou para morar Natal, Monte estava com 12 anos de idade e – com o apoio da

família – queria ingressar em um Seminário para se tonar um padre. Naquela época, Natal estava sem

bispo e não tinha um Seminário para a formação de religiosos. Isso porque, o primeiro bispo da cidade -

Dom Joaquim Antônio de Almeida – havia tomado posse em 1910, mas renunciou ao bispado em 1915,

em razão de um derrame cerebral. Na gestão de Dom Almeida houve a formação da única turma de

padres na cidade. Assim, até maio de 1918 a cidade ficou sem bispo e sem Seminário, nessa condição,

Luiz Monte estudou, durante todo o ano de 1918, no Colégio Santo Antônio, disciplinas preparatórias

para o Seminário. (PAIVA, 1996, p. 18- 42); (HOLANDA, 2005, p. 31- 35)

Em 30 de maio de 1918, Dom Antônio dos Santos Cabral assumiu o bispado e criou, nesse

mesmo ano, a Congregação Mariana de Nossa Senhora da Apresentação e São Luiz Gonzaga e a

Sociedade de São Vicente de Paulo. Luiz Monte tornou-se congregado fundador de ambas e se

empenhou nas atividades de ambas. Em razão das atividades que exercia nessas congregações, Monte

pôde conhecer os diversos espaços da cidade e se aproximar do Clero. Nessa conjuntura, quando o

Seminário foi fundado, em 15 de fevereiro de 1919, Monte tornou-se seminarista, apesar das inúmeras

dificuldades financeiras para ingressar e manter-se na instituição. (PAIVA,1996, p. 18-42);

(HOLANDA, 2005, p. 31-35)

Esta trajetória linear da vida de Monte, construída por seus biógrafos, nos permite situar

brevemente o percurso trilhado pelo religioso até a sua chegada ao Seminário São Pedro, marco inicial

deste trabalho. Apesar de não apresentar uma problemática histórica, nem usar fontes para o

cotejamento das informações, essa trajetória permite que o leitor tome conhecimento minimamente

sobre esse padre no período anterior ao que será privilegiado neste trabalho.

Postas essas considerações, torna-se importante deixar evidente que a preocupação central

deste trabalho é analisar como Luiz Monte se tornou um intelectual e nessa condição participou da

formação e consolidação de um campo intelectual no Rio Grande do Norte, que se distinguia por reunir

uma elite letrada e por apresentar-se como guardiã da memória local e condutora do futuro da cidade.

Para compreender a construção de Monte como intelectual é importante associar o seu ingresso no

Seminário São Pedro, em 1919, com três elementos conjunturais: o papel que os intelectuais brasileiros

atribuíam a si próprios; a formação e consolidação de uma elite intelectual em Natal e a mobilização da

Igreja Católica brasileira em torno da adoção de princípios e práticas relacionadas à neocristandade.

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A historiadora Monica Pimenta Veloso, em seu clássico texto sobre a intelectualidade

brasileira, afirmou, com base no pensamento de Foucault e Deleuze, que os intelectuais, em diferentes

momentos da história, se atribuíram a função de agentes da consciência e do discurso. Ainda segundo a

historiadora, no Brasil, esse tipo de prática ganhou maior expressividade, em razão tanto da nossa

estrutura patriarcal e autoritária, quanto da dificuldade de acesso à cultura letrada por parte da maioria

da população. Assim, os intelectuais têm, ao longo da história nacional, se auto representado como guia

dos rumos do país e falado em nome das pessoas comuns, consideradas, por eles, incapazes tanto de

refletir sobre as condições que caracterizam a sua sobrevivência, quanto de propor alternativas para o

futuro. Essa atuação dos intelectuais na história pode ser melhor explicitada em três momentos

específicos: na transição do Império para a República (quando os intelectuais se apresentaram como os

condutores do processo de modernização da sociedade brasileira, usando o cientificismo para lutar

contra a incapacidade dos políticos); na década de 1920 (quando buscam as raízes da brasilidade em

oposição ao cosmopolitismo) e depois de 1930 (quando passam a atuar no seio do Estado). (VELOSO,

1987, p. 1-3)

Assim, pode-se afirmar que Monte se formou e atuou como padre num momento em que os

intelectuais se diferenciavam do conjunto da população por se apresentarem como guia do futuro. À

intelectualidade cabia o estabelecimento de diretrizes a serem adotadas pela nação. Nesses termos, a

construção de Monte como intelectual se relaciona com uma característica que o distingue dos outros.

O papel dos intelectuais na sociedade ganhava contornos específicos na cidade de Natal. Em

1919, ano de ingresso de Monte no Seminário, Natal possuía em torno de 30.000 habitantes3, o que a

tornava uma das menores capitais do Brasil e a menor das capitais nordestinas. Entretanto, desde as

duas primeiras décadas do século XX, a pequena cidade começava a respirar ares de mudança, o que foi

tratado pelos primeiros intelectuais locais – como Manoel Dantas, Eloy de Souza e Henrique

Castriciano – que passaram a saudar, em seus textos, a chegada das inovações (como por exemplo, o

bonde) e o ritmo novo que elas introduziam na cidade. Em geral, esses intelectuais passaram a registrar

uma cidade que se transformava.

Nos anos 1920, Câmara Cascudo, inspirado no pensamento desses intelectuais, atribuiu a si

mesmo a função de escrever sobre tudo o que acontecia na cidade e a reconstruir as memórias dela.

Cascudo e outros intelectuais contemporâneos a ele passaram a firmar a posição do papel essencial que

os intelectuais deveriam desempenhar diante dos problemas concernentes à cidade. Diante dessa

conjuntura, é possível afirmar que existia uma atmosfera que favorecia o surgimento de intelectuais

3 De acordo com o Censo de 1920, a população de Natal era de 30.696 habitantes. Fonte: IBGE, Censo

Demográfico 1920. Disponível em: http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=6&uf=00

Acesso em 06 nov. 2015.

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capazes de suprir a carência de pessoas que refletiam sobre alterativas para a humanidade em geral e

para acidade em particular.

Paralelamente a essa carência de intelectuais modernos, os anos 1920 também foram palco do

redirecionamento das concepções e práticas da Igreja Católica no Brasil. Em 1916, Dom Sebastião

Leme foi nomeado como arcebispo de Olinda e Recife. Nessa condição escreveu uma Carta Pastoral na

qual chamava atenção para alguns problemas que afetavam o catolicismo no Brasil naquele momento e

apresentava uma proposta de ação para reverter a situação. Entre esses problemas, a Carta enfatizava: a

fragilidade institucional da Igreja e a sua difícil situação financeira; a precariedade das práticas

religiosas populares e da educação religiosa; a carência de padres; a ausência de intelectuais católicos.

Considerando essa conjuntura, a Carta propunha cristianizar as instituições sociais e estimular a

formação e a consolidação de um quadro de intelectuais católicos. Embora essa Carta expresse uma

concepção de problemas e alternativas para a Igreja, os postulados nela apresentados só foram

efetivados no período entre 1921 e 1942, quando Dom Sebastião Leme era o arcebispo do Rio de

Janeiro. (MAINWARING, 1989, p. 42). As concepções proclamadas e as práticas adotadas por Leme

faziam parte de uma neocristandade, entendida como um movimento voltado para a ampliação da

presença dos valores cristãos nas principais instituições sociais.

Postas essas considerações é possível analisar que a formação e a atuação sacerdotal de Monte

estão associadas: à lógica que considera o intelectual como um guia da sociedade; a necessidade de a

Igreja católica formar intelectuais (para a implementação dos princípios da neocristandade) e a

emergência de uma intelectualidade em Natal. Preliminarmente pode-se inferir que Monte emerge em

um momento em que os intelectuais de Natal ainda estão tateando na experimentação científica e no

pensamento reflexivo, ou seja, começavam a aparecer às primeiras experiências de um campo

científico. Provavelmente, a ideia construída sobre Monte de que ele era um sábio que dominava todos

os campos do saber está relacionada com a ausência de outras pessoas que desenvolvam ações

semelhantes. A lógica era a de que a existência de um primarismo científico fortalecia a imagem

intelectual de alguém que de “tudo” fazia e sabia.

Entretanto, a questão da intelectualidade de Monte merece maior aprofundamento. O que seria

um intelectual nas primeiras décadas do século XX? Quais os rituais de saberes eram adotados por esses

intelectuais? Considerando que à intelectualidade estavam associados diversos elementos, tais como, o

bem falar, o bacharelismo, o ser agressivo na defesa das ideias, quais dessas características estavam

presentes nas concepções e práticas desenvolvidas por Monte? Para refletir com maior profundidade

sobre essas questões, poderemos nos valer das reflexões de Bauman, que analisa o papel dos

intelectuais no seu tempo.

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Em linhas gerais, pode-se afirmar que este trabalho almeja verificar, a partir de um sujeito

concreto, tanto as estratégias usadas pela Igreja Católica para consolidar o seu poder no âmbito do

campo intelectual, quanto na autonomia desse sujeito diante da instituição. O trabalho produzirá uma

biografia intelectual do padre Luiz Gonzaga do Monte. Levando-se em consideração as investigações

prévias que foram realizadas, foi possível perceber que a imagem consolidada sobre esse religioso é de

que ele cumpriu com dedicação, ao longo da vida, 7 (sete) atividades associadas à intelectualidade: a

formação sacerdotal; a atuação como padre; a leitura permanente de livros (relacionados à religião, a

filosofia, à ciência e às letras); o exercício do magistério; a militância junto a entidades intelectuais

religiosas e leigas; o desenvolvimento de pesquisas na área de análise química de minerais; a escrita

contínua de artigos para jornais. A partir dessas atividades intelectuais, uma série de questões podem ser

formuladas acerca de cada uma delas.

Sobre a formação sacerdotal, sabe-se que Monte iniciou sua formação de padre no Seminário

São Pedro, em Natal, no ano de 1919, aos 14 anos de idade. Todavia, é necessário indagar uma série de

questões: quais os requisitos exigidos pelo Seminário São Pedro para receber um aspirante a padre?

Quais os requisitos para ser um padre? Que cursos deveria realizar? Que diretrizes intelectuais

orientavam a formação de um padre? Como foi a formação de Monte? Qual o currículo ministrado?

Quais as disciplinas? Essas disciplinas eram anuais? Qual o conteúdo das disciplinas? Quem ensinava?

Quem foram os seus professores? De onde vinham esses professores? Onde eles tinham sido formados?

O que se ensinava nos seminários? A formação de padres no Brasil variava de um Seminário para

outro?

No tocante à atuação como padre, indaga-se: que atribuições religiosas foram delegadas a

Monte? Como ele desempenhava essas atribuições? Como ele articulava as informações da fé, com as

ciências e as letras? Que relações mantinha com a estrutura hierárquica da Igreja, com os outros padres

e com os leigos?

No que concerne à leitura permanente de livros, sabe-se que Monte tinha uma leitura

extremamente abrangente, abarcando temas como religião, filosofia, ciências e letras. Sabe-se também

que ele dedicava muitas horas do dia à leitura. Sabe-se ainda da enorme4 biblioteca particular que ele

mantinha no Seminário São Pedro. Segundo Penha e Sales, a biblioteca de Monte era um espaço

exclusivo dele, ninguém podia entrar no ambiente (PENHA FILHO, 2009; SALES, 2015). Todavia,

indaga-se: quem orientava Monte sobre as leituras que deveriam ser realizadas? Que leituras eram

privilegiadas? Como a sua biblioteca era organizada? Que livros compunha o seu acervo? Que

4 A enorme biblioteca é dimensionada a partir das informações colhidas nas entrevistas com Penha Filho e Sales.

Segundo esses religiosos, na biblioteca existiram 11 estantes. Cada estante media, aproximadamente, 3 (três)

metros de altura, por 2 (dois) metros de largura. Todas as estantes eram completamente preenchidas por livros.

Levando-se em consideração as dificuldades de acesso a livros em Natal naquela época, juga-se que a biblioteca

de Monte deveria reunir um dos maiores acervos de obras existente no Rio Grande do Norte.

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anotações existiam nos livros? Quais os autores e os títulos que compunham essa biblioteca? Havia

privilégio a algum tipo de leitura? Como Monte dialogava com essas obras? Que autores da sua

biblioteca são citados nos seus textos?

No que se refere ao exercício do magistério, sabe-se que Monte foi professor de várias

instituições: Seminário São Pedro; Colégio Atheneu e Colégio Santo Antônio (que passou a ser dirigido

pelos irmãos Maristas a partir de 1929). Nessas instituições, ele ministrava disciplinas diversas: Latim,

Filosofia, Teologia, Psicologia, Biologia e Matemática. Além disso, nas férias escolares ele ministrava

cursos sobre formação moral e ética para jovens pertencentes à Congregação Mariana. Acerca do

magistério, indaga-se: qual o conteúdo das suas aulas? Como era a sua atuação na condição de docente?

O que dizem os alunos sobre as suas aulas? Como ele usava os livros? Que relação mantinha com seus

alunos?

No que diz respeito à militância junto a entidades intelectuais religiosas e leigas, pode-se

afirmar que Monte mantinha uma forte relação com instituições leigas (destacadamente o Instituto

Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras) e

religiosas (Congregação Mariana e Sociedade São Vicente de Paulo). Que relações Monte mantinha

com essas entidades? Como participava dos debates no seio dessas entidades? Que ideias expressava?

Que práticas adotava?

Acerca do desenvolvimento de pesquisas na área de análise química de minerais, sabe-se que

Monte mantinha no Seminário São Pedro um laboratório equipado para analisar minérios. Segundo

Sales, o laboratório de Monte era referência no Rio Grande do Norte, recebendo pessoas que vinham

para que Monte realizasse análises. (SALES, 2015) Como Monte se qualificou para trabalhar com

análise de minérios? Quem financiava os seus estudos?

Sobre a escrita de Monte, caracterizada pela produção de muitos artigos e poucos livros,

indaga-se: quais os temas por ele abordados? A cronologia dos textos é associada a discussão de temas

específicos?

Sabe-se de polêmicas escritas (publicadas no jornal A República) entre Monte e personagens

da cidade. Sabe-se da existência de pelo menos 3 debates públicos, que giraram em torno de três temas

e envolveram três personagens diferentes: a imortalidade da alma (com um médico), o protestantismo

(com um pastor presbiteriano) e a tolerância da Igreja (com um Capitão do Exército). Entretanto, sobre

essas polêmicas, indaga-se: Que debates intelectuais foram travados por Monte? Como ele participava

desses debates?

Além dessas indagações, há uma observação de outra ordem a ser feita nesse trabalho: todas

as imagens construídas sobre Monte, após a sua morte, estão vinculadas a celebrações. Nos estudos

prévios realizados não foi encontrado nenhum trabalho que apresente pelo menos um elemento crítico

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sobre Monte. Todos os trabalhos são laudatórios. Apesar da quantidade de escritos tanto do próprio

religioso (só os 10 volumes de Antologia do Padre Monte totalizam mais de 4.000 (quatro mil)

páginas), quanto de pessoas que escreveram sobre ele; apesar da disponibilidade de fontes para estudar

a temática, nenhum estudo crítico – acadêmico ou não – foi realizado sobre o tema. Diante dessas

constatações, indaga-se: por que o Cônego Monte nunca foi estudado criticamente, ou seja, como um

personagem com dilemas próprios do seu tempo nunca foi objeto de investigação? Por que só existe

uma memória laudatória sobre ele?

A partir desse conjunto de indagações, o problema central deste trabalho pode ser definido nos

seguintes termos: Como um intelectual, religioso e provinciano participa da formação de um campo

próprio da intelectualidade local? A formulação desse problema se associa com uma importante

discussão histórica: a Igreja Católica no século XIX perdeu o poder que tinha na sociedade, em razão do

fortalecimento do socialismo e o liberalismo. Para reverter essa situação, a cúpula da Igreja empreendeu

esforços para recompor o seu prestígio a partir de medidas que possibilitassem a inserção da instituição

no mundo moderno. No Brasil a partir das primeiras décadas do século XX, sobretudo, com as ações de

Dom Sebastião Leme, houve um grande esforço da Igreja para se inserir na intelectualidade. Nessa

conjuntura, ocorreu o fortalecimento de uma intelectualidade católica leiga. Todavia, Monte necessita

de atenção diferenciada, por ser um intelectual católico religioso.

Definido o problema de investigação, torna-se importante explicar a delimitação temporal do

estudo: de 1919 a 1944. A escolha por 1919 está relacionada com o fato de que nesse ano Monte iniciou

sua formação para se tornar um padre, ingressando no Seminário São Pedro; a opção por 1944 diz

respeito ao fim da sua vida sacerdotal, em razão do seu falecimento.

Apesar de Monte e dos autores que sobre ele escrevem estarem espacialmente vinculados ao

Rio Grande do Norte, este trabalho não pretende produzir uma história limitada a esse espaço

geográfico. Ao estudar Monte almeja-se compreender como homens e mulheres em um tempo/espaço

determinado monumentalizam personagens; articulam religiosidade, moral e política; santificam

sujeitos; exaltam ações e concepções específicas.

Dois aspectos são exaltados sobre Monte: a sabedoria e a santidade. No tocante à sabedoria é

possível afirmar, a partir das fontes previamente consultadas, que os escritos sobre Monte afirmaram a

genialidade dele em duas áreas: as ciências naturais e as letras. Para o seu biógrafo, o Cônego Jorge

O´Grady de Paiva, “Monte culminou em plenitude de conhecimentos. Perlustrando todos os

departamentos do saber chegou a dominar toda a ciência de seu tempo. Não havia fronteiras para a sua

inteligência” (PAIVA, 1947, p. 77), dominando com profundidade Física, Química, Matemática,

Geologia, Mineralogia, Biologia, Psicologia, História (especialmente a Antiguidade e a Idade Média),

Literatura e Direito. Além disso, tinha conhecimentos sólidos de Hebraico, Latim, Inglês e Alemão

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(PAIVA, 1947: 83). Essa interpretação de Paiva sobre a genialidade de Monte também está explicitada

nos textos de outros autores (como Cascudo e Navarro) e se fizeram presentes em entrevistas

exploratórias, realizadas para este trabalho, com dois personagens que foram alunos de Monte no

Seminário São Pedro: Dom Heitor de Araújo Sales e Monsenhor João Penha Filho.

A sabedoria de Monte também é exaltada – pelos seus estudiosos – em razão da capacidade

demonstrada por ele para desenvolver tantas coisas em um curto tempo. Nesse sentido, esses estudiosos

enfatizam que entre 1927 (ano da sua ordenação como Padre) e 1944 (ano de sua morte), Monte redigiu

três livros e escreveu mais de 1.000 (mil) artigos5. Todavia, nesse período, ele não se dedicava apenas a

escrever textos. Com a atividade de escritor ele conciliava outras funções tais como: Capelão e

professor de Matemática no Colégio Marista; Professor de Latim no Colégio Atheneu; professor de

Latim, Filosofia, Psicologia e Teologia no Seminário São Pedro; Capelão do Colégio Imaculada

Conceição; Capelão da Igreja do Rosário; Secretário Geral da Diocese; sócio atuante – com presença

assídua e participação constante - da Academia de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio

Grande do Norte (IHGRN); Diretor espiritual da Juventude Feminina Católica; pesquisador empenhado

nos estudos químicos sobre os minerais, estudos esses desenvolvidos no seu próprio laboratório6, que

contava com muitos equipamentos sofisticados; estudioso profundo passava horas estudando em sua

biblioteca; religioso ficava quase todas as noites rezando sozinho na Capela do Seminário.

Esse conjunto de atividades desenvolvidas ao mesmo tempo é rememorada pelos alunos de

Monte no Seminário São Pedro. Segundo o Padre João Filho e Dom Heitor de Araújo Sales, uma das

coisas que favoreceu a doença de Monte foi a sobrecarga de trabalho. Para seu ex-aluno, o padre sempre

dormia pouco e comia fora dos horários. (PENHA FILHO, 2009; SALES, 2015). Posteriormente outros

autores que escreveram sobre Monte também retomaram essa ideia e associaram essa situação - de

muito trabalho e capacidade intelectual aguçada e sacrifícios – ao fato de Monte ser um homem

santificado.

No que se refere particularmente à santidade de Monte, os autores também a justificam.

Segundo Navarro, a Igreja Católica considera santo aqueles que operaram milagres e outros que tiveram

uma vida marcada por sofrimentos e os superaram com a força da fé. Nesse caso, Monte “teve o seu

calvário, bebendo no cálice da existência o fel do sofrimento de uma vida voltada para servir. [...] Fez

penitências ao estudar no martirizar-se para elevar o nome da Igreja. O seu calvário não foi outro senão

5 Os artigos eram publicados, entre outros lugares, nos periódicos da Diocese de Natal (jornal “A ordem”, jornal

“Diário Natal” e jornal “A verdade”), no jornal “A República” (órgão oficial do governo do estado); nas plaquetes

escritas para os alunos do Seminário; em plaquetes e Revistas da Academia Norte-rio-grandense de Letras e do

Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. 6 Segundo Dom Heitor, Monte foi quem descobriu a scheelita no Rio Grande do Norte. Essa foi uma das

descobertas dele no seu laboratório. Pessoas vinham de diferentes lugares com amostras de minérios (SALES,

2015)

11

o de sacrificar a sua mocidade numa luta contra o mal”. (NAVARRO, 1979: 15) O pensamento de

Navarro também é partilhado pelos outros autores que escreveram sobre Monte.

Pelas investigações realizadas até o momento não encontramos nenhum texto de Monte que se

refira a uma escrita de si próprio. O Cônego nada deixou sobre si. Não há diários, cartas ou textos auto

reflexivos. Seus textos sempre se referem aos outros. Aliás, é importante destacar que Monte se

caracterizou por produzir poucos livros e muitos artigos. Obras propriamente ditas, ele só escreveu três

livros (“Fundamentos Biológicos da Castidade”; “Compêndio de Biologia”; “Livros das Revisões”

(sobre o espiritismo) e uma tese (intitulada “Lexiologia e Sematologia – Teses Latinas”), escrita para

concorrer a Cadeira de Latim do Atheneu Norte-rio-grandense.

A partir desse conjunto de considerações é possível afirmar que Monte é um tema que suscita

inúmeras questões. Assim, muito mais do que as certezas sobre esse religioso, este texto conseguiu

formular dúvidas. Portanto, traça-se aqui o ponto de partida para muito trabalho investigativo.

Objetivos:

Geral

Reconstituir a trajetória do padre Luiz Gonzaga do Monte, com o propósito de verificar como esse

padre se tornou e foi considerado um intelectual, e, por essa condição, participou da formação e da

consolidação de um campo próprio da intelectualidade no Rio Grande do Norte.

Específicos:

Conhecer a trajetória individual de Monte, captando os lugares de sua formação, de sua atuação

profissional e de sua atuação pública e privada;

Mapear a produção escrita por padre Monte e a produção escrita sobre ele, com o intuito de construir

um quadro analítico de temas e referenciais que constituem o conjunto de sua obra;

Associar a produção de Monte com as outras produções locais ocorridas no período em que seus

textos eram produzidos;

Identificar os autores e as instituições que escreveram e homenagearam Monte, detectando os

interesses e as caraterísticas comuns/divergentes presentes nessas ações;

Comparar a trajetória de Monte com a trajetória de outros padres que viveram no período,

enfatizando as mudanças e permanências com relação às práticas e as concepções humanas,

científicas e tecnológicas.

Embasamento Teórico-metodológico:

Do ponto de vista teórico este trabalho está ancorado em um eixo histórico e em três

conceitos: história biográfica, história intelectual e campo intelectual.

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O eixo histórico é o primeiro elemento teórico deste trabalho. Nesse sentido, este trabalho

fundamenta-se historicamente nos argumentos que analisam os esforços desenvolvidos pela Igreja

Católica para se inserir na vida intelectual do Brasil, nos termos apresentados por Scott Mainwaring.

Nesse sentido, é importante destacar que a ação intelectual de Monte ocorreu concomitantemente às

atividades, desenvolvidas por Dom Sebastião Leme, para construir um quadro de intelectuais católicos.

Entre as ações que contribuíram para a formação desse quadro intelectual destacam-se a criação da

revista “A Ordem” (1921) e do “Centro Dom Vital” (1922). Esses dois organismos empreenderam,

conjuntamente, esforços para que fosse desenvolvida uma produção intelectual com a forte participação

dos católicos leigos. Nesse sentido, “A Ordem” e o “Centro Dom Vital” abrigaram estudos e reflexões

que expressavam o posicionamento da Igreja em relação a temas em pauta na sociedade, tais como:

sexualidade, família, moda, moral. (GOMES, 1993)

Esse histórico permitirá entender como Monte, na condição de religioso e intelectual, se

inseriu nas ações empreendidas pela Igreja. A partir de Ângela de Castro Gomes (1993) – que

demonstra como se deu a ampliação das bases da Igreja – será possível analisar como um homem

formado para transmitir a fé, passou a se inserir em um campo que discute temas do mundo acadêmico

e laico.

Cândido Rodrigues (2005), que distinguiu as matrizes inspiradoras da Revista A Ordem, nos

auxiliará a compreender as matrizes inspiradoras do pensamento de Monte. Partindo da constatação de

que, os intelectuais dessa Revista Católica se consideravam o único segmento da sociedade capaz de

compreender os problemas do Brasil e oferecer alternativas para solucioná-los, Rodrigues investigou as

bases para a construção desse pensamento e identificou que duas matrizes teóricas orientavam os

intelectuais que escreviam os textos da Revista: a político-ideológica e a teórico-filosófica. Os textos

vinculados à matriz político-ideológica eram fundamentados no pensamento de Edmund Burke, Louis

Ambroise de Bonald, Joseph de Maistre e Juan Donoso Cortés. Os textos vinculados à matriz teórico-

filosóficas eram inspirados em Oscar Scmitt, Henri Bergson e Jacques Maritain. Com base em

Rodrigues, pretende-se mapear todos os textos de Monte e identificar as suas influências teóricas.

(RODRIGUES, 2005, p. 16)

Esses estudos históricos nos ajudarão a compreender como a ação intelectual de um religioso

ajudou a configurar o campo intelectual. Eles certamente fornecerão pistas para que a partir de uma

biografia compreenda-se a formação do campo intelectual; fornecerão elementos que expliquem como

um homem formado pela Igreja, passou a discutir conteúdos estudados pelos bacharéis; trarão luzes

para o entendimento das diferenciações entre a formação singular proporcionada pela Igreja e a

formação dos bacharéis e dos homens de Letras.

13

A noção de história biográfica é essencial para a construção deste trabalho. Tomando por base

as ideias de Sabina Loriga, pretende-se construir uma biografia de padre Monte. Todavia, é importante

destacar que não se busca a biografia como alternativa de apreensão de uma totalidade histórica. O

estudo sobre Monte busca compreender, por um lado, o que acontecia na sociedade nas primeiras

décadas do século XX e, por outro, a contribuição pessoal dele, naquele momento histórico. Assim,

buscar-se-á compreender o livre arbítrio do sujeito em uma dada conjuntura.

A opção por construir uma biografia que procura o livre arbítrio do biografado é opção de

quem escreve. O historiador francês François Dosse, demonstra que não existe um gênero biográfico,

pois em diferentes momentos históricos prevalecem formas diversas de se elaborar uma biografia. Há

biografias construídas para enaltecer os heróis; há biografias que usam o biografado simplesmente para

descortinar um determinado momento; há biografias que se concentram em demonstrar como o

biografado transita no seu tempo e no seu espaço.

Utilizando como referencial autores como Loriga e Dosse, esta biografia sobre Monte busca

dar centralidade a dimensão individual. Por meio dessa biografia pretende-se responder algumas

questões: como era realizada a formação intelectual dos indivíduos de formação religiosa? Quais as

relações intelectuais que tais indivíduos estabeleciam com as instituições sociais e intelectuais do

período? Como situar os temas e o modo de discussão apresentados por Monte à intelectualidade?

No tocante à “História Intelectual”, pode-se afirmar que essa noção é muito importante para

este trabalho. Todavia, em razão de esse campo de investigação ainda ser pouco definido, necessário

que façamos aproximações em torno desse conceito. Segundo Darnton, na obra O beijo de Lamourette,

a história intelectual compreende

a história das ideias (o estudo do pensamento sistemático, geralmente em tratados filosóficos), a

história intelectual propriamente dita (o estudo do pensamento informal, os climas de opinião e

os movimentos literários), a história social das ideias (o estudo das ideologias e da difusão das

ideias) e a história cultural (o estudo da cultura no sentido antropológico, incluindo concepções

de mundo e mentalités coletivas). (DARNTON, 1990, p. 188)

O fato de considerar a história intelectual a partir desses quatro níveis, implica no

reconhecimento de diferentes enfoques que estão diretamente relacionados. Assim, a história intelectual

pode ser produzida a partir de diferentes correntes de pensamento, de ideias construídas em contextos

distintos, de diferentes matrizes disciplinares. No que se refere, especificamente, as matrizes

disciplinares, a história intelectual pode emergir da História, da Sociologia, da Filosofia. Cada uma

dessas disciplinas pode propiciar uma forma diferente de elucidação de um dado objeto. A história pode

abordar a história política dos intelectuais, enfatizando manifestos e manifestações de sujeitos

históricos; a Sociologia pode se deter nas redes de sociabilidade e na forma como os sujeitos se filiam a

um campo intelectual; a Filosofia pode analisar as obras e as ideias do sujeito.

14

Todavia, a história intelectual também pode reunir essas diferentes dimensões na análise de

um objeto específico. Nesse sentido, parece reveladora a percepção de Chartier. Para esse autor,

A única definição atualmente aceitável da história intelectual [...] parece ser aquela dada por

Carl Schorske, na medida em que ele não lhe atribui nem metodologia particular, nem conceitos

obrigatórios, indicando a dupla dimensão de um trabalho: situar e interpretar a obra no tempo e

inscreve-la no cruzamento de duas linhas de força: uma vertical, diacrônica, que relaciona um

sistema de pensamento a tudo o que precedeu em um mesmo ramo de atividade [...]; a outra

horizontal, sincrônica, pela qual o historiador estabelece uma relação entre o conteúdo do objeto

intelectual e o que se faz em outras áreas na mesma época. (CHARTIER, 2002, p. 56-57)

Com essa noção de História Intelectual o estudo de Monte privilegiará diferentes olhares

sobre ele, pois buscar-se-á compreender esse religioso em diferentes dimensões. Nesse sentido, ao

analisar o pensamento de Monte serão realizadas duas operações: uma que comparará as ideias do padre

com as ideias de outros intelectuais que viveram em tempos distintos do tempo vivenciado por ele;

outra que comparará as ideias dele com as ideias de outros intelectuais que viveram no mesmo tempo

dele.

No tocante ao conceito de campo intelectual, as ideias de Pierre Bourdieu serão bastante úteis.

O trabalho desse autor nos ajudará a compreender o discurso de Monte, identificando sua gramática,

suas metáforas e seus significados. Ainda fundamentados em Pierre Bourdieu compreenderemos a

história do pensamento católico no Brasil, enfatizando a análise do campo intelectual. (BOURDIEU,

1996)

Fundamentados em Bourdieu compreendemos que o campo não é uma homogeneidade, e sim,

um espaço de disputas entre vários subcampos que possuem dinâmicas específicas. Assim a produção

de Monte está vinculada a necessidade da construção de um subcampo dentro do campo religioso.

Monte almejava o fortalecimento das suas posições dentro do campo religioso. Nesse sentido, se

identificará os parceiros de Monte na constituição do seu espaço e se identificará também os seus

opositores. Assim, serão mostrados a partir da vida e da obra de Monte, os campos de disputa no seio

do catolicismo.

Fontes de Pesquisa:

As fontes de pesquisa estão associadas a seis tipos documentais: os escritos do padre/cônego

Luiz Gonzaga do Monte produzidos entre 1927 e 1944; os textos elaborados sobre o religioso durante

sua vida e após sua morte; os textos elaborados pelos autores que polemizaram com Monte; entrevistas

orais com pessoas que conviveram com Monte; acervos de instituições; imagens diretamente

relacionadas a Monte.

No mapeamento prévio das fontes só foram identificados textos produzidos por Monte a partir

da sua consagração como Padre. Grande parte desse material está contido nos 10 (dez) volumes da obra

“Antologia do Padre Monte”, todos organizadas pelo professor Jurandyr Navarro. Esses volumes

15

reúnem textos que Monte publicou em jornais, para situações específicas em algumas instituições e dois

dos seus livros. Essa “Antologia” não foi organizada para se constituir uma obra de 10 (dez) volumes. É

importante destacar que os volumes 5 e 6 dessa “Antologia” são na verdade dois livros de Monte: no

volume 5 está o “Fundamentos biológicos da castidade” e no volume 6 o “ Biologia”. Nas antologias

existem também textos de intelectuais norte-rio-grandenses que conviveram com Monte e sobre ele

escreveram ou proferiram discursos. Entre esses intelectuais estão: Nilo Pereira, Câmara Cascudo,

Hélio Dantas, Hélio Galvão, José Luiz Silva, Dom José Pereira Alves, Palmira Wanderley, Cônego Luís

Wanderley. Ao todo 10 (dez) volumes reúnem mais de 4.000 (quatro mil) páginas de textos e algumas

poucas fotografias de Monte. Ao longo da atividade de mapeamento das fontes para a construção deste

texto, já consegui para o meu acervo pessoal todos os volumes das “Antologias”.

No tocante aos textos elaborados sobre o religioso durante sua vida e após sua morte, pode-se

afirmar que alguns deles estão contidos – como já afirmamos – nas “Antologias”. Entretanto, já foi

identificada a produção e eu já digitalizei/fotografei esses textos sobre Monte que não fazem parte das

“Antologias”. Nesse caso, merece destaque as produções de Câmara de Cascudo e outros intelectuais

locais. Já existem em torno de 100 páginas de textos digitalizados/fotografados no meu acervo, mas há

possibilidades da existência de outros textos ainda não mapeados. Nesse sentido, o arquivo completo

dos jornais católicos “A Ordem”, “Diário de Natal” e “A Verdade”, estão disponíveis para consulta

pública na Cúria Metropolitana de Natal.

Além desses textos dispersos, existe a biografia (já citada) sobre padre Monte – intitulada

“Verdade e vida” -, escrita pelo Cônego Jorge O´Grady de Paiva. Esse texto é uma obra com 357

páginas, publicada, em 1947, pela Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, com a apresentação de Dom

José Pereira Alves, com a aprovação do censor da Igreja Católica do Rio de Janeiro – na época o padre

José Cabral, norte-rio-grandense e declaradamente anti-comunista -, com a autorização para impressão

assinada pelo Monsenhor Caruzo, então vigário geral do Rio de Janeiro. O autor se propôs a contar

“toda” a história de Monte (do nascimento à morte), articulando os fatos com interpretações teológicas

da bíblia e de textos doutrinários da Igreja. A biografia escrita por Paiva já faz parte do meu acervo

particular.

Ainda não consegui mapear plenamente os textos elaborados pelos autores que polemizaram,

por meio do jornal “A República”, com Monte (a saber: o médico Esmeraldo Siqueira, que debateu com

o religioso sobre a imortalidade da alma; o pastor presbiteriano Duarte, que discutiu com ele sobre o

protestantismo e, finalmente, o capitão do Exército Lourenço Branco que argumentou em torno da

intolerância da Igreja Católica). Todavia, já encontrei parte do material no acervo do jornal “A

República”, disponível para consulta no Arquivo Público do Rio Grande do Norte e no acervo digital da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

16

Antecedendo a elaboração deste texto, já foram entrevistadas oralmente (com gravação e

transcrição das informações): o professor Jurandyr Navarro, organizador das Antologias do Padre

Monte; o Monsenhor João Penha Filho e o Dom Heitor de Araújo de Sales. O Monsenhor Penha e Dom

Heitor Sales foram ex-alunos de Monte no Seminário São Pedro e desfrutaram da convivência cotidiana

de Monte. Além dessas entrevistas, já fizemos o contato (devidamente aceito) para entrevistar: o

professor de História e intelectual católico Luís Eduardo Brandão Suassuna, que faz parte da Comissão

para formular o pedido de canonização de Monte; o advogado Roberto Monte, que é sobrinho do

religioso e dirige uma ONG sobre a Memória do Rio Grande do Norte; a médica Helenita Monte

Hollanda, sobrinha do padre e (já citada como) autora de uma pequena biografia sobre ele; a sobrinha

de Monte Cristina Monte, que cuidou dos bens e da biblioteca de Dom Nivaldo Monte (irmão de Luiz

Monte) até a sua morte. Dom Nivaldo Monte agregou os livros de Luiz Monte à sua biblioteca, após a

sua morte.

Serão trabalhados os acervos sobre Monte pertencentes à Academia Norte-Rio-Grandense de

Letras, no Instituto Histórico e Geográfico, no Seminário São Pedro, no Colégio Marista e no Colégio

Atheneu. Nesses arquivos serão procurados indícios das práticas cotidianas de Monte e de suas relações

pessoais.

Haverá uma preocupação com as imagens diretamente relacionadas a Monte. Nesse sentido,

tanto serão procuradas e analisadas fotografias individuais de Monte e dele com outros personagens

quanto às fotografias que expressem elementos de sua obra e das suas vivências cotidianas, algumas

delas já possuo em meu acervo particular.

Neste texto, foram apresentadas as ideias iniciais do meu projeto de Tese de Doutorado que

está sendo desenvolvido no PPGH da UNISINOS. A pesquisa está apenas começando e muitas

mudanças ainda serão realizadas.

Referências:

ARRAIS, Raimundo. In: CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. 4 ed. Natal: EDUFRN, 2010.

Posfácio.

BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.

BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e interpretes. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

CASCUDO, Luís da Câmara. Bolsa de estudos eclesiásticos. (04.08.1944, publicado originalmente no Jornal A

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DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. Trad. Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo:

EDUSP, 2009.

GOMES, Ângela de Castro. Essa gente do Rio. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro. n 11,1993.

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sala do próprio Dom Heitor, bispo emérito de Natal, na Cúria Metropolitana da Catedral da Arquidiocese de

Natal.

LORIGA, Sabina. O pequeno X: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica. 2011. Coleções: História e

Historiografia.

NAVARRO, Jurandyr. Natal, 30 de junho de 2009. Entrevista concedida a Bruna Rafaela de Lima, na sala de

reunião do IHGRN.

_______. Padre Luiz Monte: “aurora sem crepúsculo”. Natal: IHGRN, 2015 (texto escrito sob encomenda para

atender a uma pergunta de Bruna Rafaela de Lima Lopes).

NAVARRO, Jurandyr (Org.). Antologia do Padre Monte. Natal/RN: Fundação José Augusto. v.01, 1976.

PAIVA, Jorge O’ Grady. Verdade e Vida. 2º. Ed. Natal: Ed. Gráfica Nordeste, 1996. (A primeira edição dessa

obra foi publicada no Rio de Janeiro em 1947).

PENHA FILHO, João. Natal, 19 de junho de 2009. Entrevista concedida a Bruna Rafaela de Lima na residência

do padre/monsenhor João Penha Filho no bairro do Alecrim em Natal/RN..

PEREIRA, Nilo. O Padre Luiz Gonzaga do Monte, santo e sábio. Revista da Academia Norte-rio-grandense de

Letras. Natal/RN, 1971. ano XX. nº.9. p. 134-143.

RODRIGUES, Cândido Moreira. A ordem: uma revista de intelectuais católicos (1934-1945). Belo Horizonte:

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VELLOSO, Mônica Pimenta. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação

Getúlio Vargas / Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, 1987.