a toxicomania não é mais o que era

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    A toxicomania no maiso queera1

    Autor: Antnio Beneti

    Psiquiatra e psicanalista, Analista Membro da Escola (A.M.E.) da EBP-CF /AMPEscola

    Brasileira de Psicanlise do Campo Freudiano / Associao Mundial de Psicanlise.

    E-mail:[email protected].

    Resumo: O autor aborda a mudana nas formas de uso e consumo de drogas, considerando o

    ontem e o hoje, o Outro de ontem, centrado na Lei do Pai e nos Ideais, e o Outro de hoje que

    no existe, do contemporneo comandado pelo mais-de-gozar.

    Palavras-chave: discurso capitalista, consumo, violncia, gozo cnico.

    Dr ug abuseisno morewhat it was

    Abstract:The author discusses the change in the forms of use and consumption of drugs,

    considering yesterday and today, the Other of yesterday, centered on the Law of the Father

    and the Ideal, and the Other of today that does not exist, the contemporary controlled by the

    more-to-enjoy.

    K eywords: capitalist speech, consumption, violence, cynical joy.

    A toxicomania no maiso queera

    Antnio Beneti

    O mundo das toxicomanias, em 28 anos, aqui em Belo Horizonte, mudou. No

    Brasil mudou, no mundo mudou! Ento, temos que pensar no fenmeno da toxicomania

    contempornea, seu lugar, sua funo, sem excluso da singularidade de cada um dos

    consumidores. Foi assim que eu desenvolvi o que eu vou colocar para vocs, no sentido de

    algumas consideraes para se pensar a questo do tratamento do toxicmano hoje. Isso

    porque, se, nesses 28 anos, esse mundo mudou, temos que pensar na toxicomania ontem ehoje, para refletir sobre o tratamento do toxicmano ontem e hoje.

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    Eu entendo que, no tratamento do toxicmano, hoje, ns estamos engatinhando,

    estamos num momento de no saber como fazer com as novas formas da toxicomania; e

    entendo que isso aqui nos aproxima hoje do campo da psicanlise e do campo da sade

    mental. evidente que se Lacan nos deixou no recuar diante da psicose, e ns assim o

    fazemos hoje, ontem, no recuamos diante da toxicomania, do tratamento do toxicmano. Isso

    a partir do estabelecimento de um princpio tico no segregativo: Necessrio hoje no

    recuar diante desse real contemporneo, que o consumo de drogas. Ento, enquanto

    analista, estou de acordo com ele, devemos desejar saber o que se passa e nos posicionarmos a

    partir do que temos como princpio poltico (no segregao do sujeito do inconsciente), com

    suas estratgias e tticas para lidar com a questo.

    Ento, o que ocorria ontem? Ontem, em Belo Horizonteestvamos em 1983

    nossos usurios de drogas, indistintamente, quando eram surpreendidos, pegos usando droga,

    eram encarceradosno depsito de presos da Gameleira objetos de tratamentoda

    polcia. No havia a inscrio desse tipo de sujeito nos campos da medicina, da psiquiatria e

    da sade mental. Nem mesmo um discurso jurdico tinha tanta importncia nessa poca,

    mesmo j com a existncia da presena dos advogados, do relaxamento da priso, mesmo com somente os traficantes, que eram poucos, sendo enquadrados numa lei, como ato

    criminoso, etc.

    Na poca, qual o ato que calculamos fazer e fizemos?

    Vamos escutar esse tipo de sujeito, vamos dar a palavra a esse tipo de

    sujeito, desejando saber por que ele consome essa substncia-,

    ; por que ele se droga; qual o lugar e a funo desse objeto droga nas trs

    dimenses da economia psquica do sujeito (Real, Simblica e Imaginria); por que isso eraimportante para o sujeito; Foi assim que comeamos a construir

    no segregativa com o sujeito dito (pelo Outro do social) toxic.

    Nessa poca eu vou dizer o mundo de ontemcom uma formulazinha:

    grando, o I maisculo, maior que o aminsculo (I>a). Os deais na cultura maiores que os

    objetos mais-de-gozar. Isso, ontem. Ento, toda clnica construda no tratamento do sujeito

    dito toxicmano, nomeado assim, porque consumia droga, teria que ser referida a essa

    estrutura de funcionamento do mundo, estrutura de funcionamento da cultura. A, tnhamos

    ento que o sujeito podia, muitas vezes, passar ao ato de se drogar, e ele passava a se drogar

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    com o objeto fora da lei. Chamvamos isso transgressoEra uma passagem-ao-

    ato transgressiva, nomeado, o sujeito, enquanto toxicmano. Comeamos a pensar que

    deveramos escutar o sujeito nessa passagem-ao-ato, em sua singularidade, um-a-um.

    Introduzimos, ento, no que foi possvel, um deslocamento do problema, que

    estava no campo policial, primeiro para o campo mdico, e depois para o campo, talvez eu

    deva chamar, da sade mental. Porque no era a psiquiatria, a sade mental no tinha essa

    fora, era um trabalho praticamente isolado, iniciativa de alguns analistas, no caso, eu, Jsus

    Santiago e Jos Mrio Simil Cordeiro, que fomos para construir esse servio.

    Abrimos espao, ento, para profissionais orientados analiticamente, com

    informao analtica, que estavam na experincia analtica enquanto analisantes e analistas em

    formao, para comear a escutar esses sujeitos, dentro de um determinado lugar, que viemos

    a chamar de Centro Mineiro de Toxicomania. No sem antes passar como pontos

    de um percurso, por uma instituio chamada de Centro de Recuperao Social,

    onde eles estavam colocados como delinquentes, no ento depsito da Gameleira, como

    marginais. Depois, para Centro de Reintegrao Social, e depois, Centro Mineiro de

    Toxicomania. Se ns prestarmos ateno a esses dois significantes, recuperao social ereintegrao social,o sujeito estava colocado , ou seja, deveria reintegrar-se a um bom

    tipo de comportamento. Se ns pensarmos bem nesse primeiro momento, que era ento

    encarcerar o toxicmano para proteger a sociedade, j operava um fundamento da lgica

    manicomial que dade proteo-exclusNsteinternamospara teproteger,mas,ao

    mesmo tempo, te exclumos do lao social o principal fundamento da lgica

    manicomial.

    a esse fundamento manicomial que ns temos que estar atentos hoje.Fundamento que, politicamente, pe a nfase, o acento, no objeto droga, o que leva a uma

    nomeao do sujeito generalizadamente, independentemente da singularidade, da

    subjetividade, das relaes do sujeito do inconsciente com o mais-de-gozar, com o gozo,

    colocando a dimenso de uma dade da proteo-excluso que ns devemos combater. Esse

    o divisor de guas, o ponto de combate: o princpio de tratamento centrado na abstinncia

    do consumo com excluso da subjetividade, da singularidade de cada usurio ou consumidor.

    O pressuposto oficiala droga faz o toxicmano que nos afirma imperativamente que se

    voc usa a droga, voc toxicmano, e que todos que se drogam so toxicmanos, determina

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    so todos iguais, com uma homogeneizao nominativa e um tratamento dos chamados

    toxicmanos numa clnica que chama segregativa. Segregativa no sentido de que, a

    partir de um ns, todos so comandados por esse nome, excluindo a subjetividade. Vou

    colocar no quadro o que chamamos de segregao:

    Discurso do Inconsciente

    No lugar de S1, eu tenho um nome: toxicmano. Temos um: Voc

    toxicmano, e isso comanda um S2, saber fazer do sujeito que consome a droga para

    sustentar essa nomeao vinda do Outro, do s para fazer

    gozarlugar do mais-de-gozar essa nomeao enquanto produo nesse discurso, o discurso

    do inconsciente. No lugar da verdade, nesse discurso, enquanto verdade dessa lgica

    teraputica, centrada no princpio da abstinncia, ns temos a excluso do sujeito do

    inconsciente. Ento, a excluso da subjetividade inconsciente. Uma clnica que chamamosde segregativa. No discurso da segregao, temos a amputao do sujeito do inconsciente em

    suas relaes com o mais-de-gozar. o discurso do mestre amputado no lugar da verdade,

    transformando-se num discurso segregativo de trs termos apenas:

    Discurso da Segregao

    Ento, ns temos que estar atentos com o que, hoje, isso pode operar novamente,

    vamos dizer assim: todos os que usaram crack ou que usam c c

    que no bem assim. Ento, o sujeito est fora. Temos que introduzir o sujeito e enfrentar

    toda essa lgica do discurso oficial que diz que todos os que usam drogas so toxicmanos, e

    que a droga faz o toxicmano.

    O que fizemos? Introduzimos a subverso dessa lgica com uma frase vinda de

    nosso colega e amigo francs Hugo Freda (na ocasio, Diretor do Centro de Acolhimento e

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    Tratamento de Toxicmanos de Reims, Frana), que trouxemos a Belo Horizonte para

    fundarmos nosso servio no campo tico do tratamento dos toxicmanos. Com as mesmas

    palavras, Hugo modificou essa frase: .

    Se a droga faz o toxicmano, Hugo Freda props que: Para eu abrir uma

    porta,eu tenho queconstruir uma chave,ea minha chave a seguinte: o toxicmano faz a

    droga. So as mesmas palavras, as mesmas letras, s que a nfase que era posta no objeto

    droga posta, agora, no sujeito.

    Introduz-se, ento, o sujeito do inconsciente, l onde no havia esse sujeito ele

    estava excludo. Restitui-se ele ao lugar dele, e restitui-se o discurso que rompe com a

    segregao. Ento, a introduo do sujeito do inconsciente nas suas relaes com o gozo.

    Dar a palavra ao sujeito para que ele venha a nos dizer o que ele, inconscientemente, quer

    com o consumo de drogas. O que ele quer com esse objeto e no o porqu do uso de drogas.

    Qual a importncia desse objeto, qual o lugar desse objeto, qual a funo desse objeto droga.

    Ns introduzimos o sujeito, introduzimos a singularidade do sujeito, as

    particularidades das estruturas clnicas. Era assim na poca, poca de uma clnica psicanaltica

    estrutural, das estruturas clnicas Neuroses, Psicoses e Perverses caracterstica doprimeiro ensino de Lacan. Ento, rompemos com o princpio de abstinncia, porque ns

    percebamos que, quando o sujeito parava de se drogar, em muitos deles, eclodia um quadro

    psictico, desencadeava-se um quadro psictico, o que j furava aquela lgica, permitindo-

    nos propor que: nem todos que se drogam so toxicmanos. Muitos que se drogam so

    psicticos. Isso, centrado na escuta, nos sinais da forcluso do Nome-do-Pai, impedindo-nos

    de pensar a questo generalizadamente.

    E havia outros que no aceitavam essa nomeao de toxicmanos. Eles no aaceitavam porque foram surpreendidos se drogando, que um outro, representante desse Outro

    do social, dissesse oc toxicmano Eu no sou toxicmano, eu uso

    droga quando vou a uma festa, quando vou sair com os amigos, recreativamente Uma

    posio de consumo de drogas com a droga posta como um S1 identificatrio grupal, de

    enlaamento social.

    Ento, distinguimos usurios de drogas, geralmente neurticos, e os psicticos

    que faziam desse uso de droga algo que viria a substituir a produo de um delrio, impedindo

    a produo desse delrio, como uma suplncia imaginria a isso que Lacan chamou de

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    forcluso do Nome-do-Pai. E existiam os outros que, de fato, no eram psicticos, no eram

    neurticos, e sustentavam essa modalidade de gozo, do consumo de drogas, com certa

    caracterstica de ironia em relao lei. Eles sempre transgrediam as normas da instituio;

    no se comportavam como os psicticos, nem como os neurticos. a, nesse ponto, que

    escutamos, um tempo depois, um texto de Jacques-Alain Miller"Algumas consideraes

    sobre gozo auto-ertico" em que ele introduz a dimenso de um gozo cnico na

    toxicomania, um gozo autoertico, fazendo meno ao cinismo de Digenes, o cnico.

    Cinismo com relao aos ideais da polisgrega. Digenes se masturbava em pblico, gozando,

    extraindo o gozo do prprio corpo, dispensando os significantes que vinham do Outro da

    cultura grega, do corpo de Ideais da polisgrega. Ento, a esse gozo, Miller chamou cnico.

    Isso nos ajudou muito clinicamente.

    Ento, vejam bem que, a partir desse momento, h um enriquecimento da clnica

    com o toxicmano, trabalhando um-a-um para saber o lugar e a funo desse objeto droga

    para a economia psquica do sujeito.

    verdade que, naquela poca, e isso mudou tambm, as drogas eram quais?

    Optalidon, barbitricos, analgsicos, maconha, os xaropes antitussgenos base de codenaque produziam os boiadeiros, assim chamados porque, aps beberem um ou dois vidros

    desses xaropes, ficavam pastando, andando cambaleando, com alterao de conscincia.

    Eram chamados de boiadeirospor eles mesmos. O curioso que eles, s vezes, chegavam a

    ter convulses tnico-clnicas que chamavam de pala palaera interpretada como um

    ponto de basta no consumo da droga, uma convulso que fazia as vezes de -

    interditor do excesso do mais-de-gozar. Era preciso atingir a palapara depois parar de se

    drogar. Havia ainda o tetracloroetileno (um vermfugo), a metaqualona (Mandrix e Mequalon,hipnticos), o LSD e a cocana. Essas eram as drogas de ontem.

    Ento, vejam bem que ns nos posicionamos a com a ferramenta que temos:

    com o discurso analtico, a tica da psicanlise enquanto bem-dizer e um combate clnica

    oficial segregativa. Tnhamos para ns o seguinte: h casos que no conseguimos tratar sem

    uma parceria institucional, o que justificava a instituio para tratamento dos toxicmanos. E

    ns dizamos que a instituio elimina, forclui, no deixa que o discurso analtico seja

    includo entre os discursos que estruturam o lugar teraputico que a instituio. A instituio

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    o lugar dos quatro discursos formalizados por Lacan (mestre, histrico, universitrio e

    analtico).

    Ento, deve haver o analtico. Isso fundou de alguma maneira essa nossa

    instituio, que no trabalhava com internao. Tinha o hospital-dia e o ambulatrio. Era

    assim que dirigamos os tratamentos nesses espaos institucionais.

    Ento, ns dissemos: Centro Mineiro de Toxicomania. Toxicomania a no nada

    mais, nada menos, que um significante que utilizamos estrategicamente para justificar a

    instituio e trazer os toxicmanos a ela, manos azendo um

    semblante de que estvamos preocupados com o objeto droga, mas a preocupao era mais

    alm do objeto droga, era com o sujeito do inconsciente em suas relaes com o mais-de-

    gozar.

    E qual era a poltica? Dar a palavra ao sujeito da fala e estabelecer uma clnica sob

    transferncia, um-a-um nesse tratamento. Tratava-se de estabelecer, entre os princpios de

    cura, na clnica dos toxicmanos, princpios fundamentais para uma clnica no segregativa,

    fora da lgica manicomial, fora da dade da proteo-excluso do lao social, fora do

    princpio da abstinncia, que se aplica a um universal que a droga faz o toxicmano, ecomo o DSM-IV, que coloca o todos iguais e

    Os princpios eram: O toxicmano faz a droga.

    1- Introduo do sujeito do inconsciente.

    2- Introduo de uma clnica sob transferncia.

    3- Nem todos que se drogam so toxicmanos verdadeiros.

    4- Questo da singularidade de cada um em questo.

    5- A Instituio enquanto lugar teraputico.6- A Instituio enquanto lugar dos quatro discursos tem que incluir o discurso do

    analista.

    Isso ontem.

    O que ocorre hoje? Hoje, h uma mudana radical: os objetos mais-de-gozar

    maiores do que os ideais (I

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    Hoje, podemos dizer de uma outra forma: Todos toxicmanos

    consumistas, consumidores, no somente dessas drogas ditas ilcitas, foras da lei, mas as

    drogas legalizadas que todo mundo, praticamente, consome.

    Eu gostei muito de um texto que chegou a partir do Frum de Sade Mental para

    eu ler, que se chama "A Doena Mental Medicalizada" (in Revista Piau, n.59). Eu

    recomendo a leitura desse texto para todo mundo psi. Impressionante esse texto. um tema

    que me interessa muito, e a podemos observar, escutar, como o discurso da cincia via

    indstria farmacutica constri, fabrica, o todo mundo sedrogando.

    Ento, o mundo mudou! A que entra a questo de que essa mudana implica a

    mudana do mestre de ontem para o mestre de hoje. Se o mestre de ontem era o discurso do

    mestre, discurso do inconsciente, hoje, ns temos o mestre contemporneo, o discurso

    capitalista, em que h um declnio dos significantes dos Ideais na cultura. Assim, o S1cai, o

    sujeito sobe, e aqui ns temos o saber da cincia produzindo objetos mais-de-gozar.

    Discurso Capitalista

    O discurso da cincia, inerente ao discurso capitalista, responsvel, ento, pela

    produo dos gadgets, das drogas supostamente teraputicas, e por esse consumo

    impressionante de drogas, de qumicas, de ascenso do saber qumico ao comando, colocando

    os consumidores como objetos comandados por esse saber qumico.

    Ento, o que ocorre, hoje, como essa mudana e as mudanas na sociedade?

    De repente, aparece uma populao margem dos laos sociais, margem do

    sistema de produo e que consome uma substncia quase que de forma epidmica, que

    coloca a dimenso do sujeito como resto, dejeto, dentro dessa sociedade de hoje, resto social,

    resto dessa produo, desse discurso, simples objetos degradados e que colocam uma

    dimenso de passagem ao ato diferente daquela que presenciamos ontem.

    E a que a coisa preocupante. E por isso que estamos aqui reunidos.

    Como fazer com isso? Porque a preponderncia da passagem-ao-ato homicida,

    no mais uma passagem ao ato transgressiva, no sentido de se conseguir algo do qual se

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    podia gozar mais alm do interdito da lei. uma passagem-ao-ato homicida, uma associao

    com o trfico que tem um poder econmico muito forte e coloca a dimenso de uma

    periculosidade social epidmica. Ento, ns vivemos numa dimenso de risco o tempo todo

    de bala perdida, de gente matando, criana morrendo, sendo assassinada, e no temos muita

    soluo at o momento.

    Eu li aquela revista Brasileiros,em que tem um colega, Antnio Lancetti, eu no

    o conheo, dizendo da passagem do basagliano Franco Rotelli por So Paulo. Quando eles

    foram visitar a Cracolndia, ele falou: Isso ummanicmio a cu aberto! uma expresso

    importante, mas ser que a sada seria um manicmio a cu fechado? No creio, porque a

    entrariam todos dentro dessa lgica, ns retrocederamos e perderamos muito daquilo que

    conseguimos fazer a partir de 79. Foi a reforma psiquitrica. Mesmo que tenhamos muitas

    dificuldades, h muitos avanos. Seria, ento, algo da ordem de um retrocesso.

    Dever-se-ia pensar uma nova modalidade de lidar com essas novas toxicomanias,

    diferente da do mundo de ontem. E o crack o representante maior. Ns temos, hoje, drogas

    diferentes, com o discurso da cincia produzindo o ecstasy, skank, xi, so drogas

    completamente violentas, que colocam o sujeito numa alienao, numa posio de objeto,resto degradado, lixo da sociedade, que quando sai dessa dimenso, sob a forma de uma

    passagem-ao-ato homicida, como se fossem delinquentes, mas ento vamos retroceder. Esse

    um problema que ns temos que pensar: como construir solues novas, contemporneas.

    Ento o que temos a pensar? Se a instituio mais adequada ontem era a

    instituio enquanto lugar teraputico, lugar dos quatro discursos, fora da dade da lgica

    manicomial proteo-excluso, como pensar uma instituio hoje que considere o discurso

    analtico como algo muito importante, para zelar por essa no excluso do sujeito, para zelarpor essa no segregao, sabendo que existe mais um discurso dentro de qualquer instituio

    que venha a ser fundada hoje, que o discurso capitalista?

    Vai ser ele que vai fundar. Ento, ns teramos que fazer parceria sim, discurso do

    analista com o discurso do mestre, discurso do estado, discurso externo, discurso de

    instituio de sade mental, sabendo que, na verdade, ns temos algo coletivamente, chamado

    o coletivo desses, o conjunto desses quatro discursos para combater um que o discurso

    capitalista, seno ns vamos ter instituies capitalistas malucas e no vamos poder fazer

    quase nada. O motor desse discurso o discurso da cincia, vamos dizer assim, da cincia e

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    tecnologia, e no vai ser difcil pensar que ns teremos futuras instituies, manicmios a cu

    fechado, para tratamento dos crackeiros, com drogas, com substncias, porque tudo vai ser

    pensado no nvel do crebro. Ento, para tratar o consumo de droga, ns vamos fazer outro

    consumo de droga para tratar esse tipo de sujeito, excluindo de novo a dimenso da

    subjetividade, da singularidade, do um-a-um, do caso a caso.

    Evidentemente, h situaes em que o sujeito est beira da morte; h situaes

    dramticas, quando devemos coloc-lo numa clnica, pelo menos durante uma semana, para

    que ele se recupere, se alimente, se hidrate, para depois seguir um tratamento.

    Bom, eu estava dizendo desse quadro dramtico, que o crack preocupa mesmo.

    Ontem, eu vi um desses jornais, Aqui, esses que tm sangue, esses tabloidezinhos, e vi uma

    coisa impressionante: aparece uma foto de dois ps do sujeito com sapato, acorrentado. A me

    desesperada, no sabia mais o que fazer. Eu entendi assim, que ele foi pego pelo p, amarrado

    ali, para que o sujeito no sasse. nica maneira queeu tivefoi amarrar ospsdelepara ele

    no sair para a rua,no roubar ascoisas,no vender isso,no sedrogar,porqueeu tenho

    quetrabalhar para sustentar meusfilhos .

    Ento, ns temos situaes que chegam a esse nvel dramtico e violento, dosujeito correndo risco de vida, de matar ou de morrer. Bom, minha opinio a de que

    qualquer tentativa de se construir algo que no seja simplesmente dar a palavra, e que

    tenhamos que proteger o indivduo e resgatar ali o sujeito, no deve passar pela excluso

    social.

    Como pensar algum lugar teraputico? Primeiro: hora de somar os esforos

    que inclua decididamente os analistas, o pessoal da sade mental, as equipes

    multidisciplinares para combater esse mestre contemporneo que vem ditando todas asnormas baseadas no Deus cpara tratar tudo.

    Eu fico por aqui.

    Obrigado!

    1Interveno pronunciada na VII Conversao da Seo Clnica do IPSMMG, realizada em 10/09/2011. Textoestabelecido por Ana Elisa Maciel, revisado por Mrcia Mezncio e pelo autor.