a terceira metade

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A TERCEIRA METADE 1

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Parte final da trilogia "Os Filhos de Próspero" de Ruy Duarte de Carvalho, publicado pelos Livros Cotovia.

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A TERCEIRA METADE

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Título: A Terceira Metade

© Ruy Duarte de Carvalhoe Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2009

dos desenhos © Ruy Duarte de Carvalho

ISBN 978-972-795-282-3

Ruy Duarte de Carvalho

Os Filhos de Próspero:

A TERCEIRA METADE

romance

Cotovia

volumes anteriores de Os Filhos de Próspero:

OS PAPÉIS DO INGLÊS (2002)AS PAISAGENS PROPÍCIAS (2005)

… e agora que tomasteo leite do saber

diz-me, Silé, da corda que te exponhoquais são os nós vazios

os nós misteriososos investidos sóis e os nomes destes…

(in LAVRA: Koumen,texto iniciático dos pastores Peul)

Índice

TRÊS FRAGMENTOS INTRODUTÓRIOS

… FALAR A GENTE FALA… p. 13

… DO CADERNO DO AUTOR… 20

… DO CADERNO DO NARRADOR…. 23

LIVRO I:

OS SUIS & OS SÓS

I DAS CONFIGURAÇÕES DO MUNDO

1 – LUCIRA 292 – TYIKWEIA 383 – TYIKWEIA 2 50

II DAS DIREÇÕES DO MUNDO

4 – DE PEIXE E PRAIAS 635 – DE UM LIVRO E DOIS PÓS-GUERRAS 726 – RUÍNAS SÓ, JÁ ENTÃO 817 – ESTÓRIA 88

III DOS HORIZONTES DO MUNDO

8 – BREVE 999 – SABERES 101

10 – FOZ DO KUNENE 11511 – CALULO 13012 – CALULO 2 13713 – KUNENE 15114 – KUNENE 2 16315 – SEMIBREVE 173

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LIVRO II:

OS SÓIS & OS NÓS

IV DAS DÉCADAS ou DA TEORIA GERAL DO SILÊNCIO

16 – DO CADERNO DO AUTOR – CALIFÓRNIA 17717 – CHIBIBA 18318 – CHIBIBA 2 18919 – TYIKWEIA 3 19820 – TYIKWEIA 4 20821 – PALÁCIO 21522 – YONA 22023 – DA GRAVAÇÃO DO ROSTO 225

V OS SÓIS… ou ROMANCE AUSTRAL

24 – DO CADERNO DO AUTOR – CALIFÓRNIA 2 23325 – INTRODUÇÃO A UM ROMANCE AUSTRAL 23926 – PINK ELEPHANTS EM CAMPO DE TERMINALIA PRUNOIDES 24727 – WHITE LADY 25528 – ESSAS RAÇAS TODAS 26329 – WALVIS BAY 26930 – SANTA HELENA ou VERSÃO MUCUÍSSA… 28331 – DO CADERNO DO AUTOR – CALIFÓRNIA 3 293

LIVRO III:

OS NÓS & OS ‘NÓIS’

VI … & OS NÓS

32 – KAMBENO 30333 – ADIVINHAÇÕES + ULISSES 31034 – ESCRITAS 31635 – DO CADERNO DO AUTOR – SWAKOPMUND 32636 – K 32937 – HOMENS & BICHOS 33738 – DA GRAVAÇÃO DO ROSTO 2 35039 – KAMBENO 2 362

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VII SENTENÇAS

40 – DO CADERNO DO AUTOR – PRÉ-FINAL 37141 – GREGOS, NEGROS & O MEU AMIGO TOM 37542 – IF 38543 – PRAGMATISMOS 39344 – UMA GRANDE VOLTA PARADIGMÁTICA 39745 – DOS NÓS DA PALAVRA 40646 – DO CADERNO DO AUTOR – TRAVELLING DE MEIA HORA 41347 – SENTENÇAS 41448 – DO CADERNO DO AUTOR – FINAL 421

P.S. 421

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TRÊS FRAGMENTOS INTRODUTÓRIOS

.................. falar a gente fala, e se entendemos......... escreverporém é outra cousa......... ainda assim, Paulino, você já deubem conta?........ andamos a falar dessas viagens, e a cumpri--las, ultrapassa nesta altura para cima de dez anos.......... noburaco do Sayona, com a serra da Chela à vista mas ainda aonível da rampa de chão que vem do mar e é deserto, foiquando, numa remota noite de conversa ao fogo, nós umavez combinamos que você quando pudesse havia de subiraté aos limites do leste da Huíla, além da escarpa e das ser-ras, para ir ver se ainda conseguia recuperar, nos longes jádos ganguelas, uns restos de papéis que um avô seu é que ostinha levado para lá nos recuados tempos do marfim, trazi-dos de um acampamento de caça no Kubango onde a folhastantas um lorde inglês virou o cano da própria arma con-tra o peito e arrebentou-se ali, ao lado do cadáver de umgrego que ele mesmo tinha abatido já também, semanasatrás...........

............ e quando depois de você ter ido lá, nesses parentesseus dos limites da Huíla, deu para congeminar, com as notí-cias que baixou com elas, que esses papéis podiam muitobem era afinal estar nas mãos de um homem que moravacá em baixo, no deserto, mas mais afastado, para lá daMuhunda, perto do Kuroka — e isso é que veio a dardepois nesse enredo todo até termos acabado por lhes vir aencontrar, a esses papéis e como a um tesouro, dentro de

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uma velha mala de folha de zinco —, ainda aí foi você que ameu pedido rumou dessa vez mas foi ao sul e em frente, napista de um tal branco da Namíbia de quem havia ali tam-bém papéis guardados, muito bizarramente, para acabarpor dar com ele na crestada cidade de Opuho, capital dorugoso Kaôco, província da plácida Namíbia, a sul do obs-tinado Kunene........... o qual ‘branco da Namíbia’ nos aca-bou por impor depois, para refazer-lhe a estória já com onome de SRO ou Severo, as rotas férteis da mesma derivaque lhe tinha arrastado a ele por aqueles suis durante paraaí vinte anos, mais de seis escondido no meio do deserto, atésumir, enfim, no aeroporto da Cidade do Cabo com um ok

num bilhete de avião não sabemos bem com destino paraonde......... ora isso foi já faz um ror de tempo........... já andeium tanto e tal por essa Namíbia fora, até hoje, desde essaaltura........ a ponto de a gente agora, Paulino, já não termosa mesma idade que era a nossa então.......... o tempo do prin-cípio desta estória pertence já a um passado que é nossotambém....... tem passados, sim, que não acabam nunca.....ou então não tem passado que não exista só, refeito, numqualquer presente que o pré-faz sempre de novo, e dife-rente............ mas isso é outra conversa e para as conversasque eu quero ter com você agora, o que a mim mais meespanta é andarmos assim ainda a trabalhar juntos e aesquiar de jipe pelas dambas delfinas destes desertos todos,sempre a falar do mesmo mas nunca, jamais, da mesmamaneira, porque afinal falamos não é de um qualquer pas-sado, nosso ou alheio, mas de um processo em curso...........falamos antes, de cada vez de novo, é mais para garantirdevir à estória....... e é para encerrá-la, a essa longa estória,desta vez agora?......... e isso é coisa para saber maiscomo?.........

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........... tanto assim que eu poderia, hoje, guiado ainda pelomesmo engodo, não estar exato aqui onde é que estouagora, no Cabo das Agulhas, extremo sul da África, mas simna Patagónia, extremo sul da América........ e bastou só, parapoder estar tanto lá como estou aqui agora, que um sinaldesse tal de ‘branco da Namíbia’, mulato claro nascido naGabela, me alcançasse num inesperado sítio informático deuma intestina curva dos sertões interiores do Estado daBahia, no Brasil......... assinada SRO, era uma mensagem emque ele me pedia, sem mais explicações, para dar na cidadedo Cabo, quando pudesse, uma olhada em livros e docu-mentos de fácil acesso nos arquivos históricos de lá, a ver senão constava, entre as referências a negros que tivessemacompanhado as colónias desses sulafricanos brancos des-cendentes de holandeses e de franceses saídas dali para aArgentina depois da guerra anglo-boer, um nome que eleindicava e que não vinha mencionado, esclarecia, num livroamericano recente sobre o assunto..........

.......... por pouco até, sendo altura de encerrar com algumbrio a viagem que eu andava então fazendo pelo Brasil, nãocedi à tentação de entender que era para a Patagónia, deonde a mensagem saía, que aquela desmedida sulamericaname estava armadilhando o engodo de um rumor de argenti-nas extremas e ventosas, platôs de sal, rampas de abandono,um sul assim tão extenso e tão moroso.... poderia muitobem ter-me acontecido, em vez de acolher de uma maneiradistante e soft esse reenvolvimento com a personagem do‘branco da Namíbia’, ter mas é seguido logo direto para láver se esclarecia antes do mais o que era essa de SRO andaragora pela Patagónia a envolver-se, ainda desta vez, emmemórias boers................. mas quando depois o desenrolarnormal do filme da minha vida me devolveu a Luanda,

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como era de prever, e me encaminhou a seguir para umaescala muito mais comum e próxima, Windhoek, na Namí-bia, já tinha dado tempo para ponderar que antes de aco-meter nem que fosse só de raspão um lugar tão distante elongínquo como a cidade de Sarmiento, encravada entrelimosos e desolados lagos azul turquesa de altitudes quaseandinas, o volume de leituras a desbaratar ia ser uma coisaimensa, umas para usufruir daquilo que certos registospudessem dar-me a ver e a entender, e outras para depois,no caso de vir a escrever sobre isso, ter a certeza de não estara chover no molhado........... a Patagónia é a Patagónia edesde que António Pigafetta — o mesmo que ao mesmotempo recolheu também informações sobre esta parte daÁfrica que é hoje a nossa Angola — deu notícia ao oci-dente dessa abissal porção de sul do mundo oferecida aosperplexos olhares e às delirantes leituras da frota de Fernãode Magalhães, o inusitado de tais paragens não deixoununca mais de estimular a fantasia e a ruminação de gentede estatura tão intimidante como Shakespeare, Gongora,Donne, Coleridge, Melville e Poe......... melhor seria entãotentar fazer como Paul Theroux, contemporâneo nosso,natural do Massachusets e devoto rendido a tal ordem dehorizontes, que não partiu para lá senão muito ciente de queia enfrentar o que há de mais vazio e de mais desconhecidona América, fértil viveiro, portanto, de lendas, meias-verda-des e falsas informações.... quanto mais longínquas são asdistâncias a percorrer, diz ele, maiores são as ilusões que elasalimentam...... e foi isso talvez que lhe permitiu formularcom tal apuro aquilo a que ele chama de paradoxo patagão:flores minúsculas num espaço imenso, nada de intermédioentre a imensidão do deserto e a visão de uma pequenaflor....... imprudência mais grave ainda, aliás, seria não ter

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em conta que o próprio papa desse tipo de literatura via-geira atual que em grande medida foi ele a colocar em vogaagora, o finado Bruce Chatwin, lidou também ali de pertocom descendentes desses tais sulafricanos boers enquantoandou por lá a viajar para urdir depois essa soberba obraque é Na Patagónia, livro muito maior do que todos aquelesque uma imensa falange de epígonos diretos seus vem pro-duzindo para aproveitar-lhe a vaga e o favor de que goza noscírculos mundanos de uma classe média alta universal, ondetodo o mundo diz que o conhece, respeita e até venera........o qual livro, para mais, ele introduz com uma não menosbrilhante citação extraída da não menos soberba Prosa doTransiberiano do não menos celebrado Blaise Cendrars:..... já não há senão a Patagónia, a Patagónia, que convenha àminha imensa tristeza..........

.......... mas para o que me diz respeito e interessa aqui agora,também não só as minhas perpétuas e recicláveis tristezasbem poderiam esperar uma época mais, antes de as deixarencaminharem-me a vida atrás de panaceias patagóni-cas........... a própria mensagem de SRO me aliciava pararumos de uma muito mais justificada ansiedade.............quando eu quisesse, dizia lá também, podia ir recolher umacassete que o seu tio Trindade, personagem das nossas rela-ções, havia de ter entretanto gravada e pronta, de formainesperada e outra vez bizarra, para me entregar num lugarescondido à beira do rio Kunene.........

*

..... esse tio dele chamado Trindade é esse mesmo, sim, Pau-lino..... esse mesmo mais-velho pequenino que foi você, tam-

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bém, o primeiro de nós a encontrar-lhe no caminho da via-gem que fez à procura de SRO e que o próprio nos contoudepois, nas conversas que andamos a ter com ele, ter-lheachado a morar já num lugar chamado Kambeno, nessaparte do nosso extremo sudoeste que encosta ao noroestenamibiano, quando a mulher que lhe escolheu para marido,andava ele escondido pelos fundos do Kuroka fazia nessaaltura para cima já de um bom par de anos, lhe conduziu até lá.......

........... era pois então, segundo a tal mensagem, eu entrarem contacto com esse mais-velho Trindade, no Kambeno, eele teria para entregar-me, lá, uma cassete com rezas da suainteira lavra, gravadas — e era aqui que a coisa me atingiaem pleno — a partir da pauta ‘para entoar hinos, salmos epreces clânicas’, da tábua ‘para improvisar poesia invocatória’,que eu tinha publicado uns anos antes............ SRO, nos últi-mos tempos da sua residência na Namíbia, tinha entreguecópia desse texto ao velho, junto com um gravador e pilhas,ao mesmo tempo que lhe dizia você, meu tio, é homem detanta reza e ao mesmo tempo de tão perfeita fala em qual-quer língua, e tão amigo de espantar o mundo quandodebita em português de branco, que o meu pedido ésó sucinto assim: é rezar em português e em voz alta, paraeste gravador, segundo as pistas que esse papel con-signa............... rezar aos mais-velhos pelas razões da vida,conforme à vida que nos importa aqui......... e às sugestõesdaí.......

.......... e é pois assim que acaba de ter início, Paulino, estaparte que estamos em tempo de acrescentar a esta longaestória que vem rolando desde uma noite já muito atrasada

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e muito no meio da nossa parte angolana do deserto doNamibe, quando eu lhe falei de uma crónica antiga quetinha lido num livro algures, e você me falou de um caso quetinha ouvido contar a um avô seu, de um inglês que fazmuito tempo acabou um dia, no Kwando, ou no Kubango,com a própria vida e com a de tudo o que mexia à voltadele.........

....... foi longo o transe de narrar as voltas que demos à voltadessa primeira estória e maior ainda quando andamos a cru-zar as paisagens desta porção de mundo na pista desse‘branco da Namíbia’........ e eis senão quando se insinuaagora esta terceira metade...... razão para regozijos, comonão assim?.....

** *

........ as páginas que precedem darão ideia do modo que àpartida me propus usar para escrever este livro....... acaboudepois por não poder vir a ser inteiramente assim, como iráver-se a páginas tantas....... vou no entanto manter o queapesar de tudo consegui escrever ainda antes de me ter vistoobrigado a interromper a tarefa que me tinha imposto levara bom termo no Cabo das Agulhas, segundo esse programaoriginal...........

........ era essa a segunda vez que eu me detinha nestes perí-metros da Cidade do Cabo para pôr um manuscrito emordem antes de partir para outra……. porquê então denovo ali?...... porque desta vez, depois de ter ido ao Kam-beno ao encontro das cassetes que SRO me tinha recomen-

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dado ir na pergunta delas até lá, estava ao corrente de quetambém muitos anos antes tinha passado pelo Cabo dasAgulhas, ao serviço de um naturalista sueco, e permanecidoali durante algum tempo, esse mais-velho Trindade, cozi-nheiro de matos e de acampamentos.......... e também por-que de maneira superlativamente inesperada (inesperadaseria já a presença desse cozinheiro mucuísso num lugar lon-gínquo assim) lhe aconteceu um dia, numa dessas praias decalhaus que lá tem, tropeçar (literalmente, tropeçar...) numapedra que lhe deu a ler a explicação da sua vida.....................é matéria de que à frente se há de vir a dar notícia....... e todaesta conversa é para lá que tende já...........

............... instalado no hotel Paralaxe do parque turísticolocal, que nessa altura do ano cobrava mais barato por serestação baixa, das 5 da manhã às 3 da tarde durante os trintadias que depois de ter feito as contas previ poder deter-meali, convocava em mim o narrador que nestes últimos anosme tenho imposto às vezes ser, embora sem grande sucesso,parece.......... depois, quando às 3 da tarde de cada diaencerrava uma jornada de escrita, daí até às 5 da alvoradaseguinte, o narrador (o autor constituído em narrador) sóexistia como destinatário das instruções, das intenções, dasdecisões, que cada noite o autor deixava assentes numroteiro............

......... o que tinha passado a competir ao narrador — utili-zando o ardil de dirigir-se ao Paulino, meu ajudante decampo durante as viagens que fiz pelos interiores destesdesertos durante mais de quinze anos e sempre participante,o Paulino, enquanto ator privilegiado, de todas as outrasaventuras anteriores mas desta não — era narrar como seexplicava ir encontrar no Kambeno a imprevista presença

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de alguém com uma coleção de rezas originais gravadas emcassetes áudio......... como podia para isso ter tido cabeça ealma, ali, um ex-cozinheiro de mato com a idade de oitentae tantos anos............... tudo extraído, portanto, do coraçãode um homem que tinha acompanhado a maior parte doséculo vinte e entrava agora pelo vinte e um implicado, sem-pre, mais nas razões dos outros do que nas suas, até segarantir um espaço no limite da margem da última fronteira,à margem, sempre — ou numa discreta órbita —, das impli-cações e das motivações maiores, dos processos, das ruptu-ras e das perturbações da ordem de um mundo em que afi-nal tinha intervindo também na condição de ator....... pelasveredas das idas e das vindas pela vida de uma tão fracafigura de pessoa, com um lugar de nada num lugar de nada,acompanhando a história desta parte do mundo desde amaré enchente da afirmação colonial dos anos vinte, trinta,quarenta, cinquenta, sessenta, setenta ainda, e depois o restodaí para a frente até este início do século vinte e um............toda a percepção e apreensão do curso dos tempos a serempostas, contadas, faladas, pois, por um cozinheiro mucuíssoa formigar pela costa das cotas sudoestes desta maciça por-ção de mundo.............

......... esta maneira de contar para o Paulino a partir datrama das nossas próprias andanças, minhas e dele, e dorelato delas em livros anteriores, seria desta vez para o autora via de arriscar o esboço de um terceiro olhar............ por-que desta vez, enfim, na trama dos enredos com que meatrevo a querer lidar sem ser ficcionista, não se trataria dodiscurso de um branco ou de um mulato que se atribuíssemuma palpitação de africanos, como já tinha ensaiadoantes........ desta vez seria o de um absoluto africano inteira-mente ‘negro’...... mas também não seria o de um negro afri-

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cano ocidentalizado que para saber alguma coisa sobre osafricanos tem de recorrer ao que o discurso dos brancosproduziu a tal respeito, nem o daquele, ainda, que sendo“africano” e “negro” embora nado, criado e produzido nãoimporta onde no mundo, invoca a seu favor, para legitimare impor um discurso de “africano”, uma imanência conge-nital milagrosa e obscuramente poupada às incidências e àsprevalências ocidentais, ocidentalizantes e ocidentalizadasque são afinal o que lhe dá direito e oportunidade, peranteesse mundo, que é também o seu, pode fazer-se ouvir........seria antes o discurso de um africano configurado em simul-tâneo por duas diferentes aprendizagens “maternas”,nenhuma delas, todavia, produção e resposta da história ouda cultura do seu sangue, matriz da ‘raça’ que lhe é impu-tada....... o Trindade é negro, sim, mas é mucuísso, não ébanto de origem........ e no contexto em que sempre viveununca deixou de ser-lhe lembrado, tanto por brancos comopor negros, que a sua ‘raça’ é a de um twa, de um vátua, deum ‘primitivo pré-banto’, domesticado tanto pela incidênciabanta como pela incidência ocidental...... um absolutoimprevisto olhar, portanto e de qualquer maneira............. e,para o autor, talvez, uma terceira metade da mesmíssimacoisa que tinha andado a tentar querer dizer antes, dandonotícia de outros olhares...... até encarar o risco de preten-der aventurar-se agora, explorador impenitente, pelo ignotocontinente de uma consciência assim............

** *

.............. o encontro do autor com o Trindade, que está naorigem do texto que vai seguir-se, veio a dar-se não no pró-

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prio Kambeno, onde o mail de SRO lhe instruía para ir, masno sambo de um homem-rico muhimba, também em terri-tório angolano mas mais perto de um vau onde o autor che-gou num jipe que alugou em Opuho juntamente com umrapaz que era filho de um amigo que o mais-velho lá tinha,do lado da Namíbia.......... foi esse rapaz que atravessou pri-meiro o vau, quando lá chegaram, e seguiu depois a pé daípara a frente para ir pedir um burro que facilitasse ao autorchegar até lá...... voltou com o burro e com o recado de queo mais-velho Trindade já por essa altura estava a descer tam-bém do Kambeno por aí abaixo, igualmente de burro, paradarem-se encontro na onganda desse tal muhimba, menosdistante do rio............ foi aí, então, que o autor recebeu acassete das rezas e algo mais de extrema importância para osconteúdos desta estória e que só haveremos de referir lámuito mais para a frente......... e que o velho, muito inopina-damente, decidiu abrir-se e passar uma semana inteira afalar no seu português de branco fino capaz de siderar qual-quer um........... já SRO falava da grande dificuldade em cairde novo em si quando há muitos anos tinha encarado pelaprimeira vez, no meio daqueles matos, com esse sujeitoassim tão franzino assim, encolhido mínimo nas dobras dasua idade e nas de um casacão exagerado, a olhar-lhe, docovil do seu olhar, com um sorriso alerta, assaz ladino, e aexpressar-se num português de tal pronúncia e música,inflexão e arrasto, contração, sibilação e surdez, que sópodia esperar-se estar a sair da fala não de um branco qual-quer mas de um branco que fosse português total, nado ecriado no Portugal mais beirante............ mas o Trindade eraafinal assim dotado, gostava da paródia e tinha apurado essamaneira de falar servindo como criado e como cozinheiro afamílias de boa estirpe colonial e a sucessivas missões de

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engenheiros e de doutores, geólogos sobretudo, que aolongo das décadas iam saindo de Moçâmedes ou doLubango para aqueles interiores do sul.........

............ quanto ao autor, também muito se iria surpreendernão só com a fala mas também com a discorrência que aolongo daquela conversa o velho lhe foi revelando....... umcozinheiro de mato vai ouvindo muita coisa ao longo da suavida e retém muita argumentação, preveniu-lhe o próprioTrindade logo à partida...... mas excedia qualquer expecta-tiva, aquilo que o autor lhe ia ouvindo dizer, mesmo invo-cando, constantemente, o que SRO por mais de uma vez lheteria dito: que o Trindade era quem era precisamente porser senhor de uma memória ‘de minhoca’ e de ‘uma inte-ligência surpreendente’...... olhando para ele agora, eouvindo-lhe assim, o autor não podia deixar de interrogar--se se estaria mesmo perante um ser comum, normal..........se aquela figura, de tal estatura assim tão reduzida, e a reve-lar uma tal ciência tanto de fala como de razão e de fantasia,e de delírio até, não seria a encarnação, ali num lugar tãoimensamente distante mas tão na mesma pastoril, dessasemi-divindade que é o Koumen dos pastores Peul do Sahel,guardião dos rebanhos de deus, zelador dos pastos e dosanimais, tanto dos domésticos como dos bravios, e que aoshomens não aparece senão sob a forma de uma criança detrês, sete, nove ou onze anos, no máximo..........

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