a teoria das ideias

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UFRJ IFCS A TEORIA DAS IDÉIAS DE PLATÃO Sir DAVID ROSS 2008.2

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Comentário sobre a epistemologia platônica elaborada por David Ross.

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Page 1: A teoria das Ideias

UFRJ IFCS

A TEORIA DAS IDÉIAS DE PLATÃO

Sir DAVID ROSS

2008.2

Page 2: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

2

A TEORIA DAS IDÉIAS DE PLATÃO

Sir DAVID ROSS

Turma Geral III

Tradução

Prof. Marcus Reis

Orientação

Título do original:

“Plato’s Theory of Ideas”

Grenwood Press, Publishers

Reprinted in 1976

Westport, Connecticut, USA

2008.2

UFRJ / IFCS

Page 3: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

3

PREFÁCIO

Tradução:

Fred Woodi de Lacerda

“Queen’s University”, Belfast, UK, concedeu-me em 1948 a honra de proferir uma Conferência em Memória de um notável historiador dos tempos antigos, Sir Samuel Dill (1844–1924)1. Aproveitei a oportunidade

para comentar algo sobre a Teoria das Idéias de Platão, pois já estava trabalhando nela já havia algum tempo. Então o essencial do que foi a Conferência está inserido no Capítulo Final e outras partes deste Livro. Não achei que fosse necessário, como uma regra, grafar as passagens de Platão ou outros autores Gregos na sua língua original. Mas, fiz com prazer as traduções, ou adotei uma que fosse boa entre as existentes. Devo agradecer, em particular, aos Senhores Routledge e Kegan Paul 2 por permitirem que eu fizesse citações das excelentes traduções feitas por Cornford 3, do Parmênides, Teeteto, Sofista e Timeu. Para facilitar a recuperação das passagens Platônicas no original forneci referências precisas indicando à numeração das linhas no texto de Burnet.

W.D.R. (1877–1971)

1 Sir Samuel Dill (1844–1924): “Roman Society from Nero to Marcus Aurelius”.

2 Routledge e Paul Kegan são duas editoras importantes, que imprimiram algumas obras de Sir Cornford. 3 Sir Francis Macdonald Cornford (1874 – 1943). “Plato’s Cosmology: The Timaeus of Plato”; Before and after Socrates”; “Plato and Parmenides: Parmenides‘ Way of Truth and Plato’s Parmenides”; “Plato’s Theaetetus”; “Plato’s Theory of Knowledge: The Theaetetus and the Sophist of Plato.

Nota do aluno tradutor: Esta obra de Ross foi publicada pela primeira vez em 1951, pela Clarendon Press, Oxford

A

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A Teoria das Idéias de Platão

4

SUMÁRIO I – A Ordem dos Diálogos .............................................................................................................. 5

II – O Início da Teoria ................................................................................................................... 14

III – O Fédon ................................................................................................................................ 25

IV - A República e o Fedro ........................................................................................................... 38

V – O Parmênides e o Teeteto ..................................................................................................... 71

VI – O Sofista e o Político............................................................................................................. 82

VII – Timeu e Filebo ..................................................................................................................... 97

VIII – As Leis e a Sétima Carta ................................................................................................... 113

IX – As ‘Doutrinas Não-Escritas’ de Platão ................................................................................ 116

X – Considerações de Aristóteles Acercada Doutrina Inicial de Platão ..................................... 126

XI – A População do Mundo das idéias ..................................................................................... 134

XII – Os Números Ideais ............................................................................................................ 141

XIII – Depois dos Números ........................................................................................................ 165

XIV – As idéias e a Alma............................................................................................................. 170

XV – As Idéias e os números ideais ........................................................................................... 173

XVI – As Idéias e as Coisas Sensíveis ......................................................................................... 177

XVII - Retrospecto ...................................................................................................................... 181

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A Teoria das Idéias de Platão

5

I – A ORDEM DOS DIÁLOGOS Tradução:

Fred Woodi de Lacerda

uem tentar traçar a história da teoria das idéias, com certeza irá considerar os diálogos em uma ordem particular. A ordem correta é difícil de precisar, e assim permanecerá em muitos pontos, ensejando

sempre novas conjecturas. As obras de Platão contêm poucas alusões a eventos históricos contemporâneos, exceto a prisão e julgamento de Sócrates; E quando existem estas referências, às vezes será difícil dizer a qual de dois eventos elas se referem. Repisando no assunto, os diálogos raramente se reportam a outro, mesmo vagamente; Ou a obras recentes de outros autores. Se nos tornássemos prisioneiros destas duas evidências nós só conheceríamos muito pouco da ordenação dos diálogos. Tentativas têm sido feitas para datá-los por outros métodos, assumindo que o desenvolvimento das doutrinas tivessem seguido certa ordem, e que os diálogos pudessem assim ser datados, de acordo com a maturidade comparada das doutrinas que eles contêm. Mas este procedimento tem finalizado com diversas conclusões em mãos diferentes, portanto, mesmo que em princípio não se revelem irreais, suas conclusões tornam-se passíveis de subjetividades. O método que se mostrou mais apropriado, e que tem levado a resultados mais harmoniosos, quando aplicado por vários estudiosos, tem sido o método de estudo do estilo do texto. Partindo com a tradição mencionada por Diogenes Laertius4, de que Platão deixou “Leis” inacabada; E com o ponto de vista universalmente aceito de que é o último dos trabalhos de Platão (a menos que “Epinomis” seja considerado tendo Platão como seu autor, e posteriormente datado); Tomando o estilo e o vocabulário de “As Leis” como padrão; E testando a afinidade de outros diálogos em relação a este último citado, com respeito a um numeroso conjunto de pontos independentes {o uso de partículas discretas da linguagem (prefixos, sufixos e infixos) ou combinação destas, e a escolha deste ou daquele sinônimo, o não usar hiatos, etc.}; Assim fazendo, diferentes estudiosos têm chegado a resultados que parcialmente concordam ou não, sobre a ordem destes diálogos. O Quadro que se segue sumariza as opiniões de cinco proeminentes estudiosos do assunto. Comparadas à lista de Raeder cada uma das listas omitem, por razões que não temos interesse em comentar, alguns diálogos citados por ele. No caso de Ritter, apresento a lista que incluiu em seu último trabalho,

4 Iii, 37 (25)

Q

Page 6: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

6

“Kerngedankem der platonischen Philosophie”, traduzida com o título de “The

Essence of Plato’s Philosophy”.

Arnin Lutoslawski Raeder Ritter Wilamowits

Apologia Apologia. Hípias Menor Ion

Ion Ion Hípias Menor

Protágoras Hípias Maior Laques Protágoras

Laques Eutifro Laques Protágoras Apologia

Rep. I Crito Cármides Cármides Criton

Lisis Cármides Crito Euthyph. Lach.

Cármides Hípias Maior Apologia

Eutifro Lach. Prot. Crito Lisis

Eutidemos Protágoras Górgias Górgias Cármides

Górgias Menexenos Hípias Maior Eutifro

Menon Mênon Eutifro Eutidemos Górgias

Hípias Menor Eutidemos Menon Crátilo Menexenos

Crátilo Górgias Eutidemos Menon Menon

Simpósio Rep. I Crátilo Menexenos Crátilo

Hípias Maior Crátilo Lisis Lisis Eutidemos

Fedão Simpósio Simpósio Simpósio Fedão

Crito Fedão Fedão Fedão Simpósio

Rep. 2-10 Rep. 2-10 República. República República

Teeteto Fedro Fedro Fedro Fedro

Parmênides Teeteto Teeteto Teeteto Parmênides

Fedro Parmênides Parmênides Parmênides Teeteto

Sofista Sofista Sofista Sofista Sofista

Político Político Político Político Político

Page 7: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

7

Filebo Filebo Filebo Timeu Timeu

Timeu Timeu Critias Critias

Critias Critias Filebo Filebo

Leis Leis Leis Leis Leis

Epinomis

Duas coisas saltam aos olhos quando examinamos estas listas: Em relação aos diálogos antigos existe muita discordância entre os cinco estudiosos; Quanto aos mais recentes, a partir da “República” em diante, quase existe um acerto razoável de opinião. Se mais estudiosos também recentes fossem citados estas duas observações seriam logo repetidas. Isto se deve ao seguinte fato: Sobre o provável desenvolvimento do pensamento de Platão, os pontos de vista dos pesquisadores sobre a ordem dos diálogos antigos são em sua maioria baseados em teorias subjetivas. Sobre a ordem dos diálogos estudados mais recentemente, estes já estão sedo observados no terreno firme dos testes de estilo iniciados por Lewis Campbell. Pode-se dizer também que, quando são

abordados pelo estudo do estilo, a datação mais tardia do “Parmênides” e do “Teeteto” sugere uma ordenação mais aceitável do que tratá-los como se pertencessem à fase inicial do filósofo. Muitos comentários devem ser feitos sobre estas listas 5:

1. Elas convergem ao omitir um considerável número de diálogos que foram incluídos na lista de tetralogias de Trasilo, ou em seus apêndices, no entanto eles são neste momento universalmente considerados espúrios. “Cartas” era até recentemente assim também considerada. Porém, opiniões mais recentes tendem a tratá-las como genuínas. É impossível ter certeza disso, se são genuínas, mas é provável que a única realmente importante, filosoficamente, é a sétima carta. Ela é genuína, e pode ser datada entre 353 e 352 a.C.

2.A genuinidade de “Hípias Maior” tem sido contestada por muitos estudiosos. No Catálogo Platônico só existe um par de diálogos de mesmo nome, “Alcibiades I” e “Alcibiades II”, os quais são hoje definitivamente rejeitados. Isso cria uma pequena, somente uma pequena presunção, contra a crença de que Platão escreveu dois diálogos com o mesmo nome de Hipias.

Existe também o fato de que Aristóteles em Met. 1025a6 usa a frase “o

argumento no Hipias” sobre um argumento que será encontrado no “Hipias

5 Omitirei discussões que não esclarecem a Teoria das Idéias

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A Teoria das Idéias de Platão

8

Menor” 6; Tem sido argüido que ele dificilmente teria feito referência ao pouco importante diálogo “Hipias” como se Platão houvesse escrito o outro. Mas se Platão escreveu os dois diálogos, Aristóteles conheceria qual deles ele mencionaria como “Hipias”, podendo provavelmente contar com o fato de que seus ouvintes também conheciam o que dizia. Já os argumentos contra a autenticidade do diálogo baseados em fatores de estilo e gramática, estes são fracos. Por outro lado: O primeiro exemplo de definição citado por Aristóteles em Top.

146a2I-3 parece ser tão claro como uma alusão ao “Hipias Maior” 297a3-

303aII, onde a definição do belo é discutida, “aquilo que dá prazer através da

audição ou da visão”; Assim como o segundo exemplo o é em relação ao

“Sofista” 247d3-4. Similarmente a sugestão definida do Belo como “a que mais

se ajusta” a Tópicos 102a6 e I35a13 é provavelmente uma reminiscência de

“Hipias Maior” 293a6 -294e10. Ainda mais, o diálogo mostra sinais de um

desenvolvimento da teoria das idéias, e assim sendo ele dificilmente poderia ser alinhado a qualquer outro autor, exceto Platão. Neste particular, por exemplo, e em nenhum outro lugar, Sócrates aponta a diferença para a maioria das idéias, quais são as verdadeiras para um número de coisas individuais; E idéias de número, quais são verdadeiras para um grupo, mas não para seus membros, individualmente 7. Alinhando com esta maturidade comparativa da doutrina, o fato de que Von Armin coloca este diálogo após, até do Simpósio, em terreno puramente estilístico, irei tão distante quanto necessário para colocá-lo, tentativamente, após o “Eutífro”. 3. Como a Apologia pressupõe o julgamento de Sócrates 8 em 399 a.C., a ordem adotada por Lutoslawski e Raeder claramente assume que Platão não escreveu um diálogo antes daquela data. Grote defendeu vivamente este ponto de vista, baseando-se principalmente no fato de que o serviço militar na Guerra do Peloponeso, e o estado de Atenas com problemas, dali em diante, isso então impossibilitou o trabalho literário de Platão antes de 399 a.C.. Mas não parece impossível que por este tempo (quando ele tinha 28 ou 29 anos) Platão já não tivesse escrito alguns diálogos. O argumento de Burnet e Taylor, de que psicologicamente é impossível que ele tivesse escrito um diálogo sobre Sócrates enquanto seu Mestre ainda era vivo, isso está longe de ser convincente. Se supusermos que uns poucos diálogos foram escritos antes da

6 Sobre estes argumentos ver a edição de Miss Tarrant Ixxx-Ixxx. Estas e outras objeções ao diálogo tem

sido habilmente trabalhadas pelo Professor G.M.A.Grube na Class. Quart. xx (1926), 134-48 e na Class.

Quart. Xxiv (1929), 369-75.

7 300d5-302 b 3

8 Em Sitzb. Preuss. Akad. (1928) Xxv, 402 n 2.

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A Teoria das Idéias de Platão

9

“Apologia”, não estaremos necessariamente datando estes diálogos antes de 399 a.C. (Porque não sabemos que a Apologia foi escrita imediatamente depois do julgamento de Sócrates); estaremos apenas deixando em aberto esta possibilidade. 4.Existe uma grande dúvida sobre a data do “Crátilo”. A maioria dos estudiosos a datam não muito depois de 390 a.C., e o ordenam na mesma posição em que o colocamos nas listas que citamos. Mas o Professor Jaeger apontou 9 para a semelhança parcial de nomes para as propriedades da mente no

“Cratilo” 4IId4-412b8 – phronesis, gnome,, noesis, sophrosyne, eoisteme,,

synesis, sophia, com aquelas que ocorrem num diálogo muito antigo, “Filebo”,

I9d4-5 , nous, episteme, synesis, tekhne. M. Warburg 10 argüiu que as afinidades

do diálogo são na realidade expostos no “Teeteto”, o qual foi escrito entre 390 e 370 a.C., Qanto a E. Haag 11 e a E. Weerts12, ambos expressaram pontos de vista semelhantes. Por outro lado, detalhes estilísticos sugerem uma data mais antiga. A questão fica em aberto. 5.Taylor coloca todos os Diálogos antes da fundação da Academia em 387 a.C., incluindo a “República”. Ele se apóia no fato de que na “Sétima Carta”13, onde Platão está descrevendo seu estado de espírito durante sua primeira visita à Sicilia, ele diz que foi levado a dizer em um discurso puramente filosófico, que a humanidade não deixaria de sofrer enquanto verdadeiros filósofos não ocupassem cargos políticos, ou que governantes políticos, por uma feliz providência, se voltassem para a filosofia. Isso parece uma alusão à “República” 473cII-e2, onde a mesma coisa foi dita, quase que com as mesmas palavras, como parte de um Discurso sobre a verdadeira filosofia. Como Platão, que nasceu em 428 a.C., diz14 que tinha 42 anos na época desta viagem, isto dá a parecer que a “República” foi escrita antes de 388 a.C. No entanto, Platão não diz diretamente que já tinha usado estas palavras quando ele foi pela primeira vez à Sicilia; ainda menos, que as tinha colocado em um diálogo. O que ele disse é que já tinha estas coisas no pensamento quando foi à Sicilia15, e isto é compatível com a sua alusão a ambas, mais tarde, na “República”. Temos que considerar as probabilidades gerais. O ponto de vista de Taylor é que Platão já escrevera o conjunto total de diálogos, até ter a idade de 40 anos, isto é, com um período de tempo igual a vinte anos, até à “República”, inclusive, e tudo isso cobre umas 1.200 páginas16, E diz mais que nos últimos 40 anos de sua vida não produziu mais

9 Como o Eutifro e o Crito

10 Zwei Fragen zur “Kratylus”, 31-61

11 Crátilo de Platão, 86-90

12 Em Filebo. Supplememtband xxiii(1932), I-84

13 32

6 a 5-b4

14 324 a

6 No texto de Burnett

15 32

6 b 5

16 No texto de Burnett

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A Teoria das Idéias de Platão

10

que 1.050 páginas. Isso não é de todo impossível, mas não parece ser o caso. Isso envolve também ignorar a referência existente no “Simpósio” 17(o qual pode ser considerado como anterior à “República”) a um evento no ano 385 ou 384 a.C., e a outra indicação que aponta para a datação do “Simpósio” após estes anos. Ritter sugere18 fortemente que a descrição do Tirano no Livro 9 da “República” deve-se mais à experiência de Platão na Corte de Dionísio, e pressupõe ao menos que Platão esteve lá em 389-8 6.”Parmênides”, “Teeteto”, “Sofista” e “Político” compõem o que se pode classificar como um só grupo; Na tentativa de determinar suas inter-relações muitas coisas evidentes devem ser tomadas em consideração. (a) No “Teeteto”, como nos diálogos mais antigos, Sócrates é o personagem principal. Na “primeira parte”do Parmênides ele tem papel destacado, mas Parmênides é o personagem principal; E na “segunda parte” Sócrates é apenas um ouvinte silencioso; Em “Sofista” e “Político” ele aparece apenas no início, e estes diálogos são na verdade um monólogo virtual da parte de um “Desconhecido Eleático”, com Teeteto em “Sofista” e “o jovem Sócrates” no “Político” nada mais fazendo do que responder “sim” ou “não” às questões do desconhecido. No “Timeu” e no “Critias” Sócrates aparece no princípio, mas “Timeu” é também na prática um Monólogo de Timeu, e o “Critias” um monólogo de Critias. Em “Leis Sócrates não aparece definitivamente, e o diálogo é conduzido no geral por um “Ateniense desconhecido”. De todos os últimos diálogos, “Filebo” é o único em que Sócrates é o principal falante; e não há dúvida disso porquê, solitário entre os últimos diálogos “Filebo” é o único em que Sócrates está ocupado com seu assunto primário, que é a Ética. No geral, então, os derradeiros trabalhos se caracterizam por uma ausência de animação nos diálogos e pelo fato de que Sócrates não era mais o principal ator. b)No início do “Teeteto” 143b5-c5 o narrador explica que ele propõe omitir frases tediosas como “e eu disse” e “ele concordou”, fazendo surgir simplesmente as palavras do personagem que fala; Teichmuller deduziu daí que qualquer diálogo no qual estas frases aparecem devem ser as primeiras, antes do “Teeteto”; Quando não ocorrem nos demais diálogos, dá-se o contrário, eles estão além do “Teeteto”. Mas ele superestimou sua opinião: Muitos dos diálogos que por outros critérios também são datados como os primeiros, caem nestes casos relativos ao “Teeteto”, para o qual o Drama Grego estabeleceu um precedente. Mas seria uma surpresa se nos diálogos que escreveu a seguir, Platão voltasse ao método de apresentação que ele abandonou; Então ele usa este meio na primeira, e não na segunda parte do “Parmênides”19.

17

193 a I-3 18

P/L/S.L. i. 243 19

A melhor discussão sobre as variações daforma do diálogo por Platão é a que fez Raeder (Plato Phil. Entw. 44-61)

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A Teoria das Idéias de Platão

11

c)No “Parmênides” surge o relato de uma conversação entre Parmênides, Zenão o Eleático e Sócrates. Deveríamos acreditar que a mesma teria sido realizada em um tempo em que Parmênides tinha sessenta e cinco anos (127 b

3), Zenão teria por volta de quarenta (IBID 4) e Sócrates ainda era um jovem 127 c 4; Igualmente deveríamos dar crédito a Sócrates por já ter chegado à Teoria das Idéias; E porquê também já pudera refletir bastante sobre ela; Mais ainda Sócrates nasceu em 460. Platão evidentemente representa Parmênides tendo nascido não antes c. 515, e Zenão não antes de 490. As datas tradicionais para o nascimento de Parmênides e Zenão são respectivamente

544-54o e 544-540 e 504-500. É impossível acreditar que, se Parmênides e Sócrates um dia se encontraram, eles puderam ter uma conversação tal como está no diálogo; Não temos razão para supor Parmênides capaz de manter este tipo de discussão dialética que estrutura o final do diálogo, e também é contrário a qualquer probabilidade supor que Sócrates com vinte anos já concebesse a teoria das idéias tal como é descrita na ‘primeira parte’. Mas, se o rumo do diálogo é imaginário, não temos então razão para considerá-lo histórico. Burnet e Taylor, é verdade, atacam as datas tradicionais de nascimento de Parmênides e Zenão como ditadas por opiniões arbitrárias; mas isto se dá porquê ambos estão determinados a acreditar na precisão da “Biografia” de Sócrates escrita por Platão. E se estamos certos em rejeitar esta visão estamos justificados por tratar o encontro como fictício. Veja-se que em ambos os diálogos, “Teeteto”

(183 e 7) e “Sofista” (217 c 4- 7), Sócrates descreve a si mesmo como tendo se encontrado com Parmênides quando ainda era jovem. Se estivermos certos em considerar a conversação no “Parmênides” como uma ficção, estas alusões se referem não a um encontro real, mas ao encontro fictício descrito no diálogo. (d) Tanto quanto sei, as únicas alusões claramente feitas aos eleáticos, nos diálogos que antecederam os últimos 4 citados, elas estão no “Simpósio”

178 b9 e no “Fedão” 26Id6. Mas existem outras três alusões no “Teeteto”. Em

152 e 2, Parmênides é veementemente mencionado como o “único dos sábios” que não concordam com a certeza de que “nada existe sempre, mas

todas as coisas estão sempre sendo”. Em 180 d 7-181 b 5 Platão opina que deve

enfrentar não somente os Heraclidianos, mas também os adeptos do “uno inamovível”, entre os quais ele coloca Melissus e Parmênides. Em 183e 5-184 a I Parmênides é descrito como uma “figura superior e horrenda”, e como possuidora de uma “profundidade com certa nobreza”. No “Parmênides”

como já vimos, ele tem o principal papel. No “Sofista” e no “Político” (que se apresentam como uma continuação do diálogo iniciado no “Teeteto”)20, um membro da escola eleática desempenha o principal papel.

20

Teeteto 210 d3 Sofista 216 a I, Político 257 a I

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A Teoria das Idéias de Platão

12

Portanto estes quatro diálogos estão interligados por numerosas referências cruzadas, criando um novo interesse voltado para a filosofia eleática. Deveria parecer natural que, num primeiro olhar, devemos tratá-los como um grupo único, e acreditar que o interesse de Platão no eleatismo foi estimulado pelos encontros com membros daquela escola na “Magna Graecia”, enquanto ele estava a caminho da Sicília, apr. no ano de 367 a.C. Mas linguisticamente os quatro diálogos caem em dois grupos muito contrastantes: “Parmênides” e “Teeteto” ficam ligados aos últimos livros da “República; O ”Fedão”, o

“Sofista”; E o “Político”mais perto de “Timeu” e “Filebo”. Isto pode ser explicado pela suposição de que dois dos quatro diálogos deverão ser separados dos dois primeiros pelo espaço de tempo e pelo afastamento dos interesses envolvidos no segundo longo Período, quando Platão foi visitar a corte de Dionísio em Siracusa., em 367-6. Concomitantemente: Aceitar a transição das certezas contidas nas asserções da teoria das idéias na “República” para o questionamento em si das inclinações variáveis do “Parmenides”; Isso só seria aceitável se supusermos que certo número de anos tenham se interposto entre as duas ocasiões, isto é, quando uma terminou e a outra foi iniciada. Finalmente, os fatos mencionados em (b), logo acima, podem ser mais bem explicados supondo que, ou a primeira parte do “Parmênides” foi escrita antes do “Teeteto”; E a segunda parte depois do mesmo; Ou, que o “Teeteto” simplesmente anuncia um princípio que Platão já teria de fato adotado na segunda parte do

“Parmênides”. 7. Sobre a questão das datas relativas ao “Timeu”e ao “Filebo”, a opinião dos estudiosos é muito bem dividida. Testes lingüísticos não resolveram em nada a questão, e no total os demais argumentos levantados para qualquer um dos pontos de vista não tinham grande peso. Somente um argumento apontou definitivamente, embora não decisivamente, para uma direção: A derivação dos números ideais extraída da idéia do Uno e do “grande e o pequeno”, do qual sempre escutamos tanto da parte de Aristóteles, e que claramente pertencem a Platão, em sua última fase; Estas coisas se juntam mais intimamente com o “limite” e o “ilimitado” (ou o grande e o menor) do “Filebo”, mais do que com o ”Timeu”. Isto me parece a ocasião de mexer na escala em favor do “Filebo” como o último dos dois diálogos21. Os dados definitivos para precisar quando foram escritos os diálogos individuais são escassos. “Menexenos”, uma oração fúnebre em honra dos caídos em combate, não pode ter sido escrito antes de 390, e mais

21

O Filebo também é colocado depois do Timeu por Bakumker, Prob. D. Matéria em d. gr. Philos. 114, 197, por Bury na sua edição do Filebo Ixxx, por I. A. Post em Trans. Of the American Philological Assn. Ix (1929), 12, por Ritter em seu último livro, The Essence os Plato’s Philosophy, 27, por Robin em La Place de La Physique dans La Philosophie de Platon, 10 n. 2, por Taylor A Comm. On Plato’s Timaeus, 9n, e por Wilamowits, P, i.

62

8.

Page 13: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

13

provavelmente foi escrito após a paz de Antalcidas em 386; o “Simpósio” se refere a um evento no ano 385 ou 384 22, o “Teeteto”23 a outro no ano 360, e “Leis”24 a um terceiro no ano 356. A dedicação e o engenho dos estudiosos descobriram muitas pistas, as quais sugerem limites de data para este ou aquele diálogo, mas nenhuma destas conjecturas chega perto da realidade com certeza. Existem dois pontos gerais que devem ser tomados em conta por aqueles que tentam colocar os diálogos em ordem. Um se refere à tarefa de composição de cada um dos dois longos diálogos, a “República” e “Leis”, que devem ter ocupado um período de alguns aos, e ainda mais quando nos referimos aos diálogos curtos, os quais podem ter sido desenvolvidos durante a composição dos maiores; O outro ponto refere-se ao fato de que Platão é conhecido por ter sido assíduo na revisão de seus trabalhos,25 de tal forma que certos trechos que sugerem datas mais tardias, podem bem ter sido assim tardios porque foram escritos bem mais tarde do que os trechos principais. Em vista destas dificuldades qualquer ordem que seja proposta estará fadada a ser apenas uma tentativa. Com estes alertas, o que segue é uma provável ordem daqueles que são os mais antigos diálogos que lançam luz sobre a Teoria das Idéias, e após isso, os trabalhos finais. (na tabela da próxima página estão os trabalhos na ordem citada) Nascimento de Platão, 429- 42 Segunda visita à Sicília, 367-366 Carmides Sofistas Laques Político Eutífro Terceira visita à Sicília, 361-360

Menon Timeu

Primeira visita à Sicília, 398 - 388 Critias ? Crátilo Filebo

Simpósio, 385 ou mais tarde Sétima Carta, 353-352 Fedon Leis República Morte de Platão, 348-347 Fedro Parmênides Teeteto, 369 ou mais tarde

22

193 a 3 23

142 a 6

24 638 bi.

25 Dion. Halic. Comp. PP. 208-9

Page 14: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

14

II – O INÍCIO DA TEORIA Tradução:

Sarah Moura

entre os primeiros diálogos, há quatro cuja intenção principal é discutir as

definições de certas coisas. O Cármides questiona ‘o que é temperança?’, o

Laques ‘o que é coragem?’, o Eutifro ‘o que é piedade?’, o Hipias Maior ‘o

que é beleza?’. Na insistência de cada questão, o broto da Teoria das Idéias já está

latente. Fazer essa pergunta pressupõe haver uma única coisa para a qual cada

palavra como ‘temperança’ sustenta e que isso é diferente para cada uma das

muitas pessoas ou ações que podem corretamente ser chamadas de temperadas.

Nesses diálogos, aquele em que Platão mostra uma mínima consciência do

significado mais geral do que ele falou sobre uma virtude em particular é o Cármides,

e há uma razão, embora não uma submissão, para olhar este como o primeiro dos

quatro.

As sementes da Teoria das Idéias aparecem mais precisamente no Laques.

Nesse diálogo26, Sócrates, após enumerar várias circunstâncias nas quais a coragem

pode ser mostrada, pergunta ‘o que é isso, existente em todas essas coisas, é o

mesmo? ‘, assim assumindo que há algo que é o mesmo; e ele faz a mesma

presunção sobre a atividade em 192 a 1 – b 3. Aqui nós temos, em broto, a visão de

que para todo nome comum há um único ente o qual é referido em toda ocorrência

do nome27. Mas no Laques, e muito depois de sua escrita, o interesse de Platão não

está na condição metafísica desse ente. Seu interesse é aquele que o próprio Sócrates

caracterizou, o interesse na resposta a uma disponível questão particular, como “o

que é coragem?”. Mas esse interesse na coragem, tanto em Sócrates como em

Platão, é dobrado. Talvez, primeiramente, isso venha a ser um interesse prático. Tanto

Sócrates como Platão querem saber o que é coragem, porque eles estão interessados

que os indivíduos cidadãos se tornem corajosos. Mas é igualmente característico dos

dois que, ao contrário somente dos moralistas práticos, eles estavam convencidos de

que é pelo conhecimento do que é virtude, e por isso somente, que o homem pode

tornar-se realmente virtuoso28. E a este interesse prático se adicione uma curiosidade

intelectual provocada por dois fatos: que embora haja uma variedade de muitas

26

191 e 10. 27

Rep. 596 a 6 28

Laques 190 b3-c2

D

Page 15: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

15

coisas corajosas diferentes, todas são igualmente instâncias de coragem29, e que

muitas coisas que têm muito em comum com essas instâncias não são, contudo,

instâncias de coragem30. Foi essa combinação de interesses que levou à doutrina

metafísica das Idéias. A isso se pode somar que, enquanto no Laques – como em

outros diálogos da juventude – era nos termos éticos que Platão está diretamente

interessado. E ele ainda reconhece, em referência à natureza comum da rapidez, que

a relação do universal com o particular não está confinada aos termos éticos.

Platão não discute as implicações de cada questão como “o que é

coragem?”, mas não é difícil ver quais são suas implicações31. Em primeiro lugar,

implica que há não meramente a palavra “coragem”, nem meramente isso e o

pensamento de coragem, mas uma coisa real cujo nome é coragem.

Secundariamente, implica que isso é uma coisa e não muitas. Platão foi sensível à

possibilidade de ambigüidade no significado de um nome. Mas, aparentemente, ele

considerou isso somente como algo que raramente ocorre, e não foi plenamente

sensível aos variantes matizes dos significados nos quais igualmente a aparentemente

mais simples palavra pode ter. Em terceiro lugar, está implícito que coragem é uma

coisa complexa apta a ser analisada em elementos; no caso de não ser assim, a

questão “o que é coragem?” seria uma questão estúpida, e a única resposta

verdadeira é que coragem é coragem. As respostas que de tempos em tempos ele dá

às questões dessa forma indicam que, a princípio, ele estava assumindo – como

Aristóteles fez explicitamente – que definição é análise per genus et differentiam. Mas

não até que nós cheguemos ao Sofistas encontraremos Platão dizer explicitamente

isso.

Parece provável o Eutifro ser o 1º diálogo no qual tanto as palavras IDEA e

EIDOS aparecem nos seus sentidos platônicos peculiares, como ambas aparecem

nesse diálogo. As passagens são as seguintes: 5 d 1 - 5 ‘Não há piedade em toda

ação sempre a mesma? E a impiedade, de novo, não é o oposto de toda piedade?

Não é tudo aquilo que é ser ímpio o mesmo como ele próprio, tendo, como

impiedade, a Forma (IDEA) singular?’, 6 d 9 – e 6 ‘Você lembra que eu não lhe pedi

para me dar um ou dois exemplos de piedade, mas para explicar que há muitas

formas (EIDOS) as quais fazem todas as coisas piedosas serem piedosas? Você não

lembra que você disse haver uma Forma (IDEA) a qual faz ímpios atos ímpios e

piedosos atos piedosos?... Diga-me, então, qual é a natureza dessa Forma (IDEA), que,

29

190 e7-198 e8 30

192 b9 – 193 d10 31

O significado e as implicações de questões como “o que é x?” em Platão são bem discutidas por R. Robinson em Plato’s Earlier Dialectic, 51-62.

Page 16: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

16

olhando para ela e usando-a como modelo, posso dizer que qualquer ato feito por

você, ou outro, que tenha o mesmo caráter é piedoso, e qualquer ato que não o

tenha é impiedoso?

Tanto EIDOS e IDEA são derivados de IDEIN, ver, e o significado original de

ambas as palavras é, sem dúvida, ‘forma visível’. Taylor fez na Varia Socratica32 um

estudo abrangente do uso das palavras na literatura grega antes de Platão, e chegou

a conclusão de que o uso que encontramos em Platão e, ocasionalmente, em outros

lugares, tem uma origem no uso pitagórico desses termos, no sentido de modelo

geométrico ou forma. A lista de cotações de Taylor foi cuidadosamente examinada

por C. M. Gillespie33, que chegou a conclusão diferente:

... no tempo de Sócrates as palavras ... mostram duas tendências de

significação no vocabulário geral da ciência. O primeiro é eminentemente físico, mas

sem associações matemáticas: incluindo numerosas gradações de significado, desde

o popular ao técnico: a forma de um objeto corpóreo, ocasionalmente usada para o

objeto corpóreo ele mesmo, como nossas próprias palavras forma (form) e aparência

(shape), mas sempre distintas do SOMA: às vezes a forma externa visível e muitas vezes

na forma interna, a estrutura, a natureza, a PHYSIS, uma concepção especificamente

física, muitas vezes estendida a outra natureza dos objetos que não a corpórea: em

um tratado de caráter retórico passageiro, por uma transição fácil, aproximadamente,

se não completamente, na noção metafísica de essência. A segunda é semi-lógica,

classificatória: usada especialmente em cada contexto como em ‘existem quatro

formas, tipos’ de qualquer coisa, se uma substância como o ‘úmido’ ou uma doença

ou outra coisa ... Nessa linha de desenvolvimento, o significado tardio de espécies é

apenas um único passo adiante. Professor Taylor parece ter esclarecido um caso para

o uso de EIDOS na matemática pitagórica no sentido do modelo geométrico ou figura.

Mas não há qualquer evidência que mostre que esse significado altamente

especializado foi um fator determinante de outros desenvolvimentos; parece ter sido

um crescimento colateral.

Os dois usos especificados por Gillespie são desenvolvimentos naturais do

significado original. A visão é o mais informativo dos nossos sentidos, e não é surpresa

que palavras as quais originalmente significavam forma visível possam vir a significar

natureza visível, e então a natureza em geral; não que desse significado de natureza

eles possam vir a significar ‘classe marcada pela natureza dos outros’.

32

178 – 267 33

Class Quart, vi (1912), 179 -203

Page 17: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

17

H. C. Baldry34 tem sugerido que o uso platônico dos termos EIDOS e IDEA, e,

decerto, ‘o princípio fundamental da metafísica de Platão’ foram alcançados pela

fusão de ensinamentos de Sócrates sobre valores morais com o ensinamento

pitagórico sobre valores numéricos. Mas nossa ignorância sobre a história do

pitagorismo e sobre a época de seu desenvolvimento é profundo. Nós não sabemos

se no tempo da juventude de Platão os pitagóricos chamavam os modelos numéricos

EIDE ou IDEAI. Nós não sabemos se Platão visitou a Itália antes de 389 ou 388 a,C., e

nós podemos estar bem certos de que os primeiros diálogos nos quais a Teoria das

Idéias é encontrada foram escritos muito antes disso. Não obstante Aristóteles fale que

Platão atribuiu às idéias o mesmo tipo de função que os pitagóricos vinculavam aos

números35, e que mais tarde ele identificou as idéias com números36, ele não sugere

que o modelo numérico tivesse qualquer coisa a ver com o começo da Teoria das

Idéias. Acima de tudo, não há nada nos primeiros diálogos que sugira isso. A posição

antes parece ser aquela do questionamento socrático como ‘o que é virtude?’, ‘o

que é coragem?’, e similares, que levou Platão a reconhecer a existência de universais

como uma classe distinta de ente, e que ele assumiu como nomes para eles as

palavras EIDOS e IDEA, as quais no grego ordinário já haviam começado a ser usadas

no sentido de ‘qualidade’ ou ‘característica’. O que foi original não foi o uso das

palavras, mas a condição que Platão inferiu às coisas que as palavras sustentam.

Para o uso platônico dessas palavras [EIDOS e IDEA] temos um exaustivo estudo

na Nova Análise (Neue Untersuchungen) de Ritter37. Ele distingue seis sentidos:

1 – A aparência exterior.

2 – A constituição ou condição.

3 – ‘A característica que determina o conceito’.

4 – O conceito ele mesmo.

5 – O gênero ou a espécie.

6 – A realidade objetiva realçando nosso conceito.

Para nos tornarmos capazes de julgar o valor das distinções que ele extraiu

entre os sentidos 2, 3, 4 e 6, podemos observar alguns exemplos típicos. Ritter considera

que em muitas passagens é duvidoso quais desses significados estão em questão: Eu,

portanto, tomo passagens nas quais ele assume sem hesitação um significado ou

outro.

34

Class. Quart. Xxxi (1937), 141-5 35

Met. 987b 9-13 36

1078b 9-12 37

228 - 326

Page 18: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

18

Sentido 2 – Menon 72 d 1: ‘Você pensa que há uma saúde do homem e outra

da mulher? Ou é a mesma Forma (EIDOS) em todos os lugares? Se é saúde é num

homem ou em qualquer outra coisa?’

Sentido 3 – Menon 72 e 6: ‘Então, também, assim as virtudes; embora elas sejam

muitas e de todos os tipos, todas certamente têm um Forma (EIDOS) idêntica, razão

pela qual elas são virtudes, com uma visão a qual aquele que responde possa indicar

para aquele que pergunta o que virtude realmente é.’

Sentido 4 – Fedon 104 e 1: Então, a Forma (IDEA) da igualdade nunca passará

para dentro de um grupo de três coisas’.

Sentido 6 – Fedon 102 a 11: ‘Desde que foi acordado que cada uma das

Formas (EIDE) é alguma coisa real e que é pela virtude de compartilhar nessas que

outras coisas são chamadas depois delas’.

Olhe não somente essas passagens, mas os seus contextos, e você será

convencido de que Platão tencionava uma e a mesma coisa em todos os casos; que

em nenhuma parte ele está falando do conceito ou ‘do conteúdo dos conceitos’,

mas em todos os casos de alguma coisa a qual ele considera perfeitamente objetiva,

existindo nela própria, e não em virtude de nosso pensamento sobre isso. Ritter está

atento para distinguir que há entre esses quatro sentidos um produto do

conceitualismo do século XIX, o qual é, em alto grau, transferido do simples realismo

do pensamento de Platão.

O que nós achamos é que Platão não raramente usa ambas as palavras no

seu significado original ‘forma visível’, que ele usa ambas as palavras em vários

sentidos não técnicos, nos quais elas têm sido usadas pelos primeiros escritores, e que

ele usa ambas as palavras nos dois sentidos técnicos de ‘idéia’ e ‘classe’. Enquanto

nos diálogos do Fedon em diante, com exceção do Parmênides, o significado ‘classe’

é o mais comum significado de EIDOS, é somente raramente que IDEA é usada nesse

sentido. ΙDEA é a mais vivaz das duas palavras, e tende a ser preferida nas mais

coloridas e imaginativas passagens. A isso pode ser somado que Platão muitas vezes

usa OUSIA e PHYSIS como meios de referência para a idéia, e que ele ainda usa

GENOS no Sofistas, e HENAS e MONAS no Filebo.

No Hipias Maior uma interessante alusão pode ser pensada como aquela que

levou Platão ao seu interesse por definições. ‘Alguém tardiamente’, Sócrates diz em

286 c 5, ‘quando eu estava censurando certas coisas como feias e exaltando outras

como belas, arremessou-me dentro da confusão por questionar-me muito

Page 19: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

19

insolentemente, “diga-me, como você veio a saber que tipo de coisas são belas ou

feias? Vamos, você pode me dizer o que é o belo?” ‘.

O que levou Platão para esse interesse em definição, se nós tomamos essa

alusão, seria a convicção de que ninguém pode aplicar uma palavra corretamente, a

menos que ele possa construir para ele mesmo alguma avaliação geral do seu

significado. Não somente, como ele fala muitas vezes, está apontando para os casos,

não uma pergunta verdadeira para o problema da definição; nós não podemos estar

certos de que nós estamos apontando para os genuínos casos a menos que primeiro

nós conheçamos o que é definição; o conhecimento da conotação deve preceder o

conhecimento da denotação. ‘Ensina-me’, diz Sócrates para Hypias, ‘o que é o belo

ele mesmo’ (AUTO TO KALON) 38. A questão oculta uma certa ambigüidade da qual

Platão talvez não estivesse ciente. A questão pode significar ‘o que é a real

característica que a palavra “belo” sustenta?’ ou ela pode significar ‘qual é a

característica ou o conjunto de características, outras que a beleza, que uma coisa

tem de ter como condição para ser bela?’ Mas a frase ‘o belo em si mesmo’ aponta

para a primeira interpretação; e uma alusão em favor disso pode ser vista na

passagem do Cármides39, na qual Sócrates está perguntando questão semelhante

sobre autocontrole. Lá, ele diz, ‘nós temos fracassado em descobrir o que é aquilo que

a imposição de nomes deu o nome de autocontrole’. Não é esta, entretanto, a

conexão entre beleza e suas condições que Sócrates quer saber, mas a natureza da

real característica a qual se refere a palavra ‘belo’.

A passagem do Hipias Maior fornece uma dos primeiros exemplos da frase

AUTO TO, em si mesma, a qual se tornou uma das expressões-modelo para uma Idéia;

a frase é repetida em diversos lugares no diálogo40. EIDOS aparece no 286 d 4 e no 298

b 4.

Nesse estágio, a relação da Idéia para o particular é pensada simplesmente

como aquela do universal para o particular; como ainda não há menção da falha do

particular em ser um exemplo verdadeiro da Idéia. A Idéia de beleza é ‘aquela coisa

idêntica a qual dá o prazer da visão, o prazer da audição, que está presente em

ambas simultaneamente e em cada uma separadamente’ 41. O objetivo é tal que as

coisas individuais não são sempre, ou em todas as relações, exemplos dos mesmos

universais, que em algumas relações ouro aparecerá não mais belo do que lenha42,

38

286d 8 39

175 b 3 40

288 a 9, 289 c 3, 292 c 9; Prot. 360 e 8 pode ser anterior. 41

300 a 9 – b 1 42

291 c 7

Page 20: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

20

mas o objetivo não é tal que o não particular é sempre o verdadeiro exemplo de uma

Idéia, que a Idéia é um modelo ou limite preferível que o universal, e a relação do

individual com ele [o modelo] é de imitação e não de participação.

Há uma passagem no Hipias Maior a qual parece ser evidência do posterior

desenvolvimento da Teoria das Idéias como algo a ser encontrado no Laques ou no

Eutifro. Na sua pesquisa por uma resposta para a questão ‘o que é o belo?’, Sócrates

sugere que é o agradável, apreendido pela audição e pela visão, e soma que a

palavra ‘belo’ é aplicável igualmente a ambas as formas do agradável e para cada

uma delas. Hipias afirma que qualquer termo aplicável a ambas simultaneamente é

também aplicável a cada uma. Sócrates alude que há muitas exceções, e finalmente

aponta que o termo ’um’ é aplicável somente para uma coisa por vez e não para

ambas as duas, enquanto ‘dois’ é aplicável para ambas simultaneamente e não a

cada uma e de novo que cada um é eventual e não sempre, enquanto ambas juntas

são sempre e não ocasionalmente. A passagem é interessante em dois aspectos:

primeiro porque antecede o problema promovido no Parmênides como para se ser o

todo ou somente uma parte de cada Idéia que é possuída pelos indivíduos, e,

secundariamente, porque indica um interesse precoce nas Idéias de número, as quais

absorveram Platão no seu período mais tardio.

No Menon há uma boa quantidade de referências às Idéias, sob o nome de

OUSIA ou EIDOS. E, ainda, a imanência das Idéias nos particulares que persiste em

‘Todas as virtudes têm uma Forma idêntica’43 Há uma frase que pode ser a origem do

termo de Aristóteles KATHOLOU e de nosso termo ‘universal’ – ‘falando sobre virtude,

como um todo (KATA HOLOU), o que isto é44. O que está ausente no Menon é, talvez,

mais surpreendente do que o que está presente nele: nenhum esforço é feito para

conectar as Idéias com a doutrina da anamnese. Não somente não há referência,

explícita ou implícita, às Idéias na passagem lidando com anamnese45, mas o método

pelo qual o jovem escravo é levado a descobrir que quadrado tem duas vezes a área

de um quadrado dado é puramente empírico, está na evidência de sua visão e não

de qualquer relação claramente apreendida entre universais que ele admite que o

quadrado feito com a diagonal do quadrado dado é duas vezes o tamanho do

quadrado dado. Ele admite que certos triângulos têm áreas iguais, e a área de cada

um deles, tem a metade da área do quadrado dado, e que a figura a qual eles

compuseram é ela mesma um quadrado, não porque ele vê que essas coisas devem

ser assim, mas porque eles olham como se essas coisas existissem. Para o

43

72 c 7; cf. 74 a 9. 44

77 a 6. 45

81 a 5 – 86 b 5.

Page 21: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

21

estabelecimento de relação entre as Idéias e anamnese nós temos que olhar para o

Fedon, e no Menon a Teoria das Idéias é trazida não mais do que nos primeiros

diálogos.

O Crátilo compõe uma importante parte no desenvolvimento da metafísica de

Platão; para isso nesse diálogo ele se opõe a ele mesmo mais explicitamente para

completar o subjetivismo. Ele insiste que ‘coisas têm um ser protegido de si mesmas,

não relativo a nós, nem arrastado para cima e para baixo pela força de nossa

fantasia, mas neles mesmos relatados para seus próprios seres como eles são por

natureza’46. Mas apesar de encontrarmos a idéia descrita em diversos lugares como o

ser (OUSIA) desses particulares, e de encontrarmos a palavra ‘OUSIA’ aqui, seria

provavelmente um erro supor que há aqui uma referência direta à teoria das Idéias.

Por OUSIA de uma coisa Platão parece se referir à sua verdadeiramente real natureza

plena, como oposto à natureza com a qual o juízo humano pode atribuir para ela

[OUSIA]; mas nenhuma Idéia é sempre pensada para ser a natureza plena de todas as

suas instâncias; um ato particular perfeitamente justo, por exemplo, tem alguma coisa

nele que o distingue de outro ato justo, e isto deve ser alguma outra coisa que a Idéia

de justiça. Em diversos lugares, realmente, há referências às Idéias47; mas elas não

contêm nada novo, exceto estarem definitivamente em oposição à doutrina

heraclítica do fluxo universal, que a doutrina das Idéias é posta em evidência. Como

Aristóteles diz48, Platão aceita a doutrina heraclítica bem longe, como coisas sensíveis

são afetadas, mas evidencia que há coisas não sensíveis, não sujeitas ao fluxo.

Num ponto, talvez, haja um traço de algo novo. Há uma passagem que sugere

mais claramente que em alguma coisa nós temos encontrado até aqui a

transcendência das Idéias. ‘Para onde o carpinteiro olha?’, diz Sócrates49, ao fazer a

lançadeira? Ele não olha para alguma coisa que foi naturalmente entalhada para agir

como uma lançadeira?... E suponha que a lançadeira quebre na sua fabricação, ele

fará outra visão para essa quebrada? Ou ele olhará para a Forma de acordo com a

qual ele fez a outra? E isso ele procede para descrever como ‘precisamente aquilo

que a lançadeira é’ ou ‘a Forma da lançadeira’. Isso parece como se houvesse aqui

uma sugestão de uma Forma de lançadeira a qual pode ser contemplada, e embora

deva existir, antes de estar incorporada em alguma lançadeira particular. Dificilmente

podemos supor que aquilo que o artesão visou ao fazer a lançadeira é

necessariamente um universal resumido das lançadeiras existentes, a qual faz a

46

386 d 8 – c 4. 47

389 d 6 – 7, e 3, 439 c 8. 48

Met. 987 a 32 – b 1. 49

389 a 6 – c 1.

Page 22: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

22

invenção da lançadeira possível. Ainda enquanto Platão parece estar pensando na

Forma da lançadeira como existente em si mesma antes de ser incorporada em

matérias particulares, ele não se refere a isso como existência meramente

transcendente; para ele avançar e falar do carpinteiro como sucedido, quando ele é

hábil em incorporar a Forma em matérias particulares50. Ele ainda não alcançou o

objetivo de pensar que uma Idéia nunca é perfeitamente exemplificada, mas apenas

imitada. E talvez em reflexão, nós devamos admitir que o pensar que sua linguagem

pode ser interpretada como inferindo a existência da Forma antes de ela ser

incorporada, não é uma interpretação necessária. Quando ele fala que o carpinteiro

visa a forma, ele pode não pensar na Forma como pré-existente nada mais do que,

quando ele diz nós almejamos algum fim, nós pensamos o fim como já existindo.

Para Nosso propósito, a mais interessante passagem do Crátilo é aquela que

vem no final51. De acordo com Aristóteles, as primeiras associações filosóficas de

Platão foram com Crátilo, o heraclítico, e ele conservou a crença que todas as coisas

sensíveis estão em constante fluxo; mas, quando ficou sob a influência de Sócrates, ele

sustentou que, por causa da sua mutabilidade, não elas, mas alguma outra coisa

deve ser o objeto do conhecimento. Isso é exatamente o que nós encontramos no

Crátilo.

O conhecimento das coisas não é derivado de nomes. Não; eles devem ser

estudados e investigados neles mesmos... Diga-me, se há ou não há alguma beleza ou

bondade absolutas, ou alguma outra existência absoluta. Então, busquemos a

verdadeira beleza, não perguntando se a face é formosa, ou alguma coisa dessa

sorte. Vamos nos perguntar se a verdadeira beleza não é sempre bonita... Então,

como pode aquilo ser uma coisa real a qual nunca está no mesmo estado

(obviamente as coisas que sempre estão no mesmo estado não podem mudar

enquanto permanecem as mesmas; e se elas são sempre as mesmas e no mesmo

estão, e nunca se afastam de uma forma original, como podem elas mudarem ou

serem alteradas?)... Ela ainda nem pode ser conhecida por ninguém; no momento

que o observador se aproxima, ele então se torna outro e de outra natureza, que

então você não pode conhecer por muito tempo sua natureza ou seu estado;

certamente nenhum conhecimento conhece o que isso conhece, se aquilo não tem

estado.... Nem podemos raci0nalmente dizer, Crátilo, que há conhecimento em tudo,

se todas as coisas estão em estado de transição e nada está permanecendo. Pois se o

conhecimento não deixa de ser conhecimento, ele continua sempre a permanecer e

a ser conhecimento; mas se a real natureza do conhecimento muda, isso mudará

50

389 c 3 – 6; cf. 390 b 1 – 2. 51

439 b 4 – 440 c 1.

Page 23: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

23

para outra natureza que conhecimento e logo ser conhecimento; e se a transição

está sempre seguindo, no tempo quando a mudança ocorre não haverá

conhecimento, e de acordo com essa visão, não haverá nada para conhecer e nada

para ser conhecido; mas se há sempre aquilo que conhece e aquilo que é conhecido,

e o belo e o bom e toda outra coisa que exista também, então eu não penso que elas

possam assemelhar-se a um processo de fluxo, como nós estávamos supondo há

pouco.

Esta é a primeira aparência distinta em Platão do argumento da existência de

um conhecimento da existência do imutável, de objetos não sensíveis. Isso é o que

Aristóteles chama52 o argumento ‘das ciências’, só como aquilo o qual nós temos

encontrado nos primeiros diálogos é o argumento de ‘um além de muitos’.

A mais definitiva afirmação de transcendência de todas as que nós

encontramos até agora ocorre na famosa passagem do Banquete53: Ele que tem sido

assim instruído longe das coisas do amor... subitamente perceberá uma beleza da

magnífica natureza... uma beleza a qual em primeiro lugar está sempre

permanecendo, não florescendo e decaindo, ou crescendo e minguando;

secundariamente, não bonita em um ponto de vista e feia em outro, ou em um tempo

ou em uma relação ou em um lugar bonito, em outro tempo ou em outra relação ou

em outro lugar feio; ou na semelhança de uma face ou mãos ou qualquer outra parte

da carcaça material, ou em qualquer forma de fala ou conhecimento, ou existindo

em lugar nenhum em nenhum outro ser, como por exemplo no animal, ou na terra, ou

no céu, ou em qualquer outra coisa; mas beleza absoluta, separada, simples, e eterna,

perpétua (AUTO KATH’AUTO METH’AUTOU MONOEIDES AEI ON), enquanto todas as

outras coisas bonitas compartilham nisso alguma semelhança como essa: enquanto os

outros vêm dentro do ser e dele saem, nem assim a beleza se torna maior ou menor,

nem sofre qualquer mudança.

Certamente essa é uma forte afirmação da transcendência da Idéia de

beleza, mas nós temos de lembrar que essas não são as palavras de Platão nem as de

Sócrates. Eles colocaram na boca de Diotima, a sábia mulher da Mantinéia, cujo tom

é aquele de um profeta mais do que de uma filósofa. É legítimo supor isso, traduzindo

para a linguagem da filosofia, a única passagem que afirma, não a existência

separada da Idéia de beleza, mas sua diferença de todas as suas incorporações, e

suas eternidade e pureza, em contraste às transitoriedade e imperfeição [das

incorporações].

52

Ibid, 990 b 11 - 14 53

210 e 2 – 211 b 5

Page 24: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

24

À parte dessa passagem, esse grupo completo dos primeiros diálogos trata as

Idéias como seres imanentes em coisas particulares. As Idéias estão ‘presentes’ nas

coisas particulares; estão situadas ‘nelas’ pelo artesão; elas vêm a estar ‘nelas’; são

‘comuns’ a elas; as coisas particulares, por sua vez, as possuem ou as compartilham54.

54

Por evidência, cf. pp 228-30.

Page 25: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

25

III – O FÉDON55 Tradução:

Victor Galdino

o Fédon, as Idéias têm um papel mais significante do que em qualquer diálogo

anterior. São praticamente onipresentes no diálogo; mas sua introdução está sempre

subordinada à prova da imortalidade, e muito do que agora é dito sobre elas não

lança nenhuma nova luz nas visões de Platão sobre sua natureza. A primeira passagem em que

são mencionadas1 nos diz somente que as Idéias não podem ser conhecidas por meio de

qualquer um dos sentidos, mas pelo pensamento puro (αὐτῆ καθ' αὑτὴν εἰλικρινεῖ τῇ

διανοίᾳ). Mais tarde, no entanto, Platão descreve o processo de conhecimento das Idéias de

maneira mais definitiva do que o tem feito até então. Vimos no Mênon que a teoria da

“anamnesis” não é ligada ao conhecimento das Idéias; mas no Fédon ela é. Primeiro Platão

mostra que a reminiscência ‘pode ser derivada tanto de coisas semelhantes quanto de coisas

dessemelhantes’, ou seja, que pode haver associação tanto pela similaridade (como quando

somos levados a nos lembrar de Símias ao ver um retrato de Símias),3 quanto pela

contiguidade (como quando vemos uma lira e somos levados a nos lembrar de seu dono);4 e

que, no primeiro caso, também notamos se a coisa percebida se distancia, de alguma maneira,

daquilo de que nos faz lembrar.5 Sustentamos (ele continua) que a igualdade em si exista, e

que sabemos o que ela é. E temos chegado a esse conhecimento vendo pedaços iguais de

madeira, pedra, etc.6 Esses são bastante diferentes da igualdade em si, o que é provado pelo

fato de que pedras ou paus, enquanto permanecem o mesmo, podem parecer iguais para uma

pessoa e não para uma outra, mas o ‘igual em si mesmo’ nunca aparece como desigual, nem

igualdade como desigualdade.7 Casos particulares perfeitos de uma Idéia são aqui distinguidos

tanto de particulares imperfeitos e sensíveis, quanto da Idéia propriamente dita; isso é

importante por ser a primeira sugestão de uma crença em entidades matemáticas como algo

intermediário entre as Idéias e os particulares sensíveis.8 Mas, enquanto Platão faz a distinção

entre particulares perfeitos e a Idéia, ele não acentua essa distinção, não tendo ela papel

algum em seu argumento.

1 65 d 4-66 c 8. 2 74 a 2. 3 73 e 9. 4 73 d 5-10.

5 74 a 5-7. 6 74 b 4-7. 7 74 b 7-c 6. 8 A crença atribuída a Platão por Aristóteles na Met. 987

b14-18.

55

As notas de rodapé deste capítulo não acompanham a numeração dos demais. (N.T.)

N

Page 26: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

26

O reconhecimento das Idéias é desta maneira trazido sob o título de associação por

similaridade, e sob aquela sub-forma dele em que a similaridade é bem imperfeita. Seria fácil

para um pensador moderno dizer que o que nos sugere a idéia de igualdade é nossa

experiência da desigualdade; pois somos familiares com o fato de que instrumentos exatos de

medida revelam desigualdades onde o olho não consegue detectá-las, e que provavelmente

nunca vimos dois corpos físicos que fossem exatamente iguais. Embora seja verdadeiro dizer

que é provável que não existam dois corpos físicos que sejam exatamente iguais em suas

dimensões, não é verdadeiro dizer que somente a experiência de desiguais sugere a idéia de

igualdade; pois certamente temos muitas experiências de objetos em que não podemos

detectar a diferença de tamanho, o que seria mais corretamente chamado de experiência de

iguais aparentes do que de desiguais. Parece que a verdade é que experiências de iguais

aparentes e de desiguais aparentes são igualmente capazes de trazer às nossas mentes a idéia

de igualdade.

Platão, em todo caso, não nos diz que é a experiência do desigual que nos sugere a idéia de

igualdade. Ele se refere à experiência, durante toda a passagem, como sendo a experiência dos

iguais; e ainda assim, acentua a imperfeição deles. O motivo pelo qual os acha imperfeitos é

que ‘parecem iguais para uma pessoa, e diferentes para outra’ (74 b 7-9); ele está pensando,

talvez, nos efeitos da perspectiva. Há uma certa inconsistência no pensamento dele aqui. Pois

em vista de sua enfática afirmação, no Protágoras e no Crátilo, de que coisas corpóreas têm

sua própria natureza e podem ser diferentes do modo como aparecem para nós, segue-se que

coisas que pareçam diferentes para algumas pessoas podem, no entanto, ser iguais e,

portanto, perfeitos exemplos de igualdade. Mas Platão não percebe essa inconsistência, e

durante a passagem, fala como se as coisas sensíveis necessariamente se aproximassem

somente da igualdade; e essa é a passagem mais antiga (excetuando-se a mística passagem

presente no Banquete) em que esse aspecto das Idéias, não como universais manifestados em

particulares, mas como ideais, padrões, ou limites dos quais as coisas individuais somente

podem se aproximar é enfatizado (ἐκείνου ὀρέγεται τοῦ ὃ ἐστιν ἴσον, καὶ αὐτοῦ

ἐνδεέστερά ἐστιν 75 b 1; cf. βούλεται 74 d 9, προθυμεῖται 75 b7).

Pela primeira vez, a relação das coisas sensíveis com as Idéias é pensada mais como uma

imitação (μίμεσις) do que como compartilhamento (μέθεξις ), e ainda assim ela contém um

elemento de compartilhamento, já que o tempo todo se fala das coisas sensíveis como iguais,

e não desiguais.1

Quatro passagens do Fédon são interessantes, tanto por mostrar de maneira bem clara que

Platão atingiu uma teoria generalizada das Idéias, quanto por mostrar a natureza dos números

típicos no seu mundo das Idéias - 75 c 10-d 3, 76 d 7-9, 78 d 3-7, 100 b 3-7. Aqui ele se refere a

‘tudo aquilo em que colocamos o cunho da realidade em si mesma’ (αὐτὸ ὃ ἔστι),2 e descreve

a doutrina como algo que ‘estamos sempre repetindo’;3 e os casos que se repetem são os de

beleza, bondade, justiça, piedade, igualdade, grandeza ideais. Em diálogos anteriores têm

Page 27: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

27

aparecido referências incidentais às Idéias de velocidade, de tear, e de nome, mas as duas

primeiras foram introduzidas apenas como ilustrações incidentais, e a terceira apenas por

interesse em uma teoria da linguagem especial. Quando Platão quer se referir a Idéias típicas,

se refere ou a valores morais ou estéticos, ou a qualidades matemáticas ou relações como

tamanho e igualdade. Valores e entidades matemáticas permanecem sendo seu interesse

dominante - os valores, durante toda a sua vida, e entidades matemáticas, com ênfase cada

vez maior com o passar dos anos, até que no final (pelo menos de acordo com o que

Aristóteles diz) a teoria das Idéias se tornou uma teoria dos números. Idéias de substâncias

(como ‘animal em si mesmo’) não são mencionadas no Fédon, e não são proeminentes em

lugar algum, com exceção do Timeu, embora estivessem envolvidas na teoria, já que era a

teoria de que existe uma Idéia que responde a cada nome comum.5

1 Na passagem 100 c 3-6, d 6 particulares ainda são descritos como tendo participação nas Idéias; na 100

d 5 a Idéia ainda é descrita como estando presente neles.

2 75 d 1-2. 3 76 d 8.

4 Laques 192 a 1, Crátilo 389 b 5, 390 a 5.

5 Rep. 596 a 6.

Page 28: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

28

Não é desprezando os sentidos e se voltando à pura contemplação, mas usando os sentidos e

descobrindo o que eles sugerem a nós, que (na visão de Platão) chegamos ao conhecimento

das Idéias; são nossos sentidos que devem nos sugerir o pensamento de que todo os iguais

aparentes sensíveis aspiram ao que é igual, e ao mesmo tempo não atingem seu objetivo;1 e

dizendo isso ele descreve muito verdadeiramente a cooperação dos sentidos com a razão ao

nos levar ao conhecimento. Mas a sugestão das Idéias pelas coisas dos sentidos pode, ele

afirma, acontecer somente porque conhecíamos as Idéias em uma existência anterior.2 Mas

como sabíamos delas então? Se também as conhecíamos somente pela sugestão das coisas

dos sentidos, a referência a uma existência anterior não ajuda em nada no sentido de explicar

o processo de conhecimento delas. Se o vir a conhecer as Idéias através da sugestão de coisas

sensíveis não é inteligível em si, mas pressupõe um conhecimento a priori das Idéias, um

conhecer anterior das Idéias através da sugestão das coisas sensíveis seria tão inteligível

quanto tal ocorrência seria no presente. Assim, se a reminiscência deve explicar o que é

introduzido para explicar, o conhecimento anterior das Idéias deve ser um conhecimento delas

não através da sugestão das coisas do sentido, mas direto e imediato. E é dessa maneira que

Platão nos concebe como possuindo esse conhecimento em uma vida anterior. Assim, a

doutrina da anamnesis claramente implica na existência separada das Idéias, não como

estando incorporadas imperfeitamente nas coisas sensíveis, mas existindo à parte em sua

pureza. É nessa passagem que Platão claramente expressa sua crença na existência separada

das Idéias; o que caminha naturalmente ao lado do seu começar a usar a linguagem da

semelhança, embora ele conserve a linguagem da participação para expressar a relação das

coisas sensíveis com as Idéias.

Seria um erro descrever Platão como tendo feito, ou nesse ou em qualquer outro estágio de

seu desenvolvimento, uma completa bifurcação do universo em Idéias e coisas sensíveis. Uma

razão para isso é o fato de termos a referência casual aos ‘iguais em si mesmos’3 – uma alusão

a entidades matemáticas que não são nem Idéias nem coisas sensíveis, uma alusão que

pavimenta o caminho para a doutrina dos ‘Intermediários’. É bem provável que, nesse estágio,

Platão não tenha percebido a significância de sua própria alusão. Mas ele certamente

reconhece a existência de outro tipo de entidade que não é nem Idéia, nem coisa sensível; pois

há uma seção inteira em que ele descreve a alma como sendo semelhante às Idéias a não às

coisas sensíveis no que diz respeito à imutabilidade, e mesmo assim não sugere em lugar

algum – e como poderia ele? – que as próprias almas são Idéias.

1 75 a 5-b 2.

2 76 d 7-e 7. 3 74 c 1. 4 79 b 1-80 b 6.

Page 29: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

29

A próxima passagem que chama a nossa atenção é a famosa passagem (95 e 7-102 a 2) em que

Platão apresenta Sócrates descrevendo seu desenvolvimento filosófico. A parte mais antiga

dessa descrição não é muito clara, mas este parece ser o ponto apresentado. Sócrates, em sua

juventude, havia se ocupado com os problemas físicos e fisiológicos correntes no meio do

século cinco, mas a confusão causada pelo conflito entre teorias apenas produziu nele um

estado de espanto diante de um problema que ia mais fundo do que as teorias poderiam

penetrar. Parece claro, por exemplo, que um homem cresce ao comer e beber, e os teóricos se

ocuparam com os detalhes desse processo; mas eles criaram na cabeça de Sócrates a questão

prioritária de como uma coisa que é pequena pode se tornar grande, e de forma geral, de

como algo caracterizado de uma forma pode vir a ser caracterizado de outra. Ele ficou

perplexo com a questão dos números, em particular. ‘Não consigo nem mesmo deixar de

duvidar, quando alguém adiciona uma unidade à outra unidade, se essa unidade a qual outra

unidade foi adicionada se tornou dois,1 ou se a unidade juntada e aquela à qual ela foi

acrescentada se tornaram dois pela junção das duas’ (96 e 6-97 a 1). Novamente, ele não pôde

compreender como pode ser verdadeiro dizer que a adição de uma unidade à outra resulta em

dois, e que também a divisão de uma unidade cria o dois, já que a causa da produção do dois

deveria ser uma só (97 a 5-b 3).

A grande sentença de Anaxágoras de que o intelecto era a causa e o ordenador de tudo parece

ter trazido luz para sua escuridão. ‘Se o intelecto é o ordenador’, disse ele para si, ‘ele irá

coordenar tudo em vista do melhor, e a explicação para alguma coisa ser do jeito que é deve

ser que é melhor para ela estar nessa condição’. Mas, na verdade, a teleologia de Anaxágoras

não era mais esclarecedora do que o materialismo dos outros pré-Socráticos; pois quando

entrou em detalhes ofereceu explicações tão materialistas quanto qualquer outro, atribuindo,

como se fossem as causas das coisas serem como são, condições materiais que são

meramente as sine qua non para a operação da causa verdadeira (96 b 8-99 c 6).

1 A duplicação de Wyttenbach de ἢ τὸ προστεθέν na passagem 96 e 9 é um tanto desnecessária.

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A Teoria das Idéias de Platão

30

Anaxágoras falhou não por ser teleológico demais, mas por não o ter sido suficientemente, e o

desapontamento de Sócrates com Anaxágoras não o levou a abandonar sua esperança em

uma explicação teleológica do mundo. Mas ele não viu nenhum caminho direto para alcançá-

la, e então recuou para um modo secundário (δεύτερος πλοῦς, 99 d 1) de perguntar sobre a

causa das coisas. O δεύτερος πλοῦς era originalmente o uso de remos quando o vento

cessava, e a frase sugere, como o indica Burnet, o que não é necessariamente um método

menos efetivo, mas um mais lento e laborioso. A sugestão de Sócrates é que investigações

anteriores falharam porque tentaram descobrir a explicação para as coisas serem do jeito que

são, diretamente pelo uso dos sentidos, e sofreram o mesmo destino dos que tentam olhar

diretamente para o Sol durante um eclipse, em vez de olhar para o seu reflexo na água (99 d 5-

e 4). Mas a comparação é inadequada; ele não vai admitir completamente que seu método de

estudar as coisas é menos direto que o dos físicos (99 e 6-100 a 3). Seu método, de qualquer

forma, seja chamado de direto ou de indireto, é estudar a verdade das coisas ἐν λόγοις, isto

é, assumir em cada caso o λόγος que ele julga ser o mais forte, adotar como verdadeiro o que

concordar com isso, e rejeitar tudo o que discorda (100 a 3-7).

λόγοι são aqui, não para serem entendidos como definições; pois no exemplo que dá não há

uso de definições. Nem, embora haja uso de conceitos ou universais, devem os λόγοι ser

entendidos como tendo esse significado; nem mesmo como sendo argumentos. A linguagem

do ‘acordo’, e o fato de que o que Platão chama de ‘λόγος mais forte’ é a proposição de que

Idéias existem, mostram que λόγοι significa afirmações ou proposições. Sócrates não é muito

justo com seus predecessores ao contrastar seu método com o deles como sendo o estudo de

coisas ἐν λόγοις, em oposição a um estudo ἐν ἔργοις. Pois o que eles fizeram não foi

simplesmente, como ele sugere, usar seus sentidos e registrar o que eles reportaram. Eles

também tiveram seus λόγοι ou ὑποθέσεις, visões gerais que lhe foram sugeridas pelo que

seus sentidos reportaram, e de onde deduziram conseqüências assim como Sócrates as tirou

de seu próprio λόγος. A verdade é que o tipo de λόγος que eles tomaram como seu ponto de

partida foi o sugerido por observações particulares, como o λόγος de Tales de que tudo era

água, enquanto Sócrates toma como seu ponto de partida algo sugerido por uma reflexão

muito mais geral. Pois seu ‘λόγος mais forte’ se mostra no fim como ‘nenhuma novidade’ (100

b 1), mas a desgastada tese (ἐκεῖνα τὰ πολυθρύλητα, ibid. 4) que nesse e em outros

diálogos freqüentemente o ouvimos defender, de ‘que existe uma beleza, uma bondade, uma

grandeza absolutas, entre outras coisas’. Essa é o tipo de causa que ele estudava (100 b 3-4),

distinguida das causas materiais e eficientes estudadas pela maioria dos pré-Socráticos, e da

causa final cujo reconhecimento Anaxágoras pregou, mas não praticou.

Existem (ou melhor, em algumas circunstâncias podem existir) três fases no tratamento

apropriado de um λόγοι ou ὑποθέσεις. (1) A primeira é aceitar o que está de acordo com ele

(100 a 3-7) – isto é, as conclusões que se seguem dele – e rejeitar o que discorda. (A afirmação

desse elemento do método é fraca; pois o ‘estar de acordo’ que vai justificar a aceitação da

proposição B pela aceitação da proposição A deve constituir uma seqüência lógica, enquanto,

Page 31: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

31

se o ‘discordar’ deve justificar a rejeição da proposição C, então deve significar não a não-

seqüência, mas inconsistência.) Mas a aceitação deve ser apenas provisória. Pois (2) pode ser

que conclusões contraditórias sigam-se da hipótese (101 d 5), e nesse caso a própria hipótese

deve ser abandonada. Alguns críticos têm duvidado da possibilidade de tal contradição

ocorrer, mas é claro que pelo menos Platão pensou que fosse possível. Existe apenas um modo

(a) dessa contradição realmente acontecer, por exemplo, quando A é uma proposição

complexa incluindo duas proposições inconsistentes. Mas há também um modo (b) dela

parecer acontecer, caso B seja acarretada não por A sozinha, mas por A e C, e uma proposição

D, inconsistente com B, é acarretada por A e E. No caso (a), segue-se, evidentemente, que A é

falsa; no caso (b), não. Mas é duvidoso se Platão previu qualquer um desses casos; ele fala

como se de uma única proposição simples pudessem se seguir conclusões contraditórias. Na

terceira fase (3), se a hipótese mesma não se apresentar como auto evidente, deve-se

percorrer as hipóteses de onde ela se seguiu, de trás para a frente, até que seja encontrada

uma hipótese que seja suficiente (ἱκανός), ou seja, que satisfaça tanto você quanto seu

oponente. E a todo o momento deve-se tomar cuidado para não confundir as diferentes

etapas da investigação.1

1 101 d 3-e 3. Para uma boa e completa discussão sobre o tratamento da hipótese no Fédon, cf. R.

Robinson, Plato's Earlier Dialetic, 128-50.

Page 32: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

32

Esse terceiro elemento é o procedimento já advogado e usado no Mênon,1 aquele de testar a

verdade de uma proposição A procurando por uma proposição mais fácil de estabelecer, da

qual a verdade de A se seguiria. No Mênon, Sócrates tira seu exemplo da matemática, e o

método é de fato o método apropriado para descobrir a prova de teoremas matemáticos.

Os segundo e terceiro estágios não ocorrem no caso da própria hipótese de Sócrates no Fédon.

É adotada sem nenhum questionar por Cebes, o oponente do momento,2 e não parece resultar

em conseqüências inconsistentes. A única conclusão que Sócrates tira dela é a de que a alma é

imortal.3

O relato que Platão dá, então, do histórico mental de Sócrates (embora seja provavelmente

sua própria história que ele está descrevendo) é este: primeiro, ele tentou explicar os fatos do

universo assumindo, como o faziam os pré-Socráticos, causas materiais, como substância

quente ou fria, ar ou fogo.4 Não encontrando satisfação alguma, ele tentou explicar os fatos

usando uma causa final, o bem, e uma causa eficiente, o intelecto, que procurava produzir o

bem.5 Mas também aí ele falhou, e então recuou para a suposição (que ele já havia feito, com

outras justificativas, em outros diálogos) de causas formais, as Idéias, para justificar o fato das

coisas serem do jeito que são.

Nessa declaração da teoria das Idéias, Platão usa certos termos importantes em conexão com

a relação entre Idéia e particulares. Do lado da Idéia, é chamada presença (παρουσία),6 do

lado dos particulares, participação (κοινωνία, μετάςχεσις, μετάληψις).7 Mas Sócrates

acrescenta que ele não insiste em nenhum nome em particular para a relação, mas apenas no

fato de que é por causa das Idéias que os particulares são o que são, e que ‘o que é belo é belo

por meio do Belo’.8 A crítica que Sócrates passou para as explicações correntes da causalidade

foi que a causa indicada não era coextensiva com o efeito; dizer que a adição de duas unidades

é a causa do número 2 deve ser errado, pois o 2 pode ser igualmente produzido a partir da

divisão do 1.9 Lá a causa alegada era muito restrita.

1 86 e 1-87 c 3.

2 100 c 1.

3 100 b 7-9.

4 96 b 2-4.

5 97 b 8-d 3. 6 100 d 5. 7 100 d 6, 101 c 5, 102 b 2.

8 100 d 7. 9 97 a 5-b 3.

Page 33: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

33

Aqui ele mostra que as explicações correntes da causalidade são algumas vezes muito amplas.

Não basta dizer que A é mais alto do que B por causa de uma cabeça, pois A pode ser mais

baixo que C também por uma cabeça, e então a cabeça é tão causa de A ser mais alto quanto é

de ser mais baixo.1 A única explicação verdadeira é que A é maior que B por causa da grandeza,

e menor que C devido à pequenez; causas formais por si só são coextensivas com seus efeitos.

Tendo mostrado que a mesma coisa particular pode participar de Idéias opostas, Sócrates

prossegue para mostrar que não somente uma Idéia não pode ser caracterizada por seu

oposto, mas que também a particularização de uma Idéia em uma coisa particular não pode

ser caracterizada pela Idéia oposta; ‘a grandeza em nós nunca admite pequenez’.2 Deve fazer

uma das duas coisas – ou se retirar com a aproximação de seu contrário, ou ser aniquilada

caso seu contrário obtenha a entrada. O que a grandeza não pode fazer é aceitar a pequenez e

se tornar algo que não é o que era antes.

Em face disso, a acentuação em passagens anteriores da natureza separada das Idéias é difícil

de ser reconciliada com a linguagem aqui usada da presença da Idéia nas coisas particulares.

Mas os dois modos de se expressar podem ser reconciliados se atentarmos para a distinção

que Platão estabelece entre semelhança em si e semelhança em nós. Vemos então que sua

teoria envolve não apenas a Idéia e coisa particular, mas também a qualidade na coisa

particular. O que está presente na coisa particular não é, estritamente falando, a Idéia, mas

uma cópia imperfeita da Idéia. Se levarmos em consideração a frase ‘o igual em si’, vemos que

Platão mantém que de certas Idéias existem exemplos perfeitos. Dessa maneira, o esquema

perfeito é:

Idéias imitadas imperfeitamente por Qualidades

exemplificadas em exemplificadas em

Números e formas imitadas imperfeitamente por Coisas sensíveis

Não é muito claro o que Platão quer dizer com as duas alternativas – ceder ou ser aniquilada. A

frase é repetida (103 a 1, d 8-11, 104 c 1, 106 a 3-10), e as alternativas, portanto, devem ser

tomadas como alternativas reais, e não meros caminhos diferentes de se dizer a mesma coisa.

Taylor sustenta1 que o derretimento da neve quando exposta ao calor é um exemplo de

aniquilação, e que quando um homem tem seu quarto filho, o fato de que o conjunto ‘filhos de

x’ deixa de ser ímpar é um exemplo de retirada, ‘já que “imparidade” não é, como

temperatura alta ou baixa, uma qualidade que pode ser destruída’. Esta mal pode ser a

interpretação real; pois, de um lado, nem frio em geral, nem imparidade em geral poderiam

ser descritas por Platão como destrutíveis (já que ambas são Idéias), e de outro lado, ele

poderia dizer que a quantidade ímpar de membros de uma família deixa de ser quando o

1 100 e 8-101 b 2. 2 102 d 7.

3 102 d 5-8; cf. 103 b 5 e Parm. 130 b 1-4. 4 74 c 1.

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A Teoria das Idéias de Platão

34

quarto filho nasce, assim como o frio de uma certa parcela de neve deixa de ser quando essa

parcela derrete. E, de fato, ele diz explicitamente que é a ‘destruição’ que deve ser aplicada no

caso de um número ímpar sujeito à aproximação do par (ou seja, daquilo que tem uma

unidade adicionada a si) (106 b 7-c 3). A distinção pode, talvez, ser feita desta maneira: se

existe um nome N que representa ‘uma substância S caracterizada por uma qualidade Q’,

então o que não pode acontecer é a substância, enquanto possuir a qualidade Q, assumir a

qualidade contrária Q´. O que às vezes acontece é a substância S admitir a qualidade contrária

Q´, nesse caso a coisa chamada N (que significa ‘S qualificado por Q’) é aniquilada e uma nova

coisa, que deve ser chamada por um nome diferente de N (por exemplo, ‘água’ em oposição a

‘neve’), vem a ser. Mas no caso especial em que a qualidade Q é a qualidade da

indestrutibilidade, a coisa chamada N (que corresponde a união de uma certa substância com

a indestrutibilidade) é, devido à natureza especial do seu atributo, incapaz de perder o

atributo, e em vez de ser aniquilada se retira devidamente (σῶς καὶ ἄτηκτος, 106 a 5; a

metáfora, como mostra Taylor, é militar). Isso é o que Platão acredita acontecer no caso da

alma, que, sendo o próprio princípio da vida (105 c 9-11), é incapaz de admitir o atributo da

destrutibilidade (106 b 1-4).

Sócrates mostra que essa repulsão mútua de Idéias contrárias é bastante compatível com o

que foi previamente afirmado no diálogo, que as coisas vêm a ser de seus contrários. Uma

coisa contrária (ἐναντίον πρᾶγμα) pode vir de sua coisa contrária, ou seja, uma coisa

caracterizada por uma qualidade pode vir a ser caracterizada pela qualidade contrária; mas

uma qualidade não pode se tornar seu contrário (103 a 4-c 2). Nessa passagem encontramos,

talvez, a origem da doutrina de Aristóteles de que mudança é sempre a mudança da matéria

permanente de ser caracterizada por um de dois contrários para ser caracterizada pelo outro.

A distinção que Platão faz entre τὰ ἐναντία e τὰ ἐναντία πράγματα (ou τὰ ἔχοντα τὰ

ἐναντία) é equivalente ao que Aristóteles expressa em uma linguagem diferente.

Sócrates agora passa a expor um desenvolvimento importante da teoria ideal. Neve não é

idêntica ao frio; mas a neve não pode, enquanto permanece neve, se tornar quente, assim

como o frio não pode se tornar quente (ou calor – Platão não distingue claramente as duas

coisas). Não somente uma Forma é merecedora de seu nome eternamente, mas existem

coisas que possuem certas Formas ao longo de sua existência (103 e 2-5). Não só ‘o ímpar’ é

sempre ímpar, mas o número três, o cinco, etc., são sempre ímpares; ou seja, enquanto

existem coisas que podem passar de um estado para o estado contrário, existem outras que

estão tão presas a um estado ou qualidade que não podem receber seu contrário, e ao mesmo

tempo permanecer elas mesmas. Em outras palavras, existem Formas que compelem tudo

aquilo que ocupam (κατάσχῃ) não só a possuir sua própria Forma (ou seja, a Forma em

questão), mas como também a Forma de um determinado contrário1. Um grupo ocupado pela

Forma do três deve ser ímpar, assim como deve ser um grupo de três. E, enquanto em um

sentido é a Forma do três que exerce essa compulsão (104 d 1-3), também pode ser dito que é

a Forma do ímpar que a exerce (ibid. 9-12). O princípio é reafirmado desta maneira: ‘se uma

Forma introduz uma de duas Formas contrárias em todas as coisas nas quais entra, ela nunca

recebe o contrário daquela Forma’. (105 a 1-5).

1 P.M.W. 205-6.

Page 35: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

35

Essa descoberta permite a Platão dar uma nova resposta para uma velha questão. Para a

questão, ‘pela presença de que numa coisa é essa coisa tornada quente?’, sua ‘velha, segura e

estúpida resposta’ (105 b 6-c 1) era ‘pela presença do calor’, mas ele agora pode dizer com

igual segurança e mais perspicácia ‘pela presença do fogo’. Para a questão ‘pela presença do

que num corpo é esse corpo tornado doente?’, ele agora irá responder, não ‘doença’, mas

‘febre’. Para a questão ‘pela presença do que em um número esse número se torna ímpar?’,

ele agora vai dizer ‘unidade’, e não ‘imparidade’.

A passagem também tem grande interesse histórico, pelo fato de que nela podemos

certamente encontrar a origem da descoberta do silogismo por Aristóteles.1 Na teoria de

Aristóteles, a única figura do silogismo que é reconhecida como válida por direito é a primeira;

e nessa figura termo maior, termo médio, e termo menor são, respectivamente, propriedade,

qualidade genérica e espécie. O que é justamente o que encontramos no Fédon. A presença do

fogo em uma classe de coisas introduz calor nela e exclui o frio. O que é isso senão o silogismo

‘calor pertence ao que possui fogo, fogo pertence a uma determinada classe de coisas,

portanto calor pertence a essa classe’, e o silogismo ‘Frio não pertence ao que possui fogo,

fogo pertence a uma determinada classe, portanto frio não pertence a essa classe’ – silogismos

típicos em Barbara e Celarent? Que a conexão entre o Fédon e a teoria do silogismo é uma

conexão real, o é mostrado por dois fatos; não somente παρεῖναι, termo tão freqüentemente

usado por Platão para denotar a presença de uma Idéia em seus particulares, é usado às vezes

por Aristóteles para descrever a relação do termo maior com o médio, ou do médio com o

menor, mas também, assim como Platão usa ἐπιφέρειν para descrever a introdução da

propriedade pela qualidade genérica,3 Aristóteles usa συνεπιφέρειν da mesma maneira na

teoria do silogismo.4

Devemos perguntar se a teoria ideal, da forma como aparece nos diálogos até e incluindo o

Fédon, implica a existência ‘separada’ das Idéias. Nas afirmações feitas diretamente sobre a

natureza das Idéias existe pouca evidencia disso; o que é enfatizado repetidas vezes é que as

Idéias são diferentes dos particulares, e que elas estão presentes nos particulares. A passagem

que mais claramente sugere sua existência transcendente é a famosa passagem do Banquete5

que claramente atribui à Forma do belo um ser à parte de sua incorporação em qualquer coisa

bela. Mas essa é a linguagem da sábia Diotima, e não de Sócrates, e na passagem do Fédon6

que se refere a isso, os elementos mais transcendentes desaparecem, e são simplesmente

auto-identidade (μονοειδές) e imutabilidade que são afirmadas com relação à Forma.

1 Lendo na passagem 104 d 3 ἐναντίου ἀεί τινος, como Stallbaum; ou 'do contrário de alguma coisa',

se lemos ἐναντίου τῳ ἀεί τινος, como Robin.

Page 36: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

36

1 Isso foi claramente mostrado por Shorey na Classical Philology, xix (1924), 1-19.

2 Analytica Posteriora 44

a4, 5, 45

a10.

3 104 e 10, 105 a 3, 4, d 10.

4 Analytica Posteriora 52b7.

5 210 e 2-211 b 5.

6 78 d 5.

O que é dito ali pode ser dito por qualquer um que acredite em universais objetivos,

acreditando ou não que eles possuem qualquer existência que não seja a existência em

particulares. Mas devemos olhar não somente para o que Platão diz sobre as Formas, mas

também para o que ele diz sobre nossa apreensão delas. O que ele diz sobre nossa apreensão

delas nesta vida se resume a duas coisas – que é somente pela experiência dos particulares

que as Formas são sugeridas ao nosso intelecto, mas essa sugestão pressupõe um

conhecimento prévio delas. Se considerarmos essas duas afirmações, somos levados à

conclusão de que a teoria da anamnesis envolve logicamente a crença em Formas

transcendentes.1

É um erro por de lado a teoria da anamnesis, como o faz Ritter,2 como sendo algo meramente

secundário. Sócrates diz expressamente, e Símias concorda, que a existência das Idéias e a

preexistência da alma andam juntas (76 d 7-77 a 5). Somos, dessa maneira, deixados com

apenas duas alternativas – ou Platão (assumindo que podemos tomar o que Sócrates diz, de

uma maneira tão séria, como representando as visões de Platão) falhou em perceber que a

doutrina da anamnesis, se deve ter algum uso, implica em um conhecimento prévio direto das

Idéias incorpóreas, ou então ele enxergou essa implicação e deliberadamente a aceitou. É

impossível decidir com certeza entre essas alternativas; mas a afirmação constante de

Aristóteles de que Platão acreditava em Idéias ‘separadas’ confirma a segunda alternativa; pois

é bastante difícil supor que depois de dezenove anos passados na Academia Aristóteles

pudesse estar desinformado sobre um assunto tão importante.

Reunindo o que aprendemos até agora sobre a doutrina das Idéias de Platão, podemos dizer

isto: originalmente a doutrina era simplesmente a crença na existência de universais como é

implicado pela existência de indivíduos possuindo qualidades. A linguagem predominante

usada para expressar a relação de universais com particulares é a da ‘presença’ de universais

em particulares, do ‘compartilhamento’ de universais por particulares.

1 Cf. p. 25

2 P.L.S.L. i. 584-6.

Page 37: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

37

Mas no Banquete, e de maneira mais definitiva no Fédon, outro elemento entra na teoria; os

particulares são referidos como tendo se distanciado das Idéias, não somente por serem

particulares e não universais, mas por não serem exemplos genuínos das Idéias, mas apenas

exemplos aproximados delas; a linguagem da imitação começa a aparecer, sem, no entanto,

substituir a outra ou se reconciliar com ela. Mais tarde, no Fédon, algumas das relações entre

as próprias Idéias começam a ser exploradas. As Idéias que Platão tinha inicialmente em mente

são de dois tipos – (1) as Idéias de bem (e das várias virtudes) e de belo e (2) Idéias

matemáticas como as de semelhança, de paridade e imparidade, do dois, do três, etc. Esses

são os dois únicos grupos de Idéias das quais Sócrates descreve como estando certo no

Parmênides.1 Quando outras Idéias são introduzidas (por exemplo, a de tear no Crátilo), é

apenas um modo de ilustrar a universalidade da doutrina das Idéias, e não porque Platão está

interessado nessas Idéias particulares. Mas não seria verdadeiro dizer que ele não acredita

seriamente nessas outras Idéias; pois elas são implicadas, tanto quanto Idéias morais, estéticas

e matemáticas, pelo reconhecimento de que para todo conjunto de coisas individuais

chamados por um nome em comum deve existir uma Idéia.

1 130 b 1-10.

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A Teoria das Idéias de Platão

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IV - A REPÚBLICA E O FEDRO Tradução:

Beatriz Feretti (segunda parte, 48-59)

Cecilia Freitas (quarta parte, 69-82)

Cláudia O’Reilly (terceira parte, 59-69)

Flora Mangini (primeira parte, 37-48)

s primeiros livros da República contêm muito pouco que mencione a teoria das Idéias. Muito se discutiu sobre uma passagem no Livro V (476 a 4-7): “O mesmo acontece com o justo e o injusto, com o bom e o mau e com

todas as outras formas: cada uma, tomada em si, é uma; mas devido ao fato de entrarem em comunidade com ações, corpos, e entre si, aparecem em toda parte e cada uma parece múltipla.” 56 O compartilhamento de uma idéia com outra não foi, ao menos tão extensamente, discutido antes de o Sofista. A presente sentença foi, assim, vista como um anacronismo, e allhllwn, foi emendada na frase allh

allwn ou all allwn. Mas já em Fédon, Platão diz que a Idéia de três introduz a

grupos particulares de três a Idéia de imparidade, e isso pode acontecer simplesmente porque compartilha a Idéia mesma. Assim, a noção de participação de uma idéia em outra não é nova em Platão.

Uma passagem imediatamente seguinte pode, entretanto, ser considerada como indicadora do desenvolvimento da Teoria das Idéias. Trata-se da passagem na qual Platão correlaciona as três classes de objetos –aquela que é, aquela que não é, e a que fica entre o ser e o não ser – com três estados que a mente pode ter, o conhecimento, a ignorância e a opinião.

Platão começa (476 a 9) delineando uma distinção entre duas classes de pessoas. Uma dessas é a dos filósofos - definida como a classe de quem reconhece tanto a existência das Idéias quanto a dos objetos sensíveis e consegue distingui-los (476 c 9-d 3). A outra classe é de pessoas que amam escutar sons e ver figuras e não reconhecem a existência das Idéias (476 c 2-7). A primeira das classes é tida como o estado de espírito do conhecimento, o da segunda, como opinião, e Platão continua uma discussão sobre esses dois estados de espírito e de seus objetos. Ele começa com um argumento geral, no qual descreve o objeto do conhecimento como sendo o completamente real e o objeto correspondente à ignorância como sendo irreal, e afirma que o objeto da opinião precisa ser aquele que está “entre o ser e o não-ser”. As figuras e os sons, que já haviam sido identificadas com os objetos de opinião são, portanto, levadas ao status de semi-reais.

Platão defende seu raciocínio mostrando uma rígida distinção entre conhecimento e opinião, sendo que a primeira implica uma certeza subjetiva e a segunda, o oposto. Ele é menos convincente quando assinala o real como objeto 56

Cf. GUINSBURG, J. (Org.), A República. São Paulo: Editora Textos 19, 2006. (p.215)

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do conhecimento e aquele entre o ser e o não-ser como objeto de opinião. E o argumento seguinte pelo qual sustenta essa descrição do objeto de opinião não é mais persuasivo. Algumas das instâncias que ele toma como exemplo são caracterizadas por estarem sujeitas à pura relatividade dos termos –dobro e metade, grande e pequeno, leve e pesado. Uma coisa A ser grande se comparada à coisa B e pequena se comparada à C não implica que A não seja real, sendo grande ou pequena, o que parece ser um par de predicados contraditórios e, assim, lhe conferir característica de irrealidade. São, na verdade, predicados incompletos, que apresentam a acepção de “maior do que certas coisas”, “menor do que certas coisas”, e entre os predicados completos não há oposição.

Os demais exemplos são de outra ordem. “Belo” não significa “mais belo do que”, “feio”, “mais feio do que”. Esses são contrários genuínos, não comparativos ocultos. Como Platão pode afirmar que existem coisas ao mesmo tempo feias e belas, ou atos justos e injustos, ou piedosos e impiedosos? Um ato individual que é justo não é injusto. Platão deve estar se referindo, então, ao que demonstrou em um diálogo da juventude57 após o outro; que enquanto um ato de certo tipo (ex.:. devolver a um homem o que lhe pertence) é o certo em circunstâncias normais e outro ato do mesmo tipo é errado em circunstâncias anormais (ex.: devolver a espada de um homem que pretende matar alguém ou a si mesmo). No entanto isso não prova que atos individuais têm atributos contraditórios; para um ato particular há uma situação particular, e Platão não diz explicitamente que essa situação em particular é errada e certa ao mesmo tempo. A única prova foi a de que a generalização “devolver a um homem o que lhe pertence é o certo” não é verdade.

Platão, entretanto, acha satisfatório o seu argumento, e esboça uma conclusão momentânea em que nada em particular é totalmente verdadeiro e apenas as Formas o são58. E sob essa condenação, não são apenas os objetos sensíveis que estão incluídos; um ato justo ou injusto precisa ser ou, ao menos inclui, uma atividade mental não-sensível. Nos diálogos da juventude, a tendência de Platão tem sido a de tratar objetos particulares como reais, e, de fato, é apenas com a suposição de sua realidade que ele argumenta a realidade das Formas. Mas desse ponto em diante ele se compromete com tal ponto de vista, pelo menos até o Sofista, quando ele descobre um caminho melhor, em que encontra um disparate falso e perigoso sobre todas as coisas particulares, segundo o interesse das Formas.

Em seqüência, há três passagens conectadas nas quais a Teoria das Idéias recebe maior elaboração – (1) a passagem sobre o Sol e a Idéia do Bem (504 e 7-509 c 4), (2) a passagem sobre a Linha Dividida (509 c 5-511 e 5), (3) a alegoria (símile) da Caverna (514 a 1-518 b 5)59 Devemos ser cuidados ao sugerirmos

57

Entendemos como “Diálogos da Juventude de Platão” aqueles estilisticamente agrupados por serem aporéticos (ou seja, não chegam a uma conclusão, a uma verdade única). São também conhecidos nessa divisão interpretativa como “Diálogos Socráticos”. Há, ainda, diversas outras formas de compreender a lógica entre os textos platônicos, mas a que o autor escolheu (o termo correlato em inglês é “Early dialogues”) é uma das mais aceitas atualmente. (N.T.) 58

479 b 9-e 9. 59

Essas passagens, mais particularmente a Linha e a Caverna, são objeto de muita discussão, especialmente pelos acadêmicos britânicos. Mencionamos alguns: H. Sidgwick in J. of Phil. Ii (1869), 96-103; H. Jackson, IBID. x. (1882), 132-50; J.Cook Wilson in Class. Rev. xviii (1904), 257-60; J. L. Stocks in

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correlações entre tais passagens e outros diálogos (especialmente os escritos posteriormente). Estamos estudando o desenvolvimento do pensamento de Platão, e o que devemos fazer é tentar descobrir o que passava em sua mente quando escreveu essas passagens. Outros diálogos podem ser usados para nos ajudar a escolher entre interpretações rivais que são igualmente compatíveis com o que ele diz aqui, mas não o suficiente para sustentar uma interpretação que é a menos provável dentre as duas do ponto de vista da linguagem da passagem, nem nos justificar por trazer para a República o desenvolvimento do seu pensamento que, até onde sabemos, veio mais tarde em sua vida.

A. Platão começa a primeira passagem sublinhando que as definições de virtudes (já antes alcançadas) em termos de distinção entre os três elementos na alma foram as melhores – “para alcançar o mais perfeito conhecimento dessas virtudes, existia outro caminho, mais longo, e a quem o tivesse percorrido elas seriam claramente reveladas” (504 b). Justiça e outras virtudes só podem ser completamente conhecidas sob a luz de “algo maior do que elas mesmas” (504 d 4). Esse “maior objeto de estudo” é “a Idéia de bem, da qual tudo o que é bom e correto recebe valores para nós” (505 a 2-4). A maior posse não vale nada a um homem a menos que o que ele possua seja bom, e o conhecimento de qualquer coisa não vale nada a ele a menos que ele saiba o que é bem. A superioridade do bem sobre qualquer outra coisa é, além disso, evidenciada pelo fato de que enquanto muitas pessoas escolheriam fazer e ter o que parece justo e nobre, mesmo se não é o caso, ninguém se satisfaz possuindo o que apenas parece ser bom. Toda alma persegue o que é o bem e, para proteger essa busca, fazemos o que fazemos, intuindo que existe alguma coisa assim mesmo sem podermos dizer o que é. Nenhum homem saberá adequadamente, ou será guardião de instâncias particulares de justiça e beleza a menos que ele saiba em que respeito elas são boas.

O que Platão pleiteia fortemente para o bem é a supremacia em um respeito particular, como um objeto de desejo. Homens podem desejar coisas que não são boas, mas apenas se acreditarem serem boas, e o objeto mais profundo de seu desejo é o que é o bem.

Isso não exaure, para Platão, a supremacia do Bem sobre todas as demais Idéias; mas para trazer à tona outros aspectos de sua natureza ele adota um método indireto. Ele tenta trazer à luz a idéia de bem estudando antes seu resultado (506e 3). Começa equacionando coisas particulares com o que é visto, e as Idéias com o que é conhecido (507 b 9). Aqui, a visão representa os sentidos, no geral: para um som particular existe um “porém”, porque não é visto, mas ouvido. Mas Platão continua para apontar uma faceta na qual a visão é diferente dos demais sentidos – que para que a visão ocorra é preciso que haja um objeto colorido e um olho capaz de ver, mas também luz sobre o objeto e, preferencialmente, luz do sol. Assim como o olho vê mais claramente quando o objeto é banhado por luz solar, a mente apreende mais claramente quando vê seus objetos sob a luz da Idéia de bem. Isso é o que “proporciona aos objetos de conhecimento sua verdade, e para aquele que os conhece o poder de conhecer”

Class. Qu. Xv (1921), 73-88; A.S. Ferguson, ibid. 131-52, xvi (1922), 69-104; F.M Cornford in Mind, xli (1932), 37-52, 173-90; N. R. Murphy in Class. Qu. Xxvi (1932), 93-102, xxviii (1934), 211-13; R. Robinson, Plato’s Early Dialectic, 151-213; H. W. B. Joseph, Knowledge and the Good in Plato’s Republic, 13-60.

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(508 e 1-3). E, assim como nem a luz nem a visão são o sol, nem a verdade nem o conhecimento são o bem. O bem é algo ainda mais honrável.

Depois de dizer que ele faz da Idéia de bem sua fonte de conhecimento e cognoscibilidade, a principal explicação do mundo das Idéias, Platão o expõe sob uma nova luz, como fonte do ser do mundo. Como o sol “cede às coisas visíveis, não só o poder de serem vistas, mas ainda a geração, o crescimento e a nutrição”, então “você pode dizer que não apenas a inteligibilidade das coisas inteligíveis vêm do bem, sua existência e essência também”. Mas enquanto o poder vitalizante do sol é bastante diferente das suas funções iluminativas, a função da Idéia de bem como fonte de ser de outras Idéias é também a função como fonte de entendimento delas; o que explica a existência de outras Idéias em referência à Idéia de bem, somente se esta é a base de suas essências.

Se tentamos, ainda que de modo nebuloso, entender o significado de Platão, precisamos antes perceber que as funções delegadas à Idéia de bem têm relação com o mundo das Idéias e não com o mundo sensível; assim, a Idéia de bem desempenha um papel em relação a suas funções corolário à relação entre o sol e os objetos sensíveis. Mas, ao dizer o que ele faz disso, Platão não coloca, direta ou indiretamente, uma visão teológica do mundo natural. O que ele diz é que as Idéias mesmas existem e são conhecidas por meio de sua relação com a Idéia de bem. Qual pode ser o significado de tal visão do mundo dos universos? É razoável oferecer uma explicação teológica de alguns ou todos os fatos da natureza, se acreditamos seja num Governador benevolente do universo ou em um uma tendência dos objetos naturais em direção ao bem. Mas a explicação teleológica do mundo das Idéias é de uma posição diferente. Idéias não são mutáveis, maleáveis de acordo com a vontade do Governador; são padrões para os quais o Governador do universo precisa se adaptar. Por outro lado, podemos conceber que as Idéias tenham uma motivação em direção ao bem (embora uma passagem do Sofista tenha sido freqüentemente mal-interpretada atribuindo “movimento” a elas); coisas particulares podem tem motivação, mas universais não. Por isso é difícil saber o que Platão realmente queria dizer quando fala que a Idéia de bem engloba a existência e a cognoscibilidade do mundo das Idéias. Nem somos ajudados pelo que diz mais tarde sobre o “primeiro princípio não-hipotético”, que é, sem dúvida, ligado à Idéia de bem; a única diferença é a de que, enquanto a frase “a Idéia de bem” aponta para o universal, a outra frase aponta para uma proposição, uma em que a Idéia de bem é um termo.

Podemos considerar, antes, a relação entre a Idéia de bem e outras Idéias éticas. O que Platão deseja transmitir é, presumimos, que a essência de cada uma das virtudes consista em alguma relação com o bem – é em virtude dessa relação que elas existem, e sob essa luz sua natureza pode ser compreendida. Existem dicas dessa interpretação em outros diálogos. No Laques, Platão havia dito que o conhecimento do bem e mal é a essência de várias virtudes (199 d 4-e 1). No Hippias Maior, havia dito que nós perseguimos o fronhsij e todas as demais

qualidades porque elas produzem e resultam no bem, o que vale a pena procurar (297 b 2-7). No Fedro ele define temperança como sendo guiada pelo desejo pelo melhor (237 d 6-e 3). Devemos supor que nessas linhas ele acreditava que a essência de todas as virtudes consiste numa relação definida com a Idéia de bem.

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Isso, tal parte do significado de Platão é mostrada pela passagem introdutória à qual já nos referimos60 O que ele tem em mente é a possibilidade de definição das virtudes com referência à relação precisa de cada um do summum bonum da vida humana, e não às partes da alma. Podemos supor que, como ele ensinava que a sabedoria era essencialmente conhecimento do bem (505 b 5-10), ele pensou a coragem, a temperança e a justiça como sendo essencialmente a busca pelo bem, em detrimento do medo, da autopiedade e avareza. As Idéias de virtudes devem, então, sua existência e inteligibilidade à Idéia de bem e, para elas a Idéia de bem “atravessa a existência de dignidade e poder” (509 b 6-10).

Mas Platão confere à Idéia de bem, em outras palavras bondade ou excelência, um significado muito mais amplo do que o sentido ético que nós consideramos. Ele a descreve como “provendo aos objetos de conhecimento” – todos eles- “ sua verdade, e àquele que os conhece, seu poder de conhecer” (508 c 1-3). Aqui é mais difícil seguir seu entendimento, e qualquer interpretação deve ser conjectural.

Para Platão a arete, a qualidade que correspondente ao adjetivo “bom”,

não é limitada à bondade humana; qualquer coisa no mundo tem sua própria característica de excelência. No Górgias ele fala da bondade do corpo e da bondade de “cada coisa, seja uma ferramenta, um corpo, uma alma ou um animal”. Tal pensamento é especialmente proeminente na própria República. Ele fala61 sobre a bondade de cachorros e cavalos, dos olhos, orelhas e todas as outras coisas, do corpo, de cada ferramenta e animal. Em outras palavras ele atribui a tudo no mundo sensível uma excelência ideal análoga ao que é o fim da vida humana para o homem. Nessas passagens não há referência direta às Idéias. Mas em uma passagem essa noção de uma excelência ideal é ligada com as Idéias. No Fedro ele diz que nem todas as coisas iguais às quais os nos nossos sentidos nos familiarizam almejam a “igualdade em si”, ou a idéia de igualdade. Nessa linha de pensamento – da qual também pertence a descrição da Idéia como um modelo e o objeto particular como uma cópia – todas as Idéias são pensadas como grupos de excelência, até mesmo como espécies de uma grande e genérica idéia de excelência em si, e como inteligível somente à luz da Idéia.

Muitos comentadores de Platão disseram que em seu sistema Deus e a Idéia de bem são idênticos; mas essa visão não pode ser mantida. Seria mais verdadeiro dizer duas coisas: Primeira, que enquanto qualquer Idéia – e, portanto, a Idéia de bem – é sempre universal, natural; sempre que menciona Deus, se refere a um ser com natureza e, em particular, não bondade, mas um ser sumamente bom. Isso é claro no Fedro, onde, na narrativa que Sócrates faz de sua história, a razão (i.e. a razão divina) é claramente distinguível do bem para o qual ela olha no governo do mundo (97 b 8-c 6). Novamente no início da República, onde Platão sustenta que cidadãos do estado ideal devem aprender que Deus é bem (379 b 1), ele claramente diz que eles precisam ser ensinados, não que bondade PE bem, mas que o Governador do universo é bem.

Mas em segundo lugar, na seção metafísica da República ele menciona muito pouco da concepção de Deus. Até o Sofista Platão sustenta que a realidade

60

PP. 39-40 supra 61

Em 335 b 8-11, 353 b 2-12, 403d 2-3, 518 d 9-10, 601 d 4-6

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completa pertence não somente a um desencadeamento de Idéias, mas também a um que vive e pensa; e só no Timeu encontramos funções do Demiurgo e sua relação com as Idéias colocadas claramente. Apenas nas Leis as Idéias aparecem saindo do primeiro plano, e Deus tem seu papel central no pensamento de Platão. Nessa passagem há, até mesmo, uma leve anunciação do Timeu, quando Platão fala sobre o artífice (Demiurgo) e dos sentidos (507 c 6).62

A perspectiva de que a Idéia de bem é, no pensamento de Platão, idêntica a Deus é, em grande medida, baseada na passagem de o Sofista em que entendem freqüentemente que Platão atribui “movimento, vida, alma e razão” às Idéias. Mas seria visto mais tarde63 que isso é um completo mal-entendido (ainda que bastante natural) da passagem, que conclui com uma afirmação de que a realidade inclui ambos: aqueles que não mudam (as Idéias) e aqueles que mudam (almas divinas e humanas).

No que concerne à Idéia de bem Platão se aproxima mais, talvez, da expressão da filosofia transcendental, e foi principalmente nessa passagem que os neoplatonistas basearam sua interpretação. A questão que naturalmente se coloca é se Platão teve alguma influência externa quando escreveu tal passagem. Sabemos que Platão tinha laços próximos a Euclides64, o chefe da escola socrático-eleática de Megara, e quem, de acordo com Diogenes Laertes65, “declarou que o bem era um, ainda que chamado por diversos nomes – às vezes sabedoria, às vezes deus, às vezes razão etc. Coisas opostas ao bem que ele afastou dizendo que não existiam”. Burnet sugere66 que o que Platão diz da Idéia de bem foi dito de tal maneira para concordar ao máximo com Euclides sem aceitar o seu monismo. A sugestão não pode ser verificada, mas não é improvável.

B. A passagem da Linha Dividida é uma continuação àquela sobre a Idéia de bem e sol, se desenvolve dela e foi concebida para completá-la (509 c 5-d 6). As classes de objetos com as quais correspondem as duas maiores divisões da linha são chamadas “visível” e “inteligível” (e não “sensível” e “inteligível”); e os detalhes da passagem são desenhados a partir do sentido da visão, apenas. “Em qualquer escala, há esses dois tipos, visível e inteligível. Agora, toma uma linha cortada em dois segmentos desiguais, um representando o visível e outro o inteligível, e seciona de novo cada segmento segundo a mesma proporção.” (509 d 4-8)67

Se tivermos a linha dividida desse jeito:

A D C E B

De forma que AC:CB = AD:DC = CE:EB = I : n,

Então CE = I / n + 1 . CB, e CB = n. AC, ∴ CE = I / n + 1 . AC = DC.

62

Cf. Tw tou ouranou dhmiourgw 63

PP. 108-11 infa 64

Diogenes Laertes. Ii 106, iii. 6 (8) 65

Ii. 106. 66

G.P. 230-3 (traduzir lista de referências) 67

As leituras em d6 variam: ANISA ADM

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A inferência foi, por vezes, interpretada como se Platão quisesse dizer que as duas seções do meio fossem iguais e, assim, não haveria quatro subseções representando quatro tipos de objetos em progressão em clareza ou realidade. Mas a igualdade de DC para CE, embora siga de razões predescritas, nunca é mencionada; e, por outro lado, a passagem contém indicações claras68 de que as quatro subseções devem representar quatro divisões que aumentam em “clareza” (509 d 9) ou “verdade” (510 a 9). A igualdade das seções do meio é uma conseqüência daquilo que Platão queria enfatizar, mas não foi planejada, desejada e, talvez, nem percebida por ele. A ênfase estava na concepção de que as subseções de cada seção e as próprias seções representam objetos desiguais na realidade. Se a matemática da linha tivesse permitido que DC tivesse a mesma razão em relação a CE como AC tem para CB, AD para DC e CE para EB, ele poderia Platão a teria concebido assim. E o fato de ser matematicamente impossível é apenas um indicador do fato de que a linha, sendo apenas um símbolo, é inadequada para a verdade completa que Platão deseja simbolizar.

As seções AC, CB são tidas como símbolo do genoj e do topoj(visíveis) e

do inteligível. A subseção AD é tida como símbolo do eikónej, i.e. “sombras,

reflexos que avistamos nas águas, ou à superfície dos corpos opacos, polidos e brilhantes, e todas as representações similares” (510 a 1-3). A subseção DC simboliza “os animais que nos circundam, as plantas e todas as coisas manufaturadas” (IBID. 5-6). Não é fácil dizer que são “todas as representações similares”. No que um leitor pensaria naturalmente? Seria um erro sugerir que são produtos artísticos. É verdade que esses, de acordo com Platão em outros contextos, imitam as coisas reais, como imagens fazem com os originais. Mas não parece que um leitor pensaria naturalmente neles, sem nenhuma outra pista; e é preciso ser lembrado que os gregos não faziam distinção entre os produtos artísticos e outras coisas manufaturadas. Para um cidadão médio grego, uma estátua era uma manufatura e, portanto, seria incluída na segunda subseção (510 a 6).69 Precisamos procurar por alguma coisa que um leitor poderia pensar como relativa às sombras e reflexões e, de preferência, deveria ser um objeto de visão. Como as palavras anteriores se referiam a sombras e reflexões, seria mais provável que “tudo dessa espécie” se refira a efeitos da refração e a outras ilusões visuais (cf. 602 c 4-d 4).

A segunda subseção é evidentemente voltada a objetos físicos em geral. As coisas na primeira subseção são descritas como sendo como essas, e representando-as como as cópias para os padrões (510 a 5, b 4). E as cópias são tidas como padrão, em relação à verdade, como o objeto de opinião é para objeto de conhecimento (510 a 8-10). Nenhuma das duas principais oposições postas em contraste tem o mesmo nome dos dois objetos com os quais as duas principais seções na linha são correlacionadas. Lá, ouvimos tó nohtón e to oratón (509 d

1-4); aqui ouvimos tó gnwstón e tó doxastón. À primeira vista isso é esquisito,

mas a explicação é simples. Platão não se refere a 509 d 4, mas à oposição que ele tinha explanado antes (477 a 9-b 9) entre o objeto de conhecimento e o de opinião.

68

Vide PP. 47-8 infra

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Gnostwn é usado como sinônimo de noetón, e embora “opinável” esteja longe de

ser sinônimo de “visível”, Platão usa ambos como “objetos de visão” e por “objeto de opinião ”todo o mundo de particulares, como oposição às Idéias. Além disso, em 510 a 8-10 Sócrates pergunta a Glauco se esse concorda que uma subseção do visível-opinável (imagens) precisa da outra (seus originais) como todo o sistema do visível-opinável faz com o conhecível.

Das subseções do visível, Platão continua com as subseções do conhecível. Mas o que ele, de fato, aponta não é a diferença de natureza entre dois tipos de conhecíveis, mas uma diferença –ou, ainda- duas diferenças de procedimento entre duas formas de conhecer. A primeira consiste em que na terceira subseção a mente precisa usar como imagens os objetos da segunda subseção, enquanto para conhecer a quarta subseção essa ajuda não é necessária, mas lida com o conteúdo da própria subseção – as Idéias mesmas. A outra diferença está em que conhecendo coisas na terceira subseção, a mente passa de hipótese a conclusão, enquanto quando conhece coisas na quarta, procede da hipótese para um primeiro princípio não-hipotético.

Na frase “usando como imagens as coisas que antes eram imitadas” (510 b 4), que nos mostra o conteúdo da segunda subseção são as imagens da terceira, como aquelas da primeira eram imagens daquelas da segunda, eu vejo como a evidência mais clara de que a igualdade das duas subseções do meio da linha, que seguem da razão proposta por Platão não é intencional; que se (compativelmente com o que as razões determinam) Platão pudesse ter tido DC na mesma razão para CE que AD para DC, e CE para EB, seria feito; e que o visível e suas subseções não são (como Prof. Ferguson sustenta) introduzidas meramente como uma ilustração para mostrar as relações entre as duas subseções do inteligível, mas que há uma continuidade entre todas as quatro subseções do que é simbolizado, como tem entre todas as quatro subseções do símbolo (a linha); que nas séries eikasía,

pístij, dianoia, noeisij cada termo é pensado como tendo um valor mais alto

do que aquele de que precede. Esse ponto é evidentemente fundamental no significado de Platão; para ele, é explicitamente mencionado duas vezes ainda - em 510 e 1-3 e em 511 a 6-8.

Finalmente, o que Platão pensou desde o começo sobre o terceiro tipo de apreensão como intermediário em valor entre a segunda e a quarta – em outras palavras, esteve pensando das duas mais baixas não como meramente ilustrativas das duas mais altas, mas como formadoras de uma série com elas – é mostrado com destaque em 511 d 4 que dinoia, o terceiro estado de mente, é intermediário

entre a doza (o nome que se aplica às duas primeiras) e nouj (a quarta) e, como

marca a passagem 533 d 5, é mais clara que opinião, mas inferior ao conhecimento

Não é suposto que Platão tenha pensado sobre os quatro estados da mente se diferenciando apenas em grau. Eles diferenciam-se também em tipo, e na passagem da Caverna, a diferença de tipo é simbolizada quando se diz que passando do seu primeiro estado para seu segundo, os prisioneiros são rotacionados e que num estado seguinte, eles são acesos por uma iluminação de tocha para uma antítese específica, a iluminação do sol por cima do ar. Mas enquanto há uma diferença de origem entre os quatro estados, eles são estados em que cada um é mais claro que o anterior, e não meramente o segundo é mais claro

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que o primeiro e o quarto mais claro que o terceiro. Nesse sentido há uma continuidade através da qual a linha simboliza, assim como a linha mesma é contínua, contendo sessões mas nenhum espaço ou mudança de direção.

Os exemplos em 510 C 1-511 a 1 mostram que era matemática que Platão tinha em mente em sua descrição da terceira subseção. Não era numa proposição a priori, mas na base do estudo do método matemático que ele insiste haver a necessidade de diagramas para o estudo da geometria. Platão mostra-se convicto de que a geometria consiste não em deduzir, por lógica pura apenas, conclusões de proposições tomadas como pontos de partida, mas compreendendo as implicações de cada figura que desenhamos. O 'quadrado' desenhado não é o que o geômetro70 está julgando, mas sim uma mera imagem de aproximação; ainda sim ele não poderia deduzir as propriedades do quadrado genuíno se ele não viu em qual caminho os elementos que foram vistos ou imaginados do quadrado se encaixam juntos. Ele precisa de uma intuição de figuras espaciais, assim como em seus axiomas, definições e postulados. Aristóteles dá a mesma descrição de procedimentos geométricos quando ele diz (Met. 1051 a 22) que é apenas por 'dividir figuras' que geômetro faz suas descobertas; e que isto era sem duvida um procedimento dos geômetros na Grécia. A enunciação comum do teorema a ser provada ou o problema a ser resolvido são sempre seguidos de uma enunciação particular - que ABC seja um triângulo - e a prova é encontrada por tais métodos quando dividindo o triângulo ao juntar um ponto com o meio do lado oposto ou bisseccionando um dos ângulos.

Deste modo, Platão se opõe antecipadamente com duas teorias que foram encontradas de acordo com os tempos modernos - A teoria empírica representada por Mill (in. System of Logic, BK. Ii, ch. 5 §1), que diz que a geometria e uma ciência indutiva gerada pela observação das figuras sensíveis e encontrando aproximadamente generalizações verdadeiras sobre elas, e racionalização ou teoria logística que defende geometria como procedendo de pura argumentação sozinha com os axiomas, definições e postulados relacionando a figuras geométricas perfeitas, sem nenhuma necessidade de uma intuição espacial. A questão que de um dos três pontos de vista é verdadeira é de muito importância, mas precisaria de mais que uma explicação separada para essa discussão, e pertence mais à epistemologia do que à metafísica. Isso soa muito mais claro do que seguindo um método descrito por Platão e Aristóteles que a geometria na verdade progrediu.

Platão se equivocou sem dúvida quando ele descreveu o geômetro como necessariamente desenhando ou modelando suas particularidades; ele deixou passar o fato de que qualquer um com uma imaginação visual ativa pode fazer por onde com essa figuras imaginárias. Mas o reconhecimento disso não invalida sua teoria, que diz que é pelo uso das particularidades que o geômetro adquire seu conhecimento; para uma figura imaginaria é tão particular quanto uma que esta desenhada e pode ser vista.

70

A palavra “geômetro” não existe em língua portuguesa, no entanto, foi adotada pela tradução para se aproximar mais da original em inglês “geometer”. Significa, portanto, estudioso ou entendedor de geometria. (N.T.)

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Ele conclui que o método da aritmética é, nesse aspecto, o mesmo que o da geometria (510 c 2). Sem dúvida, nos estágios primeiros, é pelo uso de grupos particulares numerados - grupo de bolas em fios, pontos no papel, etc - que as verdades da aritmética são aprendidas. Mas quando um estágio bem inicial se passou, a aritmética e a álgebra prosseguiram sem nenhuma outra necessidade como esta.

Eles usam os símbolos, certamente – o nome dos números, e símbolos como a,b,x,y. Mas a relação disso com os números que o aritmético está pensando sobre é bem diferente da relação das figuras particulares do geômetro para as figuras perfeitas que ele esta estudando. Elas não são coisas individualmente sensíveis utilizadas para nos ajudar a concentrar nossa atenção em coisas invisíveis às quais elas se aproximam; elas são símbolos arbitrários e cada uma delas representa um número de uma genuína entidade matemática – ‘2’ para qualquer grupo formado por dois membros e assim por diante. Platão é provavelmente muito influenciado nesse sentido pelo hábito grego de representar cada número por um grupo de pontos arranjados de uma certa maneira, assim como ainda fazemos em dados e dominós. Ele deve ter pensado que o aritmético ao lidar com números sempre teve antes dele uma representação particular deles vista ou imaginada. Mas é claro que ao lidar com uma grande quantidade de números, isso é impossível; o sistema artificial de símbolos sozinho é suficiente para direcionar nova atenção e nos concentrar no nosso objeto real.

Concluí, como todos tem direito de, que Platão quis dizer que a característica da terceira sucessão, assim como seu caráter hipotético, para aplicar a aritmética assim como para a geometria; mas é válido notar que, enquanto se fala do caráter hipotético ele menciona, e dá situações partidas de, duas ciências (510c 3-5) ao falar-se do uso de símbolos ele dá situações apenas vindas da geometria (510 d 7 –e1). Se ele tivesse tentado encontrar situações na aritmética ele talvez iria tender-se a notar diferenças essenciais entre as duas ciências nesse aspecto.

A segunda característica dessa sucessão é que nesta, a mente procede de hipóteses não examinadas. É importante tentar formar uma concepção definida da natureza das hipóteses com as quais Platão supôs iniciarem a matemática. Para começar, não há nada hipotético, no senso comum, sobre as hipóteses; elas não são argumentos considerados meramente para que se possam ver as conseqüências que podem ser desenhadas por elas. Elas são aceitas inquestionavelmente como verdade e como algo óbvio para qualquer um (510 c6 – d7). A seguir, algo que foi concluído de acordo com o que foi dito, devemos estar preparados para a informação nas situações dadas por Platão. Matemática, ele diz, conclui ‘o estranho e o equivalente, as figuras, e três tipos de ângulos’. É natural supor que os argumentos são argumentos da existência dessas coisas, e não argumentos de sua definição; e essa visão deriva alguma confirmação do fato que Aristóteles, que estava provavelmente seguindo a tradição platônica, usa a palavra upoqeseij expressivamente (em an post 12 a 18-24) para representar os

argumentos da existência que são básicos para a ciência, distinguindo-se lógico de orismoi ou definições que são igualmente básicas.

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Como, assim, deveríamos interpretar essas situações? A primeira nos deveríamos naturalmente interpretar como significando ‘argumentos de que existem números equivalentes incomuns’, talvez com a adição de ‘e que não existem outros’. O segundo, deveríamos naturalmente interpretar como significado de argumentos da existência de triângulos e de seus tipos; dos quadriláteros e seus tipos, dos círculos e de seus setores e segmentos. O terceiro, deveríamos naturalmente interpretar como argumentos da existência de ângulos retos agudos e obtusos.

A atitude de praticar matematicamente a frente dos assuntos da ciência, não tanto a filosofar sobre as suas fundações, é um argumento. Para ele, parece evidente que todo número inteiro deve ser ou incomum ou equivalente, que existem figuras assim como triângulo e círculo, que existem ângulos retos agudos e obtusos; e ele esta interessado não na natureza implacável dos números ou do espaço mas em percorrer o processo das conclusões que seguiram desses argumentos. A maneira como Platão age com o processo da matemática nesse aspecto esta certamente correta; nós devemos atualmente ter que considerar seu modo com a suplementação que ele pensa que esse procedimento requere e recebe da filosofia.

Jackson sugeriu uma conexão lógica entre duas características distintas da matemática mencionadas por Platão. 'O método inferior e a seguir iniciando de logoi, os quais (1) são hipotéticos nesse sentido, que eles não tinham sido

mostrados ser incorretas e incompletas estruturas de idéias, e (2) por essa razão (grifo nosso) ainda estão dependentes das particularidades ou "muitos" dos quais que foram originados derivadamente' A sugestão é interessante, mas não pode ser dita ser baseada em nada que Platão afirmou realmente. Sua linguagem sugestionaria sendo assim, que ele criou a primeira dessas características baseada na segunda; ele diz “usando como imagens as coisas que foram anteriormente imitadas, a alma é coagida a começar sua busca a partir de hipóteses”, onde “usando” pode significar ‘por que usa’. Seu significado pode ser que o matemático e tão preso ao uso de diagramas visíveis que ele e prevenindo de compreender, em sua pureza, os objetos reais de seu estudo.

Platão concebe o estado da mente que lida com a terceira subseção assim como incluindo algo mais do que o estudo da geometria e aritmética – ‘estudantes de geometria, aritmético e outros’, ‘o processo da geometria e artes vinculadas'. Por isso, ele quis dizer os termos da matemática aplicada, assim como astronomia e harmônicos. Não há evidencia que ele pensou em qualquer coisa alem destas, e era natural que ele não o fizesse, desde que matemática pura e aplicada era o único estudo em sua época que foi seguidos de uma maneira sistemática. Mas a principio sua teoria (se o uso das hipóteses é considerado) é aplicável a todas as ciências que estudam um assunto particular sem levantar questões implacáveis sobre o estado da realidade da matéria, do individuo e sua relação com outras matérias do individuo.

Em contraste com a terceira sucessão ele descreve a quarta como uma que e estudada sem o uso de imagens sensíveis, e não pelo progresso partido de hipóteses a conclusões mas por regressar de hipóteses para um principio primordial não hipotético. Tra

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É claramente verdadeiro que a filosofia trabalha sem imagens sensíveis. Mas a geometria também pode trabalhar sem imagens sensíveis (sendo possível usar figuras imaginárias), e os estudos aritméticos, são apenas imagináveis sendo assim de linguagem ou de outros símbolos arbitrários. Mas a filosofia também deve usar uma linguagem, o tanto quanto a aritmética usa; e ainda mais, por ser possível para a filosofia trabalhar por vezes sem imaginar exemplos universais do que estuda, nós descobrimos de novo e de novo que deve-se checar seus resultados ao imaginar tais exemplos e ao considerar como as relações a cercam para existir entre os universais iriam funcionar nos exemplos desses universais. Deve ser questionado, entretanto, se a distinção de Platão descreve entre a filosofia e a ciência, nesse aspecto, pode ser mantida como uma dura e rápida distinção. O que podemos dizer [e que a filosofia nunca usa imagens sensíveis, e que e menos dependente do que a geometria dos exemplos imaginários.

A segunda distinção que Platão descreve entre a ciência e a filosofia pode ser aceita com menos reservas. Nós podemos de qualquer forma dizer que existe uma completa distinção entre duas maneiras de pensar, uma que e aceita sem questionamento hipóteses que são Prima Facie aparente, e outra que testa, ou tem o objetivo de testar, todas as hipóteses ate que faca uma das três coisas – encontrá-las seguindo de princípios iniciais que não podem ser duvidados, encontrá-las em conflito com esses princípios, ou falhar na busca de uma seqüência lógica ou contradição entre elas e eliminar os princípios iniciais.

A divisão do trabalho de Platão aqui assimila a ciência e a dialética (ou filosofia) nos lembra os estágios do tratamento de hipóteses demarcadas em Fedro, VIZ. (1) aceitação do que parecem ser bem fundadas hipóteses com um bom fundamento, e o caminho delas ate conclusões, (2) a rejeição destes dos quais conclusões contraditórias vem a seguir, (3) a elevação de hipótese para hipótese ate que ‘algo suficiente’ seja encontrado. E impossível não ver afinidades do primeiro desses estágios com o método descrito a ciência na República, e o terceiro estagio com o método descrido na dialética. De fato, Platão na República deixa mais explicito o aviso final expressado em Fedro, que o ser deve a todo custo não confundir os vários estágios entre si. Ele agora demarca o primeiro estagio definitivamente pelo terceiro e os assimila respectivamente a ciência e a filosofia.

Não deve haver nenhuma pergunta de que no terceiro estagio – o teste de hipóteses por checar se esses princípios que elas seguem são indubitáveis – é necessário considerar as hipóteses das ciências. A historia da ciência e rica em exemplos de hipóteses aceitas a muito tempo como evidentes e depois foram descobertas serem nem evidentes nem capazes de dedução a partir de qualquer coisa. Tempos depois, a ciência teve que fazer uma extensa revisão sobre as suas próprias premissas; a atenção de muitos matemáticos e imensamente derrotada ao exame de argumentos da matemática por si só, e uma muito importante purificação desses argumentos foi conquistada. Embora os dois processos – de dedução por argumentos e do exame de argumentos – sejam bem diferentes, não há razão para eles terem sido feitos pelas mesmas pessoas – nenhuma razão exceto que muitas pessoas tinham talentos maiores para um dos dois processos do que para o outro.

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Platão, entretanto, em dois aspectos vai além em sua descrição no trabalho da filosofia do que ate então tinha sido indicado.

1. Em primeiro lugar, ele aparentemente contempla a derivação de todas as hipóteses e de todas as ciências (ou pelo menos aquelas que sobreviveram ao teste) partindo de um único principio inicial. A idéia de Bom não e mencionada assim como a passagem da linha, mas podemos duramente duvidar que ‘o primeiro principio do universo [e uma alusão a ela’. Para toda passagem da Linha e introduzida com objetivo de completar a teoria da idéia do Bom, a idéia do Bom já foi descrita como o principio de explicação mais conclusivo; os prisioneiros soltos da caverna vêem o sol acima de tudo, e o sol representa para eles, a idéia do Bom; e em 532a5-b2 Platão diz ‘O ápice do mundo inteligível e encontrado em discussão de alguém que aspira, através do discurso da razão, desprovido de qualquer sentido, fazer seu caminho em todo caso à realidade essencial, perseverando até alcançar por pura inteligência a maior e mais forte natureza da Bondade ela mesma’

É posta a frente a visão que Platão tinha em mente de dois ’princípios iniciais não hipotéticos’- a idéia do bem, por onde as idéias morais foram derivadas e a idéia do Único de onde a idéia dos números e depois através deles a idéia das figuras espaciais seriam derivadas. O que Aristóteles nos diz sobre a teoria dos números de idéias mostra que Platão conclusivamente tentou uma derivação das idéias matemáticas; mas não há nada para sustentar a visão que na republica Platão tinha isso em mente. Não há menção da idéia de unidade, e nenhuma sugestão de que existem dois princípios conclusivos de explicação.

É um ideal estimulante, que da dedução de todo o tecido da ciência a partir de um único principio; mas esse ideal pode ser criticado a partir de dois pontos de vista. Por um lado pode ser argumentado que está inteiramente além do poder da mente humana deduzir toda estrutura do sistema de idéias a partir de um principio. Que significado concreto, por exemplo, pode ser assimilado a uma sugestão que a divisão de números entre incomuns e equivalentes pode ser mostrada a ser necessária por que e bom que ela seja dividida? Por outro lado pode ser dito que nenhuma dedução e necessária - que a divisão dos números entre incomuns e equivalentes segue a partir dos mais profundos significados que anexamos as palavras, números, incomuns e equivalentes. O melhor que pode ser dito em defesa de Platão e que ele apenas vai mais longe por criar um caminho exagerado para o principio sonoro, que os argumentos que aceitamos como axiomas deveriam ser reduzidos ao menor número possível.

2. Platão cria um argumento ainda mais forte sobre a relação da filosofia com a ciência. Em 533c7 ele diz que a dialética procede por seguir com (anairousa) suas

hipóteses). A expressão é tão forte e a primeira vista, tão surpreendente, que outras leituras se fazem necessárias. Uma leitura sugerida, taj upoqeseij

anairousa ep auten arxhn não daria nenhum bom significado; se você

deduzir hipóteses por um principio superior você não as nivela para este principio. anairousa, que ocorre num manuscrito corrigido de Stobaeus da um bom sentido,

mas [e muito remoto de anairousa e da um sentido muito fácil, com abertura

para que possa ser corrompido em anairousa, anaferousa, aniousa,

anaptousa. estão abertos para as mesmas objeções. aneirousa está mais Tra

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aproximada da leitura do manuscrito, e da um bom sentido. Mas parece mais certo aceitar a anairousa e tentar um bom sentido para este.

Usando a palavra como significando ‘negando a verdade de’, Tayler fez uma interessante sugestão sobre os três exemplos de hipóteses matemáticas que Platão dá. O primeiro exemplo é ‘o incomum e o equivalente’. Taylor sugere que Platão tinha em visão uma expansão de toda noção de numero assim como incluir irracionais, os quais não são incomuns nem equivalentes. Mas não há nenhuma evidencia em Platão, favorável a data provável da República, de um interesse especial nos irracionais (isto parece começar com o Teeteto), nem evidencia nenhuma antes do Epinemes (Cf Van der Wielen, I.P. 13-17), o qual se ele escreveu foi seu ultimo trabalho, que ele teria chamado de números irracionais.

O segundo exemplo e ‘as figuras’. Taylor pensa que isso se refere a algum argumento feito por matemáticos do tempo de Platão que envolveram conseqüências que era contraditas pelo fato de que haviam apenas 5 sólidos regulares que podem ser inscritos no círculo. Mas não é provável que o argumento de ‘as figuras’ que Platão assimila aos matemáticos que seu tempo foi um argumento relativo a geometria solida, desde o Livro IV, ele fala disso como uma ciência a ser criada e não como uma que já existe.

O terceiro exemplo é ‘três tipos de ângulo’. Taylor pensa que este e o argumento onde há ângulos formados por linhas retas, ângulos formados por curvas e ângulos formados por uma linha reta e uma curva, argumento o qual foi descoberto a levar a certas dificuldades considerando o ângulo formado pelo circulo e sua tangente. Mas não e provável que Platão descreveria o argumento como subseqüente como de dois tipos de ângulo como um dos argumentos básicos da geometria desde que e apenas na geometria bem avançada que tais ângulos vêm ao reconhecimento.

Nós sabemos comparativamente pouco sobre o que era o argumento básico da geometria do tempo de Platão, mas às definições que eram representadas no inicio de Euclides elucidavam esse argumento; para os Elementos de Euclides eram baseadas no elementos já existentes nos tempos de Platão. Agora Euclides, no inicio do Livro I, fornece definições de, e por implicações conclui a existência de, ângulos reto, obtuso e agudo, o circulo, o semicírculo, triângulos, quadriláteros, e polígonos, triângulos eqüiláteros, isósceles, escalenos, triângulos de ângulos retos, obtusos, agudos, quadrados, retângulos, losangos e trapézios; e ele não oferece nada que responda a sugestão de Taylor. E razoável supor que os argumentos que Euclides nomeia são o tipo de coisa que Platão tinha em vista. devemos procurar em outro lugar para uma interpretação de anairousa.

Deve ser interpretado na luz da frase que justamente a precede em 533bc-c3, onde Platão diz que ‘as ciências estão apenas sonhando enquanto eles têm o uso de hipóteses e deixam-nas no mesmo lugar, não sendo possível formular uma teoria sobre elas’, por exemplo, para deduzi-las. Isso aponta para um cancelamento de hipóteses, não no sentido de rejeitá-las como não verdades, mas no sentido de cessar ao considerá-las bases certas para dedução, ate que elas tenham sido deduzidas por si. Então interpretadas, a anairousa primeiramente diz em uma

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maneira elevada o que eles já tinham dito na passagem da Linha. Um exemplo de cancelamento de hipóteses desse sentido será encontrado em sua futura derivação de números incomuns e equivalentes a partir de Aquela e da grande pequena.

O segundo estagio do tratamento das hipóteses no Fedro, não e mencionado na República, mas e improvável que Platão tenha esquecido isso; e ainda mais, mesmo provavelmente secundário, significado para anairousa pode ser

encontrado se supormos que todas as hipóteses precisam de dedução vindas de um principio primário vidente, ele pensou que algumas delas deveriam ser rejeitadas como não verdades por que eles levavam a conclusões contraditórias. Assim ele estava preparado para rejeitar os argumentos que os matemáticos contemporâneos e isto e mostrado pela sua rejeição do ponto com um dogma geométrico. Finalmente, o terceiro estagio do tratamento das hipóteses podem encaminhar mais a frente justificações da anairousa, assim como aplicadas a alguns

pensamentos não a todas pressuposições da ciência. Na tentativa de justificá-los por buscar por mais alguns certos princípios sustentados por elas, a dialética pode descobrir que alguns deles são incompatíveis com os certos princípios e outros não podem ser deduzidos de modo algum; nos dois casos a hipótese pode justamente ser dita a ser cancelada.

Mas se considerarmos o tratamento de Platão as hipóteses aqui mostradas, como baseado nos princípios mostrados de Fedro nos devemos reconhecer que em um ponto Platão vai alem de Fedro. La a busca se encerrou assim que ti ikainon,

um princípio suficiente, foi encontrado de qualquer principio o qual todos os grupos de discussão estavam dispostos a concordar a serem chamados suficientes. No Fedro tal princípio foi encontrado na teoria das idéias, simplesmente por que todos os concorrentes aceitaram. Mas agora Platão não esta mais satisfeito com o acordo comum, apenas uma idéia absolutamente auto-ilucidatória o satisfará. Uma citação deve ser adicionada a segunda metade do trabalho de dialética, a queda no progresso do primeiro principio (511bc-c2). O progresso elevado não e um processo de prova mas a busca pelo principio que não precisa nem admite a prova, um processo que exclui na visão direta de tal principio. A queda do processo e a que em qual as conseqüências desse principio são exibidas em sua ordem logo abaixo a essas hipóteses que sobreviveram à examinação e aquelas novas que tomaram lugar de qualquer uma que foi descartada. Não seria uma mera reduplicação do processo de elevação, por que a elevação do processo foi tentadora, com (em todas as probabilidades) muitos falsos inícios, o quanto antes, a queda do processo começou todos os erros antes do inicio da queda do processo foram purgados, e o processo seria através de uma cadeia de proposições em suas ordens de dependência, ordine geometrico demonstrata. Será relacionada ao ponto anterior como a exposição da prova de um teorema matemático é a prova para original busca de sua prova; mas ambas as buscas de exposição alcançarão um nível superior na hierarquia de idéias do que a busca cientifica e exibições alcançaria.

Uma questão mais a frente nos espera. As quatro divisões da linha são ditas a representar as duas divisões do visível e as duas divisões do inteligível. Nos naturalmente supomos que eles são destinados a simbolizar não diferentes atividades mentais ou estados. Nos de objetos diferentes; em consideração as

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divisões do visível, isso e na verdade. Mas com relação as duas divisões seguintes, enquanto Platão indicou magnificamente a diferença entre ciência e filosofia, ele disse pouco ou nada sobre uma diferença entre seus objetos. Agora existe uma doutrina que sabemos que em algum período de sua vida ele possuiu, por que se encaixaria perfeitamente as necessidades da passagem. Em met.987b14-8 Aristóteles nos diz que Platão distinguiu entre idéias e ta maqematika , que

também era chamada de ta metazu, por que estavam intermediarias entre idéias

e sensos particulares, imutáveis como as idéias mas plurais como particulares que caem sobre oura idéia. Uma pequena reflexão mostra que quando um matemático fala de dois triângulos da mesma base, ou de dois círculos que se interseccionam, ele não esta falando de idéia de triangulo ou de idéia de circulo, desde que exista apenas uma idéia de triangulo (triangulidade) e uma idéia de circulo (circularidade). Por outro lado ele não esta falando de triângulos ou círculos sensíveis, desde que estes apenas se aproximam dos atributos que o geômetro prova pertencer. Não aproximadamente, mas precisamente às entidades as quais ele esta se referindo. Ele de fato esta falando sobre a divisão do espaço entre três linhas retas e por uma linha circular. E Platão parece ter se convencido assim mesmo que similarmente quando o aritmético diz 2 e 2 dão 4, ele não esta falando de dualidade e nem ainda dos pares sensíveis, mas de números tendo um estado intermediário entre estes.

A visão71 que ta maqhmatika e Idéias são os objetos simbolizados pelas

duas últimas subseções é muito atraente; mas é difícil aceitá-las. Por um lado, a descoberta da maqhmatika foi uma grande inovação. Significou a reposição do

dualismo, que dominou nos diálogos até este ponto, de Idéias e sensos - particulares, por uma tripla classificação do conteúdo do universo. Desta forma, qualquer pessoa que esteja familiarizada com os escritos de Platão sabe que ele não é nada se não explícito. O argumento que ele deseja mostrar, ele o faz com bastante clareza e normalmente usa uma certa quantidade de repetições para explicá-lo. Não há nenhuma tentativa na passagem da Linha de trazer à tona as diferenças entre Idéias e ta maqhmatika; nenhuma sugestão da diferença central

entre elas, que para cada Idéia há muitas maqhmatika correspondentes.

Certamente os objetos de dianoia são falados de maneira que implica que eles

são Idéias.

Elas são falados no singular e não no plural e com a qualificação auto o que

de fato é uma marca de uma Idéia tou tetragwnou autou eneka touj logouj

poioumenoi kai diametrou autvj (510 d 7). Mais adiante ele fala sobre elas

(512 d 1) noun ouk ioxein peri auta dokouai aoi kaitoi novtwn meta

arxvj, é verdade, é ambíguo.

As duas subseções juntas formam to novton, ainda que, apenas a superior

das duas é o objeto do nouj; a inferior é o objeto de dianoia. Mas na passagem

citada, a lógica requer novtoj para ter o seu sentido mais especifico: 'os cientistas

não tem nouj sobre os seus objetos, embora estes sejam novta quando vistos em

conexão com o princípio primeiro' . Aqui os mesmos objetos de dianoia se tornam

objetos do nouj quando tratados diferentemente. Ainda mais, a Linha na sua

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O que leva de volta a Proclus (in Euc. 4 . 14-5. 10 (ed. Friedlein)).

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totalidade é baseada na dicotomia 'visível-inteligível', e na passagem do ‘Sol - Idéia de Bem’, o inteligível tem sido identificado com as Idéias (507 b 9-10). Segue-se disto que cada uma das duas subseções superiores da Linha significam e fazem parte do mundo das Idéias, assim como cada uma das duas inferiores fazem parte da subdivisão do mundo sensível.

Precisamos buscar que evidências existem alhures em Platão de sua sustentação na crença dos 'intermediários'.

(a) A primeira passagem a ser observada é Fedon 74 c 1, onde achamos a questão 'os iguais eles mesmos sempre parecem para você desiguais, ou igualdade parecer ser desigualdade?’ Aqui os ‘iguais eles mesmos’ são indubitavelmente distintos da Idéia de igualdade. Porém, nenhum uso é feito desta distinção; para 'esses iguais' em 74 c 4 significa não 'os iguais eles mesmos' mas sim os iguais sensíveis (ou ainda, aproximadamente coisas sensíveis iguais), e são somente essas cujas diferenças da Idéia de igualdade é enfatizada. A passagem não implica necessariamente na crença da existência de iguais perfeitos; Platão pode apenas ter indicado que nenhum par de coisas conhecidas por serem perfeitamente iguais jamais pareceu ser desigual. Quando ele escreveu Fedon se ele já acreditasse nos intermediários ele dificilmente teria falhado em enfatizar sua existência, nesta passagem.

(b) Na República 526 a 1 Platão diz dos matemáticos: 'Se eles forem perguntados o que são esses números sobre os quais estão falando, em cada uma unidade, como eles afirmam, que é exatamente semelhante a todos os outros e não contém partes, qual seria a resposta deles? Por isso, devo dizer que os números a que eles se referem só podem ser concebidos pelo pensamento.' Aqui Platão descreve os matemáticos como unidades reconhecedoras que existem no número plural e ainda são distintas das coisas sensíveis (porque são exatamente iguais). Agora unidades que existem no plural precisam certamente ser diferentes da Idéia de unidade, então a distinção entre Idéias, os objetos da matemática e coisas sensíveis está implícita na passagem; mas não é dita explicitamente.

(c) Em Timeu 50 c 4 'as coisas que entram e saem' do espaço tem sido, por vezes, supostas como sendo perfeitos formatos geométricos; mas isso é negativado pelo fato que são descritos como 'imitações de coisas que existem para sempre' (as Idéias), estão então implicadas não serem eternos eles mesmos, como os intermediários são (de acordo com o relato de Aristóteles sobre Platão). Nesse ponto do argumento do Timeu, também, não existe nada mostrando que existem formas de fato. Elas são características de qualquer tipo, fazendo aparições e desaparições dos 'receptáculos do vir a ser'; elas são, de fato, qualidades sensíveis.

(d) Em Timeus 53 a 7-b 5 lemos que foi através das formas e números que o Demiurgo moldou em fogo, ar, água e terra genuínos, o rudimentar fogo, ar, água e terra que existiam sozinhos antes de começar o seu trabalho de formar o mundo. Mas essa referência é muito geral para quantificar o reconhecimento que define as formas e números intermediários em caráter entre as Idéias e as coisas sensíveis.

(e) Foi suposto, algumas vezes, que o elemento do limite que ocorre na divisão quádrupla das coisas existentes, em Filebo 23 c 4-d 8 é para ser identificado com os intermediários. Sem dúvida ‘limite’ refere-se à definição numérica e métrica, Tra

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mas isso não pode ser dito sem nenhuma plausibilidade que Platão naquela passagem distingue os intermediários das Idéias.

f) Filebo 56 d 4-e 3 vai mais direto ao ponto. Platão diz aqui: ‘não é aritmética de dois tipos, uma que é popular e a outra filosófica? . . . Alguns aritméticos falam de unidades desiguais; como por exemplo; dois exércitos, dois bois, duas coisas muito pequenas ou duas coisas muito grandes. O partido que se opõe a eles teria discordado; eles insistem que cada unidade em dez mil deve estar sem diferença de qualquer outra unidade’; e presentemente ele desenvolve uma distinção similar entre mensuração prática e geometria ‘filosófica’. Essa passagem faz exatamente o mesmo argumento da passagem (b)

g) Em Ep. 7 342 a 7 – c 4 Platão distingue a respeito de ‘cada coisa existente’, três sentidos para o conhecimento disto, e ele toma o círculo como exemplo. Os três são (1) o nome ‘círculo’, (2) a definição dele, (3) o círculo ‘que é desenhado e apagado, ou jogado no torno e destruído’, (4) também existe o conhecimento da coisa, (5) e a coisa ela mesma (em si). Não há menção de um círculo individual perfeito reconhecido na teoria dos ‘intermediários’. Agora, provavelmente, a Sétima Carta foi escrita vinte e cinco anos depois da República, e seria bastante surpreendente se uma teoria apoiada por Platão, quando ele escreveu a República, fosse ignorada em uma passagem mais tardia, quando a menção sobre ela teria sido tão apropriada.

Dessas passagens as duas que chegam mais perto de uma definição reconhecida dos intermediários é a segunda e a sexta. Mas essas, quando expostas em evidência na passagem da Linha Dividida não justifica a visão que a doutrina pode ser achada nessa passagem; e a passagem da Carta Sete, sugere que só no final de sua vida, é que Platão formulou a doutrina, mas já havia tentado formulá-la há tempos.

Vale a pena enquanto examinamos com mais profundidade a tese que a lógica da Linha requer que Platão já tenha tido em mente uma clara distinção entre Idéias e ‘intermediários’. É algumas vezes enfatizado que ele começa com a divisão de objetos e somente depois distingue e nomeia os correspondentes estados mentais. E é verdade que a passagem distingue entre imagens e seus originais muito antes de dar nomes aos estados mentais correspondentes - eikasia e

pistij. Mas no exato começo a divisão, embora nominalmente uma distinção de

objetos na verdade reside numa distinção entre faculdades mentais. As duas principais sessões são descritas como apoio, não para Idéias e particulares físicos, mas para objetos de inteligência e objetos de visão (509 d I-4). É verdade que quando Platão vem a subdividir a sessão posterior ele descreve os conteúdos e suas subseções pela referência de sua própria natureza, como imagens, animais e vegetais, etc. Mas referindo-se a sessão mais importante como visível e o inteligível ele já, em princípio, disse que um modo legítimo é distingui-los enquanto objetos de estado mental a e objetos de estado mental b. E isso, e não o método de distinguir objetos pela referência a sua própria natureza, é o método no qual ele realmente segue quando divide a inteligência. Como dividimos o inteligível? Ele pergunta (510 b 2); e ele não responde ‘pelo fato de que alguns inteligíveis são eternos e plurais enquanto outros são eternos e únicos’, como ele poderia facilmente ter feito se ele tivesse tido a doutrina dos matemáticos em sua mente. Ele diz ‘a respeito do fato que um deles é estudado através do apoio de imagens e

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hipóteses, o outro sem imagens e hipóteses’; ele recorre envolvido em sua oposição original do visível ao inteligível, o princípio de dividir objetos pela referência às atividades mentais das quais elas são objetos. Nenhuma palavra é dita sobre qualquer outra distinção entre os objetos de dianoia e os de novsij.

O que isso aponta é para a divisão entre Idéias, e uma divisão a qual ele pensa apenas em termos da maneira em que são estudados. Mas se um método de estudo é apropriado para um conjunto de idéias e outro para outro, deve ser pela diferença objetiva entre os dois pares. Como teria Platão dito isso, se ele perguntava-se sobre essa questão? Cada uma das duas características para qual os dois estados mentais são descritos joga uma luz na questão. A referência ao uso de imagens mostra que objetos de dianoia são idéias matemáticas, para cuja

compreensão uma intuição imaginativa ou sensível da estrutura das figuras espaciais ou (de acordo com Platão) de números é necessária, enquanto contra idéias estéticas e morais, para qual não há nenhuma necessidade correspondente; e pode ser apontado que essas são os dois tipos principais de Idéia que são familiares nos diálogos primeiros e que são enfatizados novamente no Parmênides (130 b 1-10). Por outro lado, a oposição feita entre o procedimento que segue das hipóteses para baixo e aquele que procede para cima a partir deles aponta para uma divisão de Idéias entre as que vêm acima as que vêm abaixo na hierarquia das Idéias. A sugestão parece ser essa, então se você começa com Idéias bem abaixo na hierarquia, a possibilidade de derivação delas para algo auto-evidente parece tão remota que quase inevitavelmente renuncia a tentativa e simplesmente toma as Idéias como certas e procede em extrair as conseqüências que puder;72 enquanto que se por outro lado você iniciar alto na hierarquia, a possibilidade de conectar com as Idéias elevadas das quais você começa com outras ainda mais altas, e por fim com a Idéia de bem, naturalmente ocorre a você, você se move para cima ao invés de para baixo.

Mais adiante, não parece muito que Platão pensou nessas duas maneiras de dividir o mundo ideal como verdadeiramente produzindo a mesma divisão, entre Idéias matemáticas como abaixo na hierarquia e as Idéias éticas como mais altas na escala. Pois Idéias éticas são muito mais próximas e obviamente conectadas com a Idéia de Bem do que são as Idéias matemáticas.

Platão duas vezes (510 b 5, 511 a 4) fala sobre a matemática como ‘sendo compelida` a usar o método que usa, que ao empregar imagens e assumindo hipóteses; fica implícito que algo na natureza das Idéias estudadas determinam o método em uso. Ainda indubitavelmente essa era sua visão, implícita no Sol e na passagem da Idéia de Bem, que em última instância todo o mundo das Idéias é capaz de ser iluminado pela Idéia de Bem, e estudado pelo método dialético; isso está implícito nas palavras kaitoi novtwn ontwn meta arxvj (511 d 1). Ele

pensa, então, nas duas partes de mundo ideal enquanto suficientemente diferente para sugerir, em princípio, diferentes métodos de estudo, e ainda suficientemente similar e conectado para ser em ultima forma estudado pelo método da dialética.

Ainda, Platão deve ter tido a intenção de mostrar alguma distinção entre os objetos da dianoia os de nouj, assim como entre aquela atividades nelas

mesmas. A conclusão a ser mostrada certamente é que ele pensou nas Idéias 72

Wj ou dunamenvn twn upoqesewn anwterw ekbainein (511 a 5) Tra

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tendendo para duas divisões, uma divisão mais baixa consistindo em Idéias envolvendo números ou espaço, e uma divisão mais elevada não as envolvendo. Quando a filosofia tiver feito seu trabalho, as Idéias que préviamente estavam apenas dianovta tornaram-se novta por derivação de um não-hipotético princípio

primeiro; assim elas permanecem Idéias diferentes daquelas que iniciam os objetos dos nouj.

Eu concluo que os objetos do dianoia não são "intermediários" mas

simples Idéias matemáticas, e aqueles do nouj os das outras Idéias. Platão divide

Idéias entre essas duas classes porque ele descobriu por experiência que a geometria tem essa peculiaridade, que somente pelo uso de construções que tem a possibilidade de progredir. Se nós queremos ver um espécime do método ele aqui mostra ao nouj em contraste ao dianoia, que o progresso das Idéias para as

Idéias sem nenhum uso de imagem, podemos verificar a discussão das ‘maiores classes’ no Sofista.

O principal interesse da sessão sobre dianoia reside em, talvez, no avanço

que ela marca em relação aos primeiros diálogos no qual razão e senso de percepção têm sido simplesmente opostos um ao outro assim como o falível ao infalível. Platão passou a ver que, em geometria, pelo menos, os dois são parceiros indispensáveis.

Se, como eu acredito, estão equivocados aqueles que acham a doutrina ‘dos

intermediários´, na República, Prof. Cherniss vai muito além na direção oposta quando ele nega que Platão jamais acreditou neles. Suas evidencias são as seguintes: 1 - In Metafísica 991 b 27-30 Aristóteles diz: ´Eles devem estabelecer um segundo tipo de número, com o qual a aritmética lida, e todos os objetos que são chamados intermediários por alguns pensadores; como essas coisas existem ou a partir de que princípio elas procedem?73 E, em 1090 b 32-5 ele repete a reclamação que os que acreditam nos ‘intermediários’ não explicam a sua origem. Platão pode, entretanto, ter acreditado nos intermediários sem ter explicado suas origens. Foi a Idéia de número que o interessava e ele pode ter deixado as outras questões para os matemáticos. 2 - Em 991 a 2 – 5 (repetido em 1079 a 33-6) Aristóteles diz: ´Se as idéias e os particulares que são divididos neles mesmos têm a mesma forma, terão algo em comum àqueles; porque terá o duplo que ser um e o mesmo nos perecíveis duplos e naqueles que são muitos porém eternos, e não o mesmo no duplo ele-mesmo assim como o duplo particular?´ Esses pontos para uma identificação por alguns inominados dualistas platônicos no sensível e no dualismo matemático, mas não pode ser usado para manter a visão que Platão não distinguia entre eles, como Aristóteles enfaticamente diz que ele fazia. 3 - Em 990 a 29-32 Aristóteles diz: ´Mesmo Platão pensou que ambos corpos e suas causas são números, mas que os números inteligíveis são causas, enquanto os outros são sensíveis. ´ Mas a principal diferença, para Platão, era que entre as

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R.E.A 75-8 Tra

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Idéias e as coisas sensíveis, , nem ele, nem Aristóteles se referindo a ele, se limita sempre a mencionar os intermediários quando ele menciona as Idéias e os números sensíveis. 4 - O escritor do Epinomis, seja ele Platão ou outro, diz em 990 c 5-8: ´Há necessidade de caminhos para o estudo. O mais importante e o primeiro desses é também aquele que negocia com os números por eles mesmos, e não corporalizado, com a inteira geração de ímpar e par, e com todo o caráter que ele concede à natureza’. O que foi dito sobre a citação prévia aplica-se aqui também. 5 - Alexandre, em Metafísica 78. 16-17 c, cita, aparentemente da obra de Aristóteles De Ideis, uma prova acadêmica da existência das Idéias: ´Número é o número de algo real, mas as coisas desse mundo não são reais; então ele precisa ser o número das Formas; então a Forma existe’. E em 79.13-15 ele cita outro argumento para a existência de Idéias: ´Se geometria não é sobre esse particular igual e esse particular comensurável mas sobre o que é simplesmente igual e o que é simplesmente comensurável, deveria haver um igual-ele próprio e um comensurável-ele próprio, e essas são as Idéias´. Mas esses podem bem ser argumentos utilizados não por Platão mas por Xenócrates, que identificou entidades matemáticas com as Idéias.

Esses argumentos, usados para mostrar que Platão nunca distinguiu os ´intermediários´ das Idéias, não suporta dois fatos: (1) que a distinção está, como nós vimos, abaixo da superfície em diálogo após diálogo, apenas aguardando ser explicitada, e que (2) que a base inteira da discussão de Aristóteles sobre a visão Acadêmica nos Livros M e N da Metafísica é uma distinção entre a visão (o qual ele distintamente diz ser de Platão) que reconhece ambos os tipos de números, a visão (que pode ser atribuído a Speusippus) que recusou-se a reconhecer os números ideais, e a visão (que pode ser atribuída a Xenócrates) que identificou a matemática com os números ideais.74 É possível que Aristóteles teria, sem boa razão, se comprometido com a distinção que se tem tido erroneamente poderia tão facilmente ter sido repudiada pelos membros de qualquer uma das três divisões da escola?

A passagem da Linha conclui com uma sessão75 na qual Platão fornece nomes para os estados mentais em resposta a quatro tipos de objeto – eikasia,

pistij, dianoia, novsij, eikasia aqui significa aqui ´apreensão de

imagens´(eikonej), i.e. de sombras e reflexões. Ainda existe, entre eikasia

como Platão o usa e pistij como ele utiliza, uma distinção ao menos análoga

àquela entre as palavras em seu sentido ordinário. eikasia em seu sentido

ordinário (=´conjectura´) é uma atitude conscientemente insegura em relação a seu objeto, pistij uma atitude que, quer bem ou mal embasada, é livre de

hesitação. eikasia e pistij como usados aqui por Platão são distinguíveis não

por um menor ou maior senso de segurança, mas por uma menor ou maior segurança real em seu lapso de realidade; pois um é uma apreensão menos clara e

74

Cf. p.p. 151-3 infra. 75

511 d 6 e 5.

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uma apreensão de objetos que são menos reais76, sendo meramente imagens de objetos de outro.

A distinção entre novsij e dianoia não é, como em Aristóteles, uma

distinção entre imediata e mediata apreensão. A tarefa da filosofia, não menor que a da ciência, era, para Platão, a de raciocínio, a dedução do menos geral a partir de proposições mais gerais. Ela inclui apenas um ´momento´ de apreensão direta – a apreensão do não-hipotético princípio primordial, que não pode ser deduzido de nenhum outro porque está acima dos demais.

Olhando atrás a passagem inteira, precisamos admitir que existe alguma

verdade em ambas as interpretações, a tradicional e aquela oferecida pelo Prof. Ferguson. A interpretação mais antiga parece ser correta em sustentar que Platão não está utilizando a distinção entre eikasia e pistij meramente para ilustrar

num nível inferior aquela entre dianoia e nouj Se isso fosse a totalidade do

entendimento de Platão, ele teria expressado-o melhor não pegando uma linha contínua mas pegando duas linhas, cada uma dividida na razão que leva à outra; e além, os objetos de pistij são ditos serem imagens de dianoia assim como os

de eikasia são imagens dos de pistij (510b 4, e1- 3, 511a 6-8) Aqui está

portanto a justificativa para a visão que Platão teve dos quatro estados mentais enquanto formando uma série, que ganham em clareza enquanto procedem (nesta série N. do T.). Por outro lado, Prof. Ferguson está certo em apontar a estreita conexão da passagem com aquela sobre a idéia de bem. É novsij e não outro

estado mental que é o principal objeto de interesse de Platão, e que a distinção entre pistij e eikasia é introduzida principalmente enquanto uma ilustração da

diferença entre novsij e dianoia. Segue disso que não estamos obrigados a

sustentar que Platão pensava sobre eikasia como uma importante fase de

apreensão do mundo. O olhar para as sombras e reflexos é antes apenas um ocasional interlúdio da vida de um homem ordinário, cujo habitual estado mental é o de pistij; e tentativas de achar um alcance substancialmente maior para

eikasia do que Platão distintamente assinala são errôneas. pistij, dianoia,

novsij, por outro lado, são para ele os estados característicos de três tipos de

homens – o homem simples, o matemático, o filósofo; e disso, em seu percurso, seguiu sua classificação final do conteúdo do universo (que não almas) em três tipos principais correspondentes aos três estados mentais – sensível particular, objetos matemáticos, idéias.

Essa interpretação geral da passagem é confirmada se tomarmos nota do espaço destinado aos diferentes tipos lidados nela. A primeira sessão principal e suas subseções são dispensadas em 12 linhas (509 d 9 – 510 b 1). A segunda sessão principal e suas subseções têm 56 destinadas para elas (510 b2 – 511 d 5). Claramente o principal objeto de interesse está na segunda sessão; a primeira significava principalmente trazer à luz a distinção entre novsij e dianoia, através

de uma comparação com dois estados mentais similarmente relacionados num nível inferior. Novamente, no tratamento da segunda sessão, toda a ênfase reside na diferença entre os métodos de dianoia e de novsij, e nada, no entanto, é

realmente dito sobre as diferenças entre seus objetos. Precisamos não concluir que

76

511 e 2 - 4

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o propósito da primeira passagem é trazer à luz a natureza da filosofia em contraste com a ciência, como uma preliminar ao detalhado estudo no Livro VII dos estudos matemáticos e o estudo filosófico que o sucederá; e que enquanto a passagem inicia referindo-se a uma diferença de objetos, seu propósito real é melhor indicado pelo seu fechamento, que é uma divisão dos estados mentais (511 d6 e5)? Isso é confirmado pela passagem da recapitulação (533 e7 – 534 a8), onde ele cuidadosamente relata a proporção entre os quatro estados mentais mas se isenta de ir até a ´proporção e divisão´ de seus objetos. Em relação aos objetos, apenas a larga distinção entre as duas sessões principais, o dojaston e o

novton, é considerada importante suficiente para valer ser repetida.

C.77 Agora chegamos à terceira passagem conectada, que se refere à Caverna, onde são mostrados seis sucessivos estágios do homem ‘relativamente à educação ou à sua falta.’ (514 a 2) (a) Um grupo de homens está prisioneiro em uma caverna subterrânea, com suas cabeças acorrentadas, e só pode olhar para a parede no fundo da caverna. Atrás deles passa um muro no alto do qual transitam homens, carregando toda a sorte de vasilhas e estátuas, e há também uma fogueira. Os prisioneiros podem ver somente as sombras deles mesmos, uns dos outros, e dos objetos carregados atrás do muro, e acreditam ser estas as únicas coisas reais (514 a 2-515 c 3). (b) Eles são libertados e forçados a virar suas cabeças na direção do fogo e dos objetos que estão desfilando, mas não conseguem vê-los claramente, devido ao ofuscamento (515 c 4-e 5). (c) São carregados para o aberto, mas não conseguem olhar para a luz do sol, nem para nenhum dos objetos naturais que estão ao redor. Olham então primeiro para as sombras e reflexos desses objetos (515 e 6-516 a 7); em seguida (d) para os próprios objetos (516 a 8), (e) para as estrelas e para a lua (516 a 8-b 3), e (f) para o sol, e deduzem que ‘é o sol que causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e é o responsável por tudo aquilo de que eles viam num arremedo’ (516 b 4-c 2).

Há duas passagens nas quais Platão interpreta para seus leitores o significado da caverna. A primeira é 517 a 8-c 5:

Este quadro ... deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao

77 As citações feitas por Ross dos textos de Platão não foram traduzidas do inglês, mas sim

extraídas de traduções já publicadas do grego para o português. A partir dessa seção do capítulo, as edições utilizadas foram:

A República, tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 10ª. Edição

Fedro, tradução de José Ribeiro Ferreira, edições 70 – Lisboa

Sofista, tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa, Coleção Os pensadores, Abril cultural 1972, 1ª. edição

(N.T.)

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mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a idéia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; e que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública

Aqui surgem duas perguntas preliminares. (a) O que significa toi= j

e) / mprosqenlegome/ noij? (b) O que significa prosapte/ on? ( a) toi= j

e) / mprosqenlegome/ noij tem sido normalmente usado para significar a

passagem da Linha. Mas o Prof. Ferguson indica que o “poder do sol” (517 b 3) não foi mencionado na passagem da Linha (embora estivesse naturalmente implícito, ao se referir às sombras e reflexos que causa). As duas primeiras frases (na tradução) (517 a 8-b 4) nos dizem que a caverna e o fogo significam o mundo visível e o sol, na passagem do Sol e da Idéia do Bem. O restante da passagem é mais difícil de ser interpretado. Começa com ‘Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la’. Agora, na passagem do Sol, nada foi dito de uma ascensão do sensível para o inteligível, então é difícil se encontrar uma referência àquela passagem. Comentadores normalmente aceitam a referência como sendo para a Linha, pois é descrito um movimento para cima. Mas pode não ser o caso. A única subida ali descrita era uma ascensão, mas não para o mundo inteligível, como hipótese de um primeiro princípio não-hipotético (511 d 1); nada foi dito de uma ascensão de objetos visíveis para objetos inteligíveis. Parece que estas palavras em nosso contexto atual não se referem nem ao Sol nem à Linha – que são simples interpretações da própria passagem da Caverna, informando-nos que a ascensão da Caverna para o mundo exterior é para ser usada como exemplo da subida do mundo sensível para o inteligível. Entretanto, este ponto de vista não é totalmente satisfatório. Isto deveria significar que somente a segunda frase (517 b 1-4) remete o pro/ sayij da Caverna para ‘o que dissemos anteriormente’, que

continua sendo não uma interpretação da caverna à luz do que foi dito antes, mas simplesmente uma interpretação do próprio simbolismo da caverna. Isto não é satisfatório porque, enquanto Platão nos convida a conectar a Caverna como um todo (a( / pasan, 517 b 1) com ‘o que dissemos anteriormente’, ele estaria de fato

somente conectando a vida na caverna, e não aquela no mundo exterior (pois na segunda frase nada é dito deste último). Devemos supor que a terceira frase (b 4-6) continua o pro/ sayij. Isto se faz dizendo que a ascensão para o mundo

exterior significa a ascensão para o mundo inteligível, mas com isto Platão traz, por um lapso de memória, uma referência a uma ascensão que não tinha sido mencionada nem na passagem do Sol nem na da Linha, embora implícito em ambas no pensamento de Platão, e sugerido quando ele descreve no/ hsij como

correspondendo ao ‘mais elevado’ segmento da Linha (511 d 8).

É confirmado que a passagem do resumo, no total, se refere novamente à passagem do Sol e não à passagem da Linha, o que Platão continua dizendo nas quinta e sexta frases (517 b 8-c 5), onde ele se refere à Idéia do bem como a causa do que é certo e belo, de dar nascimento à luz e ao senhor da luz (o sol) no

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mundo visível e à verdade e inteligência no mundo inteligível – todos esses assuntos mencionados na passagem do Sol e não na passagem da Linha, enquanto que não é feita referência aos diferentes aspectos da passagem da Linha.

Embora nesta passagem do resumo não exista uma referência específica à Linha, Platão, entretanto, ao identificar naturalmente a caverna com o mundo visível e o mundo exterior com o inteligível, está indiretamente identificando a caverna com o segmento inferior da linha, e o mundo exterior com a parte superior, pois os segmentos inferior e superior dizem expressamente que significam o visível e o invisível (509 d 8).

(b) Acreditamos que Platão pretendia, com esta passagem do resumo, fazer uma comparação direta da Caverna com a Linha, e que muitos estudiosos tomaram prosapte/ on como significando ‘deve ser aplicado’, i.e. sobreposto, no

sentido de estabelecer uma correspondência de um para um entre as etapas na alegoria da Caverna e aquelas na Linha. Parece, entretanto, que prosa/ ptein

nunca ocorre neste sentido nos escritores matemáticos gregos,78 e o Prof. Ferguson se justifica dizendo que aqui não deveria ser traduzido assim. Ele defende uma interpretação mais ampla, e prefere ‘anexar’ a ‘aplicar’; e cita passagens das Rãs (1216, 1231, 1234) nas quais é usado ‘adicionado ou preenchido’. Nenhuma das passagens citadas por Liddell e Scott ou por Ast se assemelha com a presente passagem para esclarecer o significado exato aqui; a tradução como ‘ligado a’ provavelmente está mais próxima da verdade.

Platão desconcertou seus leitores por dizer muito. O uso do sol como símbolo da Idéia do bem, e o mundo visível como símbolo do inteligível foi bastante claro e satisfatório. Aqui na passagem da Caverna, as coisas se complicam por causa de mais um simbolismo. O próprio sol é simbolizado pelo fogo na caverna, e o mundo sensível iluminado pelo sol é a fogueira da caverna.

O Prof. Ferguson não faz esta interpretação. ‘Em face disto’, ele diz79, ‘há um contraste entre dois sistemas de luz; entretanto as interpretações atuais ignoram o ponto onde a comparação coloca mais força. O ponto de ligação é, de fato, a região visível fora da caverna.’ Para ele, a caverna está relacionada à linha desta maneira: A vida na caverna representa uma vida tanto retirada da vida comum sensível (simbolizada pelo primeiro segmento principal da linha), quanto da vida intelectual (simbolizada pelo segundo segmento principal da linha). Platão nos diz que a caverna serve para ilustrar nosso estado ‘relativamente à educação ou à sua falta’ (514 a 2), e o Prof. Ferguson interpreta ‘falta de educação’ como significando não uma vida não educada mas uma maior profundidade, onde somos enganados por sofismas feitos pelo homem.

Este ponto de vista coloca o Prof. Ferguson em grandes dificuldades. -th\ nme\ ndi` o) / yewjfainome/ nhne( / drant$= tou= desmwthri/ ouoi) kh/ seia)

fomoiou= nta80 ele interpreta81 dizendo ‘a região visível, unida pela luz do sol, é

78

A palavra de Platão para isso é paratei/ nein (Menon 87 a 5); de Euclides é paraballein

(6.27). 79

Class. Quart.XV (1921), 139-40. 80

517 b 1-3 Tra

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comparada e contrastada82 com um lugar desprezível, onde a luz é uma fogueira e o lugar uma prisão’; mas é impossível interpretar a) fomoiou= nta assim. O que

Platão diz é que devemos tomar a luz da fogueira dentro da caverna como sendo a vida sensível, o que também significa o primeiro segmento principal da linha.

‘Em seguida’, diz o Prof. Ferguson,83 ‘neste aspecto parece inexplicável que Platão quisesse especificar somente a linha inferior (com a qual ele lida tão resumidamente no Livro VI) e a caverna com tal detalhamento, e permanece silencioso sobre a aplicação vital e importante do “mundo” superior e exterior da caverna na linha superior.’ Mas é sobre isto que Platão fala, na mesma frase em que nos convida a comparar a região visível com a caverna: ‘Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível’.84

Novamente, interpretando a vida na caverna como aquela quando somos iludidos com sofismas fabricados, o Prof. Ferguson parece enfatizar muito o fato de que os prisioneiros olham para as sombras e reflexos de objetos fabricados,85 e se esquece que eles também olham para sombras deles próprios e um do outro86, que são seres criados por Deus.

A segunda passagem, na qual Platão interpreta a caverna é 532 a 1-d 1:

Ora, não é mesmo essa ária, que executa a dialética? Apesar de ser do domínio do inteligível, a faculdade de ver é capaz de a imitar, essa faculdade que nós dissemos que se exercitava já a olhar para os seres vivos, para os astros, e, finalmente, para o próprio Sol. Da mesma maneira, quando alguém tenta, por meio da dialética, sem se servir dos sentidos e só pela razão, alcançar a essência de cada coisa, e não desiste antes de ter apreendido só pela inteligência a essência do bem, chega aos limites do inteligível, tal como aquele chega então aos do visível....Não chamas a este processo dialético? ...A libertação das algemas e o voltar-se das sombras para as figurinhas e para a luz e a ascensão da caverna para o Sol, uma vez lá chegados, a incapacidade que ainda têm de olhar para os animais e plantas e para a luz do Sol, mas, por outro lado, o poder contemplar reflexos divinos na água e sombras, de coisas reais, e não, como anteriormente, sombras de imagens lançadas por uma luz que é, ela mesmo, apenas uma imagem, comparada com o Sol – são esses os efeitos produzidos por todo este estudo das ciências que analisamos; elevam a parte mais nobre da alma à contemplação da visão do mais excelente dos seres, tal como há pouco a parte mais clarividente do corpo se elevava à contemplação do objeto mais brilhante na região do corpóreo e do visível.

81

p. 140 82

itálicos do autor 83

p. 140 84

517 b 4-6 85

514 c 1 86

515 a 6

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Aqui a referência para olhar para os animais, as estrelas e o próprio sol se refere claramente à passagem da Caverna, e nos é dito simplesmente que a última etapa para a vida após a caverna quer simbolizar o método da dialética (i.e. a mesma coisa que o último segmento da linha representa). A mudança de sombras para as imagens que as moldam (i.e. as estátuas etc., de 515 a 1) e para a fogueira, a ascensão para a luz do sol, e o olhar para reflexos e sombras das coisas no mundo iluminado pelo sol, simbolizam o estudo das artes matemáticas (i.e. a mesma coisa que o terceiro segmento da linha simboliza).

Há, portanto, um leve desajuste entre a primeira interpretação da Platão da Caverna87 e a segunda.88

Primeira passagem

O visível, simbolizado pelo mundo na caverna.

O inteligível, simbolizado pelo mundo exterior.

Presumivelmente, portanto,

ei) ko/ nej (objetos de ei) kasi/ a), simbolizados pelas sombras e

reflexos na caverna

Objetos materiais (objetos de pi/ stij), simbolizados por objetos

sólidos na caverna.

Idéias matemáticas (objetos de dia/ noia), simbolizados por imagens

(de animais, estrelas, lua, sol) no mundo exterior.

Idéias mais elevadas (objetos de no/ hsij), simbolizados por animais,

estrelas, lua, sol, no mundo exterior,

Segunda passagem

dia/ noia, simbolizada por olhar para skeuasta/ (ei) / dwla) na

caverna e para as imagens de animais, estrelas, lua e sol.

no/ hsij, simbolizada por olhar para animais, estrelas, lua e sol.

Portanto, presumivelmente ei) kasi/ a e pi/ stij, simbolizados por

olhar para sombras de skeuasta/ .

87

517 a 8-b 6 88

532 a 1-d 1

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A interpretação da Caverna parece, como estava, ter mudado para um estágio acima. O segundo estágio dentro da caverna não significa mais a simples observação do homem das coisas sensíveis, mas o início da vida de ciência, cujos últimos estágios são simbolizados pelo primeiro estágio da vida no mundo exterior.

Na interpretação final de Platão não há, portanto, distinção no símbolo da caverna respondendo à distinção entre ei) kasi/ a e pi/ stij. Ambos estão

simbolizados pelo estágio inicial na vida dos prisioneiros. Isto deveria, talvez, atuar como um aviso contra qualquer tentativa de tomar a distinção muito seriamente, supondo que Platão acreditava ser ei) kasi/ a uma fase importante de nossa vida

mental. A diferença entre ei) kasi/ a e pi/ stij foi introduzida para servir como

uma ilustração da diferença entre dois estágios na vida inteligível, e uma vez tendo servido a seu propósito é tacitamente descartada como sem importância.

A interpretação final de Platão refuta a opinião do Prof. Ferguson que a vida fora da caverna pretenda significar a vida comum sensível, e a vida dentro da caverna uma maior profundidade onde as pessoas são enganadas por erros dos homens. Pois Platão nos diz expressamente aqui que o último estágio da vida na caverna, e o primeiro estágio da vida no lado de fora, significam a busca pela ciência, e o último estágio da vida fora da caverna a busca pela filosofia; assim o que é deixado para que o símbolo da caverna signifique a vida comum sensível ou pré-científica é somente o primeiro estágio da vida da caverna, e não há lugar dentro do símbolo da caverna para a representação de uma maior profundidade de erros.

Ao mesmo tempo, nós não devemos interpretar Platão de uma maneira tão simples nem prendê-lo a um único grupo de idéias. O tom geral da Caverna é diferente daquele da Linha. As diferenças que a Linha significa são distinções epistemológicas, e considerações éticas não aparecem de qualquer modo. Enquanto a Linha pretende prenunciar a importância dada no Livro VII à ciência e à filosofia como buscas intelectuais, a Caverna pretende apresentar seu significado ético, não só conduzindo os homens de uma vida sensível para aquela da inteligência, mas também de uma vida de condescendência a meias verdades e convenções humanas para a apreensão direta da verdade moral (517 d 4-e 2, 520 c 1-d 4).

Deve ter surpreendido muitos leitores ser tratada a distinção entre no/ hsij e dia/ noia, na Linha, simplesmente como uma distinção entre filosofia e

matemática. A razão é que Platão já tinha em mente a concepção dos dois estágios na educação mais elevada dos Guardiões, o estudo da matemática e o estudo da dialética89, e que está lhes preparando o caminho. Mas é obvio que em outros estudos há também uma distinção entre atitudes críticas e não críticas com respeito a hipóteses, e entre uma maneira de pensar quem vai estudar os universais

89

Tratado respectivamente em 521 c 1-531 c 8 e em 531 c 9-535 a 2.

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somente e quem os estuda com a ajuda de exemplos aproximados. Este defeito na Linha é de uma certa maneira sanado na Caverna. Pois aqui o vemos dizendo:90

Entendes que será caso para admirar, se quem descer destas coisas divinas às humanas fizer gestos disparatados e parecer muito ridículo, porque está ofuscado e ainda não se habituou suficientemente às trevas ambientes, e foi forçado a contender, em tribunais ou noutros lugares, acerca das sombras do justo ou das imagens das sombras, e a disputar sobre o assunto, sobre o que supõe ser a própria justiça quem jamais a viu?

E mais tarde ele diz:91

Deve, portanto, cada um por sua vez descer à habitação comum dos outros e habituar-se a observar as trevas. Com efeito, uma vez habituados, sereis mil vezes melhores do que os que lá estão e reconhecereis cada imagem, o que ela é e o que representa, devido a terdes contemplado a verdade relativa ao belo, ao justo e ao bom.

Vimos que as quatro atitudes possíveis no que respeita triângulos e triangularidade são:

1 . olhar para imagens (sombras ou reflexos) de aproximados triângulos sensíveis;

2 . olhar para aproximados triângulos sensíveis;

3 . estudar triângulos com a ajuda de aproximados triângulos sensíveis;

4 . estudar triangularidade à luz de Idéias elevadas e, enfim, da Idéia do bem.

Qual seriam as atitudes correspondentes somente a atos e justiça? Podemos conjeturar que seriam:

1 . contemplar sombras de ei)/dola da justiça, i.e. ações ou instituições que são imitações de justiça;

2 . contemplar ei)/dola da justiça, i.e. somente atos aproximados particulares;

90

517 d 4-e 1. 91

520 c 1-6.

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3 . contemplar a Idéia de justiça, mas sem ver sua dependência lógica à Idéia do bem;

4 . contemplar a Idéia de justiça em seu lugar na hierarquia geral das Idéias e sua conexão com a Idéia do bem.

Muitos intérpretes da Linha Dividida pensam que o alcance da ei)/kasi/a deve se estender além das instâncias que Platão dá – o olhar para sombras e reflexos. Provavelmente a insistência em dar uma significação mais ampla da ei)/kasi/a na passagem da Linha é um erro, devido à falha em notar que a distinção entre ei)kasi/a e pi/stij é introduzida não pelo seu próprio interesse, mas para esclarecer entre dia/noia e no/hsij; quando notamos isso, não precisamos mais assumir que ei)kasia quer dizer algum estado de longo alcance, que pode ser adequadamente olhado como o primeiro estágio em todo desenvolvimento mental. Mas podemos agora considerar uma passagem que pode indicar uma ampliação do conceito de ei)kasi/a no pensamento de Platão. Sombras e reflexos são imagens de coisas naturais, que por sua vez são imagens de Idéias, e na discussão sobre pintura e poesia na Rep. 595 a 1-608 b 1, pinturas e poemas são ao mesmo tempo descritos como cópias de objetos naturais, que por sua vez são cópias de Idéias. Mesmo um paralelismo mais próximo é sugerido em uma passagem (596 b 12-c 9), onde é dito que o pintor (e por implicação o poeta) está fazendo em princípio o mesmo que aquele que ‘é capaz de executar todos os objetos’ virando um espelho em volta e produzindo ‘todas as plantas e fabrica todos os seres animados, incluindo a si mesmo, e, além disso, faz a terra, o céu, os deuses e tudo quanto existe no céu’. As criações artísticas são, portanto, colocadas no mesmo nível de realidade que as sombras e reflexos, que são objetos de eikasia. É verdade que Platão não usa

em lugar nenhum neste contexto a palavra eikasia, mas podemos dificilmente

duvidar que ele pretendia nos dizer que a contemplação de objetos artísticos é uma forma de eikasía; e isto indica uma enorme extensão do significado do termo.

Além disso, é enfatizado um aspecto de ei) kasia/ que não foi enfatizado na

passagem da Linha, i.e. que quem está neste estágio não está simplesmente percebendo imagens, mas está constantemente supondo as imagens como originais (598 c 1-4). E mais adiante, a capacidade com qual a arte encanta é identificada como tal porque caímos em ilusões sensíveis, como um corpo grande parece pequeno quando visto à distância, ou uma linha reta parece torta na água, ou um corpo convexo parece côncavo (602 c 7-d 4). Sem dúvida Platão está errado ao supor que o objetivo da arte é produzir ilusão; e Charles Lamb estava mais próximo da verdade quando descreveu a condição de espectadores de uma peça não como ilusão, mas como suspensão voluntária da descrença.

Apesar da teoria da arte de Platão não ser parte do nosso assunto, um outro aspecto da passagem precisa ser comentado. É aquele em que Platão descreve a idéia da cama como sendo feita por Deus (597 b 6). A relação existente entre as Idéias e Deus é surpreendente, e realmente impossível de reconciliar com a eternidade e a independência que são constantemente atribuídas às Idéias. A verdade é que nesta etapa de seu pensamento (diferente do que encontramos no Timeu e nas Leis) Platão não devia ter estudado bem a relação entre Deus e as Tra

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Idéias. Em 597 b 6 as Idéias devem sua existência a Deus, mas em 509 b 6-10 elas devem isso à Idéia do bem, que de maneira alguma deve ser identificada com Deus; e aquela passagem representa com mais certeza que a presente a metafísica da República. Mais tarde, quando (no Timeu) Platão aponta um significado importante de Deus, como o Artesão do universo, as Idéias não estão subordinadas a Deus, mas são representadas como formando uma ordem que existe independente de Deus e a qual Deus deve respeitar.

A nossa justificativa de não tomarmos, seriamente, a descrição de Platão como Deus sendo o criador das Idéias, é indicada pelo fato de que, enquanto ele diz (597 c 1) que Deus ‘ou porque não quis ou porque era necessário’ fez somente uma Idéia de cama, continua dizendo que Deus não poderia ter feito mais do que uma, porque se houvessem duas deveria haver uma Idéia cuja forma ambas teriam, que teria sido a Idéia verdadeira. Em outras palavras, a unicidade está envolvida na natureza própria da uma Idéia; a referência ao desejo de Deus não pode ser séria, e se não é isso, então supostamente nem toda a referência a Deus. Deus só é apresentado para se dar um criador para a cama ideal, em resposta ao marceneiro e pintor que são os criadores da idéia material de cama e de sua semelhança.

Mais uma passagem da República necessita de um comentário. É a famosa passagem em 596 a 5-7 – ‘Queres então que comecemos o nosso exame a partir deste ponto, segundo o nosso método habitual? Efetivamente, estamos habituados a admitir uma certa idéia (sempre uma só) em relação a cada grupo de coisas particulares, a que pomos o mesmo nome.’ Platão continua aceitando a existência de uma Idéia de cama e uma de mesa. Alguns intérpretes encontraram dificuldade nisto, por causa da afirmação de Aristóteles92 de que Platão reconhecia a Idéia somente das coisas que existem na natureza, e porque em Platão há pouca referência a Idéias que não sejam Idéias de valores ou Idéias matemáticas. A verdade é que estas são as Idéias nas quais ele está mais interessado, e de cuja existência ele está instintivamente mais seguro – como está claro numa famosa passagem de Parmênides.93 Mas há bastante evidência em outro lugar de que ele em verdade acreditava em uma Idéia respondendo a cada nome comum,94 e não há razão porque ele deveria ter insistido mais freqüentemente de que é isto. O problema levantado pela afirmação de Aristóteles será considerado no local oportuno.95

Voltando os olhos para a República como um todo, podemos ver um notável avanço na apresentação inicial de Platão da teoria das Idéias. Até aqui ele manteve simplesmente uma completa oposição entre o mundo das Formas eterno e imutável e o mundo temporal e mutável das coisas particulares. Ele agora ainda mantém esta oposição, mas reconhece graus dentro de cada um desses mundos. No mundo das coisas particulares ele distingue entre aquelas que são cópias diretas das Formas e as que são cópias dessas Formas. Dentro do mundo das Formas ele

92

Met. 1070ª 18. 93

130 b 1-10. 94

A evidência pode ser vista minuciosamente em Zeller, Phil. d.Gr. ii 14

. 701 n. Ep. 7. 342 d 3-e 2 pode ser acrescentado como evidência de que Platão defendeu este ponto de vista perto do fim de sua vida. 95

pp. 171-5 infra.

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distingue entre aquelas que são, como se fossem, terrestres – as Formas que só podem ser estudadas com a ajuda de exemplos sensíveis – e aquelas para cujo estudo não precisamos de tal ajuda. Além disso, dentro deste último tipo ele reconhece uma hierarquia alcançando desde a mais baixa das Formas até a mais alta e ampla de todas, a Forma do bem. Achamos nele, portanto, uma tendência ao que se pode chamar de escalarismo, um reconhecimento da complexidade do universo, e dos intermediários que existem entre os superiores e os inferiores – a mesma tendência que encontra expressão numa passagem do Filebo.96

A mesma tendência é trabalhada no seu elogio, no Fedro, do método conjunto de sunagwgh/ / ediai/ resij, e na sua exposição desse método no

Sofista e no Político. Esta tendência é o reverso do Eleatismo, que faz uma distinção abrupta entre realidade e o completamente irreal e não reconhece graduações entre eles. Como vamos reconciliar este fato com o crescente interesse de Platão no Eleatismo, que se torna bem visível em Parmênides e no Sofista? Poderia ser que quanto mais o interesse de Platão foi dirigido para o Eleatismo e quanto mais reconhece a grandeza de Parmênides97 como o protagonista do intelecto contra os sentidos, o mais ele também viu a aridez de seu sistema e seu fracasso em esclarecer os fatos do sentido-percepção? Como ele diz no Sofista,98 “A meu ver, Parmênides e todos o que com ele empreenderam discernir e determinar o número e a natureza dos seres, assim fizeram sem proceder a uma análise cuidadosa.’

O Fedro se ocupa principalmente com assuntos bem distantes da teoria das Idéias; contém porém uma famosa passagem na qual a ‘região inteligível’ da República99 aparece, numa linguagem apropriada ao mito no qual ocorre, como a região supracelestial (u( peroura/ niojto/ poj), e as Idéias aparecem como ‘o Ser

realmente existente, que não tem forma, nem cor, nem se pode tocar, visível apenas ao piloto da alma, a inteligência’. Naquela região a alma no momento oportuno ‘contempla a própria justiça, contempla a sabedoria, contempla a ciência – não a que difere conforme se aplica a um ou outro dos objetos que nós agora chamamos seres, mas à ciência que se aplica ao Ser que verdadeiramente existe’.100 u( perooura/ nioj não é para ser tomada no sentido literal; entretanto a

passagem significa uma extrema separação entre as Idéias e os objetos sensíveis. Mas enquanto aqui, e na sua doutrina de a) na/ mnhsij, o Fedro relembra o Fedon,

em outro aspecto indica adiante. Pois no método da dialética, i.e. da filosofia, é descrito não (como na República) como uma passagem da hipótese para o primeiro princípio não hipotético e de volta novamente, mas da sunagwgh/ ou generalização

(ei/ jmi/ natei) de/ ansunorw= ntaa) / geinta\ pollaxh= diesparme/ na),

seguida por diai/ resij, ‘separando de acordo com as espécies, segundo as

articulações naturais, e procurar não causar rupturas em nenhuma parte, ao modo 96

16 c 5-17 a 5. Cf. pp.130-2. 97

Tht. 183 e 5-184 a 1. 98

242 c 4-6 99

508 c 1.

100 247 c 3-e 2.

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do carniceiro inexperiente’101 – o método que é ilustrado detalhadamente no Sofista e no Político. Portanto, é possível entender, mas não aceitar, o raciocínio que levou Schleiermacher a olhar Fedro como o mais antigo dos diálogos, pois (no seu ponto de vista) contém em resumo toda a filosofia de Platão. Seria mais correto descrevê-lo como estando num ponto de transição no pensamento de Platão, quando está passando da afirmação da existência das Idéias para estudar a estrutura da hierarquia que formam.

Há algo um tanto paradoxal na nova descrição de Platão da dialética. É um método consistindo de ‘coleção’ seguido de ‘divisão’. O que isto parece significar é que começamos por conhecer certas Idéias, e que a primeira etapa no método é alcançar uma Idéia ampla que as envolva, e a segunda etapa é dividir esta Idéia ampla em suas espécies – então parece que chegamos onde começamos, com as Idéias específicas. A segunda etapa do método parece uma repetição desnecessária da primeira; vemos primeiro que A é o gênero do qual B, C e D pertencem, e então que B, C, D são espécies nas quais A é dividida. Platão não pode ter imaginado algo tão tolo quando isto; o que é necessário, para a passagem fazer sentido, é notar a força que ele coloca em dividir ‘nas junções’. No processo de ‘coleção’ o que fazemos é reconhecer uma afinidade entre certos universais reconhecidos na linguagem comum. Mas estes universais podem não formar um verdadeiro sistema; eles podem se sobrepor e ser formulados livremente; o que fazemos no processo de ‘divisão’ é reconhecer as linhas verdadeiras e exatas de demarcação dentro do gênero. Em outras palavras, se queremos entender a passagem temos que supor que Platão já tinha em mente a distinção que ele delineia no Político102 entre as ‘partes’ acidentais que caem dentro de um gênero e as espécies genuínas nas quais ele cai.

No Fedro não há sugestão de que o amplo mundo da Idéias forme uma extensa hierarquia culminando em um summum genus; o ponto principal de Platão é que o entendimento verdadeiro de uma simples Forma genérica exige de nós não somente ver como envolve um número de Formas específicas, mas também quais são as articulações dentro delas.

101

266b 3-c 1, 265 d 3-e 3; cf. 273 d 7-e 4, 277 b 5-8. 102

262 a 5-263 b 11.

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V – O PARMÊNIDES E O TEETETO Tradução:

Juliana e Cristiane

s variações nos números (2) e (5) mostram que não há nenhuma diferença de

significado na ordem das palavras, e que, em particular, é injustificável a distinção da

prótase em (1) de que, em (2) por supor que a primeira é a hipótese de que o universo

é um e segundo a hipótese de que o Uno existe. Além disso, é preciso lembrar que em todos

existiam apenas duas hipóteses, uma contraditória da outra. Agora, a forma ei mv eoti to en em

(5) e a forma en ei mv eotin, talla de to nevos na (7) e (8) mostram que a hipótese é existencial,

que o Uno não existe. A partir desses dois fatos segue-se que do (1) ao (4) a hipótese é de que

existe o Uno, ou seja, que não existe uma unidade muito abrangente, e que, do (5) ao (8) é

feito o oposto de tal pressuposto.

Os destaques em nosso texto não têm autoridade, uma vez que datam dos séculos uma hora

mais tarde do que Platão, mas ele pode ser notado que, no (1), deveríamos ler eoin, para

conformar com a nossa conclusão de que todas (ou melhor, ambas) as hipóteses são

existenciais. As conclusões da argumentação podem ser resumidas da seguinte forma:

1. Se existe o Uno, ele admite nem membro de muitos pares oposto de predicados, não existe,

não pode ser nomeado, conhecidamente falado, imaginário, ou julgado.

2. Se existe o Uno, ele admite ambos os membros dos mesmos pares predicados do lado

oposto, existe, podem ser nomeados e falados sobre, conhecidos, percebidos, e julgados

sobre.

3. Se existe o Uno, os outros são similares e contrários a um outro, o mesmo que e diferente

de um outro, e admite tanto membros de muitos pares de opostos predicados.

4. Se existe o Uno, os outros não são nem parecidos nem contrários, nem semelhantes ou

diferentes, é admitido nenhum membro dos mesmos pares de atributos opostos.

A

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A Teoria das Idéias de Platão

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5. Se não existir um Uno, é admitido cada membro dos pares de atributos opostos.

6. Se não existir um Uno, ele admite nenhum membro do mesmo par de atributos opostos.

7. Se não existir um Uno, os outros admitem de cada membro de muitos pares de atributos

opostos.

8. Se não existir um Uno, os outros nem admitirão membros do mesmo par de atributos

opostos.

Assim, enquanto a mesma hipótese é feita nos primeiros quatro argumentos,

resultando em diferentes implicações dessa hipótese (1) e (4) chega à negação indiscriminada,

(2) e (3), indiscriminada afirmação. E enquanto a suposta oposição é feita nos últimos quatro

argumentos, resultando em diferentes implicações dessa hipótese (5) e (7) chegar à afirmação

indiscriminada, e (6) e (8) a negação indiscriminada. O resultado de todo o conjunto de

argumentos é resumido1 ao dizer que« se existe ou não um Uno, tanto o Uno quanto os outros

iguais são e não são, e parecem e não parecem ser, todos os tipos de coisas em diversas

maneiras, com relação a si mesmos e uns aos outros.

Muitas interpretações destes argumentos foram apresentadas por estudiosos, e o

comentário de Proclus mostra que vários foram oferecidos até mesmo na Antiguidade. Seria

entediante tentar rever todas elas; considerando quatro das mais recentes, das quais três são

discutidas pelo Sr. Hardie nos Estudos em Platão,2 mas vou tomá-los em uma ordem diferente.

l Começo com a interpretação "idealista" defendida por Taylor em seus artigos na Mente.3 De

acordo com esta (eu uso a linguagem4 do Sr. Hardie), o primeiro dos oito argumentos é a

refutação de uma abstrata e meramente heurística visão do "Uno". Extremo monismo é

reduzido ao absurdo pela identificação com que a negação da possibilidade de atribuições que

surge de uma dificuldade de reconhecer formas de intercomunicação. Mas a segunda e a

hipótese5 parecida contrasta com esta falsa visão, uma verdadeira e concreta noção da

unidade como um todo significativamente diferenciado.

1 166 c 2-5 2 Chap. 10.

3 v (1896), 297-326, 483-507, vi (1897), 9-39. 4 p. 103.

5 i.o. the third, fifth, and seventh.

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A Teoria das Idéias de Platão

73

Esta opinião não tem de ser analisada minuciosamente, uma vez que mais tarde foi

descartada pelo seu autor, que pode ser o suficiente para apontar para uma ou duas sérias

objeções à mesma. (a) Tem o ponto em que o Sr. Hardie ressalta de forma muito eficaz, que

uma refutação do monismo abstrato é uma das últimas coisas que devemos esperar que

Platão tenha colocado na boca de Parmênides. (b) A atribuição indiscriminada dos atributos

opostos para o Uno e Múltiplo em que o segundo e os argumentos parecidos lideram é

realmente não mais satisfatório do que a negação indiscriminada em que o primeiro e os

argumentos parecidos os levam. (c) Não existe nenhum indício de que Platão diz para ficarmos

mais impressionados com o segundo argumento do que com primeiro. Ele realmente rejeita as

conclusões de que o primeiro argumento é certo, e, portanto na suposição monista e abstrata

que se segue: ‘Agora isto pode ser possível no caso do Uno? Acho que não’.1 Mas não há nada para

mostrar que a conclusão do segundo argumento é mais aceitável para Platão do que a do

primeiro, ou de que o terceiro seja mais aceitável do que o do quarto. O raciocínio em todos os

oito argumentos é da mesma ordem, muito engenhoso, em locais convincentes, em outros

permeada por falácias que parecem óbvias para nós e, algumas das quais devem ter sido

evidentes para Platão. (d) Com a conclusão final2, ele trata todos os argumentos que formam

um único argumento levando à conclusões completamente contraditórias.

Em segundo lugar, existe a interpretação erística (uma variante do primeiro), em que o

Sr. Hardie3 descreve mantendo como argumentos hipotéticos ‘são nada mais que um exercício

lógico, com o objetivo de mostrar como, com o auxílio de certas falácias lógicas que são

supostamente colocadas como característica dos Eleáticos, a hipótese em si mesma pode ser

refutada. Ambas as hipóteses 4 são reductiones and absurdum. Este é o ponto de vista adotado

por Taylor em Platão, o Homem e a sua Obra, e na introdução à sua tradução do Parmênides.

As mais graves objeções a esta interpretação são as seguintes: (a) Seria, sem dúvida, muito

curioso, se Platão tivesse posto na boca de Parmênides argumentos de que o principal objetivo

era o de refutar o Eleatismo para parodiar seus métodos. (b) Esta interpretação

1 142 a 6-8. 2 166 c 2-5.

3 pp. 102-3. 4 i.e the first and second.

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A Teoria das Idéias de Platão

74

faz o mesmo tipo de erro que o primeiro. Isso levou o segundo argumento e os outros a

resultados positivos quanto mais seriamente foi entendido por Platão do que os primeiros e os

outros argumentos ‘negativos’. A presente interpretação salienta apenas os quatro primeiros

argumentos, que mostram as conseqüências paradoxais de crença no Uno, e ignora os últimos

quatro, que mostram as conseqüências paradoxais de negar a sua existência. Mas é claro que

Platão é imparcial como entre todos os oito argumentos. (“c) Outra característica do último

ponto de vista de Taylor é a sua interpretação sobre a segunda parte do Parmênides como ‘a.

muito agradável brincadeira filosófica’.1 A maioria dos leitores será inclinado a dizer: 'Nós não

nos divertimos’. A brincadeira pode ser feita a partir de argumentos, mas não trata-se de

humor, mas de virtuosismo, e isso vai por um longo caminho.

3. Em terceiro lugar, existe a interpretação transcendentalista, o que (de novo eu uso a

linguagem do Sr. Hardie2)

Encontre uma positiva sugestão metafísica ainda na primeira hipótese. Isto leva à hipótese de se referir

ao ‘Uno além do ser’ que pode ser caracterizado apenas negativamente, um derradeiro princípio da

unidade ‘além’ de outras formas, como a ‘Idéia do Bom' da República. A segunda hipótese trata do Uno

que é diferente, mas derivado, e considera unidade e existência conectadas como um dos aspectos

ligados ao inteligível: mundo. Mas a esfera do final não é definitiva ou auto-explicativa, que aponta

"para além do ser”.

Há a favor desta interpretação, que o primeiro argumento, reforça a unidade do Uno e

não a sua existência é o que anteriormente poderíamos esperar que Platão fosse pôr na boca

de Parmênides. Mas, ao considerar a “primeira parte” do diálogo que fomos levados a concluir

que Parmênides não aparece como um personagem monista, mas simplesmente como um

grande e honrado filósofo, e na coerência que é como ele deve aparecer na segunda parte

também. Além disso, é Parmênides que no final do primeiro argumento descreve as

conclusões como absolutamente inaceitáveis 3.

Contra esta interpretação as seguintes acusações devem ser consideradas: (a) Afigura-

se a fazer o mesmo equívoco que as interpretações feitas anteriormente, recordando que de

um conjunto de

1 P.M.W. 370. 2 p.103. 3 142 a 6-7.

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A Teoria das Idéias de Platão

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argumentos (aqueles que levam à resultados negativos) - ou, pelo menos, o primeiro deles –

como declarado uma verdade mais profunda do que a outra. Se alguma coisa é clara, é claro

que Platão não faz essa distinção. Não só é a primeira hipótese que, no final de Platão diz

claramente que "isto não irá fazer”, mas na última frase do diálogo ele coloca expressamente

todas as "hipóteses" sobre o mesmo nível de eficácia.

(b) Taylor tem pouca dificuldade em mostrar1 'que a interpretação de Plotino das "hipóteses"

(de que a interpretação é derivável transcendentalista) é, em muitos dos seus detalhes

completamente injustificados; a perguntar se Plotino pode não estar certo que na realização

que Platão quis dizer no planejamento do que é mais completamente real um completamente

irreconhecível Uno, e os derivados a partir do Uno, que é um objeto de conhecimento. Talvez

em todas as suas obras, a que chega mais perto da passagem correspondente a este ponto de

vista é que, na República2 em que a Idéia do bem é dito ser mais exaltado do que o

conhecimento, mas parece-me que o que Platão entende por que é que ele não está

irreconhecível, mas que é um pressuposição de conhecimento, e que possa ser conhecida

apenas em parte, que em parte pode ser conhecida é dito na República propriamente dita.3

Pode acrescentar-se que o Uno que fala de Parmênides, na primeira “hipótese” é um resumo

da unidade completamente para a qual Deus e todos os outros atributos de valor não são

adequados e de que eles nunca são afirmados.

c) No quarto argumento Platão no que diz respeito aos “outras” conclusões correspondentes

aqueles no primeiro argumento em que ele faz considerações ao Uno. Podemos realmente

supor que ele tenha desdobrado ou insinuado uma teoria mística “os

outros", como Plotino supõe que ele desdobrado no primeiro argumento uma teoria mística

de um inefável irreconhecível Uno? E podemos supor ser um desdobramento de uma doutrina

mística no sexto e oitavo argumentos, que (como a primeira e quarta)

chega à negação indiscriminada - na sexta uma doutrina mística sobre o Uno na hipótese de

que não há Uno numa oitava doutrina mística sobre “os outros” sobre a mesma hipótese? É

claro que, no quarto, sexto, oitavo e argumentos

1 Trans. Of Parmênides, 145-59 2 508 e 1-509 a 5.

3 v ton dgaqon idea megioton maqvma, 505 a 2.

Page 76: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

76

Platão não expressa uma filosofia inefável, mas insensivelmente trabalha os resultados de

certo tipo de raciocínio aplicado a certas suposições, e se assim for, é mais improvável que,

primeiro ele esteja fazendo qualquer outra coisa.

(d) Nos Sofistas,1 em um diálogo provavelmente não muito mais velho que Parmênides,

encontramos uma crítica de extremo monismo no qual Platão reproduz brevemente o

argumento da "segunda hipótese”; ele mostra que para afirmar que apenas uma coisa existe é

necessário afirmar que existem duas realidades e singularidade, e, portanto,não apenas uma

coisa existe; em outras palavras, ele próprio refuta o monismo extremo. Ninguém, creio, tem

dúvidas que o argumento nos Sofistas expressa a própria visão de Platão, e que é difícil

conciliar com a teoria que no Parmênides é de extremo monismo para representar a mais

profunda verdade sobre o mundo.

4. Podemos considerar uma interpretação parecida apresentada do Sr. Hardie desde que ele

escreveu. Este é de Cornford. Suas principais interpretações são resumidas pelo Sr. Robinson:2

''a segunda parte do Parmênides não é paródia ou sofisma, mas uma séria e muito sutil análise.

Quase todas as conclusões de todas as hipóteses são verdadeiras e importantes. O que Platão

aqui analisa é a lógica de Parmênides, que ele mostra ser incorreta. A quinta hipótese, por

exemplo, “é uma brilhante refutação do dogma Eleático de que nada pode ser dito sobre “o

que não é”.3

Esta opinião é aberta para as seguintes acusações. (a) Há uma dificuldade de supor que

Platão tenha colocado na boca de Parmênides um anti-Eleatismo polêmico. (b) Existe a

dificuldade de que os últimos quatro argumentos, que começam supondo o contrário do

dogma Eleático, conduzem do mesmo tipo de lógica para a mesma espécie de conclusão

paradoxal como as quatro primeiras, que começam a partir do dogma Eleático. (c) Existe a

objeção de que, uma vez que existem muitas falácias óbvias nos argumentos, Cornford tem

para suprir seus principais pontos de vista pela imputação de Platão um objeto secundário, o

de equipar em prática seus leitores com a detecção de falácias. M r. Robinson mostra

efetivamente que esse objeto secundário pode interferir mais sério que principal objeto.

1 244 b 6-245 e 5.

2 Plato’s Parmênides, in Class. Philol. Xxxvii (1942), 181. 3 pp. 181-6.

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A Teoria das Idéias de Platão

77

Na proporção que o leitor detecta as falácias, ele será menos impressionado com o argumento

anti-Eleatismo, na proporção que ele não consegue detectar eles, a tentativa de educá-lo na

detecção de falácias terá fracassado.

Todas estas tentativas de tratar a inculcação de doutrina como a principal, ou apenas,

objeto de argumentos hipotéticos têm falhado, e parece que, na opinião de Platão da posição

de imparcialidade entre os argumentos que levam a conclusão postas, eles são condenados ao

fracasso. A única cura é de supor que esse não é o principal objetivo. A verdadeira pista para a

interpretação é Parmênides' cinco vezes repetido1 descrição dos argumentos que ofereçam

gumvaoia, formação em tese. Ele nunca sugere que eles vão diretamente a Sócrates para que

esclareça sobre as dificuldades, Parmênides tem apontado na teoria das Idéias, ou em

qualquer outro problema filosófico. Nós podemos observar que, na Política 2, escrito não

muito tempo após Parmênides, Platão diz expressamente que a discussão sobre a definição do

estadista como é valiosas menos lançado a luz sobre o problema do que fazer como todos

aqueles que tomam parte na dialoga-los melhor.

Para outras considerações, que defendem esta tese, podemos acrescentar um

elemento de prova que, embora longe de ser decisivo, tem algum peso. Um importante

diálogo com as quais, ao que parece, Aristóteles nunca se refere é Parmênides. Se fosse uma

grave exposição dos pontos de vista do Platão, e em particular se a primeira "hipótese" era a

expressão de suas opiniões quanto mais profunda visão definitiva de realidade, seria estranho

que nunca Aristóteles refere-se a ela e, se ele é essencialmente um pedaço de ginástica lógica,

seu silêncio é muito mais inteligível.

Esta interpretação foi proposta há muito tempo por George Grote,3 e isso tem sido

muito fortemente defendida pelo Sr. Robinson. Esta visão evita as acusações, vimos que as

quatro outras interpretações que temos considerado; ele faz jus ao que diz Parmênides sobre

os argumentos, quando ele descreve sua finalidade essencialmente como ginástica, e não a

inculcação de doutrina filosófica, mas o de dar um exemplo de uma formação que irá caber

Sócrates melhor aproveitar para a final da verdade filosófica. Isto faz com que uma unidade do

diálogo, enquanto na primeira parte do programa

1 135 c 8, d 4, 7, 136 a 2, c 5.

2 285 d 4-7. 3 P.C.S. ii. 263.

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A Teoria das Idéias de Platão

78

condena Sócrates de incapacidade de reconhecer os pontos fracos na sua própria opinião, na

segunda parte dá um exemplo do tipo de exercício intelectual que ele vai fazer mais viva a

esses defeitos. Apenas menos esclarecedor do que as cinco vezes que Platão repetiu a

descrição da "segunda parte", a ginástica como um "jogo extenuante"1. Extenuante

certamente é, a ingenuidade e variedade dos argumentos em que são muito impressionantes.

Mas é um jogo, um jogo em que o argumentador fará qualquer coisa para marcar seu ponto.

Ele soará com uma argumentação sólida e, por vezes profunda quando ajudarem-no, mas ele

irá também fazer uso descarado da sofística; só assim é que ele pode realizar uma excursão de

força que deriva de premissas aparentemente idênticas contrárias conclusões, e de premissas

aparentemente contrárias idênticas conclusões.

Ao tratar a ‘segunda parte’ primariamente como um exercício ginástico não exclui a

possibilidade de que no decurso Platão tenha travado idéias positivas que irão dar frutos mais

tarde no seu pensamento. Cornford talvez esteja certo em pensar que o resultado do atingido-

pela-pobreza da primeira hipótese' forma uma reductio ad absurdum da "convicção" de

Sócrates 2 em que o que é simplesmente união em si não pode ser múltiplo, e prepara o

caminho para a doutrina da inter-comunhão de espécies no Sofista, e que o mesmo ponto é

reforçado em 144 a 5-145 a 3; que 144 e 8-145 a 3 e 158 b 5-159 a 4 prefigura a análise

posterior de Platão (conhecido para nós a partir de Aristóteles) da Idéias para o Uno, e o

grande e pequeno; que 149 d 8-150 e 5 se entende como retratação da teoria do Fédon que

trata grandeza e pequenez como propriedades inerentes aos seus possuidores;3 a quarta

hipótese é interpretada, entre outras coisas, como uma crítica da insistência de Sócrates, no

Fédon e parte inicial de Parmênides, na separação das Formas. Cada aluno deve ser o próprio

juiz, mas é no mínimo duvidoso, que tais supostas alusões à teoria das Idéias realmente

existam. O que Parmênides promete Sócrates a partir do estudo das hipóteses não é

diretamente desenvolvimento ou correção de sua teoria, mas sim um ganho dialético na

habilidade que pode vir a produzir esse resultado, uma que, creio eu, é todo o propósito da

‘segunda parte’.

1 praguateiwdvj paidia, 137 b 2. 2 129 d 6-130 a 2, 131 c 9-11.

3 102 b 8-c 9.

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A Teoria das Idéias de Platão

79

Não foi a teoria das idéias, mas as implicações das próprias hipóteses de Parmênides " existe

Uno", e do seu oposto, que tinham que ser analisadas, na esperança de que prática na

detecção de implicações e de ambigüidades acabaria por permitir a Sócrates

chegar a um pensamento mais completamente fora da teoria que no

entusiasmo juvenil que ele tinha abraçado. Parece-me um erro tentar detectar a origem dos

grãos positivos no deserto do ensino do paradoxo em que as "hipóteses" estão presentes.

No Teaeteto não há qualquer referência direta às Idéias, e

é possível conjecturar a razão para isso. O diálogo foi escrito, como temos razão para acreditar

1, pelo menos, após a "primeira parte" do Parmênides, e não muito depois dele. Nesse diálogo

Parmênides tinha realizado importantes críticas à teoria das Idéias, mas tinha admitido que

sem tal teoria para dar conta do discurso seria impossível. Nós podemos razoavelmente supor

que em luz desta situação Platão deixa a teoria das Idéias isolada no Teaeteto,2 e volta a

analisar a solidez do alicerce sobre o qual ele tinha construído o pressuposto de que o

conhecimento existe, e é algo completamente diferente das sensações e das opiniões. Lendo

nas entrelinhas, podemos ver certos avanços em seus pontos de vista. 3

1.No Fédon 4 Platão havia esclarecido o problema relativo ao tamanho. Simmias é mais alto

que Sócrates, e mais baixo que Fédon. Ele é mais alto do que Sócrates porque Sócrates tem

menor altura relativa à altura de Simmias, porém mais baixo que Fédon porque Fédon é mais

alto que Simmias. Platão demonstra que em tudo não há altura por si só, nem altura em nós,

ao mesmo tempo alto e baixo. Altura se ausenta antes

da baixeza quando esta se aproxima, ou é destruído por sua aproximação. Ele fica satisfeito ao

reivindicar a Forma contra o fardo de ter atributos contraditórios. No Theaeteto5 ele

refletesobre o mesmo problema, e estabelece três proposições. (a) Nada pode se tornar maior

ou menor em tamanho, enquanto permanece igual a si mesmo.

1 pp. 6-9. 2 203 e 2-5 faz o mais próximo se aproximar para ser uma referencia para a teoria.

3 Esses foram claramente apontados dp Jackson em J. of Philol. Xiii (1885), 267-72. 4 102 a 11-103 a 3.

5 154 c-7-155 c 10.

Page 80: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

80

(b) E nada é acrescentado e nada é tirado enquanto se mantém igual a si mesmo. (c) Uma

coisa que não estava em um momento anterior não pode estar em um posterior sem se tornar

um ser. Em seguida, ele lembra que sendo no momento mais alto do Theaeteto, talvez dentro

de um ano se torne mais baixo do que Theaeteto sem que ele venha a diminuir; i.e.

comparando a relação entre duas pessoas de uma vez com a relação entre eles e outro e ele se

torna consciente de uma dificuldade nas quais ele não tinha quando percebeu que ele estava

apenas comparando a relação de A para B

com a relação de A para C, ao mesmo tempo. Mesmo na anterior

passagem que ele mostrou alguma consciência da relatividade dos termos

‘Alto’ e ‘baixo’; mas agora ele tem conhecimento de uma nova dificuldade sobre

eles, e ficará mais perto da sua consciência da completa

relatividade deles. Ele não oferece nenhuma solução direta para a dificuldade,

mas sugere que uma doutrina que ele prossegue para expor talvez

a ilumine.1 Esta é a doutrina que ele atribui a certos

pensadores ‘mais sutil do que os iniciados’(komyótepoi); -a doutrina

na percepção de que nem o objeto percebido nem o que organismo que percebe existem

exceto em potencialidade, até se depararem.2 A teoria não ilumina diretamente o problema

que ele tem examinado, mas Ele parece estar insinuando que similarmente altura e pequenez

e implicam emduas coisas que entram em comparação um com o outro; noutras palavras, que

estão fora, e não são inerentes a quaisquer

coisas comparadas, como no Fédon eles deveriam ser. 2. Esta doutrina do senso-percepção é

em si um presságio de alguma coisa que se seguirá, nos Sofistas. No Teeteto Platão Sustenta,

sob o disfarce da komyótepoi, que o universo

(ou seja, o universo de almas que percebem e dos objetos percebidos) é movimento e nada

mais, que uma espécie de movimento tem o poder de agir, o outro em que o ser age, e o que

qualidades sensíveis e a percepção deles são produzidas simultaneamente, o

anterior no objeto e o posterior no órgãos-senso, pela movimento ativo no que age sobre a

movimentação passiva no outro. Ele não especifica se o objeto age sobre o órgão ou vice-

verso, mas é natural que se suponha que ele fala do primeiro. Está aqui uma clara semelhança

com a passagem dos Sofistas. 3

1 155 d 5-e 1. 2 155 e 3-157 e 2. 3 247 d 8-e 4.

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A Teoria das Idéias de Platão

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onde, ele como tentativa tratar o poder de agir ou ser posto em prática como um sinal de

certeza da realidade. E tal como no Teeteto ele presumivelmente torna

objeto do ato e os órgãos-senso em objetos de ação, nos Sofistas 1 ele faz as Formas agirem e

coloca as almas em ação, e argumenta que almas estão sujeitas a mudanças reais, bem como

as Formas nas quais em seu período anterior ele identificou com tudo o que é

verdadeiramente real.

3. Em 184 b 4-1 86 e 12 ele faz uma distinção entre objetos similares som e cor, que são os

objetos de um sentido único, e que reconhecemos como características comuns aos objetos de

mais de um sentido - a existência e não-existência, diferença e

igualdade, dualidade e unidade, dessemelhança e semelhança, equitabilidade e estranheza,

beleza e feiúra, bondade e maldade, "e todos os esse tipo de coisa”. Além disso, ele insiste em

que estes são apreendidos não pelo bom senso, mas pelo pensamento. Embora ele não

descreva tais como Formas, eles correspondem às duas primeiras classes das Formas

reconheci - das no Parmênides2 (similitude, unidade e pluralidade; justeza, beleza, e bondade),

e ao ‘maior de todas as espécies’ reconhecidos

nos Sofistas3 (ser, semelhança e diferença, movimento e repouso).

Assim, a partir de dois ângulos de abordagem da teoria do conhecimento ---

no Teaeteto, a partir da metafísica nos Sofistas --- Platão chega

no isolamento de uma classe de amplos atributos, que posteriormente pensado foi

reconhecido como o transcendentalia.

Por último, no Teaeteto que Platão mais plenamente declara a real base de sua teoria das

Idéias. Sua base está na crença de que existe uma completa diferença entre a sensação

e conhecimento, e que o conhecimento exige suas entidades de objetos como não percebidas

pelo sentido, e é no Teaeteto que ele dá a sua última e mais elaborada prova da diferença

entre sensação e conhecimento. Sua teoria se baseia, novamente, como ele diz explicitamente

no Timeu5, na crença de que existe uma completa diferença entre o conhecimento e a

verdadeira opinião, e também sua mais elaborada prova é dada no Teaeteto6. Assim,

enquanto o diálogo não está preocupado com a metafísica, mas com epistemologia, e fornece

o argumento mais forte que Platão dá em qualquer lugar

para a fundação de sua teoria metafísica.

1 Se o interpretarmos corretamente; cf.pp.108-11 infra. 2 130 b 1-10.

3 254 b 7-258 c 5. 4 151 d 7-186 e 12. 5 51 d 3-e 6. 6 187 a 1-210 b 3.

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A Teoria das Idéias de Platão

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VI – O SOFISTA E O POLÍTICO Tradução:

Juliana Martins e Diogo

Sofista é o primeiro diálogo no qual Sócrates tem um papel completamente inferior, aparecendo somente nas primeiras páginas; o papel principal é interpretado pelo ‘Estrangeiro de Eléia’. Se nos

perguntarmos pela razão dessa mudança, a resposta mais provável é a de que Platão percebeu, mais do que nunca, a importância de Parmênides. Até agora, ele apresentou a Teoria das Idéias na fala de Sócrates, já que a tem concebido como algo essencialmente baseado na insistência deste sobre o problema da definição. Ao ler os primeiros diálogos, nós quase poderíamos supor que para Platão não existiu nenhum filósofo ou nenhum digno de consideração, antes de Sócrates. Em alguns dos diálogos da juventude e da maturidade - Protágoras, Crátilo e Teeteto – Platão se chocou com diversos pensadores. No Sofista, ele vai além. Na passagem 242 b 6 – 251 a 4, ele coloca em revisão toda a filosofia grega prévia. A sua escolha do Estrangeiro de Eleiás como sendo sua voz, Platão sugere que ele próprio é de alguma maneira, um herdeiro da filosofia de Parmênides, com a insistência de uma realidade suprema, que não pode ser percebida, mas apenas conhecida, em relação aos objetos dos sentidos. Mas, enquanto ele é atraído pelo intelectualismo de Parmênides, é da mesma forma repelido pelo seu monismo; na verdade ele escolhe como seu representante não Parmênides, nem um detalhista como Zenão, mas um lúcido Eleático 1 que é capaz de criticar seu pai Parmênides 2 assim como critica outros filósofos, e pode dizer 3 :

Impressiona-me que Parmênides e todos aqueles que se propuseram a determinar o número e a natureza das coisas reais, tem falado para nós preferivelmente de maneira improvisada... Eles todos parecem tratar-nos como crianças para quem estão contando histórias...Eles têm mostrado muito pouca consideração por gente comum como nós, falando difícil. Cada escola persegue seu próprio argumento até a sua conclusão, sem se preocupar se entendemos o que eles dizem ou se somos deixados pra trás.

1 216 b 3-8.

2 241 d 5-7.

3 242 c 4-243 b 1.

O

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A Teoria das Idéias de Platão

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Ele diferencia 4 três escolas filosóficas – os pluralistas, que reconhecem três, ou talvez dois princípios (provavelmente ele se refere aos primeiros cosmologistas como Ferécides); os monistas, aos quais ele chama a “raça Eleática” e associa a Xenófanes; e, finalmente, aqueles que afirmam que a realidade é tanto múltipla quanto única e são tratados como “certo Ioniano e Musas Silicianas”; i.e Heráclito e Empédocles. Desses grupos, o que ele critica mais detalhadamente são os Eleáticos. Nas duas primeiras hipóteses do Parmênides ele distinguira dois sentidos que podem ser aceitos para a sentença de Parmênides “Uma coisa é” – um no qual a unidade é afirmada pela exclusão de todas as coisas restantes, e outro cuja existência é também enfatizada; assim, duas Formas são reconhecidas desde o começo e um indefinido número de outras podem ser deduzidos. A “segunda parte” do Parmênides é essencialmente uma lição sobre o método, e Platão não demonstra muito qual sua preferência. Porém, ele dá uma dica quando no fim da primeira “hipótese” 103, diz que a unidade é suposta pela exclusão de todas as coisas restantes: Parmênides diz “Pode ser esse o caso do Um” e Aristóteles responde “Eu penso que não”. O argumento na segunda hipótese de Parmênides que o Monismo acarreta sua própria oposição é reproduzido com menos afirmação em Sof. 244 b 6-245 e 5. Platão, na verdade, ao preservar o intelectualismo de Parmênides, renuncia ao monismo radical.

Ele prossegue104 a considerar outros filósofos, e estes são descritos como sendo menos precisos em suas afirmações. Entre esses também há uma diferença de opinião. Eles são divididos em Materialistas, que dizem que apenas a matéria tangível é real, e os “Amigos da Forma” que dizem que apenas as formas são reais.

Diferentes visões têm sido afirmadas sobre a identidade desses ‘Amigos da Forma’. Tem sido dito (I) Que eles são Megáricos 105 (2) Que eles eram Pitagóricos Italianos106 (3) Que eles eram Platonistas ‘Que descansando na sua realização imperfeita de uma fase inicial de seu próprio ensinamento e dando novamente atenção para elementos Pitagóricos e Eleáticos, asseguram a doutrina das Idéias na forma que muitas vezes é posta em dúvida por Aristóteles; 107 (4) Que Platão está se referindo a ele próprio, só que de uma fase anterior 6. Não existe nada virtualmente para ser dito sobre a primeira; nós 4 242 c 4-243 a 2. 103 142 a 6-8. 104 245 e 6. 105 So Schleiermacher, Zeller, Bonitz. 106 Proclo in Par. 5 a 2, Stallbaum, Burnet, Taylor. 107 Campbell, Ed. of Soph. e Pol. lxxv. 6 Grote, Ueberweg, Jackson, Cornford.

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A Teoria das Idéias de Platão

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sabemos muito pouco sobre a escola Megária, e não temos conhecimento independente sobre eles terem afirmado as opiniões que aqui são atribuídas aos ‘Amigos da forma’. Para a segunda visão, assim como contra a terceira e a quarta Taylor argumenta que a relegação de coisas particulares para o simples terreno do ato de tornar-se, que é atribuída a essas pessoas, não é o ensinamento do Fedon; o qual a doutrina da participação atribui um modesto lugar na realidade para as coisas sensíveis, e pela sua doutrina da anamnésia designa à percepção sensível uma modesta contribuição para o conhecimento. Ele aponta depois para a observação sobre o estrangeiro de Eléia 7; que ele conhece melhor os pontos de vista dos Amigos das Formas do que Teeteto dia sunhqeian, e isso (Taylor argumenta) vindo da boca de um homem de Eléia pode apenas significar que eles são Italianos. Taylor considera que a doutrina deles desenvolveu-se naturalmente a partir de uma visão Pitagórica que “as coisas são números”.

Ritter 1 acha que Platão talvez esteja criticando a ele próprio, anteriormente. Ele indica que a visão que Platão descreve 2 parece ser exatamente sobre o Fedon e a República, e a frase usada para o que seja o perfeitamente real – que é ‘permanece imutável em solene indiferença, destituído de inteligência’ 3 - evoca a linguagem da famosa passagem do Fedro 4: ‘Ali permanece o muito ser com o qual verdadeiro conhecimento está preocupado; o incolor, o disforme, intangível essência, visível apenas para a mente, o piloto da alma...Na revolução, ela observa justiça, temperança e conhecimento absoluto, não na forma de geração ou relação, na qual os homens chamam de existência, mas o conhecimento absoluto na existência absoluta’. No entanto, ele prefere pensar que Platão nunca defendeu totalmente teoria dada imortalidade da alma, e que ele está reprovando the Schwarmerei de discípulos que levaram a linguagem do Fedon muito a sério. Ele crê que nos diálogos pré-Fédon, não existe sugestão de ‘separação’ entre a Idéia e as coisas sensíveis, e que Platão foi influenciado pela conjetura das doutrinas da imortalidade e da anamnésia; uma vez que as Formas que a alma estava ciente antes de ter uma existência corpórea com órgãos sensitivos no comando, poderiam apenas ser Formas existentes à parte de qualquer exemplo sensível.

É digno de nota, contudo, que não é a Imortalidade da Alma que Platão rejeita no Sofista, mas o modo de tratamento da realidade, que não inclui a vida e a alma. Na verdade, o Sofista classifica a alma como mais definitivamente incluída no verdadeiro real, do que o Fédon, que apenas descreve a alma como semelhante ao verdadeiro

7 248 b 6-8. 1 P.L.S.L 131-4. 2 In 246 b-c 2 e 248 a 4-13, 248 c 7-d 3. 3 249 a 1. 4 247 c 7-e 2.

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A Teoria das Idéias de Platão

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real. Parece, então, que Platão estaria agora criticando a si próprio por não ter suficientemente reconhecido a completa realidade da vida e da alma. Nós não devemos nos surpreender se ele aqui estiver criticando a um Platão anterior; ele já tinha feito isso na primeira parte do Parmênides, onde ele usou o mesmo artifício, fazendo a crítica vir da boca de alguém que não fosse platonista. De fato, a crítica é do mesmo tipo que as ultimas críticas vindas da boca de Parmênides: que a primeira visão platônica separa o mundo do devir completamente daquele do ser.

De um modo geral não é fácil escolher entre a segunda e a quarta visão. Mas devemos hesitar antes de aceitar a visão de que havia na Itália uma escola do tipo que Taylor pressupõe, uma escola que não é mencionada por nenhum outro escritor antigo que não seja Proclus. E a interpretação dele do dia sunhqeian não é a única possível. sunhqeia pode significar ‘conhecimento’, e pode ser no entendimento disso que Proclo baseou a interpretação dele. Mas em várias passagens 5 essa palavra significa ‘habituação’, e se isso for o que significa aqui, pode ser explicado supondo que o estrangeiro está dizendo que ele, um filósofo declarado, está mais acostumado a esse tipo de debate do que Teeteto, um novato que veio da matemática para a filosofia. No todo, então, a outra interpretação é mais provável; 1 os Amigos da Forma são o ser anterior de Platão e aqueles que aceitaram a sua visão anterior.

O estrangeiro primeiro retorna a atenção dele para os materialistas, e conduz eles a admitir que existem coisas que sem serem tangíveis manifestam suas realidades através do seu poder de influenciar ou ser influenciado por alguma outra coisa – alma, justiça e injustiça, saber e insensatez, bondade e maldade2. Ele agora se volta para os Amigos da Forma3, que designam a realidade apenas para as formas e relega tudo mais ao domínio do devir. Na seqüência existe uma passagem, a qual muitas vezes tem sido considerada para concluir que Platão muda seu ponto-de-vista sobre as Idéias atribuindo-as a mudança, vida, alma e razão. Isso seria sem dúvida uma surpreendente e incrível evolução, já que a razão principal dele para acreditar nas Idéias, é a sua convicção de que o Conhecimento deve ser um objeto imutável. Toda a passagem deve ser estudada, para ver se ele realmente abandona essa visão:

[248 c 4] Estrangeiro - A definição que adiantamos: “aquilo em

que está presente o poder de exercer ou de sofrer a ação, por menor

5 Rep. 516 a 5, 577 a 2, 620 a 2; Tht. 157 b 2, 168 b 7; Leis 655 e 6, 656 d 8, 865 e 3. 1 Para uma defesa detalhada cf. Jackson, J of Philol. Xiv (1885), 200-2 e Conford, PTK. 242-4. 2 246 e 2-248 a 3. 3 248 a 4.

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A Teoria das Idéias de Platão

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que seja”, bastaria para, de algum modo, definir os seres? Teeteto - Sim.

Estrangeiro - Pois eles responderão o seguinte: o devir participa, certamente, do poder de sofrer e de exercer; mas ao ser nenhum destes poderes convém. Teeteto - E, no que dizem, há alguma coisa?

[11] Estrangeiro - Alguma coisa a que devemos responder pedindo-lhes que nos ensinem, mais claramente, se concordam em que a alma conhece e que o ser é conhecido. Teeteto - Quanto a isso, certamente concordam.

Estrangeiro - Pois bem, conhecer ou ser conhecido é, segundo vós, ação, paixão, ou ambas ao mesmo tempo? Ou ainda um é paixão, outro ação? Ou então, nem um nem outro não têm qualquer relação nem com uma, nem com outra? Teeteto - Evidentemente, nem um nem outro, nem em relação a uma, nem em relação à outra. Do contrário seria contradizer suas afirmações anteriores.

Estrangeiro - Compreendo. Mas, nisto ao menos, concordarão: se se admite que conhecer é agir, a conseqüência inevitável é que o objeto ao ser conhecido sofre a ação. Pela mesma razão o ser, ao ser conhecido pelo ato de conhecimento, e na medida em que é conhecido, será movido, pois que é passivo, e isso não pode acontecer ao que está em repouso. Teeteto - È certo.

[e 6] Estrangeiro Mas como? Por Zeus! Deixar nos-emos, assim, tão facilmente, convencer de que o movimento, a vida, a alma, o pensamento não tem, realmente, lugar no seio do absoluto; que ele nem vive nem pensa e que, solene e sagrado, desprovido de inteligência, permanece estático sem poder movimentar-se? Teeteto - Na verdade, estrangeiro, estaríamos aceitando, assim, uma doutrina assustadora!

[249 a 4] Estrangeiro - Admitiremos então que ele tem inteligência e não tem vida? Teeteto - Como admiti-lo?

Estrangeiro - Mas, afirmando nele a presença de uma e outra poderemos negar que tenha tais presenças numa alma? Teeteto - De que outra forma poderia tê-las?

Estrangeiro - Teria, então, inteligência, vida e alma, e ainda que animado, permaneceria estático sem mover-se de nenhuma maneira? Teeteto - Seria absurdo! Ao que me parece.

Estrangeiro - Temos, pois, de conceder o ser ao que é movido e ao movimento. Teeteto - Como negá-lo?

[b 5] Estrangeiro - Do que segue, teeteto, que se os seres 1 são imóveis, não há inteligência em parte alguma, em nenhum sujeito e para nenhum objeto. Teeteto - Certamente

Estrangeiro - Por outro lado se admitirmos que tudo está em translação em movimento excluiremos a própria inteligência do numero dos seres. Teeteto - Como?

1 Leia-se οντων <παντων> , com Badham.

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[ b 12] Estrangeiro - Haverá jamais, a teu ver, permanência de objeto 2 onde não houver repouso? Teeteto - Nunca

Estrangeiro - E, faltando estas condições, crês que exista a inteligência ou que jamais tenha existido, em alguma parte? Teeteto - Certamente não.

Estrangeiro - Ora, se há alguém a quem devemos combater com todas as forças do raciocínio é quem, eliminando a ciência, o pensamento claro ou a inteligência, a esse preço afirma uma tese qualquer. Teeteto - Muito bem!

Estrangeiro - Ao filósofo, pois e a quem quer que coloque este bem acima de todos, parece prescrever-se uma regra absoluta: recusar a doutrina da imobilidade universal que professam os defensores ou do Uno ou das formas múltiplas, bem como não ouvir aos que fazem o ser mover-se em todos os sentidos. É preciso que imite as crianças querem ambos ao mesmo tempo, admitindo tudo o que é possível e tudo o que se move, o ser e o Todo, ao mesmo tempo. Teeteto - É a pura verdade.

Aqueles que acreditam que Platão estaria aqui abandonando sua

crença na imutabilidade das Idéias e atribuindo alma a elas, pensam: (a) que em 248 c 11- e 4 ele argumenta que ser conhecido é uma forma de ser influenciado e ser influenciado é incompatível com ter uma natureza imutável; (b) que em 248 e 6-249 a 2 ele afirma que o que é perfeitamente real deve ter movimento, vida, alma e razão. Ambas interpretações estão equivocadas. Na primeira passagem (a) não existe afirmação de que conhecer seja uma ação e ser conhecido, uma passividade; é simplesmente dito que se isso fosse admitido, conduziria a uma contradição da crença dos amigos da forma sobre a imutabilidade do real. A suposição de que conhecer é uma atividade e ser conhecido uma inatividade, que é apenas uma das diversas sugestões em evidenciadas em 248 d 4-7, é simplesmente abandonada. (b) É apenas por um completo engano, apesar de muito natural, que a segunda passagem supostamente diz que tudo o que é perfeitamente real deve possuir movimento, vida, alma e razão. O que Platão está dizendo é que (apesar da tentativa de provar que o objeto do conhecimento encontra-se em movimento tenha falhado) devemos achar difícil, acreditar que o que é perfeitamente real, não pode ter movimento, vida e tudo mais. Ele não diz que tudo o quanto é perfeitamente real deve ter essas coisas; ele apenas nega que não possa ter. O verdadeiro propósito dele fica claro em 249 b 5-10, onde ele diz, de fato, o conhecimento sugere mentes que sejam reais e essências que mudem e objetos (as idéias) que sejam reais e essências que não mudem. Ele não abandonou a sua crença nas Idéias imutáveis (a qual ele expressa em diálogos posteriores), I mas ele acrescenta que as essências da mente que mudem, devam também ser aceitas como completamente real. Quando ele diz que para a pergunta 2 Leia-se ta kata tauta, com Jackson. I e.g. in Tim. 28 a 1-2, 51 e 6-52 a 2; Phil. 59 a 7, c 2-5.

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sobre a realidade ser mutável ou imutável, nós devemos responder ‘ambas’, ele não está querendo dizer que a mesma realidade de algum modo misterioso administra ser ambas, mas que ambas, idéias imutáveis e mentes mutáveis, são perfeitamente reais.

O que, então, acontece com a sugestão que conhecer é uma forma de determinar, e ser conhecido uma forma de ser determinado? È lentamente abandonada à medida que a conseqüência dessa aceitação é indicada.2 Caso Platão pretenda continuar com a sua sugestão de que apenas aqueles que tem o poder tanto de determinar ou ser determinado são reais, ele deve estar pretenso a admitir que a outra alternativa, a de que no conhecimento o objeto determina a mente; que seria no mínimo mais razoável que a visão de que a mente determina o objeto, e corresponderia melhor com o valor que ele dá a sensação no Teeteto.3

Assim como Platão forçou os materialistas que estavam abertos a convicções a admitirem que existem realidades não sensíveis, ele tem, agora, forçado os idealistas a admitirem que a realidade inclui seres pensantes e vivos assim como as Idéias. Agora no Fedon e na República ele muitas vezes descreve as Formas como sendo completamente reais; mas a conclusão que ele aqui alcança já tinha sido prenunciada no Fedon, onde ele diz 4 que a alma é semelhante ao invisível e eterno, do que ao visível e temporal; realmente, a mesma coisa é subentendido na doutrina da imortalidade, no Fedon, na República e no Fedro. O que Platão faz no Sofista é reconhecer, mais explicitamente do que antes, dois elementos na realidade - As formas universais e almas individuais. Ao concluir, recapitulando o argumento, ele diz que a realidade deve incluir todas as coisas imóveis e móveis; 5 as formas imóveis que os Amigos das Formas admitem ser reais, os corpos móveis que os materialistas admitem ser reais, e as almas que tem ‘movimentos próprios’. 6

Platão chega, então, a reconhecer dois atributos- repouso e movimento- cada qual é coerente com a realidade, e o cenário muda para a consideração da questão do koinwnia genwn 1, a intercomunhão das espécies, o qual esse é um exemplo.

2 In 248 d 10-e 4. 3 cf. pp.102 3 supra. 4 79 b 1-c 1. 5 249 c 10-d 4. 6 Para o ‘movimento da alma’- aprendizagem, prática, desejo, reflexão, &c., cf. Tht 153 b 9-c 1, Leis 896 e 8-897 a 3. 1 Platão usa koinwnia, koinwnein, epikoinwnein, epikoinwnia, proskoinwnein em duas diferentes construções – como genitivo ( 250 b 9, 251 e 9, 252 a 2, b 9, 254 c 5,

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Platão rejeita com desprezo 2 a teoria - geralmente e, sem dúvida, certamente atribuída a Antístenes - que uma coisa não pode ter uma qualidade diferente de si mesma, que não pode ser verdadeiro dizer que um homem é bom, mas apenas dizer que um bom é um bom e um homem é um homem. O problema de Platão não é se essa questão é verdadeira (ele assume que não é), mas a questão de como uma Forma, tal como Ser pode ser atribuído a duas ou mais Formas, tal como o movimento e a inércia - questão que ele já havia sugerido em Parmênides.3 Ele havia dito lá, que enquanto não há dificuldade em enxergar que uma coisa pode participar de diferentes e até mesmo, idéias opostas, o que realmente faria ele surpreso seria se alguém, depois de diferenciar Formas como, semelhança e diferença, pluralidade e unidade, inércia e ação, depois, apresentasse elas como sendo ‘misturados e separado de cada um’. A conclusão que ele logo irá chegar é que, enquanto nenhuma Forma pode ser misturada com nenhuma outra, no sentido de ser identificado com essa outra, existem três Formas - Ser, Uniformidade, Diferença - que podem ser afirmados de todas as Formas, alguns pares de Formas dos quais um pode ser afirmado pelo outro, e outros pares de Formas nos quase nenhum pode ser afirmado pelo outro. O problema dele é a organização do sistema das Formas elas próprias. Ele primeiro 4 considera a declaração que nenhuma Forma pode se unir com nenhuma outra. Isso é rejeitado, como sendo inconsistente com qualquer teoria sobre o real; qualquer teoria desse tipo defende que as coisas que possuem algumas qualidades especiais – alteração dos corpos, ou unidades imóveis, ou Formas imutáveis - existem, ou, em outras palavras, compartilham da Forma de existência. Certamente, a teoria é auto contraditória; por dizer que cada Forma está isolada de todas as outras e que cada Forma existe por si mesma, tais pensadores estão afirmando uma conexão entre as Formas e a existência à parte das outras coisas, e entre as Formas e a existência em si. È igualmente impossível dizer 5 que todas as Formas se combinam umas com as outras; isso implicaria, e.g, que o movimento está em repouso e o repouso está em movimento. A verdade é 6 que algumas Formas se misturam e outras não, e nosso problema é descobrir quais se misturam e quais não. Platão acrescenta que nós

256 b 2, 260 e 2) e com o dativo ( 251 d 9, e 8, 252 d 3, 253 a 8, 254 b 8, c 1, 257 a 9, 260 e 5). No modo de escrever anterior os verbos significavam ‘dividir em ’; no mais recente eles significam ‘combinar com’ ou ‘comunicar com’. A ‘divisão’ de uma Forma em outra possui alguma afinidade com a divisão de uma coisa particular em uma Forma, com a importante diferença de que a Forma que se divide em outra é uma perfeita especificação da outra, enquanto que um particular que se divide em Forma é apenas um exemplo imperfeito disso. Apesar de Platão usar as duas diferentes construções, ele não parece vincular nenhuma importância para a diferença entre elas. 2 251 a 8-c 6. 3 129 d 6-130 a 2. 4 251 e 7-252 d 1. 5 252 d 2-e 8. 6 252 e 9-253 c 5.

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devemos nos perguntar se existem certas espécies (de Formas) que penetram em todas as Formas e unem elas, e se existem outras formas que penetram em todas as Formas e separam elas. Ele não diz aqui quais são as Formas que unem, ou quais são as formas que separam. Porém a seqüência torna claro que as Formas que unem são Ser, Igualdade e Diferença, que são atributos de todas as Formas e simplesmente por isso, as une, e que a Forma que separa mais comum é a diferença, a qual é atributo de todas as Formas e por sua natureza especial as separa. 2 A ciência que revela essas Formas que unem e as Formas que separam são a dialética, e o seu representante é o verdadeiro filósofo. Em outras palavras, a filosofia é o descobrimento da organização do sistema de Formas, as Formas que unem e que realmente podem ser conectadas e as Formas que separam e que realmente não podem ser conectadas. 3

O estrangeiro volta-se 4 a considerar alguns dos ‘melhores modos’ a partir de uma visão que revela a natureza de cada um e a relação deles uns com os outros. Os maiores modos são aqueles que nós já discutimos na passagem sobre os amigos das Formas 5 - ser, movimento e inércia.6 Desses, o movimento e a inércia não vão unir, mas ser unidos com ambos. Além disso, cada um dos dois é exceto o outro e o mesmo que o próprio, logo devemos reconhecer outras duas grandes Formas, uniformidade e diferença. Platão tem um pouco de dificuldade em mostrar que ambas, igualdade e diferença são distintas, da mesma maneira que movimento, inércia, e ser. A prova dele que diferença é diferente de ser, é interessante, pois introduz 7 a distinção entre termos que são absolutos (auta kaq'' auta) e aqueles que são relativos (proz akka). Diferença deve ser diferente do ser porque é sempre relativo enquanto o ser, pode ser absoluto ou relativo.8

2 254 d 10-255 e 7. 3 253 c 6-254 b 6. 4 254 b 7. 5 248 a 4-249 d 5. 6 Conford insiste que Platão apenas diz que ser, movimento, e inércia são grandes modos, não que eles são os melhores; uniformidade e diferença são logo adicionadas a eles, e são, de fato, melhores modos do que movimento e inércia, sendo atributos de todas as coisas, enquanto movimento e inércia não são atributos um do outro. Isso seria aceito se o Estrangeiro tivesse descrito ser, movimento e inércia simplesmente como megista genh , mas ele diz que eles são megista twn genwn, e Teeteto responde polu (254 d 4-6). ‘muito ótimo’ dificilmente conseguirá, enquanto polu megista, é o usual grego para ‘o melhor’. Movimento e inércia são na verdade menores do que uniformidade e diferença; mas é natural que Platão deva nesse estágio mencionar apenas aqueles melhores modos que já foram descobertos. 7 255 c 12. 8 255 d 3-7.

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Assim sendo, temos cinco "grandes espécies". Platão procede à soma de suas relações mútuas: 1

1. Movimento é completamente diferente do repouso (ou seja, nem idênticos nem com atributo do mesmo).

2. Partilha de existência.

3. É diferente, ainda que compartilhe semelhança, sendo o mesmo como a si próprio.

4. É diferente de diferença, ainda que compartilhe diferença, sendo diferente da semelhança e do repouso.

Platão agora pergunta 2 se movimento se baseia em uma segunda relação da existência, assim como a da partilha nela mesma, e as respostas (5) são diferentes de existência. Similarmente,3 deve ser verdade que cada espécie além da existência (a) que não é existência, mantido separada pela diferença, (b) é então existente, por compartilhar a existência. E podemos dizer de qualquer espécie (não apenas das grandes) que há muito daquilo que é (ou seja, que existem muitos tipos de atributos) e uma infinidade de coisas que não são (uma vez que não é idêntico a qualquer outra natureza).

6. É a verdade do ser em relação a qualquer outra espécie que não é idêntica com qualquer uma delas; no entanto, ainda é uma coisa, ou seja, a coisa em si.4108

Acrescentando ao que Platão diz, ele poderia ter facilmente acrescentado pela paridade de raciocínio, podemos agora declarar as relações mútuas das grandes espécies:

1 Cada uma delas é diferente de todas as outras. 2. Ser, igualdade, diferença são atributos uns dos outros, de movimento e de repouso.

1 255 e8-256 d10. 2 255 d 3-7. 3 256 d 11. 4 257 a 1-6.

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3. Movimento e repouso não são atributos uns dos outros.

Numa fase anterior do diálogo, 5 o Estrangeiro disse que a existência da falsidade implica no que não se tem, no entanto, de alguma maneira, e assim vai contra Parmênides dizendo, 'Nunca deve ser provado, de que as coisas não são; Ele remete agora 5 ao problema da to\ mh\ on, o que não é, e começa por dizer que através desta frase não quer dizer alguma coisa ao contrário daquilo que existe, mas apenas algo diferente. Ele justifica109 este ponto, sublinhando que “não é grande" (que, uma vez que 'grande' é um termo comparativo, significa 'não maior') é apenas aplicável a como aquilo que é igual ao que é pequeno (i.e. menor). Aquele que é negado a ser x não é dito ser o contrário, mas apenas diferente para ser x. Além disso, como o conhecimento é dividido dentro das ciências, então 'o outro' é dividido em não-belo, não-grande. E estas coisas denotadas por esses termos negativos são tão reais quanto às coisas denotadas pelos correspondentes termos positivos. Assim, o não-ser está estabelecido como uma entre as múltiplas espécies1, mas não é a sexta “grande espécie”, porque é simplesmente diferente com outro nome.

Finalmente, podemos observar o uso muito engenhoso que Platão nos deu de “aquilo que não é" como ser a não-existência, mas aquilo que é diferente - o contexto determinará o que é diferente. A discussão de todo o tipo de combinação começa a partir de uma tentativa de dar conta de uma falsa declaração e uma falsa opinião. Parece natural dizer que as falsas declarações afirmam e as falsas opiniões pensam o que não é, e ao dizer isto parece, prime facie, a ser o que implica aquilo que não é, e este é invocado contra a grande autoridade de Parmênides - "nunca deve ser provado isto, que é aquilo que não é". O Estrangeiro agora ataca o problema da falsa declaração e falsa opinião à luz da sua discussão de “o que não é". Ele começa 2 com a proposição que todo discurso depende de uma construção, juntamente com as Formas pelo orador ou pensador. Esta é, de fato, uma afirmação exagerada, uma vez que uma sentença pode ter um próprio nome para o assunto, e um nome próprio não sustenta uma forma ou universal. Mas o atributo de uma frase normalmente sustenta uma forma, e todos os sujeitos de 5 257 b 1.

1 258 c 3. 2 259 c 5.

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declarações exceto nomes próprios, sustentam tanto as Formas quanto coisas descritas por meio de Formas.

O Estrangeiro procede ao dizer 3 que cada declaração afirma ou nega um verbo (mantendo uma ação) de um substantivo (mantendo o executor da ação); e ele dá um exemplo que ilustra isso (embora ele não ilustre sua tese de que a declaração em conjunto é uma tecelagem de Formas), viz. a declaração ‘Teeteto voa’4. Teeteto voando é algo que não existe, e parece, portanto, a declaração parece logo de cara dizer que não é, mas o Estrangeiro lembra 5 que Teeteto voando não existe, Teeteto existe e voa (ou a forma universal de voar) existe, de modo que Teeteto voa em dizer que não estamos afirmando-o de alguma coisa que não existe, mas apenas algo que não pertence a ele, alguma 'outra' coisa, i.e. do que todas as outras coisas que pertencem a ele.

O resultado do exame de Platão desta combinação de classes pode parecer bastante escasso - a descoberta de relações muito evidentes entre termos vivos. Mas é preciso lembrar duas coisas: em primeiro lugar, que toda esta análise é apenas um acessório para o exame da possibilidade de falsa declaração e da falsa opinião, começa a partir disto e retorna a isto, e em segundo lugar, que o importante é o estabelecimento do princípio que as Formas também são conjuntos de entidades permanentes suportando nenhuma relação positiva entre si, nem ainda são capazes de entrar em todos os outros tipos de relações - que constituem, na verdade, um sistema. A discussão é apenas a primeira parcela de um processo que pode ser transportada para muito longe, para o estabelecimento de uma ou outra de duas relações, previsibilidade ou não-previsibilidade, entre cada par de Formas, e, portanto, a um mapa - um mapa bastante abstrato, deve ser admitido - do mundo das Formas.

Platão no Fedro 5 descreve a dialética como consistindo na utilização comum da reunião e divisão. Destas operações, o primeiro parece ser meramente preliminar para o segundo. Na tentativa de alcançar a definição de um termo específico, a primeira fase - a “reunião” é a tentativa de escolha do gênero amplo que o termo pode ser definido como queda. No Sofista e no Político, “reunião”é tratada como uma parte distinta do processo, a palavra sunagwgh não ocorre, e pensada a palavra suna/gw aparece

3 262 c 2-7 4 263 a 8. 5 263 b 7-d 5 5 265 d 3-266 c 1, 273 d 7-e 4, 277 b 5-8

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freqüentemente 110, apenas uma vez usados111 da coleta de espécies em um gênero. O conjunto de salas sobre o processo de divisão. Na tentativa de definir o pescador, que é preliminar à tentativa de definir o sofista, é assumido sem discussão que é uma espécie artesão112 e queda de tensão sobre a tentativa de dividir o gênero ‘artesão’. Na tentativa de definir o sofista, o sofista se assume, sem discussão, por pertencer ao gênero 'artesão'113, 'e em cada uma das sucessivas tentativas do gênero é assumida de forma semelhante, e as oscilações de tensão sobre a subdivisão em espécies do gênero. Platão, quando descreve a natureza da dialética, em geral, não se define como no Fedro, como um processo comum de reunião e de divisão, mas simplesmente como um processo de divisão de acordo com espécies, não tomando a mesma forma para algo diferente ou algo diferente para a mesma. 114Mas, na mesma passagem dialética é descrita de outra forma. Em Parmênides, 115 Sócrates tinha dito que, enquanto não há nada surpreendente no fato de que um pedaço de pau ou uma pedra é múltiplo - e têm muitas partes, assim como um ser único, o que o surpreenderia seria se qualquer pessoa pudesse mostrar as Formas por si mesmas - unidade e pluralidade, ou similitude e diferença, ou de repouso e de movimento ---- podem ser combinadas. E agora, no Sofista ele define dialética em “conhecer como distinguir espécie por espécie, e de que maneira as várias espécies, podem ou não combinar”. 116 Isso se refere não à construção de uma hierarquia das Idéias variando de um summum gentes para baixo para infimae spécies, mas sim a um estudo das relações de coerência, incoerência e, implicação que existem entre as Formas.

O Político é principalmente ocupado pela discussão sobre a natureza da relação de afirmação, mas esta contém uma passagem que é pertinente para o estudo da doutrina das Idéias. Aqui, também, as oscilações de tensão, não na reunião, mas na divisão. Platão toca em um ponto que ele não tinha feito explicitamente no Fedro ou no Sofista, ou seja, que nem toda possível divisão do gênero pela utilização da dicotomia é susceptíveis de corresponder à verdadeira estrutura do gênero. Através de sucessivos usos da dicotomia o Estrangeiro chega à conclusão de que Estado recai sob o título de 'a extensão de animais juntos’117, e o jovem Sócrates procede para identificar com a astúcia de muitos homens juntos. 118 Para isto o Estrangeiro objeta que ‘seria melhor nós não dividirmos uma parte

110 Sof. 224 c 9, 230 b 6, 251 d 8. Pol. 267 b 6, 278 c 5, 308 c 6, 311 a 1, c 1. 111 Sof. 267 b 1 112 219 a 4-7 113 221 c 5-d 6 114 253 d 1-4 115 129 c 1-130 a 2 116 253 d 9-e 6 117 261 d 7-9 118 262 a 3-4

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pequena, contra partes que são grandes e múltiplas, nem uma parte sem uma Forma; deixe que a parte tenha uma Forma’. . .”Não é seguro, meu Amigo, dividir em uma pequena parte; é mais seguro proceder a um recorte através do meio---é mais provável acertar as Idéias reais”. 119 Sócrates fez o mesmo erro quando dividiu os homens entre Helenos e bárbaros, ou números entre o número dez mil e os outros números; ele está supondo que ele tenha encontrado uma única classe, porque ele tem dado a uma mera reunião um nome comum. Ele teria feito muito melhor se ele tivesse dividido em números pares e ímpares, ou os homens do sexo masculino e Feminino. ‘Uma classe é necessariamente uma parte, mas não há necessidade de que uma parte semelhante deveria ser uma classe’. 120 Há 'duas formas para que o argumento de que visa alcançar - de maneira mais rápida, que recorta uma pequena porção, e esquece uma larga parcela e uma outra maneira como dividiríamos conforme prescrito como possível no meio, mas mais demorado. 121

Dois princípios importantes no que diz respeito ao mundo das Idéias são aqui reconhecidos. Uma delas é que a sua estrutura é uma estratificação da estrutura. A divisão da humanidade em Gregos e Bárbaros é ruim porque ele ignora este princípio, os gregos são "é uma pequena parcela" do todo, e não no mesmo nível de generalidade com que a classe quais são contrastados. Na divisão, não devemos passar direto de 'homem' para 'grego', mas reconhecer uma mediação das classes. O segundo princípio é o da ausência de uma característica positiva, em que não se auto-constituem uma classe. Um bárbaro, por um grego, era apenas um não-grego; mas 'bárbaro' foi um termo depreciado não como o número dez mil. Será observado que a concepção dialética, ou seja, da filosofia, apresentada no Fedro, no Político e no Sofista, é bastante diferente da apresentada na República.

O objetivo da dialética já não é toda a verdade para deduzir a partir de uma única verdade transcendente. É uma mais modesta e mais um imaginável---Platão, pelo menos, com a qual obtém sucesso em fazer um começo, que traçando a relação de afirmação e negação entre as Idéias, e as relações de gênero e espécie que existem entre elas. É típico do bom senso Aristotélico que, enquanto ele rejeita completamente o ideal de deduzir toda a verdade da verdade única, ele aceitou desde Platão as noções de gênero, espécie e diferenciações, e juntando-lhes aos corolários naturais, propriedade e acidente, estabeleceram a sua doutrina dos atributos. 119 262 a 5-c 1 120 263 b 7-9 121 262 a 1-5

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VII – TIMEU E FILEBO Tradução:

Denilson

discurso do Timeu122 é dividido pelo próprio Platão em três partes principais. Há primeiramente123 a parte onde ele descreve a operação da razão na construção do mundo; em segundo124, há a

parte onde descreve ‘as coisas que ocorrem a partir da necessidade’, i.e, as características do mundo que ocorrem devido às condições pré-existentes, da qual a razão precisa levar em consideração e não pode alterar; e em terceiro125, a parte onde Platão retorna ‘ao início’ e leva em consideração ambos os elementos que foram tratados separadamente nas duas primeiras partes. A terceira seção, estando relacionada com os detalhes daquela combinação de corpo e alma a qual chamamos de homem, não joga nenhuma luz sobre a teoria das Idéias; tão pouco o fazem muitos dos detalhes das duas primeiras partes. Mas as partes mais gerais destas áres são muito relevantes para o nosso tema.

Platão começa126 com sua familiar distinção entre ‘aquilo que é sempre real e que não tem início’ e o que é ‘apreensível pelo pensamento com uma explicação racional’, e ‘aquilo que está sempre se transformando e nunca é real’ e o que é ‘objeto de crença com uma sensação sem razão’. Assim, a distinção entre as Formas e as coisas sensíveis é colocada no primeiro plano do discurso.

O mundo, sendo apreensível pelos sentidos (continua ele),127 deve ter vindo a existir, e deve ter sido através de alguma entidade; e seu criador deve ter olhado para um modelo imutável, i.e, para uma Forma; pois apenas assim o produto seria bom. O autor do universo era bom, e desejou que todas as coisas se tornassem o máximo possível parecidas com ele. 128 Ele então ‘tomou o comando de tudo que era visível – não em repouso mas em movimento discordante e desordenado – e os trouxe da desordem para a ordem’.129 Já que nada desprovido de inteligência pode ser melhor do que o que possui inteligência, e já que a inteligência não pode existir sem a

122 27 c1 até o final do diálogo. 123 27 c1 - 47 e2. 124 47 c3 - 69 a5. 125 69 a6 - final. 126 27 d5 - 28 a4. 127 28 b2 - 29 b2. 128 29 e 1-3. 129 30 a36.

O

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alma, na criação do universo ‘ele moldou a razão dentro da alma, e a alma dentro da razão’.130 O modelo usado pelo artesão divino não poderia ser nenhum ser vivo em particular; ele deve ser o que abarca todas elas, ‘pois ele abarca e contém dentro de si todas as criaturas vivas, assim como este mundo contém a nós etodas as outras criaturas que foram formadas como coisas visíveis’. 131 Em outras palavras, o modelo deve ter sido a Forma genérica do ser vivo, junto com todas suas espécies e sub-espécies.

Após descrever em termos gerais a natureza do mundo sensível modelado após o ser vivo ideal, Platão continua132 falando sobre a alma-do-mundo, que assim como o próprio mundo sensível é descrita como tendo sido criada pelo Demiurgo. Foi por ele criado ‘antes do corpo e mais venerável em nascimento e excelência, para ser a senhora e governanta do corpo’.133 Assim Platão atribui diretamente à alma um lugar na realidade abaixo das Formas eternas, e mais elevado do que o de coisas corporais; e esta posição intermediária é mantida na passagem que se segue logo em seguida, sobre a composição da alma-do-mundo. Será lembrado que no Sofista a existência, a semelhança e a diferença foram distinguidas como as Formas mais amplas, atribuíveis de umas às outras e de todas as outras Formas, já que toda Forma existe, e é a mesma como si mesma e diferente de qualquer outra Forma. Com referência a estas três Formas, Platão atribui os seguintes estágios de composição da alma-do-mundo:134

(1) Entre a Existência indivisível que está sempre no mesmo estado e a Existência divisível que assume a condição de corpos, ele compôs uma terceira forma de Existência composta de ambos. (2) Novamente, no caso da Semelhança e da Diferença, e no mesmo princípio, ele fez um composto intermediário entre o tipo que é indivisível e o tipo que é divisível em corpos. (3) Assim, tomando os três, ele combinou todos em uma unidade, forçando a natureza da Diferença, difícil como era de misturar, em união com a Semelhança, e combinando-as com a Existência.

I. A existência designada às Formas é aqui duplamente caracterizada – ela é indivisível e imutável; que designada a corpos, é divisível e em constante transformação; que relacionada a alma-do-mundo, é em ambos os sentidos intermediária. Platão não elucida seu significado, mas é possível fazê-lo, conjecturamente. (a) Toda Forma é indivisível; ela pode ter elementos, um elemento genérico e um diferencial, mas estes estão indivisivelmente unidos. Cada corpo pode sempre ser dividido em corpos

130 30 a6 – b6. 131 30 c2-d1. 132 34 b3. 133 34 c4. 134 33 a1-b1. Grube e Cornford corretamente restauraram ay perí em a4, o qual alguns editores

extirparam. A vírgula de Burnet em a5 deve ser removida, e seu ponto em 8 trocado para vírgula.

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menores. A alma-do-mundo se estende por todo o corpo-do-mundo135, e podemos conjecturar que Platão quis dizer que ela é conseqüentemente divisível de modo nocional, enquanto é ainda de fato indivisível.

(b) Novamente, uma Forma é eterna e imutável; um corpo passa a existir e se transforma. Platão não explica como a alma-do-mundo é intermediária neste respeito, mas podemos ter uma pista sobre o que ele quis dizer vendo que diz em 37 d 3-7 sobre o corpo-do-mundo. ‘A natureza daquele Ser Vivo’ (a Idéia de Ser Vivo) ‘era eterna, e este caráter era impossível de se conferir em completa integralidade sobre a coisa gerada’ (o corpo-do-mundo). ‘Mas Ele tomou do pensamento para o fazer, como se fosse uma imagem móvel da eternidade; e, ao mesmo tempo em que Ele ordenou o Céu, Ele fez, da eternidade que habita na unidade, uma imagem eterna movendo-se de acordo com o número – para o qual demos o nome de Tempo’. Para a alma-do-mundo, também supomos que Platão atribui uma existência intermediária entre a das Formas e a das coisas sensíveis, pois que, enquanto não é eterna – foi criada pelo Demiurgo – ela perdura através dos tempos.

A linguagem aqui usada para a alma-do-mundo ecoa o que Platão havia escrito muito antes, no Fédon:136 ‘A alma se assemelha ao que é divino, imortal, dotado da capacidade de pensar, ao que tem uma forma única, ao que é indissolúvel e possui sempre do mesmo modo identidade: o corpo, pelo contrário, equipara-se ao que é humano, mortal, uniforme, desprovido de inteligência, ao que está sujeito a decompor-se, ao que jamais permanece idêntico’. O que Platão lá disse sobre a alma em geral, aqui ele diz sobre a alma-do-mundo. Porém, enquanto ele nada diz no Timeu sobre a imortalidade das almas individuais, não temos nenhuma razão para supor que ele tenha mudado de idéia sobre isto.

2. Por semelhança própria às Formas, Platão quis dizer uma completa simplicidade e identidade próprias que caracterizam cada Forma. Por diferença própria às Formas, ele quis dizer a diferença alinhada que separa cada Forma de cada uma. Por similaridade e diferença próprias para os corpos, ele quis dizer similaridade parcial, diferença parcial, uma similaridade em alguns aspectos, dissimilaridade em outros, que cada corpo tem em relação ao outro. Para a alma-do-mundo ele, atribui um tipo intermediário de semelhança e diferença, assim como de existência, de modo que (no princípio de que a semelhança conhece a semelhança) responda por sua força tanto por conhecer as Formas como por formação de juízos sobre os corpos.137

135 34 b3, 36 e2. 136 80ª 10-b5. 137 37 a2-b3.

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A primeira parte do discurso do Timeu contém nada além do que seja diretamente relevante para o nosso tema. Mas na segunda seção, ele diz que além das duas coisas que havia nomeado em 27 d5-29 b2 – o modelo e a cópia – devemos reconhecer um terceiro fator, que por sua vez é ‘difícil e obscuro’, ‘o receptáculo e como ele era o governante de tudo que vem a ser’.138 Antes de nos aprofundarmos nisso, ele continua, devemos considerar as coisas que vêm a ser nela – os elementos reconhecidos por Empédocles, o fogo, o ar, a água e a terra. A água, quando comprimida, torna-se terra, e quando é dissolvida torna-se ar; o ar quando inflamado torna-se fogo; o fogo quando comprimido torna-se ar, e quando mais condensado, torna-se água, e quando é ainda mais condensado, terra. Os quatro elementos ‘transcorrem e não esperam serem chamados “disto” ou “daquilo”, ou referidos por qualquer expressão que indique que são permanentes’.139 Somente aquele no qual cada um deles aparece de tempos e tempos e desaparece deveria ser referido como ‘aquilo’ ou ‘isto’. 140 Em outras palavras, os quatro assim chamados elementos não são elementos derradeiros, mas quatro estados de uma coisa.

Timeu tenta elucidar seu significado ainda mais através uma analogia. 141 ‘Se alguém fosse dar modelo a todos os tipos de formas pelo ouro e nunca cessasse de remodelar cada um em todo o resto, e um deles fosse então mostrado e perguntado o que ele era, de longe a resposta mais segura, com vista para a verdade, seria a de que era ouro. Nunca podemos falar do triângulo ou de outras formas que estivessem vindo a ser nele, as quais mudam a cada momento de nossa suposição pela sua existência, como seres, mas devemos ficar contentes se eles puderem com qualquer segurança ser referidos como “o que tem tal e tal caráter”. Assim, também, a natureza que recebe todos os corpos deveria ser descrita como sempre a mesma; pois ela nunca parte da sua própria capacidade; ela recebe de tempos em tempos todas as coisas, e nunca toma forma de nenhum modo como qualquer das coisas que passam para ela; ela permanece por natureza um material plástico (ékmageîon)142 para tudo, mudado e diversificado pelas coisas que passam para ela, e por causa delas aparece ora como um tipo, ora de outro; enquanto as coisas que passam para ela e para fora dela (ta eíoiónta kaì éziónta)143 são cópias das coisas eternas, modeladas após elas, de tal forma que é difícil de expressar e admirar, as quais devemos perseguir mais tarde. Mas para o presente, devemos reconhecer três tipos de coisas, as que vêm à existência, as que nas quais ela vem à existência, as que em cuja semelhança em que pela existência é

138 48 e2-49 a6. 139 49 c2-4. 140 1bid. 7-50 a2. 141 50 a4-d2. 142 50 c2. 143 50 c4.

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nascida.’ Timeu continua dizendo que144, para ser capaz de acomodar todos os tipos de qualidades (como o calor e o frio), o receptáculo é necessariamente não ele mesmo caracterizado por cada um destes. Assim como não é a terra, nem o ar, nem o fogo, nem a água, mas é ‘invisível e sem forma, todo-receptivo, partilhando em um modo mais obscuro do inteligível, e mais difícil de compreender’.

Timeu agora145 pergunta se existe tal coisa como o próprio fogo, o próprio ar, e por aí vai, ou somente o fogo, o ar, etc., os quais nós apreendemos pelos sentidos, i.e, se os modelos ideais que ele assume precisam ser assumidos. Sua resposta é a seguinte: ‘Se a razão e a opinião são coisas diferentes, então as Formas imperceptíveis a nós, os objetos de pensamento por eles mesmos, devem existir por si mesmos; mas se a verdadeira opinião difere de nenhuma maneira da razão, as coisas que percebemos através do corpo devem ser consideradas como sendo a realidade mais segura. Agora devemos dizer que a razão e a opinião são duas coisas, já que elas diferem tanto na origem quanto na natureza. Uma é produzida pelo ensinamento, a outra pela persuasão; podemos justificar uma através do verdadeiro raciocínio, a outra não é apoiada pela razão; uma não pode ser movida pela persuasão, a outra pode; somente Deus e alguns poucos homens possuem uma, todos os homens possuem a outra. Devemos então concordar que há Formas distintas das suas cópias.’ 146

Platão aqui aborda a razão essencial para crer na existência das Formas, a diferença entre o conhecimento e a opinião verdadeira. Em outras palavras, ele se apóiae no argumento elaborado do Teeteto147 onde reivindica estabelecer esta diferença. O ponto é o mesmo, também, onde em Parmênides148, após apontar as diferenças que atacam a formulação da teoria ideal, Parmênides concorda com Sócrates – a de que à parte das Idéias, o conhecimento seria impossível.

Timeu repete que em adição às Idéias e aos fenômenos, devemos reconhecer um terceiro tipo de coisa, ‘o lugar do vir a ser’, para o qual ele finalmente149 dá o nome de espaço, e o qual ele descreve como ‘apreendido sem os sentidos por uma espécie de raciocínio ilegítimo, e dificilmente um objeto de crença’. 150 Esta parece ser a primeira ocorrência em grego da palavra khōra no sentido de espaço em geral, como distinto de espaço ocupado por qualquer coisa particular, e o primeiro lugar em Platão onde a espacialidade ou extensão é apontada como o acompanhamento inseparável 144 50 d4-51 b2. 145 51 b6. 146 51 d3-52 a7. 147 187 a1-201 c7. 148 135 b5-c3. 149 52 a8. 150 52 b2.

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de todos os objetos de sensação. E vale a pena notar que Platão a trata não somente como um acompanhamento inseparável, mas como algo necessário ao seu ser. ‘Uma imagem, desde que nem mesmo o princípio no qual ela dependa seja ela própria, mas que seja uma aparência eternamente móvel de algo a mais’ (ou seja, de uma Forma) ‘deve vir a existir em algo a mais’ (ou seja, no espaço), ‘aderindo à existência, o melhor que pode, sob pena de não existir absolutamente’. 151 Dois pontos adicionais podem ser notados. (1) Platão aparentemente não tinha nenhum interesse em responder a idéia de matéria de Aristóteles. A verdade, a modelagem de ouro em diferentes formas, é usada como uma comparação para jogar luz na natureza do espaço; mas trata-se de uma comparação que falha em um ponto vital. O ouro é aquilo de onde os objetos modelados são formados; o espaço não é aquele de onde ‘as coisas que passam para dentro e fora dele’ são feitas, é simplesmente onde elas aparecem. E (2) estas coisas não são pensadas como substâncias, mas como qualidades concretas ocupando porções de espaço. A expressão ‘passando para dentro e para fora’ não deve ser tomada ao pé da letra. As coisas que são descritas como fazendo isto não vêm para o espaço vindo de outro lugar qualquer, nem passam para dentro de outra esfera quando deixam de aparecer no espaço. Sua única existência é no espaço; elas são cópias das Formas, produzidas no espaço como um reflexo de um corpo produzido em um espelho.

Tudo isto é um desenvolvimento muito interessante do ponto de vista de Platão sobre o mundo sensível, que ele tinha até então, exceto em uma passagem no Teeteto152, sem a expressão de nenhuma teoria em particular; e assim, também, é a passagem que se segue, a construção dos quatro elementos das combinações de planos triangulares, e a provisão, tão curiosamente profética da física modernos, pela qual faz para a transmutação de elementos pelo rearranjo dos triângulos que os constituem.153 Mas quanto a isto, nenhuma mudança em sua atitude em relação às Formas é envolvida.

A questão permanece, até que ponto os conteúdos do Timeu devem ser uma expressão literal da crença de Platão. O que o próprio Platão diz sobre isto será visto em 29 b1-d3.

Novamente, sendo tais coisas como são, o nosso mundo deve necessariamente ser uma representação de alguma coisa. Agora, em todo e qualquer assunto, é de extrema importância iniciar no ponto correto de acordo com a natureza do sujeito. Com respeito a uma representação e seu modelo, devemos fazer esta distinção: as causas são da mesma ordem que 151 52 c2-5. 152 155 d5-157 c3; cf. PP. 102-3 supra. 153 A extensão para a qual Platão antecipou as teorias modernas da estrutura dos elementos é

corretamente apreciada por P. Friedländer em University of California Publications, xvi (1949), 225-48.

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as coisas das quais elas são apresentadas – causas do que é permanente e estável e descobrível pelo auxílio da razão, serão elas mesmas permanentes e imutáveis (na medida em que isso seja possível e que esteja situado na natureza de uma causa para ser incontestável e irrefutável, nada deve haver além disso); enquanto as causas do que é feito na imagem do outro, mas que é apenas uma semelhança, serão elas mesmas, mas provavelmente permanentes para as causas do tipo anterior em uma proporção: assim como a realidade está para a existência, assim está a verdade para a crença. Se provamos então que Sócrates, em muitos aspectos com respeito à muitas coisas – os deuses e a geração do universo – foi incapazes de prestar contas em todos os pontos inteiramente consistentes e exatos com eles mesmos, então você não deve ficar surpreso. Se podemos fornecer contas não menos prováveis do que a qualquer outro, devemos estar contentes, lembrando-nos que eu, que falo para vocês, meus juízes, sou apenas um humano, e conseqüentemente é apropriado que devamos, nestes assuntos, aceitar a história provável e procurar por nada além.

O ponto de vista de Platão pode ser colocado da seguinte forma: O mundo físico é apenas uma semelhança do mundo da realidade inteligível, o mundo das Formas. Uma causa do mundo das Formas deve ser alcançada pelo uso do puro intelecto, onde toma a forma mais alta da dialética ou a forma mais baixa das matemáticas. Para tal estudo e o de koinōnía genōn no Sofista, e em geral para sua metafísica, Platão alegaria que ela é verdadeira. Aquilo para o qual ele nega nada mais do que a probabilidade não é sua metafísica, mas sua cosmologia – sua explicação sobre os ‘deuses e a geração do universo’, onde ‘os deuses’ significam o universo físico (tòn pote èsómenon theón, 34 a8), os planetas e as estrelas (tōn áidíōn theōn, 37 c6, cf. 39 e10, 40 b5), e a terra (40 b8-c3). Mesmo na sua cosmologia, Platão é absolutamente sério; não se trata de apenas uma mera fantasia, mas é sua tentativa de alcançar o que pensa ser mais provavelmente a verdade.

Para a parte central de sua explicação, Platão reivindicaria mais do que qualquer probabilidade. E a parte central consiste na presunção de que existem quatro coisas independentes umas das outras, e todas necessárias para a explicação da existência do mundo como o encontramos. Estes quatro são o mundo das Formas, o Demiurgo, o espaço, e os eventos aleatórios no espaço.154 As Formas e o Demiurgo são independentes uns dos outros. Não há fundação, em nenhuma parte em Platão, onde o Demiurgo seja identificado com a Forma do bem, ou com as Formas tomadas como um todo. Nem o Demiurgo cria as Formas. Elas estão presentes desde o início como modelos para os quais ele faz o que faz, o mundo como nós o encontramos.

154 30 a3-5.

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Tem sido algumas vezes sugerido que o Demiurgo é uma excrescência mítica, um mero par da alma-do-mundo. Mas Platão não teria nenhum motivo para introduzir tanto uma alma-do-mundo imanente quanto um Artesão divino transcendente, a menos que ele tivesse pensado neles necessariamente para sua explicação sobre o mundo como o conhecemos. Nem é o Timeu o único diálogo no qual a idéia dos Demiurgo aparece. Na República155 encontramos ‘o artífice dos sentidos’ e ‘o artífice dos céus’. No Sofista156 encontramos: ‘Não é unicamente uma operação divina que os fazem nascer, ulteriormente, do seu não-ser primitivo?’ No Político157 encontramos: ‘O mundo é dirigido por uma ação estranha e divina e assim, recebendo uma nova vida, recebe, igualmente de seu autor, uma nova imortalidade das mãos renovadoras de seu artífice’, que é mais a frente descrito como seu ‘artífice e pai’, 158 como no Timeu159 Deus é chamado de ‘o artífice e pai dos trabalhos’.

Assim, o Timeu é deístico ao invés de panteísta em sua teologia. Ao mesmo tempo, o Demiurgo não é visto como onipotente, nem como criando o mundo do nada. Ele não cria o mundo do nada; ao contrário, ele ‘se apoderou de tudo que é visível – não em descanso, mas em movimento discordante e desordenado – e os trouxe da desordem para a ordem’ (30 a3-5). Três coisas já existiam independentemente dele – as Formas imutáveis, o mundo desordenado da existência, e o espaço, que é onde a existência tem lugar (51 e6-52 b5). Nem é ele onipotente em sua redução do mundo para a ordem. Ele não pode alterar as relações entre as Formas, as quais são determinadas unicamente pela natureza das Formas. Nem, enquanto ele tem em mira ‘o melhor’, pode ser completamente bem sucedido em sua tentativa; ele é limitado pela ‘causa errante’, pela necessidade (47 e3-48 a7). Isto não significa que no mundo da existência, considerado aparte da atividade do Demiurgo, os eventos se seguem necessariamente a partir das causas (sobre esta questão Platão não se manifesta), mas que esse mundo de desordem exercita uma influência compulsiva, limitante sobre o trabalho divino do artesão. ‘A Razão dominou a Necessidade por persuadi-la a guiar a maior parte das coisas que se tornam no sentido do que é melhor’ (48 a 2-3) – mas somente na maior parte; em alguns pontos a Razão é derrotada por ela. Este é o modo de Platão explicar o mau e a desordem que permanecem no mundo.

Estas, de acordo com o Timeu, são as realidades primárias – o mundo das Formas, o espaço, os eventos aleatórios no espaço, e o Demiurgo, que fez o mundo como é por moldar os eventos aleatórios para

155 5507 c6, 530 a6. 156 265 c 3-5. 157 270 a 3-5. 158 273 b1. 159 41 a7.

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uma imagem, como ele podia fazer, das Formas eternas. Esta explicação geral, Platão mantém como sendo verdadeira, e os detalhes que seguem são como a verdade como ele pode fazer delas.

A questão pode ser feita: quais são as Formas cuja existência é afirmada no Timeu? A primeira passagem que deve ser considerada nesta conexão é 30 c2-31 a1.

O que era o ser vivo em cuja semelhança o Demiurgo criou o mundo? Não devemos supor que tenha sido qualquer criatura que se classifique somente como uma espécie; pois nenhuma cópia do que é incompleto pode ser boa. Devemos ao invés dizer que o mundo é como, acima de todas as coisas, para aquele Ser Vivo do qual todas as outras criaturas vivas, separadamente e em suas famílias, são parte. Pois ele abrange dentro de si mesmo todas as criaturas vivas inteligíveis, assim como este mundo nos contém e também todas as outras criaturas que foram formadas como coisas visíveis. Para o deus, desejando fazer este mundo mais proximamente como uma coisa inteligível a qual é melhor e de todos os modos completo, a formou como uma simples criatura viva, contendo dentro dela todas as coisas vivas cuja natureza é da mesma ordem.

Platão aqui trata todo o universo físico como um ser vivo, e diz que ele foi formado pelo Demiurgo na semelhança da Idéia de criatura viva. A Idéia do ser vivo é a idéia genérica do ser vivo em geral, incluindo como espécie todos os vários tipos de criaturas vivas.

O que, então, são esses tipos? O Demiurgo ‘pensou que este mundo deve possuir todas as diferentes Formas que a inteligência discerne, contidas no ser Vivo que ele verdadeiramente é. E eles são quatro: primeiro, a raça celestial de deuses; segundo, as coisas aladas cujo caminho é no ar; terceiro, tudo que mora na água; e quarto, tudo que anda na terra seca’.160 Platão procede para identificar a raça celestial de deuses; eles são as estrelas ‘constantes’, os planetas, e a terra (40 b4-c3). Ele não diz se cada um destes corpos foi feito na semelhança de uma Idéia separada, e supõe-se que talvez ele tenha pensado das estrelas fixas como cópias de uma única Idéia, a da estrela fixa, os planetas como cópias da Idéia do planeta, e a terra como uma cópia da Idéia de terra. Também deve haver uma Idéia de pássaro, uma Idéia de Peixe, e uma Idéia de animal terrestre; e também haveria idéias de várias espécies de pássaros, peixes e animais terrestres.

Mas isto não é tudo. Após a passagem onde Platão fala do fogo, do ar, da terra e da água, e da sua transformação no outro, ele continua dizendo (51 b7-e6): ‘Existe tal coisa como “o Fogo somente em si mesmo” ou alguma das outras coisas que estamos sempre descrevendo em tais termos, como coisas que “são como somente em si mesmas”? Ou são as coisas que vemos ou de outra forma percebemos pelos sentidos corporais as únicas coisas que possuem tal realidade, e não possui nada mais, sobre

160 39 e7-40 a2.

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estas coisas, qualquer tipo de ser próprio?’, e responde que devem ser as Idéias – a Idéia do fogo, a Idéia do ar, a Idéia da água, a Idéia da terra.

Sendo assim, existe uma Idéia universal sobre o ser vivo, Idéias subordinadas sobre cada gênero e cada espécie de criatura viva, e uma Idéia sobre cada um dos quatro elementos. Jackson argumentou que quando Platão escreveu o Timeu, ele tinha parado de acreditar em outras Idéias, as Idéias metafísicas, matemáticas, morais e estéticas, as quais ocuparam sua mente em diálogos anteriores. Para este ponto de vista não há base. Jackson negligenciou a referência bastante enfática em 35 a1-b3 sobre as Idéias de existência, semelhança e diferença, os ‘maiores Tipos’ do Sofista. E se as Idéias morais e estéticas não são mencionadas, isto é simplesmente porque o Timeu não está interessado, como a maioria dos diálogos, com a vida humana, mas com a cosmologia.161

A certa altura no Filebo, Platão retorna ao problema que Parmênides tinha colocado para Sócrates162 - como uma forma pode reter sua unidade e ao mesmo tempo estar presente em muitos particulares. Ele primeiro prescinde, como sendo popular, juvenil e fácil, duas formas do problema de como uma coisa pode ser muitas e muitas coisas163 - a questão sobre como podem muitas, e opostas, qualidades serem unidas em uma única substância,164 e a questão sobre como pode uma coisa ter muitas partes.165 O real problema para o filósofo, ele mantém, não é relativo às coisas que vêm a ser e perecem, mas unidades166 como o homem, o boi, o bonito, o bom, i.e. as Formas.

A referência às Formas como unidades ou mônadas não encontra paralelo em nenhum outro lugar em Platão. A Forma é chamada pelo contexto particular; que o Platão faz é distinguir unidades genuínas, Formas completamente indivisíveis, do tipo de unidade que o corpo deve ter, apesar de ser divisível. As questões para o filósofo são estas: ‘(1) se alguém pode manter a existência de tais unidades completamente indivisíveis, e (2) como, se cada qual é um e o mesmo para sempre, e não admite vir a ser nem a perecer, ele pode ser mais seguramente algo, e ainda ser tanto

161 Não discuti a tese de Taylor de que o Timeu não expressa o ponto de vista de Platão, mas as de um

típico pitagórico do quinto século. Esta tese, apesar de concluída com grande aprendizagem e

ingenuidade, obteve preferência por muito poucos acadêmicos. A tradição antiga unanimemente trata

o Timeu como um dos mais importantes pontos de vista de Platão sobre o fim de sua vida. 162 Parm. 131 a4-e7 163 14 c8-10. 164 14 c11-d3. 165 14 d8-c4. 166 Énádes, monádes, 15 a6, b1.

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dispersado quanto pluralizado entre uma infinidade de coisas que passam a existir, ou presentes como um todo neles à parte de si mesmo’. 167

Platão não lida com o primeiro problema – presumivelmente porque pensa que ao sugerir uma resposta ao segundo, ele terá removido o objeto principal para afirmar a existência das Formas. Ao lidar com o segundo problema, ele primeiro alude168 ao hábito, comum entre os jovens, de ir de um extremo ao outro. ‘Assim que o jovem homem se intera de um problema, ele fica tão satisfeito como se tivesse descoberto uma mina de outro intelectual; ele está deleitado, e ama cada movimento no jogo; primeiro, ele joga o assunto para um lado e o amontoa em um, então o desfaz de novo e o leva a pedaços, à confusão primeira e principal dele mesmo, próximo de sua vizinhança no momento.’ O curso correto é proceder por degraus – primeiro para reconhecer um gênero, então reconhecer dois ou três, ou algum outro número definido de espécie, e então um número limitado de subespécie, até que se veja que a coisa original não trata apenas de ‘muitas coisas, de fato um número indefinido de coisas’,169 mas também de quantas espécies e subespécies ela abrange. Platão procede170 para ilustrar o método por referência às espécies (a) de letras do alfabeto e (b) de notas musicais. O que ele dá, é claro, é uma boa informação. Ela equivale a uma reiteração da insistência no método de divisão já esboçado no Fedro e exemplificado no Sofista e no Político. Mas fragmentar em estágios a forma de transmissão da unidade da Forma Genérica até a infinidade das instâncias particulares não iria realmente fazer nada para aliviar o problema do ‘um em muitos’, caso o problema fosse real. Platão teria feito melhor, parece, se tivesse mantido que o problema é irreal, que a relação da Forma ou universal com o particular é perfeitamente inteligível, apesar de única, e que não há mistério sobre a presença de um universal em muitos particulares mais do que há sobre sua presença em um.

Em 23 c1-27c, Platão introduz uma análise dos ‘conteúdos presentes no universo’ cuja transmissão da teoria das Idéias tem sido tão discutida. Ele divide estes conteúdos em quatro classes. Ele tira do Pitagoreanismo a sua antítese fundamental entre o ilimitado (ápeiron) e o limite (péras)171, e 167 A sentença em 15b 1-8 é difícil. Ela é algumas vezes tratada como apresentando três questões, mas

há realmente apenas duas. Em b4 leio uma vírgula após tautēn, e tomo 2-8 para estabelecer apenas

uma questão. ómōs em b4, a qual foi bastante suspeita, é (penso eu) genuína, e é explicada (de

acordo com uma das sugestões de Badham) pelo uso estabelecido em L. e S. s.v. ómōs II, por onde a

palavra pode ser anexada à primeira das duas orações contrastadas. Cf. Lisias 213 a2, ómōs kaì

misoynta én ékeínō tō khrónō pántōnpáliotá ésti toîs gonensi phíltata, Fédon 91 c8 phobeîtai mè é

psykhè ómōs kaì phelóteron kaì kállion ón toy sōmatos proapollyētai. 168 15 d4-16 a3. 169 16 d6. 170 17 a8-18 d2. 171 Met. 986ª23.

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adiciona a estes o que é produzido pela mistura deles e a causa da mistura. Por ‘ilimitado’ não entendemos um elemento único completamente indefinido, nem por ‘limite’ um limite ou elemento definidor único. ‘O ilimitado’ é um nome geral para um conjunto de ‘ilimitados’,172 e ‘limite’ o nome para o nome de um conjunto de ‘limites’ ou de ‘coisas possuindo o mesmo caráter de limites’.173 Exemplos do ‘ilimitado’ são o mais quente e o mais frio, o alto e o baixo na altura do som, os prazeres e as dores.174 Exemplos de limites são as proporções de um para um e de dois para um, e o limite é geralmente identificado com ‘o que quer que seja um número em relação a um número ou uma medida em relação a uma medida’.175 Exemplos de mistura são a saúde, a música, as estações, a beleza, a força, e muitas excelências da alma, a vida misturada.176 A causa da mistura é identificada com a sabedoria e a razão.177

Tem sido muito debatido sobre em qual destas classes, caso haja, as Idéias devam ser posicionadas. Podemos começar reservando uma linha de argumento que tem sido algumas vezes usado em apoio a esta ou aquela interpretação, ou seja, aquela de que a doutrina dos quatro tipos deve jogar luz sobre o problema estabelecida anteriormente no diálogo178 - como uma Idéia pode reter sua unidade se ela está presente somente parcialmente em cada uma das particularidades enquadradas nela, ou presentes no todo em cada um deles. De fato, deve ser dito, a doutrina dos quatro tipos não é apresentada como uma solução deste problema ou como um auxílio para esta solução; ela é apresentada como uma preliminar para responder uma questão bastante diferente, a questão sobre se o prazer ou a sabedoria é o melhor,179 e é para isto que Platão retorna após descobrir os quatro tipos.180 Grote descreve exatamente o que causa o problema, e assim ele geralmente o faz, quando diz que o problema da unidade da Idéia está perdido de vista no labirinto do argumento bem sucedido; ele de fato nunca é retornado.

Nenhum intérprete se arriscou a posicionar as Idéias no ilimitado, mas cada um dos outros três génē encontrou seus defensores. (I) O ponto de vista menos plausível é o de Zeller,181 que identifica as Idéias com ‘a causa da mistura’. Tal ponto de vista é bastante incompatível com a

172 25 a1; cf. 23 e4, 24 a 2-3. 173 25 d3. 174 24 a7, c1, 25 c8-10, 26 a2, 27 e 5-9. 175 25 d3. 176 25 e8, 26 a4, b1, 5-7, 27 d 1-20. 177 30 a9-e3. 178 15 bt-8. 179 22 c7-23 b10. 180 27 c3. 181 Gesch. D. gr. Phil. Ii. 14.691

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identificação de Platão da causa da mistura com a mente. As Idéias são para Platão sempre objetos de pensamento, e não pensamentos ou pensadores; podemos recordar que no Parmênides182 a sugestão de que as Idéias são pensamentos é rejeitada tanto por Parmênides quanto por Sócrates, e que é apenas por um engano que Platão foi suposto relacionar, no Sofista, 183 vida e pensamento às Idéias.

(2) A interpretação mais ingênua é a de Henry Jackson, que posiciona as Formas na ‘classe mista’.184 Ele argumenta que Platão fala de duas ‘misturas’ diferentes. Para tomar o caso do mais quente e do mais frio, o efeito de introduzir o particular posón chamado tò métrion é para produzir uma temperatura agradável que não seja nem muito fria nem muito quente, enquanto que o efeito de introduzir qualquer outro posón é para simplesmente produzir alguma temperatura definida. A união produz a Forma, no sentido de um tipo ideal; a outra produz um estado atual de temperatura a qual é uma aproximação mais próxima ou menos próxima para o tipo. Não há dúvida de que a idéia de Platão em algum momento se tornou uma tentativa de ‘gerar’ Idéias-números, por uma união do ‘um’ com ‘o grande e o pequeno’; isto fica claro nas declarações de Aristóteles na Metafísica A, M e N. Mas a única evidência concreta no próprio Filebo que poderia ser citada em favor da teoria de Jackson é a frase em 24 c6-d1 mē àphanísante to posón, áll éásante aytó te kaì tò pétrion, onde Jackson ressalta que tò bpétrion é claramente distinguido de to posón e deve significar o grau correto, tão distinto de algum grau definitivo quanto de outro. Mas podemos notar que no que se segue185 somente to posón reaparece, por isso é claro que nenhuma importância deve ser agregada a kaì tò pétrion. A frase inteira apenas significa ‘permitindo tanto a qualidade definitiva quanto em particular a quantidade moderada e certa para vir a existir’. Em qualquer caso, a frase tò posón te kaì tò pétrion não é quase uma base suficiente para a fabricação imponente ou a teoria que Jackson apóia. Alguém poderia dizer que há insinuações por toda a passagem, que o que Platão tinha em mente era a gênese não das próprias Idéias, mas apenas de coisas individuais e dos estados e atividades de coisas. Até mesmo a frase introdutória, tánta ta nyn onta èn tō pantì dikhē dialábōmen186, sugere que são os conteúdos presentes apenas, não os conteúdos eternos, do universo que Platão está para analisar entre o ilimitado e limitado. Confira 24 e7: ópós na émîn phaínētai mâllón te kaì etton gignómena, 25 e7: èn nósos, 26: a6èn khenōsin kaì pnígesin, 27 a11-12: oykoyn ta mèn gignómena kaì èz ōn gígnetai pánta ta tria paréskheto ēmîn génē; Que as Idéias não estão incluídas na classe mista segue-se do

182 132 b3-c11. 183 248 e6-249 b1. 184 J. of Philol. x (1882), 277-84. 185 24 d8, 27 b8. 186 23 c4.

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fato de que são chamadas ta onta àcí oposto à ta gignómena, e tá áeì katà ta aytà ōsaytōs ámeiktórata ekhonta.187 Além disso, temos o fato do processo do ser ‘misto’ ser descrito como ‘nascimento para a existência’, e seu produto como ‘ser que é composto e gerado’.188 Finalmente, falar da razão como o artífice189 das Idéias seria um modo de falar para o qual não há nenhum paralelo em Platão exceto a casual, e provavelmente não seriamente dita, alusão na República a Deus como o criador da Idéia de cama.

É grande o contraste entre a doutrina dos quatro tipos no Filebo com a geração de números do Único e do grande e do pequeno, do qual Aristóteles fala. A geração mencionada no Filebo é uma geração no tempo; a outra é uma pura geração conceitual, ou mais propriamente uma análise de entidades eternas em seus componentes eternos. No Filebo o elemento formal é qualquer número de possíveis pontos ao longo de uma escala, ou de possíveis proporções entre qualificações opostas; na última teoria há uma entidade apenas, o Único. No Filebo a combinação do elemento formal com o material é efetuado pela razão, pela razão divina em trabalho no universo físico, estabelecendo tais coisas como as estações,190 e pela razão humana na vivência de uma vida na qual tanto a própria razão e o prazer encontram seu devido lugar; na teoria posterior não há a sugestão de uma causa eficiente. Ainda assim existe uma conexão definitiva entre as duas teorias. Ambas são evidências de um interesse renovado no Pitagoreanismo. O limite e o ilimitado têm sido opostos fundamentais pressupostos pelos pitagóricos;191 eles reaparecem no Filebo, e reaparecem novamente como o Único e o grande e o pequeno na teoria posterior de Platão; 192 a própria frase ‘o grande e o pequeno’ é tirada de o ‘maior e menor’ de Filebo. 193 Havendo em Filebo reconhecido estes dois princípios como envolvidos no mundo de coisas particulares, Platão parece ter sido levado a pensar de princípios correspondentes como sendo envolvidos na existência de Idéias-números.

(3) A teoria mais comumente aceita alude as Formas à classe do ‘limite’, e é onde, se em algum lugar, devemos inicialmente esperar encontrá-los, já que Platão sem dúvida pensa deles como normas fixas, em contraste com a multiplicidade e mudança no mundo sensível. Ainda assim, em pensamentos secundários, devemos hesitar. Há certas Formas que podemos bem supor que Platão tenha pensado como sendo ou dependendo

187 59 a7, c3. 188 26 d8, 27 b8. 189 27 b1. 190 26 a6-b3; cf. 28 d3-30 d8. 191 Met. 986ª. 192 987b20-7. 193 25 c9-10.

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de uma proporção entre elementos. As Formas de figuras matemáticas tais como a do retângulo, do quadrado e do círculo podem ser facilmente reduzidas. Os pitagóricos tratavam a justiça como sendo ou dependendo de um relação, e Platão deve ter pensado que todas as virtudes poderiam ser similarmente consideradas. Mas podemos supor que ele estivesse sugerindo que todas as Formas podem ser assim tratadas? É difícil acreditar que ele poderia ter feito isto sem dar nenhuma explicação e defesa para a sua sugestão. E se olharmos mais proximamente na doutrina dos quatro tipos, a dificuldade cresce. O típico membro da classe do ‘ilimitado’ é um par de qualidades opostas que representa uma escala única – quente e frio é a escala de temperatura, alto e baixo é escala da altura do som, rápido e lento é a escala da velocidade; e o típico componente da classe de ‘limite’ é um ponto definido nesta escala. Por aplicar diferentes limites à ilimitação de temperatura, você obtém diferentes graus de temperatura, mas não há nenhuma sugestão de que a temperatura entre, digamos, a temperatura e a altura do som seja causada pela união de diferentes limites com a mesma ilimitação. Cada ilimitado não é totalmente ilimitado; é indefinido com respeito ao seu grau, mas definido com respeito à sua natureza genérica. O específico elemento na natureza da nota Si no meio do piano pertence à classe do limite, a natureza genérica que ela compartilha com outras notas cairá no lado do ilimitado. Nem todos universais ou naturais, portanto, cairão no lado do limite, como aqui é concebido.

É impossível, então, atribuir as Idéias como um todo a qualquer uma das quatro classes; além do mais, não era nem um pouco a intenção de Platão jogar luz na natureza das Idéias nesta passagem. A divisão em quatro classes é uma das quais pode-se facilmente ver a origem; ela é introduzida com o único objeto a jogar luz nas alegações relativas de prazer e sabedoria considerados como a vida boa; e esta questão é finalmente resolvida por atribuir prazer à ‘classe mista’ e sabedoria à classe (admitidamente superior) de ‘causa da mistura.’194 O ‘ilimitado’ e o ‘limitado’ são por esse motivo emprestados do Pitagoreanismo, e a idéia que surge tardiamente sobre a classe mista e a causa da mistura são adicionadas simplesmente como um meio para resolver essa questão, sem consideração a qualquer repercussão na teoria das Idéias.

As quatro classes sobre as quais o Filebo se refere são melhor interpretadas na luz do Timeu. O Filebo está interessado principalmente não com a metafísica, mas com a ética, e não devemos esperar nele tão claramente uma declaração de princípios metafísicos como encontramos no Timeu; mas existem bastante indicações de que Platão está expressando o que é, no fundo, o mesmo ponto de vista. No Timeu195 ele diz que antes do universo ser como é existiam três coisas – o ser (o mundo das Idéias), o

194 27 e5-31 a7. 195 52 d2-53 c3.

Page 112: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

112

espaço, e o vir a ser – e ele descreve a existência assim: ‘Todos esses tipos’ (fogo, ar, água, terra) ‘não tinham proporção ou medição. Eles possuíam de fato alguns rudimentos de sua própria natureza, mas estavam todos na condição que devemos esperar de qualquer coisa quando a divindade está ausente dela. Tal sendo sua natureza no tempo em que o ordenamento do universo foi feito, o deus iniciou então dando a eles uma configuração distinta através das formas e dos números.’ O estado original que ele aqui descreve é apenas o mundo de eventos aleatórios que como no Filebo ele chama de ‘o ilimitado’. Em seguida, notamos que, como o elemento de limite no Filebo é claramente identificado com certeza numérica e métrica, no Timeu é precisamente pela introdução de tal certeza que o Demiurgo torna o mundo de eventos aleatórios no mundo ordenado conforme ele é. Compare, por exemplo, com Tim. 31 b4-32 c4, e em particular 32 c1, ‘o mundo do universo foi trazido à existência, vindo à concordância através da proporção’; e novamente, a construção dos quatro elementos através dos triângulos elementares.196 Finalmente, podemos notar que em ambos os diálogos o mundo feito pela adição de limite ao ilimitado é descrito como um ser vivo composto de alma e corpo,197 e a causa da mistura é chamada no Filebo de to pánta tayta dēmionrgoyn, ‘a qual forma todas estas coisas’, e no Timeu de ó dēmionrgós, ‘o formador’, 198 e é em ambos os diálogos pensado como um ser razoável.199

Resumindo o significado e o propósito da passagem, podemos dizer que: (1) a divisão em quatro classes é introduzida de modo a decidir a questão sobre se a razão ou o prazer devem ser designados ao segundo lugar entre os bons, o primeiro lugar tendo sido já designado à vida que contém ambos.200 (2) Para resolver este problema, Platão introduz uma análise de toda a existência fenomenal (gegenēsénē oùsía) em (a) fenômenos possuindo certa certeza qualitativa mas nenhum certeza quantitativa (temperatura, altura, &c.) e (b) certeza quantitativa, e afirma que é pela razão que (b) é introduzida em (a). Não há referência às Idéias, mas elas são presumivelmente pressupostas (como elas são definitivamente são no Timeu) de que pela referência pela qual a razão divina introduz limites no ilimitado. (3) A causa da mistura sendo claramente melhor do que o indeterminado quantitativamente, e a razão sendo o anterior e o prazer exemplo do último, o elemento de pensamento racional em nossa vida é suposto ser superior ao de prazer.

196 53 c4-55 c6. 197 Fil. 30 a3-7; Tim. 30b 4-31 a1. 198 Fil. 27 b1; Tim. Passim. 199 Fil. 28 c3, 7, d8, 31 a7; Tim. 29 d7-30 c1. 200 20 e1-22 e3.

Page 113: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

113

VIII – AS LEIS E A SÉTIMA CARTA Tradução:

Eduardo Kisse

s Leis caminha muito próxima aos assuntos relacionados à teoria política e à legislação,

mas não acrescenta nada ao nosso conhecimento sobre a teoria das Idéias, a não ser

em uma passagem201, na qual, como que para lembrar-nos de que ainda está lá no

fundo da filosofia de Platão, há uma breve alusão a ela. Mas, para a expressão de sua teoria

metafísica em geral, As Leis faz uma importante contribuição que será considerada mais

adiante2.

Muito mais importante na condução da teoria das Idéias é a Sétima Carta, que, se

genuína, foi escrita entre 353 e 352 a.C. A questão da autenticidade das cartas de Platão tem

sido cuidadosamente analisada por vários pesquisadores e há muitas cartas sobre as quais não

há um acordo unânime. Mas a única delas que tem uma influência da teoria das Idéias é a

sétima, que é considerada genuína por quase todos os estudiosos. É verdade que a passagem

em questão, o interlúdio filosófico que aparece em 342 a 7-344 d 2, tem sido vista por alguns

estudiosos como sendo uma adição não genuína à carta; apesar disso, há forte crença3 nela ser

altamente relevante e imprescindível ao contexto. O objetivo de Platão nessa passagem é

castigar a tentativa de Dionísio de Siracusa de escrever sobre as mais importantes questões

filosóficas4; e seu método é mostrar os perigos de tal escrita sem as próprias qualificações e

precauções necessárias. Para tudo que existe, diz ele, existem três coisas através das quais o

conhecimento das coisas que existem se é aproximado, a saber: um nome, uma definição e

uma imagem. Haveria ainda uma quarta, que seria o conhecimento propriamente dito do

objeto e também uma quinta, que seria o objeto mesmo, que é conhecível e verdadeiramente

real – em outras palavras, a Idéia. Ele ilustra esse ponto pelo exemplo do círculo. Há, primeiro,

a palavra “círculo”; segundo, uma definição de círculo e uma fórmula consistente de

substantivos e verbos; terceiro, uma figura que podemos desenhar e apagar ou tornear e

destruir – nenhum dos dois podemos fazer com o círculo mesmo; quarto, conhecimento,

entendimento e opinião verdadeira, formando um todo consistente não em sons, como o

nome e a definição, nem em formas de corpos, como a imagem, mas em almas, e,

conseqüentemente, diferente da natureza do círculo mesmo e do nome, da definição e da

imagem. Entendimento é mais próximo à realidade objetiva do que qualquer das outras coisas

citadas. Além disso, pelo fato da linguagem ser tão precária a ponto do nome e da definição

serem apenas como meros indicadores tanto das propriedades dos objetos (to poión ti) como

de sua essência (tò ón)5, nenhum homem sensato ousaria confiar seus pensamentos à

201

965 b 7-966 a 9. 2 Capítulo XVII.

3 Cf. ex.: Taylor, em in Mind, XXI (1912), 347-53; R. Hackforth, A.P.E., 99-102; Wilamovitz, Platon, II, 293;

G. Pasquali, Le Lettere di Platone, 77-114. 4 341 a 8-b 3.

5 342 e 3.

A

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A Teoria das Idéias de Platão

114

fraqueza da linguagem; menos ainda, irá confiá-los à irremovível fraqueza da linguagem

escrita. O círculo desenhado ou torneado é o total oposto do círculo real, já que o primeiro

círculo a cada ponto coincidirá com a tangente a ele; enquanto o círculo verdadeiro não tem

nada de seu contrário nele. O nome nunca pertence ao verdadeiro objeto, pois coisas

arredondadas poderiam também ter sido chamadas de retas e vice-versa. Tampouco definição

pertence mais ao objeto real, tendo em vista ela consistir de substantivos e verbos, cujos

significados são tão convencionais quanto aqueles dos nomes. Sobretudo, nome, definição,

figura e compreensão mental, de modo semelhante, tendem a meramente demonstrar

propriedades, ao invés da essência do objeto, gerando perplexidade e obscuridade. Só mesmo

em uma natureza muito aberta, uma que tenha afinidade com o objeto, uma que tenha

avaliado todas as quatro preliminares, “esfregando uma contra a outra” 202, testando uma por

uma, por perguntas e respostas, que se poderá ter o conhecimento do objeto.

Das cinco entidades aqui citadas, três aparecem numa passagem de As leis, escritas

presumivelmente na mesma época2: “Há três pontos a serem notados sobre qualquer coisa…

para um, a realidade da coisa, para outro, a definição da realidade, para outro, seu nome.” O

que aí está em discussão é a alma e, tentando descobrir sua natureza real não usamos

diagramas sensíveis, mas o fazemos para descobrir a natureza de algo como um círculo, como

Platão já havia dito em A República. É por isso que a imagem aparece em As cartas como uma

das preliminares. Apresentar conhecimento como uma preliminar é, de algum modo,

intrigante, porque conhecimento da essência de um objeto é o que visamos. No entanto,

Platão diz “conhecimento, entendimento e opinião verdadeira” e essas expressões são usadas

para indicar conhecimento parcial misturado à opinião, tal como nós começamos em nossa

busca pela essência.

A passagem indica, talvez mais claramente do que em qualquer outra em Platão, sua

noção das dificuldades que aparecem na procura pelo conhecimento das Idéias. Mas, além de

indicar isso, ela, na frase “esfregando uma contra a outra”, sugere muito descaradamente

como ele pensou que as dificuldades devem ser vencidas com o tempo – comparando-se

nome, definição usual, imagem e nossas próprias idéias preliminares sobre a natureza do

objeto e observando quais concordâncias e quais diferenças há entre quaisquer deles, até que

atinjamos uma definição mais certa e, se tivermos sorte, uma definição precisa.

Duas outras coisas sobre esta passagem são dignas de atenção. A primeira é que aqui,

onde Platão tem todas as razões para mencionar o círculo matemático como sendo diferente

de ambos a circularidade e dos diagramas sensíveis do círculo, não há menção a eles. Isso

sugere muito fortemente que, tal como esta carta foi escrita tardiamente, o reconhecimento

definitivo dos “intermediários” por Platão deve ter sido ainda mais tardio. A segunda é que,

além de sustentar a crença numa “teoria das Idéias tardia”, na qual Platão reconheceu as

Idéias apenas dos quatro elementos e dos tipos animais e vegetais, essa passagem contém a

mais católica da lista de tipos de Idéias a serem observadas em qualquer das obras platônicas.

Ele refere-se (apesar de não usar as palavras idéa ou eidos) às Idéias de retidão e curvatura, de

cor, de bem, de belo, de justo, de todos os corpos, sejam eles manufaturados ou naturais, dos

elementos físicos, de cada animal, de cada caráter da alma, de todas as ações e passividades3.

202

344 b 4. 2 895 d 1-5.

3 342 d 3-8.

Page 115: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

115

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A Teoria das Idéias de Platão

116

IX – AS ‘DOUTRINAS NÃO-ESCRITAS’ DE PLATÃO

Tradução:

Cesar Augusto de Alencar

professor Cherniss afirmou recentemente que Platão não deu qualquer instrução

oral para os membros de sua Academia; que Aristóteles extraiu todo o seu

conhecimento de Platão dos diálogos que nós hoje possuímos; e tudo que ele diz

sobre Platão, que não possa ser verificado nos diálogos, deve-se a um equívoco ou uma má-

interpretação daquilo que Platão escreveu. “Qualquer que possa ser a razão”, escreve ele203,

“o fato por ele mesmo é certo, e seu significado para a suposta ‘escola’ tem grande

importância: Platão não expôs qualquer física ou filosofia natural além daquilo que ele

escreveu no Timeu, e ele não deu aos seus estudantes ou associados qualquer exposição

avançada das doutrinas que ele deixou em seus diálogos”. Podemos primeiro considerar o que

a probabilidade intrínseca desta visão de fato é.

Há uma famosa passagem do Fedro204 em que Platão aponta a superioridade do

discurso oral face à palavra escrita. A passagem é bastante longa para ser citada aqui, mas o

resumo de Jowett vale ser mencionado:

Escrever é de longe inferior à recordar. Escrever é como pintar: é sempre silencioso, e,

numa fala diferente, não pode ser adaptado aos indivíduos. Mas há outro tipo de escrita

gravado nas tábuas da mente. Que homem sensato plantaria sementes em um jardim artificial,

trazendo quatro frutas ou flores em oito dias, sem o fazer em terra profunda e mais

adequada? Como um passatempo, ele pode plantar seus bons pensamentos no jardim, mas

seus objetivos mais sérios estarão implantados em sua própria e nobre natureza.

Este pensamento ecoa numa famosa passagem da Sétima Carta que será citada em um

contexto final205. As palavras são estranhas, vindo de alguém que escreveu tanto e tão bem

sobre os mais difíceis assuntos. Ainda que elas sejam naturais na boca de Platão, que deveu a

Sócrates sua inspiração; Sócrates, até onde nós sabemos, nunca escreveu uma linha, e preferiu

o método falado de perguntas e respostas, em que explicações e modificações podiam ser

203

R.E.A. 72 204

275c 5 – 277ª 4 205

PP. 157-9

O

Page 117: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

117

introduzidas conforme a necessidade fosse surgindo. Até a escolha do diálogo por Platão, em

contraste com a forma de tratado, reflete de outro modo a mesma preferência. É provável

então que Platão tenha recusado qualquer diálogo com os membros de sua escola, onde ele

poderia ter elucidado aquilo que escreveu, e ter exposto idéias que ele ainda não tinha posto,

ou nunca iria pôr, no papel? Isto é realmente inconcebível.

Há um ponto a mais que merece ser considerado. As Leis é o mais longo trabalho de

Platão, e deve tê-lo ocupado bastante em seus últimos anos de vida. Está em grande parte

preocupado com assuntos retirados de longe da metafísica, mas não é possível que ele tivesse

parado de pensar sobre estas questões. Por isso é provável que, em vez de tentar escrever

nestes anos um segundo grande trabalho, ele tivesse usado ao menos o método da

conversação para a comunicação de seus últimos pensamentos em metafísica.

O ponto mais forte do argumento de Cherniss está no que ele efetivamente diz – que o

que Aristóteles falou sobre Platão freqüentemente denuncia equívocos que umas poucas

perguntas bem-feitas a Platão teriam removido. Aristóteles não foi o fiasco completo que ao

professor Cherniss aparentou ser – mas deve-se admitir que ele estava disposto a adotar

interpretações de Platão, ou porque elas se ajustavam as suas próprias pré-concepções, ou

porque elas lhe davam um oportunidade de crítica. Sua longa crítica nos livros M e N da

Metafísica, em particular, contêm demasiados exemplos de ambas as falhas, e Cherniss expôs

muitas delas com grande habilidade. Mas, por agora, eu não acho que ele tenha estabelecido

que tudo que Aristóteles fala sobre Platão que não pudesse ser verificado nos diálogos é puro

equívoco ou má-interpretação.

Considerando que fosse provável ter Platão mantido um vaidoso isolamento dos

membros de sua escola – semnon kai agion, akinvton estwta – isolamento este que

o professor Cherniss atribui a Platão, logo poderíamos considerar que evidência positiva há

para afirmarmos que ele assim não procedeu. Há no mínimo nove passagens em que se

poderia pensar Aristóteles se referindo a fontes além dos diálogos em seu conhecimento das

opiniões de Platão. Os primeiros dois podem ser considerados conjuntamente: (1) em Geração

e Corrupção, 330b 13 Aristóteles disse: “aqueles que postulam dois elementos da gênese –

como Parmênides postulou o fogo e a terra – faz os intermediadores... misturá-los... O mesmo

curso é seguido por aqueles que advogam três elementos, como Platão faz em sua divisão (en

taij diaresesin); pois ele fala desse intermediário que mistura” e (2) em Partes dos

Animais, 642b 10 ele diz: “Novamente, não é permissível romper um grupo natural, o de

pássaros, por exemplo, pondo os seus membros abaixo de bifurcações diferentes, como é feito

Page 118: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

118

nas divisões escritas (aigegrammenai diaireseij), onde alguns pássaros são

classificados como animais da água, e outros são colocados em uma classe diferente”.

Em sua nota de página (1), Joachim mostra que o Timeu206 reconhece não um, mas

dois intermediários entre o fogo e a terra, e argumenta que Platão, com muito pouca

probabilidade, prestaria uma conta diferente (escrita ou não-escrita) em outro lugar. Ele

mantém por isso que a referência está em algo totalmente diferente – ao fato de que no

Timeu207 Platão faz da alma-do-mundo uma mistura de formas de existência, a semelhança e

a diferença, cada uma delas uma mistura de seus contrários. Mas a passagem de Aristóteles

está inteiramente preocupada com os elementos físicos, e é provável que Aristóteles tivesse

introduzido uma referência à análise da alma-do-mundo de Platão. Taylor208, por isso, prefere

pensar que a alusão deve-se a uma passagem do Timeu em que Platão trata do fogo e da terra

como elementos primários, e o ar e a água, de fato, não como uma mistura destas, mas como

um intermediário entre aqueles; ou, mais provavelmente, pela análise no Filebo209, dos

conteúdos do universo no ilimitado e no limite, e a mistura dos dois. Para a primeira destas

sugestões pode ser objetado que Platão no Timeu trabalhou mais distintamente com quatro

elementos, não três, e que Aristóteles dificilmente poderia tê-lo citado como acreditando em

somente três; e para a segunda, que uma análise lógica tal como nós encontramos no Filebo é

pouco provável ter sido trazida por Aristóteles para a discussão do número de elementos

físicos. Às três sugestões pode-se objetar ainda que o modo de referência en taij

diairesesin é pouco provável ser um modo de referir-se ao diálogo; Aristóteles nunca é

cuidadoso em mencionar os diálogos de Platão pelos nomes ao se referir a eles.

Ogle210, Christ211, e Blass212 podem estar certos ao dizerem que a passagem (2)

pode ser uma referência à ilustração do método de divisão no Sofista e no Político. No Sofista

220b I, a espécie dos animais aquáticos está dividida em alados e submersíveis, e no Político

264 e 3-6, os rebanhos que se alimentam na terra estão divididos entre os que voam e os que

andam – então a classe natural de pássaros está de fato rompida como Aristóteles disse estar.

Mas a extrema dificuldade de encontrar alguma coisa nos diálogos que possa se referir a esta

passagem (1), e a peculiaridade do modo de referência em ambas as passagens, faz com que a

referência neles provavelmente não seja a algum diálogo, mas a uma coleção de ‘Divisões’

206

32ª 7-b 8 207

35ª 1-8 208

Com. no Timeu de Platão, 8 n. 209

23c 4-d 1 210

Arist. no Partes dos Animais, 148 211

Plat. Stud. Em Abh. D. Philos.-Philol. Cl. Bayer. Akad. Xvii (1884), 484-9. 212

Apophoreton, 54.

Page 119: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

119

correntes na Academia, e que nós sabemos terem sido dedicadas zelosamente ao problema da

classificação. Se nós pudéssemos estar certos de que a Décima Terceira Carta é genuína, nós

deveríamos encontrar nas palavras twnte Puqagoreiwn pemtw soi kai twn

diairesewn213 uma referência pelo próprio Platão a tal coleção. Além disso, parece bastante

claro que a referência em (1) e (2) pode ser àquela mesma Divisão; e desde que uma passagem

as relate definitivamente como pertencentes a Platão e outra as relate então como ‘escritas’,

resulta que elas foram criadas por Platão e anotadas na Academia, embora não

necessariamente pelo próprio Platão214. Aquelas Divisões provavelmente formam o núcleo da

sobrevivente coleção conhecida como as Divisões Aristotélicas.

(3) Na Metafísica 1019ª I, Aristóteles diz “Algumas coisas são chamadas de prévias ou

posteriores em virtude de sua natureza e essência, a saber: aquelas que podem existir sem as

outras e não vice-versa; uma distinção (diairesei) que Platão faz”, ou, de acordo com outra

leitura, “que estava acostumado a fazer”. Supunha-se algumas vezes215 que esta passagem se

referisse a outras tais como Timeu 34b 10-35ª 1, As Leis 892c 2-7, 894c 10-e 2, 896b 10-c3;

mas nenhuma delas encontra realmente a causa. Além disso, o tempo é passado, não

presente, e isto aponta para a oralidade em vez de um ensino escrito. Trendelenburg216 supôs

que a referência era à anterioridade e à posterioridade que, de acordo com Aristóteles, Platão

afirmou existir entre os números ideais – e esta suposição pôde estar bem correta.

(4) No De Anima 404b 16-18, Aristóteles se refere explicitamente à análise que Platão

faz da alma no Timeu; e ele continua mencionando certas doutrinas que foram estabelecidas

adiante en toij peri filosofiaj legomenoij. A opinião é bastante dividida nesta

questão: se a referência se deve a lições de Platão ou ao diálogo de Aristóteles Peri

filosofiaj. O professor Cherniss toma a última visão, e argumenta217 que a passagem

inteira se refere não a Platão, mas a Xenócrates.

A questão se en toij peri filosofiaj legomenoij significa “nas palestras

de Platão sobre filosofia” ou “em meu diálogo sobre filosofia” é difícil de responder. Mas não

há, em Aristóteles, ou em qualquer outro lugar, uma referência a ensinos orais de Platão

chamados ta peri filosofiaj, enquanto Aristóteles realmente se refere, em outra

213

360b-7 214

Esta conclusão é alcançada por Zeller (ii. 1ª 437 n.3), por Wilamowitz (Platão, ii. 278-9) e por Mutschmann em sua Ed. de As Divisões Aristotélicas, xvii-xviii. 215

E.g. por Apelt em Beitr. Zur Gesch. D. Phil. 226-9 216

De Ideis, 81. 217

A.C.P.A. 565-80

Page 120: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

120

passagem218, ao seu próprio diálogo daquele nome. Provavelmente, por isso, aqui também

ele está se referindo ao diálogo. Mas, como mostraremos mais adiante219, ele está se

referindo por sua conta, neste diálogo, a visões expressas por Platão oralmente.

(5) Na Metafísica 992ª 20-2, Aristóteles diz “Platão costumava mesmo objetar aos

pontos uma existência como dogma geométrico. Ele dava o nome de “princípio da linha” – e

isso com freqüência – às linhas invisíveis.

(6) Na Metafísica 1070ª 18, Aristóteles diz “e então Platão não estava tão longe do

erro quando disse que há tantas formas quanto há espécies do objeto natural.”

(7) Na Metafísica 1083ª 32, Aristóteles diz “Se o 1 é o ponto inicial, a verdade sobre os

números deve ser de preferência o que Platão costumava dizer, e também deve haver um

primeiro 2 e 3, e os números não devem ser comparáveis uns com os outros”.

(8) Na Ética a Nicômaco 1095ª 32, Aristóteles diz “Platão estava certo ao levantar esta

questão e perguntar, como ele costumava fazer: Estamos no caminho de ou no caminho para

os primeiros princípios?”.

Nestas quatro passagens o uso do imperfeito ou do tempo aorístico aponta para um

ensino oral; e nenhuma destas referências podem ser verificadas nos diálogos.

(9) Finalmente, há a passagem da Física 209b 11-17: “É porque Platão no Timeu diz

que a matéria e o espaço são o mesmo; pois ‘participante’ e espaço são idênticos. De fato, é

verdade que a consideração que ele dá do participante é diferente do que ele diz nas suas

assim chamadas ‘doutrinas não-escritas’. Todavia, ele identificou lugar e espaço. Eu menciono

Platão porque, enquanto todos sustentam que o lugar é algo, ele sozinho tentou dizer o que

ele é.” Em 209b 33-210ª 2, Aristóteles acrescenta: “Platão, é claro, se podemos divagar, devia

nos dizer por que as Formas e os números não estão no lugar, se ‘o que participa’ está no lugar

– Se o que participa é o grande e o pequeno, ou a matéria, como ele tinha escrito no Timeu.”

Pondo juntas as duas passagens, vemos que Aristóteles atribui a ensinamentos não-escritos de

Platão uma identificação de ‘participante’ com o ‘grande e pequeno’. A referência em 209b 14

é a única perfeitamente explícita referência de Aristóteles a ensinamentos não-escritos de

Platão, e isto é em si mesmo suficiente para refutar a controvérsia de achar que tudo que

Aristóteles diz sobre Platão é derivado dos diálogos; com esta finalidade, uma referência a

ensinamentos não-escritos é tão boa quanto cem outras seriam. De fato podemos ir mais

218

Física 194ª 36 219

PP. 209-12

Page 121: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

121

longe e concluir que o que Aristóteles nos diz na Metafísica sobre o grande e o pequeno deriva

não dos diálogos, e sim de ensinamentos não-escritos. Mas ao mesmo tempo, estas passagens

nos transmitem um aviso para que não aceitemos Aristóteles como um guia infalível para o

que Platão disse; já que o ‘espaço’ de Platão não era também o mesmo como o seu ‘grande e

pequeno’ ou como a ‘matéria’ de Aristóteles.

Outras autoridades antigas têm falado bastante sobre estas doutrinas não-escritas. A

mais antiga referência, fora Aristóteles, é de Aristoxeno220, um contemporâneo ligeiramente

mais jovem que Aristóteles. Ele cita Aristóteles como tendo dito, da maior parte do público

que assistiu às palestras de Platão (akroasin) sobre o Bem, que “Eles vieram, cada um deles,

na convicção de receberem das conferências uma ou outra das coisas que o mundo chama de

bem; riquezas, ou saúde ou força – no mais, algum dom extraordinário da fortuna. Mas

quando notaram que os raciocínios de Platão eram matemáticos – números, geometria e

astronomia – e, a coroá-los, o efeito de que existe um Bem221, parece-me que o

desencantamento deles foi completo. O resultado foi que alguns deles zombaram destas

coisas enquanto outros o vilipendiaram.”

Das muitas referências de comentadores gregos de Aristóteles acerca das palestras de

Platão sobre o Bem, a mais importante é a de Simplício, na Física 453.25-455.14. Simplício diz

que Platão expôs a doutrina do Um e da Díade indefinida, em seus discursos sobre o Bem.

Estas foram, acrescenta ele, assistidas por Aristóteles, Heráclides, Hestieu, e outros membros

da escola, que os escreveu na forma enigmática em que foram transmitidas; mas Pórfiro os

interpretou, em seus comentários ao Filebo. Simplício segue a citação de Pórfiro, e também de

Alexandre de Afrodisias. O próprio Alexandre nos fala222 que os ensinamentos de Platão

sobre o Um e a Díade indefinida (ou múltipla) foram registrados no tratado de Aristóteles

Sobre o Bem – que foi baseado em suas notas das palestras de Platão.

Simplício223 identifica as doutrinas não-escritas, a que Aristóteles se refere na Física

209b 14, com as lições sobre o Bem. Não há necessidade de limitar os ensinamentos não-

escritos de Platão, que Aristóteles conhecia, a um determinado curso de conferências; mas seu

conhecimento sobre a teoria dos Números-Ideais parece proceder principalmente daquela

fonte.

220

Harm. El. Ii. 30-1 221

Parece a tradução mais provável de kai to peraj oti agaqon estin en 222

Na Metafísica. 56.33-5, 85.17, 250.17-20;262.18-26 223

Na Física 545.23

Page 122: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

122

Tenho falado de um “curso de conferências”, não de uma simples conferência, e isto

agora pode ser justificado. Simplício usa as palavras akroasij e sunousia nesta

conexão224, mas ele também usa o plural logoi, 225 e o plural sunousiai,226 que é

também usado por Filopono227 e por Asclépio228. akroasij pode significar uma simples

conferência, mas pode significar também um curso de conferências; o todo da Física de

Aristóteles está nos manuscritos chamados fusikv akroasij. A evidência, então, aponta

para um curso em vez de uma simples conferência, e é também a isto que a probabilidade

aponta.

Deste modo, temos uma boa evidência, embora não muito grande, que Aristóteles

teve acesso tanto aos ensinamentos não-escritos de Platão quanto à coleção de “divisões” que

não são encontradas nos diálogos – assim como teve acesso a qualquer outro escrito de

Platão, ou mais provavelmente compilações de seus ensinamentos não-escritos; e aquela

parte destes ensinamentos, as palestras sobre o Bem, ocupou-se precisamente com os

desenvolvimentos posteriores da teoria das idéias com que Aristóteles nos informa nos livros

A, M e N da Metafísica.

Podemos agora voltar a considerar o que Aristóteles diz sobre os desenvolvimentos

posteriores da teoria de Platão, e perguntarmos se o que ele diz poderia bem ser baseado

inteiramente, como o Professor Cherniss sustentou, nos diálogos. Um fato nos chama a

atenção imediatamente. Aristóteles se refere muito livremente aos diálogos de Platão pelo

nome; qualquer um que observar o Índex de Bonitz para Aristóteles, s.v. Platão, achará

aproximadamente cinqüenta exemplos explícitos. Mas Aristóteles nunca cita qualquer dos

diálogos como evidência a alguns dos desenvolvimentos posteriores que logo estudaremos.

Isto em si mesmo sugere muito fortemente que seja de outra fonte, dos “ensinamentos não-

escritos”, que ele obtém seu conhecimento destes desenvolvimentos.

A impressão que assim obtemos é bastante fortalecida quando observamos o que ele

diz sobre estes desenvolvimentos. Tome um dos mais notáveis deles, a derivação dos números

idéias do Um e do grande e pequeno. De acordo com o professor Cherniss, o que Aristóteles

diz sobre isto depende em parte do Filebo e em parte de insinuações espalhadas pelo Sofista e

Timeu. Tudo o que Aristóteles diz sobre o grande e o pequeno tem de ser resumido a frases

224

Ibid. 151.10, 454.8 225

Ibid. 453.28, 503.12 226

Ibid. 542.10, 12, 545.24 227

Na Física 515.30, 521.10, 14. 228

Na Met. 77.4

Page 123: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

123

como “maior e menor” e “mais ou menos”, encontradas no Filebo229. Mas há duas coisas que

são perceptíveis. Uma é que estas frases são, no Filebo, não mais proeminentes que “quente e

frio”, “mais ou menos violento”, “seco e molhado”, “rápido e lento”. A outra é que a análise

oferecida é uma análise de números, e não de coisas e eventos no mundo dos fenômenos. É

razoável supor que a linha do pensamento que Platão no Filebo aplica ao mundo dos

fenômenos foi depois estendida por ele aos números ideais; mas é sem razão supor que

Aristóteles não tenha mais base que o Filebo para o que ele diz do “grande e pequeno” como

princípio material dos números.

Tanto o princípio básico de que fala Aristóteles sobre o Um quanto o seu principio

formal, o professor Cherniss põe adiante os seguintes fatos: que nos diálogos “cada idéia é

uma unidade imutável e indivisível; no Filebo elas são designadas como ‘hénades’, ‘mônadas’,

‘unidades’; no Timeu as idéias se distinguem de suas manifestações fenomenais por serem

chamadas cada uma de ‘invisível’, termo que Xenócrates emprega para fazer sua própria

leitura desta passagem como derivação dos números do Um; e no Sofista, justamente onde a

intercomunicação entre as idéias é explicada, Platão insiste que cada idéia é uma unidade,

diferente das outras e também de todas juntas. O que ele diz em seu último diálogo mostra

que, como o ser de cada idéia lhe vem da idéia de Ser e a diferença de cada uma vem da idéia

única de Diferença, então a unidade de cada idéia deve vir-lhe da idéia de Um230. Nenhuma

outra fonte além desta precisa ser procurada para a afirmação de Aristóteles de que o Um é a

causa formal ou a essência das Idéias231.

É bem verdade que Platão freqüentemente enfatiza a unidade e a indivisibilidade de

toda idéia. Mas é um caminho distante daquele que fala Aristóteles, não sobre a natureza de

cada idéia, mas da derivação sucessiva da série numérica. É demasiadamente provável que

haja uma boa quantidade de más interpretações daquilo que Aristóteles disse; mas é difícil

supor que ele nada mais tivesse interpretado erroneamente além daquilo que o professor

Cherniss lhe atribui. Onde nos diálogos, para tomar um exemplo dentre muitos, vamos

encontrar alguma base qualquer que seja para a afirmação de Aristóteles de que Platão levou

a derivação dos números tão longe quanto o número 10?232 Sabendo como nós sabemos que

existiram ‘ensinamentos não-escritos’, e que Aristóteles os conhecia, é razoável supor que foi

neles que Aristóteles encontrou o fundamento do que ele diz sobre as últimas visões de

Platão. 229

25c 9 230

Embora possa ser observado que a Idéia de Um não é mencionada em absoluto no Sofista. 231

R.E.A. 51 232

Física 206b 32

Page 124: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

124

É certo, então, que Platão deu alguma instrução oral em filosofia, e por isso não

precisamos hesitar ao aceitarmos o que Aristóteles diz sobre Platão simplesmente porque não

encontramos suporte para isto nos diálogos. Mas o maior cuidado se faz necessário se nós

estamos (a) a descobrir quando é de Platão, e não de outro membro da Academia, que ele está

falando; e se estamos (b) a levar em conta uma possível má interpretação de Platão por

Aristóteles – e o professor Cherniss tem feito um trabalho notável explorando estas

dificuldades.

Muito do que Aristóteles disse sobre a teoria das idéias na Metafísica A se refere a

Platão pelo nome; mas até lá devemos ser cuidadosos em nosso estudo das passagens em que

ele fala ‘nós’ (i.e. nós membros da Academia) ‘fazemos assim’; já que isto não significa

necessariamente que o mestre fez do mesmo modo. Quando voltamos aos livros M e N as

dificuldades são ainda maiores. Elas resultam não só da esquisitice das doutrinas discutidas,

mas também do fato de que Aristóteles dificilmente nos fala alguma vez sobre quem ele está

falando; Platão é mencionado apenas uma vez233, Espeusipo e Xenócrates nunca, mas

também não há dúvidas de que esses três são os sujeitos da discussão inteira. Não só

Aristóteles não diz de quem ele está falando, mas ele diverge desconcertantemente da

discussão sobre uma visão de um outro. Por isso o maior cuidado se faz necessário ao

separamos as passagens que se referem a Platão daquelas em que se referem a um de seus

seguidores. A esta tarefa devemos voltar agora.

Há seis passagens234 em que Aristóteles distingue três visões sustentadas dentro da

Academia – aquela que distinguiu o “intermediário” ou entidades matemáticas das Idéias;

aquela que reconheceu somente a anterior; e aquela que identificou as duas. E há outras

passagens235 que mencionam duas destas visões. Na Metafísica 987b 14-18, Aristóteles

atribui expressamente a primeira das três a Platão. A quem se atribuem as outras?

Em duas passagens de outros Livros em que Espeusipo é mencionado pelo nome236,

aprendemos duas características de seu sistema: (1) ele reconheceu mais classes de entidades

que as três (Idéias, objetos matemáticos, objetos sensíveis) reconhecidas por Platão, e tratou-

as no distanciamento de uma outra, reconhecendo princípios separados para cada um; mas

que, como Platão, ele iniciou tendo o Um como seu primeiro princípio; (2) ele considerou

233

1083ª 32. o Fédon é mencionado em 1080ª 2 234

1069ª 33-6, 1076ª 19-22, 1080ª 24-30, 1083ª 17-b8, 1086ª 2-13, 1090b 13-1091ª5. Esta passagem precisa de uma consideração especial, que será encontrada em pp. 208-9 235

1080b 11-16, 1086ª 29-32, 1090ª 4-28 236

1028b 21-4, 1072b 30-1073e 3.

Page 125: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

125

valores como emergindo tardiamente na evolução do universo, e pensou sobre os primeiros

princípios, e seus produtos primordiais, os números, como não possuindo bondade.

Agora a teoria referida à primeira destas passagens é claramente a mesma que está

em 1075b 37 – 1076ª 4 e em 1090b 13-29 é descrita como fazendo naturalmente ‘uma série

de incidentes desconexos, como uma má tragédia’; e nestas duas passagens os pensadores em

questão são descritos como ‘criando os primeiros números matemáticos’ ou como ‘afirmando

a existência apenas dos números da matemática’. Deste modo, Espeusipo é claramente

identificado como o pensador que reorganizou a existência dos objetos matemáticos, mas

negou a das Idéias. Por isso, fomos deixados com Xenócrates como o pensador que identificou

os dois.

Acompanhando esta pista é possível identificar muitas passagens da Metafísica como

referência a Espeusipo ou a Xenócrates e aprender muito sobre suas respectivas visões237. A

Espeusipo podemos atribuir, em alguns casos com certeza e noutros com grande

probabilidade, as seguintes passagens: 1028b 21-4, 1069ª 36, 1072b30-1073ª3, 1075ª 36-7,

b37-1076ª4, 1076ª 21-2, 1080b 14-16, 25-8, 1083ª 20-31, 1085ª 32-b9, b27-31, 1086ª 2-5, 29-

30, 1087b 6-9, 16-17, 27, 30-3, 1090ª 7-15, 25-8, b13-20, 1091ª 33-b1, b22-5, 32-1092ª 3,

1092ª 11-17, 35-b1. A Xenócrates podemos atribuir: 1028b 24-7, 1069ª 35, 1076ª 20-1, 1080b

22-3, 28-30, 1083b 1-8, 1086ª 5-11, 1090b 20-32. A Platão podemos atribuir: 987ª 29-988ª 17,

988ª 26, 990ª 29-32, 991b 3-9, 995b 16-18, 996ª 4-7, 997b 1-3, 998b 9-11, 1000ª 9-12, 1002b

12-32, 1010b 11-14, 1019ª 1-4, 1025ª 6-13, 1026b 14, 1028b 19-21, 1034ª 1-2, 1053b 9-13,

1057b 8-9, 1059b 3-12, 1060b 6-12, 1964b 29, 1069ª 36, 1071b 31-3, 37-1072ª 2, 1073ª 20-2,

1076ª 19-20, 1077ª 11, 1080ª 2-8, b11-14, 24-5, 1081ª 24-5, 1083ª 31-6, 1084ª 12-17, 1085b,

9-10, 1086ª 11-13, 31-b5, 1087b 13-16, 1089ª 19, 1090ª 4-7, b20-7, 32-1091ª 5, 1091b 35-

1092ª 3. Esta dissecação mostra que os Livros M e N são bastante ocupados tanto com os

seguidores de Platão quanto com o próprio Platão; a razão de porque eles ofertam muito mais

atenção a Espeusipo que a Xenócrates é que Aristóteles considerou a visão de Xenócrates, que

confundiu ideal com números matemáticos, a pior das três. Enquanto esta dissecação tem

grande valor, permanece verdade que há muitas outras passagens nas quais a referência é

duvidosa ou mais genérica, o que nos mostra que muitos problemas ainda permanecem em

nossas mãos.

237

Indiquei as linhas nas quais tal identificação procede, na minha edição da Metafísica, I lxxi-lxxvi

Page 126: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

126

X – CONSIDERAÇÕES DE ARISTÓTELES ACERCADA

DOUTRINA INICIAL DE PLATÃO Tradução:

Ricardo Durski e Ricardo Vieira

s principais considerações de Aristóteles sobre a teoria das Idéias encontram-se em duas passagens da Metafísica, A. 987a29p-b14 e M. 1078b9-32 que lêem como se segue:

I. Depois dos sistemas dos quais falamos veio a filosofia de Platão, que, na maior partes dos

casos, seguiu as doutrinas destes pensadoresi, mas tinha peculiaridades que a distinguia da

filosofia dos Italianos i. Pois, em sua juventude, ele primeiro conheceu as doutrinas de Crátilo e

Heráclito, de que todas as coisas sensíveis estão sempre fluindo e não há conhecimento sobre

elas, e essas visões ele manteve em tempos posteriores. Sócrates, no entanto, ocupava-se de

questões éticas, negligenciando o mundo da natureza como um todo, porém procurando o

universal em questões éticas; ele foi o primeiro a concentrar suas atenções nas definições.

Platão tirou proveito de seus ensinamentos e defendeu que a questão se referia não às coisas

sensíveis, mas a entidades de outra espécie – por esta razão que uma definição geral não

poderia ser uma definição de alguma coisa sensível, já que estas coisas estão sempre

mudando. Ele, então, chamou este outro tipo de coisas Idéias, e as coisas sensíveis, segundo

ele, eram todas determinadas conforme àquelas, e em virtude de uma relação com elas; pois

era em virtude da participação que o múltiplo tem o mesmo nome das Formas238. Apenas o

nome ‘participação’ era novo; dado que os Pitagóricos dizem que as coisas existem por imitação

dos números, e Platão diz que elas existem por participação, mudando o termo. Mas a questão

do que são participação ou imitação das Formas, eles deixaram em aberto.

2. Agora, a propósito das Idéias, devemos primeiro examinar a teoria em si, sem relacionar

esta de modo algum com a natureza dos números239, mas tomando-a da maneira que era

originalmente entendida pelos que primeiro defenderam a existência das Idéias. Os

proponentes da teria das Formas foram levados a estas pelo fato de que, na questão sobre a

realidade das coisas, aceitaram os dizeres de Heráclito que descrevem todas as coisas sensíveis

como estando sempre em transformação, de modo que se o conhecimento e o pensamento

i i.e. os Pitagóricos 238

Eu hoje penso que a leitura correta em 987b9 é kata\ me/ qecin ga\ r einai ta\

polla\ o/ mw/ numa toij ei( / desin. É possível que um antigo copista, não reconhecendo o

significado de ta\ poll\ a/ (o múltiplo, em oposição ao uno), e tomando como seu significado “a

maioria”, tenha introduzido tw= n sunwnu/ mwn como verniz, e este verniz tenha incorporado-se ao

texto dos manuscritos, retirando o/ mw/ numa naquele de Ab, Alexandre e Asclépio. o/ mw/ numoj,

não sunwnu/ moj, é a maneira usual de Aristóteles expressar a relação dos particulares e as Idéias no

sistema de Platão (990b6, 991ª6), e também é a maneira de Platão (Fédon 78 e 2, Parm. 133 d 3, Tim. 52

a 5). A interpretação de ta\ polla tw= n sunwnu/ mwn como significando “o múltiplo que

consiste do sunw/ numa” parece-me muito improvável. 239

i.e. não discutindo a teoria posterior de Platão: Idéia-números.

A

Page 127: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

127

têm um objeto deve haver entidades outras que são permanentes, diferentes daquelas que são

sensíveis; pois não poderia haver conhecimento de coisas que estivessem em estado de

constante fluxo. Mas Sócrates estava se ocupando das virtudes morais, e por coerência a elas

foi o primeiro a procurar por definições gerais.... Era natural que Sócrates devesse procurar a

essência, pois ele buscava conclusões fundamentadas na razão, e a essência da coisa pensada

com a razão é ponto de partida para pensar sobre esta coisa... Duas coisas deve-se atribuir a

Sócrates – argumentos indutivos e definições gerais, ambos estão conectados ao ponto de

partida para o conhecimento. Mas Sócrates não fez com que os universais ou definições

existissem separadamente; aqueles pensadores, no entanto, deram a eles existências

diferentes, e este era o tipo de coisa que chamavam de Idéias.

Esta abordagem é repetida resumidamente em M. 1086a37-b5:

Eles, os que acreditam nas Idéias, pensaram que os particulares, no mundo sensível, se

encontravam em estado de fluxo e nenhum tinha estabilidade, mas o universal era separado

destes e algo diferente. Sócrates motivou esta teoria....por meio de suas definições, mas ele

não separou universais de indivíduos; e ele estava certo em não separá-los.

Nós devemos considerar separadamente os três ingredientes que Aristóteles descreve como tendo penetrado as teorias de Platão.

(I) Nós sabemos muito pouco sobre Crátilo; Tudo que chegou a nós sobre ele, da antigüidade, está contido em uma página de Diels240. Podemos inferir com razoável certeza de Crat. 429e5 que ele era um Ateniense, e 440d5 diz que ele era consideravelmente mais novo que Sócrates. Isto se deve, presumivelmente, ao fato posterior de Diógenes Laércio dizer241 que somente depois da morte de Sócrates Platão associou-se a Crátilo. Aristóteles definitivamente descreve Platão tendo entrado em contato com Crátilo antes de ser influenciado por Sócrates, e é muito possível que Aristóteles soubesse dos fatos melhor que Diógenes.

Com respeito aos ensinamentos de Crátilo nós temos, além do que Aristóteles diz, seu testemunho242 de que Crátilo “no final não acha certo dizer nada e somente movia o dedo e criticava Heráclito por dizer que era impossível pisar duas vezes no mesmo rio; pois ele pensava que não se pode fazer isto nem uma vez”. No dialogo que leva seu nome, Crátilo aparece como um Heracliteano convicto243.

Não há dificuldade em aceitar o testemunho de Aristóteles de que Platão associou-se primeiro a Crátilo; pois Platão já era um homem de 28 para 30 anos quando Sócrates morreu, e bastante tempo já havia se passado para que ele tivesse uma breve aproximação com Crátilo, seguida de uma convivência mais longa com Sócrates. Mesmo sem o testemunho de Aristóteles nós poderíamos saber que Platão foi influenciado pelo heracliteanismo. Há uma passagem impressionante no Simpósio244 em que ele fala da transitoriedade das coisas humanas – não só do cabelo, carne, ossos, sangue, e todo o corpo humano, mas também dos hábitos,

240

F.V.5 ii. 69-70.

241 iii. 6 (8).

242 1010

a12.

243 Crat. 440 d 7-e 2.

244 207 d 2-208 b 6.

Page 128: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

128

traços de caráter, opiniões, desejos, prazeres, dores, medos, conhecimento. Em uma passagem do Fedro245 o mesmo é repetido, onde a transitoriedade destas coisas é contrastada com a eternidade das Formas, igualdade em si, beleza em si.

Nessas passagens a transitoriedade das coisas sensíveis é colocada uma questão de observação comum. No Teeteto246 Platão da um passo além. Ele introduz uma teoria que, segundo ele, foi sustentada por Protágoras e outros homens notáveis. No entanto não há traço disso no que sabemos sobre Protágoras ou qualquer um antes de Platão; e alguns acadêmicos247 provavelmente estão certos quando sustentam esta ser uma teoria desenvolvida por Platão, com base nos ensinamentos Heraclíticos e Pitagóricos. Sendo ou não ele o autor da teoria, está claro que ele a defendeu, já que é com base na sua verdade que ele procede à crítica da capacidade da percepção sustentar o conhecimento248, e já que ele afirma isto novamente no Timeu249. A teoria é a de que todas as coisas ditas físicas não são coisas, mas movimentos lentos, que nossos órgãos são também movimentos lentos, e que a percepção é o resultado do encontro destes movimentos.

Platão estava, então, como diz Aristóteles, convencido da verdade da doutrina Heracliteana de que o mundo sensível está em constante fluxo, e o que está em constante fluxo não pode ser conhecido. Mas ele estava igualmente convencido de que existe conhecimento, e, logo, devem existir entidades não sensíveis que são os objetos do conhecimento. Portanto a teoria das Idéias foi construída sobre os fundamentos do Heracliteanismo.

(II) Não é mais necessário argumentar contra a visão de Burnet e Taylor de que a Teoria das Idéias, como a encontramos nos diálogos até, e incluindo, o Fedro e a República, era trabalho de Sócrates e não de Platão; o julgamento dos acadêmicos geralmente foi contrário a esta visão250. Esta visão é claramente incompatível com o que Aristóteles diz nas passagens que mostramos, e é inconcebível que Aristóteles, que por 19 anos, durante o tempo em que Platão era vivo, foi membro da Academia, não soubesse da própria visão de Platão e aquela da escola, sobre a contribuição de Sócrates para a formação da teoria.

Contudo, é necessário considerar duas passagens que foram enfatizadas por Burnet e Taylor como evidência para as suas posições. Uma delas é a passagem da Segunda Carta251 : “Logo que algo é colocado na forma escrita é impossível prevenir que isto alcance o conhecimento público. É por esta razão que eu jamais escrevi qualquer coisa a respeito destes assuntos. Não há, e nunca haverá, um tratado (su/ggramma) escrito de Platão. Os ensinamentos atribuídos a ele [Platão], são

245

78c 10-79 a 11. 246

155d 5-157 c 3. 247

e.g. Jackson, J. of Philol. Xiii (1885), 255-6; Burnet, Gk. Phil. i. 242; Cornford, P.T.K. 49. 248

18i b 8-183 c 7. 249

45 b 2-d 3, 67 c 4-68 b 5. 250

Para discussões desta visão ver G. C. Field, P.C. 202-38; Lodge, Robin, Shorey, e Heidel em Proceedings of the Sixth International Congress of Philosophy, 559-88; também minha edição da Metafísica, 1. xxxiii-xlv, e minha consideração à Classical Association em 1932.

251 314 c 1-4.

Page 129: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

129

na verdade os de Sócrates, restaurados à sua juventude e beleza”. A outra é uma passagem da Sétima Carta252:

Não há nem nunca haverá um tratado (su/ ggramma) meu sobre o tema. Pois este

não admite exposição como outros ramos do saber; Mas depois de muitas conversações sobre a questão, e uma vida juntos, subitamente uma luz é acesa na alma por uma chama que saltita de outra alma, e daí por diante sustenta-se sozinha. Um tanto eu sei – que se essas coisas fossem escritas ou colocadas em palavras, isto seria feito melhor por mim, e que, se elas fossem mal escritas, eu seria a pessoa mais penalizada. Novamente, se eles tivessem aparecido para pedir adequadamente escritos e exposições, que tarefa mais nobre eu teria feito em minha vida, escrever algo que é de grande serviço à humanidade e trazer à luz a natureza das coisas para que todos pudessem ver? Porém eu não acho que seja bom para os homens que houvesse uma explanação (disquisition), como é chamada, neste tópico – exceto para alguns poucos, que são capazes, com um pouco de ensinamento, de encontrarem isto por eles mesmos. Já para o resto, isto preencheria alguns deles, deveras ilogicamente, com sentimentos errôneos de satisfação, e outros com vagas e vangloriosas expectativas, apesar de terem aprendido algo elevado e poderoso.

A Segunda Carta é aberta a grande suspeição. A maioria dos acadêmicos chegou à conclusão desta ser espúria, e um estudo dos argumentos colocados, a propósito, pelo Prof. Hackforth253, Prof. Field254 e Prof. Pasquali255 convenceria a maioria dos leitores de que a rejeição é válida. Se assim é, a passagem obviamente é uma imitação da passagem na Sétima Carta; e algumas características no contexto sugerem que o escritor entendeu mal as “digressões filosóficas” daquela carta. Mesmo que a Segunda Carta seja genuína, o que Platão diz não nos levaria, em função da tradição prevalecente na antigüidade256, a tratar os diálogos de Platão como meros ensaios biográficos; Os dizeres de Platão de que tudo que ele fez foi “apresentar Sócrates restaurado à juventude e beleza” poderia ainda ser tomado apenas como um reconhecimento agraciado de tudo que devia a seu grande mestre.

O que Platão diz na Sétima Carta é que ele não escreveu nenhum su/ ggramma peri

au)tw=n, “nenhum tratado sobre estes assuntos”. O que é um su/ ggramma, e o que

seriam “esses assuntos”? A seqüência, a “digressão filosófica” a qual fizemos considerações em outro lugar257, deixa claro que os assuntos são as Idéias e o método para conhecê-las. Contanto que a palavra su/ ggramma seja bastante usada

para qualquer escritura, ela tem uma tendência especial a significar o tratado em prosa258. Nenhum dos diálogos de Platão é um su/ ggramma neste sentido;

252

341 c 4-342 a 1. 253

A.P.E. 45-51. 254

P.C. 200-1. 255

Le Lettere di Platone, 173-95. 256

Para tal ver Prof. Field, P.C. 214-38. 257

pp. 139-41; cf.esp. 342 c 2-343 a 4. 258

Cf. Laws, 810 b 6, Isoc. 2. 7 (7.42), Galen 16. 532.

Page 130: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

130

Aristóteles classificou os “diálogos Socráticos”, dos quais Platão é o líder, junto às pantomimas de Sófron e Xenarcus, e considerou ambos, os diálogos e as pantomimas, como poéticos em caráter apesar de estarem em prosa259. Apesar das Idéias aparecerem diálogo após diálogo, não há um diálogo que pode ser considerado um tratado sobre as Idéias. Portanto estas duas passagens em nada são capazes de estabelecer a perspectiva de que Sócrates foi o autor da teoria das Idéias.

O papel que Aristóteles atribui a Sócrates na história de filosofia é comparativamente modesto. Na avaliação que faz dos filósofos precedentes ele passa260 direto dos Pitagóricos a Platão, e introduz Sócrates incidentalmente como uma das influências a afetar o desenvolvimento de Platão. Este tratamento é justificado, pois é a história da metafísica o que Aristóteles está escrevendo, e Sócrates não era um metafísico.

É pela busca de Sócrates por definições que Aristóteles o credita como influência na metafísica de Platão; e nós não podemos duvidar de que a busca por definições era um dos principais interesses de Sócrates; neste ponto os diálogos de Platão devem ser aceitos como historicamente precisos. Mesmo Xenofon, de personalidade prática, se levanta como testemunha destes interesses quando diz261: -- “Sócrates se pronunciaria de tempos em tempos no que diz respeito à humanidade, tecendo considerações sobre o que é piedoso, o que é impiedoso; o que era nobre, o que era baixo; o que era justo, o que era injusto; o que era sanidade, o que era insanidade; o que era coragem, o que era covardia; o que era um estado e qual a característica de um governante; qual era a natureza da governança sobre os homens, e as qualidades de alguém habilitado a governa-los.” Xenofon, de fato, em sua longa consideração das conversas de Sócrates, oferece muito poucos exemplos de tais discussões262; mas isto por que seu caráter prático não compartilhava deste interesse.

Aristóteles, note-se, aponta muito precisamente o crédito devido a Crátilo e a Sócrates em originar da Teoria das Idéias na mente de Platão. Platão, ele diz, aceitou o ensinamento de Sócrates acerca da importâcia das definições; mas foi o ensinamento Heraclítico sobre a mutabilidade de todas as coisas sensíveis que levou Platão à conclusão de que deve haver outras coisas imutáveis para servir de objetos para as definições. A Teoria das Idéias irrompeu deste contato de rocha com aço. A estimativa aristotélica da contribuição de Sócrates para a formação da teoria não se fez casualmente. “Duas coisas”, ele diz em outra parte263, embora a questão já houvesse sido muito discutida, “podem ser com justiça atribuídas a Sócrates – argumentos indutivos e definições gerais, ambos conectados ao ponto de partida da ciência; mas ele não tratou os universais ou as definições como existindo separadamente; eles [os que crêem nas Idéias], porém, deram-lhes existência separada, e este foi o tipo de coisa a que eles deram o nome de Idéias.” Dificilmente podemos duvidar que esta estimativa – que faz eco com sua asserção de que Sócrates “deu o impulso à teoria”264 - é a correta estimativa dos fatos.

259

Poet. 1447b9-20. 260

987ª29. 261

Mem. i. 1. 16. 262

Cf. i. 2. 41, 44; iii. 9. 1-13; iv. 6. 1-12. 263 1078b27-32

264 1086b5

Page 131: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

131

Aristóteles chega aos Pitagóricos um tanto tarde em seu relato dos pré-Socráticos – depois de Empédocles, Leucipo e Demócrito – e descreve-os como tendo sido “contemporâneos e anteriores a estes”.265 Logo, não são pensadores muito antigos que ele tem em mente. Ele raramente menciona Pitágoras, e nunca em conexão com a teoria das Idéias; ele antes está pensando nos filósofos que floresceram entre, digamos, 470 e 400, e é provável que ele tenha tido principalmente em mente Filolau, que provavelmente nasceu por volta da metade do quinto século.266 Descrevendo os pontos de vista dos Pitagóricos ele às vezes lhes credita haverem dito que as coisas são números267, e às vezes que as coisas imitam números;268 e pode ser que as duas descrições reflitam elementos diferentes nas primeiras teorias Pitagóricas269. Dificilmente podemos supor que um pensador relativamente tardio como Filolau tenha pretendido seriamente afirmar que todas as coisas são números e nada mais, mas podemos facilmente supor que ele tenha dito “todas as coisas são números”, significando que todas as coisas têm um caráter numérico, e que isso é o mais mportante acerca delas. Esta é a perspectiva expressa nos fragmentos atribuídos a ele270, e mesmo que (como é provável) estes não sejam genuínos, eles podem perfeitamente se referir a seu ponto de vista. Este ponto de vista, é provável, surgiu originalmente da descoberta de que os intervalos concordantes principais na música – a oitava, a quinta e a quarta – correspondem às razões de comprimento 1:2, 2:3 e 3:4 entre duas cordas vibrantes – uma descoberta que pode bem remontar ao próprio Pitágoras. Por esta imensamente importante descoberta os Pitagóricos foram levados a suspeitar que uma estrutura numérica definida subjaz a toda distinção qualitativa. Alguns de seus ditados eram sólidos, muitos outros eram imaginativos, mas o princípio era sólido o bastante – que as distinções qualitativas baseiam-se em fatos quantitativos.

Aristóteles não descreve a teoria das Idéia como brotando dos pontos de vista Pitagóricos; ele diz que ela os “seguia”271, e “seguia” muito provavelmente significa “assemelhava-se a” e não “se originava de”272. Ele não representa Platão como se tivesse, na forma inicial de sua teoria ideal, tido realmente em mente números. Ele assinala, de fato, a afinidade entre o papel dos números na teoria Pitagórica e o papel das Idéias na teoria Platônica,273 mas ele não sugere que uma teoria derivou da outra, e descrevendo a doutrina de Platão como na maioria dos aspectos

265

985b23 266

Filolau é um dos dois importantes Pitagóricos (que não o próprio Pitágoras) assinalado por Platão, que havia ouvido de Cebes e Simmias que estes eram associados a Filolau quando Filolau visitou Tebas (Fédon 60d6-e9); Platão havia sem dúvida aprendido com eles algo sobre os pontos de vista de Filolau. Há uma certa tradição posterior conectando Platão com Filolau; D.L.3.6 (8) diz que, quando Platão tinha vinte e oito anos, depois de visitar Mégara e Cyrene ele foi à Itália para ver Filolau, e D.L.8. 84-5 diz que (muito depois) Platão escreveu a Díon pedindo-lhe que comprasse livros Pitagóricos de Filolau, e ele mesmo comprou ou procurou o único livro que Filolau havia escrito. Mas o único Pitagórico principal com quem, conforme podemos aprender da Sétima Carta (338c5-339b3, 350a5-b5) Platão realmente tinha intimidade era Arquitas, que era mais ou menos da mesma idade que ele. Aqui també, a tradição posterior acrescenta algo que pode ou não ser verdade – que depois da morte de Sócrates Platão visitou em sucessão o Egito, a Itália e a Sicília, e que na Itália “esteve muito com” Arquitas (Cic. De Rep. 1.10.16). 267 987b27-8

268 Ibid. 11.

269 Cf. J. E. Raven, Pythagoreans and Elentics, 62-3.

270 e.g. fr. 4 kai pa¹ nta ga ma n ta gignwsko¹ mena a) riqmo¹ n

e) ¹ xonti! ou) ga r oi( o¹ n te ou) de¹ n ou) ¹ te nohqh¬ men ou) ¹ te

gnwsqh¬ men a) ¹ neu tou¹ tou5 271

987a30 272 Cf. a nota de Bywater à Poética 1449b10 h) kolou¹ qhsen

273 987b7-14

Page 132: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

132

seguindo a Pitagórica, ele provavelmente tinha em mente fundamentalmente a teoria Platônica tardia das idéias-números.274 A visão Platônica mais antiga ele primeiro descreve como devida a duas fontes que não o Pitagorismo – a conclusão positiva que Platão tirou do ensinamento negativo de Crátilo, e o impulso que ele recebeu da busca socrática por definições.

Aristóteles não diz quando ou como Platão começou a ser influenciado por pitagóricos; ele certamente não sugere que foi através de Sócrates, e sua linguagem sugere antes o oposto. A suposição mais natural é que o primeiro contato de Platão com o Pitagorismo veio com Simmias e Cebes, os Pitagóricos de Tebas que formam parte do círculo de Sócrates pintado no Fédon, e que ele aprendeu muito mais sobre o sistema durante sua visita ao sul da Itália por volta de 388, onze anos depois da morte de Sócrates. Mas é digno de nota que mesmo tão tarde quanto no Fédon, que foi provavelmente escrito alguns anos depois dessa visita, não há nada que sugira que a teoria das Idéias ali colocada deva qualquer coisa ao Pitagorismo; são apenas as visões de Platão sobre o destino da alma que parecem sim dever. Não é senão até o Timeu e o Filebo que nós encontramos a teoria das Idéias começando a ser influenciada pela teoria Pitagórica de que “todas as coisas são números”, e é apenas na ainda mais tardia teoria das Idéias-números que sua influência chega ao auge. Se isto foi resultado de contatos posteriores com os Pitagóricos durante a segunda ou terceira jornada de Platão à Sicília,275 ou de mais profunda meditação no que ele havia aprendido muito antes sobre os pontos de vista Pitagóricos, é impossível dizer.

Da magnitude da influência Pitagórica sobre Platão durante seu período tardio não pode haver dúvida. Não apenas nós nos deparamos com o “limite” e o “ilimitado” do Filebo já presentes de antemão entre os primeiros princípios reconhecidos por alguns dos Pitagóricos; nós encontramos a unidade e a pluralidade (O Uno Platônico e sua “díade indefinida”) naquela lista276; e nós encontramos bondade associada com limite e unidade, e maldade com o ilimitado e a pluralidade, conforme também em Platão.277

Aristóteles diz que a maior divergência de Platão com relação à doutrina Pitagórica foi devida a sua ske¹ yij e) n toi¬ j lo¹ goij..A frase é claramente uma reminiscência do Fédon, 100a 1-3, onde e) n lo¹ goij skopou¹ menon ta o) ¹ nta é a descrição de Sócrates de seu próprio método. Conforme vimos,278 lo¹ goi aí significa provavelmente “enunciados” em vez de “definições”, mas em vista do que Aristóteles disse anteriormente sobre Platão dever a Sócrates o estudo das definições, ele provavelmente usa lo¹ goi no segundo sentido. O melhor comentário sobre o o que Aristóteles quer dizer pode ser encontrado em duas outras passagens que lidam com os Platonistas – Met. 1069a27, onde ele diz que eles tratam gêneros como substâncias dia to logikw¬ j zhtei¬ n, e contrasta-os com os antigos pensadores, que tratavam as coisas particulares como substâncias; e 1084b23-32, onde ele diz que eles aceitaram uma teoria errônea 274 987b18-988a1. O ponto de vista expresso acima é confirmado pelo fato de que em Met. M. 4, onde

Aristóteles está concernido apenas com a teoria ideal de Platão, não com sua teoria das Idéias-números,

os Pitagóricos são introduzidos apenas em um parêntese. (1078b21-3)

275 Por volta de 367 e 361.

276 986a22-6. Mr. Raven assinala (Pythagoreans and Eleatics, 184-5) que enquanto o limite, o

ilimitado, e a mistura deles são introduzidos no Filebo como algo óbvio, a causa da mistura é introduzida

com grande hesitação; ele sugere, com muita probabilidade, que este último é um novo elemento que

Platão está trazendo da teoria Pitagórica. 277 988a14-15.

278 pp. 27-8

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A Teoria das Idéias de Platão

133

das unidades porque ao mesmo tempo consideraram-nas do ponto de vista matemático, e doravante trataram-nas como constitutivas dos números; e do ponto de vista das definições gerais, e doravante mergulharam na unidade que é predicável de qualquer número. Os Pitagóricos estavam fazendo o que outros pré-Socráticos fizeram, tentando achar os constituintes últimos das coisas, e eles (ao menos conforme Aristóteles mantém) pensaram nos números como sendo constitutivos das coisas tanto quanto outros pensadores haviam pensado na água ou no ar como seus constituintes, i.e. como sendo a própria coisa de que elas eram feitas. Platão, por outro lado, seguindo os passos de Sócrates, estava interessado no caráter universal de um certo grupo de coisas, e isso o levou a duas divergências entre sua doutrina e aquela dos Pitagóricos. Ele não viu o Uno e os números como a coisa de que as coisas são feitas, mas como seu princípio formal, e doravante colocou-os “à parte dos sensíveis”; e ele não confinou a si mesmo à linguaem Pitagórica sobre “números”, mas falou de “Idéias” e pensou-as como essencialmente os objetos da definição.

No relato de Aristóteles sobre as influências que vieram a moldar a metafísica de Platão sente-se falta de alguma referência aos Eleatas. Nós podemos nos sentir tentados a incluí-los entre os “Italianos” cujas visões diz-se assemelharem-se às de Platão; mas os paralelos que Aristóteles procede em desenhar são apenas entre Platão e os Pitagóricos, e é a estes que ele em outra parte279 se refere como “Italianos”.

Esse aparente buraco no relato de Aristóteles seria preenchido se aceitássemos o enunciado de Diógenes Laércio280 de que Platão estudou não apenas com Crátilo mas com Hermógenes, que “defendia os pontos de vista de Parmênides”. Mas não há outra evidência que sustente isso; é provavelmente uma mera influência da aparição de Hermógenes no Crátilo como oponente de Crátilo. Hermógenes era um membro (aparentemente inconspícuo) do círculo Socrático281, e nós não temos boa base para supor nem que ele seja um Eleata, nem que Platão tenha aprendido com ele.

Parmênides é o principal falante do diálogo que leva seu nome, e no Sofista e no Político o principal falante é um estrangeiro Eleata. Mas deve-se admitir que eles não falam como porta-vozes de pontos de vista específicos de Eleatas, nem nós encontramos Platão nesses diálogos inclinado a tais perspectivas. No Parmênides, as críticas à teoria Platônica da juventude não são feitas desde um ponto de vista especialmente Eleático; e no Sofista Platão pela primeira vez claramente delineia a conclusão de que a realidade deve incluir algo que muda tanto quanto algo que não muda – uma concepção bastante não-Eleata. Platão, quando fala de Parmênides, sempre fala dele com o respeito que ele merece enquanto fundador do racionalismo, mas para além da aceitação do racionalismo Platão não parece ter sido especialmente influenciado pela filosofia Eleata; em lugar algum ele mostra qualquer tendência a um monismo total.

279 Meteor. 342b30; Met.. 987a10, 988a26.

280 iii. 6 (8).

281 Fédon 59b7

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A Teoria das Idéias de Platão

134

XI – A POPULAÇÃO DO MUNDO DAS IDÉIAS Tradução:

Richard Milos Redditt

Nesse próximo momento vamos nos voltar sobre uma passagem de grande interesse

na qual Aristóteles critica a teoria das idéias, com referência a vários argumentos correntes na

Academia. A passagem corre da maneira seguinte; para conveniência da referência dividi-a em

duas seções.

Das maneiras com as quais nós [nós Platonistas; por que no livro A Aristóteles escreve

como um membro, mesmo que rebelde, da Academia] provamos que a Forma existe,

nenhuma é convincente; para [A] donde alguma inferência não necessariamente segue, e [B]

donde surgem algumas Formas de coisas que pensamos não ter Forma. Para [1] concordar

com os argumentos da existência das ciências donde terão Forma todas as coisas das quais se

em ciência; [2] concordando com o “um de muitos” argumentos onde terá Forma até da

negação; [3] concordando com o argumento que existe um objeto para o pensamento mesmo

quando a coisa pereceu, se terá Forma de coisas perecíveis; posto que nós temos uma imagem

delas. Complementando [C], dos mais precisos argumentos, [1] alguns estabelecem Ideais de

termos relativos, e [2] outros introduzem o “ terceiro homem”.

As melhores e mais completas discussões dessa passagem podem ser achadas em

Robin (Théorie Platonicienne), em Prof. Cherniss (Aristotle’s Criticism of Platô and the

Academy), e em Wilpert (Zwei aristotelische Frùhschiften ùber die Ideenlehre). Nossa

discussão disso será limitada em duas vias. (1) Nós não devemos nos preocupar com os

méritos dos argumentos de Aristóteles. Isso forma um tópico interessante; mas o nosso

objetivo é traçar a história das visões de Platão mas no que acessar seus valores; e em

qualquer caso nosso julgamento de seus valores provavelmente seria determinado por outras

considerações além daquelas que Aristóteles apresenta. E (2) nos não devemos nos preocupar

com a visão dos seguidores de Platão; pois nossa discussão não é a Academia, mas Platão. O

que nós devemos tentar descobrir é qual evidência existe que Platão em qualquer tempo

reconheceu Idéias de qualquer tipo aqui nomeadas por Aristóteles, e qual evidência existe que

ele algum dia cessou de reconhecer tais Idéias. A ultima pergunta foi vigorosamente levantada

por Henry Jackson, que argumentou que existia um “ tardia teoria das Idéias” sustentada por

Platão na qual somente Idéias de tipos animais e dos quatro elementos eram reconhecidas.

Nós precisamos não nos preocupar com a natureza precisa dos argumentos para as

Idéias ao qual Aristóteles se refere. Dos comentários de Alexandre nós podemos aprender que

existiam várias formas do argumento da ciência (O uso de Aristóteles do plural é prova

suficiente disso); e Alexandre de fato define três formas. Mas o mostrar uma lista de

argumento não é do feitio de Platão, e nós podemos ter bastante certeza que a formulação foi

trabalho da escola ( penso sem dúvida baseada em pistas nos diálogos, e provavelmente

Page 135: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

135

também nos ensinamentos orais de Platão); e por essa razão não entraremos em seus

detalhes.

Vamos começar com os argumentos das ciências-(B)(1). Quais eram os objetos da

ciência aos quais os ( ou alguns) platonistas negavam o status de Forma? Um pouco mais

abaixo Aristóteles diz “ de acordo com a presunção na qual nossa crença nas Idéias repousa,

existirão Formas não só da substância mas também de muitas outras coisas ( posto que o

conceito é singular não somente para o caso da substância mas também em outros casos, e

existe ciência não apenas da substância mas também de outras coisas, e o convite de tais

dificuldades confronta-os). Mas , segundo a lógica do caso e as opiniões defendidas sobre a

Forma, se a Forma pode ser compartilhada nela deve haver Idéia de substância somente. Aqui

Aristóteles conta-nos o que as “outras coisas” são que os platonistas não acreditam ter uma

Idéia correspondente a elas mesmo que o argumento das ciências deva levar a uma crença

nessas Idéias;elas são todas as coisas que não são substâncias. Nós não precisamos nos

preocupar como o argumento aristotélico; por que é certo que, quais fossem os membros da

Academia que acreditassem somente em Idéias de substâncias, Platão nunca esteve entre

eles. Nos primeiros diálogos coisas como bondade e beleza são os mais típicos exemplos de

Idéias. Em “Parmênides” elas estão entre as Idéias as quais a existência é quase certa. No

“Sofista” “as maiores Formas” são existência, igualdade e diferença, repouso e movimento. Na

teoria Número-Ideática , que pertence ao último período de sua vida, as primeiras Idéias são

unidade, dualidade, e o gosto. Em todos os lugares exceto no “ Timeu” Idéias de substância

tem um papel muito subordinado.

Muitos estudiosos parecem ter ignorado a explicação que Aristóteles , ele mesmo,

fornece em 990b22-9 de sua declaração ibid. 11-13 que os argumentos platônicos das ciências

levam a Idéias de coisas as quais apesar o pensamento platônico, não existem tais Idéias.

Confiando na interpretação de Alexandre, eles pensam as coisas referidas a não sendo “ coisas

outras que substâncias”, mas obras de arte. Já que Alexandre se baseia em “De Ideis” de

Aristóteles, nós podemos tomar que, de acordo com Aristóteles, obras de arte eram uma

segunda classe de coisas Idéias as quais não eram admitidas pelos platonistas, mesmo que de

acordo com os argumentos das ciências elas deveriam ser admitidas. A essa questão nós

devemos retornar depois.

Nós retornamos agora a (B) (2): “ De acordo com o “um de muitos” argumentos

existiriam Formas até para negação; e ainda sim nós dizemos que não há.” Devemos perguntar

(a) se a teoria das Idéias realmente implica que existam Idéias negativas, e (b) se Platão alguma

vez negou que existissem tais Idéias.

Existem três tipos de termo que podem, de uma maneira bem genérica, serem

chamados de termos negativos, e nos devemos perguntar essas questões sobre eles. (a)

Primeiramente existem termos, amados pelos lógicos mas nunca usados na vida comum, que

são puramente negativos em seu significado- termos como “não-bom”, “ não-belo”, “não-

alto”. Platão toca em tais termos no “ Sofista”, mas sua atitude acerca deles não é no geral

clara. Em 257 e 2-4 ele diz “ a existência do não-bonito consiste em ser demarcado por um

único definido tipo de coisas existentes – por um tipo , não como um. Mas em 257e9 ele diz “

de acordo com esse argumento é a beleza algo mais e o não-beleza algo menos real?” e a

Page 136: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

136

resposta que é esperada e está por vir é “Não”. E em 258b9 ele diz, “Nós devemos agora falar

corajosamente que “ aquele que não é” é indubitavelmente uma coisa que tem natureza

própria – do mesmo jeito como o alto era alto e o belo era belo, assim também com o não alto

e o não belo – e neste sentido “ aquele que é não” também, no mesmo princípio, ambos foi e é

o-que-é-não uma Forma a ser numerada no meio das muitas realidades?” A doutrina é que

não-sendo ( que é indentificado com diferença) é uma Forma genuína, realmente uma das

maiores Formas. Dessa Forma Platão diz, “Nós mostramos que a natureza do diferente tem

existência e é parcelada sobre todo o campo de coisas existentes com referências de um ao

outro”; e ele pode ter querido significar que termos puramente negativos como “ não belo” ,

“não bom” definem Idéias específicas tomadas sob a Idéia genérica de não sendo ou diferença.

Mas ele nunca diz isso , e seu significado é provável de ser que a Idéia de diferença é parcelada

entre todas as coisas individuais que não são belas e não são boas. Ele se expressa mais

decisiva no “Polilicus”, onde ele dia que “bárbaros”( se apenas significa não- gregos) e “ não

dez mil”, mesmo que definam partes do gênero homem e número, não correspondem a

espécies desses grupos, ex. que não existe Idéia de não grego ou de não dez mil.

(b) Em segundo lugar, existem termos negativos na forma, mas que na verdade tem

um significado tanto positivo quanto negativo. Platão ocasionalmente refere a Idéias

correspondendo a tais termos, ex. para a Idéia de impiedade e para a Idéia de injustiça, e não

existe nenhuma evidência que ele algum dia cessou de acreditar na existência de tais Idéias.

Nem existia qualquer razão por que ele deveria; para tais palavras entende-se não apenas

pela ausência de qualidade - visto que nem tudo que não é justo é injusto - mas também pela

presença de outra qualidade positiva.

(y) Em terceiro lugar, existem termos não negativos nem na forma, porém

definitivamente sugerindo a ausência de alguma qualidade desejável – termos como

“doença”, “mal”, ou “feio”. Esses, também, têm um significado positivo bem como negativo.

Idéias correspondentes a tais termos são referidas tanto na maturidade como nos diálogos

da juventude, e não existe razão pela qual Platão devesse cessar de reconhecê-las. Pode ser

possível para uma teoria das Idéias dispensar Idéias como a de mal e a de suas espécies, e

explicar todos os males no mundo sensível como devidos ao fato que a relação do fenomenal

com o ideal nunca é uma de instantanieidade mas sempre uma de imitação que cai perto do

original. Mas não existe nada que mostre que Platão alguma vez tomou esse caminho.

A hesitação de Sócrates , no “Parmênides”, para reconhecer Idéias de lama, cabelo

e sujeira era presumidamente devida a sugestão de desagrado ou ainda de trivialidade que

tais palavras sugerem. Mas o conselho de Parmênides à Sócrates, que representa os

melhores pensamentos de Platão, foi que ele devia descartar tais dúvidas e seguir seu

princípio geral. A mesma linha de pensamento pode ser achada no “ Sofistas”, onde ele

divide a purificação dos corpos viventes no efeito da medicina e no efeito do banho, e

acrescenta que “ a arte da dialética nunca considera se o benefício derivado da sangria é

maior ou menor que o daquele derivado da esponja, e não tem mais interesse em um do que

em outro”.

Dos vários tipos de “ termos negativos”, parece que tinha sido por volta do primeiro

que Aristóteles diz que o argumento do “ um sobre muitos”envolvia Idéias correspondendo a

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A Teoria das Idéias de Platão

137

eles, que a Academia não reconheceu; para os exemplos de Alexandre são “não homem”,

“não musical”, “não cavalo”, “não madeira”, “não branco”. Se Platão algum dia resolveu

negação convictamente, tendo analisado “A não é B” em “A é não B”, então – no princípio

geral que onde uma coisa é convictamente de muitas, uma única Idéia está sendo

confirmado – ele teria que reconhecer Idéias puramente negativas. Mas não há evidência

que ele algum dia analisou a negação. Por outro lado não existe evidência que ele algum dia

parou de reconhecer Idéias respondendo a termos gerais onde, mesmo que negativo em

forma, implica um significado positivo. Não existe então nenhuma evidência de uma

mudança de ponto de vista de sua parte.

(B)(3) Aristóteles continua para dizer que “ de acordo com o argumento que existe

um objeto para o pensamento mesmo quando a coisa quebrou, existirá Forma de coisas

quebráveis; já que temos uma imagem dessas”. A forma do argumento descrita como (p.170

2ª linha) deveria ser de algum jeito como se segue: “ Supondo que encontremos, pelo estudo

de uma particular triângulo eqüilátero sensível, que ele deve ser eqüiângulo; nós retemos

esse conhecimento mesmo depois do triângulo particular ter quebrado; logo o objeto do

nosso conhecimento deve ser outra entidade, que ainda existe, e essa entidade, que existe

independentemente dos seus encorporamentos em coisas individuais, são apenas o que

chamamos Idéias.” Aristóteles argumenta que por paridade de raciocínio, desde que

podemos lembrar uma coisa individual quebrável mesmo depois dela ter cessado de existir,

deve em princípios platônicos haver uma idéia de tal individual. A resposta de Platão seria

indubitavelmente que discutir isso é ignorar a diferença entre conhecimento de verdades

universais e memória. No passado nós estamos cientes de uma conexão eterna entre

entidades elas mesmas eternas , e por isso diferentes de qualquer coisa quebrável.

Aqui de novo não temos nenhuma base para supor que Platão algum dia mudou

sua maneira de ver; já que é certo que em nenhum momento ele teria dito que existe uma

Idéia separada correspondendo a cada coisa quebrável.

Aristóteles continua dizendo ‘Dos argumentos mais precisos, alguns reconhecem

Formas de termos relativos, dos quais nós dizemos que não há classe independente, e outros

mencionam o “terceiro homem”.’ Essa frase não continua a ilustração da declaração de

Aristóteles, de que os argumentos Platônicos quanto a existência de Idéias envolvem o

reconhecimento de Idéias que os Platonistas não reconhecem de fato. Por uma boa causa,

ele não diz ‘alguns dos argumentos montam Idéias de termos relativos, dos quais nós não

reconhecemos Idéias’; ele diz ‘os quais nós não reconhecemos como uma classe existente

separadamente’; ele não nega que os Platonistas reconheçam Idéias de termos relativos,

mas dá uma razão pela qual eles não deveriam tê-lo feito. E em (pagina 171, terceira linha)

deve significar ‘mencionar’, não ‘envolver como uma conseqüência’, e deve se referir ao

infinito argumento regresso usado em Parmênides; e aquilo não foi um argumento para

provar a existência de Idéias, mas para mostrar a dificuldade que acreditar nelas envolvia. Na

verdade, a frase que nós estamos considerando começa a linha de pensamento mais geral

que é continuada nas próximas frases, nas quais argumentos usados pelos Platonistas não

para provar a existência de Idéias, mas sobre Idéias (pág 171, linha 11) mostram ter

conseqüências que não são bem-vindas à escola.

Page 138: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

138

Idéias correspondentes a termos relativos foram reconhecidas no ideal teórico tão

cedo quanto o tempo da escrita do Phaedo. Eram, verdadeiramente, as Idéias de igualdade e

desigualdade foram tomadas como exemplos primários das Idéias. Tais Idéias recorrem com

igual proeminência na República e na Parmênides, onde elas são reconhecidas como uma

classe distinta de Idéias. Formas de semelhança e diferença (dois dos “maiores tipos”)

ocorrem no Sofistas e no Timeu. Platô, finalmente, parece nunca ter negado a existência de

Idéias puramente relativas.

Até agora, então, não foi achada nenhuma prova de que Platão, no final de sua

vida, negou o rank das Idéias para nada para que ele havia mais cedo concedido aquele rank.

Existem, porém, duas outras passagens das quais precisamos nos dar conta. Em (pág 171,

ultimo parágrafo, quarta linha) Aristóteles diz ‘nós (os Platonistas) não reconhecemos

Formas de coisas como casa ou anel’, e em (pág 171, ultimo parágrafo, sexta linha) ele

aprova Platão pelo nome por dizer (na presunção de que formas existem) que ‘existem

Formas tão numerosas quanto as coisas (tipo de coisa) que existem por natureza’.

Platão assume expressamente a existência de Formas de artefato não só em Crátlio

e na República, aonde Formas de agulha, cinzel , cama e mesa são mencionadas pelo nome,

mas também no Timeu e nas Leis ( em ambos em que, como em Cratio e República, o bom

artesão é dito trabalhar com os olhos na Forma do que ele está fazendo), e nas Sete Letras.

Artefacta não ocorre no meio do tipo das coisas, a existência de Forma a qual é discutida na

primeira parte do Parmênides, mas nós não podemos inferir disso que ,quando ele escreveu

esse diálogo, negou ou duvidou da existência de tais Formas. Não tem nada improvável na

história que Diógenes Laertes conta, que quando Diógenes o Cínico disse a Platão “Eu vejo a

mesa e a xícara, mas com certeza não mesidade ou xicaricidade”, Platão replicou “

Naturalmente, já que você tem olhos pelos quais uma xícara ou uma mesa é percebida, mas

não pelos quais mesidade e xicaricidade são vistos.”

Por outro lado, a declaração de Aristóteles obtém apoio, ou parece obter, pela

observação feito por Proclus, que “ Xenócrates gravou essa definição de Idéia como uma

satisfatória ao Fundador – “ A causa matriz das coisas que de tempos em tempos são

constituídas de acordo coma natureza – uma causa separada e divina”.” (p.172 2ºpr. 6ª

linha). E nós quase não podemos contra a declaração de Aristóteles nós tendo exemplificado

sua declaração mais geral que os platonistas reconheciam Idéias “de todas as coisas que são

ditas de universalidade”, e que Platão mesmo disse que muitas coisas individuais têm os

mesmos nomes que as Formas pela virtude da participação nelas.

Aqui, então, nós parecemos ter uma evidência definitiva da divergência da doutrina

da República, que existem Idéias correspondendo a todo nome comum; como isso pode ser

explicado? A questão foi bem discutida por Robin. Ele considera várias hipóteses. (a) Pode

ser dito que quando Platão fala de Formas de artefacta ele está falando não de forma exata e

meio humoristicamente. Em resposta deve ser destacado que Formas de artefacta são

requeridas pela doutrina geral que quando houver um nome comum existe uma Forma, e

que as formas de cama e mesa são uma parte essencial do argumento platônico contra a arte

no décimo livro da República. (b) Pode ser dito que Aristóteles interpretou erradamente

Platão dizendo que ele reconhecia apenas Formas de objetos naturais. Mas a interpretação

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A Teoria das Idéias de Platão

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de Aristóteles é apoiada pela definição de Idéia que Xenócrates descreve como aprovada

pelo Fundador. (c) Pode ser dito que Platão mudou sua opinião. Essa visão não pode ser

definitivamente rejeitada; mas nós podemos pelo menos dizer que não he evidência em

Platão, ou no que quer que nós lermos sobre ele, de tal mudança. (d) Pode ser sugerido que

apenas os seguidores de Platão que mudaram a teoria. Beckmann supôs que o nome de

Platão foi substituído pela dos “ que acreditam em Idéias” no lugar ( Met. 1070ª18) onde ele

é definitivamente nomeado nessa conexão nos textos de Aristóteles. Existe alguma evidência

para isso, mas o peso da evidência é contra isso. (e) Robin sugere que Platão rejeitou Formas

dos produtos das artes úteis, que tem a forma ditada pelo seu fim tão verdadeiramente

quanto objetos naturais tem um; e que Aristóteles interpretou errado ele como tendo

negado Formas do ultimo também. Essa sugestão concorda com a doutrina da República ,

onde a cama mesma corresponde a uma remoção da Forma como um objeto natural

corresponde, a cama pintada a duas remoções. Não existe Forma de cama pintada; a matriz a

qual o pintor olha não é uma Forma mas a cama mesma. Na República , também, toda a

classe de coisas manufaturadas (ex. os produtos das artes úteis) é colocado na mesma seção

da Linha como coisas vivas, a segunda seção; e no Sofistas o produto da arte imitativa é

considerado como sendo o produto das artes úteis como imagens oníricas, sombras , e

reflexos são das coisas vivas, e então pertenceriam a primeira e mais baixa divisão da Linha (

mesmo que não mencionada na passagem da Linha).

A pergunta se Platão alguma vez negou a existência de artefacta foi discutida de

forma completa pelo Prof. Cherniss, que chega a mesma conclusão que Robin, e defende-a

por muitas evidencias adicionais. Das passagens relacionadas com a questão, a única onde

Aristóteles menciona Platão pelo nome é aquela na qual ele diz “ Platão reconhece Formas

tantas quanto as coisas que existem por natureza”; sua outra referência pode igualmente

bem referir a alguns platonistas que foram mais longe que seu mestre por negarem a

existência de Formas de qualquer artefacta, não meramente as Formas dos produtos das

artes imitativas. A pergunta é , o que Platão queria com a palavra (p.174 L.11), “ por

natureza”; é isso o oposto a “pela arte” ou a “contrário a natureza”? Aristóteles toma isto no

primeiro sentido; mas, como nós vimos, Platão habitualmente coloca o produto das artes

úteis no mesmo nível que as coisas vivas, de base que elas correspondem as reais

necessidades da natureza humana. Discutindo os princípios nos quais a classificação deveria

ser baseada, Platão mais de uma vez insiste que nem toda subdivisão de uma classe

inventada pode levar a uma correspondência com uma subdivisão ordenada pela natureza.

No Phaedrus ele insiste que devemos “ dividir um gênero em espécies nas juntas

estabelecidas pela natureza, e não tentar quebrar qualquer parte como um cozinheiro ruim”.

No Politicus ele insiste que enquanto cada espécie é parte de um gênero, nem toda a parte é

uma espécie, e descarta a regra”deixe toda parte ter ao mesmo tempo uma Forma”, ex. não

ser uma divisão arbitrária mas uma que responde a uma real articulação das coisas na

natureza das coisas. É altamente provável que era a esse princípio , e não a nenhuma

distinção entre produtos naturais e manufaturados, que Platão estava se referindo quando

ele disse que “existem formas tantas quanto as coisas que existem por natureza”. Como

evidência positivaque ele não estava colocando os produtos de arte em geral (ex. aqueles

das úteis como aqueles das artes imitativas) num nível mais baixo da realidade do que aquele

da natureza, nós temos as palavras em seu último trabalho, “ O legislador deve defender a

Page 140: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

140

alegação da lei mesma e da arte como natural, ou não menos real que a natureza, já que elas

são produto da mente em acordo com o som racional.”

Se essa conjectura muito provável estiver certa, não há evidência real que Platão

alguma vez negou a existência de Idéias correspondendo aos objetos das artes úteis. Mas os

primeiros platonistas evidentemente fizeram isso; como Aristóteles diz distintamente que

eles não reconheciam Idéias de casa e anel.

Chegamos a conclusão , então, que não existe evidência real que exista uma Teoria

das Idéias tardia na qual Platão negou a existência de Idéias que ele tinha antes reconhecido.

Pode ser adicionado que, como nós vimos antes, a mais completa lista de tipos de Idéias

encontrada em qualquer lugar de Platão está em um de seus últimos escritos, A Sétima Letra.

Page 141: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

141

XII – OS NÚMEROS IDEAIS Tradução:

Julio César de Andrade

Rosane Abreu

A idéia geral de Aristóteles sobre a Metafísica, depois de Platão, como se segue:282

Ademais, ele afirma que, além dos sensíveis e das Formas, existem os Entes

matemáticos “intermediários” entre uns e as outras que diferem dos sensíveis, por serem

imóveis e eternos, e das Formas, por existirem muitos semelhantes, enquanto cada Forma é

única e individual.

Portanto, posto que as Formas são causas das outras coisas, Platão considerou os

elementos constitutivos das Formas como os elementos de todos os seres. Como elemento

material das Formas ele punha o grande e o pequeno, e como sua causa formal o Um: de fato,

considerava que as formas <e> os números derivassem por participação do grande e do

pequeno no Um.283

Quanto à afirmação de que o um é substância e não algo diferente daquilo a que se

predica, Platão se aproxima muito dos pitagóricos, considera os números como causa da

substância de outras coisas. Entretanto, é peculiar a Platão o fato de ter posto no lugar do

ilimitado entendido como unidade, uma díade, e o fato de ter concebido o ilimitado como

derivado do grande e do pequeno. Platão, além disso, situa os Números fora dos sensíveis,

enquanto os pitagóricos sustentam que os Números são as próprias coisas e não afirmam os

Entes matemáticos como intermediários entre aqueles e estas.

O fato de ter posto o Um e os Números fora das coisas, à diferença dos pitagóricos, e

também o ter introduzido as Formas foram as conseqüências da investigação fundada nas

puras noções, que é própria de Platão, pois os predecessores não conheciam a dialética. Mas,

o ter posto a díade como natureza oposta ao Um tinha vista derivar facilmente dela, como de

uma matriz284, todos os números, exceto os primeiros. Entretanto, ocorreu exatamente o

282

987b14-988a15 (N.T esta passagem em português foi retirada de Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2002. [tradução Marcelo Perine]) 283

Em 987b22 touj apiqmouj dificilmente pode ser predicado ou aposicionado para ta\

ei\ ( dh. Não é certo que duas frases podem ser omitidas. Tou\ j a) piqmou/ j é surpreendente,

porque Aristóteles não disse nada sobre a identificação de Idéias com números de Platão, mas sim, para Aristóteles Platão os ter identificado era um problema comum de conhecimento que não notou a omissão dele para afirmar isto aqui. 284

e) kmagei/ ou. A palavra não é usada em outro lugar por Aristóteles. Alexandre (57.6) significou

isto como molde(hollow mould), alguns pesquisadores modernos seguem esta denominação. Em Platão as vezes isto significa uma matriz, outras vezes uma cópia entendida como um material, ainda outras vezes como um padrão ou um arquétipo. Aristóteles trata claramente o grande e o pequeno como o elemento quase-material, o Um como elemento formal, na formação dos números, então

Page 142: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

142

contrário, pois essa doutrina não é razoável. Com efeito, ele derivam muitas coisas da matéria,

enquanto Forma deveria derivar uma única coisa. Mas é claro que de uma única matéria se

extrai, por exemplo, uma única mesa, enquanto o artesão que aplica a forma, mesmo sendo

um só, produz muitas mesas. Tem-se aqui a mesma relação que se tem entre macho e fêmea:

esta é fecundada por uma única cópula, enquanto o macho pode fecundar muitas fêmeas.

Estas são as imagens ilustrativas daqueles princípios. Platão, portanto, resolveu desse modo a

questão que estamos investigando.

Do que dissemos, fica claro que ele recorreu a apenas duas causas: a formal e a

material. De fato, as Idéias são causas formais das outras coisas, e o Um é causa formal das

Idéias. E à pergunta sobre qual é a matéria que tem a função de substrato do qual se predicam

as Idéias – no âmbito dos sensíveis-, e do qual se predica o Um – no âmbito das Idéias -, ele

responde que é a díade, isto é, o grande e o pequeno.

Platão, ademais, atribuiu a causa do bem ao primeiro de seus elementos e a causa do

mal ao outro.

Com a primeira declaração feita aqui, que Platão tratou os objetos matemáticos (isto

é, números e figuras espaciais) como intermediário entre Formas e coisas sensíveis, nós

tratamos na nossa investigação da República285, e é apenas necessário repetir que esta é uma

doutrina que nos diálogos de Platão, parece de tempo em tempo, estar prestes a ser afirmada,

mas nunca é absolutamente declarada. Ele estaria disposto a pensar que era provavelmente o

desenvolvimento mais antigo da sua teoria da metafísica, fora do alcance dos diálogos; mas

isto é posto em dúvida pela sua ausência na seção metafísica da Carta Sétima286.

As outras características mencionadas por Aristóteles podem ser resumidas como se segue:

(1) Platão diz que os elementos das Formas são elementos de todas as coisas.

(2) Platão diz que “o grande e o pequeno” são os elementos materiais, o Um é o elemento

essencial ou formal, e nas Formas, os números (identificados por Aristóteles com as Formas)

são produzidos pela participação do grande e do pequeno no Um.

(3) Enquanto trata do Um como substância, não como uma atribuição, e trata os números

como causas formais de coisas sensíveis, isto parece com a visão pitagórica, mas o tratamento

do indeterminado como uma dualidade composta do grande e do pequeno é novo ponto.

(4) Esta análise do indeterminado é devido ao fato que os números (exceto os primeiros)

podem ser apropriadamente gerados por uma díade como por uma matriz.

(5) As Formas são produzidas na causa formal das coisas sensíveis e o Um na causa formal das

Formas; a causa material de ambas, Formas e coisas sensíveis, é a díade do grande e do

pequeno.

e) kmagei= on deve significar uma matriz, como se vê no Tht. 191c9, 196a3 e provavelmente em Tim.

50c2, onde Platão usa isto para ilustrar a sua visão sobre espaço. 285

pp. 58-65. 286

Cf. p. 141.

Page 143: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

143

(6) A causa formal é causa do bem e a causa material é causa do mal no mundo.

Os problemas que devemos considerar são os seguintes: (A) Quais são os números

sobre os quais Aristóteles está falado? (B) Quais são os princípios de que eles são derivados?

(C) Como eles são gerados? (D) Qual é o status deles relativos ao Mundo das Idéias?

(A) Geralmente, a resposta para esta questão é duvidosa. Os números, a geração que Platão

está considerando, são Formas, ambos distinguidos por Platão de coisas sensíveis e de

números que, de acordo com ele, são objetos da Aritmética. Eles têm características

universais, coisas semelhantes de quando nos referimos a palavras terminadas em –dade.

A existência de Idéias como unidade, dualidade, etc, está implicada na doutrina que há

uma Idéia respondendo por todos nomes em comum287, isto é explicitamente sustentado no

Fédon288, onde Platão diz que dois está compartilhando uma Idéia de dualidade, e todo um

com a Idéia de unidade. No Hípias Maior289 Sócrates chama atenção para a diferença entre

muitas Idéias, como o que caracteriza cada uma e todas as Idéias de um número das coisas

individuais, e as Idéias de números que caracterizam um grupo, mas não destes membros

individuais. Estes números ideais foram distinguidos, de números sensíveis (isto é, grupos

numeráveis) reconhecidos como “o múltiplo”, e dos números abstratos “dos filósofos” (isto é,

dos matemáticos)290.

Para os gregos os números conotam pluralidade, logo o 1 não é um número291, mas o

princípio primeiro de número292, que o número começa; portanto, Platão assume a existência

dele não estabelecida para derivar.

A série de números não tem limite na ascendência, mas há uma boa evidência para

mostrar que Platão indicou, como os pitagóricos tinham feito antes dele, uma posição

prerrogativa dos números de 2 a 10. Nós deveríamos saber da Metafísica apenas o que alguns

membros da Academia293 sabiam, mas na Física 206b32, Aristóteles diz que Platão ‘fez o

número se estender até o número 10’. Nós, entretanto, não devemos tomar isto tão

literalmente. Platão não pode ter suposto que um grupo de onze membros não é caracterizado

pela “onzidade”, assim como um grupo de dez pela “dezidade”. Mas ele viu que deveria parar

sua “geração” de números em algum lugar, ele, naturalmente, parou no limite sugerido pelo

sistema grego de numeração, que é o simplesmente decimal. Ele pode ter pensado que a

produção dele era mais justificada, pelo fato que dentro da série de 2 a 10 já há exemplos de

três tipos de números em que os gregos dividiam: o número 2 e suas potências; números

ímpares; e o produto de um número ímpar multiplicado por 2 ou a potência de 2.294 Então, ele

pode ter pensado que se ele pudesse gerar um número maior que 10 ele poderia gerar todos

os números.

287

Rep. 596a6-8 288

101b9-c9 289

300d5-302b3 290

Phil. 56d4-57a2 291

Met. 1088a6 292

Met. 1016b18, &c. 293

1073a20, 1084a12-b2 294

1084a3-7, Philolaus (?) fr.5

Page 144: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

144

Existe mais uma consideração que pode ter levado Platão ao final da sua “geração” de

números com o número 10. O 1 era sem dúvidas, para ele, o princípio formal dos números

ideais, e de acordo com uma passagem em que (isto será discutido mais tarde295) ele é

referido296, nós lemos que o 2 era o princípio formal da linha, o 3 do plano, o 4 do sólido. E em

uma outra passagem, que é provável, pelo menos, que ele seja referido297, não apenas é o

indicado, mas também que o 1 era princípio formal da razão, o 2 era da ciência, o 3 da opinião

e o 4 da sensação. Ele poderia, portanto, contar ambas para a estrutura formal do Mundo

Sensível e para o intelecto sem ultrapassar o sagrado tetraktn\ j dos pitagóricos,

1+2+3+4=10.

Para os gregos contemporâneos de Platão, o termo “número” somente era aplicado

aos números naturais. Eles não têm o zero nem os números negativos e eles não aplicam o

nome “número” para frações ou para os irracionais298. Então eram os inteiros de 2 a 10 que

Platão estabeleceu para derivar.

Aristóteles atribui a Platão, pelo nome, a visão que os números são ou(

snmblhtoi/ 299 e ataca o ponto de vista dele perguntando se, então, as unidades em cada

número são também a( su/ mblvtoj ou não, e chamando atenção para ambas as

alternativas300. O significado de sumblvto/ j em Aristóteles é “comparável”, e na sua visão

duas coisas são comparáveis, se e somente se, elas são múltiplas de uma unidade simples. Na

sua própria visão301, o número 2 contém duas unidades e o número 3 tem três unidades,

então, estes dois números são, obviamente, comparáveis.

Esta crítica é um completo erro. Quando Platão descreveu os números como

incomparáveis (nós pegamos isto de Aristóteles), por número 2 ele quer dizer dualidade, por

número 3 tríade; e isto não é imaginação, mas a simples verdade, dualidade não é separado de

tríade. Um grupo com três membros tem como uma parte de suas partes um grupo de dois

membros, mas Platão não está falando de grupos, e sim de universais, e o que ele diz de

universais é evidentemente verdade. A visão, então, que números são incomparáveis nada

tem a ver com as visões especiais que Platão desenvolveu mais tarde sobre geração de série de

números ou com a redução de Idéias a números. Esta é uma conseqüência necessária de

reconhecimento da dualidade, tríade, etc, como Formas, para serem distinguidas pelo grupo

que são exemplificadas estas Formas. Isto já é encontrado no Fédon302:

E não temerias igualmente dizer - continuou Sócrates- que o dez é maior que o oito

porque o ultrapassa de dois e considerar isso como causa, ao invés de dizer que é pela

quantidade e por causa da quantidade? E serias capaz de dizer, da mesma forma, que um

objeto do tamanho de dois côncavos é maior do que outro de um côncavo pela metade, em

295

pp. 208-9 296

1090b20-4 297

De Ani.404b18-27; cf.pp. 214-5 298

A evidencia para estas limitações é afirmada em Van der Wielen, I.P. 13-17. 299

1083a34 300

1080b37-1083a17. 301

1080a30-3, 1081b12-17. 302

101b4-c7 (N.T esta passagem em português foi retirada de Diálogos/Platão, São Paulo: Nova Cultural, 1987. [trad. Jorge Paleikat e João Cruz Souza]).

Page 145: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

145

lugar de dizer que é pela grandeza? Pois, sem dúvida, isso não é menos estapafúrdio! –

Efetivamente. – Não te envergonharias de dizer que, acrescentando-se a unidade à unidade,

esse acréscimo, e dividindo-se a unidade, essa separação, são ambos causas da formação do

dois? Não protestarias aos gritos que não compreendes como cada coisa se possa formar por

outro modo que não seja pela participação na própria substância em que essa coisa toma

parte? Não dirias, neste caso, que não encontras outra causa de formar-se o dois a não ser a

participação na idéia do dois, e que deve participar dela o que vem a tornar-se dois, e também

que deve participar da idéia de unidade o que se torna unidade?

Isto pode ser notado, embora Aristóteles não tendo mencionado este ponto, alguma

coisa exatamente correspondente a isto é uma verdade das Idéias geométricas. Estes são

também incomparáveis, de um certo modo. Um quadrado em particular pode ser maior que

um triângulo em particular, mas “quadridade” não é maior que a “triangulidade”. É uma

unidade indivisível, como todas as Idéias descritas no Filebo303.

Na Metafísica 1080a 17, Aristóteles diz que uma visão que pode ser assegurada sobre

as séries de números é que dentro delas há uma distinção de anterior e posterior. Ele

evidencia isto com uma frase “cada número é formalmente diferente um do outro”, e em

1080b11 ele diz que alguns platônicos (em outra passagem deixa claro que Platão está neste

grupo) separaram um número ideal de um número matemático, como se cada um tivesse esta

característica. Na verdade, Platão reconhece que embora um grupo particular com dois

membros difere de um grupo com três membros somente em tamanho e não em natureza, os

números ideais são séries de diferentes naturezas que mostra o crescimento do grau de

complexidade que nós passamos da dualidade para a tríade e assim por diante. Este

reconhecimento é totalmente independente da geração de números vindos do Um e do

grande e do pequeno. Este reconhecimento é do fato claro que 2 é definível como o sucessor

do 1, e 3 como sucessor do 2 em uma série de números naturais.

Na Ética a Nicômaco, Aristóteles diz que “aqueles que introduziram a doutrina da

Idéias (Platão está incluído) eles não reconheceram as Idéias de coisa em que há a distinção

entre anterior e posterior, pela razão que eles não podiam montar uma Idéia de números”.

Isto normalmente era interpretado significando que eles não reconheciam Idéias de números

separados(separate numbers). Mas contestaria tudo que aprendemos na Metafísica sobre a

distinção entre números idéias e matemáticos de Platão. Aristóteles diz que os platônicos não

reconheceram uma Idéia de números, uma Idéia de número em geral. Esta é uma afirmação

surpreendente. Aristóteles assegura uma coisa muito parecida para o princípio que todas as

coisas têm uma ordem seqüencial que não tem um universal comum. Ele expressa isto com

modificações, que não precisam se referir a nós, em quatro passagens: Metafísica 999a6-10,

no E.E 1218a1-10, no De Anima 414b20-33 e na Política 1275a34-b5. Na primeira destas

passagens ele deve ter falado apenas dialeticamente (todo o livro B da Metafísica é dialético).

Na segunda ele está falando como um ainda não convertido no platonismo, mas os dois

últimos parecem expressar sua visão amadurecida. A noção fundamental nelas parece ser que

uma natureza geral verdadeiramente deve ser uma que expressa igualdade, embora

diferentemente, na diversidade das espécies isto não é verdade nem na natureza da alma nem

303

1096a17

Page 146: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

146

da sua constituição. Do mesmo modo, nós podemos supor que alguns platônicos (não

sabemos se Platão estava entre estes) asseguravam que número ou pluralidade não eram uma

Idéia autêntica, porque os números sucessivos têm pluralidade apenas desigualmente304.

(B) Agora nós voltamos para os primeiros princípios que Platão derivou os números

ideais, o Um e o grande e o pequeno. Os entes não são “gerados” nem por números sensíveis

(grupos de dois, três, etc) nem por números matemáticos (as entidades que os matemáticos

falam quando dizem 2+3=5, sem considerar qualquer grupo particular de duas ou três coisas),

mas sim de números ideais (isto é, dualidade, tríade, etc). Platão não fez a tentativa para gerar

a unidade, mas ele acreditou na existência da unidade, não menos que na dualidade ou na

tríade, o Um que ele propôs como princípio de geração era simplesmente a unidade, a Idéia do

Um.

Taylor fez uma ingênua sugestão305 ao considerar o “grande e o pequeno”, que a frase

aponta para um método, que o saber dos gregos já possibilita no tempo de Platão306, chegar

por aproximações ao valor de √2, por aproximação deste valor alternadamente do lado do tão

pequeno ou do tão grande. Eles partem de uma coluna de “lado-raiz” e uma coluna

correspondente de “diagonal-raiz”. Os primeiros números em cada coluna era o 1. Cada

subseqüente número-lado era formado por uma adição do número anterior número-lado

correspondente ao número-diagonal, cada número diagonal subseqüente era formado pela

adição do número-diagonal anterior duas vezes o número-lado correspondente. Então temos

Números-lado Números-diagonal

1 1

2 3

5 7

12 17

29 41

70 99

... ...

Isto pode ser facilmente verificado com 1/1, 3/2, 7/5, 17/12, 41/29, 99/70, eles são,

sucessivamente, valores aproximados perto de √2, alternadamente menor ou maior que ele.

304

Nos assuntos tratados nas últimas quatro páginas, e muitos outros aspectos da doutrina platônica, uma “inundação de luz” foi projetada pelo artigo de Cook Wilson, On the Platonic Doutrine of the

a) s/ umblhtoi a) piqmoi/ , no Class rev. xviii (1904), 247-60. 305

Em Mind xxxv (1926), 419-40 e xxxvi (1927), 12-33, reimpresso em P.S. 91-150. 306

Embora os primeiros pensadores mencionaram isto está em Theo Smyrnacus (fl.c. A .D. 115-40) (ed. Hiller, pp. 42.10-45.8).

Page 147: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

147

Taylor pensou que Platão sabia deste método e este método307 sugestionou a ele o uso da

frase “o grande e o pequeno” para o princípio material na geração dos números inteiros.

Entretanto, Taylor errou ao mostrar que os números do lado e da diagonal não têm nada a ver

com o grande e o pequeno. Não há uma relação real entre a valoração dos números irracionais

e da derivação dos inteiros, exceto uma que é fatal para a interpretação de Taylor, que é que a

valoração dos números irracionais pressupõe a existência dos inteiros, e nenhum dos antigos

escreveu sobre o grande e o pequeno sugerindo alguma conexão, nem descreveu o método de

valoração dos números irracionais usando a frase “o grande e o pequeno”. Quando Taylor veio

para a geração atual dos inteiros, isto somente considerando a geração dos números primos,

ele usou o conjunto da aproximação para cima ou para baixo. Por conseguinte, sua explicação

do “grande e do pequeno” não pode ser aceita308, mas ele diz o quanto é verdade e

importante os méritos e deméritos da atual derivação dos inteiros de Platão e a critica de

Aristóteles a ela.

Aristóteles, às vezes, fala de “grande e pequeno”, mas usa com mais freqüência “o

grande e o pequeno”. A diferença é importante, pois na primeira frase sugere dois princípios,

já na primeira sugere um princípio que tem duas características. Embora ele use às vezes a

segunda alternativa309, não há dúvida que a primeira é a que representa o significado dado por

Platão. O melhor indício para isto foi dado por Aristóteles na Física 206b27, quando ele diz:

“Platão fez o duplo indeterminado, porque eles supõem exceder todos os limites e seguir ad

infinitum na direção do aumento e da redução. Uma afirmação semelhante é feita pelo

platonistas da primeira geração, Hermodorus citou o comentário de Simplício na Física310. Mas

nós devemos olhar mesmo para Platão. Nós achamos no Filebo311 a distinção entre limitado e

ilimitado, e nós achamos o ilimitado descrito nas frases “mais e menos” e “maior e menor”312.

Nós encontramos Platão dizendo “todas as coisas agora no mundo”313 têm um caráter delas

próprias (por exemplo, estar em uma temperatura314) que podem existir em algum grau ou em

um grau definido de caráter. Lá não há referências aos números. Nós devemos supor que ele

veio igualmente para distinguir a mínima pluralidade dos graus definidos de pluralidade e que

“grande e pequeno” são apenas outros nomes para o que um dos seus seguidores chamava315

(talvez com mais satisfação), plh= foj, mínima pluralidade. Agora nós podemos ver a

justificação para a declaração de Aristóteles316 que Platão pensou que os elementos dos

números eram também elementos de todas as outras coisas. Nos seus estudos sobre os

números, Platão encontrou os números para pressupor os mesmos dois elementos- limite (que

ele agora chama o Um) e o ilimitado (chamado grande e pequeno)- que ele tinha analisado no

Filebo, os fenômenos sensíveis.

307

Ele certamente sabia que 7/5 é uma aproximação do valor de 2 (Rep. 546c4-5), e Heath (Hist. Of Gk. Math. I. 93) pensa que o método era pitagórico. 308

Discuti isto por bastante tempo em Ross and Forbes, Theophrastus’ Metaphysica, 50-4. 309

1083b23-8, 1087b12-16, Phys. 203a-15, 206b27-8. 310

247.30-248.18. 311

23c4-26c2 312

24a9, c5, 25b9 313

23c4 314

24a7. 315

Provavelmente Speusippus. 316

Met. 987b18-20.

Page 148: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

148

Aqui se tem uma discussão sobre uma questão não tão importante, se Platão usou a

frase “a díade indefinida” como um nome para o princípio material na geração dos números.

Em lugar nenhum Aristóteles atribui explicitamente esta frase a Platão como ele faz com

“grande e pequeno” 317. Mas ele usa uma frase complexa “aqueles que fizeram a díade um

composto indefinido de grande e pequeno”318, que pelo menos sugere que Platão usou ambas

as frases e em outra passagem ele aponta para a mesma direção319. Teofrasto, Hermodorus,

Alexandre, Simplício, Siriano e Asclépio usam a frase livremente na descrição da doutrina de

Platão. “A díade indefinida” é apenas um nome para o ilimitado como sendo capaz de ser

indefinidamente grande e indefinidamente pequeno320.

A afirmação mais detalhada sobre a linha de pensamento que o Um e a díade

indefinida surgiram como o princípio supremo de que os números, Idéias, pontos, linhas,

planos, figuras tridimensionais e corpos foram derivados sucessivamente é dada por Sexto

Empírico321. Todas as coisas (ta\ o)/nta) são dividas em três grupos: (1) absolutas, como

homem, cavalo, planta, terra, água, ar, fogo; (2) contrárias, como bom e mau, justo e injusto,

vantajoso e desvantajoso, sagrado e profano, devoto e impiedoso, em movimento e em

repouso, saúde e doença, dor e falta de dor, vida e morte; (3) relativas, como certo e errado,

para cima e para baixo, dobro e metade, maior e menor, mais e menos, sustenido e bemol (no

tom). O segundo era diferenciado do terceiro por duas características: (a) a origem de um dos

dois contrários em detrimento de um outro, enquanto a destruição de um dos dois relativos é

a destruição de outro; (b) sempre há um significado entre relativos, mas nunca entre

contrários. O Um, isto é, a unidade, era tratado como a natureza geral de todas as coisas no

primeiro grupo, ou seja, sendo uma simples coisa que era, era o caráter comum de toda coisa

auto-subsistente. O igual e o desigual eram gêneros onde todos os contrários eram

classificados, por exemplo, o repouso é classificado como igual porque não admite diferença

de grau, já o movimento é classificado como desigual porque admite tais diferenças. Relativos

são classificados pelo gênero de excesso e falta. Mas enquanto o igual e o desigual formam

juntos o gênero sob o qual todos os contrários são classificados, o igual se classifica como o

gênero do Um (porque a igualdade do Um consigo mesma é o caso primário de igualdade), e o

desigual classifica sob o título de excesso e falta. Finalmente, excesso e falta são classificados

como díade indefinida, porque excesso e falta envolvem duas coisas de que uma excede a

outra. Então, o Um e a díade indefinida emergem (a)ne/kufan)322 como princípio supremo de

todas as coisas. O esquema é precisamente representado por Wilpert323 como se segue:

317

987b20, 26, 988a13, 26. 318

1088a15 319

987b25-7, 33, 988a13, 1083b23-36, 1090b52- 1091a5. 320

Cf. Robin, T.p.I.N. 641-54 e minha nota na Met, 1081a14. 321

Adv. Math. X.258-80. 322

Adv. Math. x. 276 323

Z. a .F.I. 191.

Page 149: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

149

A afirmação de Sexto Empírico é vaga como a do autor do esquema. No começo da

passagem ele fala de Platão, mas depois ele fala de Pitágoras, os pitagóricos, e “das crianças

dos pitagóricos”. Em duas considerações que ele apresenta que o esquema é não platônico.

Ele fala da díade indefinida como se ela derivasse do Um por adição do Um nele mesmo324,

enquanto a afirmação de Aristóteles torna suficientemente claro que a díade indefinida era um

princípio independente. Ele se refere ao Um como derivado da “unidade primeira”, enquanto a

afirmação de Aristóteles deixa claro que para Platão não havia esta distinção, o Um era o

princípio primeiro e não havia sugestão de um derivado do Um. Mas há duas evidências que

mostram que o esquema que parte de Sexto é, em geral, platônico. A afirmação dele aparece

em uma forma abreviada em uma passagem325 em que Simplício cita a afirmação da doutrina

de Platão, dada por um platonista da primeira geração, Hermodorus. E uma parte dela aparece

na afirmação do Um e do grande e do pequeno de Alexandre326, na qual ele afirma derivar do

De Bono327 de Aristóteles, isto é, da declaração de Aristóteles sobre as leituras do Bem de

Platão. O fato da teoria não ser pitagórica é confirmada porque Aristóteles diz328 distintamente

que a substituição do grande e do pequeno para o indefinido era um dos pontos que

distinguiam a visão de Platão da dos pitagóricos329. Parece claro que, em geral, Sexto está

descrevendo a linha de pensamento de Platão, a sua referência aos pitagóricos é somente um

324

Adv. Math. x. 261. 325

Phys. 247.30-248.18. 326

Met. 56.13-18. 327

Ibid. 33-5. 328

987b25-7. 329

Há interessantes pontos de contato entre afirmação de Sexto e as Categorias, que considera as questões, que de as categorias admite grau (3b33-4a9, 6a19-25, b20-6, 10b26-11a14), e se a existência de um dos dois correlativos envolve a existência do outro. A distinção entre relativos e contrários e a questão que os contrários admitem de um significado, reaparece na última parte de Categorias (o pós-predicamentos), em 11b32-12a25. Isto confirma a visão que a linha de pensamento relatada por Sexto é Acadêmica, não pitagórica. O ponto é mostrado por C.J. de Vogel em Mnemosyne, ii (1949), 205-16.

Page 150: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

150

exemplo de uma tendência comum nos primeiros escritores gregos que queriam achar o

pitagorismo em todos os lugares330.

(C) Agora nós devemos examinar o método da geração dos números. Há uma

passagem em Platão que oferece uma “geração” dos números. Em uma “segunda hipótese” de

Parmênides, em que as razões para as conclusões positivas que podem ser deduzidas da

suposição de que há o Um, ele argumenta assim331:

Se dentre eles escolhermos, como queiras, seja a essência e o diferente, seja a

essência e o um, seja o um e o diferente, não é verdade que em cada escolha escolhemos duas

coisas que é correto chamar de ambos? –Como assim? –Do seguinte modo. É possível dizer

essência? –É. –E dizer um? –Também isso. –Então, não foi dito casa um dos dois? –Sim. –Mas...

e quando digo essência e um, não é verdade que digo ambos? –Perfeitamente. –E também se

digo essência e diferente, ou um e diferente, também assim, em cada caso, de todas as

maneiras, digo ambos, não é verdade? –Sim. –O que for corretamente chamado ambos, é

possível ser ambos, mas não ser dois? –Não é possível. –Mas o que for dois, há algum meio de

cada um dos dois não ser um? –Nenhum <meio>. –Logo, já que precisamente cada grupo

desses resultar ser dois <elementos> juntos, cada <elemento> também seria um. –Parece. –

Mas se cada um deles é um, juntando-se um <elemento> qualquer a qualquer par, o todo não

se torna três? –Sim. –Mas, três não é ímpar, e dois é par? –Como não? –Pois bem. Havendo

dois, não é necessário também haver duas vezes, e havendo três, três vezes, se realmente é

próprio do dois ser duas vezes um e do três ser três vezes o um? –É necessário. –Mas havendo

dois e duas vezes, não é necessário haver duas vezes dois? E havendo três e três vezes, não é

por sua vez necessário haver três vezes três? –Como não? –Pois bem. Havendo três e havendo

duas vezes, e havendo dois e três vezes, não é necessário haver tanto duas vezes três quanto

três vezes dois? –Absolutamente necessário. –Logo, haveria pares vezes pares, e ímpares vezes

ímpares, e pares vezes ímpares, e ímpares vezes pares. –É assim. –Se então as coisas se

passam assim, crês sobrar algum número que não seja de modo necessário? –De maneira

alguma. –Logo, se um é, é necessário que também haja número.

Esta prova é tão superficial desde que ela não forneça provisão aos primeiros

números, exceto 2 e 3. Se nós estivermos certos em nossa visão da “segunda parte” do

Parmênides o argumento é um exercício dialético em vez de uma exposição de doutrina, e em

qualquer caso de “geração” de números oferecida aqui não parece com a que Aristóteles nos

informa. Ela não faz uso dos princípios perguntando para o Um e o grande e o pequeno, mas

produz os números pelo processo normal de adição e multiplicação.

Aristóteles tentou mostrar332 que a geração descrita para os números-Idéias eram uma

geração a tempo, mas esta interpretação pode ser posta de lado e é provavelmente uma mera

dialética da parte dele. O que Platão ofereceu foi uma dedução lógica dos números,

condicionada em termos temporais ‘para ajudar a contemplação da natureza delas’333. Em

330

Cf. G.C. Field, p.C. 175-6. 331

143a4-144a5. (N.T esta passagem em português foi retirada de Parmênides/ Platão, texto estabelicido e anotado por John Burnet; tradução, apresentação e notas de Maura Iglésias e Fernando Rodrigues- Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003.) 332

1091a23-9. 333

1091a28-9.

Page 151: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

151

outras palavras, ele estava distinguindo dois elementos no ser de todo número ideal-

chamando atenção que a dualidade, por exemplo, um do grupo sendo um grupo de dois-

envolvido (a) uma pluralidade e (b) uma pluralidade definida. A implicação destes dois

elementos deste ser ele descreveu metaforicamente com a geração do grande e do pequeno,

que fez a pluralidade, e o Um, que fez a pluralidade particular.

Aristóteles diz334 que a razão de Platão para fazer o segundo princípio de geração, uma

díade, foi que os números e)/cw tw=n prw/twn poderiam ser, apropriadamente, gerados fora

da díade como fora da matriz. Esta consideração é difícil de interpretar e a dificuldade é que

entendendo o que significa oi/ prw=toi a)rifmoi/. Aristóteles usa freqüentemente a frase para

designar o ideal de Platão como oposição aos números matemáticos, mas isto não pode ser,

claramente, o significado aqui, onde é preciso a geração dos números ideais, que estão em

questão. Taylor sugeriu335 que ‘exceto os primeiros números’, isto quer dizer, ‘exceto 1 e 2’, e

Becker336 assegurou que com ou sem a inserção do kai/ antes do e)/cw as palavras significam

‘depois dos primeiros números’ (1 e 2), mas estas interpretações estão abertas para objeção

que para os gregos 1 não era um número, e sim o ‘o princípio de número’337, e a interpretação

de Taylor está aberta para mais objeções, que até agora para ser alguma coisa que não pode

ser apropriadamente gerada dos primeiros princípios, o número 2 oferece o primeiro e mais

óbvio exemplo de tal derivação338.

Toeplitz339 acha que o produto do Um e do grande e do pequeno não eram números,

mas razões e que o significado é que as razões, exceto aquelas que eram entre primeiros

números relativos a um outro, poderiam ser apropriadamente gerados das razões entre

números que eram primeiros relativos a um outro, por exemplo, as razões 2:4, 3:6, 4:8 de

proporções 1:2. Mas ambos, Platão e Aristóteles, têm a perfeita palavra lo/goj para razão e

não há motivo para supor que eles poderiam ter usado a)rifmo/j neste sentido340.

Excluído o significado ‘ideal’ a única outra interpretação natural de prw=toi aqui é

‘primo’, é a palavra estabelecida para ‘primo’ na aritmética grega. Mas os números primos não

são os únicos que não podem, na visão de Aristóteles, serem apropriadamente derivados do

Um e do grande e do pequeno, porque, para ele, o grande e o pequeno são essencialmente

um duplicador, somente o 2 e suas potências podem ser apropriadamente derivados disto341.

Os números que não podem ser derivados se encaixam em três grupos: (a) números ímpares

primos, (b) números ímpares não-primos e (c) múltiplos de um número ímpar e de um par. Isto

foi proposto para emendar a passagem perittw=n ‘ímpar’, ou para interpretar prw/twn como

sendo ‘ímpar’, assim para incluir casos parecidos com o (a) e (b). A omissão de algumas

referências para (c) não seriam fatais para estas sugestões. O significado de Aristóteles pode

334

987b33-988a1. 335

Em Mind, xxxvi (1927), 22-3 (=P.S. 135-6). 336

O. Becker, em Quellen u. Studien zur Geschichte der Mathematik, Astronomie u. Physyk, Abt. B, i. 4 (1931), 483 n. 337

Cf. 1088a6-8. 338

1081a23-5, 1083b23-5, 1091a9-12. 339

O. Toeplitz, em Quellen u. Studien, &c. Abt. B, i. I (1929), 22. 340

Platão também tem para isto a frase pro\j a)pifmo\j h)/ me/tron pro/j me/tron (Phil. 25 a 8), que é inconsistente com o uso de a)pifmo/j sozinho no mesmo sentido. 341

1091a9-12

Page 152: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

152

ser que, se uma vez os números ímpares poderiam ser gerados, a geração dos números pares

deles não ofereceriam nenhuma nova dificuldade. Mas não há evidência externa para a

correção, e não há paralelo na literatura grega para esta interpretação. Então, nós estamos

nos dirigindo na suposição que Aristóteles quis dizer ‘exceto os primos’.

Neste caso Aristóteles omitiu os casos (b) e (c). Até esta omissão não é muito séria, o

significado dela pode ser que se Platão podia ter derivado os números primos, assim como o 2

e suas potências, dos princípios deles, os números compostos não teriam oferecido nenhuma

dificuldade; 6 poderia ser gerado do 3 e 10 do 5, assim como 2 já teria sido gerado pelo 1, e o 9

pelo 3 como o 3 teria sido gerado do 1.

Pode haver objeção para esta interpretação de prw/twn que 2, que Aristóteles,

repetidamente, descreve como o primeiro número gerado por Platão, é mesmo um número

primo. Mas Van der Wielen342 está provavelmente certo em sugerir que Platão seguiu uma

classificação pitagórica, na qual os números primos eram uma subdivisão dos números

ímpares e não era um número primo343.

A geração do número 2 é descrita por Aristóteles como se segue:344

1081a3, “De fato, as unidades compreendidas na primeira díade são produzidas

simultaneamente, quer sejam geradas, como disse o primeiro defensor da doutrina, por um

processo de equalização da díade, quer sejam geradas de outro modo.”

1083b23, “Toda unidade derivada de um processo de equalização do grande e do

pequeno, ou uma unidade deriva do pequeno e a outra do grande?”

Ibid. 30, “Se cada uma das unidades da díade deriva da equalização do grande e do

pequeno...”

Ibid. 35, “A díade indefinida, com efeito, tem função duplicadora.”

1091a10, “De fato, eles [o grande e o pequeno] não podem dar origem ao número

senão pela duplicação do um.”

Ibid. 24, “Alguns [filósofos] derivam o primeiro número par de um processo de

equalização do grande e do pequeno.”

A passagem da díade para a tétrade é descrita, então:

1081b21, “Mas os platônicos sustentam que a tétrade gera-se da primeira díade e da

díade indefinida; mas neste caso existirão outras duas díades além da díade-em-si.”

1082a13, “De fato, os platônicos sustentam que a díade indefinida, recebendo345 a

díade definida, produz duas díades, enquanto a díade indefinida produz duplica o que recebe.”

342

I.P. 131. 343

Nichomachus, Introductio Arithmetica, t.ii.2. 344

N.T: Trechos que seguem da Metafísica foram retirados de Aristóteles, Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2002. [tradução Marcelo Perine]

Page 153: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

153

Ibid. 33, “As unidades que se encontram na primeira díade produzem as quatro que se

encontram na tétrade.”

A passagem do 4 para 8 é descrita assim:

1082a28, “De fato, mesmo admitindo que as díades compreendidas na tétrade sejam

simultâneas, não obstante isso elas devem ser anteriores às díades contidas no oito, e como a

díade primeira gerou essas díades, assim elas geraram as tétrades contidas no oito-em-si.”

Aristóteles tem muito menos a dizer sobre a geração de números que não o 2 e suas

potências. O que ele diz é como segue:

1o83b28, ‘Como é que se dá com as unidades dentro do 3 ele mesmo? Uma delas é

uma unidade ímpar. Mas talvez seja por esta razão que eles dão ao 1 ele mesmo o lugar do

meio dentre os números ímpares.’

1084a36, ‘Este é o motivo pelo qual eles identificam o ímpar/singularidade com 1;

porque se a imparidade dependesse do número 3, como 5 poderia ser ímpar?’346

1091a23, ‘Estes pensadores dizem que não há geração dos números ímpares. ’

Robin oferece duas considerações alternativas. Em sua primeira, provisória,

consideração347 ele supõe que dois processos tenham sido aplicados – duplicação e a adição de

1. Entretanto em sua consideração subseqüente da questão348, ele substitui o segundo

processo (adição) por um de divisão de diferença; ele supõe que em certos casos um

movimento ascendente originado em um número menor encontra-se com um movimento

descendente originado em um número maior, e ambos os movimentos detêm-se

incompletamente e um número intermediário se produz. Enquanto Taylor pensa que o uso do

termo ‘o grande e o pequeno’ é de algum modo conectado com o método de avaliação de

raízes por aproximação alternativa de baixo e de cima, ele reconhece que isto não possui

conexão direta com a geração dos inteiros, e em sua consideração final concorda com Robin,

entretanto acrescentando um novo ponto. Em algumas passagens que nós citamos349,

Aristóteles descreve os números como sendo produzidos por equalização do grande e do

pequeno; e Taylor explica isto fazendo referência a uma passagem na Ética350, onde

Aristóteles, considerando um caso onde uma parte prejudicou outra, de modo que uma tem

mais e outra menos do que devia, descreve o juiz como ‘equalizador’ ao colocar ambas as

partes em uma posição intermediária entre aquela do ganhador e aquela do perdedor. Aqui,

então, equalizar significa partilhar a diferença, e Taylor afirma que é por um processo similar

que 3, 5, 7, e 9 são produzidos a partir de 2 e 4, a partir de 4 e6, a partir de 6 e 8, e a partir de

8 e 10 respectivamente. Esta sugestão, todavia é rejeitada pelo fato de que somente em

345

‘Recebendo’ não pegou, para o modelo de pequeno e grande era passivo, assim como para o da fêmea em copulação, ou o da matriz. 346

O significado disto é bastante obscuro. 347

T.p.I.N. 280-2. 348

PP. 442-50. 349

1081ª25, 1083b24, 31, 1091ª25; em 1081ª24 a frase é explicitamente atribuída a Platão. 350

1132ª6-10, 24-30.

Page 154: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

154

conexão com 2 e suas potências, as quais são produzidas não pela partilha de uma diferença

mas pela duplicação, que Aristóteles usa a palavra ‘equalizar’.

Taylor sugere algumas pequenas variações da segunda sugestão de Robin, mas no final

expressa uma preferência por essa mesma sugestão351.

Estas interpretações estão suscetíveis a certas objeções. (1) É improvável que Platão,

alguém que insistia que os números ideais possuíam uma ordem fixa352, teria os produzido em

qualquer outra ordem que não a natural, e em especial, que ele teria trazido o número

sagrado 10 em qualquer posição que não a final. Aristóteles tem muito a dizer em sua crítica à

teoria platônica, mas ele em nenhum lugar reclama que ela produziria os números numa

ordem não-natural, e em duas passagens ele parece indicar o oposto disto. Em 1081ª17-29 ele

argumenta como se segue: ’Se as unidades, uma a uma, são incomparáveis entre si, a série

numérica então produzida (i) não pode ser numérico matemática, já que esta consiste de

unidades comparáveis, e (ii) não pode ser um número ideal, já que o número 2 não será o

primeiro produto do Um e da dualidade indefinida, e ser seguido pelos números sucessivos

como se é dito – 2, 3, 4 – porque as duas primeiras unidades em 2 serão anteriores ao 2’. Se

(como o argumento parece indicar) ‘como se é dito’ significar ‘como os Platonistas dizem’, a

passagem indica que os números foram gerados na ordem natural deles (mesmo que nem

todo número tenha sido necessariamente gerado a partir do seu antecessor imediato). A

mesma conclusão é sugerida pela passagem 1080ª33-5, ‘número ideal é contado, portanto -

depois de 1, um distinto 2 que não inclui o primeiro 1, e um 3 que não inclui o 2, e o resto da

série numérica similarmente’.

É tão improvável que Platão tenha gerado os números em qualquer ordem que não a

natural que alguém é tentado a sugerir uma variante da primeira interpretação de Robin, na

qual pelo uso alternado de multiplicação e adição os números podem ser gerados na sua

ordem natural. As duas sugestões de Robin e esta terceira sugestão podem ser

esquematizadas como se segue:

A

1 X ind.2 = 2

2 X ind.2 = 4 a

4 X ind.2 = 8

2+1 = 3

4+1 = 5 b

7+1 = 9

B

1 X ind.2 = 2

2 X ind.2 = 4 a

4 X ind.2 = 8

(2+4)/2 = 3 c

3 X ind.2 = 6 a

C

1 X ind.2 = 2 a

2+1 = 3 b

2 X ind.2 = 4 a

4+1 = 5 b

3 X ind.2 = 6 a

6+1 = 7 b

4 X ind.2 = 8 a

351

Mente, xxxvi (1937), 19-20 (=P.S. 131-2). 352

1080b12.

Page 155: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

155

3X2 = 6

5X2 = 10 a

6+1 = 7 b

(4+6)/2 = 5

(6+8)/2 = 7 c

5 X ind.2 = 10 a

(8+10)/2 = 9 c

8+1 = 9 b

5 X ind.2 = 10 a

(‘ind.2’ = a dualidade indefinida, a representa multiplicação, b adição, c partilha de diferença.

Em nenhum destes esquemas algum número é utilizado na geração de outro a não ser que ele

mesmo tenha sido gerado antes.)

Se adição foi sequer usada, é provável que tenha sido usada como em C ao invés do

modo como é usada em A. Entretanto, cada um destes três esquemas é aberto a objeção de

que usam dois métodos diferentes para a geração de números diferentes; nós deveríamos

esperar que Platão se utilizasse de um método único. Neste ponto, nós podemos considerar (i)

A e C conjuntamente, e (ii) B.

(i) Teria Platão sequer usado a adição em sua geração dos números? O testemunho de

Aristóteles neste quesito é de difícil interpretação. Em 1081b12-2 ele diz, ‘Quer as unidades

sejam indiferenciadas ou diferentes uma a uma entre si, números devem ser contados por

adição, ex 2 através da adição ao 1 de um outro 1, 3 através da adição ao 2 de um outro 1, e 4

similarmente. Assim sendo, números não podem ser gerados como os Platonistas os geraram,

a partir de 2 e de 1; porque 2 torna-se parte de 3, e 3 de 4, e o mesmo acontece no caso dos

números sucedentes’. Isto sugere que no esquema Platônico 3 não foi produzido pela adição

de 1 ao 2, e de fato esta adição não foi sequer utilizada. Por outro lado, em 1083b28-30

Aristóteles diz, ‘Como é que se dá com as unidades no 3 ideal? Uma delas é uma unidade

ímpar. Mas talvez tenha sido por esta razão que eles deram ao 1 ele mesmo o lugar do meio

dentre os números ímpares’. Isto sugere que números ímpares foram produzidos pela adição

de 1 aos números pares anteriores.

Nós podemos ter certeza, todavia, que Platão não produzia os números ímpares pela

adição de 1 aos números pares; porque para fazê-lo seria necessário tratar o Um como parte

do ‘material’ dos números ímpares, quando é claro que ele tratava-o como um princípio

formal puro e simples. Nós devemos rejeitar os esquemas A e C igualmente, e supor que na

última passagem citada, Aristóteles está falando não sobre Platão, mas de algum membro

dissidente de sua escola.

Page 156: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

156

(ii) Não há nada nas considerações fornecidas por Aristóteles ou pelos comentadores

antigos que poderia definitivamente sustentar o esquema B. A abordagem mais próxima para

tal apoio pode ser encontrada na passagem da Física353 que diz ‘Platão concebeu os

indeterminados dois em número, porque supõe-se que eles excedam todos os limites e

procedem ad infinitum na direção de ambos do aumento e da diminuição’; mas não se pode

dizer que isso fornece sustentação bem definida ao esquema B. Mais provavelmente é apenas

um modo de dizer que pelo ‘grande e pequeno’ Platão quis dizer pluralidade indefinida,

variando de 2 à infinidade. O esquema B não pode ser descartado de primeira, mas também

não se pode declarar que ele está definitivamente estabelecido.

Uma nova linha de interpretação foi iniciada por Stenzel em seu livro Zahl und Gestalt.

Ele começa354 a partir de um exemplo típico do método de divisão aconselhado e praticado no

Sofista e Político:

onde a classe de coisas sem vida poderia, claro, ser dicotomizada assim como Platão

dicotomiza a de coisas vivas. Então355 sobre a analogia deste diagrama ele oferecesse o

diagrama seguinte como representação da geração de números de Platão:

353

206b27. 354

P. 11. 355

p. 31.

Page 157: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

157

A consideração de Stenzel é tão vaga que é impossível enxergar exatamente qual é sua

teoria. Sua abordagem inteira do problema é vulnerável a objeções fatais. (a) É baseada na

presunção que a derivação dos números de Platão pode ser explicada por uma referência ao

método de διαίρεσις exposto e ilustrado no Sofista e no Político. Mas não há nenhuma

analogia real entre os dois diagramas que ele usa para ilustrar sua teoria. Os números 2 e 3

não são espécies do gênero 1, como as coisas vivas e coisas sem vida são espécies do gênero

‘coisas que podem existir’. (b) Em tudo o que Aristóteles diz sobre a questão – e deve ser

relembrado que Aristóteles é nossa única autoridade original para a derivação dos números

platônicos – não há nenhuma sugestão que διαίρεσις tenha alguma coisa a ver com ela. O que

Aristóteles diz é que o Um era o elemento formal, e o grande e o pequeno o elemento quase

material, na geração dos números. O que isto sugere, como o ponto de partida da derivação

dos números platônicos, não é mesmo διαίρεσις, mas a πέρας e a άπειρον do Filebo. Stenzel

ignora completamente esta evidência. (c) Ele ignora as sugestões detalhadas que Aristóteles

fornece sobre a derivação de números particulares.356

A perspectiva de Stenzel foi consideravelmente melhorada por O. Becker,357 quem,

todavia, o seguiu supondo que a derivação dos números tenha sido feita por dicotomia. Ele

pensa que por ‘geração’ do número 2, Platão quis dizer a dicotomia de uma Idéia genérica em

duas Idéias específicas. Para a produção das potências de 2 ele se apóia em dicotomia

subseqüente. Ele ilustra a produção de 2, 4, 8 pelo seguinte diagrama,358 onde os círculos

preenchidos representam as unidades produzidas por dicotomia, e os círculos vazios as

unidades que são produzidas por dicotomia e canceladas por dicotomias subseqüentes.

Ele entende que o número 2 não poderia ser produzido, como na hipótese de Stenzel,

pela mesma dicotomia que produz o número 2, e para a produção do 3 e outros números

ímpares, ele se apóia em dicotomia subseqüente de uma das unidades produzidas por uma

dicotomia anterior:359

356

Para uma crítica mais completa da perspectiva de Stenzel’s, cf. Van der Wielen, I.P. 220-4. 357

Em Quellen u. Studien zur Geschichte der Mathematik, Astronomie u. Physik, Abt. B, i. 358

Quellen u. Studien, &c., p. 462. 359

Ibid. 468.

Page 158: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

158

As principais linhas da perspectiva de Becker estão apoiadas sobre as seguintes

proposições: ‘Portanto está a nossa frente uma dicotomia na qual não os números eles

mesmos, mas as unidades nestes números são os membros’360. ‘São estas unidades que

correspondem às idéias’361 ‘A divisão de uma unidade é, de acordo com a doutrina platônica,

nada além do que a divisão de um gênero em duas diferenciações ’362 ‘Aquilo que no número

ideal e na cadeia de Idéias é comparado são as unidades individuais no número e as Idéias

individuais na cadeia. Ao número ideal completo corresponde-se a definição completa, e,

portanto o “definendo” como um todo’363. Sua teoria, então, parece ser que Platão teria sido

levado à sua identificação das Idéias com os números por reconhecer que como a existência de

qualquer Idéia, excetuando um gênero supremo, envolve um elemento genérico e uma ou

mais diferenciações, a existência de qualquer número envolve duas ou mais unidades. Um

gênero supremo, que não pode ser analisado em termos de um elemento genérico e um

diferencial, seria representado por 1; uma classe-Idéia incluindo um elemento genérico e um

diferencial (ex, ‘animal com pés’) seria representado pelo número 2, uma com um elemento

genérico e dois diferenciais pelo número 3, e assim em diante. Isto parece ser o que Becker em

um dado momento diz. Contudo, nos diagramas reproduzidos acima, o número 2 responde

não à uma Idéia com um elemento genérico e um diferencial, mas à uma classe dividida em

duas espécies, o número 4 à uma classe dividida em quatro subespécies, o número 8 à uma

classe dividida em oito sub-subespécies; e novamente o número 3 responde não à uma Idéia

com um elemento genérico e dois diferenciais, mas à um gênero dividido em uma espécie e

duas sub-espécies de outra espécie. Portanto, Becker parece não haver se decidido sobre se

um número corresponde à totalidade de elementos em uma única Idéia ou se corresponde à

totalidade das classes na qual o gênero é dividido.

A parte fundamental dessa teoria é, entretanto, que ‘às Idéias no esquema dicotômico

(a cadeia de Formas) respondem as unidades dos números ideais, não estes números eles

mesmos’364. Em outras palavras, um número ideal não é uma única Idéia, mas um grupo de

Idéias, cada qual responde à uma das unidades envolvidas no número ideal (ou até certo

ponto, pressuposto, já que é evidente que na perspectiva de Platão um número ideal não

continha unidades); um número ideal é um ‘número de Idéias’ no sentido de um grupo de

Idéias. Para apoiar esta tese, Becker cita um número de passagens365 nas quais άριθμός ocorre

360

Ibid. 467. 361

Ibid. 362

Ibid. 468. 363

Ibid. 473. 364

Ibid. 467. 365

1080b12, 1081ª21, 1083b3, 6-7, 1090b33, De Philosophia fr. 9.

Page 159: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

159

no singular em conjunção com o plural de ειδος ou de ίδέα. Mas um exame dessas passagens

mostra que nelas se faz uso não de um número ideal particular, mas de um âmbito inteiro de

números ideais, justamente como ό μαθηματικός άριθμός é usado coletivamente a partir dos

números matemáticos. Isto é ressaltado por Van der Wielen,366 que também mostra367 que

algumas outras passagens368 nas quais Becker se sustenta não provam seu ponto de vista.

As principais objeções, contudo, à perspective de Becker são as mesmas que aquelas

que se aplicam à perspectiva de Stenzel – que ela não faz nenhuma tentativa para explicar a

frase ‘o grande e o pequeno’ e a função do grande e do pequeno, que Aristóteles descreve

como sendo (juntamente com o Um) a base de toda a teoria dos números ideais, que ela

ignora as muitas insinuações que Aristóteles fornece sobre o método de geração de números

especíificos, e que ela relaciona a teoria com as dicotomias do Sofista e do Politico, e

negligencia a sua muito mais provável conexão com o ‘limite’ e o ‘illimitado’ do Filebo. Por

toda sua grande ingenuidade, parece que esta teoria não pode ser aceita.

Outra tentativa de explicação da teoria de Platão é aquela de O. Toeplitz,369 que

sugere370 que ‘Os misteriosos números-Idéia, o “par indefinido” (o άόριστος δυάς) ou, como

ele mesmo os chama, o “grande e o pequeno” (o μέγα καί μικρόν) são a encarnação

epistemológica das “proporções” (λόγος) matemáticas – que | α : β | é o par indefinido, o qual

pode aparecer sobre as mais diversas formas fenomênicas, talvez como proporção dos mais

diferentes pares de números completos, ou de dois planos, etc. Se o significado preciso do

adjetivo é aquele no qual o par que representa a mesma proporção (λόγος) alguém pode

todavia muito diferentemente, ou que os dois membros do par, o grande e o pequeno, eles

mesmos molas do mundo do ilimitado, é uma questão que deve ser adiada neste momento.

Como vimos, a interpretação de Toeplitz da difícil passagem Met. 987b33-988a1 é que

‘os diferentes pares de quantidades que representam a proporção 1 : 2, ex . 2 : 4, 3: 6, 4: 8...

são as cópias diferentes de um único mould que une todos eles em um conceito, um έν , o

λόγος ou o “número”(no novo sentido) 1 : 2’371.

Portanto aparentemente a dualidade indefinida é proporção em geral, ‘o Um’ é uma

flama genérica para todas as possíveis proporções declaradas nos seus menores termos, ex 1 :

2, 1: 3, e os números ideais são proporções produzidas pela operação do Um sobre a dualidade

indefinida, i.e. 2 : 4, 3 : 6, etc., produzidos pela proporção 1 : 2; 2 : 6, 3 : 9, etc., produzidos

pela proporção 1 : 3, e assim em diante. Muito nisto está longe de ser claro. A identificação

inicial dos ‘números-Idéia misteriosos’ com a dualidade indefinida já é em si um sinal de

confusão, já que o testemunho de Aristóteles distingue mais claramente os dois. Outro sinal de

confusão é a descrição das proporções declaradas em seus menores termos com o mould dos

366

P. 235. 367

Pp. 235-6 368

Phil. 18 c3-6; Met. 987b20-2, 1080a30-5, 1081a32-5, 1082a33-6, b23-6. 369

Quellen u. Studien zur Geschichte der Mathematik, Astronomie u. Physik, Abt. B, i. 1 (1929), 3-33. 370

Ibid. 10. 371

Ibid. 22.

Page 160: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

160

quais os números-Idéia são cópias372. Isto implica que Toeplitz considera que o έκμαγεϊον de

Aristóteles, que claramente no seu contexto373 significa ‘material plástico’, é um mould

impresso neste em tal material. Em geral, há uma grande dificuldade em descobrir exatamente

o que Toeplitz considera que ‘o Um’ e ‘o grande e o pequeno’ representam esignificam. E,

ademais, não há nenhuma evidência que mostre que, no tempo de Platão, άριθμός possa ter

sido usado com o significado de ‘proporção’, para o qual Platão tem suas próprias expressões,

λόγος e πρός άριθμόν άριθμός.374

Uma coisa de valor, entretanto, que permanece na explicação de Toeplitz é sua

observação de que a noção de proporção, à qual Platão ele mesmo se refere no Filebo375 ao

descrever a natureza da πέρας, pode ter tido um papel importante em sua teoria dos

números-Idéia. A esta possibilidade nós retornaremos presentemente.376

A consideração377 de Van der Wielen sobre a geração dos números-Idéia é baseada em

uma passagem do comentário de Simplício sobre a Física378, onde, depois de referir-se ao uso

de Platão, nas suas palestras sobre o Bem, do Um e do grande e pequeno como elementos

constituintes de ambas as coisas sensíveis e inteligíveis (i.e dos números-Idéia), ele prossegue

ao dizer que Porfírio interpretou a doutrina como se segue em seu comentário sobre o Filebo:

O próprio Platão, classifica o mais e o menos, e o ‘excedente’ e o ‘pouco’ (τό σφόδρα

καί τό ήρέμα) como pertencentes à classe do ilimitado. Porquanto onde quer que eles estejam

presentes, avançando respeitando a intensificação e o relaxamento, aquilo que neles é

compartilhado não vem a ser um obstáculo e um limite, mas tende à indefinição da infinidade.

Portando, também, é com o mais e o menos, e com o grande e o pequeno, que Platão usa

como equivalentes. Tomemos alguma grandeza limitada, por ex. um cúbito, e dissequemo-lo;

se deixássemos uma metade de um cúbito não-dividida, mas dividíssemos a outra e

adicionássemos pouco a pouco à parte não dividida, o cúbito teria duas partes, uma

diminuindo e a outra aumentando, sem limite. Isto porque ao dividir o cúbito nós nunca nos

depararíamos com uma parte indivisível, já que o cúbito é um contínuo e um contínuo pode

ser dividido em partes divisíveis perpetuamente. Um tal processo incessante de corte revela

uma certa infinidade intrincada ao cúbito, ou, pelo menos, mais que uma, com um avançando

em direção ao grande e o outro em direção ao pequeno.

Há uma passagem379 na qual Aristóteles vislumbra uma divisão similar de uma linha

como produzindo um ‘infinito por adição’ e um ‘infinito por divisão’, e conclui dizendo, ‘é por

esta razão que Platão também fez do infinito dois em número, porque se supõe que seja

possível exceder todos os limites e prosseguir ad infinitum na direção de ambos o aumento e

redução’.

372

P. 22. 373

988a1. 374

The former, passim. O ultimo em Phil. 25 a 8. 375

25 a 6-b 3, d 11-e 2. 376

Pp. 200-2. 377

I.P. 118-37. 378

453.25-454.7 379

Phys. 206b3-29.

Page 161: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

161

Baseado na passagem de Porfírio, Van der Wielen sugere que Platão usou uma linha

dividida, como ele já havia feito muito antes, para ilustrar uma doutrina filosófica. A linha pode

ser representada portanto:

Aristóteles descreve a gênese dos números ideais como um processo que tem o Um

como elemento formal e o grande e pequeno como o elemento material. Van der Wielen

interpreta isto significando que se ΓΔ (que é capaz de ser dividido em qualquer ponto Πn) for

dividido em seu ponto médio Π1, a forma Um, i.e a proporção 1 : 1, que é a proporção de ΓΠ1

à Π1Δ, transforma a proporção indeterminada de ΓΔ à Πn na proporção determinada (2 : 1) de

ΓΔ à Π1Δ, e portanto gera o número 2. Se Π1Δ for dividido em seu ponto médio Π2, a

proporção 1 : 1 de Π1Π2 à Π2Δ transforma a proporção indeterminada de ΓΔ à ΠnΔ na

proporção determinada (4 : 1) de ΓΔ à Π2Δ, e portanto produz o número 4; e um processo

similar determinará a proporção 8 : 1, e portanto produzir o número 8.

A teoria de geração dos números ideais de Van der Wielen é de alguns modos a melhor

dentre as quais, até aqui, já adiantamos. É baseada num estudo muito cauteloso de todas as

evidências encontradas em Aristóteles e outras referências. Faz total uso da importante

evidência fornecida por Platão quando ele identifica o ‘limite’ e o ‘ilimitado’ do Filebo, que são

claramente os ancestrais do Um e do grande e pequeno, com a proporção definida e a

ausência da proporção definida380. Mas ainda permanece uma grande brecha em sua

consideração; ela faz com que Platão gere apenas 2 e suas potências.

De fato, todavia, através, exatamente, de um método similar, Platão pode ter gerado

cada número a partir de seu predecessor:

Se ΓΔ é dividido em seu ponto médio Π1, a proporção 1 : 1 de ΓΠ1 a Π1Δ faz com que a

proporção de ΓΔ à Π1Δ seja 2 : 1 e portanto gera o número 2. Se ΓΔ for então dividido no

ponto Π2 para que a proporção de ΓΠ2 à Π2Δ seja 2 : 1, isto faz com que a proporção de ΓΔ à

Π2Δ seja 3 : 1 e portanto cria o número 3. E assim se segue ad infinitum.

Van der Wielen reconhece381 a possibilidade deste método de geração de números que

não o 2 e suas potências, mas o deixa de lado porque é inconsistente com a declaração em

Met. A. 6 de que o Um é o princípio formal na geração de todos os números. Mas não há

nenhuma inconsistência; o Um é decerto o princípio ativo na geração de todos os números,

mas isto não implica que ele intervenha recorrentemente a cada estágio; sua função é iniciar o

processo, como a proporção 1 : 1 de fato o faz. Tal situação é justamente o que a crítica de

Aristóteles em A. 6382 subentende:

380

24 e 7-25 b 3. 381

I.P. 132-3. 382

988a1-7

Page 162: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

162

A teoria não é sensata. Pois eles fazem muitas coisas a partir da matéria e a forma gera

uma única vez, mas o que observamos é que apenas uma única mesa é feita a partir de Uma

matéria, enquanto o homem que aplica a forma, apesar de ele ser um, faz diversas mesas. E a

relação do macho com a fêmea é similar; pois a última engravida por uma cópula, mas o

macho engravida diversas fêmeas; contudo estes são análogos àqueles primeiros princípios.

A crítica de Aristóteles é que uma única forma operando em uma única matéria pode

produzir somente um resultado, enquanto os Platonistas geram muitos produtos de uma única

matéria apesar da forma operar apenas uma vez; e isto é justamente o que acontece; numa

reação em cadeia tal como as que podemos supor que Platão tivesse em mente. Se podemos

aceitar a interpretação do Um como a proporção 1 : 1 de Van der Wielen, podemos segui-lo ao

dizer que o Um, i.e a proporção 1 : 1 entre as duas partes da linha, engloba a proporção 2 : 1

entre a linha inteira e uma de suas metades; e então o Um não necessita intervir novamente,

ou o 2 ira similarmente englobar o 3, e assim se segue ad infinitum.

Esta interpretação não deve ser rejeitada sob o domínio da declaração383 de Aristóteles

de que apenas os números compostos poderiam ser gerados adequadamente a partir dos dois

princípios de Platão, ou sua declaração384 de que ‘o grande e o pequeno proclamam-se contra

a tentativa de gerar a partir deles outros números que não o 2 e suas potências’, ou sua

declaração385 de que ‘eles dizem que não há geração dos números primos’, pois ele também

diz claramente que Platão afirmava poder gerar todos os números ideais. As primeiras duas

declarações subentendem apenas que Aristóteles considera que a tentativa de Platão tenha se

mostrado falha quando aplicada aos números primos, ou quando aplicada a qualquer número

exceto o 2 e suas potências, e a terceira declaração pode referir-se muito bem a alguns

seguidores de Platão, mas não a Platão.

Todavia a evidência positiva para a ingênua interpretação de Van der Wielen é

bastante insuficiente. Porfírio não diz que Platão usou uma linha dividida em conexão com os

números ideais; nem Porfírio ele mesmo a usa para ilustrar o modo de sua geração, mas

apenas para ilustrar o significado de ‘o grande e o pequeno’. Há, também, algo bastante

ingênuo no procedimento de dividir a linha em duas partes e então usar a proporção entre as

partes para gerar o número 2; qualquer um é consideravelmente relutante em atribuir este

procedimento a Platão. Nós bem podemos procurar por uma outra interpretação. Nós

devemos examinar as evidências de Aristóteles mais uma vez.

Para Aristóteles a função do Um é equalizar,386 e que a do grande e pequeno é

duplicar. Quanto à função anterior, a palavra, ou pelo menos a idéia por trás dela, deve ser

própria de Platão. Pois de várias frases que Aristóteles usa para o princípio material dos

números, ‘o desigual’ é uma daquelas que parecem mais claramente remeter à Platão ele

mesmo,387 e se assim for, a função que ele atribuiu ao Um deve ter sido uma que fosse a de

remover a iniqüidade. Mas o que isso significa? Em que sentido seriam o grande e pequeno

desiguais? Aristóteles pensava que era porque o grande e o pequeno eram duas coisas, que

383

987b33-988a1. 384

1091a9-12. 385

1091a23. 386

1081a25, 1083b24, 31, 1091a25. 387

1081a24. --- --- = Platão.

Page 163: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

163

precisam desiguais porque uma era grande e a outra pequena. Sua perspectiva torna-se mais

clara em Phys. 203a15 e 206b27, onde ele diz, ‘Platão concebeu os indefinidos dois em

número’. Mas é muito mais provável, particularmente tendo em vista a indubitável

descendência do ‘grande e pequeno’ a partir do ‘mais e menos’ do Filebo, que Platão não

tenha o entendido como duas coisas, mas uma coisa só, pluralidade indefinida, que foi

chamada ‘o desigual’ simplesmente porque era capas de ser particularizada em números

desiguais variando de 2 à infinidade; de certo, em uma passagem,388 Aristóteles reclama que

Platão ‘trata o desigual, ou o grande e o pequeno, como sendo um’. Se Platão entendia ‘o

desigual’ como pluralidade indefinida, a função do Um, descrita como equalização, deve ter

sido uma de injetar definição, de impor forma definida sobre a pluralidade indefinida.

Nós não temos nenhuma garantia de que a expressão ‘dobrar’ para a função do grande

e pequeno remete à Platão. Não poderia ser que o uso dela por Aristóteles se deve ao mesmo

desentendimento, o de supor que o grande e pequeno de Platão fosse duas coisas, e não uma

coisa indefinida? Se esta suposição estiver certa, a função do grande e pequeno não teria sido

estritamente a de dobrar (apesar de sua primeira tarefa ser a de fornecer matéria para a

formação do número 2), mas simplesmente a de fornecer pluralidade ilimitada na qual o Um, o

princípio de definição, impunha especificações sucessivas e, portanto, produzia-se os números

sucessivos. Em uma passagem389 Aristóteles descreve o grande e o pequeno como uma

‘pluralidade generosa’.

Se Platão tivesse pensado que a função do grande e pequeno fosse simplesmente a de

dobrar, o único número que poderia ter sido produzido pelo impacto do Um sobre o grande e

pequeno teria sido o número 2. O número 4 então poderia ser descrito como produzido pelo

impacto do número 2 sobre o grande e pequeno,390 e o número 8 pelo impacto do número 4

sobre o grande e o pequeno391. Baseado nisto, os únicos números que poderiam ser

produzidos teriam de ser o 2 e suas potências392. Paras os outros números Platão teria que se

apoiar em algum método de produção um tanto diferente; mas é mais improvável que ele

tenha usado métodos fundamentalmente diferentes para a produção de números diferentes.

É certamente mais provável que ele tenha usado um único método – que o Um, o princípio de

limite ou definição, impôs sucessivos graus definidos sob a muiteza indefinida e a pouqueza

indefinida do grande e pequeno. O número 2 teria o máximo de pouqueza, o mínimo de

muiteza, o núumero 3 o próximo possível grau de pouqueza e muiteza; e assim em diante.

É provável, então, que a consideração de Aristóteles tenha sido radicalmente

distorcida por um mal-entendido do que Platão entendia pelo grande e pequeno. Também foi

distorcida pelo fracasso de Aristóteles em reconhecer a verdade da concepção de Platão de

um número ideal não como uma soma de unidades, mas ele mesmo como uma Idéia

unitária393. Por tais mal-entendidos, não se poderia inteiramente culpar Aristóteles; pois as

autoridades da antiguidade acordam em descrever as aulas de Platão sobre o Bem como

388

1087b11. 389

1083a13 ---, não, como de costume, ---. 390

1081b21, 1082ª13, 33. 391

1082ª28-31. 392

1084ª6. 393

Cf. PP. 180-1.

Page 164: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

164

sendo aulas que teriam deixado seus ouvintes tentando entender e adivinhar os seus

significados. Como evidência de que há um certo montante de mal-entendidos na

consideração de Aristóteles sobre a ‘geração dos núumeros’ de Platão, alguém poderia indicar

duas passagens na Física as quais já receberam os devidos comentários394. Também pode ser

que algumas críticas de Aristóteles sejam direcionadas não ao que Platão disse, mas contra o

que Speusipo ou Xenócrates imaginaram que ele entendia, ou contra alguma nova ‘geração

dos números’ proposta dentro da Academia; pois na Metafísica M e N Platão é mencionado

pelo nome395 apenas uma vez, e das passagens nas quais a geração de um número particular é

descrita apenas uma396 claramente referem-se a ele.

O que eu sugiro, então, é que na geração dos números ideais de Platão o Um

corresponde exatamente ao ‘limite’ do Filebo, e o grande e pequeno ao ‘ilimitado’ do Filebo.

Os números sucessivos foram o resultado de sucessivas aplicações de limite ou definição à

pluralidade ilimitada. Uma grande parte do que Aristóteles diz será atribuída a sua

interpretação do grande e pequeno como duas coisas, uma grande e uma pequena. Disto se

segue a sua descrição daquilo (o grande e pequeno) não como uma pluralidade provedora,

mas como ‘duplicadora’. Disto também se segue a sua declaração de que a combinação dos

dois princípios não pode gerar adequadamente os números ímpares, e sua declaração mais

radical de que eles podem somente produzir o número 2 e suas potências. Muito do que ele

diz pode ser dirigido não contra Platão mas contra Xenócrates, quem, como Aristóteles diz,

confundiu os números ideais com os matemáticos, e pode por conseguinte ter dado um tipo

de geração mais matemático do que Platão. Ele bem pode ter falado de 2 e suas potências

como produções de sucessivas duplicações, e pode ter sido ele quem fez o Um a unidade

mediana dos números ímpares397, i.e. tratou-os como produzidos pela adição de 1 ao número

par anterior.

(D) A questão da relação dos números ideais com as Idéias em geral pode ser melhor

considerada quando tivermos, primeiramente, examinado a perspectiva de Platão sobre as

‘coisas por trás dos números’, e das relações entre as Idéias e alma.

394

P. 147 supra. 395

1083ª32. 396

1081ª23-5. 397

1083b29.

Page 165: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

165

XIII – DEPOIS DOS NÚMEROS Tradução:

Eduardo Kisse

á três passagens nas quais Aristóteles se refere a uma crença sustentada por uma

parte da escola Platônica, em entidades espaciais como uma classe de coisas “depois

dos números” ou “depois das Idéias”:

992b13-18: “Nem isso pode ser explicado nem por como as linhas, planos e sólidos,

que vêm depois dos números, existem ou podem existir ou qual significância têm; pois eles não

podem nem ser Formas (visto não serem números), nem intermediários (visto ser objetos da

matemática) nem coisas perecíveis. Isso é, evidentemente, uma quarta classe.”

1080b23-8: “O caso das linhas, planos e sólidos é similar. Alguns pensam que o que é

objeto da matemática é diferente do que vem depois das Idéias e, dos que se expressam de

outro modo, a saber: os que não vêem as Idéias como números ou dizem que não existem,

alguns falam de objetos da matemática e num modo matemático; outros falam de objetos

matemáticos, mas não de modo matemático.

1085ª7-9: “Dificuldades similares ocorrem em relação às classes de coisas posteriores

aos números: a linha, o plano e o sólido.”

Nos livros M e N da Metafísica, o tratamento de Aristóteles dado à escola platônica é

baseado numa distinção entre os que reconheceram a existência de Idéias como distintas dos

objetos da matemática, os que negaram a existência de Idéias e os que identificaram-nas como

objetos da matemática. Nós já havíamos mostrado398 (e esse é, acredito, fundamento comum

a todos os estudantes do assuntos) que foi Platão quem reconheceu a existência de todas as

três entidades, Espeusipos quem negou a existência das Idéias e Xenócrates quem identificou-

as com os objetos da matemática. Deste modo, nem Espeusipos nem Xenócrates tinham três

outras classes das quais ele pudesse distinguir como uma quarta classe de coisas depois das

Idéias ou depois dos números. Assim sendo, cada uma das duas primeiras passagens acima

citadas deixam claro que foi Platão quem acreditou nas coisas “depois dos números” ou

“depois das Idéias”.

A descrição usual que Aristóteles faz da doutrina de Platão é a de que ele distinguia

três tipos de entidades: as Idéias, os objetos da matemática e as coisas sensíveis. O

reconhecimento de uma quarta classe logo após as Idéias, numa ordem hierárquica, deve

evidentemente ter sido um desenvolvimento tardio no pensamento de Platão. Há duas

passagens da Metafísica que iluminam sua origem2. Em1036a26 - b17, Aristóteles mostra que

quando uma forma é achada em conjunto com uma variedade de materiais, como a forma

398

Capítulo IX. 2 A importância disso é muito bem apresentada por Van der Wielen, em I.P. 144 à 147.

H

Page 166: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

166

circular pode ser encontrada tanto em bronze, quanto em pedra ou em madeira, é fácil ver

que o material não é parte da essência. Mas, quando a forma é sempre combinada com o

mesmo material ou conjunto de materiais, como as do homem são sempre com carne e ossos,

torna-se duvidoso se a definição deve conter referência ao material. Essa dificuldade, ele

acrescenta, é sentida por algumas pessoas sobre o círculo mesmo. Debate-se se extensão

espacial pertence mais à essência de uma linha do que bronze ou pedra pertencem à de uma

estátua e alguns platonistas chamam de dualidade a linha mesma, enquanto outros chamam

de Forma da (i.e. apenas seu elemento formal) linha, porque a linha não pode ser identificada

com o que é apenas seu elemento formal. Além disso, em 1043ª29 – 36, Aristóteles faz alusão

à questão sobre se a essência da linha é dualidade incorporada em comprimento ou

simplesmente o dois.

Até um certo tempo então Platão estava satisfeito em simplesmente distinguir Idéias,

objetos matemáticos e coisas sensíveis399, mas, quando ele identificou as Idéias ou, antes, as

mais altas, mais abstratas Idéias com números, ele teve que reconhecer uma classe mais baixa

de Idéias, cada uma das quais incluía em sua essência uma referência a extensão espacial e

também a números, então a Idéia de linha, por exemplo, era “dualidade em comprimento”.

Essas Idéias eram para os objetos da geometria e para os objetos espaciais sensíveis como as

Idéias-números eram para os objetos da aritmética e para grupos de números sensíveis. Eles

diferenciavam-se dos objetos matemáticos por serem únicos e dos objetos sensíveis por serem

únicos, eternos e imutáveis.

Temos que considerar agora se Platão considerava como princípios geradores essas

“magnitudes” e o que deve ser considerado primeiro é a questão dos princípios materiais. Na

terceira das passagens nas quais há referência a essas magnitudes2 e em duas outras3,

Aristóteles fala dos platonistas que trataram do longo e do curto como os princípios materiais

da linha ideal, do largo e do estreito como os do plano e o fundo e o raso como os do sólido.

Em nenhuma das passagens, essa doutrina é expressamente atribuída a Platão, contudo, como

havíamos visto, foi ele quem acreditou nessa “quarta classe”. Além disso, em cada passagem,

indica-se que esses princípios matérias são formas do grande e do pequeno. Desde que o

tratamento do grande e do pequeno enquanto princípios materiais das Idéias-números é

atribuído a Platão, é menos natural supor que foi ele quem tinha a visão correspondente sobre

linhas, planos e sólidos e que, por grande e pequeno, ele quis dizer pluralidade indefinida e,

por longo e curto, extensão indefinida em uma dimensão e, por fundo e raso, extensão

indefinida em uma terceira dimensão.

A conclusão que Platão estava entre aqueles que tinham essa visão é confirmada por

duas outras passagens. Em 1085ª31-4, ela é distinguida de outra que era muito certamente a

de Espeusipos4 e, em 1090b37-1091ª1, uma passagem que certamente refere-se a Platão5,

vemos que ele gerava magnitudes espaciais de grande e pequeno de outro modo que não

aquele pelo qual ele gerou as Idéias-números. Isso claramente refere-se ao longo e ao curto,

ao largo e ao estreito e ao fundo e ao raso.

399

987b14-18, 1028

b18-21.

21085ª7-12.

3992

b10-13, 1089

b11-14

4Nela, o princípio material de número é referido por plêthos, que era provavelmente o nome para isso.

5Oi prôtoi dúo toùs arithmoùs poiésantes, 1090

b32.

61036

b12-17, 1043ª29-36.

71090

b20-32.

8i.e. qualquer teorema matemático.

Page 167: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

167

Separado das duas passagens já consideradas6, nas quais há referência ao número 2

como a causa formal da linha, a referência mais explícita na Metafísica às causas formais

atribuídas às entidades espaciais pelos platonistas está em 1090b20-4, onde Aristóteles diz:

“Os crentes nas Idéias derivam magnitudes espaciais de matéria e número – linhas do número

2, planos sem dúvida do número 3 e sólidos do número 4 – ou eles usam outros números, o

que não faz diferença.” Isso acontece numa passagem7 que é, às vezes, tomada como

referente exclusivamente a Xenócrates, mas um exame mais apurado mostra que esse não é o

caso. Ela começa com as palavras “Como para os que acreditam nas Idéias, essa dificuldade

passa por eles sem ser notada.” Então, após referência aos princípios formativos das entidades

espaciais, Aristóteles continua:

Mas serão essas magnitudes espaciais Idéias, quais são seus modos de existência e

quais são suas contribuições às coisas? Elas não contribuem em nada, tal como os objetos da

matemática. No entanto, não há exatamente um teorema8 verdadeiro sobre eles [exceto por

alguém que escolha adulterar os objetos matemáticos e inventar doutrinas próprias. Mas não

é difícil assumir qualquer hipótese ao acaso e daí derivar uma longa lista de conclusões. Então,

esses pensadores, sendo apegados deste modo aos objetos da matemática tanto quanto às

Idéias, estão errados.] Os que primeiro colocaram dois tipos de números, os das Formas e os

que são matemáticos, não disseram ou podem dizer como números matemáticos existem nem

do que derivam-se.

Aqui, a frase “os que acreditam nas Idéias” inclui Platão e Xenócrates e separa-os de

Espeusipos, de quem se trata em b13-20, e a atribuição dos números 2, 3, 4 à linha, ao plano e

ao sólido refere-se aos dois. Mas a frase “Elas não contribuem em nada, tal como os objetos da

matemática.” Mostra que Aristóteles tem primeiro em mente um pensador que distinguia

Idéias dos objetos da matemática, i.e. não Xenócrates, mas Platão. É apenas na passagem que

marquei com os colchetes, que há referência exclusiva a Xenócrates e, imediatamente após

isso, Aristóteles retorna a Platão.

Com essa passagem, deve-se considerar outra da De Anima400:

Do mesmo modo que Platão no Timeu modela a alma a partir de seus elementos.

Semelhança, diz ele, conhece-se por semelhança e as coisas são formadas dos princípios ou

elementos.2 (l.18) Também de modo semelhante, em tois peri filosofías legoménois, foi

estabelecido que o Universo vivente é composto da Idéia mesma do Um em conjunto com os

comprimento, largura e profundidade primários, todas as outras coisas sendo

semelhantemente constituídas. (l. 21) De novo, desta vez em outros termos, foi dito que a

razão seria o Um, ciência seria a díade (porque vai sem desviar-se a um ponto), opinião seria o

número do plano e sensação seria o número do sólido. Pelo fato dos números serem

identificados com as Formas mesmas ou princípios e serem formados dos elementos. (l. 25)

400

404b16-27.

2 De modo que a alma assim também deve ser.

3 I.P.158-68.

4 A.C.P.A. 565-80.

5 É assim que Filoponus (75.34-76.1) toma a passagem. Simplício expressa mais resumidamente a

mesma visão (28.7-9). Themistius toma a passagem para referir-se às visões de Xenócrates (11.37-12.7), mas também àquelas de Platão (12.28).

6Met. 6ª23-

b9.

Page 168: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

168

Agora as coisas são apreendidas por razão, por ciência, por opinião ou por sensação e esses

mesmos números são as Formas das coisas.

Eu deixei as palavras en tois perì filosofías não traduzidas, porque seus significados são

questionados. Alguns acham que se referem às leituras de Platão da filosofia e elas, às vezes,

têm sido identificados com a leitura do Bem. Outros pensam que se referem ao diálogo

aristotélico Da Filosofia, na qual ele estabeleceu e comentou as mais importantes doutrinas

dos primeiros filósofos, incluindo Platão e sua escola. Van der Wielen3 entende as palavras

num sentido mais primário e afirma que a passagem toda refere-se a Platão. Professor

Cherniss4 entende-as num sentido menos formal e afirma com igual convicção que a passagem

refere-se, exceto pela primeira sentença, a Xenócrates. A questão se en tois perì filosofías

legoménois significa “no meu Da Filosofia” ou “nas leituras de Platão da filosofia” não é crucial.

Pois, mesmo se a visão mais primária estiver correta (como acho que está), a referência deve

muito bem ser ao relato de Aristóteles da doutrina platônica.5 A passagem toda 404b16-27 é

lida mais naturalmente se vista como fazendo referência inteiramente a Platão. E deve-se

notar que, quando em b27-30, Aristóteles menciona uma visão que é certamente a de

Xenócrates, ele marca a transição, dizendo “alguns pensadores achavam” isso e aquilo.

Nós achamos na Metafísica 1090b20-4, uma passagem na qual há referência a Platão, o

que é reconhecivelmente a mesma visão sobre linhas, planos e sólidos. E há uma passagem em

Teofrasto6 que confirma a visão de que o todo da passagem de Da Alma refere-se a Platão. A

passagem se dá como se segue:

A maioria das pessoas vai a um certo ponto e então param, como aqueles que

configuram o Um e a díade indefinida fazem. Gerando os números, planos e sólidos, eles

omitem quase todas as outras coisas restantes, exceto por tocar no assunto e deixar mais claro

que algumas coisas procedem da díade indefinida, como por exemplo, lugar, o vazio, o infinito

e outras, dos números e do Um, como por exemplo, alma e certas outras coisas... no entanto

dos Céus e das coisas restantes no universo, eles não fazem nenhuma menção além. E,

similarmente, a escola de Espeusipos não o faz, nem tampouco outros filósofos, exceto

Xenócrates, pois ele, de algum modo, atribui a tudo seu lugar no universo, de modo parecido

com os objetos dos sentidos, objetos da razão ou objetos da matemática e coisas divinas

também.

Aqui, há clara referência a Platão, em distinção a Espeusipos e Xenócrates na primeira

parte da passagem e uma visão sobre ambas magnitudes espaciais e a alma idêntica àquela

mencionada em Da Alma é a ele atribuída.

Finalmente, pelo fato dessas indicações ocorrerem na passagem de Sextus

Empiricus401, nas quais há boa razão para serem consideradas um sumário da doutrina

platônica2, confirma-se que Platão atribuiu os números 2, 3 e 4 à linha, ao plano e ao sólido.

Qual, então, é a visão até a qual linhas, planos e sólidos dizem respeito? É a que a Idéia

de linha foi derivada do número 2 e de comprimento indefinido, a Idéia de plano, do número 3

e de profundidade indefinida. A isso, podemos dar um significado inteligível. Para Platão, os

401

Adv. Math. 10.278-80. 2

Cf. capítulo XII. 3 1043ª34 4

30 b 8.

Page 169: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

169

objetos da matemática, os da aritmética e da geometria de modo parecido, formaram um todo

intermediário entre as Idéias e as coisas sensíveis. É, assim, natural que ele tenha

experimentado uma “geração” de Idéias de entidades geométricas, correspondendo àquela

que ele deu, das Idéias de números.

O sistema era pelo menos de um modo simétrico. Os números ideais derivavam do Um

e o grande e o pequeno, da pluralidade indefinida. A idéia de linha derivava do número 2 e o

longo e o curto, do comprimento indefinido. A idéia de plano derivava do número 3 e o largo e

o estreito, de largura indefinida. A idéia de sólido derivava do número 4 e o profundo e o raso,

de profundidade indefinida. A idéia de linha era “o dois incorporado em comprimento”3, “o

dois” porque dois pontos determinam a linha mais simples, a linha mais simples, a linha reta. A

idéia de plano era “o três incorporado em largura”, “o três” porque três pontos determinam a

figura plana mais simples, o triângulo. A idéia de sólido era “o quatro em profundidade”, “o

quatro” porque quatro pontos determinam a sólido mais simples, o tetraedro.

O que, devemos perguntar agora, é o significado das palavras na passagem de Da

Alma: “O Universo vivente é composto da Idéia mesma do Um com os comprimento, largura e

profundidade primários, sendo tudo mais constituído de maneira similar”? A doutrina a qual

Aristóteles está se referindo anda no mesmo compasso daquela do Timeu. No Timeu4, o

mundo sensível é chamado de “uma criatura viva com alma e razão” e, por conseguinte, o

“Universo vivente” pode muito mal ser algo além da Idéia através da qual, de acordo com o

Timeu, o Demiurgo modelou o mundo sensível. Em vista do freqüente uso da palavra prôtos

por Aristóteles para distinguir números ideais e matemáticos, os “comprimento, largura e

profundidade primários” serão as Idéias de comprimento, largura e profundidade. Além disso,

a Idéia do mundo sensível é uma Idéia composta, sendo seus elementos a Idéia do Um e os

elementos formais ou ideais na linha, no plano e no sólido, i.e. as Idéias de 2, 3 e 4. Isso é um

modo pitoresco de dizer que o número e a extensão tridimensional são os aspectos

fundamentais estruturais do mundo sensível – uma visão que o Timeu expõe amplamente. Eu

vejo “tudo mais sendo constituído de maneira similar” como significando que os mesmos

elementos que estão presentes na Idéias de mundo sensível estão presentes na Idéia de cada

uma de suas partes – de cada criatura viva, seja uma estrela, um animal ou uma planta.

O restante da passagem do De Anima, reservo para o próximo capítulo.

Page 170: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

170

XIV – AS IDÉIAS E A ALMA Tradução:

Juliana Rabelo

grande platonista, Leon Robin, pondera a visão platônica que atribui à alma uma

afinidade especial com os ‘’inter-mediários’’, os objetos da matemática. É pouco

provável que Platão tenha considerado tal estranho ponto de vista, e não há provas

de que ele o tenha de fato feito.

Há ainda evidências para dizer que Platão considerou que a alma é, em algum sentido,

intermediária entre as Idéias e as coisas sensíveis, assim como, que ele tenha considerado que

os objetos da matemática também sejam (embora por um motivo bem diferente). Há uma

passagem no Fédon que descreve a alma como semelhante às Idéias e mais real do que os

corpos: “A alma é mais similar ao divino, imortal,

inteligível, uniforme, indissolúvel, e imutável; assim como o corpo é mais similar ao humano,

mortal, multiforme, ininteligível, dissolúvel, e em perpétua mudança". Existe a afirmação, nos

sofistas de que a alma possui a verdade do ser, nada menos do que as Idéias. Há uma

afirmação nas Leis de que “a alma está entre as coisas primeiras, a mais velha nascida do que

todos os corpos e fonte primordial de todas as suas alterações e transformações”. Além de

tudo, há também a passagem do Timeu na qual ele atribui à alma formas de existência,

igualdade e diferença intermediária entre os que são próprios das Idéias e os que são próprios

dos corpos. Com esta passagem, podemos conectar a declaração de Aristóteles de que "Platão

no Timeu constrói a alma sem elementos, para então manter, como se sabe as coisas

compostas de elementos finais”. Robin supõe que os elementos em questão são o Uno e a

indeterminada Díade, que iriam ligar a alma de uma só vez com os números ideais. Mas no

Timeu nada é dito sobre o Uno e a indeterminada Díade; os únicos elementos atribuídos à

alma são igualdade e diferença. Da mesma maneira que Aristóteles pensa, é mostrado,

também, por sua declaração de que a razão para Platão ter atribuído os mesmos elementos a

alma assim como para as coisas sensíveis

1 T.p.I.N. 479-98. 2 Met. 987b 14-18. 3 80 a 10-b 5

4 248 e 6-249 b 4. 5 892 a 4-7 6 34 94-35 b 1.

O

Page 171: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

171

7 De Na. 404 b 16-18 8 T.p.I.N. 310

pode apenas ser conhecida da seguinte maneira: precisamente a razão que é dada por Platão

na passagem do Timeu atribui ao ser, igualdade e diferença como semelhantes às idéias, almas

e corpos. O argumento é corretamente resumido por Proclus: A alma consiste de três partes:

Existência, igualdade e diferença, sob uma forma inter-mediária entre as coisas indivisíveis e

divisíveis, por meio destas, ela conhece ambas as ordens das coisas... Para todo efeito é assim

realizado através da semelhança entre o conhecedor e o conhecido.

Mais tarde, porém, Platão parece ter oferecido outra proposição análoga entre a alma

e os objetos de sua consciência. Teofrastus nos diz que Platão derivou a alma dos números e

do Uno. E Aristóteles, na De Anima, imediatamente após demonstrar que no Timeu Platão

usou o princípio da reminiscência diz:

“Semelhantemente também ev góis pepi filouofiaj legouevoij foi separado que o animal em si

mesmo é composto da idéia – em si mesma do Uno junto com o primário comprimento,

largura e profundidade, e tudo mais semelhantemente constituído. Novamente, isso foi

colocado de outra maneira: Razão é o mono, ciência o duo (isso vai de acordo com uma única

conclusão), opinião do número do plano, sensação do número do sólido. Os números são

expressamente identificados com suas próprias formas ou princípios, e são formados sem

elementos; agora as coisas são apreendidas também pela razão ou pela ciência ou pela opinião

ou pela sensação, e esses mesmos números são as formas das coisas.”

Platão tratava os números 2, 3, 4 como as formas principais da linha, do plano, e do

sólido, mas tenho tentado mostrar de outra maneira. E nesta passagem a afirmação do 1, 2, 3,

4, para as faculdades mentais é tão interligada com a afirmação dos 2, 3, 4 para linha, o plano

e o sólido que estamos traçando uma suposição de que Aristóteles aqui está se referindo ao

Platão.

A razão era correlata com o Uno porque era a apreensão direta da idéia única. Ciência era

correlata com o número 2 porque vem de um dado único até uma única conclusão (assim diz

Aristóteles), e os antigos comentadores do De Anima são portanto,

1 37 a 2-b 3. 2 In Tim. 2.298 (Dichl). 5 pp. 208-12

3 Met. 6b 2. 4 404b 18-27.

Page 172: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

172

provavelmente, corretos em dizer que opinião era correlata com número 3 porque este se

move diferentemente de um único dado também à uma verdade ou a uma falsa conclusão;

alternativamente talvez tenha sido correlato com o número do plano porque, a partir de um

ponto em um plano linear pode ser atraída qualquer direção, então de um único dado a

opinião pode atrair qualquer um dos números de conclusões.

A razão dada pelos antigos comentadores para a correlação da sensação com o número 4 –

que os objetos no mundo sensível são sólidos e 4 era o número atribuído ao sólido – não está

nas mesmas linhas como suas proposições de outras correlações, mas isso se deriva de uma

base da passagem nas Leis: “a condição em que vem-a-ser universalmente acontece – o que é

isso?” Manifestadamente é resultado sempre que um ponto de partida recebe uma melhoria e

então vem para sua segunda fase, e desta para próxima e assim por três fases adquire

perceptibilidade. Desse modo, Platão diz que nem um ponto, nem uma linha, nem um plano,

mas somente um sólido é um possível objeto de percepção.

Em sua última fase, então, Platão estabelece uma correlação entre quatro faculdades da alma

e quatro tipos de objetos geométricos. Entre sensação e o sólido, ele reconheceu uma direta

correlação, tratando um propriamente como objeto do outro. Entre razão e o ponto, entre

ciência e a linha, entre opinião e o plano, ele reconheceu nenhuma correlação direta, mas ele

correlacionou ambas razões e o ponto com o Uno, ciência e sua linha com seu número 2,

opinião e seu plano com seu número 3.

1 Philop. 79.28; Simp. 29.6; Them.12.9. 2 i.e.3. 3 894 a 1-5.

Page 173: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

173

XV – AS IDÉIAS E OS NÚMEROS IDEAIS Tradução:

Beatriz Feretti

ós estamos agora em uma posição melhor do que estivemos até agora, considerando

a relação, no sistema de Platão, entre os números ideais e as Idéias em geral. Por um

lado, existe uma série de passagens impostas nas quais Aristóteles diz, ou claramente

sugere, que para Platão todas as idéias eram números. Por outro lado tem uma passagem

importante na qual Teofrasto diz que números(ex. os números ideais) eram mais fundamentais

do que as idéias (ex. as outras Idéias). 'Platão ao reduzir as coisas aos princípios regentes

parecia estar tratando de outras coisas' (ex. coisas sensíveis) 'relacionando-as com Idéias, e

estas com os números, e estes números com os princípios regentes. Existe aqui um a aparente

contradição. Aristóteles identifica os números ideais com Idéias em geral; Teofrasto coloca os

números ideais acima dos das outras Idéias, intermedia entre eles e os primeiros princípios, ex.

Aquela e a 'grande pequena'. Prima facie, as evidências de Aristóteles tinha mais peso do que

as de Teofrasto, partindo do princípio de que Teofrasto provavelmente aprendeu o que ele

sabia sobre as ‘doutrinas não escritas’ de Platão com Aristóteles. Mas o argumento de

Teofrasto é muito definido e recebe apoio de uma passagem em qual Sexto Empírico diz: ‘As

idéias, que são incorpóreas, estão, de acordo com a Platão, anteriores aos corpos, e cada uma

das coisas que venha a existir está modelada nelas; mas elas não são o primeiro princípio das

coisas existentes, pois cada idéia tomada separadamente admite-se como uma unidade, em

virtude de suas inclusões de outras idéias, é dito ser duas ou três ou quatro, para que haja algo

maior do que a natureza delas, especificamente número, pela participação em que ‘um’ ou

‘dois’ ou ‘três’ ou até números maiores são predicados delas. Além disso, uma das passagens

em que Aristóteles se refere a esta questão, acaba por criar uma certa duvida em sua

identificação das idéias com números; “Se as idéias não são números, então nenhuma delas

pode existir de fato. De que princípios essas idéias serão derivadas? É o número que vem ou

provem daquela e da indefinida interação e os princípios ou elementos são ditos a serem

princípios e elementos de número, e as idéias não podem ser classificadas como anteriores ou

posteriores aos números”. A última cláusula dessa passagem sugere que o argumento de

Aristóteles em que Platão identificou as idéias com números foi baseado em sua inferência

sobre o que Platão disse, e não só como um simples argumento de Platão.

Devemos considerar as probabilidades gerais. Aristóteles diz que de acordo com os

Pitágóricos, todas as coisas são números. Mas este argumento, interpretado literalmente,

atribui aos pitagóricos uma atitude impossível. Para formar a grande concepção de número,

um grande grau de abstração era necessário; mas as pessoas capazes disto não eram

totalmente capazes de identificar as coisas concretas do dia-a-dia, homem e mulher, troncos e

pedras, e coisas como dualidade, trialidade e coisas do gênero. Apenas um selvagem primitivo

seria capaz de algo tão completamente confuso, mas um selvagem primitivo não poderia nem

formar uma concepção abstrata de número. Mas os pitagóricos do quinto século não eram

selvagens primitivos; eles eram membros de talvez uma das mais inteligentes e conhecidas

N

Page 174: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

174

raças que o mundo conheceu, no auge de sua civilização. Só podemos concluir que se eles

disseram, ‘todas as coisas são números’, o que eles quiseram dizer era que na base de todas as

coisas reside uma certa estrutura aritmética. Nós conhecemos algumas das instâncias que se

tinham em mente. Eles sabiam que as medidas 1:2, 2:3, 3:4 estavam na base de intervalos

melódicos; eles conheciam muitas das medias que existem entre as figuras geométricas.

Partindo de fatos como estes, eles fizeram a ousada generalização de que números sustentam

a base de tudo. E eles também disseram, ao expressar isto, 'todas as coisas são números', que

na verdade, não significa mais do que as “coisas existem por imitação dos números”, como

Aristóteles expressa, em uma das suas passagens, a visão deles.

É razoável supor do argumento de Aristóteles que de acordo com Platão, 'todas as

idéias eram números' seria similarmente explicado. Já descobrimos que Platão reconheceu um

elemento aritmético na existência da linha, no plano, e também no sólido. Mas ele não

identificou-os com os números 2, 3, 4; ele tratou esses números como o elemento formal na

existência da linha, do plano e do sólido, e o espaço ou extensão como elemento material; a

linha era a dualidade em comprimento (sua maneira de dizer 'em uma dimensão'), o plano era

a trialidade em largura (em duas dimensões), o sólido era a tetralidade em profundidade (em

três dimensões). Não é comum, no entanto, que ele também tenha tratado outras idéias além

daquelas da linha, do plano e do sólido, como tendo um elemento formal em qual era um

número, e um elemento ‘material’ em qual esse número era materializado? Mais uma vez os

pitagóricos mostraram o caminho. Eles disseram que a justiça é um número quadrado, e que

isso significa que a justiça era uma tetralidade materializada ou ilustrada em duas pessoas ou

duas posses para serem distribuídas ou trocadas entre eles.

É provável, então, que Platão não tenha identificado as idéias com números, mas

apenas atribuiu números a idéias; ele resguardou algumas idéias como monádicas, outras

como diádicas e assim por diante. Se procurarmos por espécimes de sua atribuição de

números a idéias, nós encontramos duas passagens que parecem promissoras. Em Met.

1081a11 Aristóteles diz, “Esse três não e mais como o homem em sido que qualquer outro

três”, e em 1084ª14, “Se o número três é o homem em si”. Mas em 1084ª25, ele diz “Se o

homem é o número 2”; então ele está claramente criando suposições pelo propósito do

argumento; então é ele quando ele diz “Se 4 ele mesmo é a idéia de nada, assim como idéia de

cavalo e como idéia de branco”

Existem duas outras referências que devem ser consideradas juntas. Uma está em

Met. 1084ª33-7, onde nos dizem que membros da Academia 'criam os derivados – o vácuo,

proporção, o estranho, e outras coisas do gênero – dentro da década. Para algumas coisas –

movimento e descanso, o bem e mal – eles atribuem aos primeiros princípios, e para os outros

números. Isso é o porquê eles identificam o estranho com Aquele.' A segunda passagem é

Teofratos, Met.6ª23-b3, que foi citada na página 210 – 11 acima.

Ambas as passagens em todas essas probabilidades se referem a Platão e seus

ortodoxos seguidores; a primeira, por que se refere a limitação das séries de números para os

números de dois a dez, os quais Phys. 206 b32 é definitvamente apontada a Platão; a segunda

por causa das pessoas referidas a esta estarem explicitamente distinguidas entre Espeusipos e

Xenócrates. A passagem aristotélica é confusa; o vácuo, proporção e o estranho parecem estar

Page 175: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

175

conectados com números, enquanto o movimento e descanso, o bem e o mal, estão

conectados com os primeiros princípios (Aquele e a Indefinida Relação), e ainda o estranho é

identificado como Aquele, o qual não é um número, mas sim um princípio primeiro. A

passagem de Teofratus, novamente, quando descreve a alma como derivada de números e

Aquela, é vaga de mais para ser (interpretadas sozinhas) de muita utilidade; não poderíamos

nem pelo seu argumento nem pelo de Aristóteles, descobrir com certeza com qual número

Platão conectou cada idéia.

Encontramos com tudo, duas passagens que permitem-nos fazê-lo. Uma é

Met.1090b20-4, onde Aristóteles diz que aqueles que acreditam em idéias ‘derivam

comprimentos do número 2, planos presumidamente do número 3, e sólidos do número 4’. O

outro é De Na. 404 d18-25, onde a mesma visão é novamente recordada, e é adicionada essa

razão que foi identificada com Aquela, ciência com número dois, opinião com número três e

sensação com o número 4. O que essas duas assagens têm em comum é que mostram que

Platão conectou uma idéia particular com um número particular quando ele pensou que a

idéia incluía um número definido de elementos em seu ser. Linearidade envolveu um objeto

de apreensão, ciência envolveu uma premissa e a conclusão, opinião envolveu uma premissa e

duas possíveis conclusões opostas, sensação envolveu um objeto sólido, que por sua vez

envolveu 4 pontos (não em um plano).

Incidentalmente, podemos notar que as atribuições de Platão para o número 2

pertencem tanto à linha quanto à ciência, as para o número 3, ao plano e à opinião, as para o

número 4 pertencem ao sólido e à sensação, confirma a visão que chegamos em outros

campos, de que ele não falando literalmente, identificou as Idéias com números, mas atribuiu

números a idéias, ex. classificou idéias respectivamente como monadicas, diadicas, triadicas e

etc.

Como para princípios gerais os quais, separados desses casos, Platão conectou uma

idéia particular a um número particular do qual não temos nenhuma informação definitiva.

Mas seria seguro dizer que ele atribuiu um número dado a uma idéia dada apenas se ele

pensou que a idéia de alguma maneira envolvia aquele número de elementos; e podemos

talvez ser um pouco mais definitivos do que isso. Stenzel, e a escola de intérpretes que o

seguiu, interpreta a teoria do número ideal pela luz da divisão pregada e praticada em Sofista e

Político. Na base do número 1, seria atribuído a qualquer summum genus o número 2 a

espécies vindas imediatamente sobre um summum genus (desde que este contenha dois

elementos, um genérico e um diferencial), e assim por diante. Mas isso não é o principio em

qual os números 2, 3 e 4 foram atribuídos à linha, ao plano, e ao sólido, e os números 1, 2, 3, 4

para razão, ciência, opinião, sensação; para uma linha não e o tipo de ponto, para o plano não

é o tipo de linha, para um solido não é um tipo de plano, nem a ciência é um tipo de razão,

opinião é um tipo de ciência, sensação é um tipo de opinião. O argumento de Platão sobre os

números para com essas entidades é muito maior nas linhas do artigo pitagórico do número 4

para justiça. Por essa analogia, podemos justamente supor que Platão atribuiria 1 a idéia de

ser, e 2 a esse mesmo e a diferença deste. Atribuições de outros números a outras idéias

podem ser facilmente deduzidas; mas a extrema insuficiência da atual atribuição reportada em

Aristóteles ou em qualquer outro lugar sugestiona que Platão confinou-se declarando seus

princípios gerais e deu algumas ilustrações disso.

Page 176: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

176

Se Platão não identificou as idéias com números, mas apenas atribuiu números às

idéias, ex: classificar idéias como monádicas, diádicas, etc, a teoria não é, de forma alguma, a

fantasia selvagem a qual a primeira vista parece ser: nela, Platão estava apenas carregando o

esforço da abstração para um ponto mais longe que esta já havia sido carregada em abstralizar

idéias de senso particular.

Page 177: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

177

XVI – AS IDÉIAS E AS COISAS SENSÍVEIS Tradução:

Diogo

m seu resumo da fase mais recente de metafísica de Platão, Aristóteles não diz

somente que Platão tratou o Uno e o grande e o pequeno como sendo

respectivamente a forma e o princípio material envolvido no ser das Idéias, mas

também que ele considerou as Idéias de grande e pequeno como os princípios envolvidos no

ser nas coisas sensíveis; e temos agora que considerar uma interpretação de tal afirmação. A

linguagem de Aristóteles sugere que o elemento material nas coisas sensíveis eram idênticas

aos elementos materiais nas Idéias, mas é difícil acreditar que Platão em sua construção de

coisas sensíveis simplesmente adicionou uma segunda dose exatamente do mesmo princípio

que ele já usou uma vez na construção das Idéias. O mais óbvio fato sobre os corpos é sua

extensão espacial, e elas não poderiam derivar nem dos números Ideais ou do grande e

pequeno que Platão usou ao construir os números Ideais, que eram pluralidade simplesmente

indefinida. No Timeu ele havia claramente reconhecido espaço como algo que era tão

necessário para a existência das coisas sensíveis assim como para as Idéias das quais elas eram

cópias; e dificilmente acreditaremos que ele tenha voltado atrás nesta doutrina.

Aristóteles toca nessa questão em sua discussão sobre ‘lugar ' na Física; Platão no

Timeu observa 'digamos que matéria e espaço são os mesmos; para o participante (to

metalvptikov) e espaço são idênticos. É verdade, de fato, que a proposição lá dada por

ele de participante é diferente do que ele diz em seu tão chamado ensino não escrito. Não

obstante, ele identificou lugar e espaço. E mais tarde afirma ‘Platão devia nos dizer por que as

Formas e os números não estão no lugar, se o que participa é lugar-- se o que participa é o

grande e pequeno ou a matéria, como ele chamou no Timeu. Estas alusões mostram

claramente que Aristóteles não leu o Timeu com cuidado; elas contêm dois erros óbvios.

402

¹ 988ª8-14. ² C.f Leis 894 ª1-5, citado em p. 215.

E

Page 178: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

178

'O participante' é justamente uma paráfrase do receptáculo de Platão ' (upodoxv) ou

‘cadeira' (edpa)' adequada. Mas em primeiro lugar Aristóteles está errado em identificar isto

como a ‘matéria ' que toca uma parte tão grande de sua própria filosofia. A palavra ulv;

aparece no Timeu, mas em um contexto muito diferente e com um significado distinto; e

Platão deixa isso tão claro que ele concebe espaço não como a matéria das coisas sensíveis,

mas como o campo em que elas passam a ser. Ele se coloca passível ao erro quando ele ilustra

a função de espaço referindo tal como um tipo de matéria plástica (ekmageion), e compara

isto a um amontoado de ouro que pode ser formado e reformado. Mas isto é só uma

comparação; sua proposição tomada como um todo torna isto claro de maneira que ele

considera espaço não como uma matéria a ser formada em coisas sensíveis, mas como o

campo em que elas vêm a ser. E em segundo lugar, o que este campo recebe não são as Idéias

(como a objeção do Aristóteles implica), mas as cópias das Idéias.

Já que Aristóteles comete seguramente tais enganos, é fácil supor que ele tenha

cometido ainda outro. Platão pode ter usado muito bem, em sua proposição da gênese dos

números Ideais, a frase ‘o participante ' ou algo equivalente, mas Aristóteles deve ter se

enganado em supor que através disso Platão quis falar do mesmo participante que ele usa no

Timeu; o que ele necessitou na derivação das coisas sensíveis foi extensão ilimitada, mas na

derivação números Ideais pluralidade indefinida. Novamente, Platão poderia ter também a

frase ‘o grande e pequeno ' em ambas as conexões, mas essa frase é aplicável tanto para

extensão indefinida pelo menos como também para pluralidade indefinida.

Se esta linha de pensamento for correta, a afirmação de Aristóteles de que 'a matéria

subjacente das Formas são predicadas no caso das coisas sensíveis, e o Uno na tranqüilidade

das Formas, é um Duo, o grande e pequeno é de certo modo uma leitura precipitada do Timeu,

e de certo modo um precipitado conflito de que Platão escreveu no Timeu sobre a geração de

coisas sensíveis com que ele havia dito em seus ‘ensinos não escritos ' sobre a geração das

Idéias.

³ 209b11-16. 4 Ibid. 33-210 ª2.

Page 179: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

179

¹ 49 ª6, 5 ² b 1. ² 69ª6. ³ 50c2.

4 50 ª 5-b 6. 5 50 c 5; cf. 51 c 6-52 b 2. 6 988 ª 11-14.

Platão não fez como Aristóteles diz uso do mesmo participante em sua construção dos

números ideais e nem em sua construção de coisas sensíveis, mas no primeiro caso pluralidade

indefinida e no outra extensão indefinida. Não poderia existir um número a não ser que tivesse

unidade e pluralidade, já que cada número era tanto Forma única como também uma espécie

da pluralidade de gênero. Não poderiam ser coisas sensíveis a não ser que tivessem existido

Idéias das quais eram imperfeitas exemplificações e extensão em que elas devem existir, ‘sob

pena de sequer existir'.

Neste momento uma questão surge naturalmente. Platão já tinha pelo que parece,

usado extensão indefinida (a longa e curta, &c.) na geração da linha ideal, plano, e sólido. Ele

usa a mesma extensão indefinida na geração de coisas sensíveis? A resposta, acho pouco

distante para encontrar. O ‘sólido ideal' não é um sólido; é solidez; e o ‘ espaço envolvido em

seu ser não é espaço, mas espacialidade; o ‘sólido ideal' é o quatro exibido em espacialidade.

Deste modo, espaço em si mesmo, que tem espacialidade, ainda existe para ser usado na

geração de coisas sensíveis que são exemplificações de ‘o quatro’ exibidos na espacialidade.

Nenhuma de nossas evidências sugere que as entidades matemáticas, que Platão

tratou como intermediárias entre os números ideais e as magnitudes por um lado e grupos de

números sensíveis e formas sensíveis por outro, atuaram uma parte na geração da última. O

Uno e a pluralidade indefinida eram pressupostos necessários dos números ideais; os números

ideais e espacialidade indefinida eram os pressupostos necessários das figuras ideais; as figuras

ideais e espaço eram os pressupostos necessários das coisas sensíveis; as entidades

matemáticas desaparecem desta visão. O que, então, Platão pensou sobre elas em seu período

mais recente? Não sabemos; mas nós podemos supor que ele veio a pensar nelas como ficções

matemáticas. Ele certamente pensou tanto nesta questão; que tem sido um grande enigma o

porquê de ele o ter feito.

¹ Tim. 52 c 5.

² `Platão mesmo acostumado a se opor aos pontos como um dogma geométrico. Ele

costumava dar o nome de “princípio da linha” – assim ele usualmente posicionava – a suas “indivisíveis

linhas” ‘ (992 a 20-2).

Page 180: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

180

Isto se torna mais inteligível se nós supusermos que ele não só pensou em um ponto de

posição, sem nenhuma magnitude impossível, mas pensou também uma linha de

comprimento, mas nenhuma largura ou profundidade, e um plano de comprimento e largura,

mas nenhuma profundidade, impossível. As Idéias de posição, comprimento, largura, e

profundidade permanecida para ele como real e distinta; mas pode-se sugerir que ele veio a

pensar que a suposição da existência de pontos, linhas, e planos que definiu pelos

matemáticos eram simplesmente uma invenção necessário por fazer possíveis o estudo de

sólidos.

Deve ser lembrado que no Timeu, explicar a existência do mundo sensível de Platão

sugere somente três coisas, separadamente de Diógenes — as Idéias, ‘as coisas que entram e

saem do espaço ', e espaço propriamente. Mais adiante, as coisas que entram e saem do

espaço não são o intermediárias como são os objetos da matemática; para elas são sensíveis e

produzíveis enquanto os intermediários não são sensíveis e eternos. Novamente, as coisas que

entram em e somem do espaço não são perfeitos exemplificações de Idéias, mas

aproximações somente íntimas para tal ser; ‘no que se relaciona a seus números, seus

movimentos, e seus poderes em geral, nós devemos supor que o deus ajustou elas em

proporção devida, quando ele trouxe para dentro cada detalhe para a mais perfeição de exato

permitido por Necessidade de boa vontade concordando com persuasão'. Assim, os

intermediários não formam nenhuma parte de esquema cosmológico de Platão, e ele parece

altamente provável que ele veio considerá-los como ficções necessárias para geometria, mas

não tendo nenhum lugar em realidade. É possível que até quando ele escreveu a República ele

veio pensar que isto é parte de seu significado quando ele falar de dialético como anulando as

hipóteses de matemática.5

_______________________________________________

¹ 51 e 6-52 b 5. ² 52 a 5.

3 Met. 987 b 14-18. 4 Tim. 56 c 3-7. 5 533 c 8.////

Page 181: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

181

XVII - RETROSPECTO

Tradução:

Eraci de Oliveira e RicardoVieira

essência da teoria das idéias se apóia no reconhecimento consciente do fato que há

uma classe de entidades, para a qual o melhor nome provavelmente é ‘universais’, que

são totalmente diferentes das coisas sensíveis. Consciente ou não, qualquer uso da

linguagem envolve o reconhecimento do fato de que há tais entidades; pois toda palavra

usada, exceto nomes próprios – substantivo abstrato, substantivo comum, adjetivo, verbo, até

mesmo todo pronome e toda preposição – é o nome para alguma coisa da qual há ou talvez

haja exemplares. O primeiro passo para o reconhecimento consciente desta classe de

entidades foi, se nós podemos acreditar em Aristóteles, tomado por Sócrates quando ele se

concentrou na busca por definições; a pergunta pelo sentido de uma palavra comum foi um

passo do mero uso da palavra para o reconhecimento dos universais como uma classe distinta

de entidades. Mas Sócrates deu a impressão de estar interessado na definição de uma coisa

por vez, e não pareceu ter visto o significado geral do que ele estava fazendo; Platão

realmente viu que o que era comum a toda busca de definição era a suposição que há tais

coisas como os universais. Ele viu também que a diferença objetiva entre universais e

particulares corresponde à diferença subjetiva entre ciência e percepção dos sentidos. Os

sentidos tornam presentes para nós um mundo de eventos particulares, no qual as qualidades

estão presentes quase inextricavelmente conjugadas e confusas; se nós recorrêssemos apenas

aos sentidos, nunca seríamos capazes de nos desvencilharmos deles e alcançar o claro

entendimento da estrutura do mundo. Mas, com razão, nós temos uma faculdade pela qual

nós podemos capturar os universais na sua forma pura e até certo ponto ver a relação que

necessariamente existe entre eles. O melhor exemplo que nós temos deste poder se acha na

matemática, e Platão foi o primeiro pensador que viu isto claramente. Quando dizemos que ‘2

mais 2 são 4’, nós não estamos simplesmente insinuando que experimentamos com

freqüência exemplos, situações, nos quais isto é assim, e que nunca achamos um exemplo do

contrário; o que é verdadeiro de ‘2 mais 2 são 4’, nos advém das mais avançadas proposições

matemáticas, ou seja, nós percebemos da natureza do sistema dos números que isto deve ser

assim. Platão viu na matemática o mais claro exemplo do poder da mente para perceber

relações entre os universais, e é por isso que, na República, ele faz da matemática a introdução

necessária à filosofia. Mas isto era somente o começo para o que ele considerou como a

possibilidade de percebermos similarmente as relações necessárias entre outros universais,

diferentes daqueles tratados pela matemática; no Fedon ele nos deu uma, e no Sofista uma

outra, modesta demonstração de tal compreensão403. De maneira geral, isto ainda é um anseio

insatisfeito; mas nós devemos a Platão que tenhamos tal aspiração de todo modo. Ele às vezes

expressava seu anseio intensamente, como na República, por exemplo, em que ele fala da

dedução de toda a natureza do sistema das Idéias de um único indubitável primeiro princípio.

Nisto ele estava enganado; Aristóteles estava mais próximo da verdade quando sustentou – e

403

Cf. pp. 32-3, 111-16.

A

Page 182: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

182

isto é a essência da sua teoria do silogismo – que apenas por combinar duas premissas

relacionadas de certa maneira é que nós podemos extrair novas conclusões. Mas, como nós

vimos404, a doutrina de Aristóteles ela mesma deve sua origem a um princípio metafísico que

Platão descobriu, que são as Idéias tão relacionadas entre si mesmas que uma ‘arrasta’ a outra

consigo – em outras palavras, na sua crença de que o mundo das Idéias forma um sistema de

relações necessárias. Apesar desta comunidade de pensamento entre Platão e Aristóteles, a

questão na qual Aristóteles coloca tanta tensão – aquela quanto a se os universais existem a

parte dos particulares ou não - parece quase ser uma mera questão de palavras.

Qualquer um que escreva sobre a teoria das Idéias é obrigado a declarar tão

precisamente quanto possa o que realmente era a concepção de Platão da relação das Idéias

com os particulares. Quando a escola de Marburg de Cohen e Natorp estava em ascensão, era

comum dar-se um valor puramente conceitualista da visão de Platão, e se falar que toda noção

de ‘separação’ das Idéias dos particulares foi forjada nele por Aristóteles. Este ponto de vista

não sobreviverá a um exame; ele é a expressão do que os seus detentores pensam que Platão

deveria ter dito, e não o que ele realmente disse. Seria fácil encadear passagens tiradas de

todos os períodos da vida literária de Platão nas quais existência objetiva é atribuída as Idéias.

Aqui estão passagens de três períodos.

No Fedon405 ele diz:

‘No início de nossa palestra foi afirmado que uma coisa se forma da coisa contrária;

mas, neste momento, o que se diz é que o contrário em si não se forma de seu contrário, tanto

em nós mesmos quanto em sua natureza’.

No Parmênides406 ele diz:

‘Estas formas são, como eram, modelos fixos da natureza das coisas; as outras coisas são feitas

segundo sua imagem e lhes são semelhantes.’

No Timeu407 ele diz:

‘Haverá o que se denomina o fogo em si mesmo, e todas as coisas a que nos referimos

a cada instante, como existentes em si mesmas? Ou só terão esta realidade as coisas que

vemos ou de outro modo percebemos por meio do corpo, nada mais havendo, além dessas

coisas em parte alguma, e não passando de palavrório sem significado tudo o que afirmamos a

respeito da existência de uma idéia inteligível para cada coisa? Simples palavreado tudo

isso?...Se a inteligência e a opinião verdadeira constituem gêneros distintos, então essas coisas

existem certamente em si mesmas: são idéias que não percebemos por meio dos sentidos, mas

apenas por intermédio do espírito...Se for assim, teremos que admitir que há, primeiro, a idéia

imutável, que não nasce nem perecerá nada recebe em si mesma do exterior nem entra em

nada, não é visível nem perceptível de qualquer jeito, e só pode ser apreendida pelo

404

P. 34. 405

103 b 2-5. 406

132 d 1 -3. 407

51 b 7-52 d 1.

Page 183: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

183

pensamento...que a imagem , por isso que não lhe pertence nem mesmo o princípio em vista

do qual ela se formou, não passando, pois, de um fantasma sempre mutável de outra coisa,

deve, por tal razão, nascer em outra coisa e agarrar-se, de qualquer modo à existência, sob

pena de não ser nada, absolutamente, ao passo que o ser real conta com o raciocínio exato e

verdadeiro, o qual declara que, enquanto duas coisas forem diferentes, jamais uma delas

poderá nascer na outra, de forma que ambas se tornem uma e a mesma e duas coisas ao

mesmo tempo’.

Muitas passagens similares poderiam ser citadas.

Que conclusões podem ser tiradas de passagens como estas?

Primeiro, claro, que Platão constantemente pensava nas Idéias como diferentes das

coisas sensíveis. Em segundo, e com igual certeza, que ele considerava as Idéias como

entidades completamente objetivas, cuja existência é pressuposto de todo nosso

entendimento; ou seja, que ele não pensava nas Idéias nem como pensamentos nem como

‘conteúdo de pensamentos’ (seja o que for que essa frase possa significar). Em terceiro, que

ele pensava nelas como existindo separadamente das coisas sensíveis; logo, para esta questão

uma simples resposta pode ser dada. Pode-se buscar ajuda num estudo das palavras que ele

usa ocasionalmente para expressar a relação entre Formas e particulares. Estas palavras

podem ser divididas em dois grupos: um grupo que sugere a imanência das Formas, e um

outro grupo que sugere a sua transcendência.

(I)

( 1) en, eînai, en, eineînai, engì gnesthai, keîsthai en.

( 2) kektesthai, ékhein, ískhein, éxis, dékhesthai.

( 3) metékhein, metá skhesis, méthexis, metalambá nein.

( 4) paragígnesthai, pareînai, parousía.

( 5) prosgígnesthai.

( 6) koinón, koinê, koinonía, koinoneîn.

( 7) epeînai, epigì gnesthai.

( 8) katékhein.

( 9) iénai eîs.

Page 184: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

184

(II) (a) parádeigma.

(b) autó kath autó.

(c) boulesthai, orégesthai, prothymeîsthai.

(d) eoikénai, proseoikénai, eikón, eikázesthai, apeikázesthai.

(e) takeî.

(f) homoíoma, aphomoiysthai, aphomoíoma.

(g) mimeîsthai, mímesis, mímema, apomimeîsthai.

A seguinte lista de ocorrências destas palavras nesta seqüência está sem dúvida

incompleta, mas é suficiente para fornecer uma indicação fiel do uso de Platão fazia delas. A

‘primeira parte’ do Parmênides é omitida, porque nele Platão não está expressando seu ponto

de vista, mas, discutindo-o. A parte do Sofista na qual a ‘comunhão dos tipos’ é discutida é

omitida também, porque a relação de uma Idéia com uma outra Idéia é um assunto diferente

da sua relação com os particulares.

Laques.

(1) 191 e 10, 192 a 2, b 6.

(2) 192 a 4.

Eutifron.

(2) 5 d 3. (a) 6 e 4.

Górgias

(3) 467 e 7.

Page 185: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

185

(4) 506 d 1.

Hípias Maior.

(2) 298 b 4, 300 a 9.

(4) 293 e 11, 294 a 1, c 4, 6.

(5) 289 d 4, 8, e 5, 292 d 1.

(6) 300 a 10.

(7) 300 a 10, 303 a 5.

Lisias.

(4) 217 b 6, d 4, 5, 8.

Eutidemo.

(4) 280 b 2, 301 a 4.

Menon.

(1) 72 e 1, 7.

Crátilo.

(1) 390 a 1, b 2, 301 a 4.

Banquete.

(2) 204 e 6.

(3) 211 b 2. (b) 211 b 1.

Page 186: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

186

Fédon.

(2) 103 e 4, 104, 104 b 9, d 2, (b) 78 d 5, 100 b 6.

e 8, 9, 105 a 2, 5, 7, b 1, (c) 74 d 9, 75 b 1, 7.

d 11-106 d 4.

(3) 100 c 5, 101 e 3, 5, 102 b 2. (d) 74 e 3.

(4) 100 d 5.

(5) 100 d 6

(6) 100 d 6.

(8) 104 d 1.

República.

(1) 402 e 5, 434 d 6-435 e 1. (a) 500 e 3.

(3) 476 d 1, 2.

(6) 476 a 7.

(9) 434 d 3.

Fedro. (d) 250 b 4, 5.

(1) 237 d 6. (e) 250 a 2, 6.

(6) 265 e 4. (f) 250 a 6, b 3.

Parmênides.

(1) 150 a 1, 2, 3.

(2)149 e 5, 159 e 5.

Page 187: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

187

(3)158 b 6 - c 4, 160 a 2.

Teeteto

(2) 200 e 4. (a) 176 e 3.

Sofista.

(2) 247 a 5.

(3) 228 c 1.

(4)247 a 5, 8.

(6)252 b 9, 260 e 2.

Timeu (a) 28 a 7, 29 b 4, 39 e 7, 48 e 5, 49 a 1.

(b) 51 e 1

(d) 29 b 2, 3, c 1, 2, 52 c 2, 92 c 7.

(f) 50 d 1, 51 a 2.

(g) 39 e 2, 48 e 6, 50 e 5.

Filebo.

(1) 16 d 2.

(2) 25 b 6.

Certas coisas emergem claramente da consideração destas passagens. É claro que há

um movimento geral que vai da imanência para a transcendência. Na fase da juventude quase

tudo falava da imanência. O único uso, nesta fase, de para/deigma não é uma exceção real, já

que Platão no início descreve não a relação dos particulares com a Idéia, e sim a relação do

intelecto humano com a Idéia, ‘para a qual ele olha, e usa como um modelo’. A evidência mais

Page 188: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

188

significativa da visão ‘transcendental’ está na passagem do Fedon408 , já citada, onde ele diz: ‘...

o que se diz é que o contrário em si não se forma de seu contrário, tanto em nós mesmos

quanto em sua natureza’.

No Parmênides409 Platão distingue expressamente as duas visões, trazendo a objeção do

‘terceiro homem’ contra a visão de que a Idéia é imanente nos particulares, e depois410, contra

a visão de que a Idéia é um modelo que é imitado. Mas mesmo neste caso a distinção não está

bastante nítida, já que ele descreve ‘imitação’ não como uma alternativa para ‘participação’,

mas como uma maneira de interpretar ‘participação’411; e ele continua usando ambas as

expressões nos diálogos da velhice.

Embora Platão comece a usar o linguajar da transcendência ocasionalmente a partir do

Banquete e onipresentemente no Timeu, nenhuma vez sequer ele responde, ou tenta

responder, à objeção à visão transcendentalista, que ele mesmo faz no Parmênides com o

‘terceiro homem’. Algumas vezes foi dito que ele já tinha respondido a si próprio pelo uso que

ele faz na República de outro argumento, retomado infinitamente, para provar que não pode

haver duas Idéias de cama. Mas isto é um engano; mostrar que a existência de duas Idéias de

cama envolveria a existência de uma terceira Idéia por trás delas não implica mostrar que a

existência de uma Idéia e de um particular semelhante a ela não envolve uma outra Idéia por

trás de ambos.

Que Platão não estava totalmente satisfeito com a visão ‘transcendente’ é mostrado

também pelos seguintes fatos: o argumento final na ‘primeira parte’ do Parmênides412 é

dirigido precisamente contra a visão ‘transcendente’, não contra a visão ‘imanente’; esta

objeção não é encontrada em nenhum lugar por ele; e ele continua nos diálogos da velhice a

usar com alguma amplitude a linguagem da imanência.

A única conclusão possível parece ser que, enquanto ele não estava totalmente satisfeito nem

com uma nem com outra expressão, ele não viu outro caminho para chegar mais perto da

verdade do que usar ambas, uma enfatizando a familiaridade do elo entre um universal e seus

particulares, a outra a incapacidade de cada particular ser uma perfeita exemplificação de

algum universal. Ele pode mesmo ter pressentido o fato de que a relação é completamente

única e indefinível. ‘Participar’ e ‘imitar’ são metáforas para a relação, e o uso das duas

complementarmente é melhor do que o uso exclusivo de uma delas.

O linguajar de Platão acerca da relação dos particulares com o universal teria se

beneficiado por um reconhecimento mais claro do que ele parece ter alcançado na distinção

entre duas classes de qualidade (e duas classes de relação). Há qualidades, como a quentura

ou a escuridão, que admitem gradações de intensidade, e qualidades como a retidão e a

quadratura que não admitem gradações. No caso das primeiras, frases tais como ‘participar

de’ são apropriadas para os particulares que admitem a qualidade com alguma gradação. No

408

103 b 2-5. 409

132 a 1- b 2. 410

132 c 12 – 133 a 7. 411

132 d 3 -4. 412

133 b 4 – 134 e 8.

Page 189: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

189

caso das últimas, algumas coisas admitem propriamente que seja dito que elas possuem as

qualidades, e de algumas das coisas que não possuem as qualidades pode-se razoavelmente

dizer que se aproximam de possuir as qualidades ou, como Platão falou, ‘imitam-nas'. Em

nenhum lugar ele atribui expressamente a relação dos particulares com o universal nem a

estas duas classes de qualidade, nem às suas duas classes de expressão, mas pode ser que a

existência das duas classes tenha influenciado-o a usar uma variedade de expressões.

Quanto à fase do pensamento de Platão representada pelo Timeu, Aristóteles foi justo

em atribuir-lhe413 uma completa separação entre as idéias e as coisas sensíveis, o que é

confirmado por uma consideração do que Platão acreditava sobre tempo e espaço. Sua

concepção da relação das Idéias com o tempo e com o espaço está claramente declarada no

Timeu. Assim como mudança envolve tempo, ele considera o tempo como envolvido na

mudança. A natureza das Idéias para ele era tal, que justificadamente, não admitia

mudança414. Platão descreve o tempo como tendo sido trazido à existência pelo Demiurgo

simultaneamente com o mundo sensível regular; correspondentemente, as Idéias e o

Demiurgo são eternos.

‘Quando o pai percebeu vivo e em movimento o mundo que ele havia gerado à

semelhança dos deuses eternos, regozijou-se, e na sua alegria determinou deixa-los ainda mais

parecido com o seu modelo. E por ser esse modelo um animal eterno, cuidou de fazer também

eterno o universo, na medida do possível. Mas a natureza eterna desse ser vivo não podia ser

atribuída em toda a sua plenitude ao que é engendrado. Então, pensou em compor uma

imagem móbil da eternidade, e, ao mesmo tempo em que organizou o céu, fez da eternidade

que perdura na unidade essa imagem eterna que se movimenta de acordo com o número a que

chamamos tempo’.415

Conquanto o tempo seja um produto da divina inteligência, Platão fala de forma

razoavelmente diferente sobre o espaço. O espaço é introduzido no Timeu, não na parte em

que ele descreve a atividade do Demiurgo416, mas naquela em que ele trata ‘do que acontece

com a necessidade’417 – i.e. dos aspectos do mundo que não são devidos à divina inteligência,

mas que se têm de levar em conta. O espaço é de fato o terceiro fundamento do sistema

estabelecido no Timeu, coeterno com as Idéias e com o Demiurgo. As idéias não penetram o

espaço, mas ele é o receptáculo para as cópias das Idéias que formam o mundo sensível.

Assim, as Idéias transcendem o tempo e não estão no espaço; já as coisas sensíveis

estão no tempo e no espaço. A independência concedida às Idéias por Platão é a mais clara

evidência do que Aristóteles disse: que Platão as ‘separa’ das coisas sensíveis. Nos diálogos da

juventude, escritos enquanto Platão estava completamente influenciado por Sócrates, é

natural que não haja traço de transcendentalismo, pois como disse Aristóteles, Sócrates estava

interessado apenas em determinar o semelhante, o que era comum na natureza de todos os

atos justos, de todos os objetos belos. Mas conforme Platão amadureceu intelectualmente, ele 413

Na. Post. 77ª5; Met. 99 1 a 12 – 14, b 1 -3, 1033 b 26 -9, 1079 b 12 – 18, 1086 b 2 -12. 414

Fedon 78 c 1 – d 9. 415

Tim. 37 c 6 – d 7. 416

29 d 7 – 47 e 2. 417

47 e 3 – 69 a 5.

Page 190: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

190

deslocou-se gradualmente na direção da visão transcendental das Idéias como entidades

existentes por sua própria conta e apenas imperfeitamente espelhadas nas coisas sensíveis e

nas ações humanas. Naturalmente é sobre este Platão maduro que Aristóteles escreve, junto

ao qual ele se formou e contra o qual ele verdadeiramente formula a acusação de ter separado

as Idéias das coisas sensíveis418.

No entanto, há muito mais no tratamento de Aristóteles da doutrina Platônica que é

puramente censura. Seria tedioso tentar um exame completo da crítica de Platão que abunda

na Metafísica e em outras obras de Aristóteles; mas há uma acusação cuja incorreção deve ser

apontada. Aristóteles confia a Platão ter reconhecido duas das quatro causas que ele mesmo

reconhece – a material e a formal – mas acusa-o de ter ignorado as causas eficiente e final419.

Eventualmente, é um erro dizer que Platão reconhece a causa material. Como diz

Aristóteles, é indubitável que Platão na sua última fase descreve as Idéias-números como

‘gerados’ pela união do elemento formal (singularidade) com o elemento quase material (o

grande e o pequeno, ou pluralidade indefinida); mas Platão em nenhum lugar reconhece

literalmente o elemento material na existência das coisas sensíveis. No Timeu, o único dos

seus diálogos no qual ele seriamente leva em conta o mundo sensível, o espaço não é a

matéria implícita na existência das coisas sensíveis, mas apenas o meio no qual elas se tornam

existentes. Como exemplo da sua boa vontade de ler em pensadores anteriores o prenúncio

da sua própria doutrina, Aristóteles identificou o ‘espaço’ de Platão com a sua própria

‘matéria’420. Platão num ponto deixa uma abertura para o mau entendimento, quando usa o

símile da matéria plástica para ilustrar sua concepção do espaço,421 o que não deve ser tomado

como uma descrição mais precisa da natureza do espaço do que sua comparação da função do

espaço com uma enfermeira ou uma mãe422.

A passagem que Aristóteles indica como evidência para a acusação contra Platão por

ele haver ignorado a causa eficiente é uma passagem do Fedon onde Sócrates diz:

‘Não compreendo nem posso admitir aquelas outras causas científicas. Se alguém me

diz por que razão um objeto é belo, e afirma que é porque tem cor ou forma, ou devido a

qualquer coisa do gênero – afasto-me sem discutir, pois todos esses argumentos me causam

unicamente perturbação. Quanto a mim, estou firmemente convencido, de um modo simples e

natural, e talvez até ingênuo, que o que faz belo um objeto é a existência daquele belo em si,

de qualquer modo que se faça uma comunicação com este. O modo por que essa participação

se efetua, não o examino neste momento; afirmo, apenas, que tudo o que é belo é belo em

virtude do Belo em si. Acho que é muitíssimo acertado, para mim e para os demais, resolver

assim o problema, e creio não errar adotando esta convicção. Por isso digo convictamente, a

mim mesmo e aos demais, que o belo é belo por meio do Belo’.

418

Para uma vigorosa defesa da correção da imputação de Aristóteles a Platão sobre a separação das Ideais, cf. J. D. Mabbott in Class. Quart. XX (1926), 72 – 9. 419

988 a 7 – 11. 420

Phys. 209 b 11. 421

Tim. 50 a 5 – b 6. 422

49 a 6, 50 d 2 – 3.

Page 191: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

191

É claro, Platão não esqueceu que na vida humana as coisas belas não são trazidas à

existência exceto por um artífice, nem os bons feitos são executados exceto por um agente.

Nem ele era cego para o problema da causa eficiente em larga escala. Mesmo no Fedon a

causa eficiente e a causa final não são ignoradas. A primeira é reconhecida na passagem onde

Sócrates critica Anaxágoras por não se manter fiel à sua própria máxima de que a razão é a

causa de todas as coisas – por recorrer à causa física, e então falhar na distinção entre causa e

meras condições423. E com esta concepção do intelecto como a causa eficiente do ser do

mundo enquanto tal há associada a noção do bem como a causa final em vista da qual o

intelecto age.

‘Esperava também que ele, dizendo –me que a terra se encontra no centro do

universo, ajuntasse que , se assim é, é porque é melhor para ela estar no centro. Se me

explicasse tudo isso, eu ficaria satisfeito e nem sequer desejaria tomar conhecimento de outra

espécie de causa424.

Porque de fato Platão falhou em descobrir a natureza ‘do bem’ – porque ele não

viu caminho entre o ente temporal e uma explicação teleológica – ele voltou a explicar pela

presença das Idéias o fato de que as coisas são como elas são425 - uma explicação que

claramente não exclui a explicação teleológica, mas pode ser suplementada por ela.

Conquanto as Idéias permaneçam seu tema central, os pensamentos gêmeos de uma

fonte divina da mudança e de um bem ao qual ela se dirige estão sempre presentes como

pano de fundo no pensamento de Platão, e encontram expressão crescente nos diálogos. No

Crátilo426 ele fala da mente ou alma como doadora de vida e movimento ao corpo, e como

sendo o princípio de ordenamento de todas as coisas. Na República ele fala do “artífice dos

sentidos”427, e diz que “o céu com tudo que ele contém foi formado por seu artífice com a

máxima perfeição de que estas coisas são capazes”428; e o pensamento de uma causa final

última é claro para quem quiser ver no que ele diz acerca da Idéia de bem.429 Frequentemente

pensou-se que as referêcias na República a um ser divino são mera formalidade, e que a noção

de um tal ser é substituída ou diluída na Idéia de bem. Mas nós vimos no Fédon que a razão

divina é claramente distinta do bem que contepla; e mesmo à parte disto deveria ser claro,

além de qualquer sombra de dúvida, que Platão não poderia ter confundido a noção de um ser

supremo inteligente com a de uma Idéia; uma Idéia é uma natureza, não um ser possuidor de

natureza. Que Platão tenha pensado em uma Idéia pensando ou planejando ou trazendo

qualquer coisa ao ser é realmente inconcebível.

423

97 b 8 – 99 e 6. 424

97 e 3 – 6. 425

99 e 6 – d 3. 426

400a5-b7 427

507c6-8 428

530a3-7 429

504c4-509b10

Page 192: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

192

Há uma passagem na República430 onde Platão é injusto para com sua própria

perspectiva. Esta é a passagem na qual ele descreve Deus como fazendo a Idéia de cama.

Descrever qualquer Idéia como “feita” é destituí-la da completa independência com que Platão

as caracteriza em toda parte. O que lhe concerne naquela passagem não é metafísica, mas a

inferioridade das artes imitativas relativamente às úteis, e as exigências de seu argumento

quanto a isso levam-no a usar a frase que ele não pode ter seriamente defendido. Seu tema é

que as artes imitativas – pintura, escultura e poesia – produzem objetos que estão removidos

em dois graus da realidade completa. A cama pintada é apenas uma imitação da cama na qual

alguém pode dormir, e esta por sua vez é apenas uma imitação da cama ideal. E assim como a

cama pintada é o trabalho do pintor, e a cama comum, o trabalho do carpinteiro, a simetria

leva Platão a dizer que a Idéia de cama é obra de Deus. Não há nada em qualquer outro lugar

de seus escritos que justifique-nos em levar a sério isto como expressando seu real ponto de

vista. Conforme devemos ver presentemente, seu esquema requer tanto uma inteligência

divina como um sistema de Idéias, e destes a primeira é, se tanto, pensada como objeto do

segundo; a atividade da inteligência divina é objeto do controle exercido pelas relações

necessárias entre as Idéias.

Na República as Idéias são o tema central, e a função de Deus como causa eficiente da

mudança não é enfatizada. Mas a necessidade da alma e da razão de contarem para a

mudança é reconhecida crescentemente nos diálogos tardios. No Fedro a reflexão sobre a

origem da mudança leva Platão a encontrá-la na alma, que ele descreve como auto-

movente:431

“Toda alma é imortal. Pois aquilo que é auto-movido432 é imortal; mas aquilo que move

a outro e é movido por outro, em cessando de mover cessa também de viver. Apenas o auto-

movente, jamais abandonando a si próprio, jamais cessa de estar em movimento, mas é

também fonte e primeiro princípio de movimento para tudo o mais que se move. Agora, um

primeiro princípio é inprincipiado; pois o que é principiado necessariamente tem um primeiro

princípio, mas um primeiro princípio não é principiado por nada; porque se fosse, então

cessaria de ser primeiro princípio.”433

Mesmo quando escreveu o Cármides434 Platão havia falado de automoção como uma

possibilidade a ser não facilmente descartada; mas ele não aprofunda o ponto; automoção é

mencionada apenas como uma de muitas relações que pode-se supor haver numa coisa.

Quando ele veio a escrever o Fedro, porém, estava intelectualmente ocupado com o problema

da origem da mudança. A mudança em algo normalmente é causada por mudança em uma

outra coisa, mas isso não provê uma origem absoluta para a mudança; isso só pode ser se

houver alguma coisa que possa originar movimento em si mesma; e no Fedro aquilo que pode

mover a si mesmo é identificado com a alma. Ele não aprofunda a significação cósmica disso; o

que lhe concerne é provar a imortalidade da alma humana. Mas ele fala de “afecções e ações

430

597b5-d8 431

245e7 432

Lendo-se em 245c5 au)toki¹nhton conforme o papiro Oxyrhynchus 1016. 433

245c5-d3 434

168e9

Page 193: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

193

da alma humana e divina”435, e mais tarde ele trará à tona o sentido cósmico da descrição da

alma como auto-movente.

No Sofista ele se aproxima do assunto por outro ângulo. Ele veio a pensar que seu

tratamento prévio das Idéias como as únicas entidades completamente reais, ou ao menos

que a concentração de seu interesse nelas apenas, estava errado, e agora ele expressa a

convicção de que “mudança, vida, alma, entendimento” são completamente reais.436 Em

dizendo isso ele não admite, como algumas vezes se supôs, que haja mudança no mundo das

Idéias; fazer isso seria admitir que, por exemplo, 2+2 possa vir a ser 5 em vez de 4, e que

bondade possa vir a ser maldade; ou beleza, feiúra. Na mesma passagem na qual ele assevera

a realidade da mudança, ele reafirma a imutabilidade das Idéias.437

Do Sofista em diante, Platão está cada vez mais ocupado com o problema da causação

dos eventos no mundo sensível. Há uma passagem bem conhecida no Político438 na qual ele

explica a presença tanto de bem quanto de mal no mundo pelo fato de que “há um tempo em

que o próprio Deus guia e ajuda a conduzir o mundo em seu curso; e há um tempo, na

completude de um certo ciclo, em que ele o abandona, e o mundo, sendo uma criatura viva, e

havendo originalmente recebido inteligência de seu artífice, muda de direção, e por inerente

necessidade volta-se à direção oposta.” Essa sugestão não é repetida em outra parte, e se ela

estivese sozinha poderíamos supô-la apenas uma momentânea divagação. Mas se

recordarmo-nos do Timeu veremos no Político uma primeira tentativa de explicar a presença

do mal no mundo, a qual no Timeu439 Platão explica pela influência da “causa errante”, a

necessidade; e nas Leis ele associa à ação de uma ou mais almas malignas.440

Todos ou quase todos estes pensamentos são reunidos e sistematizados no Timeu. As

entidades últimas são três em número – as Idéias, os Demiurgos e o espaço. As Idéias são

espelhadas pelas coisas sensíveis no espaço, e o espelhamento original não é associado à ação

dos Demiurgos; é, antes, descrita como acontecendo por necessidade.

“Desejando que todas as coisas fossem boas e, tanto quanto possível, nenhuma fosse

imperfeita, o deus tomou tudo que é visível – não em repouso, mas em movimento discordante

e desordenado – e trouxe-o da disordem à ordem, uma vez que ele julgou que a ordem era de

todo modo melhor.”441

O Demiurgo não é representado como o criador do mundo sensível; pois o mundo

sensível apenas consiste nas imagens das Idéias no espaço, e estas o Demiurgo “tomou”.

Tampouco ele é representado como onipotente em sua lida com o mundo sensível; seu

trabalho é objeto da resistência oferecida em muitos pontos pela necessidade. Ele é objeto

também de controle exercido pelo sistema das Idéias; ele não pode fazer com que negrume

435

245c2-4 436

248c6-249b4 437

249b8-c5 438

269c4-d3 439

48a6-7 440

896d10-e7 441

30a2-6

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A Teoria das Idéias de Platão

194

seja brancura, ou vício seja virtude; ele não pode passar por cima de incompatibilidades que,

como Platão assinalou no Sofista442 existem entre algumas Idéias e outras. Mas ele é a causa

de toda ordem e de tudo que é bom no mundo da natureza e do homem.

O pensamento de uma suprema inteligência que governa o mundo é encontrado uma

vez mais no Filebo443, onde o intelecto é “a causa da mistura”, da união de qualidade com

intensidade definida a qual caracteriza tudo no mundo sensível. Sócrates diz: “Comecemos por

perguntar a questão – se tudo isto o que chama-se universo é deixado à condução de

irracionalidade e acaso misturados, ou se, ao contrário, conforme nossos antepassados

declararam, é ordenado e governado por uma maravilhosa inteligência e sabedoria”; e

Protarco responde: “Aquilo que acabaste de dizer parece-me blasfêmia; mas a outra asserção,

de que a mente ordena todas as coisas, é digna do aspecto do mundo, e do sol, e da lua, e das

estrelas, e de todo o círculo dos céus; e jamais direi ou pensarei outra coisa”.

Finalmente, nas Leis444, Platão argumenta que, enquanto um corpo pode mover outro

apenas estando em movimento ele mesmo, deve haver algo que possa originar movimento em

si mesmo, e doravante iniciá-lo em outras coisas. Esse originador de movimento ele encontra,

como havia feito muito antes no Fedro, na alma. Adiante, enquanto que, para dar conta do mal

no mundo, ele assume não (como com frequência supôe-se) uma grande alma maligna, um

tipo de Ahriman Zoroastriano, mas uma ou mais más almas,445 ele remete a regularidade dos

movimentos das estrelas e planetas, e o ritmo geral do mundo, à “melhor alma”.446

Fica claro, então, que em seu período tardio, ao menos, Platão está longe de fazer das

Idéias o âmbito exaustivo e cabal de sua filosofia. Ele reconhece também a necessidade de

causas eficientes, e identifica todos os últimos originadores com almas. Tampouco está ele

cego para a necessidade de causas finais assim como de causas eficientes; pois que entre os

“movimentos” assinalados à alma estão o desejo, a consideração, o cuidado, a deliberação447 -

todos eles com caráter de propósito – e o controle supremo do universo é assinalado ao

“propósito de uma vontade ligada à consecução do bem”.448

Destarte Aristóteles é injusto com Platão quando descreve-o como reconhecendo

apenas a causa material e a formal, e ignorando a eficiente e a final. O fato é que Aristóteles

sentiu tão agudamente sua diferença com relação a Platão no tocante à separação entre as

Idéias e as coisas particulares que foi levado a injustiçar estes outros aspectos do sistema de

Platão – seu total

reconhecimento da mente como a última causa eficiente de toda mudança, e do Bem como a

causa final contemplada pelo intelecto.

442

252d2-253c5 443

28d3-e6 444

894c10-897c10 445

896d10-e7 446

897c4-9 447

896e8-897a3 448

967a4

Page 195: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

195

Nós frequentemente lemos sobre a “hierarquia das Idéias”, e é importante considerar

se esta frase é justificada de fato. Podemos primeiro perguntar que significação, se há alguma,

nesta conexão se restringe ao método da “divisão” pregado e praticado no Sofista e no

Político. A importância disto tem sido exagerada por alguns estudiosos e minimizada por

outros. Stenzel, por exemplo, tentou449 construir uma interpretção da teoria das Idéias-

números baseada nisto; o prof. Cherniss450 minimiza sua importância, e trata-a como apenas

um método heurístico.

É verdade que o método da divisão é usado nestes dois diálogos não como um meio de

obter uma compreensão de toda a estrutura do mundo das Idéias, mas como um dispositivo

para alcançar a definição do sofista e do governante. Por outro lado, no Fedro o método é

marcado como o método da filosofia, em um tom que nos proíbe de subestimar sua

importância para Platão. No Sofista, de fato, Platão aponta que sua primeira aplicação do

método o levou a uma variedade de definições discrepantes do sofista, nenhuma das quais

reveladora de sua verdadeira natureza.451 Mas isso não é porque o método seja equivocado ou

sem importância, mas porque ele não foi cuidadoso o bastante em sua aplicação, e ele

adequadamente começa com uma nova aplicação dele, principiando com o gênero ao qual o

sofista essencialmente pertence, o gênero “controversialista”452. No Político, novamente, ele

aponta para que a excessiva confiança no método possa nos levar a “recortar uma parte

demasiado pequena” do gênero, i.e. omitir estágios intermediários e tratar como espécie o

que é apenas uma sub-espécie.453 Mas mesmo em dizendo que nem toda “parte” do gênero é

uma espécie,454 ele implica que há espécies reais e que um uso mais cuidadoso do método nos

levaria a estas.

Devemos tomar nota, também, do que ele diz do método no Filebo:455

“Nem há nem haverá jamais um caminho melhor que o meu próprio e favorito, que não

obstante me tem muitas vezes desertado e deixado-me indefeso na hora da necessidade... um

que pode facilmente ser apontado, mas de modo algum é de fácil aplicação; ele é o pai de

todas as descobertas nas artes... um presente dos céus, o qual, como eu concebo, os deuses

arremessaram entre os homens pelas mãos de um novo Prometeu, e com um fulgor luminoso;

e os antigos... dada a tradição, de que quaisquer coisas são ditas serem compostas do uno e do

múltiplo, e têm o finito e o infinito nelas implantados: vendo, então, que tal é a ordem do

mundo, nós também buscamos em toda investigação começar por propor uma Idéia daquilo

que é o objeto da investigação; esta unidade haveremos de achar em tudo. Havendo-a

encontrado, podemos a seguir procurar por pelo dois, se houver o dois, ou, se não, então pelo

três ou algum outro número, subdividindo cada uma dessas unidades, até que enfim a unidade

com que começamos seja vista não apenas como a do uno e do múltiplo e do finito e do infinito

das coisas, mas também um número definido; nós não devemos atribuir infinidade ao múltiplo

449

Em Zahl u. Gestalt e Stud. Zur Entw. d. Plat. Dialektik, passim. 450

A.C.P.A. 46-7 451

231b9-232a7 452

232b1-7 453

262a5-e1 454

263b2-11 455

16b5-e2

Page 196: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

196

até que o número completo das espécies intermediárias entre a unidade e a infinidade tenha

sido descoberto – aí então, e não antes, poderemos descansar da divisão, e sem perturbarmo-

nos acerca de cada um deles poderemos permitir-lhes caírem na infinidade.”

Isto, ele conclui, como ele havia feito no Fedro, é a verdadeira dialética.

Aqui, anos após sua primeira promulgação do método da divisão, conquanto

reconhecendo as dificuldades de sua plicação, Platão reafirma sua confiança em sua

possibilidade e importância para desnudar a articulação do mundo das Idéias, do mais alto

gênero à mais baixa espécie, para além da qual não há nada senão a infinidade das instâncias

particulares. Não seria de todo impreciso dizer que, enquanto nos primeiros diálogos era seu

principal propósito afirmar a existência das Idéias, no período que durou do Fedro ao Filebo

seu objetivo principal era asseverar a importância de se descobrir as relações entre elas.

Platão indubitavelmente pensou, então, que há hierarquias menores ou

departamentais dentro do mundo das Idéias; a questão permanece quanto a se ele pensou

haver uma grande hierarquia abarcando a todas. Na República a Idéia de bem aparece como a

Idéia suprema, aquela que concede ser e inteligibilidade a todo o mundo das Idéias; e no

Filebo a Idéia de bem é ao menos a mais alta Idéia que entra na discussão. No Sofista, por

outro lado, os “maiores tipos” ou Idéias supremas são a existência, a identidade e a diferença.

E na teoria das Idéias-números a Idéia de unidade é feita princípio formal de todas as Idéias.

De que modo Platão pensou relacionar todas estas várias “Idéias altíssimas”? Ele nunca nos

diz, e somos relegados à conjetura.

Essas variedades de apresentação estão por serem explicadas, tanto quanto possam

ser explicadas, por meio de uma consideração dos vários pontos de vista pelos quais Platão se

aproxima do assunto em diferentes ocasiões. Na República, e novamente no Filebo, ele

aproxima-se pelo lado da ética; e na ética Platão deu lugar fundamental à Idéia de bem em vez

dea única outra que poderia reclamar o mesmo lugar, a Idéia de justo; ele fala “da natureza

essencial do Bem, a partir da qual todas as coisas que são boas e justas (di¹kaia) derivam seu

valor para nós”.456 É como supremo objeto do esforço humano que o Bem primeiro aparece,457

e é por uma bem pouco rigorosa transição que Platão passa de assinalar-lhe o mais alto lugar

em sua ética para assinalar-lhe o mais alto lugar de sua ontologia. Há uma igualmente pouco

rigorosa transição, e uma combinação entre a questão ética e a ontológica, no Filebo, onde ele

fala do desejo “de ver a mais bela mistura, minimamente desfigurada por divisão; e de ver aí o

que é bom tanto no homem como no universo”.458

Mais tarde no Filebo459 há o que parece uma pista de um sistema hierárquico, onde

Platão diz: “Se nós não somos capazes de caçar o bem com uma Idéia apenas, com três talvez

capturemos nossa presa, Beleza, Simetria, Verdade.” Mas estas não são três espécies do

456

505a2-4 457

505d11 458

63e9-64a2 459

65a1-2

Page 197: A teoria das Ideias

A Teoria das Idéias de Platão

197

gênero bem, mas, como a sequência mostra, três condições que aquilo que é bom deve

satisfazer.

Por comparação, a aproximação do assunto no Sofista é clara. Em falando de

existência, identidade, e diferença como “maiores tipos” Platão quer dizer que essas são Idéias

tais que cada qual é predicável de cada uma das outras duas, e de todas as outras Idéias

também; e agrupando movimento e repouso com elas ele quer dizer que uma ou outra é

predicável de tudo que é - “repouso”, das Idéias; e “movimento”, de tudo o mais. Mas as

Idéias no Sofista não formam um sistema monárquico; existência recebe prioridade sobre

identidade e diferença.

Outra Idéia veio à baila no período mais tardio de Platão; a Idéia de Uno foi feita

princípio formal de todas as Idéias. Aqui novamente não há uma mudança de posição

fundamental, mas muda-se de perspectiva. Não quanto às Idéias consideradas em sua

natureza total, mas quanto a seu aspecto numérico – se lhes considera como implicando, cada

qual, um sistema de dois ou mais elementos – que a Unidade foi concebida como princípio

formal. Assim foi concebida porque ele queria manter que cada Idéia, quaisquer que fossem

suas relações internas, era em si mesma uma unidade.

O que, poderíamos perguntar, era a relação entre o Uno e o bem, nesta fase tardia da

doutrina de Platão? Em sua consideração sumarizada do ensinamento de Platão, na Met.

A.6,460 Aristóteles se contenta em dizer que “ele associou a causa do bem e do mal a seus dois

elementos respectivamente”, i.e., a causa do bem ao Uno e a causa do mal ao “grande e

pequeno”. Duas outras passagens da Metafísica461 lidam com a concepção de Platão do bem

mas acrescentam-nos pouca luz. Em 1091a29-b3, b13-15, no entanto, Aristóteles retorna ao

assunto. Ele distingue entre alguns pensadores (i.e. a escola de Espeusipo)462 que recusam-se a

associar bondade e maldade respectivamente aos primeiros princípios, e outros (i.e. a escola

de Platão) que de fato associam-nos, e dos últimos ele reitera que “eles dizem que o Uno ele

mesmo é o bem em si mesmo, mas trataram a unidade como sendo seu caráter fundamental”.

Doravante em duas passagens Aristóteles deixa claro que para Platão a unidade, não a

bondade, era a fundamental característica do primeiro princípio, o qual era de fato tanto uno

como bom. Em outras palavras, a Idéia de Uno havia tomado formalmente o lugar ocupado

pela Idéia de bem, como centro do sistema de Platão. Fazendo esta mudança Platão pagou

tributo ao fato de que, enquanto a unidade é o que pode ser chamado de um atributo

primário, a bondade é necessariamente um atributo secundário ou consequencial – de que

nada pode ser bom a não ser que possua primeiro alguma outra característica. Essa

substituição do bem pelo Uno era ao mesmo tempo sintoma de uma crescente matematização

do sistema de Platão, o que levou Aristóteles a acentuar em outra parte463 que “para os

pensadores da atualidade a matemática tornou-se filosofia”.

460

988a14-15 461

988b6-16, 1075a36-b1 462

Cf. 1072b32-4 463

992a32-3

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A Teoria das Idéias de Platão

198

Há ainda mais uma passagem de Aristóteles na qual se toca na relação entre unidade e

bondade. Na Ética Eudêmia464 ele critica os Platonistas por deduzirem da bondade coisas que

não são obviamente boas a bondade de coisas que são obviamente boas.

“Eles argumentam que a justiça e a saúde são bens, uma vez que são arranjos de

números, na suposição de que bondade é uma propriedade de números e unidades porque a

unidade é boa em si mesma. Mas eles querem demonstrar, a partir do que são admitidamente

bens, como a saúde, força, e temperança, que a excelência está presente tanto mais nas coisas

que são imutáveis, pois todas aquelas coisas no mundo sensível são formas de ordem e

repouso; se estas coisas, no entanto, são excelentes, as coisas que são imutáveis são ainda

mais excelentes, uma vez que elas têm estes atributos ainda mais.”

O comentário de Aristóteles é bem justo.Ele objeta contra a admissão axiomática de

que a unidade ou definição numérica seja bem, mas está disposto a admitir que alguma coisa

admitidamente boa possa ser inferida como boa em si mesma.

Finalmente, devemos tomar nota da frase usada por Aristoxeno465 para descrever as

leituras de Platão Sobre o Bem – kai¨ to¨ pe¹raj o(¹ti a(gaqo¨n e)¹stin (ou a)gaqo¹n e)stin) e(¹n.

Isto frequentemente foi traduzido como “e que o limite é o único bem”, e em vista da pressão

que Platão faz sobre o “limite” no Filebo esta consideração tem alguns atrativos; mas

gramaticalmente é dificilmente permissível. To¨ pe¹raj deve ser tomado adverbialmente; a

única significação que a frase pode realmente assumir é “e a leitura culminou na proposição de

que há um Bem.” Isso pode ser o que Platão disse; é apenas contra a doutrina de que há

apenas um bem, no sentido em que “bem” é um termo não-ambíguo, que o ataque de

Aristóteles na Ética Nicomaquéia466 se dirige. Mas é igualmente possível que o relato de

Aristoxeno seja impreciso, e que Platão tenha mantido que o Uno é bom – a doutrina que

Aristóteles em duas passagens467 lhe atribui. Nós não sabemos, e seria infrutífero conjeturar.

De toda esta evidência segue-se que havia se tornado uma fundamental característica

do sistema de Platão que a unidade engloba a bondade. Na ausência de mais evidências é

impossível assegurar o significado preciso que ele dava a isto. Mas nós já vimos que na mais

tardia fase de sua filosofia, assim como o grande e o pequeno corresponderam ao “mais ou

menos” e ao “ilimitado” do Filebo, o Uno correspondeu ao “limite” do Filebo, e carregou

consigo tonalidades que a palavra “uno” não nos sugere. A associação do limite com a

bondade não era novidade no pensamento de Platão. Pense-se na condenação, na

República,468 das ilimitadas pleoneci¹a. O homem justo, o músico, o competente médico, o

sábio, todos colocam limites (ele ali havia dito) às suas atividades; eles evitam o demasiado

tanto quanto o insuficiente. Pode-se pensar, novamente, na passagem do Político469 onde ele

insiste que as excelências moral e artística igualmente dependem precisamente do evitar o

464

1218a15-24 465

Harm. II. 30 (Meibom) 466

I.6. 467

988b11-16, 1091b13-15 468

349b1-350c11 469

283c3-285c3

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A Teoria das Idéias de Platão

199

excesso e da observância da medida; e da passagem do Filebo470 onde ele argumenta que “na

medida, e no médio, e no adequado, e no semelhante, a natureza eterna foi encontrada”. É no

contexto de tais tonalidades que devemos interpretar seu ensinamento de que a unidade é a

base de toda excelência.

Platão, conforme vimos, parece jamais haver trazido suas “mais altas Idéia” a um

sistema único, mas no Bem da República e do Filebo, na Existência do Sofista, na Verdade do

Filebo471, e no Uno da teoria das Idéias-número, nós encontramos as fontes da lista original

dos transcendentais – Bonum, Ens, Verum, Unum – que os escolásticos trataram como

estando acima das categorias e sendo verdadeiras de tudo que há.

470

64c1-66a8 471

65a2