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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS
ReitorAloysio Bohnen, SJ
Vice-reitor
Marcelo Fernandes de Aquino, SJ
Instituto Humanitas Unisinos
DiretorInácio Neutzling, SJ
Cadernos Teologia PúblicaAno 1 – Nº 3 – 2004
ISSN 1807-0590
EditorInácio Neutzling, SJ – UNISINOS
Conselho editorialCleusa Maria Andreatta – UNISINOS
Dárnis Corbellini – UNISINOS
Edla Eggert – UNISINOS
José Roque Junges, SJ – UNISINOS
Laurício Neumann – UNISINOS
Luiz Carlos Susin – PUC-RS
Maria Clara Bingemer – PUC-RJ
Rosa Maria Serra Bavaresco – UNISINOS
Vera Regina Schmitz – UNISINOS
Responsável técnicaRosa Maria Serra Bavaresco
Projeto gráfico e editoração eletrônicaRafael Tarcísio Forneck
Revisão – Língua PortuguesaMardilê Friedrich Fabre
Revisão digitalCaren Joana Sbabo
ImpressãoImpressos Portão
Universidade do Vale do Rio dos SinosInstituto Humanitas Unisinos
Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS BrasilTel.: 51.5908223 – Fax: 51.5908467
Cadernos Teologia Pública
A publicação dos Cadernos Teologia Pública
quer ser uma contribuição para a relevância pública da
teologia. A teologia como função do reino de Deus no
mundo se desenvolve na esfera pública como teologia
pública. Ela participa da vida pública da sociedade com
a qual se compromete crítica e profeticamente, na pers-
pectiva do reino de Deus que vem. Os desafios da vida
social, política, econômica e cultural da sociedade, hoje,
especialmente, a exclusão socioeconômica de imensas
camadas da população, no diálogo com as diferentes
concepções de mundo e as religiões constituem o hori-
zonte da teologia pública. Os Cadernos Teologia Públi-
ca, sob a responsabilidade do Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU, se inscrevem nesta perspectiva. Eles são fruto
da realização do Simpósio Internacional O Lugar da Te-
ologia na Universidade do Século XXI, ocorrido, na Uni-
versidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, de 24
a 27 de maio de 2004, celebrando a memória do nasci-
mento de Karl Rahner, importante teólogo alemão do
século XX.
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
A Teologia e a Origem da Universidade1
Martin N. Dreher
A tradição judaico-cristã sempre investiu no estudo
de suas escrituras em contato com o pensamento filosófi-
co, acadêmico. Exemplos para tanto são Filão de Alexan-
dria (20/10 a.C. – 45 d.C.), Clemente de Alexandria (ca.
150-215) e Orígenes (ca. 185-254). Clemente superou os
antigos apologetas e buscou desenvolver uma teologia ba-
seada em conhecimentos filosóficos. O lugar em que Cle-
mente procurou superar a tensão entre filosofia e fé foi sua
escola de catequese, na qual foi seu sucessor Orígenes que
a transformou em Escola de Teologia. Foi essa a primeira
Escola de Teologia de que se tem notícia. Foi nela que se
reuniram copistas, os quais escreveram e publicaram em
estreita relação com as especulações do neoplatonismo.
Em 529, Justiniano ordenou o fechamento da Aca-
demia Platônica de Atenas, que funcionou por nove sécu-
los. No mesmo ano, porém, Bento de Núrsia fundou Mon-
te Cassino. Temos aqui a fundação do primeiro mosteiro
beneditino. No centro destes mosteiros, ficava a biblioteca,
nas quais foram reunidas as obras que puderem ser salvas
dos bárbaros. Foi esse também o contexto no qual Anicius
Manlius Severinus Boethius, Boécio (480-524), deu início
ao longo processo de tradução da Antigüidade para o
mundo bárbaro, germânico. Dessa Antigüidade também
fazem parte os textos patrísticos. Isso tudo faz da Idade
Média um longo processo de escola, de aprendizado do
antigo. Para esse processo aponta o nome dado à Teolo-
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1 Oficina realizada no Simpósio Internacional O Lugar da Teologia na Universidade do Século XXI, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos.
São Leopoldo, RS, 25 de maio de 2004.
gia medieval: Escolástica. Toda a Idade Média é um pro-
cesso de ordenar, ensinar e aprender.
Desse processo também faz parte Flavius Magnus
Aurelius, Cassiodoro (490-583), secretário particular de
Teodorico (493-526), que buscou criar uma escola, na
qual o pensamento antigo pudesse ser preservado. Aos
50 anos, abandonou o mundo, indo viver no isolamento
de um monastério no sul da Itália, por ele próprio funda-
do: Vivarium. Batalhou junto ao papa Agapeto para que
se criasse, em Roma, uma universidade, a exemplo da
que existia em Alexandria. A instabilidade política não
permitiu a concretização desse ideal, mas levou-o a se
concentrar em Vivarium, espaço no qual o saber do pas-
sado deveria ser preservado. Aqui, a cultura antiga pene-
trou na cela monástica. Para Vivarium, Cassiodoro levou
sua imensa biblioteca, constituída por escritos de autores
greco-romanos: poesia, filosofia, história. Com essa atitu-
de, deu início ao costume monástico de traduzir e copiar
textos clássicos, preservando-nos os textos antigos que
conhecemos, inclusive aqueles nada piedosos, como as
comédias de Plauto (254-184 a.C.) e de Terêncio
(185-159 a.C.). Em sua obra Institutiones, nada original,
colocou os aspectos elementares das disciplinas teológi-
cas e das artes. Preservou, porém, o pensamento dos an-
tigos e preparou futuras obras teológicas.
Desde 711, os árabes se estabeleceram na Penín-
sula Ibérica. Com eles veio Aristóteles. Os escritos lógicos
de Aristóteles haviam sido traduzidos por Boécio e eram
conhecidos na Europa. Desconhecidos, porém, eram os
escritos sobre a física, a metafísica, a alma, a ética a Nicô-
maco e a política. Essas obras tornaram-se conhecidas na
Europa, em boa medida, das traduções para o árabe. A
Europa medieval não conheceu Aristóteles da Grécia,
mas pelos sábios sírios, persas e árabes. Aristóteles che-
gou à Europa mediante a imigração política.
No século V, o pensamento cristão, que se havia li-
gado ao neoplatonismo desde Orígenes, aliou-se, expres-
samente, ao pensamento de Aristóteles, na pessoa de
Nestório e do nestorianismo. Persa de nascimento, Nes-
tório interpretou o evento da encarnação de Deus, dizen-
do que, em Cristo, se acentua o historicamente concreto
e visível: a humanidade. Aqui há afinidade com Aristóte-
les. No centro da Teologia nestoriana e também do aris-
totelismo, encontra-se a cidade de Edessa, na Síria.
Quando a cristologia de Nestório foi condenada como
herética no Concílio de Éfeso, em 431, ela não pôde mais
ser ensinada no âmbito do Império Romano. Boa parte
dos nestorianos e dos aristotélicos migrou, então, de
Edessa para a Pérsia, onde se instalou em Nísibis, locali-
dade em que surgiu uma escola com mais de mil estu-
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dantes. Lá se preservou boa parte do pensamento filosó-
fico e científico dos gregos. Além de Aristóteles, mante-
ve-se o pensamento de Hipócrates, Galeno e Arquime-
des. Os escritos desses autores foram traduzidos para o sí-
rio, o persa e, finalmente, para o árabe, quando os mao-
metanos se apossaram do Oriente Próximo e do reino
Persa. Os sábios de Nísibis foram levados para a corte do
califa de Bagdá. Em todas as áreas do domínio árabe, da
Índia até os Pirineus, Aristóteles, traduzido para o árabe,
se tornou conhecido.
No âmbito dessa cultura, foram escritos os comen-
tários às obras de Aristóteles, elaborados por Avicenna,
nascido em 980, na Pérsia, que foi médico, filósofo e teó-
logo. Nessa mesma cultura, nasceu, em 1126, na cidade
de Córdoba, Averroes, jurista, médico e filósofo. O sécu-
lo XIII considerou-o o maior intérprete de Aristóteles. Sua
influência foi tão grande, que toda a filosofia do Renasci-
mento europeu foi designada de averroísmo. Esses dois
pensadores influenciaram a Filosofia e a Teologia do Oci-
dente mais que a do islão. A Teologia islâmica sempre se
defendeu da Filosofia.
Em Córdoba, também nasceu Moses Maimônides,
em 1135. Além de ser devotado a Aristóteles, Maimôni-
des era judeu convicto da fé de seu povo. Sua principal
obra, o Guia dos Indecisos, escrito em árabe, foi dirigido
àquelas pessoas que, por se terem ocupado com a filoso-
fia e a ciência, vacilavam em sua fé na revelação divina,
testemunhada pela Bíblia. Segundo Maimônides, essas
pessoas podiam voltar à fé por meio de uma argumenta-
ção científica e filosófica. Também ele buscava pela inter-
penetração de crer e saber.
Quando Averroes e Maimônides nasceram em
Córdoba, o norte da Península Ibérica já se encontrava
novamente nas mãos de cristãos. Em Toledo, reconquis-
tada em 1085, surgiu, no século XII, importante escola de
tradutores. Lá foram traduzidas as obras de Aristóteles,
bem como os comentários do aristotelismo árabe-judeu.
A tradução é interessante: partiu do grego, passou pelo
sírio, depois pelo persa, daí para o árabe e, finalmente,
para o latim.
Via Espanha, Aristóteles penetrou nas universida-
des da Europa, entre 1210 e 1263. Foram inúmeras as
atividades letivas sobre a física, a psicologia e a metafísi-
ca. Inúmeras foram, também, as reações contra as inova-
ções, mas a novidade penetrou no pensar cristão do Oci-
dente. A Escolástica atingiu seu auge.
No século XI, a Europa experimentou a grande
discussão relacionada com as investiduras, particular-
mente no embate entre Gregório VII (1073-1985) e Hen-
rique IV (1056-1106). Após a vitória na questão das in-
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vestiduras, ocorreu uma mudança fundamental no Oci-
dente. Se antes o imperador cristão governava o mundo
e zelava pela ordem, agora quem governa o mundo é a
Igreja. Ela também era a responsável pela ordem no
mundo. Não é, pois, por acaso que vamos encontrar,
após a luta em torno das investiduras, os primórdios de
uma ciência eclesiástica. A Igreja passou a ser respon-
sável pela produção científica. A ordem da Igreja e sua
doutrina passaram a ser objeto de estudo. Foram analisa-
das, ordenadas e retrabalhadas com sólida fundamenta-
ção. A Igreja não era mais uma instituição estranha. Ela
representava o Ocidente. A novidade dessa situação está
expressa em dois fatos: no surgimento da Ciência do Di-
reito Canônico e no surgimento da Ciência Teológica.
Direito Canônico. É quase óbvio que a Ciência
do Direito Canônico tenha surgido como conseqüência
da luta em torno das investiduras. Como conseqüência
dela, a correlação entre Igreja e mundo estava destruída;
destruído estava, também, todo o edifício jurídico que
fundamentava essa correlação. Como então se estabele-
cera a autonomia da Igreja em relação ao mundo e em
relação ao Estado, necessário se fazia para a hierarquia
eclesiástica que fosse fundamentada e juridicamente acen-
tuada essa autonomia.
As conseqüências de tal empreendimento, contu-
do, seriam tão problemáticas quanto foram as causas que
levaram ao confronto entre império e sacerdócio. Antes o
império dominava a Igreja, depois a Igreja dominou o sa-
cerdócio. Para fundamentar sua primazia em relação ao
mundo, a Igreja usou o mesmo instrumental que o Esta-
do: o jurídico. Com isso, no decorrer dos anos, a Igreja se
apropriou de um instrumental jurídico. Seu pensamento
e sua prática passaram a ter contornos jurídicos. No final
do processo, a Igreja quase não podia mais ser distingui-
da de um instituto jurídico.
Assim, desde Gregório VII, o partido reformista,
que com ele ascendera ao poder, dedicou-se ao escla-
recimento e à ampliação do Direito Canônico. Nesse
círculo, surgiram coletâneas dos cânones eclesiásticos,
das antigas e das novas decisões dos concílios e dos pa-
pas. No século XII, porém, avançou-se além da mera
coleta, quando o monge bolonhês Graciano concluiu,
por volta de 140, seu Decretum com o título: Concor-
dantia discordantium canonum (Concordância dos câ-
nones discordantes). O título indica que o material por
ele usado foram as tradições canônicas da Igreja. Ele se
encontrava, assim, dentro de uma tradição de toda a
Idade Média: a tradição era a base de todo o trabalho
intelectual.
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Graciano, no entanto, foi além da mera reprodu-
ção da Tradição. Ele partiu das necessidades da Igreja de
seus dias. Com seu trabalho, quis colocar-se a serviço da
libertas ecclesiae, da liberdade da Igreja. Por isso, Gracia-
no não só coletou e ordenou os cânones, mas passou
também a comentá-los. Explicitou sua intenção no título
da obra, seguindo o método da Teologia Escolástica e
das Ciências Jurídicas Romanas, procurou ajustar as
contradições existentes no material coletado e tirar con-
seqüências das antigas proposições para questões que
emergiam em seus dias. Assim, a obra de Graciano ad-
quiriu duplo significado. Passou a ser livro de ensino e
compêndio de consulta. Posteriormente, veio a ser escri-
to canônico, passando a ser parte central e principal do
direito eclesiástico católico-romano, do Corpus Iuris Ca-
nonici. A seleção feita por Graciano foi fundamental para
o futuro. A escola dos ditos “decretistas”, os continuado-
res da obra de Graciano, passou a comentar e a glosar o
Decretum Gratiani. Dessa atividade, surgiu a ciência do
Direito Eclesiástico, também designada de canonística.
Toda a história subseqüente da Igreja na Idade Média foi
acompanhada por essa ciência que também determinou
futuras decisões da Igreja. Não podemos entender as
polêmicas dos reformadores protestantes do século XVI,
se não levarmos em conta a atividade dos canonistas.
Nova Ciência Teológica. Também a Teologia
foi influenciada pelos acontecimentos ligados à discussão
em torno das investiduras. No entanto, não foram os con-
teúdos da Teologia que foram atingidos. A principal alte-
ração na Teologia está ligada à criação de um novo
método‚ denominado de método escolástico. Os teólo-
gos que aplicaram tal método à Teologia são designados
de teólogos escolásticos. O nome não foi criado naquele
período. Ele é anterior. Já nos dias de Carlos Magno, ele
era usado para designar os professores das ciências nas
escolas superiores. Na Alta Idade Média, e depois, o
conceito ganhou, porém, um outro significado. Ele pode
ser comparado à expressão que usamos, quando dize-
mos “fazer escola”. E, realmente, o característico desse
ensino era que gerações inteiras ficavam presas à opinião
de um único mestre. Na Idade Média Tardia, o método
escolástico determinou todo o ensino teológico, todo o
ensino da ciência. Em sua obra, Die Geschichte der scho-
lastischen Methode, Martin Grabmann descreve, da se-
guinte maneira, o significado do método escolástico para
a Teologia:
O método escolástico pretende obter, através da aplica-
ção da razão, da Filosofia, às verdades da revelação, a
visão mais próxima do conteúdo da fé. Desta maneira
quer aproximar a verdade sobrenatural do espírito hu-
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mano pensante, possibilitar uma exposição geral siste-
mática, orgânica e resumida da verdade salvífica e re-
solver as ressalvas levantadas, desde o ponto de vista da
razão, contra o conteúdo da revelação.
A Teologia foi ponto de partida para as inovações
da Alta Idade Média em relação aos conteúdos da fé, le-
gados pela Tradição. Conteúdos da fé eram a Bíblia, as
decisões teológicas e os ensinamentos da Igreja Antiga,
dos Concílios e dos Pais da Igreja. Esses conteúdos eram
tidos como intocáveis. Ao lado das autoridades enume-
radas, tidas por intocáveis, surgiram, na Teologia da
Alta Idade Média, os grandes filósofos da Antigüidade:
Aristóteles, Platão e Boécio. Mesmo não sendo intocá-
veis, suas opiniões só raras vezes eram questionadas, a
menos que, é evidente, estivessem em oposição total à
Tradição. O tradicionalismo, assim nos parece, é uma
das marcas da Escolástica Teológica. Ela, no entanto,
não era estática. Seu movimento era condicionado pe-
las perguntas e pelos interesses de cada época. Esse as-
pecto é que lhe dava vida e a tornava interessante. Em
resumo: a Escolástica Teológica pretendia entender a
doutrina cristã tradicional e torná-la compreensível para
os contemporâneos.
Os esforços dos escolásticos estiveram, no entan-
to, comprometidos em razão de determinados preconcei-
tos e de outras dificuldades. Assim, a doutrina cristã era
tida como sistema acabado, santo e imutável. A função
do teólogo era a de, com perspicácia e com o auxílio de
meios adequados, penetrar e comprovar a lógica e a racio-
nalidade desse sistema. Dessa maneira, a Escolástica des-
conhecia aquilo que designamos de pesquisa teológica.
Ela não fez o esforço de nos aproximar das origens da
Igreja e de transmiti-las de maneira atualizada e objetiva
às novas condições e situações. Outro grande problema
da Escolástica foi sua crença de que o sistema de verda-
des cristãs em nada discorda da verdade acessível à razão
natural. A única restrição feita era a de que a verdade re-
velada é superior à verdade natural, representando um
estágio mais elevado na hierarquia das verdades.
O tradicionalismo e a crença na razão mostram
que a Escolástica Teológica é filha de seu tempo, filha do
mundo germânico. Quando os povos germânicos foram
confrontados com a fé cristã, surgiu a convicção de que a
antiga e santa verdade estava sistematicamente fechada
e que incluía em si toda e qualquer outra verdade possí-
vel. Nessa convicção, está a idéia de que a Igreja tem a
função de ser a grande mestra. Ora, tal concepção é fun-
damental justamente para a compreensão da luta em tor-
no das investiduras e para a fundamentação da primeira
cruzada. Vemos, assim, que, não por acaso, a Escolástica
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C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
Teológica surgiu exatamente naquele período! Quando a
Igreja expressou a pretensão de ter a primazia também
no mundo político e foi atendida (“Deus o quer!”), essa
mesma pretensão foi estendida também ao âmbito inte-
lectual. A Teologia expressou a pretensão de um domínio
intelectual no mundo. Ela se alçou em mãe das ciências.
Com isso, no entanto, a Teologia não apresentou novi-
dade. Ela apenas desenvolveu e fundamentou a posição
que já lhe era atribuída, sem muita reflexão, nos primór-
dios da Idade Média. Só que doravante essa posição pas-
sou a ser debatida.
A novidade do método escolástico residia no fato
de que a dialética passou a dominar na Teologia. A partir
dela, a principal função do teólogo consistia em dissecar
as doutrinas e os conceitos, descobrir diferenças e contra-
dições entre as autoridades e resolvê-las. A dúvida metó-
dica passou a ser a principal atividade do teólogo. Este
princípio teria, teve e tem conseqüências até hoje, pois é
o princípio gerador da atividade intelectual européia. Da
Europa ela foi exportada para os demais continentes. No
seu tempo, porém, sua função era buscar as relações in-
ternas das doutrinas, elaborá-las com clareza e dar-lhes
uma ordem sistemática.
O primeiro teólogo a valer-se, com sucesso, da dia-
lética na Teologia foi Anselmo da Cantuária.
Anselmo da Cantuária (1033/34-1109). O
nome poderia indicar um inglês. No entanto, essa hipó-
tese é eliminada, quando se sabe que, antes de ser de-
signado para a primeira sé episcopal inglesa, Anselmo
fora, por l5 anos, prior e, posteriormente, pelo mesmo
número de anos, abade do monastério de Le Bec, no
vale inferior do rio Sena, podendo ser designado de be-
neditino francês. Mesmo assim, sua pátria não era a
França, mas a Itália, mais precisamente a Savóia. Ali ele
nasceu, na localidade de Aosta, filho de nobre langobar-
do. Segundo a biografia escrita por um de seus discípu-
los, Anselmo deixou a casa paterna e peregrinou para a
Normandia, atraído pela abadia beneditina de Le Bec e
pela fama de seu prior Lanfranco. Sob Lanfranco, o mo-
nastério de Le Bec, fundado por Heluíno, tornara-se
uma das mais famosas escolas da Europa ocidental.
Pouco depois da chegada de Anselmo a Le Bec, os du-
ques normandos conquistaram a Inglaterra, ocupando
todas as posições de liderança com franceses. Guilher-
me, o Conquistador, fez de Lanfranco arcebispo da
Cantuária. Em Le Bec, Anselmo passou a ser a figura
dominante. Durante os 15 anos de seu priorado, ingres-
saram 120 monges no monastério. Quando se despediu
de Le Bec, já sexagenário, Anselmo disse que quase to-
dos vieram ao monastério por sua causa, mas que ne-
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I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
nhum deles se tornara monge por sua causa. Anselmo
partiu para Cantuária, sucedendo a Lanfranco. A suces-
são foi um ato de violência. Anselmo visitava a Inglater-
ra por causa de questões relativas a seu monastério,
quando, contra sua vontade expressa, foi feito arcebis-
po. Com o uso de violência física, foi aberta a sua mão e
nela colocado o báculo. Depois, ele foi carregado até a
igreja, onde se cantou o Tedeum, enquanto o próprio
Anselmo continuava a declarar o ato inválido. Mesmo
assim, ele permaneceu na função, pois outros bispos de-
sejavam tal sucessão. A ela seguiram l5 anos de lutas
desgastantes do primaz da Inglaterra contra os reis nor-
mandos.
Decorridos quatro anos desde o início de seu epis-
copado, ao iniciar viagem para Roma, Anselmo escreveu
ao Papa:
De muitos é conhecido, santo pai, que com violência e
muito contra a minha vontade e apesar de meu protesto
fui aprisionado para a sé episcopal na Inglaterra e ali fui
mantido preso, e quanto eu mostrei às pessoas que mi-
nha índole, minha idade, minha fraqueza, meu desco-
nhecimento em nada servem para esse ministério (...)
Agora já sou bispo há quatro anos e nada alcancei. Vivi
em vão, em imensa e abominável confusão da alma, de
modo que dia após dia mais gostaria de morrer longe da
Inglaterra do que ali viver.
Tal lamento foi constante nos últimos anos de vida
de Anselmo. Um discípulo seu escreveu: “Deus é minha
testemunha: muitas vezes ouvi-o dizer que preferia tre-
mer como menino ante a vara do mestre do que estar no
ministério de primaz de toda a Inglaterra e de deter no
concerto dos povos a sé arcebispal”.
Inclusive quando redigiu seus tratados teológicos,
suspirou, dizendo no prefácio de Cur Deus homo: “Em
grande tribulação do coração – donde e porque isto sofri
sabe-o Deus – principiei-o (o livro) na Inglaterra a pedi-
do. Na Província de Cápua, como peregrino, o concluí”.
Anselmo enfrentou, com grande coragem, o rei e
lutou pelos direitos da Igreja, vindo a falecer em 1109, na
Inglaterra, sem que o peso de seu ministério lhe fosse to-
mado. Tinha, então, 75 anos.
Existem duas formulações, entrementes famosas,
nas quais Anselmo expressou o princípio da relação de fé e
razão, manifestado 500 anos antes por Boécio, mas que
passaram a ter aspectos característicos do próprio Ansel-
mo: “Fides quaerens intellectum e Credo ut intelligam”.
Com a primeira formulação, que expressa a busca
do crente por compreender o que crê, Anselmo resume o
conteúdo do Proslogion, um de seus mais importantes
escritos. A expressão, inclusive, deveria ter sido o título da
obra: A Fé Buscando Apoiar-se na Razão. A segunda for-
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C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
mulação conclui o primeiro capítulo da mesma obra:
“Não busco compreender para crer, mas creio para com-
preender. Efetivamente creio, porque, se não cresse, não
conseguiria compreender”.
No prefácio do Monologion, um pequeno tratado,
evidentemente na espessura, pois entre outras coisas tra-
ta com muito fôlego da Trindade (!), encontramos duas
questões muito próximas uma da outra. A junção de am-
bas é muito característica para Anselmo: Por um lado, te-
mos a intenção programática de não fundamentar sua ar-
gumentação nas Sagradas Escrituras, mas apenas na ra-
zão. Por outro lado, há a firme convicção de que nada há
no tratado que não possa ser harmonizado com a doutri-
na de Agostinho. Aqui há um aspecto central da posição
de Anselmo. Há dois modelos da supervalorização da ra-
zão humana: um deles apóia-se no empirismo, o outro
no pensamento deduzido logicamente de princípios ge-
rais. O segundo modelo, o do racionalismo dedutivo, foi
introduzido no pensamento do cristianismo ocidental por
Anselmo. As raízes desse modelo, porém, encontram-se
na cosmovisão de Platão e de Agostinho.
Naturalmente, Anselmo não pôde prever as con-
seqüências de seu princípio. Para nós que vivemos sob as
conseqüências de seu modelo, surgem, logo de saída,
grandes inquietações, quando lemos quais são os argu-
mentos racionais tidos por suficientes por Anselmo para
comprovar as verdades cristãs. Assim, por exemplo, a re-
denção, propiciada por Jesus Cristo, pode ser comprova-
da, com base em argumentos racionais conclusivos,
como necessária. Toda a argumentação é, expressamen-
te, aistórica, partindo de um “como se”: “Como se de
Cristo nada fosse conhecido” e “como se ele jamais hou-
vesse existido”. “Sem qualquer dúvida deve ser afirmado
que o Deus-homem tinha que ser nascido de uma vir-
gem.” “É necessário que o verbo divino e o ser humano
se unam em uma pessoa.” Com base nessas formula-
ções, é compreensível que não poucos tenham chegado
à conclusão de que a Escolástica era o esforço inútil de
tornar as doutrinas da fé acessíveis à razão.
No entanto, essa posição deve ser revista. É im-
portante verificar que as formulações de Anselmo se vol-
tam contra posição anterior. Até Gregório Magno, a for-
mulação cristã tradicional a respeito da redenção diz,
mais ou menos, o seguinte: desde o primeiro pecado hu-
mano, o diabo tem direito adquirido sobre toda a huma-
nidade. Esse direito adquirido só pode prescrever caso o
diabo atente incorretamente contra um ser humano total-
mente sem pecado: Jesus Cristo. Em contraposição,
Anselmo disse: “Caso a primeira culpa do ser humano
deva ser apagada de modo que se preserve não só a dig-
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I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
nidade do credor, mas também a do devedor, nesse caso
alguém deve ‘pagar’ a culpa. Esse alguém deve ser cre-
dor e devedor ao mesmo tempo: Deus e homem.” Essa é
a interpretação anselmiana, até hoje unanimemente acei-
ta pela Teologia. A primeira interpretação nem sequer
mais é exposta na Teologia atual.
Talvez aqui é importante fazer um parêntese, pois
pode parecer que a fé cristã se orienta em teorias cambi-
antes. Não é assim. O cristão crê no que foi revelado na
palavra de Deus. Ele não crê na Teologia. A interpreta-
ção de Anselmo e todas as demais são Teologia. Fica a
pergunta: no que devemos crer por trás de todas essas
teologias? A resposta é que, nos primórdios, o ser huma-
no sofreu uma perda como castigo por sua culpa e que,
por meio do sacrifício do Deus-homem, o ser humano foi
libertado da situação de culpa e de perda. Essa é a certe-
za cristã.
Outro aspecto que não deveríamos deixar de lado
em Anselmo é que sua confiança na capacidade de escla-
recimento da razão tem como pressuposto expresso a fé.
Basta uma olhada no Proslogion: “Não busco compreen-
der para crer, mas creio para compreender. Efetivamente
creio, porque, se não cresse, não conseguiria compreen-
der”. Anselmo sabia expressamente a respeito do caráter
misterioso da verdade da fé, quando disse em Cur Deus
homo: “Tudo o que um ser humano puder dizer a esse
respeito [a respeito do fato de Deus haver assumido a hu-
manidade] deve-se saber, que uma coisa tão grande tem
razões mais profundas que ainda continuam a lhe ser
ocultas”. É importante não esquecer que frases assim es-
tão contidas nos escritos de Anselmo. Mesmo porque não
muito distante dessa afirmação está outra, dizendo que,
na argumentação posterior, só estaria requerendo certe-
za no sentido de “que me parece ser por enquanto [inte-
rim] assim, até que Deus mo revele de alguma forma me-
lhor”. A frase é perigosa, pois no fundo está dizendo que
a razão não capitula diante do mistério, mas apenas dian-
te da “forma melhor revelada”, permanecendo “por en-
quanto” com a certeza existente. Anselmo concentrou-se
na capacidade argumentativa da razão. Conceitualmen-
te, ele sabia que a razão deve curvar-se ante o mistério,
mas não sabia existencialmente da necessidade de sua
capitulação.
Apesar de todos esses argumentos que apontam
para as dificuldades decorrentes do esforço teológico de
Anselmo, devemos reconhecer que em sua pessoa fides
(fé) e ratio (razão) permanecem unidas. Isso está ligado à
sua piedade. Sem a pessoa de Anselmo, o esquema ter-
mina em muitos tipos de racionalismo ou em irracionalis-
mo da fé.
14
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
Na Idade Média, a separação de fides e ratio ain-
da não aconteceu, mesmo que se tenha podido, então,
pressentir o que estaria por vir, como podemos ver na
discussão entre Abelardo e Bernardo. O mesmo proble-
ma enfrentado na relação entre fides e ratio apareceu no
“argumento anselmiano”, mais conhecido como “prova
ontológica da existência de Deus” na designação de
Kant, o qual, no entanto, não se refere a Anselmo, mas a
Descartes.
O argumento foi exposto por Anselmo no Proslo-
gion, na época prior de Le Bec, aos 50 anos de idade. Os
motivos da redação desse escrito são expostos por Ansel-
mo no prefácio ao Proslogion. Após haver concluído o
Monologion, ter-se-ia questionado,
se não seria possível encontrar um único argumento
que, válido em si e por si, sem nenhum outro, permitisse
demonstrar que Deus existe verdadeiramente e que ele
é o bem supremo, não necessitando de coisa alguma,
quando, ao contrário, todos os outros seres precisam
dele para existir e ser bons. Um argumento suficiente,
em suma, para fornecer provas adequadas sobre aquilo
que cremos acerca da substância divina. Ao dirigir com
zelo e freqüência o pensamento para esse fim, às vezes,
parecia-me ter alcançado o objetivo; outras, tinha a im-
pressão que me embaciava a mente. Por fim, desanima-
do, procurei deixar de lado a tarefa, julgando impossível
conseguir o que buscava. Mas, por mais que me es-
forçasse por afugentar o propósito, porque me afastava
de outras ocupações profícuas, ele voltava a mim com
insistência crescente. No entanto, um dia, quando já
cansado de resistir a essa perseguição inoportuna, justa-
mente no calor do conflito dos meus pensamentos, eis
que se me apresenta a idéia que já desesperara de en-
contrar. Acolhi-a com tanto entusiasmo quanto empe-
nho colocara em rechaçá-la. Considerando que, se ela
fosse fixada por escrito, poderia constituir um prazer
para quem a lesse, assim como deu a mim uma alegria
imensa quando a encontrei, redigi este opúsculo como
uma pessoa que se esforçasse para elevar a sua mente
até a contemplação de Deus, a fim de compreender
aquilo em que se acredita.
Logo após a conclusão do livro, iniciou a discus-
são em torno da “descoberta” de Anselmo, com a obje-
ção do monge Gaunilo, que leva o título agressivo e, ao
mesmo tempo irônico, de Livro em favor de um insipien-
te, em favor e em lugar daquele insipiente “que diz em
seu coração: não há Deus” (Salmo 14.1). Segundo Gau-
nilo, esse insipiente não se deveria julgar convencido
pelo argumento de Anselmo, que respondeu a Gaunilo
em novo opúsculo, com muita elegância: “como minhas
palavras foram contestadas, não pelo insipiente contra o
qual argumentei no meu opúsculo, e, sim, por um ho-
15
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
mem que não é insipiente, mas um cristão católico, que
toma a defesa do insipiente, será bastante para mim res-
ponder ao cristão”.
A discussão entre Anselmo e Gaunilo ainda está
em curso. Em 1931, Karl Barth dela participou com o es-
crito Fides quaerens intellectum.
Qual é o argumento de Anselmo que, por si só, se-
ria suficiente para comprovar a existência de Deus? Deus
é o ser do qual não se pode pensar nada maior – portan-
to, Deus tem que existir, pois ele não seria o ser do qual
não se pode pensar nada maior, caso não pudesse não
existir. Resumindo: Deus tem que existir, porque a exis-
tência faz parte de seu conceito. O que faz com que essa
argumentação formalmente acuradíssima seja considera-
da incorreta, discrepante quanto ao seu conteúdo? Para
responder a essa pergunta, é necessário que se observem
os passos do silogismo anselmiano. Primeiro passo: Todo
ser humano, também o insipiente, quando diz “Deus”
está pensando no ser supremo. O sentido desse superlati-
vo é que não há ser maior e que não se pode imaginar ser
maior. Segundo passo: O que uma pessoa pensa “está”
ou “existe” em seu pensamento. Ser conhecido ou ser
pensado significa: “existir” no conhecimento e no pensa-
mento. Terceiro passo: Aquilo além do qual não se pode
pensar nada maior não pode existir apenas no pensa-
mento; tem que, necessariamente, existir também na rea-
lidade objetiva.
A força do argumento de Anselmo reside no fato
de que realmente Deus é um ser único e incomparável.
Gaunilo não levou em conta esse aspecto. O juízo
“Deus existe” é incomparável. Essa incomparabilidade
baseia-se no fato de que faz parte do ser de Deus exis-
tir. Tal afirmação, no entanto, não é idêntica à afirma-
ção: “Deus existe”. Parece-me ser difícil derrubar a ar-
gumentação de Anselmo. Parece-me ser, igualmente,
difícil eliminar a desconfiança de que nela haja algo
fundamentalmente errado. Mais fundamental pare-
ce-me, porém, ser uma outra coisa: Anselmo não quis
provar a existência de Deus. Sua exposição nada tem a
ver com Filosofia ou com Teologia, enquanto ciência
argumentativa. Não vejo o Proslogion como argumen-
tação separada da fé da Igreja, como argumentação to-
mada de algum outro lugar que não seja do âmbito da
fé. Seu argumento vem da fé e está baseado na fé. Nes-
se sentido, sua “prova” não é “ontológica”. Sigo aqui a
proposição de Karl Barth.
O Proslogion está emoldurado por uma oração,
na qual Anselmo adora o que vai querer comprovar. É no
contexto dessa oração que se encontra sua intenção de
buscar por “argumento suficiente para fornecer provas
16
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
adequadas sobre aquilo que cremos acerca da substância
divina”. Na oração que conclui, no final do capítulo IV, a
argumentação, lemos:
Obrigado, meu Deus. Agradeço-te, meu Deus, por me
teres permitido ver, iluminado por ti, com a luz da razão,
aquilo em que, antes, acreditava pelo dom da fé que me
deste. Assim, agora, encontro-me na condição em que,
ainda que não quisesse crer na tua existência, seria obri-
gado a admitir racionalmente que tu existes.
Ciência Teológica tem que ser feita com oração,
adoração e culminar na doxologia.
Pedro Lombardo (1100-1160). A acuidade
das colocações de Anselmo foi seguida por outros gran-
des teólogos do porte de Pedro Abelardo, de Bernardo
de Claraval e de Hugo de São Vítor (falecido em 1141).
Em meados do século XII, porém, o grande desenvolvi-
mento da Teologia chegou a seu final. A geração dos
grandes mestres foi seguida por figuras menores. Por
quase cinqüenta anos, o que se fez foi reunir, em escolas,
os discípulos dos grandes mestres. Nesses decênios de es-
tagnação, começou a circular um livro que, em breve,
passou a determinar o estudo da Teologia. Trata-se dos
Libri quattuor Sententiarum, os Quatro Livros de Sen-
tenças, de Pedro Lombardo.
A obra expõe a doutrina da Igreja. Quanto à sua
forma, ela não se distingue de obras semelhantes da-
quele período. As diversas doutrinas teológicas são tra-
tadas uma após outra. A obra de Pedro Lombardo
apresenta citações de autoridades e argumentos racio-
nais pró e contra a questão tratada, bem como a solu-
ção encontrada pelo autor e sua fundamentação. Ela
veio a ser o compêndio básico do ensino teológico na
Idade Média.
Langobardo como Lanfranco e Anselmo, Pedro
Lombardo nasceu na região de Novarra. Estudou em Bo-
lonha. Com recomendação de Bernardo de Claraval, foi
para Reims e Paris. Nesta última cidade, tornou-se mes-
tre na escola da catedral de Paris, aos 40 anos de idade, e
vinte anos mais tarde, bispo. Seu discípulo Pedro de Poi-
tiers, durante quarenta anos professor na escola da cate-
dral de Notre Dame e primeiro chanceler da Universida-
de de Paris, foi o principal propagandista da obra do
mestre. A causa do sucesso do livro pode estar no fato de
Pedro Lombardo não assumir nele um posicionamento.
Ao ler o livro, em virtude da acusação de heresia, o Papa
Inocêncio III chegou a afirmar que não conseguia encon-
trar nenhuma opinião nele, nem certa nem errada, pois o
mesmo apenas estava relatando opiniões. De fato, tra-
ta-se de obra solidamente chata: um compêndio.
17
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
Mesmo assim, passou a ser livro básico para o ensi-
no teológico. Sua virtude está em expor opiniões, sem to-
mar posição, possibilitando, assim, que o leitor possa ele
próprio pensar e posicionar-se. Ele reflete aquilo que sem-
pre acontece na história da Teologia: depois de grandes
descobertas teológicas, de muitos estudos, segue período
em que têm que ser escritos compêndios que reúnam, por
certo tempo, o essencial, antes de se partir para novas des-
cobertas e discussões. O problema aconteceu quando, em
meados do século XIII, a Teologia voltou a florescer. Então
os Quatro Livros de Sentenças já tinham feito escola.
Após a Bíblia, os Quatro Livros de Sentenças são a
obra mais comentada de toda a história da literatura. Até
o final do século XVI, foram escritos mais de 1400 comen-
tários às Sentenças. Ao lado do livro de Graciano, a obra
de Lombardo passou a ser livro-texto do estudo da Teo-
logia. Ao lado desses dois textos, deve ser mencionada,
ainda, a Glossa ordinária, uma coleção de interpretação
patrística da Bíblia. Essas três obras passaram a ocupar o
lugar da Tradição e determinaram o pensamento da Igre-
ja. Conteúdo e forma do pensamento eclesial doravante
deveriam ser únicos. Num primeiro momento, possibili-
taram o desenvolvimento da Teologia, pois muita coisa
pôde ser estudada nesses três textos. Depois, porém, le-
varam à sua fossilização.
Pedro Abelardo (1079-1142). A experiência
do eros não perfaz o todo da existência de Abelardo. Na
segunda fase de sua vida, ele passou pela experiência de
ser acusado de heresia. A Idade Média, podemos tam-
bém constatar, não foi uma unidade como normalmente
se julga. A vida medieval estava eivada de profundas
contradições. Nesse aspecto, o século XII, o século de
Abelardo, tem profundo significado, pois anunciou algo
novo que estava por surgir.
A postura teológica e filosófica de Abelardo está
caracterizada pelo subjetivismo, que, descrito na obra
Conhece-te a ti mesmo, representa ética e moral desco-
nhecidas ao mundo medieval. Seu aprofundamento en-
contra-se no texto de Sim e Não. Nessas obras e em ou-
tras, Abelardo advoga o uso da razão em questões religio-
sas. Estava convencido de que o uso da razão é justifica-
do e necessário. Abelardo vibrou ao falar da razão com a
mesma intensidade com a qual vibrou em relação a He-
loísa durante parte de sua vida. Nesta vibração, deu à ra-
zão função que até então jamais tivera no cristianismo.
Sem ter pensado essa função até suas últimas conse-
qüências, Abelardo pôs em discussão temática das mais
controvertidas. O fato de não haver pensado a função da
razão em questões de fé até suas últimas conseqüências
advém do fato de ser medieval. Abelardo foi profunda-
18
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
mente cristão e monge, desde seu ingresso no monasté-
rio. Não admitia desvios da vida monástica e era asceta.
Entendia-se totalmente comprometido com Cristo. Mes-
mo assim, trouxe novidade ao postular o uso da razão em
questões religiosas.
É importante que se observe como Abelardo am-
pliou o método dialético, tomado da Antigüidade, mas
desenvolvido com tal precisão, que, em pouco ele tempo,
passou a ser denominado de Mestre da Dialética. Conse-
guiu introduzir a Dialética nas escolas medievais e passou
a usá-la no estudo da Teologia. Usando a Dialética com
maestria, alegrou-se em poder deixar seus ouvintes estu-
pefatos. Recebeu os aplausos da juventude estudantil.
Mas ele não estava apenas interessado nesses aplausos,
pois estava convicto de que a Dialética seria um método
mais apropriado para defender a fé cristã. A fé seria com-
provada para o descrente. Como os milagres desapare-
ceram, o crente tem que comprovar a fé por meio do mé-
todo dialético. Enquanto Anselmo ensinara que precisa-
mos crer para compreender, Abelardo ousou afirmar que
precisamos compreender para crer. Para ele, a lógica
vem do Logos que se fez carne na fé cristã. Partindo do
Eclesiástico (19.4): “Quem confia depressa demais é le-
viano de coração”, defendeu sua convicção de que deve
haver uma fé que brota da razão. Buscou, então, trans-
formar as verdades reveladas em verdades da razão.
Abelardo não queria negar a fé cristã, mas questionar e
ter o direito de questionar. Seu interesse estava voltado
para a ciência e para o direito de fazer ciência, investigan-
do. Ele procurou pela verdade, porque a verdade jamais
pode ser oposta à verdade.
Seu método dialético e a luta pela liberdade de in-
vestigação levaram a um profundo questionamento de
autoridades. Viu como passagens da Bíblia e dos Pais da
Igreja se contradizem. Com isso, buscou evidenciar que a
mera autoridade é insuficiente e que, por isso, o ser hu-
mano é chamado a usar sua razão. Criou, assim, o méto-
do teológico da escolástica. Apresentou uma autoridade
que afirma uma questão e contrapôs-lhe outra autorida-
de que nega a mesma questão. Finalmente, fez uso da
própria razão para apresentar posição mediadora. Com
tal postura, Abelardo minou o pensamento autoritário de
tão nefastas influências sobre a humanidade. No lugar do
autoritarismo, Abelardo colocou a necessidade da com-
provação. O autoritarismo era para ele a negação da evi-
dência interna da verdadeira fé. Para ele, a dúvida tem
uma função necessária frente ao autoritarismo. Ele bus-
cou a autoridade baseada na comprovação.
Não há dúvidas de que Abelardo abalou, profun-
damente, a convicção nas autoridades com seu método
19
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
dialético. Fato é que sua iniciativa foi vista como algo re-
volucionário, pois minou o edifício doutrinário sobre o
qual repousava o poder da Igreja medieval. Pode-se de-
duzir com facilidade que Abelardo passou a ter inúmeros
adversários. Viu-se nele o herege de cuja ortodoxia se de-
via duvidar. Foi acusado de pelagianismo, de renovar o
arianismo na doutrina da trindade. As acusações, no en-
tanto, tinham pouca base e fundamento, pois, na realida-
de, não se atacava a doutrina de Abelardo, mas seu mé-
todo. O próprio Abelardo sentiu isso, como bem ilustra
uma passagem de sua última carta a Heloísa: “Sou odia-
do pelo mundo por causa da lógica”. A abordagem dialé-
tica dos temas teológicos foi vista como tentativa de sola-
par a fé cristã. O método usado por Abelardo levantou
dúvidas entre muitas pessoas. Entre elas havia, sem dúvi-
da, mentes obscuras e pouco dotadas, mas não só. Fun-
damentais foram as questões levantadas pelo maior ad-
versário de Abelardo: Bernardo de Claraval. O debate
entre ambos é, ao lado da tragédia pessoal de Abelardo e
Heloísa, a grande tragédia da fé cristã.
Bernardo de Claraval (1090-1153) partici-
pou, assim como Abelardo, das profundas mudanças
que aconteceram na Europa do século XII. Visto por mui-
tos como um reacionário, na realidade ele era expressão
de um novo sentimento, que se desenvolveu num parto
doloroso. A subjetividade uniu Bernardo a Abelardo. No
entanto, em Bernardo surgiu um novo tipo de subjetivi-
dade. Sua subjetividade nada tem a ver com aquele
acento do Eu que faz do ser humano a medida de todas
as coisas. Em Bernardo, o sentimento da subjetividade
ainda permanece emoldurado no mundo da objetivida-
de. A peculiaridade de sua subjetividade está na expe-
riência pessoal do Evangelho.
Bernardo nasceu no seio da nobreza da Borgo-
nha, em 1090. Cedo optou pela abstinência sexual. Afir-
mava que o mundo lhe oferecia muitas oportunidades e
esperanças, mas “todas elas são enganosas”. Assim, por
mais que apreciasse as belezas existentes na criação, via
nelas também o aspecto ilusório da vida. Tal situação
leva à melancolia. Sem que se tenha noção desse aspecto
do engano, contido em todas as promessas que provêm
do mundo, é impossível entender o jovem Bernardo.
Quando Bernardo expôs sua intenção de abandonar o
mundo e ingressar em um mosteiro, seus familiares bus-
caram dissuadi-lo, apontando para suas capacidades e
potencialidades. No final da discussão, Bernardo saiu
vencedor e não só foi para o mosteiro como levou consi-
go seus irmãos. No fato, espelha-se toda a capacidade de
persuasão que era peculiar a Bernardo.
20
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
Pouco antes da Páscoa de 1112, Bernardo ba-
teu à porta do mosteiro de Cistér, acompanhado por
trinta companheiros, que, como ele, pediam por aco-
lhida na comunidade monástica. Enquanto toda a no-
breza vocacionada à vida monástica pedia acolhida no
imponente e rico mosteiro de Cluny, Bernardo e seus
companheiros optaram pela humildade do pequeno
mosteiro de Cistér. O fato está a apontar para um novo
tipo de vida monástica, que se iniciou com Bernardo.
Por outro lado, é importante observar que o monasti-
cismo é a chave para compreender Bernardo. Além
disso, há toda uma nova experiência subjetiva da vida
monástica.
Três anos após seu ingresso na vida monástica,
Bernardo recebeu a incumbência de criar novo mosteiro,
no qual ele próprio seria abade. Com seus monges foi
para o vale da amargura, transformado pelos monges em
vale de luz, daí Claraval (Clairvaux), pois nele antes nada
existira. As privações pelas quais passaram nesse vale fo-
ram tantas que, afinal, os monges pediram a seu abade
que lhes concedesse a graça de retornarem a Cistér. Ber-
nardo não desistiu. Anos passaram até que o mosteiro de
Claraval se tornasse realidade. Por causa dessa luta po-
dem ser entendidas as palavras de Bernardo: “Confia em
minha experiência. Nas florestas, encontrarás mais do
que nos livros; madeira e pedra hão de te ensinar o que
não ouves de mestres”.
Tais palavras podem fazer supor que Bernardo se
perdia na contemplação da natureza. Deixa-nos, porém,
estupefatos a notícia de que ele cavalgou um dia inteiro
ao longo do lago de Genebra sem ao menos notar que o
lago estava ali! São os dois lados do mesmo homem: in-
trospecção profunda e profunda abertura para o milagre
da natureza. Sua subjetividade deixava-o ver flores, ani-
mais, montanhas. Com o sinal da cruz libertava o coelho
da perseguição dos cães, com sal bento buscava aliviar
animais de suas doenças. E, mesmo assim, sabia dizer
que seus únicos professores foram as árvores da floresta.
Quem fala é o monge que se afastou da vida social dos
seres humanos. Segundo Bernardo, podemos aproxi-
mar-nos mais de Deus nas florestas do que por meio das
escolas que cultuam apenas o saber.
Bernardo viveu, exemplarmente, o ideal ascético.
Em sua juventude, levou a ascese tão a sério, que des-
truiu seu estômago e o paladar, a ponto de não mais sen-
tir o sabor dos alimentos, não sabendo diferenciar entre
água e azeite. Não tinha cela. Dormia sob a escada do
mosteiro, onde mal conseguia ficar em pé. Seu travessei-
ro era um bloco de madeira enrolado em palha. Nesse
ambiente e sob tais condições, viveu a pessoa à qual se
21
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
deve o reavivamento religioso do século XII. A mesma
postura ascética ele também exigiu de seus monges, qua-
se todos filhos da nobreza. Exercitando-se na ascese, es-
ses deveriam ser cavaleiros de Cristo. Com eles, Bernar-
do buscava uma nova ética. Claraval tornou-se centro de
atração para jovens. O próprio Bernardo, porém, tam-
bém pregava e conclamava a juventude a colocar-se a
serviço de Cristo. Quando pais e mães se preocupavam
com a sorte de seus filhos, Bernardo lhes dizia: “Não la-
menteis nem choreis; pois vosso Gaufredo caminha para
a alegria e não para o luto. Eu lhe sou pai, mãe, irmão e
irmã. Eu vou endireitar-lhe o que está torto e aplainar o
escabroso”. Quando, a caminho do mosteiro, Gaufredo
disse que temia que doravante não poderia mais ser ale-
gre, Bernardo entrou na primeira Igreja e orou pelo jo-
vem. Pouco depois, o jovem voltou a afirmar: “doravante
serei somente alegre”. O exemplo fala da autoridade que
Bernardo irradiava. Bernardo também era exemplar em
sua preocupação pelos monges. Quando, em certa opor-
tunidade, um dos monges não conseguia comungar por
sentir fraqueza em sua fé, Bernardo lhe ordenou: “Obe-
dece, vai e comunga com a minha fé”. Com sua autorida-
de conseguiu, também, evitar que simples ladrões de bei-
ra de estrada fossem enforcados. Levava-os consigo e in-
tegrava-os na comunidade monástica.
Sua visão do monacato encontra-se expressa nas
palavras:
Aos olhos dos cidadãos do mundo parecemos estar fa-
zendo exercícios de resistência. Fugimos de tudo o que
eles desejam, ansiamos por tudo do que eles fogem; as-
semelhamo-nos aos saltimbancos e dançarinos que se
erguem, com a cabeça para baixo, os pés para cima, de
uma maneira que nada têm de humano, movimentan-
do-se sobre as mãos, atraindo, assim, os olhos de todos
sobre si.
As palavras mostram que o monacato foi para
Bernardo a subversão consciente de todos os valores.
Monacato nada tinha da vida normal burguesa. Era vida
irracional. Era protesto contra o cristianismo nominal e
coragem de ser palhaço aos olhos do mundo, como diria
o apóstolo Paulo. E foi assim que o monacato de Bernar-
do explodiu para dentro da onda mística que perpassou
o século XII. A mística monacal foi, aliás, mérito de Ber-
nardo. Sua mística não procedia do neoplatonismo e era
peculiar. Bernardo não foi filósofo da religião; mas sim-
plesmente místico. Por causa da mística, ele conseguiu vi-
ver em meio aos rigores de seu monacato. Bernardo só
pode ser entendido por causa da mística.
A mística de Bernardo não foi desenvolvida em
tratados. Encontra-se em seus sermões. Bernardo é um
22
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
dos grandes pregadores da fé cristã. No centro de sua
pregação está a interpretação que fez de Cantares. Toda
a paixão com a qual foi composto Cantares, para o qual o
amor é mais doce do que o vinho, seus excitantes convi-
tes para que se entre na alcova dos amantes, tudo isso foi
o ponto de partida para a formulação da mística no mos-
teiro de Claraval. Sua expressão foi sensual e permane-
ceu sensual em séculos posteriores, caso pensarmos nas
composições do Pietismo e do Reavivamento. A Bíblia
foi para ele o “livro da experiência”. Ao lê-la, cada mon-
ge devia poder expressar o que ela diz a respeito dele pró-
prio. Por isso, sua máxima era: “Creio para que experi-
mente”. Em Bernardo, havia um profundo anseio que
buscava experimentar Deus. Havia fome de experiência
religiosa. E aqui temos uma novidade em relação aos sé-
culos anteriores de fé cristã. Bernardo quis degustar o di-
vino como experiência real e não tomar conhecimento
dele apenas como doutrina abstrata. Na vida religiosa,
somente contam as experiências feitas pela própria pes-
soa. Tudo o mais não tem valor. Bernardo conhecia a ex-
periência mística, da qual disse que o próprio crucificado
se soltara da cruz para vir abraçá-lo. E aqui ele só pôde
relatar, não pôde apresentar tratado teórico. A realidade
do Cristo tem que ser experimentada, ela não pode ser
mero processo racional, fruto de reflexões teológicas.
Onde se dá essa experiência? Essa experiência se
dá na alma, nas idas e vindas do noivo que a visita. Esse
vaivém do noivo dá-lhe a certeza de que o divino nele
habita. Toda descrição que faz desse processo, no entan-
to, é provisória. Ao responder como a palavra divina e
eterna veio a ele, Bernardo afirmou:
Perguntas em que reconheço sua presença? Tão logo
entrou em meu interior, despertou minha alma que dor-
mitava. Movimentou, amoleceu e feriu meu coração;
pois era duro e empedernido. Foi assim que, por vezes,
a palavra vinha a mim como noivo; jamais, no entanto,
anunciou sua entrada por meio de quaisquer sinais,
nem por palavra, nem por forma, nem por passo. Resu-
mindo: por nenhum movimento seu ingresso se me tor-
nou evidente, por nenhum de meus sentidos entrou em
meu interior. Somente da comoção de meu coração re-
conhecia, como disse, sua presença divina.
Antes de Bernardo, a fé cristã jamais fizera uso de
tais expressões. Elas passaram a ser sua propriedade des-
de Bernardo e estão até hoje integradas na história da
piedade.
Bernardo experimentou Jesus de uma maneira
como há muito não ocorrera. A imagem de Jesus presen-
te na piedade medieval falava de uma soberania do Filho
de Deus além dos tempos e lugares, metafísica. Sua ma-
23
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
jestade era tal que se tornava inacessível. Bernardo alte-
rou isso e acentuou a humanidade de Jesus. Sua nova
subjetividade descobriu a humildade e o esvaziamento
de Jesus. Bernardo redescobriu a manjedoura, viu nela
os membros frágeis da criança e ouviu seu choro fraco;
redescobriu o milagre do Natal. Ele também reviveu a pai-
xão de Cristo. Foi o primeiro a verificar, ante o crucifica-
do, que seu manto estava sujo, seu corpo cheio de ver-
gões azulados, cuspido, pálido na morte. Os textos de
Paul Gerhardt e os oratórios de Bach têm sua origem na
contemplação de Bernardo. Jesus não é mais apenas
personagem histórico, mas presença viva. Bernardo co-
locou com tal intensidade ante os olhos da Idade Média o
redentor que sofreu e morreu, que produz um novo cha-
mado ao discipulado. “Esta é, por ora, minha mais alta fi-
losofia: conhecer a Jesus e este como crucificado”. Ele es-
tava convicto de que Jesus se conhece no discipulado e
não por meio de longas descrições. Qual noiva, a alma se
encontra com o noivo, Jesus. E também nessa imagem
há novidade. Até Bernardo, a noiva fora a Igreja; agora
ela é vista como a alma sedenta de Deus. O Evangelho
quer ensinar a vida no discipulado. Da contemplação
brota a atividade cristã.
Toda sua piedade estava em oposição a uma Igre-
ja cujo corpo via corroído pela doença. Por causa da saú-
de desse corpo, Bernardo viajou por toda a Europa. Ocu-
pou-se com o cisma e com a existência de dois papas.
Envolveu-se em questões políticas. Convocou para a par-
ticipação na segunda cruzada. Atacou os que desviavam
a cruzada para desmandos anti-semitas. Judeus eram
para ele “imagens vivas dos sofrimentos do Senhor”.
Quem atacava judeus feria a menina dos olhos de Deus.
Sua piedade levou-o, no final de sua vida, a escrever So-
bre a Consideração, obra dedicada a Eugênio III
(1145-1153), o primeiro cisterciense a se tornar papa.
Advertiu Eugênio para que seu pontificado fosse serviço
e não domínio. A Igreja foi chamada a servir, e não a do-
minar. A função do papa é limpar o templo, e não orna-
mentá-lo com ostentações. Pedro não se ornamentou
com pedras preciosas nem usou seda e ouro, nem era se-
guido por uma multidão de servidores. Um papa que for
o contrário do que Pedro foi é seguidor do imperador
Constantino, e não do pescador da Galiléia. Nessas pala-
vras, encontramos o modelo de Igreja imaginado por
Bernardo: a Igreja pobre e dedicada aos pobres. A Igreja
medieval não seguiu suas palavras, perseguindo antes os
que queriam viver conforme o Cristo pobre. Bernardo
morreu em 20 de agosto de 1153, deitado sobre palha e
cinzas. Lutero apreciou-o mais “do que todos os monges
e padrecos sobre toda a face da terra”. Dante colocou, no
24
C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
final da Divina Comédia, a oração de Bernardo à Virgem
Maria. Tomás de Aquino afirmou: “Com o vinho de sua
doçura, embebedou todo o mundo”. O tipo de piedade
por ele inaugurado valeu-lhe o título de “doutor melífluo”.
As posições teológicas de Bernardo e de Abelar-
do são opostas. Enquanto Abelardo afirmava: “Sou
odiado pelo mundo por causa da lógica”, Bernardo afir-
mava: “Arder é mais do que saber”. Bernardo atacou
Abelardo por julgar que, em seu método dialético, exis-
tia perigosa tendência destruidora da fé cristã. De modo
algum, agradava-lhe a vaidade da razão de Abelardo,
que, aliás, tinha o dom de irritar todos com sua vaidade.
Bernardo buscava Deus, como todo o místico, com o
coração ardente. Seus ataques contra Abelardo não
ocorreram por razões pessoais; foram decorrência de
sua desconfiança em relação à ciência. O método dialé-
tico era para ele “revolver nas entranhas do sagrado”.
Abelardo privava com seu método a fé cristã de seus
mais profundos mistérios.
Um novo Evangelho é pregado aos povos; nova fé é
apresentada, posto um outro fundamento além do que
está posto. De maneira imoral é falado sobre as virtu-
des, de maneira descrente acerca do mais sagrado, bri-
ga-se de maneira brutal contra o mistério da divina Trin-
dade, tudo é invertido, tudo tratado contra o costume e
a tradição. O piedoso crê e não pergunta; Abelardo,
contudo, em sua dúvida de Deus não quer crer o que
antes não tenha rachado com sua razão.
Já antes de Bernardo, outros atacavam Abelar-
do com veemência incontida. Foi acossado de muitas
maneiras, a ponto de considerar sua vida uma “história
de calamidades”. Abelardo chegou a pensar em deixar
o mundo cristão e ir ao encontro dos pagãos, para “en-
tre os inimigos de Cristo poder viver cristãmente”. O
grito angustiado de Abelardo sai da garganta dos que
são acusados de heresia em regime de cristandade.
Na História da Igreja, houve muitos que se decidi-
ram ou por Bernardo ou por Abelardo. Tais preferências
acabaram em tragédia, pois separaram o que deveria es-
tar unido. Devemos posicionar-nos ao lado de Abelardo
por causa de sua ousadia em realmente fazer uso de sua
razão. Sem ela, a humanidade jamais teria podido sair do
obscurantismo. Abelardo lançou as bases para o pensa-
mento científico, também para a Teologia. Quando se
discutem questões teológicas, deve-se ter a consciência
de que se usa a razão. Sem ela, somos incapazes de argu-
mentar. Mas devemos posicionar-nos contra Abelardo no
tocante à aplicação do método dialético à religião. Ele lhe
é inadequado. O racional só consegue apreender a fé
cristã de maneira incompleta. No método dialético, não
25
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
há espaço para o emocional, pois ele desconhece o direi-
to à autonomia, o respeito. Abelardo jamais se pergun-
tou, se é possível falar com falta de respeito do divino. O
método com o qual nos aproximamos do religioso não é
o dialético, mas o do paradoxo. Abelardo não notou que,
com o mesmo método com o qual pretendia dar susten-
tação à fé, também poderia destruí-la. O resultado da
aplicação da dialética à fé cristã é descrença, niilismo.
Deus não redimiu o seu povo pela dialética, mas pelo pa-
radoxo da cruz.
Mesmo assim, Abelardo é um pioneiro da liberda-
de de pesquisa e de pensamento. Cem anos após a sua
morte, sua maneira de pensar foi reconhecida pelo mun-
do teológico. As Summae dos escolásticos foram escritas
seguindo o seu método. Por isso, ele deve ser considera-
do um dos pais da Escolástica. Sua discussão com Ber-
nardo, porém, atingiu a substância da fé cristã e deve ser
refletida. As questões levantadas por Abelardo não po-
dem ser relegadas ao esquecimento; as posições de Ber-
nardo não podem ser repetidas. Bernardo usou de meios
irresponsáveis para fazer condenar Abelardo como here-
ge. Ambos representam duas formas do pensar. Abelar-
do optou pela racional; Bernardo, pela simbólica. Essas
duas formas não se coadunam. Mesmo assim, não po-
dem ser pensadas como opostas, senão chegaremos a
uma esquizofrenia do humano. É necessário relacio-
ná-las. A razão não pode ser eliminada do âmbito religio-
so. Quem o tentar, coloca a revelação de Deus no mundo
do obscurantismo e nega a verdade. A dignidade do ser
humano reside na possibilidade que ele tem de pensar. O
cristão deve fazer uso dessa dádiva. Mas isso não é tudo.
Depois de perguntar com radicalidade, é necessário que
se persiga o simbólico com a mesma intensidade, e se o
adore. Na adoração se reconhece e se crê.
As universidades são corporações (é este o sig-
nificado da palavra universitas) que adquirem posição
monopolista a partir do século XII e têm privilégios cor-
porativos: fórum jurídico próprio (o Reitor julga os aca-
dêmicos), direito a veto e à migração, o monopólio de
conceder graus acadêmicos. Seu “selo” é sinal de sua li-
berdade. Estudantes e professores têm estatutos que de-
terminam sua organização. A mais importante repartição
é a das Faculdades, que são cinco: dos Artistas, Teologia,
Medicina, Direito Canônico e Direito Civil. Os estudos
são longos e são poucos os estudantes que conseguem ir
além da Faculdade dos Artistas. O estudo termina com a
consecução do título de “Doutor”. Seis são os anos de es-
tudos na Faculdade dos Artistas, seis anos duram os estu-
dos de Medicina e de Direito. Oito são os anos para se
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C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
concluir Teologia. Doutor só se é com a idade mínima de
35 anos.
Nas escolas das catedrais, a Bíblia era base do en-
sino. Nas universidades, a Bíblia só tinha importância na
Faculdade de Teologia, onde era interpretada em quatro
anos. Aos poucos, os livros se tornaram o principal meio
de ensino. Professores e estudantes deviam possuir com-
pêndios com o programa de ensino: O Decretum Gratia-
ni (Direito Canônico); Livros das Sentenças, de Pedro
Lombardo e a Historia scholastica, de Pedro Comestor
(Faculdade de Teologia), etc. O ensino universitário ba-
seava-se no livro e na cultura do livro.
Bolonha e Paris (1174) foram as primeiras univer-
sidades; Oxford (1214), Cambridge (1209), Pádua (1222),
Nápoles (1224) Toulouse (1229), Coimbra (1288), Sala-
manca (1220) foram as próximas.
Com as universidades, cessou a contínua migra-
ção de estudantes, mesmo que ainda houvesse transfe-
rências, cujas razões eram de ordem financeira. Os Con-
cílios de Latrão de 1179 e 1215 estabeleceram que os
professores não receberiam honorários por seu ensino.
No século XIII, os professores conseguiram que fosse acei-
ta a opinião de que não vendiam “saber”, pois esse é gra-
tuito e dado por Deus, mas eram “trabalhadores” e, por
isso, mereciam salário. Os recursos para pagar os profes-
sores universitários, que eram clérigos, eram tomados do
poder público ou de benefícios da Igreja. Os professores
formavam uma intelligentsia que fornecia porção consi-
derável dos funcionários do Estado e da Igreja.
Baseados em “autoridades”, professores e estu-
dantes desenvolveram um método que passou a ser o
principal instrumento de seu labor universitário: a Esco-
lástica. O intelectual que se vale da Escolástica não é
mero intérprete de textos (livros), mas um criador de pro-
blemas que exigem sua reflexão, provocam seu pensa-
mento e o levam a posicionar-se. Seus exercícios levam
ao surgimento de enciclopédias ou de summas.
No programa de ensino da Faculdade dos Artistas,
ao longo do século XIII, algumas obras se impuseram: as
obras de Aristóteles sobre a Lógica, a Metafísica e a Ética
e os livros sobre a Física. Aristóteles auxiliou o intelectual
do século XIII a fazer uso da razão. É considerado o filó-
sofo por excelência; dele vem o sistema, no qual ciência
exata e penetração filosófica formam uma unidade. De-
vemos considerar façanha de risco o fato de a Teologia
haver tentado incorporar a tremenda construção do pen-
samento natural aristotélico à ciência eclesiástica. Com
seu empreendimento, lançou as bases para o pensamen-
to unitário filosófico-teológico. Os principais porta-vozes
dessa nova forma de Teologia foram monges francisca-
27
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
nos e dominicanos, devendo ser destacados Tomás de
Aquino, Duns Scotus e Guilherme de Ockham.
Tomás de Aquino (1225-1274). Tomás de
Aquino nasceu, provavelmente, em 1225, no castelo
Roccasecca, entre Roma e Nápoles. Era o mais jovem
dos filhos do conde Landolfo de Aquino. Aos cinco anos
de idade, foi consagrado a Deus e a São Bento na abadia
de Monte Cassino, sendo educado até os 14 anos no
espírito beneditino. Em 1239, deixou Monte Cassino,
passando a estudar na Universidade de Nápoles, funda-
da em 1224. Foi aí que teve os primeiros contatos com o
pensamento de Aristóteles, mas também com a ordem
dos dominicanos, na qual acabou ingressando, contra a
vontade da família, em 1243. A ordem dominicana era li-
nha de frente da Igreja, ocupando-se com a pregação e o
ensino. Universidade e ordem dominicana moldaram
Tomás de Aquino: esteve presente no mundo e, ao mes-
mo tempo, rompeu com ele.
Entre 1245 e 1248, estudou em Paris e em Colô-
nia. Em Colônia, foi ordenado sacerdote em 1250. Se-
guindo conselho de Alberto Magno, foi para Paris, onde
passou a lecionar no centro de estudos dos dominicanos.
Foi biblista, depois sentenciário. Dessa atividade surgiu
sua primeira grande obra o Comentário às Sentenças.
Mestre desde 1256, Tomás foi aceito na corporação dos
professores da Universidade de Paris em 1257, passando
a participar das grandes discussões da época. Ao lado de
atividades letivas, envolveu-se em discussões a respeito
do papel das ordens mendicantes e do papel da filosofia
gentílica arábico-islâmica e da interpretação de Aristóte-
les, feita nesse contexto. Além disso, foi conselheiro do rei
Luís IX.
De 1259 a 1268, Tomás lecionou na Cúria e em
escolas dominicanas italianas. Nesse período, foi publica-
da sua segunda grande obra: a Suma contra os gentios.
Trata-se de exposição do todo, daí Suma da fé cristã, pre-
ocupada em torná-la compreensível e acessível especial-
mente a não-cristãos. Surgiram também comentários a li-
vros bíblicos e a textos de Aristóteles e hinos eucarísticos
para a festa de Corpus Christi, introduzida em 1264. Em
1266, ele iniciou sua terceira grande obra, a Suma Teo-
lógica, na qual o pensamento teológico da Idade Média
chegou a seu ápice.
Voltando a Paris (1269-1272), viu-se envolto em
novas discussões em torno da vida das ordens mendican-
tes e da interpretação de Aristóteles.
Os últimos anos de sua vida foram passados em
Nápoles (1272-1274), onde recebeu a incumbência de
instalar uma escola dominicana. Lá surgiu sua obra ina-
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C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
cabada, Compêndio da Teologia, um resumo da fé cris-
tã com base na fé, na esperança e no amor, as três virtu-
des teológicas. Faleceu em 7 de março de 1274, a cami-
nho do Concílio de Lyon, tendo sido sepultado em
Toulouse.
Tomás foi, acima de tudo, teólogo. Só foi filósofo
enquanto a filosofia foi necessária para a Teologia. Não
foi o primeiro teólogo a se ocupar com Aristóteles, mas o
primeiro a usar abrangentemente seus escritos lógicos,
metafísicos e aqueles dedicados às ciências naturais. Me-
diante esses escritos, Aristóteles ensinou a Alta Idade Mé-
dia a ver o significado do mundo em si mesmo, ou em
termos cristãos: levar o mundo a sério como criação de
Deus. Nisso reside uma mudança radical, pois até então,
segundo a tradição de Agostinho e de Platão, o mundo
fora visto como símbolo para as coisas divinas e eternas.
Nessa perspectiva, trazida pela redescoberta de Aristóte-
les, Tomás pôde formular toda uma nova visão da Teolo-
gia, mas se colocou em conflito com elementos do pensa-
mento agostiniano-platônico e também do pensamento
bíblico.
Dentre todas as obras de Tomás de Aquino, a
Suma Teológica assemelha-se a uma catedral gótica, de-
vido à sua admirável arquitetura. Do primeiro ao último
de seus quase três mil artigos, formados segundo o mes-
mo esquema, somos confrontados com enorme discipli-
na intelectual. Todo o tomismo deve ser entendido como
teoria de dois andares. Entre esses dois andares, não há
antagonismo, mas apenas uma diferença de grau ou de
dignidade. Onde ela não for observada, vão aparecer de-
sordem e desavença no pensamento e na ação. Isso vale
tanto para a filosofia quanto para a política.
A razão tem competência para o âmbito natural.
Nele dominou Aristóteles, sempre denominado de “o Fi-
lósofo” por Tomás. Também a “Teologia natural” é
questão pertinente à razão. Ela pode, por uma conclu-
são, das conseqüências às causas, reconhecer a existên-
cia e a unidade de Deus, bem como a imortalidade da
alma. Onde, porém, termina a ciência, o saber e a fé sur-
gem como complemento ao lado da ciência. Os mais al-
tos artigos da Trindade e da Cristologia são reconhecidos
pela Revelação, administrada pelo magistério eclesiástico
do papado, nesse aspecto infalível. Tomás não admitia
contradições entre o pensamento natural e a revelação. A
Filosofia é a ancilla, a serva da Teologia.
A mesma posição foi mantida por Tomás de Aqui-
no na Ética e na Filosofia do Estado. A regra básica era:
“A graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa”. No
tocante à salvação e à justificação do pecador, vale, pois,
que a graça e as boas obras tornam o ser humano justo
29
I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
diante de Deus. Também aqui não existiam opostos para
Tomás; só harmonia.
O Estado é a ordem natural da sociedade huma-
na, correspondendo à vontade de Deus. Segundo Aristó-
teles, os seres humanos foram feitos para uma convivên-
cia ordenada. Por isso, o Estado tem que zelar pela virtu-
de e por uma existência cômoda, por comodidade. No
entanto, o alvo do ser humano não está na imanência.
Não é o Estado, mas a Igreja que é responsável por seu
destino eterno. Por isso ela está acima do Estado. Há, no
entanto, paz entre ambas as instituições, quando o Esta-
do conhecer seus limites. Aqui se evidencia a teoria dos
dois andares: a relação de Estado e Igreja é a mesma re-
lação de Razão e Revelação, de Saber e Crer, de Filoso-
fia e Teologia, de Natural e Supranatural. Significativo é
o fato de que, no esquema de Tomás de Aquino, a Igreja
pode ser localizada, sem qualquer problema, na esfera
do supranatural. No pensamento hierárquico de Tomás,
não há a possibilidade de a Igreja ser vista como “mun-
do”. Ele esqueceu a crítica radical à qual foram submeti-
das todas as instâncias terrenas a partir da mensagem do
Reino de Deus, contida no Novo Testamento e por este
exercitada.
O sistema dos dois andares é também um grandio-
so ocultamento dos verdadeiros problemas. A síntese soa
artificial no político e no filosófico-dogmático. Sem dúvi-
da, Tomás de Aquino foi o maior teólogo sistemático da
fé cristã. Diante de sua Teologia Sistemática, no entanto,
não nos conseguimos furtar à impressão de que a solução
de todas as tensões de maneira harmoniosa só é possível,
porque, em todos os pontos realmente perigosos, Tomás
se furtou a pensar as últimas conseqüências. O desenvol-
vimento posterior da Escolástica evidencia quantas fo-
ram estas últimas conseqüências das quais Tomás fugiu,
mas que surgiram em virtude da síntese de fé cristã e pen-
samento aristotélico.
Duns Scotus e Guilherme de Ockham. Fale-
cido em 1308, o franciscano Duns Scotus foi professor
em Oxford, Paris e Colônia. É talvez o mais sagaz dos
teólogos escolásticos. Levando a sério a razão, descobriu
os limites desta nas questões pertinentes a Deus. Aí viu
que era fictícia a harmonia do sistema tomista. O ser
humano não é tão intelecto quanto o queria Tomás de
Aquino; ele é muito mais vontade. A fé não é uma exten-
são do saber, mas é um ato completamente distinto do
saber. A existência de Deus não pode ser comprovada. A
conceituação humana é incapaz de descrevê-la. Teolo-
gia, por isso, não é conhecimento teórico, mas prático.
Deus é vontade absoluta, ilimitada. A grande diferença
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C T PADERNOS EOLOGIA ÚBLICA
entre Duns Scotus e Tomás de Aquino pode ser verifica-
da em duas afirmações. Tomás ensinara: “Deus quer o
que é bom”. Duns Scotus inverteu a sentença, afirman-
do: “O que Deus quer é bom”. Quanto mais o âmbito de
atuação da razão é limitado, tanto maior importância ad-
quire a autoridade eclesiástica. A fé se torna, cada vez
mais, um ato de obediência, credulidade em relação aos
dogmas da Igreja, à qual não cabe o controle da razão
humana. Com essa sagaz crítica a Tomás de Aquino,
Duns Scotus inaugurou o declínio da Escolástica. Como
afirmamos ao tratar dos inícios da Escolástica em Ansel-
mo da Cantuária, o fundamento dela era a confiança na
razão humana.
Duns Scotus libertou a ciência, o saber, das doutri-
nas da Igreja e mostrou, com clareza, os limites do inte-
lecto nas questões pertinentes a Deus. Com isso, ele dei-
xou campo aberto para o desenvolvimento das ciências,
mas deixou também aberto o campo para a fé. Lutou
pela liberdade de Deus, o qual não pode ser submetido a
controles dogmáticos.
Podemos imaginar que o século XIII e, ainda mais,
o século XIV foram séculos de profundas discussões entre
tomistas e escotistas e, por conseqüência, entre domini-
canos e franciscanos. A ordem dominicana considerou
Duns Scotus um herege.
Guilherme de Ockham, outro franciscano inglês,
nasceu por volta de 1300 nas proximidades de Londres.
De 1330 até sua morte, por volta de 1349, viveu exilado
em Munique, na Baviera. Ockham foi além de Scotus em
sua desconfiança com relação à razão em questões que
dizem respeito à religião. Colocou saber e fé em extrema
oposição. Mais ainda que Scotus, por outro lado, acen-
tuou a necessidade de submissão à autoridade do dogma
eclesiástico. Com seu acento da extrema oposição entre
fé e razão, o ocamismo, a escola que teve suas origens
em Ockham, falou, inclusive, de uma “dupla verdade”: o
que é verdade na Filosofia não precisa ser necessaria-
mente verdade na Teologia, e vice-versa.
Ockham torpedeou toda a teoria de Tomás de
Aquino. As grandes doutrinas da Igreja - Trindade, encar-
nação e imortalidade da alma - não podem ser provadas
com a ajuda da lógica. Não é o intelecto que tem a prima-
zia no ser humano, mas a vontade. Para o Estado e a so-
ciedade é decisiva a formação da vontade dos indivíduos,
e não um dogma religioso. Com essa posição, Ockham
atacou a base da autoridade papal: no máximo, o papa-
do pode ter alguma utilidade; ele não é uma necessidade
lógica. A única base sólida da Igreja é a Bíblia.
Assim, a “via moderna” – nome dado ao ocamis-
mo, para diferenciá-lo da “via antiga”, o tomismo – é a
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I H UNSTITUTO UMANITAS NISINOS
desintegração da Escolástica, confessando que, durante
um longo período, a Teologia havia andado por desvios
ao buscar ligar fé e razão. O pensamento de Ockham es-
teve em grande evidência, no século XVI, no pensamento
do agostiniano-eremita Martim Lutero.
As discussões teológicas acima relatadas fazem
parte de um contexto maior, no qual estava em jogo o
apogeu do poderio eclesiástico.
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