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Existência e Arte – Revista Eletrônica do Grupo PET – Ciências Humanas, Estética da
Universidade Federal de São João Del-Rei – ANO VII – Número VI – Janeiro a Dezembro de 2011
A Tarefa da Compreensão1
The Task of Comprehension
José dos Santos Filho2 - Universidade Estadual de Montes Claros Resumo: No livro Compreender Hannah Arendt, a autora Karin Fry faz uma análise geral das principais obras de Hannah Arendt e também uma reflexão acerca de alguns estudiosos que repercutiram pontos polêmicos no pensamento da filosofa alemã.
Palavras-chave: Arendt, Compreensão, Obra, Pensamento.
Abstract: In the book Compreender Hannah Arendt, Karin Fry makes a general analysis about the Arendt’s works and also a reflexion some scholars that echoed controversial points of the German philosopher’s thinking. Keywords: Arendt, Thought, Understanding, Work.
uando o filósofo J. J. Rousseau comentou sobre A República de Platão,
chamou a atenção daqueles leitores que se enganam quando “julgam os livros pelos títulos”
(ROUSSEAU, 1995, p. 14). No caso específico deste trabalho da professora Karin Fry, o
título Compreender calhou muito bem, visto que o leitor encontrará nas 213 páginas uma
visada panorâmica das principais obras de Hannah Arendt, numa abordagem bastante
didática, proporcionado mais uma oportunidade de compreensão dessa autora.
Como obra introdutória ao pensamento da filósofa alemã, Compreender Hannah
Arendt 3 surpreende pela ousada empreitada de Fry que já no primeiro capítulo analisa a
estreita relação entre duas obras escritas num intervalo de doze anos. Origens do totalitarismo
que é de 1951 e Eichmann em Jerusalém que foi publicado em 1963. Separadamente, os
livros foram escritos com objetivos bem distintos. Origens, por exemplo, intenta mostrar
como o fenômeno totalitário se constituiu na Europa. Segundo Fry esse livro representa “uma
1 Resenha da obra: FRY, Karin A. Compreender Hannah Arendt. Tradução de Paulo Ferreira Valério. Petrópolis/RJ: Vozes, 2010. 213p. 2 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e Professor da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). 3 Tradução de Arendt: A guide for the perplexed, que faz parte de uma coleção de obras introdutórias sobre vários pensadores. No Brasil as obras são traduzidas com o referido título.
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das principais tentativas de encontrar sentido no sem-sentido do totalitarismo”. Já na obra
posterior Arendt procurou “teorizar acerca do mecanismo que, no interior de cada pessoa,
permite o florescimento do totalitarismo” (FRY, 2010, p. 21). A análise das duas obras em
conjunto conduz o leitor à percepção de que “tomados em seu conjunto, os livros explicam os
fenômenos do totalitarismo quer no nível estatal, quer no nível individual” (Ibidem, 2010, p.
21 e 22). Em outras palavras, trata-se de tentar compreender não apenas como a infra-
estrutura totalitária age, como se dá em Origens, mas também como ela pode influenciar o
modo de pensar do cidadão, que está relatado em Eichmann. Segundo Fry é na figura do
oficial nazista Adolf Eichmann que Arendt percebeu como uma força ideológica atua sobre o
homem ‘médio’ e o afasta das pessoas e da realidade como uma espécie de auto-engano.
Assim, destaca Fry, “o que liga definitivamente os dois livros sobre o totalitarismo é aquela
falta de bom-senso e de liberdade de pensamento demonstrada ao extremo por
Eichmann”.(Ibidem, p. 51) O primeiro capítulo é concluído com a ‘sentença’ polêmica dada
pela ‘jornalista’ Arendt ao réu nazista.
O segundo capitulo é dedicado a análise da obra A condição humana que, na ótica de
Fry, é “o livro mais importante de Arendt porque traça determinados elementos da filosofia
positiva de Arendt” (Ibidem, p. 55). Antes, a comentadora principia pela reflexão de ensaios
que foram escritos alguns anos antes da publicação da obra em questão. Os ensaios “Filosofia
e Política” e “Verdade e política” parecem preencher uma lacuna entre o período de Origens
em que “Arendt afirma que a tradição intelectual não influenciou o surgimento do
totalitarismo na Europa” (Ibidem, p. 56) e o período de A condição humana onde ela revê a
sua posição inicial afirmando que “o estudo da filosofia estava, de algum modo, implicado no
surgimento do Partido Nacional Socialista” (Ibidem, p.57). Em todos os textos analisados, Fry
encontra uma posição de Arendt acerca da “filosofia política” de Platão. Segundo ela, “Arendt
considera que a teoria de Platão afeta o estudo da Política” de tal modo que os “filósofos
políticos subsequentes seguem o modelo segundo o qual, intelectualmente, a teoria antecede e
deveria guiar a prática da política, e que as comunidades políticas deveriam fundamentar-se
em idéias filosóficas universais e verdadeiras” (Ibidem, p. 59). É exatamente este modelo de
política que Arendt desqualifica em sua obra A condição humana onde a maior parte da
discussão, afirma Fry, consiste em “remontar os vários componentes da vida ativa a suas
origens conceituais, a fim de compreender como o interesse pala atividade foi sacrificado pela
tradição filosófica em favor de um foco quase exclusivo na contemplação”. (Ibidem, p. 65)
Nesta obra, onde procura traçar a história da teoria política, Arendt concede especial atenção
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para a vita activa que compreende as atividades de labor, trabalho e ação.4 Ao fim do segundo
capítulo a autora reconhece que em A condição humana Arendt não se restringe apenas a
crítica à tradição filosófica que abandonou a ação política, mas ela também “começa a
fornecer um esquema para compreender a teoria positiva de política” (Ibidem, p. 87)
desenvolvida ao longo das décadas de 1950 e 1960.
Liberdade e política é o titulo do capítulo três, onde Fry analisa o trabalho produzido
por Arendt após A condição humana. No período que vai de 1958 até 1978 Arendt se dedicou
à análise de conceitos caros a política tais como liberdade, poder e autoridade. Aqui o
interesse de Arendt se volta para a cena política contemporânea e grande parte de seus textos
tratam de questões emergentes como o macarthismo, o anti-intelectualismo americano, a crise
educacional, a conformidade social, a criminalidade em Nova York, a guerra no Vietnã e o
caso Watergate. A autora chama a atenção primeiramente para o conceito de liberdade que “é
uma categoria decisiva para Arendt, porque a liberdade através de palavras e ações é o sentido
da política” (Ibidem, p. 90). Num ensaio intitulado O que é a liberdade, presente na obra
Entre o passado e o futuro, Arendt retoma a tradição greco-romana que sempre entendeu a
liberdade no sentido político, ou seja, a liberdade tanto para os gregos quanto para os romanos
consistia não numa liberdade ligada à soberania ou a vontade individual mas sim numa
liberdade pública, de participação popular na vida política. Entretanto o tesouro da liberdade
pública foi perdido, isto porque a democracia representativa produziu uma infantilização dos
cidadãos na medida em que confere o poder ao Estado. “Assim os cidadãos não conseguem
eles próprios participar ativamente da política” (Ibidem, p. 93). A participação do cidadão
ficou restrita a uma cabine de votação o que não pode jamais funcionar como espaço da
liberdade plena.
Outro tema tratado ainda no terceiro capítulo e o tema da tríade: Fundação, autoridade
e religião. Em “O que é autoridade”, ensaio publicado na obra citada, Arendt discute tais
temas e, na perspectiva de Fry, Arendt crê que “o fio da tradição rompeu-se” (Ibidem, p. 109).
A partir da crise da religião ocasionada pela secularização ocorrida na política européia,
houve uma consequente perda da autoridade e abalou, de certo modo, os alicerces da tradição
4 - Embora alguns estudiosos como Celso Lafer e Theresa Calvet de Magalhães tenham chamado a atenção para a importância da tradução do conceito de labor como trabalho e work como obra, Paulo Ferreira Valério faz a opção por traduzir labor como labor e work como trabalho. Cf. MAGALHAES, 2011. Há outros pontos curiosos da tradução de Paulo Valério: O National Socialist German Workers's Party que em geral se traduz por Partido Nazista é traduzido por “Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores” e a New School for Social Research aparece como a “Nova Escola de Pesquisa Social” (FRY, 2010, pp. 14 e 15 respectivamente).
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ocidental. Não há mais como compreender o passado senão a partir de uma nova metodologia.
O capítulo termina com a análise acerca do que nós designamos como “engajamento”
político. Arendt não se furtou do debate vigente em seu tempo e também fez suas escolhas
políticas, sem se tornar partidária, afirmando não pertencer a nenhum grupo senão aos
sionistas, que fez parte de 1933 – 1943 (Ibidem, p. 110).
No quarto capítulo, Fry aborta questões em torno da última obra de Arendt: A vida do
espírito. Trabalho dedicado à análise do pensar, do querer e do julgar. O ponto central para o
qual a comentadora chama a atenção neste capítulo é para a relação estabelecida por Arendt
entre o pensar e o agir. Assim destaca Fry: “Arendt postula que a faculdade de discernir o
certo e o errado pode estar conectada a ausência do pensar” e daí conclui, que “o pensar pode,
de fato, ter um papel político muito mais significativo do que ela supunha anteriormente, ao
ajudar a consciência moral” (Ibidem, p.119). Mais uma vez, foi a figura de Eichmann que fez
Arendt despertar para tal hipótese, uma vez que o próprio oficial de Hitler, mesmo não sendo
um monstro ou um lunático, não era sequer capaz de dar uma resposta ao juízes que não
contivesse um clichê, com base em uma ideologia. “A completa incapacidade de pensar é um
problema político porque leva as pessoas a ‘manter-se presas ao que quer que as normas de
conduta prescritas possam ser em determinado tempo e em dada sociedade’”( Ibidem, p.125).
Em última instância, a obra de Arendt quer fazer uma associação entre o pensar e a
capacidade de julgar, como pressuposto para uma atividade humana por excelência: a ação
política. Fry alude ainda que, para a autora, Sócrates é o ícone daquele que levou ao extremo a
atividade de pensar que nunca pode chegar a verdades finais. Por isso, explica que, “Arendt
contrasta a atividade do pensar com a busca pela verdade, ao que ela chama de conhecimento
ou cognição”, por isso, “diferentemente do pensar que é feito em seu próprio sentido e diz
respeito ao seu significado, conhecimento ou cognição, usa o pensamento como um meio para
um fim para obter verdades fatuais” (Ibidem, p.121). O pensar que é semelhante ao diálogo
silencioso entre “eu” e eu mesmo constitui o “dois-em-um” de inspiração socrática. O dois-
em-um ativa, de certo modo, a capacidade humana de pensar sobre suas ações e decidir o que
seria melhor fazer e não se entregar à obediência cega de regras. Deste modo, pensa Fry, “até
mesmo alguém como Eichmann tem o potencial para reformar sua consciência através do
pensar mais profundamente acerca do significado de suas ações e não confiar cegamente em
clichês ideológicos”(Ibidem, p. 127).
A segunda parte de A vida do espírito trata do querer ou da vontade. O tema é de suma
importância para a teoria de Arendt, pois ela vê na vontade a fonte para a ação política. Mais
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uma vez Fry procurar demonstrar que Arendt está muito interessada em apontar como a
tradição filosófica negligenciou a relação entre o querer e a política. “A visão arendtiana do
pensar é que ele é afastado do mundo e nada quer fazer, ao passo que o querer interessa-se por
fazer algo por tomar iniciativas no mundo” (Ibidem, p. 128). Fry faz alusão ao fato de que
Arendt considera Paulo, o apóstolo, como aquele que teorizou primeiramente sobre a vontade.
Ele afirma ser a vontade mais do que uma faculdade para a livre escolha, ela é um desejo
conflituoso dentro de cada um que trava a batalha entre o dever ditado por Deus e os desejos
corporais do indivíduo. Portanto, a vontade produz um conflito entre o corpo e a alma. A
partir daí, Fry alude a sequência de autores que tratam do tema, e que são escrutinados por
Arendt, passando por Agostinho, Duns Scottus, Tomás de Aquino, Hegel, Nietzsche para
chegar em Heidegger que compreende a vontade como uma espécie de negação da vontade,
ou como Fry observa. “Para Arendt, o pensamento posterior de Heidegger propõe um querer-
não-querer, e é até certo ponto hostil a atividade do querer político” (Ibidem, p. 133).
O último tópico do capítulo quarto apresenta a novidade arendtiana que é a
reapropriação do conceito de juízo de gosto da Terceira Crítica de Kant. Arendt aposta que
assim como no juízo de gosto o espectador tem um pensamento alargado, ou seja, pensa não
apenas subjetivamente, mas leva em conta uma comunidade de outros juízes possíveis,
também no juízo político é necessário à aprovação ou desaprovação daquilo que é julgado.
Por isso “o juízo político envolve decidir a respeito do que a ação significa para o grupo, não
para o indivíduo” ( Ibidem, p.143). O mais importante da análise arendtiana é que para que
seja possível um juízo político torna-se necessário que se criar as condições para tal. Fry
alerta que a “teoria arendtiana do juízo político depende da possibilidade de um espaço livre
para as pessoas expressarem suas opiniões” ( Ibidem, p.147).
O quinto capítulo coroa o livro de Fry porque oferece ao leitor uma visão geral
também de vários textos dos críticos de Arendt. Aliás, ao longo dos quatros capítulos
primeiros Fry já indicava de modo sucinto alguns tópicos controversos entre os interpretes da
obra de Arendt. Aqui ela se detém um pouco mais em alguns tópicos como, por exemplo: o
conceito arendtiano de social que se tornou um dos temas mais criticados pelos estudiosos de
sua obra, o próprio tema da moral e do juízo político com base no juízo de gosto, uma
tendência ao elitismo ao valorizar o modelo aristocrático de ação, a conturbada relação
intelectual com a filosofia de Heidegger, as suas posições pouco ortodoxas em relação ao
racismo no episódio de Little Rock, questões em torno do feminino e sobre o pensamento
judaico.
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Compreender Hannah Arendt passa então a fazer parte das leituras obrigatórias à
todos aqueles que se aproximarem da filósofa alemã. Isto porque não somente permite ao aos
leitores um contato com suas principais obras, mas também porque nos apresenta “o outro
lado da moeda”. Karin Fry, em sua abordagem, ao mesmo tempo nos mostra a intensa busca
de Arendt em buscar compreender as questões de seu tempo e nos apresenta os diversos
modos como o pensamento arendtiano foi acolhido ou rechaçado pela comunidade filosófica,
não se furtando em nenhum momento de apresentar ao leitor as críticas mais contundentes às
teses da própria Arendt.
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Referências ARENDT, Hannah. Compreender. Formação, exílio e totalitarismo. Tradução de Denise Bottman. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. FRY, Karin A. Compreender Hannah Arendt. Tradução de Paulo Ferreira Valério. Petrópolis/RJ: Vozes, 2010. MAGALHAES, Teresa Calvet de. A Categoria do Trabalho (Labor) em Hannah Arendt. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/~tcalvet/The Activity of Labor in H. Arendt.pdf.> Acesso em jun. de 2011. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
Submetido em: 19/08/2011 Aceito em:10/11/2011