a sociedade de confiança - alain peyrefitte (l)

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Leituras recomendadas - 11 Alain Peyrefitte: Prólogo e Introdução de A Sociedade de Confiança Após mil e um adiamentos, causados por motivos contrários à minha vontade, vai finalmente sair pela Topbooks, com patrocínio do Instituto Liberal do Rio de Janeiro, a obra-prima de Alain Peyrefitte, A Sociedade de Confiança, estudo sobre as condições culturais do desenvolvimento econômico, cuja importância só se compara à de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Max Weber, do qual constitui, de certo modo, um prolongamento e uma resposta. Peyrefitte, que animadamente se dispunha a vir ao Brasil para o lançamento desta tradução feita por sua amiga Cylene Bittencourt, já não poderá estar presente: faleceu em 27 de novembro, aos 74 anos, vítima de um câncer. Dois dias antes

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  • 13/07/2015 Alain Peyrefitte: Prlogo e Introduo de "A Sociedade de Confiana"

    http://www.olavodecarvalho.org/convidados/peyref3.htm 1/24

    Leituras recomendadas - 11

    Alain Peyrefitte: Prlogo eIntroduo de

    A Sociedade de Confiana

    Aps mil e um adiamentos, causados por motivos contrrios

    minha vontade, vai finalmente sair pela Topbooks, com

    patrocnio do Instituto Liberal do Rio de Janeiro, a obra-prima

    de Alain Peyrefitte, A Sociedade de Confiana, estudo sobre as

    condies culturais do desenvolvimento econmico, cuja

    importncia s se compara de A tica Protestante e o Esprito

    do Capitalismo de Max Weber, do qual constitui, de certo modo,

    um prolongamento e uma resposta.

    Peyrefitte, que animadamente se dispunha a vir ao Brasil para o

    lanamento desta traduo feita por sua amiga Cylene

    Bittencourt, j no poder estar presente: faleceu em 27 de

    novembro, aos 74 anos, vtima de um cncer. Dois dias antes

  • 13/07/2015 Alain Peyrefitte: Prlogo e Introduo de "A Sociedade de Confiana"

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    ainda fra pessoalmente entregar ao editor os ltimos captulos

    do livro em que vinha trabalhando, a parte final do vasto

    depoimento Ctait de Gaulle, obra indispensvel

    compreenso da histria da Frana neste sculo, que Cylene j

    est traduzindo. Diretor do Figaro, membro da Acadmie

    Franaise, amigo, confidente e vrias vezes ministro de Charles

    de Gaulle, celebrado pelo Institut de France e reconhecido como

    um dos maiores cientistas sociais do nosso tempo por crticos

    to diferentes quanto Alain Touraine e Pierre Chaunu,

    Peyrefitte escondia por baixo de uma encantadora modstia a

    tremenda fora de sua autoridade intelectual e poltica. No

    hesito em dizer que foi o ltimo grande homem poltico do

    sculo XX. No veremos outro como ele to cedo.

    Agradeo, nesta oportunidade, a todos os que me ajudaram na

    edio de A Sociedade de Confiana: ao embaixador Jos

    Osvaldo de Meira Penna, que me apresentou este livro e seu

    autor; tradutora Cylene Bittencourt; a Carlos Nougu,

    incansvel e meticuloso revisor; a Jos Mrio Pereira, editor; e

    sobretudo ao Instituto Liberal do Rio de Janeiro e a seu

    presidente, Arthur Chagas Diniz, que tanto confiaram neste

    empreendimento. O. de C.

    A Sociedade de Confiana

    Ensaio sobre as origens e a natureza do

    desenvolvimento

    PRLOGO: Sobre a meno "A ser editado"

    H vinte anos todos os meus livros vm anunciando esta obra

    aos leitores. Pelo menos aos leitores mais atentos, aqueles que

    notavam, no final "Do mesmo autor", a meno "A ser editado":

    A Sociedade de Confiana.

    http://www.olavodecarvalho.org/convidados/peyref2.htm
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    Isso significa que carreguei esse rebento durante muito tempo.

    Muito mais tempo mesmo do que parecia, j que o concebera

    bem antes ao deixar a rua dUlm e a ENA, quando ainda

    esperava conjugar esses dois aprendizados e continuar

    pesquisas, enquanto me iniciava na diplomacia. Minha teses

    para tirar o diploma de estudos superiores fizera com que eu

    explorasse o "sentimento de confiana". Em 1948, apresentei na

    Sorbonne um, ou melhor dois temas de tese (principal e

    complementar: Fenomenologia da confiana; F religiosa e

    confiana). Em Le Mal franais, a conselho de meus

    professores Ren Le Senne e Andr Siegfried, expus a

    experincia de um ano mergulhado numa "sociedade de

    desconfiana", tal como era a Crsega profunda. Desde ento

    acumulei leituras sem cessar, e mais ainda observaes, no

    decorrer de viagens atravs dos cinco continentes, de

    experincias vividas como poltico eleito regional, nacional e

    europeu ou como ministro e, acima de tudo, talvez, de

    incontveis encontros com esses homens que os pensadores da

    economia negligenciaram e que me pareciam personagens-

    chave: os "empreendedores".

    A maioria dos meus livros no passaram de bastardos nascidos

    do encontro dessa idia com diversas ocasies. O primeiro foi Le

    Mythe de Pnlope (1949), rplica pretensiosa do Mythe de

    Sisyphe de Camus, cujo estoicismo no corao do absurdo

    parecia-me estril. Faut-il partager lAlgrie? (1961 mostrava a

    impossibilidade de manter, no mesmo solo, na proporo de dez

    para um, sem um reagrupamento prvio, uma sociedade

    subdesenvolvida tomada pelo esprito de rebelio, e uma

    sociedade moderna crispada em seus privilgios. Quand la

    Chine seveillera (1973) descrevia uma populao arcaica,

    arfante uma "sociedade de desconfiana" dopada pelo

    entusiasmo revolucionrio. Meus outros livros sobre a China

    prolongaram essa explorao. Assim, atravs da narrativa

    detalhada de uma embaixada britnica junto ao imperador da

    China, apresentei um "choque de culturas" entre uma nao em

    rpido desenvolvimento e O Imprio imvel (1989).

    Le Mal franais (1976) tinha-se aproximado mais do objeto

    desejado. Esbocei os traos essenciais desse objeto: o papel

    decisivo do fator mental no desenvolvimento econmico, a

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    diferena de xito entre sociedades protestantes e sociedades

    catlicas, ou melhor, entre "sociedades de confiana" e

    "sociedades de desconfiana". Coloquei nesse livro muito da

    minha experincia pessoal para mostrar concretamente a

    extenso dos nosso bloqueios mentais, e uma pouco de histria

    para mostrar que vm de muito longe. Mas o essencial limitava-

    se ao caso francs.

    O ano de 1981 mostrou que o acolhimento que se d a uma obra

    apenas uma minscula ondulao nas guas profundas de uma

    cultura; a iluso estatal seduziu os franceses e provocou as

    devastaes previsveis. A reflexo tronou-se um combate.

    Participei dele trs vezes: Quand la rose se fanera (1982),

    Encore un effort, Monsieur le Prsident (1985), La France en

    dsarroi (1992). Foram captulos acrescentados ao Mal

    franais.

    Nesse meio tempo, o marxismo desmoronava na Europa e

    recuava tanto na Amrica quanto na frica; o comunismo

    chins, por uma reviravolta ideolgica, adotava a economia de

    mercado. Enquanto isso, uma longa crise econmica levou os

    ocidentais a se interrogarem sobre a irreversibilidade do

    progresso material. Paradoxalmente, a sociedade liberal, com a

    qual sonhavam tantos habitantes dos pases socialistas,

    comeava a duvidar dela mesma.

    Era hora de voltar s fontes do desenvolvimento, de discutir as

    diversas concepes que dele foram feitas, de determinar o que

    permanncia e o que circunstancial. Coloquei-me em campo

    aberto em 1948, na forma de uma tese que defendi na Sorbonne

    em fevereiro de 1994.

    Durante esses quarenta e seis anos nunca parei de estudar esse

    assunto, ou pelo menos de refletir sobre ele, e de reunir

    material a respeito. Retomando-o quando a alternncia

    democrtica deu-me alguns momentos de folga, preferi esperar

    mais ainda para abortar sua defesa, at ter passado dos 65 anos,

    isto , at estar impedido de assumir uma cadeira na

    Universidade. Esse ato gratuito simplesmente visava dentro

    do respeito pelas regras da Universidade, aceitando

    estritamente o jogo "defender uma tese" no sentido exato da

    expresso: submeter minhas pesquisas a especialistas

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    internacionalmente reconhecidos nas disciplinas nas quais me

    havia aventurado, para que emitissem um julgamento sobre sua

    validade (ou sua invalidade), isto , sobre um conjunto de idias,

    de pesquisas, de mtodos, de instrumentos de anlises, que

    formam a convico de uma vida.

    Que convico? A de que o elo social mais forte e mais fecundo

    aquele que tem por base a confiana recproca entre um

    homem e uma mulher, entre os pais e seus filhos, entre o chefe

    os homens que ele conduz, entre cidados de uma mesma

    ptria, entre o doente e seu mdico, entre os alunos e o

    professor, entre um prestamista e um prestatrio, entre o

    indivduo empreendedor e seus comanditrios enquanto que,

    inversamente, a desconfiana esteriliza.

    Decerto temerrio propor uma chave para a interpretao de

    fenmenos to universais e essenciais como o desenvolvimento

    e o subdesenvolvimento; e mais temerrio ainda arriscar-se

    multiplicando as abordagens que as diversas disciplinas

    oferecem, forando mesmo suas fronteiras.

    Foi o conhecimento do Terceiro Mundo que me convenceu de

    que o Capital e o Trabalho considerados pelos tericos do

    liberalismo tradicional, assim como pelos tericos do socialismo,

    como os fatores do desenvolvimento econmico eram na

    realidade fatores secundrios; e que o fator principal, que com

    um sinal de mais ou com um sinal de menos afetava esses dois

    fatores clssicos, era um terceiro fator, que h vinte anos

    chamei de "terceiro fator imaterial", em outras palavras, o

    fator cultural.

    Aquilo que eu havia explorado, adorando o estilo do ensaio, em

    meus diversos livros sobre a Frana ou a China e em inmeros

    artigos, gostaria, como se costuma dizer, de aqui "teorizar". Mas

    como provar a existncia desse terceiro fator imaterial?

    Um terreno pareceu-me fecundo nesse sentido, o da histria

    econmica do Ocidente no decorrer destes quatro ltimos

    sculos. um terreno firme, sobre o qual hoje dispomos de

    grande nmero de informaes incontestveis. Foi de fato nesse

    perodo, e em nenhum outro, em algumas sociedades da

    Europa, e no em outras, que nasceu o desenvolvimento.

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    Qual foi o fator de desencadeamento, o primum movens, que fez

    passarem na Holanda, depois na Inglaterra, depois na Europa

    do Norte, depois em toda a Europa ocidental sociedade

    tradicionais, sempre ameaadas pelas epidemias, pela fome e

    por choque sangrentos, ao estado de sociedades desenvolvidas?

    Quanto mais se estuda as origens da Revoluo econmica, mais

    se duvida de que trata-se de uma ruptura brusca, resultante de

    uma causa nica e que pode ser datada com preciso. E os

    historiadores esto sempre recuando o aparecimento do

    fenmeno. Sem dvida nos trs ou quatro ltimos sculo que

    preciso procurar a prova de toda "teorizao" do

    desenvolvimento.

    Examinando a cristandade ocidental no sculo XVI, somos

    levados a concluir que havia uma quase-igualdade de chances,

    com um evidente avano no Sul. Nada poderia induzir a prever,

    na poca, o impulso das naes que aderiro a uma das

    Reformas protestantes, nem o declnio relativo, ou at absoluto,

    das naes que permanecero "romanas".

    Ora, a partir do final do sculo XVI, a cristandade ocidental

    torna-se o teatro de uma distoro econmica. A Europa nrdica

    substituir a Europa latina como foco de inovao e de

    modernidade.

    Contudo, redutivo demais, para no dizer simplista demais,

    afirmar que a Reforma protestante seria como uma galinha dos

    ovos de ouro, e que deteria em si mesma o segredo do

    desenvolvimento econmico, social, poltico e cultural. A diviso

    entre uma Europa "romana", que entra em declnio econmico,

    e uma Europa das Reformas protestantes que toma impulso,

    reflete menos uma determinao do econmico pelo religioso

    ou do religioso pelo econmico do que a expresso de uma

    "afinidade eletiva" entre um comportamento socio-econmico

    espontneo e uma escolha religiosa. Pelo menos essa a minha

    concluso.

    A sociedade de desconfiana uma sociedade temerosa,

    ganha-perde: uma sociedade na qual a vida em comum um

    jogo cujo resultado nulo, ou at negativo ("se tu ganhas eu

    perco"); sociedade propcia luta de classes, ao mal-viver

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    nacional e internacional, inveja social, ao fechamento,

    agressividade da vigilncia mtua. A sociedade de confiana

    uma sociedade em expanso, ganha-ganha ("se tu ganhas, eu

    ganho"); sociedade de solidariedade, de projeto comum, de

    abertura, de intercmbio, de comunicao. Naturalmente,

    nenhuma sociedade 100% de confiana ou de desconfiana. Do

    mesmo modo que uma mulher nunca 100% feminina, nem um

    homem 100% masculino: este comporta sempre uma parte de

    feminilidade, aquela sempre um pouco de virilidade. O que d o

    tom, o elemento dominante.

    Quando se terminar de explorar esse enigmtico e gigantes

    fenmeno de civilizao? Um estudo das proezas econmicas

    que balizaram a histria serviu de tema para um curso que dei

    como professor convidado (Du "miracle" en conimie, Leons

    au Collge de France, 1995).

    Trata-se de ilustraes (centradas nos "milagres" holands,

    ingls, americano e japons) das pesquisas apresentadas na tese

    aqui reescrita visando o pblico culto.

    Ter este longo percurso de reflexo encontrado aqui seu ponto

    final? Desejaria que me fosse dado tempo para levar mais longe

    minhas investigaes nesta disciplina ainda balbuciante que a

    etologia humana comparada, cincia dos comportamentos,

    costumes, mentalidades dos diferentes grupos humanos.

    Em todo caso, que essa "sociedade de confiana" possa um dia

    estender-se a todas as sociedades e lhes trazer, na diversidade

    das suas personificaes, na unidade da sua inspirao, os

    benefcios morais e materiais por ela prodigados aos rarssimos

    povos que souberam realizar essa revoluo cultural, a maior da

    histria! Quando a estes, possam eles no se mostrarem nem

    filhos ingratos nem filhos prdigos, e compreender melhor o

    porqu do seu sucesso, no para reservar para si o privilgio,

    mas para dele guardar viva a fora exemplar...

    INTRODUO

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    Um nico e mesmo enigma

    Os pases "subdesenvolvidos" representam uma esmagadora

    maioria geogrfica e demogrfica. De nada adianta cham-los

    pudicamente de "pases do Sul", "pases em vias de

    desenvolvimento", "pases de crescimento lento", intil. No

    se muda uma sociedade por meio de palavras. s vezes se diz

    que esses pases so destinados a ter uma grande futuro; mas

    correm o risco de conserv-lo durante muito tempo sua

    frente, segundo as palavras cruis de Paul Valry, enquanto a

    encantao verbal fizer o papel de medicina, e as piedosas

    mentiras ideolgicas o de esconder a misria.

    O "subdesenvolvimento" freqente ainda hoje; e raro o

    "desenvolvimento". Considerados separadamente, esses dois

    fenmenos so enigmas. Ou melhor, um nico e mesmo enigma:

    obviamente procedem de uma origem comum, como as sadas

    postas de um mesmo labirinto.

    De bom grado esquecemos que o subdesenvolvimento

    desnutrio, doena, violncia endmicas constitui, desde que

    a humanidade surgiu na terra, seu lote comum, seu regime

    usual. O desenvolvimento sempre a exceo. E ainda essa

    exceo precria, veja-se os bolses de misria e excluso que

    ressurgem no prprio seio das sociedades ditas "adiantadas".

    Reconheamos que o subdesenvolvimento e o desenvolvimento

    no formam o passado e o futuro de uma sociedade, como os

    dois estgios sucessivos de uma maturao irreversvel; mas

    um bifurcao, diante da qual os grupos humanos hesitam, sem

    que apaream claramente os aceleradores do seu impulso ou os

    motivos da sua resignao.

    Podemos descrever diferentes roteiros, definir mecanismos,

    fixar critrios do desenvolvimento, momentos iniciais de

    crescimento: no compreenderemos o que acontece enquanto

    no entendermos por que uma sociedade avana, por que outra

    permanece imvel, ou se imobiliza. No so os mesmos homens,

    e freqentemente as mesmas condies geofsicas, que sofrem

    ou provocam destinos opostos? A histria do homem

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    semeada de acidentes, acasos, encontros. Mas a ele que cabe

    enfrentar ou no a fatalidade. Ascenso e declnio s so

    irresistveis se ele no resistir a uma ou ao outro.

    Quando aparece o "desenvolvimento"

    No alvorecer dos tempos modernos aparece o

    "desenvolvimento", cercado de ameaas, emergindo

    penosamente num mundo amaldioado desde tempos

    imemoriais pela fome, pelas endemias, por confrontos

    sangrentos. Algumas sociedades "decolam", enquanto que a

    maioria continua a se arrastar rente terra, quando no

    retrocedem.

    Entre a descoberta da Amrica em 1492 e a diviso da frica

    por volta de 1892, a condio humana nos pases mais

    favorecidos mudou mais em quatro sculos do que nos trs ou

    quatro milhes de anos precedentes. Nenhuma evoluo to

    radical tinha ocorrido em to pouco tempo. A "revoluo

    neoltica" havia transformado nmades habituados predao

    da flora e da fauna naturais em lavradores sedentrios. Mas ela

    estendeu-se por vrios milnios; no sculo XVI, quando

    apareceram os primeiros prdromos da revoluo do

    desenvolvimento, as populaes da metade das terras emersas

    no tinham ainda realizado a sua revoluo neoltica. Nos

    sculos seguintes, essas duas revolues colidiram

    violentamente.

    Os ltimos cem anos foraram ainda mais a velocidade. Um

    homem que hoje festeja seu centenrio viu precipitar-se fosse

    atravs de crises e guerras um fenmeno designado por

    nomes variados: "o progresso", "a decolagem", "o

    crescimento", "a expanso", "a acelerao da histria", "a

    modernidade", "a era ps-industrial", "a globalizao".

    Esses fenmenos de modernizao rpida nasceram na Europa

    ocidental, acentuaram-se em sua parte setentrional,

    estendendo-se depois pela Amrica do Norte; mas s se

    difundiram bem mais tarde, e muito lentamente, na Europa do

    Sul, na Amrica Latina e nos outros continentes; enquanto que o

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    Japo, no final no sculo XIX, depois os "pequenos" drages

    Coria do Sul, Taiwan, Hong Kong, Macau, Singapura no final

    do sculo XX juntavam-se a passos largos aos Estados que

    haviam monopolizado a "modernidade". Hoje, comeam a surgir

    o "grande drago" chins, a Indonsia, a Malsia, a Tailndia. Os

    pases do desenvolvimento permaneceram durante muito

    tempo num estrito isolamento; e ainda esto circunscritos.

    Como um sismgrafo, nossa viso do mundo registra no sem

    atraso essas perturbaes econmicas. Cada tremor acarreta

    transformaes da nossa psicologia de nossas mentalidades,

    de nossos comportamentos individuais, de nossos costumes, de

    nossas crenas, de nossos preconceitos, da nossa cultura.

    Mas no seria o caso de admitir a idias de que essas mudanas

    econmicas devem elas mesmas alguma coisa, talvez at o

    essencial, a esses fatores psquicos antes de transform-los por

    sua vez?

    Explicaes que se invertem

    A Inglaterra industrializou-se antes da Frana, e mais do que

    ela. Por que? O carvo o responsvel pela diferena,

    respondem os manuais. Mas ento, o impulso manufatureiro e

    comercial holands, um sculo antes da Inglaterra, a que fator

    devemos imput-lo? Os plders no substituem as minas de

    carvo? Resposta: mas justamente foi a pobreza de recursos

    naturais que forou os holandeses a comerciar e produzir.

    A explicao pelo argumento dos recursos naturais inverte-se

    como uma luva. Quando so abundantes, o impulso vem

    sozinho. Quando faltam, sua prpria carncia invocada como

    fator de desenvolvimento: na teoria da desvantagem inicial, a

    insuficincia de recursos voa em socorro das insuficincias da

    explicao pelos recursos. Essas teorias ainda vigoram nos mais

    recentes estudos de histrica econmica. Ns tentamos refut-

    las em Du "miracle" en conomie.

    O materialismo histrico consagra essa viso do mundo,

    caracterizada pela primazia das condies geofsicas e das infra-

    estruturas. O homem no levado em conta; nem sua

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    engenhosidade, nem sua iniciativa fugazes "superestruturas",

    semelhantes a "fogos ftuos numa lagoa".

    J o realismo histrico no pode ignorar o homem. As polticas

    econmicas, quer sejam liberais ou dirigistas, "cientficas" ou

    coercivas, sempre encontraram o homem no seu caminho: ora

    como motor, ora como obstculo. preciso compor com ele. O

    ssamo do desenvolvimento no ele prprio?

    Como possvel, indagam-se com freqncia os dirigentes

    africanos, conduzir ao desenvolvimento econmico operrios

    indgenas que param de trabalhar logo que seu salrio permite

    que comprem o guarda-chuva ou a bicicleta cobiados? Como a

    ndia poder prosperar enquanto seus habitantes deixaram-se

    morrer de fome ao lado de uma vaca sagrada? E como a

    democracia representativa maneira ocidental funcionria sem

    choques em sociedades estratificadas em castas e em cls? Os

    hbitos seculares tm aqui um peso evidente. Um antigo reflexo

    etnocentrista no hesitava em colocar o subdesenvolvimento

    por conta da raa ou da etnia.

    Uma preciosa experincia de laboratrio

    Todos os pases desenvolvidos so ou eram, at a

    modernizao do Japo no final do sculo XIX de raa branca

    e de cultura greco-judico-crist. Nenhum povo homogneo

    dessa categoria figura na lista dos pases subdesenvolvidos.

    Devido a um velho reflexo eurocentrista, poder-se-ia ficar

    tentado a falar de "inaptido natural para o progresso", de

    "alergia congnita sociedade industrial", de "etnias

    retardadas", ou ainda, como se fazia correntemente no sculo

    XIX, de "raas inferiores". O desenvolvimento e o

    subdesenvolvimento estariam inscritos em nosso genes. A

    biologia deteria a chave do problema.

    A distoro que o objeto da presente obra coloca-nos ao

    abrigo dessa tentao. Ela ope na Europa ocidental, a partir do

    Renascimento e da Reforma, pases latinos e naes

    protestantes. Tanto uns quanto as outras pertenciam at o

    sculo XVI mesma cristandade do Ocidente: mesma raa,

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    mesma cultura, mesmo enquadramento pela igreja, mesma

    malha feudal temperada pela mesma ecloso de franquias

    municipais. A circulao das pessoas, dos bens e das idias flua

    com facilidade. No se percebia entre uma monarquia e outra

    nenhuma heterogeneidade, a no ser avano persistente do Sul

    com relao ao Norte.

    Em algumas dcadas essa paisagem alterada. A Holanda

    depois a Inglaterra, tomam um rpido impulso; so seguidas

    pelos outros pases protestantes, enquanto que Portugal, a

    Espanha, os principados ou repblicas da Itlia entram em

    decadncia, e a Frana, cujo caso intermedirio, se arrasta.

    Unidade de ao, de lugar, de tempo: o que ocorre durante um

    curto perodo, nesse campo restrito, oferece uma preciosa

    experincia de laboratrio, apropriada para isolar os elementos

    constitutivos do desenvolvimento e do subdesenvolvimento,

    livres de todo preconceito racial ou tnico etologia sem

    etnologia.

    Dizemos "o desenvolvimento" como dizemos "a evoluo". Mas

    assim como no se viu os animais paleontolgicos tornarem-se

    os animais que conhecemos, ningum pode observar o

    mecanismo do desenvolvimento. Seleo cega? Triagem

    mecnica? Avano consciente? Busca de uma meta

    inconsciente? A espessura da histria encobriu o processo.

    Assim como a evoluo, o desenvolvimento um conceito que

    procura explicar uma diferena num espao de tempo.

    Divergncia, atraso, distoro, esses termos surgiro com

    freqncia nas pginas que se seguem. Eles permitem que se

    descreva a histria do desenvolvimento econmico, poltico e

    social da cristandade ocidental como um desenvolvimento "a

    duas velocidades". Tentaremos descrev-lo com exatido, em

    bases agora bem estabelecidas, e em seguida explic-lo.

    O imaterial comanda

    Colocar essas questes em pauta tentar realizar uma

    verdadeira revoluo copernicana no estudo do

    desenvolvimento. Os dados da histria econmica recursos

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    em matrias primas, capitais, mo-de-obra, relaes de

    produo, investimentos, trocas, distribuio, ndices de

    crescimento foram postos at agora no centro das explicaes

    do desenvolvimento. Os traos mais imateriais de uma

    civilizao religio, preconceitos, supersties, reflexos

    histricos, atitudes perante a autoridade, tabus, motores da

    atividade, comportamentos no tocante mudana, moral do

    indivduo e do grupo, valores, educao eram relegados ao

    nvel de satlites insignificantes, gravitando penosamente em

    torno da estrutura central. Ernest Labrousse, aps tantos

    outros, afirmava que "o mental atrasa o social", e "o social, o

    econmico". Propomos inverter os papis. De subfator

    secundrio, de longnqua e negligencivel conseqncia, as

    mensalidades tornar-se-am o centro em torno do qual tudo

    gravita: motor essencial do desenvolvimento, ou obstculo

    intransponvel.

    Propomos em suam lanar as bases de uma etologia

    comparada do desenvolvimento econmico, social, cultural,

    poltico. Etologia, isto , estudos dos comportamentos e

    mentalidades respectivas das diversas comunidades humanas,

    na medida em que fornecem fatores de ativao ou de inibio,

    em matria de intercmbio, de mobilidade intelectual e

    geogrfica, de inovao. Etologia pois no podemos nos

    contentar aqui nem com os esquemas descritivos, mais

    redutores, da etnologia, nem com as recomendaes

    convencionais, mas sem efeito, da tica.

    A mola da confiana

    Em quarenta anos de observaes, a atitude de confiana na

    pessoa ou de desconfiana apareceu-nos, sob formas bem

    diferentes, como a quinta-essncia das condutas culturais,

    religiosas, sociais e polticas que exercem uma influncia

    decisiva sobre o desenvolvimento.

    Nossa hiptese de que a mola do desenvolvimento reside em

    definitivo na confiana depositada na iniciativa pessoal, na

    liberdade exploradora e criativa em uma liberdade que

    conhece suas contrapartidas, seus deveres, seus limites, em

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    suma sua responsabilidade, isto , sua capacidade de responder

    por si mesma. Mas como uma liberdade dessa ordem ainda

    muito pouco praticada no mundo, lcito temer-se que a

    escassez, a doena e a violncia ainda rondem por nosso planeta

    durante muito tempo.

    Podero at voltar com intensidade em zonas de onde se

    retiraram h algumas dezenas de lustros. O progresso perptuo

    no existe; os agentes dinmicos da nossa sociedade podem

    sufocar-se ou esgotar-se seja pelo peso de um Estado invasor,

    de um igualitarismo excessivo, de uma reivindicao do

    "sempre mais" como um direito adquirido; pelo esquecimento

    dos deveres que so o indispensvel reverso dos direitos; ou

    pela concorrncia insustentvel de povos atrasados que, para

    escapar da misria, usam sua recentssima capacidade de

    produzir muito mais barato, em muito maior quantidade e

    igualmente bem.

    A questo do comeo

    Eis a nossa hiptese. E eis aqui o modo pelo qual tentaremos

    fundament-la.

    necessrio colocar no comeo a questo do comeo. Os

    historiadores da economia muito se interrogaram e discutiram a

    respeito da data que poderia ser atribuda "revoluo" do

    desenvolvimento, ou mesmo sobre a possibilidade de lhe

    atribuir uma data mais ou menos precisa. Ouvindo seus

    argumentos e suas propostas teremos a medida da

    complexidade do assunto. Ser nossa Primeira Parte.

    Por que o desenvolvimento no comeou mais cedo, uma vez

    que a Europa do final da Idade Mdia j domina as tcnicas do

    comrcio e das finanas, que o comerciante prospera em toda

    parte, que o livro impresso libera de mil presses a difuso do

    conhecimento ou das idias, que a prpria Igreja se moderniza,

    tanto na sua tolerncia com relao ao dinheiro, quanto, sob o

    signo de Erasmo, na aceitao do humanismo?

    Por que o movimento no se iniciou nessas grandes cidades

    mercantis italianas onde se concentravam tantas riquezas, de

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    conhecimento, de curiosidade intelectual, de apetite de

    dominar? O que faltou a esses homens que dispunham de tantas

    chaves que abririam, cada uma delas, a porta de um

    compartimento do desenvolvimento, para encontrar a chave-

    mestra que abriria todas ao mesmo tempo? fascinante

    examinar essa Europa dinmica, impaciente, mas que gira em

    crculos no liminar do seu futuro.

    O futuro nascer no final do sculo XVI na Holanda, onde

    ningum o esperava, nem mesmo os holandeses. E de imediato

    essa "decolagem" aparece como uma distoro. Um fosso se

    cava; o desenvolvimento nasce sob esse signo. Empreguemos

    uma palavra que usaremos freqentemente: "divergncia", nas

    suas duas acepes. Uma sociedade diverge como faz uma pulha

    atmica quando acionado em seu interior um ciclo de reaes

    em cadeia o processo interno. No mesmo tempo seu destino

    tambm diverge pelo contraste com as outras sociedades; a

    prosperidade nela adquire muito rapidamente um ritmo e sinais

    desconhecidos para seus vizinhos.

    A divergncia religiosa

    Ora, essa distoro parece coincidir com a fratura religiosa. A

    Holanda que se afirma, refgio dos calvinistas, inimiga de

    Felipe II. A divergncia do desenvolvimento no pode separar-

    se da divergncia de credo, que rompe a unidade milenar da

    cristandade do Ocidente. Ocorre que o desenvolvimento surge

    no campo protestante: primeiro a Holanda, breve a Inglaterra.

    Essa coincidncia estabelece um difcil problema de causalidade

    histrica. Portanto, preciso explorar previamente essa

    divergncia religiosa, pelo menos nos aspectos que podem ter

    uma relao com a questo do desenvolvimento: as atitudes

    perante o dinheiro, as "aes", a atividade profissional. preciso

    acompanhar as evolues, entre tolerncia e tabu, da Igreja

    catlica, a de antes da Reforma e a da Contra-Reforma.

    preciso afrontar o paradoxo do protestantismo, movimento

    religioso que de certa forma entrega o homem sem defesa

    escolha e ao julgamento de Deus, mas que no entanto concede

    um novo lugar e d um novo sentido atividade "mundana". De

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    que modo o dogma da "salvao unicamente atravs da f" pode

    ocupar o centro religioso de sociedades vigorosamente

    orientadas para o xito material, para a criao coletiva de

    riquezas? E de que modo uma religio da "salvao atravs das

    aes" suscitou, justamente, muito menos riquezas? Todas

    essas questes so objeto da Segunda Parte.

    A divergncia do desenvolvimento

    Uma vez preparado o terreno, pode-se descrever e analisar as

    primeiras etapas da "divergncia do desenvolvimento" (IIIa

    PARTE). Inmeros campos a aventura colonial, a inovao, o

    "mercantilismo", as evolues polticas permitem a

    comparao, entre pases protestantes e pases catlicos, dos

    desempenhos contrastantes. Eles destacam o papel de um

    pequeno nmero de atitudes mentais responsabilidade,

    disponibilidade, tolerncia, confiana na descoberta cientfica, na

    inveno tcnica e na difuso cultural; e tambm o papel de

    fenmenos sociais como as migraes, grandes fornecedoras de

    homens liberados e empreendedores. A mobilidade geogrfica

    no basta para explicar o desenvolvimento, mas nunca houve

    desenvolvimento sem mobilidade dos homens. preciso sair da

    sua aldeia, no se limitar a ver a hora no relgio da igreja, ir

    "tentar a sorte".

    No essencial, paramos esta descrio histrica no sculo XVII

    porque justamente no queremos fazer histria, mas sim dela

    tirar lies. Ora, essas lies so mais claras no momento em

    que os mecanismos mentais e comportamentais do

    desenvolvimento se instalam. Ento, o desenvolvimento estaria

    longe de ter produzido seus efeitos mais espetaculares, positivos

    ou negativos: a prodigiosa acelerao da criatividade tcnica e

    da produo de bens de consumo, mas tambm a proletarizao

    brutal da mo-de-obra industrial. Contudo, o movimento est

    lanado; ele se alimenta de si mesmo.

    Procurando as caractersticas do motor inicial, encontramos algo

    mais: uma coisa surpreendente, que foi muito pouco analisada e

    mesmo muito pouco sentida. que os pases que no entram no

    movimento no so neutros. Servem-se de freios. Assim como

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    h uma Contra-Reforma, existe um Contra-Desenvolvimento. A

    primeira e o segundo funcionam com fora mxima em

    Portugal, na Espanha e na Itlia. A Frana, em ambos os planos,

    ocupa um lugar parte. catlica, mas galicana: no aceita o

    Conclio de Trento. hierrquica, mas gaulesa, colbertista, mas

    rebelde. Enquanto que sua volta aperfeioam-se os melhores

    motores ou os melhores freios, ela se serve de ambos ao mesmo

    tempo, apoiando alternativamente sobre os dois pedais, e

    mesmo simultaneamente, arriscando-se a capotar...

    Em suma, no existem, simplesmente, desenvolvimento e no-

    desenvolvimento. H mecanismos mentais, liberadores ou

    inibidores do desenvolvimento, desigualmente presentes em

    cada sociedade dessa poca.

    Olhar contemporneo

    J que se trata de mecanismos mentais, estes deveriam deixar

    traos por escrito. De fato, eles no faltam. So tambm muito

    mal conhecidos; o leitor far conosco descobertas curiosas nesse

    "olhar contemporneo sobre a divergncia" (Quarta Parte). O

    fenmeno da divergncia era to novo, to perturbador, que

    provocou inmeras reaes, descries, reflexes.

    Devemos acreditar piamente nesses testemunhos? Claro que

    no, e teremos ocasio de observar diferenas sensveis, at na

    maneira como so emitidos. As testemunhas so reveladoras

    sobre elas mesmas. O olhar de um comerciante ingls sobre a

    Holanda ensina-nos mais a respeito das causas profundas do

    xito holands e, mais tarde, do xito britnico pois ele se

    interroga sobre os desempenhos econmicos do que o de um

    intelectual francs, seja ele Voltaire ou Diderot. Porquanto estes

    revelam suas prprias obsesses na sua maneira de admirar

    mais aquilo que se relaciona com a poltica ou a religio

    liberdade, tolerncia do que o que diz respeito economia e

    sociedade. Seria decoroso admirar um povo de ricos burgueses?

    At os franceses que celebram a Holanda evidenciam suas

    inibies antieconmicas.

    Ao nos familiarizamos com o olhar contemporneo, ficamos

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    surpresos diante da lucidez com a qual os personagens do

    desenvolvimento, sobretudo os comerciantes, descrevem os

    valores que fazem essa verdadeira revoluo, atravs da qual o

    "ato de comerciar" colocado no corao dinmico da sociedade.

    Em compensao, com que vigor expresso o tabu do

    "rebaixamento" que bloqueia, na Frana e em seus vizinhos

    meridionais, os enormes recursos da elite aristocrtica! Mas

    quer se trate de uma atitude favorvel ou desfavorvel,

    esprito humano que est em jogo, e no os mecanismos

    econmicos. Todos esses contemporneos tm uma viso

    humanista do tipo de sociedade que eles querem. Seus valores

    incarnam-se ou no comerciante, ou no nobre; no homem criador

    de atividades e riquezas, ou no homem livre de coaes e

    cultivando sua humanidade superior como um privilgio de

    casta.

    Do lado do desenvolvimento, o valor central a liberdade. Na

    prtica, ele se afirma primeiro no domnio religioso, aquele onde

    justamente a idia da Verdade poderia impor sua ditadura.

    extraordinrio que a Holanda, primeiro Estado nascido a partir

    de um fundamento religioso a revolta dos calvinistas dos

    Pases Baixos tenha quase concomitantemente inventado a

    tolerncia. Os textos mais interessantes para nossa para nossa

    explorao so os que ligam essa idia de tolerncia a um

    conjunto de valores polticos, sociais e econmicos, que so os de

    uma sociedade de desenvolvimento. Pois o desenvolvimento

    alrgico ao dogmatismo.

    Impasse das teorias do desenvolvimento

    Os personagens do desenvolvimento vivem da liberdade, sem

    procurar defini-la. Os filsofos, por seu lado, tm dificuldade

    para elaborar uma teoria a respeito. No surpreende no caso de

    Spinoza, seu esprito sendo to totalizante. Surpreende mais em

    Locke, que se considera um filsofo da liberdade, mas que

    constri logo um sistema, sem pesquisar as razes

    antropolgicas. Algumas pginas de Bacon sobre a inovao ou a

    usura Vo mais fundo, mas sem parecer tocar no ponto.

    Ora, essa dificuldade de teorizar aquilo que faz o

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    desenvolvimento persistir. At aqui, ficamos no quadro dos

    seus dois primeiros sculos aproximadamente de 1580 a

    1780 tal como foi vivido e tal como foi pensado. A Quinta

    Parte nos leva a abordar uma poca na qual o fenmeno

    adquiriu toda a sua amplitude, na qual a revoluo tcnico-

    industrial o impe a todos os olhares e a todas as reflexes.

    Deixando de lado a histria dos fatos econmicos e passando

    histria das idias, vamos nos aproximar de alguns daqueles

    que se consideram os tericos do desenvolvimento. Com eles,

    chegaremos a alguns impasses.

    O impasse de Adam Smith, to preocupado em recusar a

    clssica abordagem do bem comum, mas incapaz de dela

    desligar-se, que estabelece como um axioma que o livre jogo de

    todas as liberdades individuais a desemboca necessariamente.

    Esse postulado, porm, indemosntrvel. E no se obtm o

    esperado, ficando a impresso de um imenso maquinismo onde

    se perde o sentido real da liberdade.

    O impasse de Karl Marx, cuja fantstica coerncia rejeitando

    ao mesmo tempo a troca, o mercado, a liberdade, a

    sociabilidade, a confiana tem o mrito de sugerir a contrario

    a fora do elo que une esses valores.

    O impasse do prprio Max Weber: sua pesquisa pioneira sobre

    correlaes entre protestantismo e capitalismo deixou-se

    apanhar na armadilha de um sistema de causalidades unvocas,

    cujas dificuldades ele s percebeu para cair nos paradoxos que

    provocam incerteza, antes de cair num determinismo biolgico.

    O impasse de Fernand Braudel, brilhante e avisado pintor do

    desenvolvimento, mas que, sentindo os limites das suas

    ferramentas de leitura marxistas, ficou reduzido a demonstrar a

    divergncia, o "aqui e no em outro lugar", apenas atravs de

    uma histria de batalhas econmicas uma nova espcie de

    narrao histrica dos acontecimentos.

    Roma, da reao evoluo

    Um outro pensador se impe, o Papa pensador coletivo,

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    preocupado com sua prpria continuidade, que garante a

    credibilidade do Magistrio; mas tambm pensador evolutivo,

    marcado pela personalidade dos grandes pontfices.

    Consagramos a ele a Sexta Parte. Ningum nem sonha em

    enclausurar a Santa S num anti-economismo primrio; mas

    no haveria um certo conluio entre a ascendncia espiritual que

    ela exerceu e a manuteno de uma mentalidade autoritria,

    hierarquizante, anti-individualista e hostil inovao nas

    questes temporais? Pode-se considerar Roma culpada de

    resistncia ao desenvolvimento e da regresso das naes

    "latinas"? Resta o fato de que as afinidades comportamentais e

    institucionais entre catolicidade e atraso econmico so

    inegveis: dogmatismo, telecomando, resistncia inovao,

    desconfiana ante a difuso de uma cultura individual,

    obscurantismo, recusa da modernidade...

    A Igreja dos sculos XIX e XX confrontou-se com o dinamismo,

    e principalmente com a universalizao, fenmenos contra os

    quais preferira proteger-se no sculo XVI, e que acreditara

    poder acantonar nas sociedades reformadas. O perigo ainda se

    agravara devido ao fato de que as idias "perigosas" eram

    menos religiosas do que seculares. Os filsofos das "Luzes", o

    "josefismo" na ustria, Pombal em Portugal, o gro-duque da

    Toscana, os Constituintes franceses: era nos pases catlicos que

    o Estado se posicionava como adversrio da Igreja, arrancava-

    lhe a escola ou a caridade, fechava seus conventos, pretendia

    ditar-lhe sua organizao. Com a exceo dos direitos naturais,

    alis dissociados de qualquer referncia divina, o pensamento

    poltico a caminho da democracia colocava a "vontade geral"

    como sendo a origem absoluta de todo direito, ou at de toda

    moral. Em suma, a Igreja tinha algumas razes para desconfiar:

    o sculo XIX ser para ela um sculo de combate, cuja reduza

    est impressa nas encclicas de Pio IX sobre, ou melhor, contra

    a liberdade.

    No final do sculo XIX, porm, Roma, pela primeira vez, toma

    conhecimento de uma industrializao que, ao longo do tempo,

    chegou at a Itlia e a Espanha, e que j concerne milhes de

    catlicos. Em 1893, Leo XIII promulga Rerum Novarum, uma

    encclica que abre uma srie de notveis textos pontificais

    longa meditao a muitas vozes que aps mais um sculo

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    resultar, com Centesimus Annus de Joo Paulo II, na aceitao

    de uma economia fundada na liberdade dos princpios

    econmicos. Mas quanto tempo ter sido preciso, antes que a

    Igreja catlica abandonasse o modelo de uma sociedade

    fundamentalmente agrria e patriarcal, para finalmente colocar

    a liberdade no centro da sua antropologia... Por tempo demais o

    ensino da Igreja ignorou a economia moderna, e manteve com

    seus adversrios da laicidade militante um combate que desviou

    as sociedades catlicas dos verdadeiros desafios da liberdade

    aquela que suscita as riquezas.

    Representava tambm seu papel de instituio-testemunha de

    um reino "que no deste mundo", contra as pompas de Sat e

    a idolatria de Mammon. sua me inquieta, Jesus em meio aos

    doutores responde: "Devo ocupar-me dos assuntos do meu Pai".

    Milagres e santos, a Igreja sempre lenta para reconhec-los

    quando os reconhece. A fortiori, para ela que vive na escala dos

    milnios, uma adeso sem exame a um desenvolvimento

    anrquico, sem outra finalidade a no ser ele mesmo, no era

    concebvel. As ameaas que pesam sobre o mundo

    desenvolvido, depois de dois,, trs ou quatro sculos de

    progresso, so suficientes para nuanar a crtica de cegueira que

    espritos sistematicamente anti-clericais ficariam tentados a lhe

    fazer. Ela precisava de tempo para separar o bom gro da

    liberdade que cria, do joio da liberdade que corri.

    Para uma abordagem etolgica

    Aps esses numerosos impasses, hora de voltar atrs para

    procurar, com a ajuda de alguns espritos lcidos, uma pista que

    nos leve mais longe. o objeto da Stima ltima Parte.

    As primeiras referncias encontram-se em algumas

    observaes de Montesquieu ou, mesmo que isso possa

    surpreender, de Hegel, observador da distoro entre a

    Amrica do Norte e a do Sul. Mas o primeiro que realmente

    explorou os mecanismos mentais da mentalidade econmica

    moderna foi Bastiat. Ele merece ser lavado dos sarcasmos com

    que Marx o ataca, o que na verdade revela a pertinncia das

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    suas anlises. Depois dele, com Schumpeter e Hayek, a reflexo

    finalmente se interessa pelo indivduo. Por trs da abstrao

    "capitalismo", existem capitalistas. Por trs das empresas, ou

    melhor sua frente, h os empresrios. Por trs do mercado, h

    vendedores e compradores, negociantes e consumidores,

    divulgadores e transportadores.

    Nenhuma histria ocorre sem indivduos. A histria econmica

    menos do que qualquer outra, j que a caracterstica particular

    da economia mobilizar as energias atravs da competio e

    coloc-las em sinergia atravs do intercmbio. A histria imvel

    do Egito ou da China pode se desenrolar com homens moldados

    para serem intercambiveis. Os escribas, ou os mandarins, tm

    como misso conservar cuidadosamente a ordem estabelecida;

    como evitariam as sapatas do freio da novidade? A histria do

    desenvolvimento assenta-se numa infinidade de histrias

    individuais, feitas de iniciativas, de riscos assumidos, de

    mobilidade intelectual, geogrfica e social, dentro de um clima

    propcio mudana.

    Podemos dispensar uma demonstrao matemtica, um

    modelo, um sistema? Inmeros economistas tentaram reduzir o

    desenvolvimento a uma equao. Logo esbarraram numa

    incgnita radicalmente incognoscvel. A expanso no podia ser

    medida por uma simples combinao do Capital e do Trabalho.

    Foi preciso admitir a interveno de um fator residual, e

    resignar-se a nele englobar variveis complexas, que s podiam

    ser resumidas numa nica palavra: cultura.

    Confiante nessa cauo, pode-se definir aquilo que poderia ser

    uma antropologia do desenvolvimento. Dissemos acima que nas

    dcadas das origens, podia-se observar um combate entre

    atitudes, comportamentos, valores, uns estimulantes, outros

    paralisantes. Os trabalhos de um Lorenz e de um Ruffi

    propem uma abordagem fecunda: fornecem chaves de

    interpretao, capazes de nos dar acesso ao enigma do

    desenvolvimento.

    Se o desenvolvimento, no seu nascimento, em suas formas mais

    ativas, aciona todo o potencial humano, e se, por essa razo,

    procura-se dar-lhe uma explicao antropolgica, esta deve

    forosamente inscrever-se na coerncia de uma viso da

  • 13/07/2015 Alain Peyrefitte: Prlogo e Introduo de "A Sociedade de Confiana"

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    humanidade. No um novo que nasce na Holanda por volta de

    1580. No assistimos a nenhuma mutao gentica, ao

    aparecimento de um Homo Modernus. O homem de antes e o

    homem de depois do clique do desenvolvimento detm o

    mesmo potencial; diferem somente nas suas motivaes.

    Cada homem carrega consigo comportamentos inibidores e

    comportamentos liberadores. A maior parte das sociedades s

    utilizaram uma pequena parte destes ltimos. A segurana

    rotineira oferece o conforto dos caminhos conhecidos. A

    explorao de novas vias no apenas geogrficas sempre

    comporta um risco. Tem um custo psicolgico importante; at

    mesmo desencorajador para quem no tem confiana nos

    benefcios futuros, na sua prpria capacidade para suscit-los,

    na sociedade da qual um membro. O desencadeamento se

    produz onde so deliberadamente favorecidos os

    comportamentos emancipadores, onde so superados os

    comportamentos entorpecedores, onde equilbrio e estabilidade

    encontram-se revelam-se movimento.

    Remanescncias da divergncia

    Sem pretender tratar a fundo um assunto que poderia ocupar

    numerosos pesquisadores durante vrios anos, podemos

    inventariar em alguns pontos a situao estranha da Europa:

    nos sculos XIX e XX quando a presena social e mental das

    Igrejas, catlica ou protestantes sem distino, recua, os

    Estados secularizam-se, a "cincia" e o "progresso"

    conquistaram sua autonomia esbarra-se no paradoxo de uma

    repartio geogrfica do desenvolvimento que continua, de um

    modo geral, a reproduzir o mapa religioso do sculo XVI. A

    fratura que se produziu ento entre a Europa da Reforma e a da

    Contra-Reforma continua a dividir as sociedades do continente

    como tambm separa as sociedades de civilizao europia

    transplantadas para o Novo Mundo. Limitar-nos-emos da dar,

    nos Anexos, alguns exemplos dessa surpreendente

    reminiscncia, que atrapalha tanto nosso modernidade que

    geralmente preferimos ocult-la. Alis, so esses contrastes que

    me levaram, h quase cinqenta anos, a me envolver com esta

    pesquisa sobre o desenvolvimento, sua matriz mental, sobre a

  • 13/07/2015 Alain Peyrefitte: Prlogo e Introduo de "A Sociedade de Confiana"

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    confiana na liberdade.

    Leia tambm:

    Alain Peyrefitte e a sociedade de confiana

    por J. O. de Meira Penna

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