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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS- ABRI 3º Seminário Nacional de Relações Internacionais Graduação e Pós-Graduação Florianópolis - Santa Catarina UFSC de 29 a 30 de setembro de 2016 Área temática: Economia Política Internacional A soberania alimentar como fator de integração regional: a luta contra o agronegócio na América do Sul e um outro modelo de desenvolvimento para o campo latino americano Autora: Nicolle BertiInstituto de Estudos Políticos e Sociais IESP/UERJ Rio de Janeiro 2016.2

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ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS- ABRI

3º Seminário Nacional de Relações Internacionais Graduação e Pós-Graduação Florianópolis - Santa Catarina

UFSC de 29 a 30 de setembro de 2016

Área temática: Economia Política Internacional

A soberania alimentar como fator de integração regional: a luta contra o agronegócio na América do Sul e um outro modelo de desenvolvimento para o campo latino

americano

Autora: Nicolle Berti– Instituto de Estudos Políticos e Sociais IESP/UERJ

Rio de Janeiro

2016.2

Resumo: Este trabalho busca compreender como a soberania alimentar tem conseguido

tornar-se um fator da integração regional a partir da atuação da sociedade civil organizada na

América do Sul. O presente artigo objetiva demonstrar a relevância da incorporação de novos

atores e dinâmicas internacionais para a compreensão do agrário, bem como evidenciar que

a questão agrária latino-americana é elemento relevante para o entendimento do atual cenário

regional. O foco do nosso trabalho será analisar por um lado a atuação da Via Campesina na

construção da noção da soberania alimentar, e por outro a participação dos movimentos

sociais rurais na REAF, buscando compreender qual o seu potencial de incidir na construção

de uma agenda regional que verse sobre a agricultura familiar e camponesa como projeto de

desenvolvimento alternativo para o campo, que contesta o modelo agrário atual, baseado na

reprimarização econômica das exportações dos países do sul global, com a expansão do

modelo de produção do agronegócio, orientado pelas políticas de corporações multinacionais.

Nesse sentido, adotaremos uma perspectiva teórica gramsciana/coxiana, que opta pela

compreensão da realidade internacional não somente em termos de poder, mas,

principalmente, pela apropriação e instrumentalização dos mecanismos que garantem a

reprodução de uma hegemonia por parte dos grupos sociais marginalizados ou excluídos da

ordem mundial. Assim, ao partirmos da perspectiva gramsciana, consideramos o potencial

que a sociedade civil possui de transformação da realidade.

Palavras Chave: Soberania Alimentar, Integração Regional, Contra Hegemonia

Introdução

Desde a década de 1990, ocorreram transformações importantes na agricultura

mundial, mediante novos padrões de acumulação e exploração sob a égide do capitalismo

monopolista mundializado (OLIVEIRA, 2004b). Nesse período, a atuação de corporações

transnacionais ligadas aos negócios agrícolas nas etapas de produção, processamento,

pesquisas e difusão de biotecnologia e no setor alimentício ganhou relevo, num movimento

de expansão da agricultura capitalista que delineou, desde então, uma nova etapa de

modernização técnica da agricultura nos países, designada como agronegócio. Tal processo

compreende ainda subordinações, resistências e respostas dos trabalhadores rurais,

camponeses e suas organizações políticas, frente a esse novo cenário desenhado para a

agricultura.

Nessa etapa de internacionalização do capital, ajustes estruturais do Estado, novos

patamares de exclusão social no campo e na cidade, mudanças nos padrões de

desenvolvimento da agricultura em nível mundial e outros fatores que cada vez mais recebem

atenção da sociedade em geral, a exemplo de problemas ambientais, os movimentos sociais

rurais passaram a reelaborar seu projeto, atualizar sua agenda política e reorientar seu campo

de conflitos. As novas configurações de processos sociais, econômicos e políticos

orquestrados em escala nacional e internacional têm acenado a novos caminhos no que se

refere a projetos e ações políticas de organizações, movimentos sociais e demais segmentos

que representam ou se aliam aos agricultores familiares, camponeses, assalariados rurais e

outros povos do campo. Os movimentos sociais e as entidades se deparam com desafios

quanto ao enfrentamento da problemática agrária nas diversas escalas de atuação (do local

ao global), ao passo que tal cenário motiva mudanças e novas estratégias de organização

política por esses atores

Entendemos que tais processos de luta social e política protagonizada por

organizações representativas de agricultores familiares, camponeses e trabalhadores rurais

sinalizam uma problemática que ganha espaço no debate de atualização da questão agrária:

as disputas territoriais e conflitualidades entre os modelos de desenvolvimento do

agronegócio e da agricultura camponesa/familiar. Este artigo busca contextualizar e discutir a

luta política que envolve os movimentos sociais rurais do cone sul, à luz de um elemento

relevante no foco de suas mobilizações na esfera pública a partir de meados da década de

1990: os embates, os enfrentamentos e as resistências frente ao modelo do agronegócio, a

partir a atuação da Via Campesina na construção da noção da soberania alimentar, e da

participação dos movimentos sociais rurais na REAF, buscando compreender qual o seu

potencial de incidir na construção de uma agenda regional que verse sobre a agricultura

familiar e camponesa como projeto de desenvolvimento alternativo para o campo.

Neoliberalismo, agronegócio na América do Sul

Na América Latina, o ideário Neoliberal encontrou sua mais acabada expressão e

sistematização em um encontro realizado em 1989 na capital dos Estados Unidos, que ficou

conhecido como Consenso de Washington. A política econômica neoliberal implantada pelos

governos após esse encontro, reestruturaram o processo de acumulação de capital na

América Latina, criando um novo padrão de acumulação fundamentado num novo e mais

profundo estado de subordinação ao capital financeiro internacional. Assim, a perda de

autonomia e do poder decisório por parte dos Estados Nacionais passa a ser uma opção

política e não uma derivação irredutível das mudanças ocorridas no modo de produção

capitalista em seu processo de globalização (GENNARI, 2001).

Apesar dos sinais anteriores de descontentamento popular com os resultados

socialmente regressivos das políticas neoliberais, que ocasionaram um acirramento da tensão

social e da intensificação da oposição ao modelo neoliberal nos países que implementaram

os ajustes estruturais, o Banco Mundial (BM), a fim de ter condições plenas de seguir

aprofundando a implementação do modelo, implementa uma segunda fase de ajustes, e

passa a prescrever medidas, cujos fundamentos residem no aprofundamento da redução do

papel do Estado com vistas à promoção do crescimento econômico e a liberalização do

mercado de terras (RAMOS FILHO, 2013). Essas políticas transformaram-se num conjunto

de diretrizes e princípios norteadores das propostas do BM para a área do desenvolvimento

rural e do alívio da pobreza, tal enfoque se fortaleceu durante a década de 1990, em razão de

sua vinculação com a ideologia neoliberal.

“Não haveria condições para a sua difusão em larga escala se as políticas liberais de desregulamentação dos mercados, abertura comercial, eliminação de políticas protecionistas, privatização etc. não tivessem sido adotadas em inúmeros países e não influenciassem sobremaneira a formulação de políticas para o setor rural. E essa plataforma se articulou ao debate sobre o crescimento econômico e a redução da pobreza, na medida em que os altos mandos do BM avaliaram que os processos de ajuste estrutural avançaram mais sobre os mercados de produtos e serviços (liberalização comercial) do que os mercados de trabalho, crédito e terra.” (PEREIRA, 2006, p 359).

Em diferentes países credores, na América do Sul o BM difundiu um pacote de cinco

conjuntos de políticas agrárias: administração da terra; privatização das terras públicas ou

comunais; formação dos mercados de terra; criação dos fundos de terra; e reforma agrária de

mercado (ROSSET, 2004).

“Seria fundamental que a totalidade dos mercados – incluindo o de terras – funcionasse competitivamente. Somente assim a agricultura de subsistência se converteria em agricultura comercial. A dinamização dos mercados de terra – leia-se, mercados de compra e venda e de arrendamento – é vista como um meio para melhorar a eficiência global da economia, maximizar a transferibilidade e o uso da terra rural, prover a base para mercados financeiros rurais e aliviar a pobreza no campo. ” (Ibidem, 2006, p.358)

Nesse limiar, ocorrem nos países da América Latina, no final dos anos 1970, os chamados

“Programas de Desenvolvimento” em áreas rurais, promovidos pelo Banco Mundial,

caracterizados como um processo de modernização da agricultura que se denominou

internacionalmente de "Revolução Verde". A adesão dos governos e adoção de medidas

econômicas como o crédito rural farto e subsidiado; incentivos econômicos a instalação de

indústria, viabilizou a modernização do setor exportador num curto espaço de tempo e

ocasionou mudanças importantes no perfil produtivo da atividade agrícola. Permitiu também

a formação e consolidação de importantes grupos oligopólios, complexificando e

modernizando a atividade agrícola, mas privilegiando novamente segmentos muito

específicos - a grande propriedade e produtos de exportação e ou energéticos, (MESQUITA,

2011).

Neste contexto, o Banco Mundial a partir de sua autoridade, promoveu as medidas

necessárias para a implementação do projeto hegemônico, como as mudanças das

legislações agrárias, aumentando a liberação de empréstimos para os governos nacionais

latino americanos nos anos 1970, produzindo um novo aparato gerencial, de modo a criar as

condições legais e administrativas para a livre transação mercantil da terra e a atração de

capital privado para o campo (PEREIRA, 2004). Esse legado da modernização técnica, se

consolidou e repercutiu na transnacionalização da agricultura e em sua inserção definitiva na

divisão internacional do trabalho. Com esse processo se constituíram os complexos

agroindustriais, que conformou uma padronização dos sistemas produtivos, voltados para a

formação desses complexos e para a modernização dos latifúndios.

Esse projeto de modernização do campo ganhou maior legitimidade com a proposta

de segurança alimentar lançada pela FAO na Cúpula Mundial de Alimentação de Roma em

1974, que veio a possibilitar a organização dos mercados agrícolas posta em marcha pela

OMC. No contexto de implantação dessas políticas neoliberais, a expansão do capital no

campo latino-americano adquiriu uma nova forma, um novo conteúdo e um novo nome:

agronegócio, em que a agricultura é regida pela lógica desigual, contraditória e combinada

das relações capitalistas de produção:

“[...] quanto mais se produz, mais gera exploração do homem e da natureza, mais se produz mais-valia, mais concentra/acumula/amplia o capital, e a consequência desse processo é a ampliação das desigualdades sociais.” (FERNANDES, 2009, p.56)

São características marcantes desse modelo de produção denominado de agronegócio, o

latifúndio mecanizado e o uso de agrotóxicos que movimentam o mercado das transnacionais

produtoras desses insumos agrícolas. Como nas tradicionais “plantations” coloniais, o

agronegócio baseia-se na tríade: latifúndio, monocultura e exportação. Mostrando-se, por

isso, ser um modelo sócio-ambientalmente degradante:

“Esse modelo propaganda e implementa diversas características, como: estimulo às grandes fazendas modernizadas, com grandes extensões de terra, que usam intensivamente os agroquímicos e os agrotóxicos. Se dedicam à monocultura e produzem prioritariamente para exportação.” (STEDILE, 2006a, p. 17).

Inserida nesse contexto, a produção agrícola se modifica e passa a desempenhar

diferentes funções, passando de um modelo de substituição de importações para um modelo

orientado ao comércio internacional. Sob a forma de agronegócio as atividades agropecuárias

vêm sendo cada vez mais controladas por conglomerados econômicos que atuam em escala

mundial determinando o que, quanto, como e onde devem ser produzidos e comercializados

produtos agropecuários. Um conjunto de pouco mais de uma dezena de complexos

agroindustriais liderado por grandes conglomerados financeiros nacionais e internacionais

controlam a produção, parte do financiamento, a comercialização e a fatias do processamento

e da industrialização destas matérias-primas em escala global. São eles os responsáveis pelo

crescimento significativo da produção e exportação que se constatou nas últimas décadas

nos países da América do Sul. (MESQUITA, 2013)

Com uma concepção de que a terra e demais riquezas naturais e bens coletivos eram

um nicho pouco explorado de acumulação de capital, essa nova forma de territorialização do

capital no campo se materializa a partir de uma integração de capitais que vai construindo

cadeias produtivas que abrangem as esferas da produção e circulação dos produtos. Isso

significa o domínio de mercado de insumos, das técnicas e tecnologias de produção; dos

sistemas de financiamento; das indústrias de beneficiamento; dos sistemas de transporte; das

redes de comercialização, e etc. (FERNANDES, 2004). O problema é o formato que esta

expansão assume nas fronteiras agrícolas e as consequências que decorrem da

concentração e a centralização de capital que acompanham o seu avanço já que traz

embutido novas e velhas questões como o acesso, uso e controle da terra, o acesso à

tecnologia, o descarte e a qualificação da força de trabalho e a presença dos atores que

lideram esse processo, as empresas transnacionais. O resultado é a amplificação de

problemas agrários já existentes, mas também a introdução de outros anteriormente invisíveis

como o passivo ambiental e a segregação socioeconômica das populações impactadas pelas

commodities:

“Se de um lado, esse crescimento do agronegócio põe o país como um grande produtor e exportador de commodities, com super safras crescentes de grãos, aumento da produtividade, responsável por superávit crescente e permanentes da balança comercial e portador de uma suposta competividade internacional conforme o discurso da elite beneficiaria deste processo. Os outros segmentos não articulados ao agronegócio, como os agricultores familiares, os povos e comunidades tradicionais tem sido cada vez mais impactados, acarretando inúmeros problemas, de ordem econômica, social e ambiental. “ (MESQUITA, 2011, p.9)

O efeito desta nova divisão do trabalho para os países fornecedores de matéria-prima

para os países centrais, é o estabelecimento de empresas transnacionais, que anteriormente

só atuavam no segmento da circulação, financiamento e industrialização dos produtos

agrários. A mudança ocorre em razão do apoio de políticas governamentais direcionada a

esse segmento com objetivo de atender a demanda externa e incorporar novas áreas ao

processo produtivo. Como a competição por mercados globais e por novas áreas de plantio,

fazem parte da estratégia permanente destas empresas globais, a tendência têm sido o

aumento da concentração da produção e do avanço da centralização de capitais nas áreas

estratégicas como do biocombustíveis, compra e arrendamento de terra por esse segmento

do capital. A expansão da soja nos países da América Latina é um exemplo disso, nos dois

países essa dinâmica se generalizou de tal forma, que concentrou e especializou regiões

inteiras (MESQUITA, 2011).

A alta rentabilidade do agronegócio frente as demais atividades agrícolas não inseridas

no comercio internacional tem ocasionado transformações não só no uso e controle da terra,

mas também na ocupação da força de trabalho e no próprio perfil produtivo destas economias

onde o agronegócio assume papel cada dia mais importante como a Argentina, Uruguai,

Paraguai e Brasil. O conceito-chave por trás desse padrão mais recente de desenvolvimento

da agricultura é o de integração de capitais, isto é, o processo de “centralização de capitais

industriais, bancários, agrários, que por sua vez se fundem em sociedades anônimas,

cooperativas rurais e, ainda, empresas de responsabilidade limitada, integradas

verticalmente” (DELGADO, 1985, p.134).

Deste modo, o modelo de produção praticado pelo agronegócio nos países do cone

sul, vem buscando o controle da oferta dos produtos alimentares e dos sistemas agrícolas,

com elevada predisposição para a permissividade da presença do capital estrangeiro através

de acordos e fusões agroindustriais entre empresas nacionais e estrangeiras, inclusive para

a apropriação de terras, prejudicando as iniciativas favoráveis à segurança alimentar nacional,

impondo que o abastecimento alimentar fique subordinado ao mercado internacional sob o

controle desses grandes conglomerados. Assim, observamos a expansão do modelo do

agronegócio na região e a tendência de especialização desses países no fornecimento de

matérias-primas agrícolas para a agroindústria global, havendo um maior envolvimento de

capitais e agentes estrangeiros nas dinâmicas locais. (FAO, 2012; BORRAS et.al., 2012).

Via Campesina e o projeto contra hegemônico da soberania alimentar

Nesse contexto, surgiram diversas organizações sociais que contestavam os

termos da modernização no campo, gerando novas formas de organização social e a

construção de um projeto contra hegemônico, sob a insígnia de um novo conceito de

segurança alimentar, pautado pela sociedade civil organizada. A Via Campesina surge e

se desenvolve em contraponto ao avanço das formas de produção capitalista para a

agricultura em nível mundial, nas últimas décadas. Através da reformulação do conceito

de campesinato, da elaboração de pautas que unem trabalhadores rurais dos mais

diferentes tipos, da constituição de uma cultura política e uma identidade própria, esta

articulação ganhou centralidade nas lutas antiglobalização. Esta centralidade foi

alcançada, pois, para além das questões específicas da agricultura, as organizações

membros da Via Campesina enfrentam os organismos internacionais capitalistas e

defendem um projeto alternativo que se materializa na proposta da soberania alimentar.

“(...) Via Campesina se revelou como um ator principal nas lutas populares internacionais contra o neoliberalismo que, entre outras coisas, exigem responsabilidades das agências inter-governamentais, enfrentam e se opõem ao controle corporativo sobre os recursos naturais e a tecnologia, e defendem a soberania alimentar. Além disso, desempenhou um papel destacado em campanhas de grande polêmica política como, por exemplo, as dirigidas contra a OMC, contra os gigantes corporativos mundiais, e contra os organismos geneticamente modificados (OGM) e as multinacionais que os fomentam, como a Monsanto.” (BORRAS, 2004, p.3)

A Via Campesina, é, portanto, um movimento internacional que articula 150

organizações em 70 países diferentes, e que se considera um “movimento autônomo,

pluralista, multicultural, sem nenhuma filiação política, econômica ou de qualquer tipo”

(VÍA CAMPESINA, 2011, p.12). As organizações da Via, assim partilham de alguns

objetivos, como articular solidariedades regionais:

O principal objetivo da Via Campesina é desenvolver a solidariedade e a unidade na diversidade entre as organizações do campo, para promover relações econômicas de igualdade e justiça social, a defesa da terra, a soberania alimentar, uma produção agrícola sustentável e equitativa, baseada nos pequenos e médios produtores (VIA CAMPESINA DO BRASIL, 2002, p. 5).

.

O conceito de soberania alimentar idealizado em 1996 pela organização, no

contexto da Cúpula Mundial sobre a Alimentação (CMA) realizada em Roma pela FAO, é

exemplo desse esforço e veio a arregimentar um marco distintivo comum, amplo e

complexo que pudesse contemplar uma ampla variedade de movimentos e organizações

sociais, congregando-as sob esse conceito de conteúdo eminentemente político voltado

para a ação coletiva orientada para a transformação social. Cabe ressaltar que esse

conceito já vinha sendo discutido desde vários anos em distintas instâncias internacionais

(OCARIZ, 2014). Assim, a noção de soberania alimentar é um guarda-chuva que inclui

a ideia de segurança alimentar, uma vez que discute também quantidades básicas de

alimentos per capita, mas a transcende, pois debate as condições de produção, e as

escolhas coletivas com relação à alimentação dos povos. Para a Via Campesina,

soberania alimentar significa:

“O direito dos povos, comunidades, e países de definir suas próprias políticas sobre a agricultura, o trabalho, a pesca, a alimentação e a terra que sejam ecologicamente, socialmente, economicamente e culturalmente adequados às

suas circunstâncias específicas. Isto inclui o direito a se alimentar e produzir seu alimento, o que significa que todas as pessoas têm o direito a uma alimentação saudável, rica e culturalmente apropriada, assim como, aos recursos de produção alimentar e à habilidade de sustentar a si mesmos e as suas sociedades”. (VIA CAMPESINA, 2002, p.5)

O debate oficial fomentado pela FAO, girava em torno da noção de segurança

alimentar, reafirmando-a como “o direito de toda pessoa a ter acesso a alimentos sadios

e nutritivos, em consonância com o direito a uma alimentação apropriada e com o direito

fundamental de não passar fome” (FAO, 2012 p.1). Contudo, as organizações

camponesas, presentes no Fórum paralelo à Cúpula, foram críticas em relação aos

termos utilizados na discussão dos governos, que em consonância com a hegemonia do

neoliberalismo e o surgimento da OMC na década de 1990, ajustaram a definição de

segurança alimentar tentando assegurar esse direito à alimentação através da

liberalização do comércio de alimentos, abrindo caminho para fazer da alimentação um

grande e lucrativo negócio. As organizações camponesas propuseram, portanto, a

“Soberania Alimentar”, afirmando que “a produção e distribuição de alimentos fazem parte

da soberania de um povo, ela é inegociável e não pode ficar dependente de vontades

políticas ou práticas de governos de outros países” (CLOC, 2013, p.12).

Assim, o princípio da Soberania Alimentar vem sendo muito discutido em eventos

internacionais como o Fórum de Resistência ao Agronegócio que, em junho de 2006,

reuniu em Buenos Aires, dezenas de organizações de países latino-americanos. Com a

incorporação da luta pela soberania alimentar na agenda política dos movimentos sociais

camponeses, diversas organizações rurais, articuladamente têm se mobilizado em

campanhas permanentes contra as empresas transnacionais, como foi a “Campanha

Combate Monsanto” em 2009, têm levado a cabo intensos protestos contra a cultura dos

transgênicos nos territórios, e tem construído as experiências dos fóruns regionais contra

o agronegócio na região. Esse repertório de ações, vem contribuindo para criar uma

profunda unidade continental desde “baixo”, construindo a luta por soberania alimentar

como uma ressignificação da própria ideia de soberania, a qual passa a ser baseada nos

povos e não nos Estados nacionais, colocando em cheque o modelo de agricultura

hegemônico na contemporaneidade.:

[…]”la lucha por la soberanía alimentaria se manifiesta en las luchas glocales diarias y en la convergencia de la diversidad – de actores, demandas, repertorios de acción colectiva y particularidades geográficas e históricas – en la unidad contra el neoliberalismo (algo que, de forma paradójica, no siempre es asumido por algunas organizaciones insertas en el “circuito” de la lucha por la “soberanía alimentaria”) y la agricultura industrial. Así es como la soberanía alimentaria se perfila como alternativa real, pero compleja, como un horizonte común a construir hacia un nuevo paradigma de producción y de vida”. (BRINGEL, 2014, p.7)

Este novo conceito representa, portanto, uma ruptura com relação ao projeto

hegemônico para o campo, regido pela organização dos mercados agrícolas. Lógica esta,

que foi imposta pelas empresas transnacionais com o consentimento dos governos

neoliberais no seio das negociações da OMC e da FAO, cujas orientações políticas já

tinham violado as normas protecionistas para a agricultura familiar e foram

implementadas por alguns governos nacionalistas e populares, mediante impostos sobre

as importações baratas de alimentos, desfavorecendo o preço de alimentos nacionais.

Sendo a soberania alimentar uma concepção que se constrói a partir da soberania

popular, é incompatível qualquer estratégia que ensaie tornar os interesses privados de

lucro sobrepostos aos interesses da população (NYÉLÉNI, 2007).

Nesse sentido, se por um lado, a geografia comercial global conferiu peso a partir

desse processo, aos organismos internacionais como o Banco Mundial, OMC e FMI na

implementação e regulação do complexo sistema agroalimentar atual e na definição das

agendas do campo, por outro provocou o surgimento de redes de resistência de

movimentos sociais críticos à esse projeto, e que reivindicam uma ação transnacional, a

fim de conseguir fazer valer a voz e os projetos dos trabalhadores do campo, dos

agricultores familiares de toda a região, pautando a soberania popular, baseada na

autodeterminação dos povos, sobretudo no tocante a produção de seus alimentos, como

caminho para assegurar um futuro sustentável para o continente, com justiça social no

mundo rural (BRINGEL, 2011).

Mais do que um conceito, a soberania alimentar se transformou em uma bandeira

política dos movimentos camponeses, que a partir do debate conceitual evidenciam a

distinção entre os dois projetos de agricultura: o do agronegócio (agricultura comercial) e

o do campesinato (agricultura familiar), que possuem lógicas produtivas e objetivos

antagônicos, como descreve Vieira (2008):

“A ênfase na alimentação dos povos, o que inclui a prioridade de alimentação da população dentro de cada país, entra em contradição com o mercado internacional de produtos agrícolas. Desta forma, mesmo que a noção de soberania advogada não seja restrita à ideia de soberania ligada ao Estado nação, ela coloca em cheque o modelo de agricultura hegemônico na contemporaneidade. A Via Campesina defende que a agricultura seja descentralizada através da produção, por cada população, de seus próprios alimentos, e diversificada, uma vez que os agricultores de cada país vão produzir a totalidade de seus produtos agrícolas. Há, assim, uma ênfase no combate ao comércio internacional de produtos agrícolas. ” (VIEIRA, 2008, p. 8)

Desta forma, a Via Campesina tem se apresentado internacionalmente como

movimento de luta contra o neoliberalismo, compondo uma frente com os demais

movimentos e para levar a pauta agrícola ao movimento antiglobalização e enfrentar seus

adversários a Via Campesina criou e tem insistido na noção de “soberania alimentar”.

Assim a luta constante por autonomia e sobrevivência se dá em diferentes espaços, frente

as inúmeras pressões que hoje se impõem sobre os sistemas locais e regionais de

produção de alimentos. De igual maneira, as disputas entre a hegemonia e a contra-

hegemonia, transcendem as fronteiras nacionais e também se fazem presentes nos

processos de integração regional na América Latina.

A REAF e a agricultura familiar como caminho para soberania alimentar

A Reunião Especializada da Agricultura Familiar (REAF), da qual participam

governos e representantes das organizações da sociedade civil, vem cumprindo um

importante papel, se mantendo ativa em seu objetivo de fortalecer as políticas públicas

para a agricultura familiar, promovendo e facilitando o comércio de produtos oriundos

desse segmento da agricultura regional, com base em princípios de solidariedade e

complementaridade. A Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar do Mercosul

(REAF), foi criada pela resolução 11/2004 do Grupo Mercado Comum (GMC), a partir de

uma proposta do governo brasileiro, e tem por objetivo inserir a agricultura familiar no

processo de integração regional por meio do fortalecimento das políticas públicas e da

geração de renda pela facilitação do comércio dos produtos da agricultura familiar (REAF,

2011). O órgão conta, ainda com cinco unidades temáticas, que são responsáveis por

tratar de assuntos mais específicos, como acesso à terra e reforma agrária, facilitação de

comércio, gênero, seguro agrícola e gestão de risco e juventude rural.

As atividades da REAF, segundo Costa e Pires (2008), podem ser divididas em

dois ciclos. O primeiro ciclo, que compreende da I à V REAF, teve como traço marcante

de atuação a realização de estudos e diagnósticos. Nesse ciclo foram criadas as Seções

Nacionais, que são comissões que avaliam políticas públicas internas aos países do bloco

e levam à REAF experiências e modelos que tem potencial de se tornarem comuns,

através do processo de transferência internacional de políticas públicas1.

A partir de 2006 tem início o segundo ciclo da REAF e nesse novo momento fica

clara a mudança na atuação do órgão, que passa a agir de modo mais organizado e com

maior participação da sociedade civil. A consolidação da ideia de agricultura familiar e o

apoio crítico de algumas organizações do campo ao Mercosul, foram antecedentes

importantes para a criação do órgão (CARVALHO, 2011). Destacamos que este também

contém um uso político, como destaca Wanderley (2000), a consolidação do termo está

1 Entendida aqui como um processo político que conduz à adoção de políticas públicas semelhantes por diferentes países, a partir de trocas de experiências e compartilhamento de Know How. Para um estudo mais aprofundado consultar: MARIN, Pedro de Lima. Mercosul e a disseminação internacional de políticas públicas. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cgpc/article/view/3567/2252

inserida em um processo de construção da imagem de produtores familiares como

“propagandistas de outra concepção de agricultura, diferente e alternativa á agricultura

latifundiária, dominante na região” (Ibidem, p. 36), como descreve Neves:

“(...) os termos agricultura famliar e agricultor familiar apresentam-se então como categoria de mobilização política, fundamental na construção de identidade de atores aglutinados em torno da luta pelo reconhecimento da cidadania economica e politica. (NEVES, 2007, p. 19)”

Medeiros (2001) situa o crecimento do conceito de agricultura familiar dentro do discurso

sindical, pelas relações com organizações de outros países e à demanda de políticas

públicas especificas:

A afirmação de categoria “agricultura familiar’, a partir de meados dos anos 90, deveu-se a uma ordem de fatores: o aumento da importancia dos pequenos agricultores, no interior do sindicalismo e a reinvindicação destes por um novo modelo de desenvolvimento; as organizações sindicais realizaram algumas atividades de formação e intercâmbio com outras organizações de países latino americanos visando conhecer suas experiêcias. (MEDEIROS, 2001 apud PICOLOTTO, 2009, p.18)

Se inicialmente a REAF suscitava desconfiança pelo foco na agricultura familiar,

e não na agricultura camponesa e indígena, por exemplo, atualmente diferentes

movimentos sociais e organizações voltadas à pequena produção latino-americana estão

se somando à demanda por políticas públicas para a agricultura familiar, popularizando-

-a e definindo coletivamente critérios para compor uma identidade comum da agricultura

familiar nos países membros do Mercosul (ZIMMERMANN, 2014). Essa preocupação

vem desde a institucionalização da Confederação das Organizações de Produtores

familiares do Mercosul (Coprofam) em 1994, que surgiu a partir da demanda das

organizações rurais2 que dos países que compõem o Mercosul, de conhecer o referido

processo de integração regional, analisar suas consequências para os produtores

familiares e estar preparados para os riscos e oportunidades que o Mercosul traria para

a sua atividade. Em 1991, os membros do Coprofam, afirmaram na Declaração de

Rosário, que as organizações sociais rurais dos países discordavam de seus governos

no tocante a condução de acordos firmados no âmbito do Mercosul nos marcos do

neoliberalismo:

“Desde a sua criação a Coprofam, tem tomado clara posição política sobre o processo de integração regional e tem uma proposta de ação conjunta para

2 Fazem parte da Coprofam organizações camponesas, indígenas e de produtores familiares dos quatro países do bloco: além das do Chile e da Bolívia. Argentina: Federación Agraria Argentina (FAA), Bolívia: Coordinadora de Integración de Organizaciones Económicas Campesinas (Cioec), Brasil: Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Chile:Movimiento Unitário de Campesinos y Etinias de Chile (Muchech) e voz del Campo – Confederación Nacional de la agricultura Familiar Campesina, Paraguay: Unión Agrícola Nacional (UAN) y Organización Nacional Campesina (Omac), Peru: Confederación Campesina de Peru (CCP), Uruguai: Asociación de Colonos de Uruguay (ACU) y Asociación de Mujeres Rurales de Uruguay (AMRU), Comisión Nacional de Fomento Rural (CNFR).

enfrentar o crescente processo de marginalização e expulsão dos agricultores familiares ocasionados pela política de abertura e pela modalidade de integração levada a adiante pelos governos. ” (COPROFAM, 1996, p.1)

E em 1999, a Declaração da reunião da Coprofam em Florianópolis reafirma as

políticas para agricultura familiar e demanda que as políticas de integração regional não

se reduzam a interesses comerciais e financeiros como as propostas no âmbito dos

Órgãos multilaterais (OMC, FMI, Banco Mundial, ONU e etc.), mas estejam subordinadas

a um projeto de desenvolvimento sustentável e mais amplo, socialmente justo e inclusivo

(COPROFAM, 1999).

O ano de 2003 também estabeleceu outro marco na articulação dos sindicatos e

organizações rurais no contexto do intenso processo de negociação comercial que estava

em curso: a ALCA, acordo que foi questionado em todo o continente. Foram realizados

muitos seminários, dois promovidos pela Coprofam, um terceiro organizado pela Contag

e um quarto promovido pela Rede Brasileira pela Integração dos povos (Reabrip)3 com

apoio do MRE e do MDA. Tais eventos foram fundamentais para aproximação de atores,

fortalecendo canais de interlocução, facilitando a identificação de pautas comuns e a

construção de ideia convergentes sobre agricultura familiar e camponesa. Os dois

primeiros encontros versaram sobre as articulações políticas de resistência a criação da

ALCA, das negociações que envolviam agricultura na OMC e os acordos do Mercosul

com a União Europeia (CARVALHO, 2011). Os seminários pretendiam fortalecer a

articulação das organizações dos agricultores familiares e camponeses da América Latina

na perspectiva de estabelecer uma estratégia regional comum e coordenar ações para

uma harmonização de políticas públicas de fomento ao desenvolvimento rural, nos países

do Mercosul (CONTAG, 2003)

Segundo Carvalho (2011), as visões de integração como algo positivo e motivador

para a entrada das organizações na Reaf já se faziam presentes desde o princípio, mas

as possibilidades de integração regional com ênfase na solidariedade entre organizações

da sociedade civil e as populações dos países, seguem sendo o motivo de seguirem

participando da instância:

“A Reaf é percebida como um instrumento que permite aproximar pessoas, tornando a integração uma vivencia concreta: ao mesmo tempo, ela consegue aproximar o Mercosul da realidade da agricultura familiar e aumentar o contato entre as organizações dos países vizinhos.” (DELGADO, 2011, p.128)

3 A Reabrip é uma articulação criada em 1998 e formalizada em 2001, que reúne movimentos sociais e sindicatos do campo, que em conjunto buscam alternativas de integração hemisférica oposta a lógica de liberalização comercial e financeira predominante nos acordos econômicos atualmente em curso. Ver (www.rebrip.;org.br)

A construção de uma definição comum de agricultura familiar tem sido um dos

focos mais efetivos de atuação da REAF, com repercussões que já se fazem sentir no

plano regional4. Para tanto, as políticas para a agricultura familiar devem deixar de ser

vistas como uma estratégia compensatória aos efeitos negativos do livre comércio para

serem concebidas como instrumentos de um outro padrão de desenvolvimento agrário.

No cenário político-institucional é possível verificar o impacto das discussões

realizadas na REAF para a Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai, que já instituíram leis

e/ou órgãos nacionais dedicados à agricultura familiar, bem como criaram políticas

públicas voltadas ao tema. Na Argentina houve a criação da Subsecretaria de Agricultura

Familiar vinculada ao Ministério de Agricultura Ganadería y Pesca; no Brasil, além da

criação da Lei da Agricultura Familiar (Lei nº 11.326/2006), houve o fortalecimento (e

criação) de programas e ações federais para a agricultura familiar (Pronaf, PAA, PNAE

etc.); no Uruguai está em tramitação um Projeto de Lei para aquisição de 30% de compras

institucionais da agricultura familiar; e no Paraguai houve a criação do Instituto Nacional

de Desarrollo Rural y de la Tierra (INDERT), que conceitua a agricultura familiar

campesina (ZIMMERMANN, 2014).

Ademais, as organizações percebem a Reaf como espaço onde é possível realizar

exercício conjunto para ir além de acordo comercial e buscar políticas semelhantes,

visando soberania e segurança alimentar. O enquadramento das questões da agricultura

a partir dessa perspectiva aproxima o discurso dessas organizações daquele construído

pela Via Campesina, que cunhou a expressão (DESMARAIS, 2008, p. 140). A partir

dessas configurações, resta-nos aguardar que a agricultura familiar, que vem sendo

fortalecida no bojo da REAF, consiga promover os diferentes modos de vida no espaço

rural latino-americano, consolidando um novo modelo de desenvolvimento rural para a

região.

4 Em sua interface com as políticas voltadas à promoção da segurança alimentar e nutricional destacam-se,

no Brasil, como instrumentos de promoção da agricultura familiar: (i) o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que viabiliza a aquisição, através do mercado institucional, de produtos da agricultura familiar para atendimento a pessoas em situação de insegurança alimentar; (ii) a recente aprovação da Lei da Alimentação Escolar, que estabelece que pelo menos 30% dos produtos destinados ao atendimento às escolas vinculadas ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) - responsável pelo fornecimento, em 2009, de 47 milhões de refeições diárias ser oriundos da agricultura familiar (iii) diversas ações voltadas à estruturação de circuitos curtos de comercialização nos territórios rurais. Programas voltados à promoção da agricultura familiar foram criados, também, na Argentina, Uruguai, Chile, Peru, Bolívia e Venezuela, ainda que com enfoques bastante distintos (MALUF, 2009). No Chile, por exemplo, um dos principais objetivos da ação governamental junto aos agricultores é fomentar e competitividade da produção familiar, inclusive nos circuitos de exportação. Na Bolívia, ao contrário, identifica-se uma grande ênfase na transição rumo a formas de produção de base ecológica e no fortalecimento da produção para o auto-consumo. Na Venezuela, um dos temas mais fortes é, sem dúvida, o tema do abastecimento. No Paraguai, por sua vez, os programas governamentais de apoio à produção dirigidos à agricultura camponesa e familiar tem um alcance extremamente reduzido (ibidem).

Considerações Finais

A Via Campesina delineia um projeto de sociedade, materializado na proposta da

soberania alimentar. Essa noção, propagada pela Via Campesina, se consolidou como uma

agenda política e organizativa dos movimentos sociais do campo latino americano, e como

uma ferramenta de integração regional “desde baixo”. Por trás do conceito de soberania

alimentar, observamos um conflito de modelos de agricultura que alguns autores têm

identificado como de “contra-hegemonia”, uma vez que a Via Campesina afirma, que sua luta

não é apenas reivindicativa ou corporativa, mas que contempla valores que extrapolam o

ambiente rural no questionamento ao modelo dominante. Dessa forma, a Via, articula seu

projeto anti-hegemônico nas lutas internacionais através do conceito de soberania alimentar,

disputando a hegemonia, com vistas a uma globalização alternativa pautada pela justiça e

equidade social.

A mais recente experiência da Reaf, do Mercosul, demonstra que os movimentos rurais

do cone sul, vem aumentando o seu potencial de incidir na construção de uma agenda

regional que verse sobre a agricultura familiar e camponesa como projeto de desenvolvimento

alternativo para o campo. A participação dos movimentos na Reunião, viabiliza que seus

membros possam se forjar nas ações e discussões sobre as amplas questões que os afetam

nas mais diferentes localidades, permitindo que as organizações avancem no alcance de um

projeto comum, em torno da luta por políticas públicas para a agricultura familiar , que visa

desenvolver um sistema de produção e comercialização de alimentos que tenha como

principal objetivo, o abastecimento do mercado local e regional, como reivindicado pela Via

Campesina, de forma a construir a soberania alimentar.

Desse modo, por meio dessas conexões, as lutas se definem segundo a própria

lógica e ritmo dos movimentos sociais, traduzidas em demandas específicas originadas

em suas realidades e temporalidades, processo esse em que o lugar é recriado a partir

das trocas provenientes da articulação do movimento local e do movimento internacional.

Essa característica se manifesta na atuação “contra-hegemônica” dos movimentos, que,

como grupo constitutivo da sociedade civil internacional, carrega, intrinsicamente, a

capacidade de transformação da ordem estabelecida.

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