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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DE MINAS GERAIS Faculdade Mineira de Direito Programa de Pós-Graduação em Direito A SITUAÇÃO JURÍDICA PROPRIETÁRIA NO ÂMBITO DEMOCRÁTICO DO CONDOMÍNIO EDILÍCIO: uma análise no contexto do Estado Democrático de Direito Renato Marcuci Barbosa da Silveira Belo Horizonte 2010

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATOLICA DE MINAS GERAIS Faculdade Mineira de Direito

Programa de Pós-Graduação em Direito

A SITUAÇÃO JURÍDICA PROPRIETÁRIA NO ÂMBITO

DEMOCRÁTICO DO CONDOMÍNIO EDILÍCIO: uma

análise no contexto do Estado Democrático de

Direito

Renato Marcuci Barbosa da Silveira

Belo Horizonte 2010

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Renato Marcuci Barbosa da Silveira

A SITUAÇÃO JURÍDICA PROPRIETÁRIA NO

ÂMBITO DEMOCRÁTICO DO CONDOMÍNIO

EDILÍCIO: uma análise no contexto do Estado

Democrático de Direito.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Privado.

Orientador: Prof. Dr. Adriano Stanley Rocha Souza. Co-orientadora: Profª. Drª. Marinella Machado Araújo.

Belo Horizonte 2010

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Silveira, Renato Marcuci Barbosa da S587s A situação jurídica proprietária no âmbito democrático do condomínio

edilício: uma análise no contexto do estado democrático de direito / Renato Marcuci Barbosa da Silveira. Belo Horizonte, 2010.

231f. Orientador: Adriano Stanley Rocha Souza Co-orientadora: Marinella Machado Araújo Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. 1. Condomínio. 2. Propriedade urbana. 3. Função social da propriedade.

I. Souza, Adriano Stanley Rocha. II. Araújo, Marinella Machado. III. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. IV. Título.

CDU: 347.238

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Renato Marcuci Barbosa da Silveira

A SITUAÇÃO JURÍDICA PROPRIETÁRIA NO ÂMBITO DEMOCRÁT ICO DO

CONDOMÍNIO EDILÍCIO: uma análise no contexto do Est ado Democrático de

Direito.

Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título de Mestre em Direito e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade Mineira de Direito, na área de concentração Direito Privado, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

___________________________________________________________ Prof. Dr. Adriano Stanley Rocha Souza (Orientador) – PUC MINAS

___________________________________________________________ Profª. Drª. Marinella Machado Araújo (Co-orientadora) – PUC MINAS

___________________________________________________________ Prof. Dr. Leonardo Macedo Poli – PUC MINAS

___________________________________________________________ Prof. Dr. Edgar Gastón Jacobs Flores Filho – PUC MINAS

Belo Horizonte, 03 de fevereiro de 2010.

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À minha mãe, Elisa Pelo carinho e conforto incondicionalmente oferecidos nos momentos mais difíceis e desgastantes dessa empreitada. Ao meu pai, Gervásio Por ser o grande responsável pela minha trajetória no Direito. Aos meus irmãos, cunhadas e sobrinhos(as) Por compreenderem a minha ausência. À Mirella Pelo amor, e por compartilhar comigo cada uma das fases percorridas pelo presente trabalho, sempre com palavras e gestos de apoio e incentivo.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por me oferecer todas as condições para a elaboração e

conclusão deste trabalho.

Ao Prof. Dr. Adriano Stanley Rocha Souza, por estar sempre disponível à

troca de idéias com todo o conhecimento adquirido durante a sua carreira como

acadêmico e como profissional do Direito.

À Profª. Drª. Marinella Machado Araújo, por continuar a ser um exemplo de

profissional do Direito, se dedicando incondicionalmente ao tema de minha

pesquisa.

Aos amigos e parceiros de profissão Gustavo Heleno Amorim Martins,

Henrique Augusto de Oliveira e Priscilla Amorim, sem os quais a compatibilização

da advocacia com a elaboração deste trabalho não seria possível.

Aos demais professores do programa de Pós-Graduação em Direito da

PUC/Minas, em especial às Professoras Maria de Fátima Freire de Sá e Taísa

Maria Macena de Lima, pelo apoio e afeto que sempre me concederam desde a

graduação.

Aos professores Anaximandro Lourenço Azevedo Feres e Anderson

Avelino, por possibilitarem concretamente a conclusão deste trabalho.

Aos colegas do Mestrado, pelas experiências que trocamos durante o

curso.

Muito obrigado!

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“Aproxime-se alguém de um edifício coletivo, sob regime de condomínio e divisão em unidades autônomas, e relate como jurista o que vê à sua frente. Diga como se lhe apresenta aquele complexus, por onde transitam quaisquer do povo, onde vivem condôminos, onde habitam pessoas estranhas, onde há empregados de um patrão coletivo que são os próprios condôminos em conjunto. Explique a existência de um terreno que pertence a todos em distribuição por quotas ideais; a presença de paredes, de áreas, de instrumentos, aparelhos, materiais, que são de todos na proporção daquelas quotas; a evidência de partes dentro das quais não chega a convergência de poderes do conjunto de consócios, mas no entanto estão submetidas na sua utilização, como na sua apresentação externa, à normação restritiva em benefício de todos. Este paradoxo, total, negatório das idéias tradicionais da comunhão clássica, no qual a propriedade exclusiva se emparelha com a utilização em comum e às vezes se lhe superpõe, é que constitui o edifício, quase deslocado da materialidade, que o progresso técnico permitiu projetar até as nuvens e arranhar o céu, para a personificação jurídica, na aquisição de direitos e na constituição de obrigações. Quase, sem chegar a tanto.”

Caio Mário da Silva Pereira

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RESUMO

O presente trabalho se propõe a realizar uma análise da forma através da qual a

função social da propriedade pode ser concretizada no âmbito privado do

condomínio edilício. Primeiramente, os elementos e características principais do

instituto serão apresentados nos contornos definidos pela doutrina pátria, como

forma de delimitação do objeto pesquisado. Em seguida, a convenção de

condomínio e a assembléia de condôminos serão apresentadas como

instrumentos que viabilizam não só a aplicação direta de direitos fundamentais

entre os co-proprietários, como também a concretização da função social da

propriedade urbana pela unidade autônoma. Serão analisadas conjuntamente as

mudanças ocorridas nos modelos de Estado que foram sendo construídos desde

as revoluções burguesas até os dias de hoje, e de como tais mudanças atingiram

o Direito Civil e, por conseqüência, a propriedade. Verificar-se-á que a

propriedade funcionalizada no contexto do Estado democrático de direito exige do

seu titular uma conduta voltada, também, para os interesses da coletividade que

sofre as conseqüências do seu exercício, fazendo com que toda propriedade

cumpra uma determinada função social. A conclusão a que se chega é a de que a

unidade autônoma em condomínio edilício, como forma de propriedade urbana

condicionada ao cumprimento de uma função social nos termos do artigo 182, §

2° da Constituição da República de 1988, cumpre aqu ela função através da

obediência de seu proprietário às regras democraticamente estabelecidas na

convenção de condomínio.

Palavras-chave: Condomínio Edilício. Unidade Autônoma. Convenção de

Condomínio. Função Social da Propriedade Urbana.

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ABSTRACT

The objective of this work is to realize an analysis of the form through the social

function of the property can be concretized in the private ambit of the

Condominium Aedilicium. First, the elements and main characteristics of the

institute will be presented in the outlines defined by the patria doctrine as form of

delimitation of the researched object. After that, the condominium convention and

the apartment owners assembly will be presented as instruments that allow, not

only the direct application of the fundamental rights between the co-properties, as

also, the concretization of the social function of the urban property, by the

autonomous unit. The changes, that occurred in the State models which were

been built since the bourgeois revolutions until today, will be analyzed jointly, and,

as such chances achieved the Civil Law and, as consequence, the property. It will

be verified that the property functionalized on the context of the Democratic State

of Law requires, from its titular, a conduct directed to the interests of the collectivity

that suffer the consequences of its exercise, doing with that all property

accomplish a determinate social function. The conclusion to which it arrives is that

the autonomous unit, in condominium aedilicium, as form of urban property,

conditioned to the compliance of a social function, on the terms of the article 182,

§ 2° of the Brazilian Constitution from 1988, accomplish that function through the

obedience of its property owner to the rules established democratilly on the

condominium convention.

Key-words : Condominium Aedilicium; Autonomous Unit; Condominium

Convention; Social Function of the Urban Property.

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LISTA DE ABREVIATURAS

a.C Antes de Cristo

Art. Artigo

d.C Depois de Cristo

Inc. Inciso

Min. Ministro

n.° Número

p. Página

p.ex. Por exemplo

Rel. Relator

Séc. Século

Sem. Semestre

v. Volume

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LISTA DE SIGLAS

ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas

BA Bahia

CCB/02 Código Civil brasileiro de 2002

CCB/16 Código Civil brasileiro de 1916

CJF Conselho da Justiça Federal

CNPJ Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica

CPC Código de Processo Civil

CR/88 Constituição da República de 1988

CTN Código Tributário Nacional

CUB Custo unitário básico

ECAD Escritório Central de Arrecadação e Distribuição

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INSS Instituto Nacional do Seguro Social

LC Lei Complementar

LICC Lei de Introdução ao Código Civil

NBR Norma Brasileira

PT Partido dos Trabalhadores

REsp Recurso Especial

RJ Rio de Janeiro

SP São Paulo

STJ Superior Tribunal de Justiça

STF Supremo Tribunal Federal

TJMG Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

UBC União Brasileira de Compositores

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.......................................................................................... 12

2. ASPECTOS INTRODUTÓRIOS E GERAIS AO ESTUDO DO

CONDOMINIO...............................................................................................

18

2.1 Condomínio Geral............................... .................................................. 22

2.2 Condomínio Edilício............................ .................................................. 26

2.2.1 Contorno histórico do instituto ........................................................ 27

2.2.1.1 O condomínio edilício na legislação nacional: do De creto

5.481/28 ao Código Civil de 2002 ...............................................................

33

2.2.2 Condomínio Edilício: a atual denominação ..................................... 43

2.2.3 Natureza Jurídica ............................................................................... 44

2.2.4 Algumas características do condomínio edilíci o............................ 54

2.2.4.1 A fração ideal ................................... ............................................... 54

2.2.4.2 Os requisitos do condomínio edilício: o dif erencial do

instituto ........................................................................................................

58

2.2.4.3 O perfil democrático da administração do co ndomínio edilício. 63

3. OS ELEMENTOS CONDUTORES À CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO

SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA , PELA UNIDADE AUTÔNOMA

EM CONDOMÍNIO EDILÍCIO: CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO E

ASSEMBLÉIA DE CONDÔMINOS........................... ....................................

67

3.1 Os contornos gerais e a natureza jurídica da co nvenção de

condomínio e do regimento interno.................. ........................................

68

3.1.1 O conteúdo básico da convenção de condomínio. ........................ 74

3.2 A assembléia de condôminos..................... ......................................... 78

3.2.1 A participação democrática na assembléia de c ondôminos e a

contribuição dos co-proprietários na elaboração da convenção de

condomínio......................................... .........................................................

83

3.2.1.1 O agir democrático na elaboração das regras da conv enção

de condomínio .............................................................................................

90

3.2.3 A legitimidade das regras da convenção de con domínio e as

assembléias como arenas destinadas ao debate entre os co-

proprietários...................................... ..........................................................

94

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3.2.3.1 A manutenção do perfil democrático no âmbito privad o do

condomínio edilício e da igualdade entre os condômi nos .....................

104

3.2.4 Conclusões a respeito da convenção de condomí nio e

assembléia de condôminos .......................................................................

109

4. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E O DIREITO CIVIL NO

ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO.......................... ....................................

113

4.1 Da formação do Estado ao Estado democrático de direito.............. 114

4.2 O Direito Civil contemporâneo e a sua interferê ncia na situação

jurídica proprietária.............................. .......................................................

127

4.2.1 As mudanças provocadas pelo processo de desco dificação....... 131

4.2.2 Personalização e despatrimonialização do Dire ito Civil: o

abandono do perfil absoluto da propriedade......... ..................................

136

4.2.3 O proprietário frente à Constitucionalização do Direito Civil........ 143

4.3 A eficácia dos Direitos Fundamentais frente as relações jurídico-

privadas que se manifestam no âmbito interno do con domínio

edilício........................................... ...............................................................

149

5. A PROPRIEDADE FUNCIONALIZADA.................... ............................... 166

5.1 Função social da propriedade: uma abordagem nec essária............ 166

5.1.1 Breve notícia histórica da função social da p ropriedade.............. 167

5.1.1.1 A função social como forma de intervenção n a propriedade ..... 175

5.1.2 A propriedade funcionalizada na Constituição da República de

1988..............................................................................................................

183

5.1.3 A posição da função social em relação à propr iedade.................. 192

5.2 A função social da propriedade urbana.......... .................................... 199

5.2.1 O cumprimento da função social da propriedade urbana no

âmbito privado do condomínio edilício ....................................................

207

6. CONCLUSÃO....................................... .................................................... 215

REFERÊNCIAS............................................................................................. 219

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1 INTRODUÇÃO

Viver nos grandes centros urbanos atualmente não é fácil, seja pelo elevado

custo de vida, pela falta de estrutura urbana que reflete nos infindáveis

congestionamentos e nos alagamentos das vias públicas em época de chuva, pela

falta de segurança e tantas outras questões que acabam por incentivar milhares de

pessoas a buscarem nas cidades interioranas, um ritmo menos acelerado de

conduzir a vida.

Uma questão que sempre está em pauta quando o assunto se refere às

cidades que apresentam alto índice populacional é a utilização do solo urbano, tendo

em vista que a demanda por um espaço possível e adequado para a instalação do

homem, deve ocorrer dentro dos limites impostos pelo Poder Público com o objetivo

de organizar a ocupação das cidades.

Sem poder apresentá-lo como uma nova opção para a questão da utilização

do espaço urbano, tendo em vista que a sua sistematização no ordenamento jurídico

brasileiro, remonta ao início do século XX, o condomínio edilício surge como um

instituto eminentemente urbano, criado para solucionar uma demanda pela utilização

do solo através da reunião de diversas pessoas em uma única edificação.

No período em que surgiram as primeiras considerações legislativas sobre o

instituto, o perfil liberal destinado à propriedade também se aplicava sobre a unidade

autônoma em condomínio edilício, através do qual, na maioria das vezes, o

condômino exercitava o seu direito de propriedade despreocupado com as

peculiaridades daquela edificação.

Contudo, há algum tempo se exige uma postura do proprietário mais

condizente com o modelo de Estado inaugurado pela Constituição da República de

1988 (CR/88), e também com as exigências trazidas pelo Direito Civil adotadas em

virtude de sua nova perspectiva, iniciada a partir da segunda metade do século XX.

Não obstante isso, o que se observa é que a propriedade ainda permanece

envolvida por conceitos liberais que ganham mais visibilidade na realidade concreta

do contexto social, apesar de todo esforço empreendido pela doutrina e pela

legislação em indicar novos valores à propriedade.

Aquele perfil liberal de atuação frente à propriedade torna a situação mais

grave quando se trata de unidades autônomas em condomínio edilício, pois, o

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formato assumido pela edificação sobre a qual o instituto se instala, torna muito

próximo o espaço de convivência entre os condôminos, aumentando as chances de

conflito entre os mesmos.

Torna-se importante realizar uma abordagem das modificações sofridas pelo

Direito Civil ao longo do tempo e de como aquelas modificações atuaram sobre o

instituto da propriedade, para que o seu perfil liberal abandone definitivamente o

subconsciente do proprietário, dando lugar à propriedade funcionalizada pautada na

solidariedade, no respeito ao outro e às minorias estabelecidas dentro daquele

ambiente privado.

A propriedade funcionalizada deve saltar dos textos legais e do ambiente

acadêmico para alçar vôos maiores, fazendo-se presente na realidade concreta,

junto ao proprietário que será o responsável pela destinação atribuída ao bem

(móvel ou imóvel), objeto do direito de propriedade.

A intenção deste trabalho não é desconstruir todo o estudo que há décadas

vem sendo realizado pela doutrina pátria a respeito do condomínio edilício, mas sim

fazer uma nova abordagem, chamando a atenção para a realidade que envolve

aquela forma de propriedade urbana, propondo uma análise do perfil proprietário

inserido em um contexto maior e mais complexo no qual a dignidade, a igualdade e

a solidariedade se relacionam de forma interligada com o principio democrático.

Observado superficialmente, o condomínio edilício é mais um instituto

regulado pelo Código Civil brasileiro de 2002 (CCB/02), tendo por objetivo a

organização da convivência de diversos co-proprietários que decidiram adquirir

unidades autônomas no mesmo edifício e que por isso, encontram-se obrigados a

dividirem as despesas decorrentes da manutenção daquela vida em comum.

Ocorre que ao se tornar um co-proprietário de unidade autônoma percebe-se

que não é nada simples administrar interesses completamente distintos,

manifestados por pessoas que não têm qualquer afinidade entre si, ou pior: que às

vezes desenvolveram um sentimento de discórdia tão acentuado, que se torna

inviável qualquer tentativa de diálogo ou discussão em busca de soluções para os

problemas que, naturalmente, surgem naquele tipo de instituto condominial.

Analisando a questão com mais cuidado, nota-se que, independentemente da

dimensão das edificações nas quais se encontra instituído o condomínio edilício –

dos pequenos edifícios aos grandes conjuntos habitacionais –, cada unidade

autônoma possui dentro de si uma realidade diferente, com características

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diferentes, composta por pessoas com valores e hábitos distintos, exigindo dos co-

proprietários, e principalmente dos administradores, uma capacidade aguçada de

resolução e apaziguamento de conflitos.

O ambiente interno que se forma nos condomínios edilícios é complexo,

sendo constituindo pela pluralidade dos interesses verificados internamente e que

são característicos de cada conjunto de condôminos, sendo possível identificar no

âmbito interno daquela edificação, o perfil de microdemocracias que refletem os

pressupostos de organização das relações interpessoais para a tomada de decisão

e elaboração de normas, verificadas nas macrodemocracias.

Apesar de todas essas peculiaridades, ainda é possível encontrar co-

proprietários de unidades autônomas em condomínio edilício, que entendam ser

possível o exercício absoluto do direito de propriedade, desvinculado de qualquer

preocupação com o outro e com a realidade que o cerca, não obstante o dever legal

de se pautar por valores e princípios democráticos e solidários em virtude daquela

composição plural e multicultural.

Por isso é que a abordagem histórica e a apresentação das características

tradicionais da propriedade e do instituto ora pesquisado serão importantes, para

que em seguida, seja proposto um outro olhar sobre o condomínio edilício, ou seja,

um olhar fundamentado nos valores e princípios estampados no texto constitucional

de 1988, o qual inaugurou o Estado democrático de direito no Brasil.

As análises das alterações sofridas nos modelos de Estado desde o Liberal,

passando pelo Estado Social e chegando ao modelo do Estado democrático de

direito, bem como do reflexo que tais mudanças provocaram na propriedade,

realçam a importância que este último modelo atribui ao principio democrático e ao

respeito do direito das minorias, estabelecendo um sistema de direitos fundamentais

no qual a propriedade ganha lugar de destaque, sempre acompanhada pelo

necessário cumprimento de uma função social.

Esse sistema de direitos fundamentais que, em um primeiro momento, tinha o

Estado como responsável pela sua concretização, tornou-se instrumento também

entre os particulares possibilitando que estes, por si, exijam não somente o respeito,

mas também, a concretização dos direitos fundamentais que foram atribuídos a cada

um pelo texto constitucional.

Neste sentido, é que se entende por bem apresentar os direitos fundamentais

desde o surgimento daqueles denominados de primeira dimensão, no contexto

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revolucionário do século XVIII, até os direitos fundamentais de terceira e quarta

dimensões abrangendo interesses difusos, haja vista que se observa no condomínio

edilício, um potencial que o transforma em um espaço privado capaz de viabilizar a

concretização de direitos fundamentais, através das convenções de condomínio.

Sendo assim, o estabelecimento de regras administrativas e de conduta

adequadas especificamente para cada comunidade condominial faz-se necessário, a

fim de viabilizar uma convivência no mínimo harmoniosa e organizada, segundo as

diretrizes estabelecidas pelo ordenamento jurídico pátrio e também pelo perfil

almejado pelos próprios condôminos.

Em virtude do paradigma do Estado democrático de direito trazido pela

Constituição da República de 1988 e pela importância que o princípio democrático

assume neste contexto, afirma-se que o exercício do direito de propriedade, naquele

âmbito plural e multicultural que se forma no interior das edificações onde se

encontra o instituto do condomínio edilício, deve levar em consideração os

interesses de todos os condôminos.

As deliberações que dizem respeito ao condomínio devem se pautar em

procedimentos democráticos que busquem a efetiva participação de todos os co-

proprietários, ou seja, não se pode atribuir legitimidade à uma regra da convenção

de condomínio que tenha sido produzida fora dos limites de um procedimento

democraticamente estabelecido, mesmo que o quorum específico de 2/3 presente

no artigo 1.351 do CCB/02, tenha sido verificado.

A participação do condômino neste contexto deve ser incentivada ao máximo,

devendo ser divulgadas de forma irrestrita as convocações para as assembléias,

bem como o conteúdo a ser discutido, dando ao condômino a oportunidade de

decidir a respeito de sua participação.

Some-se a todo esse contexto pautado em princípios democráticos, a

obrigatoriedade quanto ao cumprimento de uma função social independentemente

da forma assumida pela propriedade, devendo ser observado o caso concreto para

se concluir a respeito da sua efetiva concretização.

A propriedade sempre foi acompanhada pela necessidade de cumprimento de

uma função social que, como será demonstrado mais adiante, sofre alterações de

acordo com os interesses daqueles que decidem pelo papel da propriedade no

contexto social de cada período histórico.

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No atual contexto democrático, a função social é forma de intervenção do

Estado (de quem exerce o poder, ou em nome de quem o poder é exercido) na

propriedade visando alcançar um interesse público, apresentando-se formalizada

como principio constitucional a ser concretizado pelo proprietário, por se tratar de

elemento estruturante e justificador da propriedade.

Verificar-se-á que dentro de uma sociedade democrática e dialógica, os

conceitos de interesse público e privado não se confundem, interagindo através de

um relacionamento de complementaridade na qual este se encontra refletido

naquele, podendo ser implementados canais de comunicação entre a sociedade e a

Administração Pública com o objetivo de captar as manifestações individuais na

busca pela construção do interesse público.

Assim, quanto mais democrático se apresentar o procedimento de elaboração

das leis, mais chance terá o interesse público de se aproximar do interesse do povo,

ao contrário, quanto mais obscuro e antidemocrático aquele procedimento de

produção legislativa se apresentar, menos “público” será o “interesse”.

Fato é que a propriedade está funcionalizada e ao proprietário fora atribuída a

responsabilidade pelo cumprimento de uma função social adequada à forma por ela

assumida, uma vez que o texto constitucional de 1988 não fez qualquer distinção

quanto ao tipo de propriedade que deve cumprir ou não aquela função social.

Tanto a edificação onde se encontram as unidades autônomas, quanto estas

consideradas individualmente, devem cumprir uma função social, porém, cada uma

em sua esfera de atuação específica, ou seja, o edifício deve cumprir uma função

em relação à comunidade na qual ele se insere, bem como as unidades autônomas

devem cumprir uma função no âmbito interno da própria edificação.

O fato da unidade autônoma em condomínio edilício poder ser classificada

como propriedade urbana, faz com que aquela esteja vinculada ao cumprimento de

uma função social ao teor das normas dos artigos 182, § 2° da CR/88 e 39 da Lei

10.257/01 (Estatuto da Cidade), sem se submeter somente e diretamente ao

conteúdo do plano diretor, mas também e, principalmente, à convenção de

condomínio elaborada em bases democráticas.

É por isso que ao final deste trabalho será possível verificar que a unidade

autônoma em condomínio edilício deve cumprir uma função social, e que esta será

devidamente concretizada quando o titular de direito sobre aquela forma de

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propriedade, obedecer de maneira irrestrita às regras estabelecidas na convenção

de condomínio.

Repita-se que um dos objetivos deste trabalho é provocar uma reflexão mais

detida sobre a necessidade de se abandonar o perfil individualista incutido no

proprietário ainda nos dias de hoje, para que aquele assuma a responsabilidade que

a propriedade no atual modelo de Estado lhe impõe.

O proprietário deve assumir o seu posto frente à propriedade conduzindo-a de

forma a produzir efeitos interessantes a si próprio, e também àqueles que sofrem os

efeitos do exercício do direito, ou seja, deve se pautar frente ao objeto de seu direito

de forma a buscar a concretização de sua função social.

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2 ASPECTOS INTRODUTÓRIOS E GERAIS AO ESTUDO DO COND OMINIO

Inicia-se o presente trabalho com a realização de uma abordagem voltada

para as duas formas de condomínios presentes no CCB/02, quais sejam, o

Condomínio Geral estabelecido nas normas dos artigos 1.314 a 1.330 (subdividido

em Condomínio Voluntário e Condomínio Necessário) e o Condomínio Edilício que

se encontra estabelecido nas normas dos artigos 1.333 a 1.358, sendo este o objeto

da pesquisa ora apresentada.

Verifica-se que nos manuais de Direito Civil, bem como, nas obras que se

destinam a estudar o instituto do condomínio, o assunto, invariavelmente, encontra-

se antecedido por uma abordagem do instituto da propriedade e este layout não é

difícil de entender, primeiro em virtude da disposição da matéria na legislação pátria,

pois, o condomínio foi estabelecido no Livro III (Direito das Coisas), Título III (Da

Propriedade) Capítulos VI (Condomínio Geral) e VII (Condomínio Edilício); e

segundo, por se tratar de uma forma especial de exercício do direito de propriedade.

Dessa forma, e preliminarmente ao estudo do condomínio, tornou-se comum

entre os doutrinadores a realização de uma reconstrução histórica da propriedade,

com a indicação de prováveis épocas de seu surgimento, a influência dos diversos

contextos político e econômico na sua conceituação e tutela, além da abrangência

social que, atualmente, fora-lhe atribuída no ordenamento jurídico pátrio, através da

norma do artigo 5° inc. XXIII da CR/88.

A tarefa de reconstrução mencionada é das mais difíceis, tendo em vista a

simbiose existente entre o surgimento da propriedade como forma de apropriação de

bens, realizada pelo homem – em virtude de suas necessidades de proteção e

alimentos – e a sua própria história; nem por isso, deixar-se-á de mencionar neste

trabalho, mesmo que de forma sucinta, o entendimento de alguns juristas a respeito

desse assunto, tomando-se as devidas precauções para não tornar essas palavras

introdutórias um enfadonho terreno de reprodução doutrinária.

O ponto de partida está no período histórico que, corriqueiramente, denomina-

se “primórdios da civilização” onde os “povos primitivos” construíam suas relações

sociais, as quais se diferenciam das que se verifica hoje em dia, principalmente pela

característica nômade desses povos que “limitavam-se à caça, pesca e coleta de

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frutos, visando ao sustento da comunidade; desse modo, nenhum interesse ou

significado lhes despertava a idéia de propriedade privada.” (SOARES, 1973, p. 7)

O desenvolvimento das relações humanas, a partir da organização dos

indivíduos em grupos tribais, foi para Soares (1973), o início do estabelecimento da

ordem familiar, com a elaboração de alguns ramos de produção (p.ex., criação de

gado e agricultura) e uma divisão rudimentar do trabalho constituída sobre a

determinação de tarefas, de acordo com o sexo e a idade dos indivíduos, para ao

final serem repartidos com a coletividade os produtos surgidos com o trabalho de

todos.

Ocorre que o trabalho realizado no âmbito das tribos propiciou o surgimento

de um excedente de produção que passou a ser trocado entre elas, e assim, o

homem reunido em grupos menores dentro das próprias tribos, identificava-se cada

vez mais com tudo aquilo que viabilizasse a sua sobrevivência (terra, instrumentos,

animais etc.) constituindo as bases da propriedade privada, que hoje se conhece.

Em uma das mais completas obras a respeito do tema “condomínios em

edifícios e incorporações”, Pereira (1999) traça a sociologia da propriedade

remontando à época de povos que desconheciam a propriedade particular sobre a

terra, e outros que não submetiam o seu regime de bens à apropriação individual,

passando por sociedades que atribuíam àquela forma de apropriação um caráter

marcadamente religioso, e chegando aos primórdios da concepção ocidental de

apropriação individual de bens, que estaria presente na trilogia indissociável formada

pela família, religião e propriedade privada, criada pelas sociedades helênicas e

itálicas nas cidades antigas, e que mais tarde fora substituída por outra trilogia,

formada por propriedade, política e economia.

Fiuza (2007) atribui ao Direito Romano, a sistematização científico-jurídica da

propriedade, não obstante à vinculação religiosa, a que a propriedade submetia-se,

já que o culto dos deuses domésticos ocorria no interior dos “lares” dos cidadãos

romanos, sendo que cada família romana cultuava os seus antepassados, fazendo

da propriedade (imóvel neste caso) objeto fora do comércio, principalmente para

aqueles que não eram cidadãos romanos.

Buscando a explicação sobre uma possível época, em que se possa

identificar o surgimento da primeira forma de propriedade territorial em Roma,

Venosa (2004) afirma que não é fácil precisar um momento para o surgimento

daquela, principalmente pela obscuridade das fontes quanto à forma que a

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propriedade comum assumia naquela época, porém, assim mesmo, há quem atribua

à Lei das XII Tábuas a responsabilidade pela apresentação da noção de propriedade

imobiliária individual, sendo que

[...] nesse primeiro período do Direito Romano, o indivíduo recebia uma porção de terra que devia cultivar, mas, uma vez terminada a colheita, a terra voltava a ser coletiva. Paulatinamente, fixa-se o costume de conceder sempre a mesma poção de terra às mesmas pessoas ano após ano. Ali, o pater famílias instala-se, constrói sua moradia e vive com sua família e escravos. Nesse sentido, arraiga-se no espírito romano a propriedade individual e perpétua. (VENOSA, 2004, p. 170)

Pereira (1999) reconhece o desenvolvimento do conceito de propriedade com

a evolução do sistema jurídico romano, com o transcurso da Idade Média e a

ocorrência das invasões bárbaras – que provocaram o surgimento dos senhores

feudais, bem como da vinculação que permaneceu, por muito tempo, entre

propriedade imóvel e poder político – e por fim, chegando ao século XVIII, no

período da Revolução Francesa, tendo sido esta

[...] um acontecimento de raízes profundas, de tão grande alcance social que se chega a dividir a história à vista das transformações que causou. Não passaria da superfície o movimento se deixasse intacto o conceito medieval de domínio, e, disto conscientes, aqueles homens revolucionaram também a noção de propriedade. O Código de Napoleão traduz os pendores de seu tempo e sintetiza as idéias-forças do direito no século XIX. E como este foi o grande lago sereno do individualismo jurídico, aquele foi cognominado com razão o Código da Propriedade. [...] Aquele a quem pertencem mais coisas tem uma importância social maior. Descrente da aristocracia de linhagem, a sociedade moderna constituiu uma nova idéia nobiliárquica, e fundou a aristocracia econômica. O homem valendo pelo que tem, cada um procura mais ter, construir a sua fortuna, como forma de influir.” (PEREIRA, 1999, p. 27)

Interessante notar o sentimento de valorização da razão humana, e por

conseqüência do próprio homem, disseminado pelo ideário liberal-burguês quando

da Revolução, iniciada no século XVIII, intensificando, principalmente, a sua

liberdade de contratação e aquisição, sem que o Estado realizasse as intervenções

outrora corriqueiras, no âmbito das relações privadas, lembrando que dentre os

direitos fundamentais assegurados ao homem naquela época, a propriedade era,

senão o maior, um dos mais significativos direitos.

Neste aspecto, Farias e Rosenvald (2008) ressaltam que a característica

patrimonialista do Código Napoleônico (ícone dos instrumentos legislativos liberais

da época) atribuiu à propriedade, o papel de refúgio do indivíduo para o exercício

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privado e livre de suas vontades, tendo o Estado o papel secundário de abstenção,

frente às relações privadas e de manutenção das condições básicas de segurança,

para que o cidadão/proprietário não restasse perturbado no exercício dos direitos,

que lhe foram conferidos.

O revogado Código Civil brasileiro de 1916 sofreu grande influência, por parte

do Código Civil francês de 1808, cujo paradigma de valorização e protecionismo do

patrimônio, com intervenção mínima do Estado, mostrou-se ao longo do século XIX

e parte do século XX, cúmplice de um quadro de desigualdade, em que poucos

acumulavam muito, e muitos não possuíam qualquer título de propriedade.

Essa situação fez com que ao longo do século XX, o caráter absoluto da

propriedade sucumbisse à necessidade de verificação daquele direito voltado, não

somente para o atendimento dos interesses do seu titular, mas, sobretudo para os

interesses de uma coletividade de não proprietários, que sofrem as conseqüências

do seu exercício.

Nesse quadro, retoma com outra roupagem, a função social como elemento

estruturante da propriedade e norteador do seu exercício, sendo alçado, no Brasil,

ao patamar de principio fundamental de obediência e concretização obrigatórias,

tanto em uma perspectiva constitucional quanto infraconstitucional.

A idéia da propriedade funcionalizada e a sua classificação como situação

jurídica complexa leva, em consideração, o perfil dinâmico do instituto, ou seja,

estabelece a relação de uma situação jurídica proprietária, com outras situações

proprietárias ou não, atribuindo direitos e deveres para todos os que se relacionam

em torno de um objeto passível de apropriação.

Percebe-se, há algum tempo, que o proprietário não é titular de um direito

absoluto sobre o objeto do seu direito, mormente, quando se trata de um bem

imóvel, haja vista que o exercício daquele direito encontra-se submetido a diversas

normas estabelecidas em nosso ordenamento jurídico, as quais têm, como objetivo,

a regulamentação das relações existentes entre os proprietários entre si, e entre

estes e os não proprietários, além daquelas normas que são impostas pelo Poder

Público no tocante à ordenação do uso e ocupação do solo, dentre outras.

Porém, quando se trata de uma espécie de propriedade que possui como

pressuposto do próprio instituto a diversidade de proprietários e a comunhão de

direitos entre todos eles – como é o caso dos condomínios edilícios – aí mesmo é

que a perspectiva absoluta da propriedade, cunhada sob a batuta do paradigma

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liberal, deve ceder espaço para outra que dê importância a uma relação jurídica real,

baseada na solidariedade entre os titulares e na convivência harmônica de todos.

Nessa forma especial de condomínio, existe um conjunto de regras elencado

em um instrumento denominado convenção de condomínio que funciona como

norteador para o exercício do direito de propriedade, não podendo os titulares

desconsiderarem os seus mandamentos sob pena de aplicação de multas e outras

punições estabelecidas em lei e na própria convenção, todas fundamentadas, em

última análise, na função social que a propriedade contemporânea deve cumprir.

A propriedade, enquanto direito real por excelência, reúne todas as

faculdades descritas pela norma do artigo 1.228 do CCB/02, as quais são atribuídas

aos seus respectivos titulares, porém, o usar, o fruir e o dispor devem estar em

consonância com a exigência constitucional do atendimento a uma função social,

cuja determinação não se faz a priori pelo texto da lei, mas pela observância das

particularidades de cada caso concreto.

A seguir, serão apresentadas as principais características das duas formas de

condomínio estabelecidas no CCB/02 – Condomínio Geral e Condomínio Edilício –

tendo como objetivo principal a delimitação do objeto de pesquisa e a verificação de

sua estrutura, para que ao final deste trabalho possa ser apresentada a necessidade

de cumprimento da função social pela unidade autônoma que a compõe, bem como,

a forma e o instrumento que viabilizará tal cumprimento.

2.1 Condomínio Geral

Primeiramente, informa-se que há doutrina no sentido de que os termos

propriedade e domínio1 não possuem significados idênticos, não obstante o caráter

complementar que um exercer frente ao outro; assim,

A propriedade é um direito complexo, que se instrumentaliza pelo domínio, possibilitando ao seu titular o exercício de um feixe de atributos consubstanciados nas faculdades de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa que lhe serve de objeto (art. 1.228 do CC). A referida norma conserva os poderes do proprietário nos moldes tradicionais. [...] Assim, o domínio é

1 César Fiuza não diferencia os termos propriedade e domínio alegando tratar-se de uma distinção “mais dogmática que histórica” (FIUZA, 2007, p. 737), optando por usá-los indistintamente.

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instrumentalizado pelo direito de propriedade, ele consiste na titularidade do bem. Aquele se refere ao conteúdo interno da propriedade. O domínio, como vinculo real entre o titular e a coisa, é absoluto. Mas a propriedade é relativa, posto intersubjetiva e orientada à funcionalização do bem pela imposição de deveres positivos e negativos de seu titular perante a coletividade. Um existe em decorrência do outro. Cuida-se de conceitos complementares e comunicantes que precisam ser apartados, pois em várias situações o proprietário – detentor da titularidade formal – não será aquele que exerce o domino (v.g. usucapião antes do registro, promessa de compra e venda após a quitação). (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 176)

Assim, no condomínio, o que se fraciona é o direito de propriedade e não o

domínio, pois, “aplica-se a teoria da propriedade integral para a justificação da

natureza jurídica do condomínio. Cada condômino tem propriedade sobre a coisa

toda, delimitada pelos direitos dos demais consortes.” (FARIAS; ROSENVALD,

2008, p. 486), e dessa forma, a melhor denominação para o instituto seria

compropriedade ou co-propriedade.

O condomínio geral encontra-se estabelecido nas normas dos artigos 1.314 a

1.330 do CCB/02, sendo subdividido em condomínio voluntário e condomínio

necessário, de acordo com a forma de sua instituição, ou seja, se a comunhão foi

estabelecida pela livre manifestação das partes ou, se decorreu sem ou

contrariamente àquela manifestação de vontade (herança sobre coisa indivisa –

muros, cercas e valas) tendo em vista a natureza do objeto, sobre o qual se institui o

condomínio ou a determinação legal.

Não obstante a diferença realizada pela legislação, há que se reconhecer que

tanto no condomínio voluntário quanto no necessário haverá comunhão de

interesses2, pressupondo “a existência de direito de idêntica graduação, harmônicos

e compatíveis, de modo que sejam exercidos pelos comunheiros individualmente,

sem exclusão dos demais.” (VENOSA, 2004, p. 296)

Essa é a tônica do instituto do condomínio geral, fazendo dele uma forma

especial de propriedade onde se atribui ao titular do direito uma fração

(ideal/idealizada)3 sobre o bem objeto do direito de propriedade, permitindo a divisão

2 No que diz respeito aos interesses dos comunheiros, Miranda (1955) assevera que a comunhão pode ocorrer, não somente em relação ao direito de propriedade, mas também, quanto a outros direitos reais como o uso, usufruto, habitação e etc., cabendo apenas aos titulares dos direitos em questão, a regulamentação do uso para os diversos proprietários sobre o bem, podendo, neste caso, surgir questão ligada à composse. 3 A questão da fração ideal é tratada por Venosa (2004) como sendo uma expressão do domínio, estabelecida em forma decimal para estipular, frente àquele conjunto de proprietários, as proporções

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entre os comunheiros dos ônus e dos bônus eventualmente surgidos em virtude

dessa situação jurídica, porém, frente a terceiros, cada um dos condôminos

responderá pela coisa em sua integralidade.

Esta parte do trabalho dará enfoque tão somente ao condomínio geral

voluntário, pois, o condomínio geral necessário é constituído por características

específicas já que se trata de instituto estabelecido sobre bens que devem

permanecer indivisíveis, sem que haja possibilidade de transferir isoladamente as

partes ideais do todo, sendo esta uma das características ressaltadas como forma

de diferenciação do condomínio edilício que será tratado separadamente.

O CCB/02 estabelece o condomínio necessário nos artigos 1.327 a 1.330,

noticiando que se trata do condomínio instituído sobre paredes, cercas, muros e

valas, porém, aquele poderá ser observado também “em pastagens; na formação de

ilhas; na comistão, confusão e adjudicação e no tesouro”. (FARIAS; ROSENVALD,

2008, p. 500)

Pode parecer que a titularidade do direito de propriedade em condomínio

tenha sido estabelecida na contramão de uma das características mais marcantes

do moderno instituto da propriedade, qual seja: a exclusividade, porém, tratando-se

de condomínio pro indiviso, há quem sustente a inocorrência de supressão da

característica da exclusividade da propriedade, ao argumento de que

[...] pelo estado de indivisão do bem, cada um dos proprietários detém fração ideal do todo. Há uma pluralidade de sujeitos (proprietários) em um dos pólos da relação jurídica. Isto é, como estas pessoas ainda não se localizaram materialmente por apenas possuírem cotas abstratas, tornam-se donos de cada parte e do todo ao mesmo tempo. Mesmo quando atue isoladamente, o condômino exercitará o domínio na integralidade e não apenas na proporção de sua fração. (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 485)

Cabe ressaltar que, os autores supra citados, estabelecem essas condições

frente a um tipo de condomínio denominado pro indiviso, ou seja, condomínio

instituído sobre determinado bem, sem que este tenha sido delimitado em tantas

partes quantos forem os condôminos, com o objetivo de definir qual a parte em que

os diversos condôminos exercerão os seus respectivos direitos.

dos direitos de cada comunheiro, refletindo nos direitos e deveres de cada um frente ao bem objeto do direito.

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Por outro lado, o condomínio pro diviso é o que restou instituído com a

delimitação dos espaços em que cada um dos diversos condôminos exercerá os

direitos de que são titulares.

Tendo como pressuposto de existência a pluralidade de proprietários faz-se

necessário o estabelecimento de uma forma organizada de administração do bem

comum, buscando evitar a ocorrência de maiores dissabores, vez que o exercício

em comum da propriedade sobre o mesmo bem, por si, já é motivo suficiente para o

surgimento de uma série de conflitos que têm como pano de fundo a

incompatibilidade dos interesses dos diversos comunheiros.

Nesse norte, verifica-se que os artigos 1.323 a 1.326 do CCB/02 estabelecem

normas básicas a respeito da administração do condomínio determinando a escolha

de um administrador que regulará a colheita e a divisão dos frutos eventualmente

gerados pelo bem e a forma de determinação da maioria para a tomada de

decisões.

Além daquelas normas, outras regras poderão ser estabelecidas pelos

comunheiros objetivando a regulamentação e administração do objeto submetido ao

condomínio, pois, diversos são os direitos e deveres estabelecidos para os

comunheiros enquanto proprietários do bem objeto do condomínio.

O condomínio voluntário possui a transitoriedade como característica

marcante, haja vista tratar-se de forma anormal de exercício do direito de

propriedade, interferindo no em seu caráter exclusivo.

A análise do condomínio voluntário no ordenamento jurídico pátrio demonstra

que o interesse do legislador é não prolongar a existência daquele instituto, pois,

estabelece um limite de 5 (cinco) anos – prorrogáveis – tanto para os condôminos

que resolvam estabelecer prazo determinado para o estado de indivisão, quanto

para os casos de estabelecimento do condomínio através de testamento.

Portanto, para que o condomínio voluntário se desfaça basta a manifestação

de vontade de apenas um dos co-proprietários, independentemente da dimensão de

sua parte, através de acordo extrajudicial realizado entre os co-proprietários, ou

judicialmente, através de procedimento próprio estabelecido nas normas do artigo

967 e ss. do CPC, tratando-se de direito potestativo; porém,

Se o imóvel for indivisível – jurídica ou materialmente –, porém, a pretensão divisória é inviabilizada. Nesta situação, encontram-se os bens que, quando fracionados, perdem as suas características essenciais ou o

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seu valor econômico. Podemos citar o exemplo de lotes urbanos e rurais que, fracionados, alcancem área inferior ao módulo mínimo estabelecido, respectivamente, pela Lei de Loteamentos e pelo Estatuto da Terra. Com efeito, as proibições objetivam a manutenção de ordenamento urbano mínimo, coibindo ainda a proliferação de minifúndios improdutivos. Não podendo a coisa ser fracionada sem alteração de sua substância (art. 87 CC), será qualificada pela indivisibilidade. Neste caso, se os consortes não acordarem em adjudicar a coisa a um dos comunheiros, com a contrapartida da indenização aos outros, qualquer condômino poderá exigir a venda para repartição do preço. (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 497)

Por fim, menciona-se a forma de extinção do condomínio voluntário

determinada pela norma presente no artigo 1.316 § 2° do CCB/02, quando verificada

a renúncia de um comunheiro à sua fração ideal e, conseqüentemente, às despesas

dela advindas, sem a assunção das dividas da fração renunciada pelos demais

condôminos. A divisão, neste caso, é compulsória.

Realizadas estas apresentações, passa-se à abordagem específica do

condomínio edilício, fazendo-se menção à sua história, sua estrutura e principais

características, propiciando uma especificação do instituto para que se possa

analisar a dinâmica das relações interpessoais verificadas em seu âmbito privado, e

a conduta dos condôminos em busca do atendimento da função social exigida pela

CR/88, das unidades autônomas que compõe o edifício.

2.2 Condomínio Edilício

Nessa parte, não serão analisadas todas as características e elementos

constitutivos do instituto do condomínio edilício, realizando-se a análise da

Convenção de Condomínio, do Regimento Interno e das Assembléias em capítulo à

parte, haja vista a importância destes instrumentos, mormente a convenção, para a

conclusão final deste trabalho.

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2.2.1 Contorno histórico do instituto

O desenvolvimento urbano é fator que contribuiu, substancialmente, para o

surgimento do instituto do condomínio edilício, nos contornos observados

atualmente, e tal contribuição é reconhecida por toda a doutrina civilista, que se

dedica à pesquisa do assunto, divergindo alguns, quanto ao exato momento e os

motivos que levaram ao seu surgimento.

Torna-se claro, que a necessidade do homem de buscar a sua sobrevivência

em lugares onde o contingente populacional avulta-se e, onde a titularidade do solo

torna-se tarefa árdua ou possível, apenas, para um número reduzido de afortunados,

faz com que novas formas de habitação sejam criadas com o objetivo de se

equacionar a questão da moradia nas cidades, para um número cada vez maior de

pessoas, oferecendo infra estrutura em um espaço reduzido do solo, se considerado

o grande número de famílias que nele habitam.

Classificando a propriedade em planos horizontais como produto da

mentalidade criadora do jurista moderno, cuja história confunde-se com a do

desenvolvimento demográfico dos centros urbanos, Magalhães (1966) afirma que

em um primeiro momento, o surgimento daquele instituto verificou-se em virtude da

crise habitacional, que adveio com o final da primeira grande guerra mundial e

depois por duas questões econômicas, quais sejam: o desinteresse dos capitalistas

pelas rendas produzidas por imóveis e o grande investimento que esses mesmos

capitalistas realizavam em aplicações imobiliárias.

Apesar da “moderna disciplina legal, suas raízes recuam a épocas remotas,

atingindo a antiga Caldéia, há cerca de três milênios antes da era cristã, daí se

irradiando para outras partes do mundo oriental – Egito, Babilônia, Pérsia, etc.”

(MAGALHÃES, 1966, p. 17)

Por outro lado, Luiz da Cunha Gonçalves estabeleceu que

Historicamente, também, o fenômeno de existirem andares ou pavimentos sobrepostos e pertencentes a donos diversos não foi suscitado, de nenhum modo, pelo inquilinato ou pela locação urbana, mas apenas pela raridade ou esteiteza de terrenos urbanizados, especialmente nas cidades cercadas de muralhas, como antigamente o eram algumas das principais cidades portuguesas, por exemplo Évora, Elvas, Beja, Coimbra, Porto, Braga. Sob este aspecto, o fenômeno é muitíssimo mais antigo, pois há perto de 5.000

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anos que se verificara na célebre cidade amuralhada de Babilônia, donde tal uso passou para a Palestina e Egipto. (GONÇALVES, 1955, p. 8)

Independentemente da época em que a forma de edificação de unidades

autônomas estabelecidas em planos horizontais apareceu, a conclusão que se

chega é no sentido de que a necessidade do homem, de equacionar o uso do solo

nas cidades, foi o seu grande incentivador, tornando-se necessária, posteriormente,

a criação de um sistema normativo específico para a regulamentação da vida em

comum, naquele tipo de construção.

Gonçalves (1955) atribui o encarecimento dos terrenos edilícios nas cidades

super povoadas à escassez dos mesmos, já que o aumento paulatino da população

urbana – em virtude da imigração e do sentimento de que a vida na cidade é mais

fácil – impôs o aumento progressivo pela necessidade habitacional, inclusive, pela

recepção nas cidades de um grande contingente populacional que surgia do meio

rural.

Realizando uma análise do surgimento da propriedade horizontal em Roma,

Marchi (1995) afirma que há registros papirológicos e cuneiformes confirmando a

sua existência em períodos muito anteriores à constituição do Império Romano,

mormente, nos ordenamentos jurídicos Egípcio e Grego, e que o grande

responsável pela recepção tardia – somente a partir dos primeiros anos do Império –

daquela forma de edificação no Direito Romano foi o principio superfície solo cedit,

cuja origem não foi legislativa, mas da própria intuição natural do homem, tornando-

se corrente o seu reconhecimento pelo ius civile.

A acessão, modo originário de aquisição da propriedade decorrente da união de duas coisas, pela qual uma delas, chamada acessória, torna-se parte integrante – pars – da outra, denominada principal, seria, no dizer de Bonfante, a demonstração mais genuína do caráter absoluto, autônomo e soberano da propriedade romana: para a mentalidade dos romanos revelar-se-ia inadmissível que no âmbito dos limites demarcatórios impostos à coisa objeto do direito de propriedade – limites estes, no caso da coisa imóvel, assinalados, como um território, por linhas verticais – um terceiro pudesse ser proprietário de parte da mesma coisa. Em conseqüência, os romanos teriam sido, em teoria, avessos a qualquer tipo de comunhão pro diviso e, em especial, à divisão da propriedade em sentido horizontal.” (MARCHI, 1995, p. 10)

O dogma superfícies solo cedit estabelece que as construções ou plantações

realizadas em um imóvel passam a fazer parte deste através da acessão, não se

concebendo a diversidade de propriedade entre o solo e a superfície, uma vez que

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os poderes concedidos ao proprietário pelo direito romano, sobre o objeto imóvel,

submetido ao seu domínio, atingiam distâncias indefinidas tanto em direção ao

subsolo quando em direção ao espaço aéreo.

Portanto, a aplicação rígida daquele dogma com a conseqüente

impossibilidade de reconhecimento da superfície como objeto de propriedade – bem

como de qualquer outro direito real – separada do solo, implicava, também, a

impossibilidade de reconhecimento da propriedade horizontal pelo Direito Romano

nos moldes que se conhece hoje, pois, a propriedade dos pavimentos

horizontalmente sobrepostos ao solo, deveria acompanhar a titularidade constituída

sobre o imóvel.

Noutras palavras, o reconhecimento da propriedade horizontal pelo Direito

Romano, dependia do reconhecimento que este fizesse da propriedade superficiária

com a necessária mitigação do dogma superfícies solo cedit, sendo certo que a

discussão a respeito da propriedade superficiária atingia a questão de se retirar o

entrave econômico que aquele dogma atribuía ao instituto da propriedade.

Com o progresso e desenvolvimento das cidades, tal concepção é ultrapassada. De inicio, como observa Biondi, os magistrados passam a conceder o direito de gozo de partes do solo no forum praça central da urbis aos argentarii (banqueiros), para construção de lojas, mediante uma contraprestação (pensio ou solarium). Posteriormente tal praxe é estendida também aos particulares que, para conceder o direito de gozo da superfícies, utilizam-se de contratos de venda ou locação, os quais, como se sabe, produziam efeitos meramente obrigacionais. Ao superficiário, porém, para a proteção de seu direito, seria ainda concedido, segundo as nossas fontes, um interdito especial – interdictum de superficiebus – e, por fim, uma actio in rem. (MARCHI, 1995, p. 17)

Biondi, citado por Marchi (1995, p. 18) noticia a existência em Roma, na

época clássica, de uma divergência quanto à aceitação da superfícies, vez que no

sistema do ius civile4 seria impossível transmitir a superfície ou constituir sobre ela

4 Cretella Júnior (2003) apresenta as fontes do direito romano no período da República (510 a.c – 27 d.c), caracterizadas nos costumes, na Lei, no Plebiscito, nas interpretações dos prudentes e nos Editos dos magistrados. Quanto a estes últimos, incluíam-se no adjetivo de “magistrado” os cônsules, censores, pretores, governadores das províncias, porém, o magistrado que exercia a função jurisdicional era o pretor e assim, no exercício da função jurisdicional no âmbito do Império existiam os pretores e os edis curuis (na cidade de Roma) e os Governadores e Questores (nas províncias). Ocorre que “estes editos dos magistrados judiciários foram criando um direito novo, ao lado do jus civile, denominado direito pretoriano ou direito honorário (jus honorarium, direito criado por quem tinha as honores, ou seja, pelos magistrados). Ao lado do jus civile, do direito do civis (“jus ex jure Quiritum”), formalista, rígido, escrito, vai florescendo o jus honorarium, mais plástico, mais humano, porque temperado pelo extraordinário instrumento de que dispõe o pretor – a equidade. [...] O traço

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um direito real separado do solo, por outro lado nada impedia que se constituísse

sobre a superfície um direito obrigacional (p. ex. aluguel) desde que não afrontasse

o dogma superficies solo cedit.

Ainda nas palavras do autor supra, no âmbito pretoriano do ius honorarium a

superfícies já encontrava respaldo para caracterizá-la como entidade jurídica

autônoma e distinta do solo, recebendo tutela erga omnes de direito real, através de

interdito com caráter possessório concedido ao então superficiário.

Por isso, conclui que a partir da época pós-clássica romana a propriedade

superficiária foi reconhecida abertamente, e que no período justinianeu, o

superficiário fora reconhecido como verdadeiro proprietário pela atribuição de todas

as ações referentes à tutela do domínio, sendo a superfícies uma moeda com a

propriedade e a servidão, servindo-lhe de faces.

Não obstante as diversas teorias que refutaram as idéias de Biondi, quanto ao

reconhecimento da propriedade superficiária no reinado do Imperador Justiniano

(527 a 565 d.C), o que interessa a este trabalho é o reflexo destas discussões no

reconhecimento ou não, já no Império Romano, da propriedade independente dos

pavimentos horizontais de um edifício e de sua ampla utilização no âmbito da urbis.

Stanislaus Pineles, criticado por diversos juristas e citado Marchi (1995, p.30)

propôs, em contraposição ao argumento de Savigny (que negava o reconhecimento

da propriedade separada dos pavimentos de um edifício em Roma) e após

interpretação de partes do Digesto referentes ao assunto, que a communio pro

diviso, inclusive na forma de propriedade horizontal, já havia sido reconhecida pelo

Direito Romano.

Marchi (1995), então, conclui que na época clássica romana, a propriedade

horizontal não só era admitida por parte da jurisprudência, como também, o edifício

formado por vários pavimentos – insulae – divididos em compartimentos – cenacula

– e que apresentasse acesso independente para a via pública – aditus ex publico –,

era a típica moradia romana a partir dos primeiros anos da época Imperial, inclusive

pela alta concentração populacional verificada naquela cidade, no período do

Império, calculando-se um contingente mínimo de 500/600 mil habitantes, e um

máximo de 1.200/1.500 mil habitantes, porém,

dominante do direito é a rigidez, a impessoalidade; o traço distintivo da equidade é a plasticidade, o amoldamento preciso a um determinado caso.” (CRETELLA JUNIOR, 2003, p. 37)

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Não se trataria, por outro lado, do amplo reconhecimento da propriedade horizontal, com os efeitos que normalmente decorrem dela: dado o silêncio das fontes devemos, de fato, crer que o dominus soli não fosse obrigatoriamente outro senão o proprietário do andar térreo, o que evidenciaria, em certo sentido, uma não completa derrogação do principio superfícies solo cedit. [...] Pode-se reconhecer, finalmente, com apoio nas fontes papirológicas, bizantinas e orientais (P.Mon.8,P.Mon.9, P.Mon.11, Lib. Syr.Rom.98, Hexab.2,4,40 e 2,4,42), a tendência do direito justinianeu para admitir de modo amplo e sem as restrições que se impunham em época clássica a figura da propriedade horizontal. (MARCHI, 1995, p. 90)

Apresentando entendimento contrário ao que restou exposto acima, Pereira

(1999) afirma que o Direito Romano desconhecia a idéia de divisão de prédios por

planos horizontais, por ausência de argumentos capazes de justificar, naquela

época, a separação e autonomização das unidades construídas em planos

horizontais, em face ao principio superfícies solo cedit, não obstante, a vasta

utilização das insulae como habitação plebéia superposta umas às outras.

Se há divergência quanto ao surgimento e aceitação do instituto em Roma,

Magalhães (1966) assegura que dúvidas não restam quanto à utilização e presença

de propriedades em planos horizontais na Pérsia, Egito e Palestina, espalhando o

costume pelo Mediterrâneo, por volta do século XIV, irradiando-se, posteriormente,

por grande parte da Europa, mormente, interior da França, Bretanha, Córsega,

Sardenha, Espanha e Inglaterra, sendo que em França desenvolveu-se o primeiro

instrumento legislativo a sistematizar as bases do instituto (Código de Napoleão de

1804), merecendo legislação específica, que fora promulgada em 28 de junho de

1938.

Pereira (1999) atribui o desenvolvimento legislativo francês nesta matéria, ao

incêndio que ocorreu na cidade de Rennes, em 1720, destruindo grande parte da

cidade e que forçou os seus habitantes a construírem casas de maior categoria,

submetidas à planificação preordenada, e a adotarem com espontaneidade a

elevação de edifícios de três e quatro andares, usados com autonomia entre os

proprietários.

O fato é que o desenvolvimento das relações interpessoais verificadas no

âmbito das sociedades agravou o problema habitacional surgido com a formação

das cidades, pois, o progresso tecnológico e o aumento populacional impulsionaram

a economia incentivando a concentração urbana e o surgimento das metrópoles.

A revolução industrial trouxe para as cidades um cenário constituído pelos

parques industriais e pelas áreas destinadas à moradia dos operários, sendo este

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um cenário, eminentemente, vinculado ao século XIX, já que o capitalismo promoveu

o desenvolvimento dos ideários de trabalho incessante, da busca pelo lucro, pela

venda da força de trabalho e a imposição ideológica (imperialismo) dos países

economicamente mais desenvolvidos sobre os financeiramente dependentes.

Nas cidades o que se via era,

Nenhum ou raríssimos parques; falta de água; imundície; duvidosas hospedarias, onde se comprimiam num só quarto inúmeras pessoas de ambos os sexos; soturnas habitações; promiscuidade; epidemias; piolhos, ratos, miséria e ruas em que se atiravam toda sorte de detritos, devorados por galinhas, cachorros, gatos e porcos; esse quadro geral da maioria dos bairros das grandes cidades industriais, durante o século XIX, como Manchester, Nova Hampshire, Londres, Paris, Berlim e Nova Iorque. (SOARES, 1973, p. 29)

Diversos países, além da França, passaram por situações que exigiram a

adoção de novas propostas habitacionais, sendo certo que as duas grandes guerras

foram as responsáveis pela destruição de milhares de edifícios e residências em

toda Europa, bem como em outros lugares envolvidos naqueles conflitos.

Soares (1973) apresenta algumas pesquisas que foram realizadas após a

segunda guerra mundial demonstrando que no ano de 1939 a França possuía,

aproximadamente, 10 (dez) milhões de habitações sadias, número que foi reduzido

para 8 (oito) milhões, no ano de 1947; situação semelhante fora observada em 16

países da Europa, no ano de 1948, onde restou confirmado que um quinto de todas

as casas da Grécia e da Polônia haviam sido destruídas, bem como, meio milhão de

casas na Grã-Bretanha foram inutilizadas após aquele período bélico.

Além destes acontecimentos, outros lugares sofrem com a questão

habitacional pela aglomeração de imenso número de habitantes nos centros

urbanos, pelo encarecimento do solo e as determinações do Poder Público, no

sentido de utilização do mesmo de forma sustentável, sendo este o caso das

metrópoles de países como a Índia, China, Japão, EUA e Brasil.

No caso do Brasil, onde as grandes cidades têm relevância na produção da

riqueza nacional,

[...] tem havido uma crescente mobilização social em torno de matérias urbanas especialmente nas duas últimas décadas, o que provocou mudanças na ordem política mais ampla, bem como algumas tentativas interessantes, embora ainda incipientes, de gestão democrática de algumas cidades. Dois outros fenômenos também têm sido identificados nas duas últimas décadas, quais sejam, o aumento generalizado da

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pobreza urbana – alguns dados estimam em 15 milhões o número de pessoas vivendo em condições de pobreza absoluta nas cidades brasileiras – e o aumento da violência urbana nas maiores cidades, a qual, em alguns casos, parece estar ligada a uma organização crescente de atividades de trafico de drogas. (FERNANDES, 1998, p. 4)

Na concepção de Fernandes (1998), a atuação estatal no processo de

urbanização é importante na resolução do acirramento verificado entre a “cidade

legal” e a “cidade ilegal” já que, no tocante ao acesso ao solo urbano e à edificação

da moradia, grande parte das edificações é irregular e, por outro lado, a legislação

urbanística que restou aprovada no Brasil, a partir dos anos 30 tem como paradigma

o princípio da função social da propriedade, o qual é considerado por muitos, como

elemento interno do direito de propriedade imobiliária urbana, como restará

abordado mais adiante.

Dentro dessa realidade urbana e plural, em que se verifica a convivência de

habitações futuristas e milionárias com outras, cuja arquitetura sequer podem ser

comparadas àquelas construídas no período medieval, encontra-se o condomínio

edilício com suas características peculiares, onde deve reinar absoluta a

democracia5 na condução da convivência da comunidade de co-proprietários em seu

âmbito privado, mostrando-se necessária a análise daquelas características para

que se compreenda o objeto de pesquisa do presente trabalho.

2.2.1.1 O condomínio edilício na legislação naciona l: do Decreto 5.481/28 ao

Código Civil de 2002

Não obstante ter sido verificada a presença da divisão da propriedade em

pavimentos horizontais antes mesmo do período no qual se estendeu o Império

Romano e o sistema jurídico por ele elaborado, pode-se considerar que a

sistematização do instituto que hoje – no Brasil – denomina-se condomínio edilício é

recente inclusive nos países europeus, pois, noticia-se que o Código Civil francês de

5 Como exemplo dessa característica democrática existente nos condomínios edilícios, quanto à sua regulamentação interna, Venosa (2004) noticia que é comum nos Estados Unidos a constituição de adult homes, ou seja, edificações projetadas exclusivamente para a habitação de pessoas com idade mais avançada, ou mesmo, outros edifícios onde a destinação exclusiva é para jovens casais com filhos, exigindo cada qual, uma regulamentação interna diferenciada.

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1804 teria sido o primeiro instrumento legislativo codificado a disciplinar as suas

bases6.

A influência direta da legislação portuguesa no Brasil desapareceu com a

promulgação do CCB/16, pois, até esta data, ainda vigoravam por aqui, as

Ordenações Filipinas trazendo, segundo Magalhães (1966) em seu § 34 do Título 68

do 1º Livro, a possibilidade de uma casa pertencer a dois senhores – um do sótão e

o outro do sobrado – não podendo o proprietário do sobrado obstruir o uso do

proprietário do sótão mediante a realização de qualquer construção, principalmente,

abertura de janela, provocando decisões judiciais que reconheceram a divisão de

imóvel em detrimento da venda judicial para a distribuição do preço7.

Contudo, o Legislador de 1916 deixou de regulamentar o assunto,

estabelecendo na norma do artigo 52 daquele diploma legal8 a impossibilidade de

venda de porção certa, definida e dividida do edifício, uma vez que a unidade fruto

daquela divisão não formaria um “todo perfeito” independente.

Atribui-se, então, ao Decreto-Lei 5.481, de 25 de junho de 1928, a

responsabilidade pela introdução e regulamentação do instituto do condomínio por

apartamentos no Brasil, pois, repita-se, antes dessa data, não havia outro

instrumento normativo que o fizesse.

Brandão (1955) observa que o projeto de n.º 649, que veio a se tornar o

Decreto-Lei 5.481/28, não fora de iniciativa do Congresso Nacional, e sim de um

grupo de advogados do Rio de Janeiro, que submeteram-no à análise da Comissão

de Constituição e Justiça, tendo o mesmo, sido aprovado e levado a plenário, sem

despertar o interesse dos parlamentares nas primeiras discussões, até que dois

6 Magalhães (1966) estabelece que, anteriormente à codificação francesa de 1804, recorria-se naquele país a um tipo de contrato muito semelhante à enfiteuse denominado albergement onde o albargateur ficara com o domínio direito do imóvel, e o albergataire ficava com o domínio útil do mesmo imóvel, sendo que a lei de 17 de julho de 1793 consolidou o domínio útil e o direto em uma só pessoa. O mesmo autor indicou vários paises e as datas nas quais foram verificadas as legislações que passaram a tratar do assunto, quais sejam: Itália com o Código Civil de 1866; Espanha com o Código Civil de 1899; na Alemanha, o § 1.104 do Código Civil de 1900 (BGB) proíbe a divisão horizontal; Bélgica com a lei de 8 de julho de 1924; Bulgária com a lei de 4 de fevereiro de 1933; Chile com a lei de 11 de agosto de 1937; dentre outros. 7 Philadelpho Azevedo citado por Magalhães (1966) relata o encontro de dois arestos da Relação de Minas Gerais que trataram de homologar a divisão de uma casa em andares, apresentando fundamentação do Desembargador Hermenegildo de Barros, no sentido de que o artigo 632 do Código Civil não se referia à divisão incômoda, mas só à indivisibilidade. 8 Art. 52. Coisas divisíveis são as que se podem partir em porções reais e distintas, formando cada qual um todo perfeito. (BRASIL, 1916)

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deputados, João Mangabeira e Francisco Morato9 enfrentaram-se, doutrinariamente

na defesa e ataque, respectivamente, do projeto, bem como, da viabilidade de sua

proposta.

A partir de então o ordenamento jurídico pátrio passou a permitir que

edificações, com mais de 5 (cinco) andares, construídos com cimento armado,

divididos em unidades isoladas entre si, com saída autônoma para a via pública e

constituído de, no mínimo, três peças cada, fossem considerados imóveis

autônomos com registro independente no Cartório de Registro de Imóveis.

Por conseqüência, todos os atos inerentes ao domínio, passaram a ser

permitidos aos proprietários sobre suas unidades autônomas, tais como a

constituição de direitos reais de gozo ou de garantia, o empréstimo, a doação, a

locação dentre outros, além disso, o Decreto 5.481/28 tornou indivisível a construção

sobre o solo, estabelecendo a responsabilidade individual de cada proprietário sobre

a sua unidade, e ao administrador pelo gerenciamento das coisas e economias

comuns dos co-proprietários, estabelecendo

[...] diversas proibições de caráter geral, como a de mudar a forma da fachada e a cor das paredes externas; usar o apartamento para atividades incômodas ou nocivas à saúde ou ameaçando a segurança e a higiene e, também, embaraçar o uso das partes comuns. Para as transgressões foram fixadas multas em favor da municipalidade e de quem intentasse a ação, já que o condomínio não existia, ainda, com a concepção jurídica atual, com capacidade de postulação em juízo (AVVAD, 2006, p. 132)

No intervalo de tempo verificado entre 1928 e 1964, a jurisprudência cuidou

de resolver diversos problemas relativos aos condomínios edilícios que não tinham

9 O debate realizado entre João Mangabeira e Francisco Morato, a respeito da viabilidade ou não da promulgação de legislação especifica para tratar daquela nova forma de propriedade, foi relatado por Brandão (1955) que indicou os principais argumentos de cada um dos deputados. Francisco Morato, contrário aos termos do projeto, apresentava os seguintes pontos desfavoráveis: 1) inaplicabilidade da comunhão pró-diviso ao instituto trazido pelo projeto; 2) projeto desnecessário, já que a venda parcelada de andares e apartamentos de edifícios poderia ser feita pelas regras do Código Civil brasileiro de 1916, sendo essa possibilidade um desdobramento do domínio; 3) o Código Civil brasileiro de 1916 não trata do objeto do projeto, sendo o seu silêncio, um sinal de hostilidade ao instituto proposto; 4) critica a aplicação da norma especial apenas às edificações com mais de 5 (cinco) andares e construídas com determinado material, portanto, somente estes imóveis e os que possuíssem mais de 5 (cinco) andares poderiam ser vendidos separadamente. João Mangabeira, favorável aos termos do projeto, defende os seguintes pontos: 1) o projeto é necessário para que se possa negociar andares separados de edifícios, uma vez que o artigo 52 do Código Civil brasileiro de 1916, exige que a coisa partida seja certa e definida e que se constitua como um todo; 2) à época da proposta, não haveria tabelião que lavrasse escritura de compra e venda de andar de imóvel, nos termo propostos por Francisco Morato; 3) a legislação brasileira não cogita da comunhão pró-diviso, portanto, fez-se necessário alterar a lei para que se possibilite a venda por apartamentos, por andares, oferecendo aos mais necessitados a oportunidade de aquisição da moradia própria.

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condições de serem solucionados pelo decreto então em vigor, e nem pelas normas

gerais do CCB/16 reguladoras do condomínio, sendo que o artigo 1º do Decreto

5.481/28 sofreu duas alterações, a primeira pelo Decreto-Lei 5.234, de 8 de fevereiro

de 1943, que estendeu a eficácia daquela legislação específica para as edificações

de no mínimo 3 (três) andares, e a segunda pela Lei 285, de 05 de junho de 1948,

incluindo os edifícios de, no mínimo, 2 (dois) andares.

Diante desse quadro desarticulado entre legislação e realidade fática, quanto

ao tratamento das necessidades sociais frente aos inúmeros problemas surgidos em

face do exercício de direitos, sobre o que se denominou de condomínio em edifícios,

tornou-se necessária a elaboração de um instrumento normativo mais específico

com o objetivo de enraizar as suas características em nosso ordenamento jurídico.

O advento da Lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964, cujo projeto fora

assinado por Caio Mário da Silva Pereira, trouxe consigo a incumbência supra

mencionada e o fez regulando não só a matéria relativa aos condomínios em

edificações (nomenclatura utilizada naquele instrumento normativo), como também,

aquela que diz respeito às Incorporações Imobiliárias, apresentando várias

inovações em comparação ao Decreto 5.481/2810

Nesses termos, e provocando a ab-rogação expressa11 do Decreto 5.481/28,

a Lei 4.591/64 permaneceu por quase quarenta anos – sofrendo algumas alterações

– como o único instrumento legislativo pátrio a tratar do que restou denominado em

suas letras de condomínio em edificações, sendo certo que esta não era a única

matéria de que tratava aquela lei, pois, também continha normas reguladoras da

atividade de Incorporações Imobiliárias, as quais não foram revogadas pelo CCB/02.

Venosa (2004) analisa o tratamento simultâneo dado pela legislação de 1964,

às disciplinas do então condomínio em edificações e das incorporações imobiliárias,

informando que, à época, diversos empreendimentos imobiliários eram iniciados e

10 As inovações podem ser assim elencadas: a) a possibilidade de constituição desse condomínio especial em edificações de um único pavimento; b) incutiu a natureza propter rem às obrigações ordinárias e extraordinárias para a manutenção da edificação; c) estabelecimento da obrigatoriedade para a elaboração da convenção de condomínio e do regimento interno através de quorum específico, qual seja, 2/3 das frações ideais do edifício. A interpretação sistemática da lei juntamente com a Lei 6.015/73 (Registros Públicos), possibilita a verificação da obrigatoriedade do registro de ambos os instrumentos; d) possibilidade de constituição do conselho consultivo e do fundo de reserva; e) síndico como representante dos co-proprietários; f) obrigatoriedade de contratação de seguro da edificação; dentre outras. 11 Art. 70. A presente lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogados o Decreto n.º 5.481, de 25 de junho de 1928 e quaisquer disposições em contrário. (BRASIL, 1964)

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que por diversos motivos não chegavam ao seu final, e neste quadro, a ausência de

uma legislação específica para regulamentar a indústria da construção civil

possibilitou a ação de diversos profissionais de índole duvidosa, que acabaram por

prejudicar inúmeras pessoas que buscavam a realização do sonho da casa própria,

com a aquisição de unidades autônomas em edifícios.

O tratamento conjunto oferecido pelo mesmo diploma legal aqueles dois

institutos intimamente vinculados oferecia maior proteção ao futuro condômino,

principalmente com o advento da Lei 10.931/2004 que criou o instituto do patrimônio

de afetação nas Incorporações Imobiliárias, incluindo mais obrigações àquelas que

já constavam da Lei 4.591/64 para os empreendedores do ramo da construção civil.

O transcurso do tempo exigia cada vez mais do Poder Legislativo pátrio a

realização de uma reforma geral na legislação civil então em vigor, tendo em vista

que o paradigma sob o qual o CCB/16 se estruturou, já havia sido superado por

outro que se formou, principalmente, na Europa após a segunda guerra mundial e

que chegara ao Brasil após a década de setenta.

Então, iniciou-se uma discussão doutrinária a respeito de quais medidas

deveriam ser tomadas para que o Código Civil brasileiro voltasse a refletir e tratar

dos problemas que a sociedade enfrentava, naquela segunda metade do século XX,

sendo apontado por Reale (1986) o surgimento de quatro posições ideológicas,

quais sejam: a dos tradicionalistas, que defendiam a permanência do Código Civil

nos moldes traçados por Clóvis Beviláqua; a dos reformistas, que pretendiam a

realização de retoques no texto do código, por meio de leis esparsas; os

evolucionistas, que propunham uma reforma moderada e pontual no texto

codificado; e os revolucionários, que pregavam a reforma completa do Código Civil.

Assim, no dia 10 de junho de 1975 – com publicação de 16/06/75 – fora

submetido ao Congresso Nacional, pelo então Ministro da Justiça Armando Falcão,

o projeto de lei para a instituição do novo Código Civil, cuja autoria do anteprojeto foi

assinada por Miguel Reale (como Supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora

do Código Civil); José Carlos Moreira Alves (elaborador da Parte Geral); Agostinho

de Arruda Alvim (Direito das Obrigações); Sylvio Marcondes (Atividade Negocial);

Ebert Viana Chamoun (Direito das Coisas), Clóvis do Couto e Silva (Direito de

Família) e Torquato Castro (Direito das Sucessões).

O projeto supra mencionado fora discutido e aprovado em ambas as casas do

Congresso Nacional, tornando-se a Lei Federal 10.406, de 10 de janeiro de 2002,

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que entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2003, trazendo no Livro III (Direito das

Coisas), Título III (Da propriedade), Capítulo VII (Do condomínio edilício) artigos

1.331 a 1.358, grande parte da matéria que, anteriormente, era tratada pela Lei

4.591/64, sob a denominação de condomínio em edifícios.

A partir dessa data, deu-se início outra discussão sobre a força revogatória,

que o então novo Código Civil exerceu sobre o Título I da Lei 4.591/64, pois, ao teor

da norma do artigo 2º, §§ 1º e 2º da Lei de Introdução ao Código Civil12, tem-se que

duas normas podiam regular o mesmo assunto em um mesmo período de tempo,

desde que os seus conteúdos não entrassem em conflito, e que a mais recente

funcionasse como repositório legislativo geral para a matéria.

Pois bem, o CCB/02 passou a regular a disciplina por ele denominada

Condomínio Edilício e não apresentou revogação expressa à lei anterior que cuidava

do assunto, provocando a dúvida quanto a natureza das normas colocadas em vigor,

a partir de 11 de janeiro de 2003 (caráter geral ou especial), para que fosse

analisado o âmbito da revogação, promovida pela novel lei.

Tornou-se necessário verificar se os artigos 1.331 a 1.358 regulavam

inteiramente a matéria sobre o instituto do Condomínio Edilício, provocando a

revogação das normas presentes nos artigos 1º a 27, da Lei Federal 4.591/64, ou se

aqueles artigos apresentavam disposições gerais de forma a complementar aquelas

que tratavam do assunto há quase quarenta anos.

Junqueira (2008) possui entendimento firmado no sentido de que as normas

do CCB/02 tratam, claramente, de todo o assunto relativo ao condomínio edilício,

tendo sido revogado o Título I da Lei 4.591/64, inclusive pelo que determina a norma

do artigo 7º, IV, da Lei Complementar 9513, e assim sendo, da lei derrogada, apenas

os artigos referentes às incorporações é que ainda estão em vigor.

12 Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior. (BRASIL, 1942) 13 Art. 7o O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios: [...] IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto quando a subseqüente se destine a complementar lei considerada básica, vinculando-se a esta por remissão expressa. (BRASIL, 1998)

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Apresentando entendimento divergente, Fiuza (2007) defende que de todos

os artigos da Lei 4.591/64, que não encontraram correlatos no texto codificado de

2002, e que tratam do condomínio em edificação, quais sejam, arts. 5º; 8º; 9º § 4º e

11, apenas o artigo 9º § 4º, por força do artigo 1.332 do CCB/02.

Porém, desde a entrada em vigor da Lei Complementar n.° 95, de 26 de

fevereiro de 1998, que trata das questões relativas à elaboração, redação, alteração

e consolidação das leis, a vigência de qualquer texto de lei deve ser analisada

mediante a consulta dos seus dispositivos, juntamente, com os da Lei de Introdução

ao Código Civil.

O artigo 7°, inc. IV da LC 95/98 veda, expressament e, a coexistência no

ordenamento jurídico nacional de dois instrumentos normativos que regulem a

mesma matéria, excetuando os casos em que a lei subseqüente venha

complementar a lei considerada básica sobre o assunto e que aquela faça remissão

expressa ao texto de lei considerado básico.

Portanto, para que se pudesse considerar em vigor as normas do Título I da

Lei 4.591/64, seria necessário que essa lei fosse considerada lei básica sobre o

condomínio edilício, e conseqüentemente, que as normas do CCB/02 fossem

complementares àquela, devendo essa vinculação ocorrer, expressamente, pelo

texto codificado, o que efetivamente não aconteceu.

Ocorre que não se pode admitir que o CCB/02 tenha regulado a matéria

pertinente ao condomínio edilício de maneira complementar às normas da Lei

4.591/64, mesmo que em comparação a estas, suas normas tratem do tema de

forma genérica, característica observada em todo o corpo do texto codificado com a

adoção, pela comissão responsável pelo Anteprojeto do Código Civil, das cláusulas

gerais.

De forma que o Código surge com a idéia de deixar algo a cuidado da doutrina e da jurisprudência, as quais virão a dar conteúdo vivo às normas, na sua expressão formal, para que se atinja a concreção jurídica, isto é, a correspondência adequada dos fatos às normas segundo o valor que se quer realizar. (REALE, 1986, p. 9)

Não se trata de norma complementar, pois, o texto codificado abrange de

forma exaustiva a matéria relativa ao condomínio edilício realizando, inclusive, a

modificação de sua nomenclatura, que na Lei 4.591/64 era Condomínio em

Edificações.

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Pode tal tratamento não ter ocorrido nos mesmos termos e nem de forma tão

detalhada como feito pela Lei 4.591/64, mas, não há como negar que a matéria fora

suficientemente contemplada pelo texto do CCB/0214, e por isso, em virtude do

tratamento dispensado à disciplina do condomínio edilício, sem poder considerar

aquela como lei base sobre o assunto, impossibilitada está a coexistência no

ordenamento jurídico pátrio daqueles instrumentos normativos, ao teor do artigo 7°

IV da LC 95/98, e neste caso, retoma-se a análise do art. 2° § 1º da LICC para a

defesa da revogação do Título I, da Lei 4.591/64, pois:

Art.2°. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra modifique ou revogue. § 1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. (BRASIL, 1942)

E nenhum óbice existe no fato do CCB/02 tratar, exaustivamente, do tema,

haja vista o que estabelece a norma do artigo 7° I, da LC 95/98 informando que

exceto as codificações, cada lei tratará de um único objeto.

Além disso, a exposição de motivos do anteprojeto do Código Civil de 2002

trouxe na parte relativa às diretrizes fundamentais utilizadas para a sua elaboração,

a menção de alguns princípios norteadores do texto definitivo, dentre eles o de

“incluir na sistemática do Código, com as revisões indispensáveis, a matéria contida

em leis especiais, promulgadas após 1916.” (REALE, 1986, p. 76)

Pelo exposto, não há que se falar em vigência do Título I da Lei 4.591/64,

após o dia 11 de janeiro de 2003, contudo, mister informar que se encontra em

tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei de Consolidação n.º

4.343/2008, de autoria do Deputado Federal Sérgio Barradas Carneiro (PT - BA)

14 Os temas relativos ao condomínio edilício e que foram tratados pelo CCB/02 são: a) da instituição e extinção do condomínio edilício; dos órgãos administrativos e de seus componentes, além de suas respectivas funções; b) da relação existente entre partes comuns e partes exclusivas; c) da fração ideal, seu estabelecimento e as implicações de sua definição; d) da convenção de condomínio e do regimento interno, seu conteúdo e forma de estabelecimento de suas regras; e) dos diversos quoruns exigidos para a decisão dos mais diferentes assuntos; f) direitos e deveres dos condôminos e do sindico; g) as punições atribuídas aos condôminos que descumprem as regras da convenção e do regimento interno; h) da realização de obras na edificação; i) do custeio das despesas ordinárias e extraordinárias, além de ter garantido o exercício da autonomia privada por parte dos condôminos que poderão estabelecer regras para fazerem parte da convenção e do regimento interno e que digam respeito à realidade vivida em cada edificação, sem que as mesmas estejam presentes no texto codificado.

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que, objetivando cumprir as normas relativas à Consolidação das Leis15 estabelecida

pela LC 95/98, busca transportar – sem alteração de conteúdo – para o texto do

Código Civil brasileiro de 2002, artigos que encontram-se esparsos pelo

ordenamento jurídico, e que tratam do mesmo assunto.

No que diz respeito ao condomínio edilício, o projeto prevê a inclusão de

parágrafos nos artigos 1.340, 1.347 e 1.350 e da “seção I – A “ ao texto do Código

Civil , sendo certo que todos os artigos e parágrafos presentes no projeto, possuem

a mesma redação na Lei 4.591/64 e que, segundo o elaborador do projeto, ainda

estão em vigor16, já que a norma do artigo 14, inc. I da LC 95/98 estabelece que:

Art. 14. Para a consolidação de que trata o art. 13 serão observados os seguintes procedimentos: I – O Poder Executivo ou o Poder Legislativo proced erá ao levantamento da legislação federal em vigor e formulará projeto de lei de consolidação de normas que tratem da mesma matéria ou de assuntos a ela vinculados, com a indicação precisa dos diplomas legais expressa ou implicitamente revogados; (BRASIL, 1998 - grifo nosso)

Verifica-se que ainda não restou superada a discussão a respeito da

revogação das normas do Título I da Lei 4.591/64, apesar das determinações

legislativas apresentadas acima, sendo desnecessário todo este esforço legislativo,

pois, as normas que não foram, expressamente, previstas no texto codificado

podem, dentro dos limites impostos pelo mesmo código, ser objeto de discussão

15 Art. 13. As leis federais serão reunidas em codificações e consolidações, integradas por volumes contendo matérias conexas ou afins, constituindo em seu todo a Consolidação da Legislação Federal. § 1o A consolidação consistirá na integração de todas as leis pertinentes a determinada matéria num único diploma legal, revogando-se formalmente as leis incorporadas à consolidação, sem modificação do alcance nem interrupção da força normativa dos dispositivos consolidados. [...] § 2o Preservando-se o conteúdo normativo original dos dispositivos consolidados, poderão ser feitas as seguintes alterações nos projetos de lei de consolidação: [...] XI – declaração expressa de revogação de dispositivos implicitamente revogados por leis posteriores. Art. 14. [...] § 3o Observado o disposto no inciso II do caput, será também admitido projeto de lei de consolidação destinado exclusivamente à: I – declaração de revogação de leis e dispositivos implicitamente revogados ou cuja eficácia ou validade encontre-se completamente prejudicada; II – inclusão de dispositivos ou diplomas esparsos em leis preexistentes, revogando-se as disposições assim consolidadas nos mesmos termos do § 1o do art. 13. (BRASIL, 1998) 16 Pela análise do Projeto de Lei de Consolidação n.º 4.343/2008, juntamente com a Lei 4.591/64, percebe-se que as normas que deverão ser incluídas ao Código Civil brasileiro de 2002, caso o projeto seja aprovado, são aquelas relativas aos artigos 12, § 5º; 13 caput e par. Único; 14 § 1º, § 2º, § 3º; 15 § 1º ao § 8º; 17 § 1º ao § 3º; 18; 22 § 4º; 24 § 1º ao § 4º todos da Lei 4.591/64.

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entre os condôminos para se tornarem regras específicas das convenções de

condomínio.

Não obstante a essa questão, diversas foram as inovações trazidas pelo

novel Código Civil, quando incorporou ao seu conteúdo a matéria relacionada ao

condomínio edilício, como por exemplo, a necessidade de convocação de todos os

condôminos para as assembléias; a aplicação aos possuidores das normas

codificadas a respeito do condomínio edilício; a possibilidade do síndico delegar

parte de suas funções a terceiros; a penalização da conduta anti-social e da conduta

abusiva; possibilidade de acréscimo de outras partes ao edifício já construído;

integralização da área de terraço na propriedade exclusiva do condômino entre

outros.

Lado outro, apontam-se omissões que poderiam fazer parte daquela

codificação, como por exemplo, regras específicas para os condomínios atípicos de

casas e edifícios (de que tratava o artigo 8º da lei 4.591/6417) e a questão da

exclusão do condômino nocivo ou de comportamento reiteradamente anti-social.

Por fim, a Lei Federal 10.931, de 02 de agosto de 2004, modificou o texto dos

artigos 1.331, 1.336 e 1.351 do CCB/02 tratando, respectivamente, da forma de

identificação da fração ideal das unidades autônomas, de como a fração ideal de

cada unidade autônoma interferirá no cálculo do valor para a sua contribuição

mensal para o pagamento das despesas ordinárias do edifício e do quorum exigido

para a alteração da destinação atribuída às unidades autônomas, mostrando que o

instituto, ainda, encontra-se em processo de afirmação na doutrina e legislação

pátrias.

17 Art. 8º Quando, em terreno onde não houver edificação, o proprietário, o promitente comprador, o cessionário dêste ou o promitente cessionário sôbre êle desejar erigir mais de uma edificação, observar-se-á também o seguinte: a) em relação às unidades autônomas que se constituírem em casas térreas ou assobradadas, será discriminada a parte do terreno ocupada pela edificação e também aquela eventualmente reservada como de utilização exclusiva dessas casas, como jardim e quintal, bem assim a fração ideal do todo do terreno e de partes comuns, que corresponderá às unidades; b) em relação às unidades autônomas que constituírem edifícios de dois ou mais pavimentos, será discriminada a parte do terreno ocupada pela edificação, aquela que eventualmente fôr reservada como de utilização exclusiva, correspondente às unidades do edifício, e ainda a fração ideal do todo do terreno e de partes comuns, que corresponderá a cada uma das unidades; c) serão discriminadas as partes do total do terreno que poderão ser utilizadas em comum pelos titulares de direito sôbre os vários tipos de unidades autônomas; d) serão discriminadas as áreas que se constituírem em passagem comum para as vias públicas ou para as unidades entre si. (BRASIL, 1964)

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2.2.2 Condomínio Edilício: a atual denominação

O instituto objeto da presente pesquisa recebeu do CCB/02 a denominação

de condomínio edilício, não obstante, as inúmeras críticas realizadas pela doutrina

que se dedica ao seu estudo, apresentando motivos históricos e etimológicos para

que a denominação se desse de outra forma.

Neste sentido, podem ser encontrados os seguintes nomes: Condomínio por

andares e apartamentos, propriedade autônoma de apartamentos, propriedade em

planos horizontais, condomínio pró-diviso, condomínio parcial ou condomínio

especial, condomínio moderno ou condomínio “sui generis”, condomínio relativo,

condomínio em edifícios, condomínio por unidades independentes e condomínio

edilício.

Autor do anteprojeto da Lei 4.591/64, que por muitos anos regulou o instituto

ora em comento, Pereira (1999) entende que o termo mais adequado seria

propriedade por planos horizontais, não obstante as objeções a ela dirigidas haja

vista que aquela forma de condomínio não se verifica, apenas, em edifícios com

planos horizontais superpostos.

César Fiuza tece críticas ao termo Condomínio Edilício, assim estabelecendo:

O Código Civil usa a expressão condomínio edilício. Se o termo condomínio por unidades independentes pode soar inadequado, muito mais o será o termo condomínio edilício. Edilício é adjetivo que diz respeito a edificação; do latim aedes, que significa templo, casa. Da palavra aedes deriva a palavra aedil, nome dado ao magistrado romano responsável pelos templos, pelo policiamento da cidade etc. em português, aedil originou o termo edil, sinônimo de vereador. De todo modo, como se viu, pode haver condomínio por unidades independentes também em loteamentos fechados de casas, ou mesmo de terrenos vagos, caso em que seria impróprio se falar em condomínio edilício. Também pode ocorrer a hipótese de duas ou mais pessoas serem condôminas de uma única casa. Aqui não haveria condomínio por unidades independentes, embora seu objeto seja uma edificação (aedes). Por tudo isso, é extremamente inadequado o termo condomínio edilício. O que caracteriza essa espécie de condomínio não é o fato de ter como objeto alguma edificação, mas de conter unidades autônomas e partes comuns. (FIUZA, 2007, p. 827)

Em defesa do termo Condomínio Edilício, Miguel Reale, quando da Exposição

de Motivos do Anteprojeto do Código Civil, em 16 de janeiro de 1975, justificou a

escolha da nomenclatura do instituto com estas palavras:

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Fundamentais foram também as alterações introduzidas no instituto que no Projeto recebeu o nome de “condomínio edilício”. Este termo mereceu reparos, apodado que foi de “barbarismo inútil”, quando, na realidade, vem de puríssima fonte latina, e é o que melhor corresponde à natureza do instituto, mal caracterizado pelas expressões “condomínio horizontal”, “condomínio especial”, ou “condomínio em edifícios”. Na realidade, é um condomínio que se constitui, objetivamente, como re sultado do ato de edificação, sendo, por tais motivos, denominado “ed ilício”. Esta palavra vem de aedilici (um), que não se refere apenas ao edil, consoante foi alegado, mas, como ensina o Mestre F.R. Santos Saraiva, também às suas atribuições, dentre as quais sobreleva a de fiscalizar as construções públicas e particulares. A doutrina tem salientado que a disciplina dessa espécie de condomínio surgiu, de início, vinculada à pessoa dos condôminos (concepção subjetiva), dando-se ênfase ao que há em comum no edifício, para depois, evoluir no sentido de uma concepção objetiva, na qual prevalece o valor da unidade autônoma, em virtude da qual o condomínio se instaura, numa relação de meio e fim. Donde ser necessário distinguir, de maneira objetiva, entre os atos de instituição e os de constituição do condomínio, tal como se configura no Projeto. Para expressar essa nova realidade institucional é que se emprega o termo “condomínio edilício”, designação que se tornou de uso corrente na linguagem jurídica italiana, que, consoante lição de Rui Barbosa, é a que mais guarda relação com a nossa. Esta, como outras questões de linguagem, devem ser resolvidas em função das necessidades técnicas da Ciência Jurídica, e não apenas à luz de critérios puramente gramaticais. (REALE, 1986, p. 104-105 – grifo nosso)

Portanto, como forma de justificar a terminologia utilizada neste trabalho para

indicar o objeto pesquisado, utilizar-se-á o termo Condomínio Edilício tendo em vista

a escolha realizada pelo legislador pátrio no Código Civil brasileiro de 2002,

atualmente em vigor.

2.2.3 Natureza Jurídica

Por mais que a doutrina tenha se manifestado com as mais diversas opiniões

a respeito da natureza jurídica do condomínio edilício, por mais que a jurisprudência

reflita o entendimento das diversas instâncias do Judiciário nacional, verifica-se que

o tema ainda é discutido a cada novo texto monográfico ou artigo científico publicado

o que demonstra a necessidade de mencioná-lo nestas páginas.

Há na doutrina pátria certa conformidade frente ao posicionamento adotado

por Caio Mário da Silva Pereira, em virtude de seu vasto conhecimento sobre o tema

e por ter sido autor do anteprojeto que veio a se tornar a lei 4.591/64, que durante

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quase quarenta anos regulamentou o instituto do condomínio em edificações,

estando hoje em vigor, apenas, na parte relativa às incorporações imobiliárias.

Pereira (1999) ressalta que no edifício em que se observa a instituição da

propriedade horizontal, há coexistência e inseparabilidade entre dois tipos de

propriedade, quais sejam, a propriedade individual e a propriedade coletiva, sendo

que essa relação é pressuposto de existência do instituto, pois, naquele tipo de

edificação a propriedade individual só é viável na medida em que existam partes

comuns que permitam o seu acesso, por outro lado, a propriedade coletiva sobre as

partes comuns só existe em função daquela propriedade exclusiva.

Inserida nessa correlação, há questão controversa no sentido de se

determinar a natureza da relação entre as partes exclusivas e comuns do edifício, ou

seja, se estas são acessórias daquelas, e assim, Farias e Rosenvald (2008)

posicionam-se favoráveis ao reconhecimento do caráter acessório do terreno (parte

comum) em relação às unidades autônomas, sob o argumento de que no momento

da transmissão da parte exclusiva estar-se-ia transmitindo a fração ideal refletida no

terreno, e que nestas edificações a combinação existente entre os direitos de

propriedade individual e comum, não implica surgimento de direito real distinto do

direito de propriedade tradicional, havendo apenas inovação.

Campos Batalha citado por Gonçalves (1955, p. 17) critica o entendimento

que trata as partes comuns da edificação – telhado, escadas, corredores e etc. –

como acessórias das partes de propriedade exclusiva, ressaltando que o conjunto

do edifício constitui-se em um todo inseparável sem a possibilidade de se fazer tal

classificação, pois, considerando as partes comuns como acessórias – e

conseqüentemente as partes exclusivas como principais – aceitar-se-ia a existência

das partes exclusivas independentemente daquelas, o que efetivamente não se

concebe.

Como justamente observa NAVARRO AZPEITIA, “os proprietários de cada andar estão sujeitos a importantíssimas limitações da sua propriedade, pois embora tenham o direito de alienar e onerar o seu andar ou apartamento, este fica indissoluvelmente preso à compropriedade indivisível das partes comuns, a qual é o nexo forte e o elemento de maior importância jurídica do direito desses proprietários”. (GONÇALVES, 1955, p. 15)

Analisando o instituto pelos aspectos até aqui mencionados, é possível

afirmar que se trata de assunto desconhecido pela maioria dos sistemas jurídicos

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constituídos em épocas mais remotas, mormente, aquelas anteriores ao fenômeno

da urbanização e que se baseavam no direito romano.

Neste sentido, Simoncelli citado por Pereira (1999, p. 80) afirma que o

instituto da propriedade horizontal seria verdadeira propriedade superficiária, onde o

conjunto de propriedades edificadas sobre o solo teria proprietário diverso daquele

que usa, efetivamente, o imóvel.

Várias foram as tentativas para a explicação do instituto, como as de

Pulvirenti, Coviello e Chironi citados por Azevedo (1957, p. 128), que partem da

propriedade exclusiva, afirmando que as paredes mestras, o teto e o solo somente

se consideram propriedade comum se houver determinação expressa nesse sentido

no titulo de constituição, pois, na verdade, tais partes pertencem aos donos de cada

andar, aos do último andar e a do térreo, respectivamente.

Resquício romanístico pode ser percebido em Coviello, também citado por

Pereira (1999, p. 80), estabelecendo que a propriedade horizontal é forma de

servidão da unidade autônoma sobre o solo, onde o proprietário do andar inferior é

também, o proprietário do solo, sendo que tal entendimento sofre críticas por

inexistir dualidade de prédios – dominante e serviente – uma vez que a essência

daquela forma de propriedade é a titularidade simultânea que o proprietário da

unidade autônoma tem sobre esta e sobre o solo.

Hugo Hauler citado por Magalhães (1966, p. 12) utiliza a teoria das

universalidades para analisar o instituto do condomínio e atesta que este é formado

por uma universalidade de fato constituída pelos imóveis que fazem parte da

edificação e que são colocados para a comunhão dos co-proprietários, e por uma

universalidade de direito, formada pelos direitos patrimoniais de cada um dos

condôminos tomados em conjunto, sendo que ambas as universalidades

confundem-se na mesma destinação.

Porém, para que tais universalidades permaneçam coesas, necessário que

internamente mantenham semelhante coesão, e assim, de acordo com Léon

Hennebicq citado por Magalhães (1966, p. 12) o que serve de vinculo para reunir os

elementos da universalidade de fato é a utilidade comum, que resulta da aquisição

do imóvel pertencente à realidade condominial; já o que serve de vínculo para a

universalidade de direito é a destinação voluntária comum. E como conseqüência

dessa formação

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Essa universalidade de fato e de direito criada pela comunhão de bens conduz em conseqüência à formação da personalidade de um patrimônio comum que, adquirindo vida autônoma, passa a existir independentemente das pessoas físicas que não são mais do que titulares da função destinada a realizar o fim patrimonial. E êsse princípio de utilidade e de destinação comum, essa idéia comum é que justamente está a indicar a noção institucional do condomínio. (MAGALHÃES, 1966, p. 13)

O tema relacionado à atribuição de personalidade jurídica ao conjunto de co-

proprietários reunidos em edifício, no qual se estabeleceu o instituto do condomínio

edilício, deve ser comentado neste ponto do trabalho, haja vista que há intensa

relação daquele tema com a natureza jurídica do condomínio em edificações18.

Franco (2005) defende a tese de que o condomínio edilício é verdadeira

pessoa jurídica, sob o argumento de que há perfeita distinção entre o condomínio

enquanto reunião de co-proprietários e a pessoa de cada um dos condôminos e

sendo assim, razoável seria o reconhecimento de sua personalidade jurídica para

18 Desde já, ressalta-se que o posicionamento adotado neste trabalho é favorável à atribuição de personalidade jurídica ao condomínio edilício, pois, atualmente não se pode imaginar que aquele instituto necessite de ter reconhecido apenas a sua capacidade para estar em juízo, sendo inúmeras as situações onde aquele contrata e, conseqüentemente, se obriga a cumprir o pactuado, sob pena de sofrer constrição no patrimônio comum dos condôminos até o adimplemento da obrigação. A personalidade, sobretudo aquela relacionada com as entidades formadas por conjunto de bens ou de pessoas naturais, é criação jurídica que viabiliza a realização de objetivos comuns através da possibilidade de participação em relações jurídicas, lembrando que aqueles objetivos podem estar vinculados a questões econômicas para obtenção de lucro ou a questões intersubjetivas para a viabilização de convivência em comum. Excetuando-se a capacidade processual prevista no artigo 12, inc. IX do Código de Processo Civil pátrio, a capacidade de direito do condomínio edilício ainda não é reconhecida expressamente pelo ordenamento jurídico, porém, faticamente aquela comunidade condominial se apresenta como sujeito de direito, possuindo, inclusive, registro no CNPJ – Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica – e recebendo manifestações favoráveis ao reconhecimento de sua personalidade. Afastar-se dessa perspectiva é fechar os olhos para uma realidade onde aquela comunidade de co-proprietários assume a posição de pessoa jurídica titular de direitos e obrigando-se ao cumprimento de deveres, como por exemplo frente à Receita Federal, ao INSS, ao Ministério do Trabalho, aos fornecedores de produtos e serviços, aos empregados, às instituições financeiras com relação à movimentação de conta bancária e todos demais custos gerados pela contratação, ao Poder Público Municipal quanto à obediência ao plano diretor e às normas de uso e ocupação do solo sob pena de sanções administrativas; além de se submeter às decisões provenientes do Poder Judiciário por condutas perpetradas por seus responsáveis, mandatários e funcionários. A necessidade de representação do condomínio edilício pelo síndico demonstra a responsabilidade atribuída àquela comunidade de co-proprietários em diversas situações, onde, os atos ou omissões de seus representantes, venham a causar danos a terceiros, bem como diante dos contratos firmados onde todos os condôminos ficam responsáveis pelo cumprimento de suas cláusulas, respondendo, principalmente, pelo inadimplemento da obrigação pactuada. Portanto, sendo a responsabilidade civil atribuída a uma pessoa que pode ser natural ou jurídica, e considerando que o condomínio edilício é destinatário de direitos e obrigações dos quais invariavelmente surgem responsabilidades para o grupo de condôminos, não há como deixar de reconhecer a personalidade jurídica daquele instituto respeitando as suas particularidades, ou seja, sem buscar a sua comparação com as espécies de pessoas jurídicas classicamente definidas (sociedades, associações e fundações). Corroborando com este entendimento, o Enunciado 246 aprovado na III Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal (CJF), estabeleceu que “deve ser reconhecida a personalidade jurídica ao condomínio edilício.” (CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, 2004, pág. 15)

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que, autorizado pela assembléia, possa realizar atos de aquisição e disposição

patrimonial.

Os autores que entendem ser possível e necessária a atribuição de

personalidade aos condomínios edilícios ressaltam que inúmeros problemas

enfrentados pelos condomínios poderiam ser solucionados com essa medida, e de

acordo com Memoli (2004), os grandes problemas identificados são com relação à

impossibilidade de aquisição de imóveis e de arrematação, pelo condomínio, de

unidade autônoma garantidora do pagamento de divida condominial discutida em

juízo.

Magalhães19 (1966) também comunga com a tese de que o condomínio

possui personalidade jurídica, tendo em vista que pela análise da teoria das

universalidades conclui-se que aquela comunhão de bens determinou uma unidade

subjetiva e outra unidade de direitos, criando a unidade de sujeito de direitos e

obrigações sobre o complexo patrimonial que forma a universalidade condominial,

dentro do qual um misto de divisão e de indivisão é formado em prol de uma

entidade social, cuja adesão está condicionada à vontade individual e ao patrimônio

formado pela união de condôminos.

Apesar da ênfase dos juristas supra mencionados em defender suas opiniões,

as mesmas encontraram oposição com a doutrina de Venosa (2004) que nega a

possibilidade de se atribuir natureza de pessoa jurídica àquela forma de condomínio,

em virtude da ausência de affectio societatis entre os condôminos; não obstante, a

norma do artigo 12, inc. IX do CPC atribui ao síndico a responsabilidade para

representar o condomínio em juízo, ativa e passivamente, assim, pode ser

reconhecida, neste caso, uma personificação anômala reconhecida pela legislação

processual, diferente da personalidade atribuída às pessoas jurídicas.

A tese da personificação anômala recebeu a adesão de Avvad (2006) para

quem a combinação existente entre propriedade individual e propriedade comum,

com a submissão do direito de propriedade às limitações normativas específicas da

lei e da convenção de condomínio, é a forma que melhor se adapta ao direito

brasileiro, pois, não se verifica personalidade jurídica própria no condomínio, e sim,

aquela capacidade processual exercida pelo seu representante.

19 Roberto Barcellos de Magalhães assim manifesta a respeito da natureza jurídica do condomínio edilício: “preferimos conceituá-lo como sistema misto, em que os condôminos são titulares de unidades autônomas e entre si distintas ao mesmo tempo que participam como proprietários pro indiviso das áreas ou partes comuns do edifício ou conjunto imobiliário.” (MAGALHÃES, 1966, p. 16)

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Pereira (1999) comenta a teoria recepcionada, principalmente, nos Estados

Unidos, onde se atribui natureza societária aos condomínios em edificações de

maneira que diversas pessoas se reúnem em associação cooperativa para a

construção do edifício – cooperative appartment plan of home ownership – e após o

término, cada associados paga uma quantia simbólica acrescida dos encargos de

manutenção e fiscais pelo uso da unidade autônoma.

O mesmo autor critica essa teoria, pois: a) não se verifica nos condomínios

associação entre os proprietários; b) as unidades autônomas não pertencem a uma

pessoa jurídica; c) não há falar em personalidade jurídica do condomínio “e se um

vinculo jurídico os congrega, não é, certamente, pessoal, mas real, representados os

direitos dos condôminos pelos atributos dominiais sobre a unidade e uma co-

propriedade indivisa, indissociável daqueles, sobre as coisas comuns.” (PEREIRA,

1999, p. 82)

Contrários à idéia de se identificar o condomínio em edificações com as

sociedades em geral, mas reconhecendo a existência de affectio societatis entre os

condôminos, transcendente aos seus interesses e retratada no ato constitutivo do

condomínio, há doutrina no sentido de que

Se se tratasse, por qualquer dédalo, da teoria de sociedade, não se haveria de pensar em assembléia condominial, mal se adaptando aquela ao tema em exame, eis que os condôminos é que formam, aparentemente, uma associação de sujeitos ligados para o fim de conservarem e gozarem da coisa comum, tendo-se à conta a vontade dos co-proprietários reunidos em assembléia para decidirem o que entenderem, e nunca a vontade de alguns a pretenderem sobrepor-se àquela vontade representativa, qual a vontade individual no ajuste das coisas. O vínculo, ademais, não é entre as pessoas, como sucede em sociedade específica, nem se trata do escopo especulativo com o fim de se repartirem os lucros oriundos do exercício em comum de qualquer atividade econômica. Para os mais argutos, a teoria moderna parte do conceito de que a quota não representa, ora, o objeto do direito pertinente a qualquer condômino. O direito deste ou destes investe sobre toda a coisa e não só a uma sua fração. (AUTUORI; PINTO; PINTO, 1978, p. 13)

Rezende (2005) indica duas teorias que, atualmente, buscam a definição da

natureza jurídica do condomínio por planos horizontais, denominando-as como

coletivista e individualista, sendo aquela defensora de uma propriedade coletiva

plena no edifício, ou seja, toda a propriedade do condomínio é coletiva, sem que se

aponte propriedade privada naquela realidade condominial; por outro lado, a teoria

individualista – adotada no Brasil – estabelece que o condomínio é forma de

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mitigação da propriedade autônoma e coletiva, onde se inclui o instituto da fração

ideal, sendo esta uma divisão fictícia do edifício em partes individualizadas para

cada condômino.

Dentre as diversas teorias tendentes à conceituar e sistematizar o instituto do

condomínio edilício, apresenta-se doutrina extrema de Virgilio Reffino Pereyra citado

por Pereira (1999, p. 83) que reconhece a existência do direito de propriedade sobre

os andares e/ou sobre os apartamentos, porém, desconhece o condomínio sobre a

totalidade do edifício, mesmo quando se observa a comunhão sobre as partes

comuns que são indispensáveis a todos os proprietários, para o uso da unidades

autônomas.

Em sentido oposto, Valverde y Valverde citados por Pereira (1999, p. 91)

analisam a propriedade horizontal e negam que nesta esteja presente uma

propriedade exclusiva em conjunto com a co-propriedade, ao argumento de que as

limitações realizadas no direito do proprietário descaracterizam-na de tal forma que

aquele não é permitido dissociar e/ou alterar a unidade autônoma da parte comum

indivisível, sem o consentimento dos demais consócios.

Tratando, portanto, da teoria que fora reconhecida pelo legislador pátrio tanto

no texto da lei 4.591/6420, quanto do CCB/0221, passa-se ao entendimento de

Pereira (1999) para quem a propriedade horizontal é mais do que a simples

coexistência entre as propriedades individual e comum, e mais do que a 20 Art. 1°. As edificações ou conjuntos de edificaçõe s, de um ou de mais pavimentos, construídos sob a forma de unidades isoladas entre si, destinadas a fins residenciais ou não-residenciais, poderão ser alienadas, no todo ou em parte, objetivamente considerados, e consistirá, cada unidade, propriedade autônoma, sujeita às limitações desta Lei. § 2°. A cada unidade caberá, como parte insepará vel, uma fração ideal do terreno e coisas comuns, expressa sob forma decimal ou ordinária. [...] Art. 3°. O terreno em que se levantam a edificaç ão ou o conjunto de edificações e suas instalações, bem como as fundações, paredes externas, o teto, as áreas internas de ventilação, e tudo o mais que sirva a qualquer dependência de uso comum dos proprietários ou titulares de direito à aquisição de unidades ou ocupantes, constituirão condomínio de todos, e serão insuscetíveis de divisão, ou de alienação destacada da respectiva unidade. (BRASIL, 1946) 21 Art. 1.331. Pode haver, em edificações, partes que são propriedades exclusivas, e partes que são propriedades comuns dos condôminos. § 1°. As partes suscetíveis de utilização indepe ndente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas, sobrelojas ou abrigos para veículos, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários. § 2°. O solo, a estrutura do prédio, o telhado, a rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e eletricidade, a calefação e refrigeração centrais, e as demais partes comuns, inclusive o acesso ao logradouro público, são utilizados em comum pelos condôminos, não podendo ser alienados separadamente, ou divididos. (BRASIL, 2002)

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justaposição de direitos e conceitos, é uma fusão22 de direitos para a criação de

conceito distinto, sem que haja relação de dependência entre eles – principal e

acessório – mas com necessária indivisibilidade, na qual o titular o é,

simultaneamente, de uma propriedade e de uma co-propriedade, e cujo objeto é

uma complexidade de bens e direitos, em que a unidade exclusiva e a comum se

inserem.

O mesmo autor conclui que não surtiu efeito a tentativa de se encontrar uma

definição para a propriedade horizontal, retomando cânones romanos de outras

formas de propriedade muito diferentes do que aquela que se apresenta sobre

edifícios de andares sobrepostos e divididos em apartamentos individualizados, pois,

trata-se de instituto novo, onde se fundem as propriedades individual e coletiva de

forma inseparável numa nova forma de propriedade com estrutura e características

próprias.

O fator teleológico é primordial na conceituação do instituto, na medida em

que a propriedade exclusiva sobre o apartamento provoca uma inversão no principio

romano superfícies solo cedit, além disso,

[...] a conjugação destes direitos, da propriedade exclusiva e da co-propriedade é tão intima que não se pode atribuir a uma ou a outra a preeminência, para afirmar qual a principal e qual a acessória. É por tudo isso que sustentamos a unidade jurídica da propriedade horizontal. Direito complexo, sem dúvida, mas constituindo uma só relação jurídica, da qual é sujeito ativo o dono do apartamento; [...] (PEREIRA, 1999, p. 94)

Não obstante a relevância da doutrina exposta, Aghiarian (2005) critica a

atribuição de natureza sui generis à propriedade horizontal, por se tratar de termo

nebuloso, e por conseqüência, apresenta a teoria associativa como a mais

adequada à natureza jurídica ora discutida, haja vista a possibilidade de

reconhecimento da personalidade extraordinária daquele instituto por substituição.

Após a verificação das diversas teorias que buscam uma definição da

natureza jurídica para o instituto, conclui-se que a dogmática civilista tradicional era

desprovida de supedâneo argumentativo suficiente para explicar as características

22 Para explicar a fusão de direitos que se observa no instituto da propriedade horizontal, Pereira (1999) faz alusão à diferença existente, na Química, entre a combinação e a mistura, sendo que naquela, elementos diversos se transmudam indissoluvelmente para a formação de um elemento – como no exemplo do aço, formado pelo ferro e manganês – sendo assim a propriedade horizontal, onde ao proprietário são garantidos diversos direitos sobre a unidade autônoma que não seriam passiveis de exercício, sem a concomitante existência do condomínio.

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da propriedade em edifícios divididos em unidades independentes, e que realmente,

tratava-se de instituto novo, até então, desconhecido em suas linhas principais, e

tendo sido criado em virtude das necessidades do contexto social, demandando

cânones específicos.

Não obstante ao que restou apresentado, até o momento, a respeito da

natureza jurídica do condomínio edilício, e da competência dos juristas responsáveis

pelo enriquecimento da discussão, percebe-se que todas as teorias deixam de

enfocar questão importante no cenário atual, qual seja, a necessidade da unidade

autônoma, dentro deste complexus, onde se fundem direitos de propriedade

exclusivo e comum, de cumprir a função social que lhe é exigida pelas normas dos

artigos 5°, inc. XXIII e 182, § 2º da CR/88, além d o artigo 39 da Lei 10.257/01

(Estatuto da Cidade) tendo em vista tratar-se de propriedade urbana.

A natureza jurídica do condomínio edilício deve ser estabelecida nos limites

da proposta realizada por Caio Mário da Silva Pereira, ou seja, sem ignorar as

peculiaridades do instituto que não encontrou outro semelhante que lhe pudesse

servir de inspiração, ao contrário, mostrou-se como criação humana a partir de suas

necessidades com a utilização adequada do solo citadino depois do numeroso

contingente populacional que migrou para os centros urbanos.

Sendo assim, o condomínio edilício é forma de propriedade constituída pela

fusão entre propriedade individual (exclusiva) e comum (coletiva), com o titular da

unidade autônoma sendo, simultaneamente, proprietário de ambas, não sendo

possível estabelecer uma relação de principal e acessório entre aquelas partes, haja

vista que naquele tipo de edificação, a propriedade individual só é viável na medida

em que existam partes comuns que permitam o seu acesso e a propriedade comum

só existe em função daquela propriedade exclusiva.

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Ainda, as propriedades individual e comum são inseparáveis23, sendo essa

característica o pressuposto de existência do condomínio edilício; essa espécie de

propriedade tem como objeto um conjunto de bens e direitos do qual participam a

unidade autônoma e as partes comuns, de forma que o exercício do direito de

propriedade no âmbito privado da edificação deve ser realizado democraticamente e

direcionado para o cumprimento da função social estabelecida pelo texto

constitucional e pela Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade) por ser a unidade

autônoma, propriedade urbana.

No contexto do paradigma do Estado democrático de direito, inaugurado no

Brasil com a Constituição de 1988, a função social ganhou maior visibilidade

tornando-se elemento estruturante da propriedade, não sendo diferente com a

propriedade exercida no âmbito privado do condomínio edilício, portanto, acredita-se

que a necessidade de concretização do principio da função social da propriedade

deva fazer parte da natureza jurídica do condomínio edilício, para torná-la mais

adequada aos princípios e valores daquele paradigma.

23 Existe julgado no STJ decidindo pela legalidade da utilização exclusiva por condômino em parte comum do condomínio edilício, nos termos do Enunciado 247 aprovado na III Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal (CJF), com o seguinte teor: ”Enunciado 247 – Art. 1.331: No condomínio edilício é possível a utilização exclusiva de área “comum” que pelas próprias características da edificação, não se preste ao “uso comum” dos demais condôminos” (CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, 2004, pág. 15). Assim decidiu a Quarta Turma do STJ, quando do julgamento do REsp 281290/RJ, tendo figurado como relator o Ministro Luiz Felipe Salomão, in verbis: CIVIL. CONDOMÍNIO. É POSSÍVEL A UTILIZAÇÃO, PELOS CONDÔMINOS, EM CARÁTER EXCLUSIVO, DE PARTE DE ÁREA COMUM, QUANDO AUTORIZADOS POR ASSEMBLÉIA GERAL, NOS TERMOS DO ART. 9º, § 2º, DA LEI N.º 4.591/64. A DECISÃO DO TRIBUNAL DE ORIGEM, BASEADA NO CONJUNTO PROBATÓRIO, NÃO PODE SER REEXAMINADA, EM FACE DA SÚMULA 7/STJ. 1. O Tribunal "a quo" decidiu questão com base nas provas dos autos, por isso a análise do recurso foge à mera interpretação da Lei de Condomínios, eis que a circunstância fática influi na solução do litígio. Incidência da Súmula 07/STJ. 2. O alcance da regra do art. 3º, da Lei n.º 4.591/64, que em sua parte final dispõe que as áreas de uso comum são insuscetíveis de utilização exclusiva por qualquer condômino", esbarra na determinação da própria lei de que a convenção de condomínio deve estabelecer o modo de usar as coisas e serviços comuns", art. 3º, § 3º, "c", da mencionada Lei. Obedecido o quorum prescrito no art. 9º, § 2º da Lei de Condomínio, não há falar em nulidade da convenção. 3. Consoante precedentes desta Casa: "o princípio da boa-fé objetiva tempera a regra do art. 3º da Lei n.º 4.591/64" e recomenda a manutenção das situações consolidadas há vários anos.(Resp. nº.s214680/SP e 356.821/RJ, dentre outros). Recurso especial não conhecido. (STJ, 2008)

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2.2.4 Algumas características do condomínio edilíci o

O subtítulo acima se justifica na medida em que a disposição dos

assuntos neste trabalho impediu que todas as características determinantes do

condomínio edilício fossem apresentadas de uma só vez, portanto, algumas já foram

tratadas acima, e outras – a Convenção de Condomínio, o Regimento Interno e as

Assembléias – serão analisadas em capítulo posterior.

2.2.4.1 A fração ideal

Pode-se dizer que a fração ideal é característica marcante do instituto do

condomínio edilício, até pela sua localização logo nos primeiros artigos24 dos dois

instrumentos normativos mais importantes que já estiveram em vigor no Brasil

relacionados com o tema ora pesquisado – a lei 4.591/6425 e o CCB/0226 – além de

sua presença obrigatória e definitiva no documento de instituição do condomínio

edilício.

Trata-se de uma expressão aritmética estabelecida em bases decimais ou

ordinárias relativa à parte do solo e de outras partes comuns da edificação que se

vinculam à unidade imobiliária de maneira inseparável, e cuja determinação

encontra-se no instrumento de instituição do condomínio.

Além disso, a fração ideal delimita (salvo disposição contrária na convenção

de condomínio) o quantum devido pelo condômino à comunidade de co-proprietários

em condomínio edilício, para o pagamento das despesas relativas à conservação e

24 Aghiarian (2005) informa que o texto original do art. 1.331, § 3º do Código Civil brasileiro dispunha que a fração ideal no solo e nas outras partes comuns seria proporcional ao valor da unidade imobiliária, calculado em relação ao conjunto da edificação. Porém, a lei 10.931/04 alterou o dispositivo conforme se verifica acima. 25 Art. 1°. [...] § 2°. A cada unidade caberá, como parte insepar ável, uma fração ideal do terreno e coisas comuns, expressa sob forma decimal ou ordinária. 26 Art. 1.331. [...] § 3°. A cada unidade imobiliária caberá, como p arte inseparável, uma fração ideal no solo e nas outras partes comuns, que será identificada em forma decimal ou ordinária no instrumento de instituição do condomínio.

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outros gastos da edificação, além de indicar o valor destinado a cada unidade

autônoma em caso de desapropriação ou de percepção de eventuais receitas.

Da fração ideal cuidou Roberto Barcellos de Magalhães, nestes termos:

A propriedade exclusiva sôbre cada unidade abrange, necessária e indissoluvelmente, a propriedade do solo sôbre que se assenta o edifício ou conjunto de edificações e sôbre as partes que servem ao uso comum de todos os condôminos. A primeira arrasta a última, como a cauda que acompanha o corpo de um ser. Apenas, não é visível nem determinável física ou materialmente; assume forma ideal ou simbólica através de uma fração aritmética decimal ou ordinária. Sendo simbólica ou ideal, é simplesmente representativa do poder de influenciar a administração ou gestão da coisa comum, o que implica também na maior ou menor participação nos seus encargos. (MAGALHÃES, 1966, p. 38)

A determinação da fração ideal traz consigo a indicação da parte

representativa do direito de cada condômino no terreno e nas áreas comuns da

edificação, ou seja, naquelas áreas pertencentes a todos os co-proprietários, que

por todos eles são utilizadas e que são indispensáveis para a existência do

condomínio edilício, já que proporcionam o uso das partes exclusivas.

Rezende (2005) tratou a fração ideal como elemento criado pela legislação e

pela doutrina para resolver o problema referente ao modo de identificação da

parcela destinada a cada condômino nas partes comuns, quais sejam, solo, telhado

e outros, já que aquele representa o direito de propriedade de cada condômino

sobre o todo edificado, por outro lado, a fração ideal, também, estabelece parâmetro

para rateio de despesas e de receitas em caso de desapropriação, indenizações e

repetição de indébito.

Ao considerar o condomínio como forma anômala do direito de propriedade,

Silva Filho (1999) ressalta que o exercício daquele direito em condomínio sofre

limitação pelos direitos dos outros condôminos que, também, fazem parte da

comunidade de co-proprietários, e que tal limitação possui como elemento aferidor

da quota-parte ideal ou intelectual, lembrando que o direito de propriedade do

condômino se estende por todo o objeto e, não somente, em uma parte relativa à

fração ideal destinada para a unidade autônoma.

O objeto do direito de cada condômino, portanto, não é a parte ideal, mas a coisa inteira em sua totalidade, sobre a qual se projeta e se exerce todo o seu direito. Mas, como não é o único titular do direito sobre esse objeto, seu exercício é delimitado, na proporção de sua parte ideal, pelos direitos dos demais titulares. [...] Em resumo: o domínio de cada condômino se

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exerce sobre todo o objeto ou sobre todos os objetos nos quais ele tenha direito, e não apenas sobre a parte ideal ou intelectual, que não é uma entidade objetiva. (SILVA FILHO, 1999, p. 118)

Quanto ao cálculo da fração ideal, verifica-se que a lei 4.591/64 não

estabelecia uma fórmula para se chegar a um valor adequado, provocando o

surgimento de diversas manifestações doutrinárias no sentido de buscar a

determinação daquele item fundamental, na instituição do condomínio edilício.

Pereira (1999) estabeleceu alguns elementos que deveriam ser analisados

tais como: a área total da unidade autônoma; a localização da unidade autônoma no

edifício (andar que ocupa) bem como a sua localização para o logradouro público

(apartamento de frente ou de fundo); incidência de luminosidade natural; ruídos;

ventilação; acesso ao terraço; varandas e etc.

Defendia, ainda, que a fração ideal pudesse ser alterada, caso restasse

verificada a modificação de alguns dos elementos que foram levados em

consideração no momento do cálculo, como por exemplo, a construção de outro

imóvel ao lado do edifício prejudicando este na circulação de ar, assim, os

condôminos deveriam se reunir em assembléia para deliberar, unanimamente, sobre

a alteração, já que aquela “repercute na esfera jurídica de todos e de cada um,

reduzindo os encargos de alguém em prejuízo de outrem e afetando a distribuição

do valor das quotas individuais de cada comunheiro no valor global do edifício.”

(PEREIRA, 1999, p. 101)

Porém, houve alterações nas regras pertinentes ao condomínio edilício com a

promulgação do CCB/02, e a primeira redação do artigo 1.331, § 3º trazia um

parâmetro de determinação da fração ideal estabelecendo que ela fosse calculada,

proporcionalmente, ao valor da unidade imobiliária, sendo que este era calculado

considerando-se o conjunto da edificação.

Ao permanecer essa forma de estipulação das frações ideais de um edifício,

atribuir-se-ia maior fração ideal àquela unidade que apresentasse características

mais atraentes para o mercado consumidor, ao passo que a fração ideal seria menor

para aquelas unidades desvalorizadas no mesmo mercado, acarretando uma

distribuição desigual de direitos e obrigações entre co-proprietários que possuíssem,

fisicamente, imóveis idênticos.

A norma supra mencionada provocou diversas manifestações desfavoráveis à

essa forma de cálculo da fração ideal, foi então que a Lei 10.931/04 alterou a norma

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do parágrafo 3º do artigo 1.331 do CCB/02 estabelecendo que “a cada unidade

imobiliária caberá, como parte inseparável, uma fração ideal no solo e nas outras

partes comuns, que será identificada em forma decimal ou ordinária no instrumento

de instituição do condomínio.” (BRASIL, 2002)

A alteração perpetrada continuou sem determinar a forma para o cálculo da

fração ideal, e assim, a doutrina mais tradicional ainda continua a propor que a sua

atribuição seja realizada de acordo com o caso concreto, ou seja, considerando as

características do imóvel (extensão; posição da unidade autônoma no edifício;

utilização das áreas comuns, o valor de cada unidade e etc.), sendo este um método

não muito objetivo, já que o valor da unidade deve ser determinado pela fração ideal

e não o contrário.

Então, a ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas – recebeu

incumbência legal, através do artigo 53 da Lei Federal 4.591/6427, para estabelecer

a normatização do cálculo relativo ao custo unitário de construção dos diversos

padrões de edificação (baixo, normal e alto) em cada região do país, fornecendo

para os investidores do mercado imobiliário um parâmetro para a negociação do

metro quadrado das incorporações que realizam.

Atualmente, o cálculo da fração ideal é realizado através de profissional

especializado que se utiliza dos dados fornecidos pela Norma Brasileira – NBR –

12.721:2006, sendo que, esta também fornece elementos para o cálculo do custo

unitário básico – CUB/m² – realizado pelos Sindicatos Estaduais da Indústria da

Construção Civil e fornecido até o dia 5 (cinco) de cada mês, segundo a norma do

artigo 54 caput da Lei 4.591/6428.

Por fim, o cálculo da fração ideal deverá ocorrer antes do lançamento da

incorporação do condomínio edilício, haja vista que a norma do artigo 1.332, inc. II

27 Art. 53. O Poder Executivo, através do Banco Nacional da Habitação, promoverá a celebração de contratos com a Associação Brasileira de Normas Técnicas (A.B.N.T.), no sentido de que esta, tendo em vista o disposto na Lei nº 4.150, de novembro de 1962, prepare, no prazo máximo de 120 dias, normas que estabeleçam, para cada tipo de prédio que padronizar: I - critérios e normas para cálculo de custos unitários de construção, para uso dos sindicatos, na forma do art. 54; [...] 28 Art. 54 Os sindicatos estaduais da indústria da construção civil ficam obrigados a divulgar mensalmente, até o dia 5 de cada mês, os custos unitários de construção a serem adotados nas respectivas regiões jurisdicionais, calculados com observância dos critérios e normas a que se refere o inciso I, do artigo anterior.

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do CCB/0229 exige que o instrumento instituidor daquele condomínio contenha tal

informação, assim como exige o artigo 32, alíneas “e” e “i” ambos da Lei 4.591/6430,

tratando este artigo do arquivamento – no Cartório de Registro de Imóveis – da

documentação exigida da incorporadora para a comercialização das unidades

autônomas.

2.2.4.2 Os requisitos do condomínio edilício: o dif erencial do instituto

Desde a formação de seus traços iniciais, o condomínio edilício sempre

trouxe consigo diversas questões polêmicas em seu aspecto jurídico,

principalmente, em virtude do rompimento provocado pelo instituto quanto à forma

de exercício do direito de propriedade, que passou a ser, severamente, limitado e

controlado em seu âmbito privado, além do confronto direto com o principio

superfícies solo cedit, indiscutivelmente enraizado em ordenamentos jurídicos de

diversos países, pela influência direta do Direito Romano.

O transcurso do tempo e as necessidades sociais de sobrevivência no

ambiente urbano fizeram com que os diversos questionamentos lançados sobre o

instituto, sucumbissem frente à viabilidade por este proporcionada no que tange à

utilização do solo e a alocação prática de diversas famílias e pessoas em um mesmo

imóvel.

Não obstante, há elementos que fazem parte da estrutura do condomínio

edilício de forma tão intensa que não podem dele ser retirados sob pena de sua

descaracterização, devendo estar presentes naquele instituto mesmo que as 29 Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial: [...] II - a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns; 30 Art. 32. O incorporador somente poderá negociar sobre unidades autônomas após ter arquivado, no cartório competente de Registro de Imóveis, os seguintes documentos: [...] e) cálculo das áreas das edificações, discriminando, além da global, a das partes comuns, e indicando, cada tipo de unidade a respectiva metragem de área construída; [...] i) discriminação das frações ideais de terreno com as unidades autônomas que a elas corresponderão;

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diversas alterações legislativas, porventura, venham a suprimi-los, pois, tais

requisitos mostram-se como o seu fator diferencial.

Primeiramente, ressalta-se que aquela estrutura não surge ao acaso, pelo

contrário, é necessário que se obedeça a uma série de requisitos legais para que se

possa optar, concretamente, pela instituição do condomínio edilício e, da mesma

forma, a sua extinção demanda outra série de circunstâncias estabelecidas em lei

sem as quais o instituto não se desfaz.

Rezende (2005) estabelece que a instituição do condomínio edilício não se

confunde com a sua constituição, tendo em vista que aquela se encontra presente

na norma do artigo 1.332 do CCB/02 determinando o surgimento da forma especial

de condomínio; por outro lado, a constituição do condomínio edilício ocorre com a

elaboração da convenção de condomínio de acordo com as normas dos artigos

1.333 e 1.334 do mesmo código, determinando as regras básicas de organização e

convivência dentro do edifício.

A instituição do condomínio edilício ocorre mediante ato entre vivos ou causa

morte, os quais sempre deverão ser registrados no competente Cartório de Registro

de Imóveis da localidade do edifício, sendo certo que dos casos de instituição, a

incorporação imobiliária é a mais utilizada e a que mais se destaca, haja vista se

tratar de uma atividade empresarial voltada para a obtenção de lucro, mediante a

venda de unidades autônomas em edifícios31.

Verifica-se com Azevedo (2004) que a instituição pode ocorrer mesmo antes

de construído o edifício, porém, a existência do condomínio ficará condicionada ao

registro daquele ato no competente Cartório de Registro de Imóveis, devendo o

incorporador cumprir todas as exigências que lhe são impostas em lei – mormente,

aquelas estabelecidas no artigo 32 da Lei n.° 4.591 /64, art. 167, inc. I, n. 17 da Lei

6.015/73 e art. 1.33232 do CCB/02 – para que inicie o processo de alienação das

unidades autônomas.

31 Estabelecida na norma do artigo 28 da Lei 4.591/64, a incorporação imobiliária consiste na atividade de construção de edificações compostas por unidades autônomas, sempre com o intuito de promover a alienação total ou parcial das mesmas, lembrando que o incorporador poderá ser pessoa física ou jurídica que se comprometa ou efetue a venda das frações ideais que serão vinculadas àquelas unidades autônomas. 32 Verifica-se que o artigo 1.332 do CCB/02 traz em seu conteúdo alguns dos requisitos para a instituição do condomínio edilício, sendo que na parte final de seu caput, há menção expressa à lei especial que apresenta o conteúdo que também deverá estar presente naquele ato de instituição, assim, pode-se entender que aquela menção diz respeito às Leis 4.591/64 na parte relativa às Incorporações Imobiliárias, e 6.015/73 quanto ao registro do imóvel edificado. Deve-se ressaltar

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Na instituição realizada por testamento, é necessário que o testador declare

quais unidades pertencem a cada um dos herdeiros, além de providenciar a

verificação dos outros requisitos para a observância do condomínio edilício, devendo

o juiz que estiver analisando o procedimento de aprovação do testamento, exigir a

formalização existencial do condomínio, pois, para o exercício de direitos sobre as

unidades autônomas, é necessário que aquele exista oficialmente. A situação se

repete quando vários herdeiros recebem um edifício sobre o qual ainda não pesa o

instituto do condomínio edilício.

Por fim, mesmo tendo sido criado com a característica de perpetuidade –

questão que o diferencia das outras formas de condomínio previstas em nossa

legislação pátria – há situações que provocam a extinção do condomínio edilício,

sendo assinalado por Souza (2009) as principais causas, quais sejam, a

desapropriação do edifício, o perecimento do objeto e a alienação de todas as

unidades a um só titular.

Nas edificações onde se encontre instituído o condomínio edilício há partes

que são de propriedade comum e outras que são de propriedade exclusiva dos

condôminos (também denominada unidade autônoma), havendo uma relação

indissolúvel entre ambas as partes estabelecida através da fração ideal, a qual

representa a propriedade exclusiva nas partes do solo e em outras partes comuns

da edificação, por meio de uma expressão aritmética estabelecida em bases

decimais ou ordinárias.

Essa relação inseparável existente entre as partes exclusivas e as partes

comuns da edificação, através da fração ideal, é o primeiro requisito que contribui

para a diferenciação do instituto do condomínio edilício.

Porém, para que uma unidade possa receber adjetivo que estabelece a sua

classificação como autônoma, deve ser observada a sua independência quanto ao

acesso à via pública, ou seja,

primeiramente que a instituição do condomínio edilício pode-se dar com ou sem intuito de venda das unidades autônomas da edificação, e em edifícios a construir ou já construídos; no caso em que o edifício ainda não esteja construído e cujo interesse precípuo seja a venda – antecipada ou não – das unidades autônomas, o ato de instituição do condomínio previsto no artigo 1.332 do CCB/02, deve estar acompanhado de todos os requisitos estipulados no artigo 32 da Lei 4.591/64. Nas situações onde se pretende a instituição de condomínio edilício sobre imóvel já construído, sem que haja intuito precípuo de alienação das unidades autônomas, verifica-se que a Lei 6.015/73 (art. 167, inc. I, 17 e 18 c/c 176) é o instrumento normativo especial que traz outros requisitos, além daqueles estabelecidos pelo artigo 1.332 do CCB/02, para a regularização das unidades autônomas do condomínio que será instituído.

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Condição básica à conceituação de unidade isolada, suscetível de merecer o tratamento de propriedade exclusiva, é a sua autonomia material, que se traduz no direto acesso dos seus moradores à via pública, ou, indiretamente, através de passagem ou área comum também pertencente, a título de co-propriedade, ao proprietário da unidade. [...] A subtração de partes de um conjunto imobiliário organizado sob a forma de condomínio para que se constituam em unidades jurídica e materialmente autônomas, - eis o traço característico do instituto que estudamos. Para serem tratadas como propriedades exclusivas não necessitam apresentar as unidades, além do requisito básico da solidês de estrutura, outra condição de forma que não seja aquela já mencionada da livre acessibilidade à via pública. (MAGALHÃES, 1966, p.44 - grifo nosso)

Leite (1973) faz uma análise da lei 4.591/64 e afirma que o acesso

independente à via pública caracteriza aquela edificação possuindo outros

elementos que podem ser identificados, como a titularidade sobre uma propriedade

exclusiva de cada unidade, e também, uma propriedade comum do solo e de outras

partes, que por sua natureza, servem a todos os demais co-proprietários havendo

coordenação entre aquelas características para se atingir a finalidade de co-

habitação em um mesmo local.

Outro ponto que deve ser, necessariamente, observado na estrutura deste

condomínio especial é a pluralidade de proprietários e a separação entre as

unidades autônomas (apartamentos, salas, lojas e etc.), características intrínsecas

ao instituto, sendo que esta ficará estabelecida mediante a escrituração

independente de cada unidade no respectivo Cartório de Registro de Imóveis,

recebendo neste ato, além da matrícula única, uma identificação numérica ou

alfabética para a sua identificação, no contexto do condomínio edilício.

Como conseqüência dessa autonomia, o proprietário poderá usar, fruir, dispor

e reivindicar de sua unidade, independentemente da anuência dos demais co-

proprietários, desde que sejam observadas as regras da convenção de condomínio

e regimento interno, além das normas estabelecidas no CCB/02; além disso, no que

tange à responsabilidade tributária “cada unidade será considerada prédio isolado,

contribuindo seu respectivo dono, diretamente, com os tributos federais, estaduais e

municipais.” (FIUZA, 2007, p. 832)

A indivisibilidade e inalienabilidade das coisas comuns são requisitos que

também contribuem para ressaltar as peculiaridades do condomínio edilício frente

aos demais institutos condominiais presentes em nosso ordenamento jurídico, sendo

certo que a indivisibilidade impede a subdivisão das partes comuns que compõe o

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todo sobre o qual se encontra a edificação, para a utilização exclusiva de um ou

alguns condôminos.

Esta é a regra geral estabelecida no artigo 1.331, § 2º do CCB/02, não

obstante o teor do Enunciado 247 aprovado na III Jornada de Direito Civil do CJF , e

das decisões do STJ que apontam para a possibilidade daquela utilização exclusiva,

mediante a análise do caso concreto.

A inalienabilidade por sua vez, obriga o titular do direito de propriedade em

condomínio edilício, quando da disposição deste direito, a proceder de forma a

alienar, simultaneamente, o direito exclusivo sobre a unidade autônoma e o direito

comum sobre o solo e sobre as demais partes comuns da edificação, pois, é

impossível naquele instituto, sob pena de sua descaracterização, a disposição

independente daquelas partes, inclusive pela inseparabilidade das mesmas.

O fornecimento de espaço destinado ao abrigo de veículos não pode ser

classificado como requisito para a caracterização do condomínio edilício, mas é

certo que aquele espaço encontra-se presente na maioria dos casos, e a natureza

das vagas deve estar contida na convenção de condomínio, ou seja, deve-se

estabelecer a vaga como propriedade autônoma ou como direito acessório da

unidade autônoma, a qual se vincula.

Percebe-se que a sistematização do instituto do condomínio edilício foi

promovida pela necessidade de se equacionar a utilização do solo, principalmente o

solo urbano, com o enorme contingente populacional que o tempo tratou de atrair

para as cidades, sendo que no Brasil o Decreto 5.481/28 foi o primeiro instrumento

legislativo a tratar do assunto, o qual fora ab-rogado pela Lei 4.591/64 e que por sua

vez, foi derrogada na parte relativa ao condomínio em edificações pelo CCB/02.

As modificações verificadas ao longo do tempo na legislação supra

mencionada permitiram que o instituto acompanhasse as demandas sociais de cada

período histórico, não sendo possível imaginar, por exemplo, que os doze artigos do

Decreto 5.481/28, suportassem os diversos problemas relativos à matéria que

exigem pronta solução, por outro lado, aquele decreto traz elementos cuja essência

permanecem presentes no ordenamento jurídico pátrio, sendo o caso da

inalienabilidade e indivisibilidade das partes comuns; a contribuição dos condôminos

para as despesas ordinárias; dentre outros.

Durante muito tempo, a imagem do condomínio edilício foi vinculada a um

espaço destinado a famílias de baixa renda e compostas por poucos membros (em

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virtude da escassez de espaço), porém, não é preciso mencionar a alteração sofrida

neste pré-conceito, verificando-se, hoje em dia, edifícios residenciais e/ou

comerciais de altíssimo luxo, equipados com sistemas elaborados para o maior

conforto e segurança de todos os condôminos e usuários.

A supressão que o CCB/02 promoveu em alguns artigos e termos,

anteriormente previstos na Lei 4.591/64, para dar lugar a normas mais genéricas a

respeito do condomínio edilício, seguiu claramente a proposta de Miguel Reale

(Supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil de 2002) para o

estabelecimento, no texto codificado, dos chamados modelos abertos.

É indispensável recorrer àquilo que costumo chamar, na minha concepção filosófico-jurídica, de modelos abertos e não de modelos cerrados. Posso usar – posso e devo – modelos cerrados, predeterminados, no campo do Direito Penal, onde deve haver o predomínio da tipicidade do delito e da tipicidade da norma; posso e devo usar os modelos cerrados em matéria de Direito Tributário, onde somente é exigível aquele tributo que esteja claramente definido. Mas essa tipicidade é incompatível com a vida civil, com o Direito Civil em sua amplitude, onde muitas vezes somos levados a preferir modelos abertos, que permitam à hermenêutica declarar-lhe o seu rigoroso significado. De forma que o Código surge com a idéia de deixar algo a cuidado da doutrina e da jurisprudência, as quais virão a dar conteúdo vivo às normas, na sua expressão formal, para que se atinja a concreção jurídica, isto é, a correspondência adequada dos fatos às normas segundo o valor que se quer realizar. (REALE, 1986, p. 8)

Estes são os requisitos básicos para que se possa identificar, no panorama

atual do direito brasileiro, o condomínio edilício , sendo certo que requisitos podem

surgir e outros podem deixar de ser exigidos com o passar do tempo, na medida em

que o instituto estiver ou não correspondendo aos interesses sociais, porém, há

requisitos que não podem se ausentar sob pena de sua completa descaracterização.

2.2.4.3 O perfil democrático da administração do co ndomínio edilício

Não se pode deixar de destinar algumas linhas deste trabalho ao corpo

administrativo responsável pela condução e viabilidade do convívio entre os co-

proprietários no âmbito privado do condomínio edilício, cuidando para que os mais

diferentes interesses estejam sempre equalizados de forma, necessariamente,

democrática e participativa.

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O corpo administrativo do condomínio edilício é formado pelo síndico,

subsíndico, conselho fiscal e pelas assembléias de condôminos, contudo, em virtude

da dinâmica atribuída a este trabalho, no que tange à abordagem das características

daquele instituto, a assembléia de condôminos será analisada no próximo capítulo,

juntamente com a convenção de condomínio e o regimento interno, restando para

esta parte as questões relativas ao síndico, subsíndico e conselho fiscal.

O síndico, que pode ser condômino ou não, deve ser eleito através de um

procedimento democrático e dialógico pelos demais condôminos em assembléia

geral para um mandato de no máximo dois anos, possibilitada a reeleição quantas

vezes forem necessárias, de acordo com as regras da convenção de condomínio,

inclusive no que tange ao quorum observado para a sua escolha, uma vez que o

CCB/02 é omisso a esse respeito.

Aquela omissão legislativa quanto ao não estabelecimento de quorum

específico para a escolha do síndico, abre espaço para que os condôminos façam

essa determinação, lembrando que na hipótese de omissão da convenção de

condomínio quanto ao tema supra mencionado, observar-se-ão as normas dos

artigos 1.352 e 1.35333 do CCB/02.

Sabe-se que na maioria dos casos, a participação dos condôminos em

assembléias, sejam elas ordinárias ou extraordinárias e relativas a condomínios de

grande ou de pequeno porte, é muito reduzida, se comparada com a quantidade de

unidades autônomas das edificações.

Ao se realizar uma análise lógico-sistemática34 das normas dos artigos 1.347,

1.352 e 1.353 do CCB/02, não havendo quorum determinado no texto da convenção

de condomínio, nota-se que o legislador pátrio acertou ao possibilitar a eleição do

síndico através do voto da maioria (simples) dos condôminos presentes em 33 Art. 1.352. Salvo quando exigido quorum especial, as deliberações da assembléia serão tomadas, em primeira convocação, por maioria de votos dos condôminos presentes que representem pelo menos metade das frações ideais. Parágrafo único – Os votos serão proporcionais às frações ideais no solo e nas outras partes comuns pertencentes a cada condômino, salvo disposição diversa da convenção de constituição de condomínio. Art. 1.353. Em segunda convocação, a assembléia poderá deliberar por maioria dos votos dos presentes, salvo quando exigido quorum especial. 34 Amaral (2006) estabelece uma divisão entre a interpretação lógica e a interpretação sistemática, ressaltando que naquela se utilizam regras do raciocínio para encontrar o significado da norma, sem se afastar da coerência e conexão que deve haver entre os preceitos, para que não haja interpretação contraditória entre eles. A interpretação sistemática, analisa a norma dentro do contexto legal no qual ela se insere juntamente com todas as outras do mesmo instituto jurídico, ou seja, analisa-se o livro, o título, o capitulo, a seção, o parágrafo etc.

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assembléia instaurada em segunda convocação, sendo que na hipótese de se tornar

inviável a eleição do sindico por ausência dos condôminos na assembléia, a escolha

deverá ser feita através do Poder Judiciário, conforme a norma do artigo 1.350 § 2º

daquele instrumento codificado.

As atribuições do síndico advêm tanto da lei quanto da convenção de

condomínio e consistem, basicamente, na atuação ativa para o cumprimento das

regras internas do condomínio, bem como para a condução dos interesses da

comunidade de co-proprietários, devendo a sua administração encontrar-se pautada

em condutas democráticas, dialógicas e transparentes sob pena de intervenção do

Poder Judiciário.

Assim, como em toda a função que se exerce mediante a aprovação/eleição

de um determinado grupo de pessoas, o síndico poderá ser destituído de seu cargo

através da votação favorável da maioria absoluta dos membros presentes em

assembléia, desde que, repita-se, seja estabelecido um procedimento democrático

para a tomada de decisão, em que estejam presentes os fundamentos contrários e

favoráveis àquela destituição, como forma de estabelecimento do contraditório.

O síndico ou administrador, nas matérias que digam respeito à coletividade é

o representante de todos os condôminos, seja no âmbito judicial ou extrajudicial,

inclusive daqueles condôminos ausentes, podendo, na maioria das vezes demandar

qualquer condômino ou terceiro, independentemente de previa autorização da

assembléia, por outro lado, tratando-se de assuntos que envolvam interesses

particulares de condôminos entre si, o síndico não possui qualquer função

representativa.

Como se pode aquilatar, as funções legalmente atribuídas ao sindico são de duas ordens: a administrativa, que pode ser delegada a terceiros e, as demais, que chamaremos de políticas, ou de natureza jurídica, atualmente denominadas de representação, que não podiam, na lei anterior, ser objeto de transferência. [...] Normalmente, distingue-se o sindico que tem função política daquele que fica com a atividade administrativa, remunerada e profissional, que é o administrador. Quando se reúnem, ambas as atividades, na mesma pessoa, tem-se o administrador com funções do sindico, ou, então, o que se chama de síndico profissional. (AVVAD, 2006, p. 144)

Ressalta-se que considerando a legislação atual sobre o tema, não é possível

substituir a figura do síndico por um conselho administrativo, devendo aquele ser

única pessoa auxiliada, caso seja necessário e esteja previsto na convenção de

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condomínio, por um subsíndico e por um conselho fiscal formado por três membros,

que poderão ser condôminos ou não, haja vista o silêncio da lei.

O caso concreto é que apresentará os motivos para que o síndico fundamente

a necessidade de um auxiliar – subsíndico – para a condução dos atos

administrativos no condomínio, sendo que a necessidade de formação de um

conselho fiscal encontra-se presente no artigo 1.356 do CCB/02.

O tratamento exclusivo dado pela norma codificada ao conselho fiscal, não

impede que os co-proprietários estabeleçam discursiva e democraticamente na

convenção, as regras de composição de outros órgãos35, como por exemplo o

conselho consultivo, conselho disciplinar; conselho de obras; etc.

Na verdade, a análise dos componentes do corpo administrativo do

condomínio edilício, bem como dos órgãos que restarem por bem instituídos pela

comunidade condominial em observância às peculiaridades de cada edifício,

ressalta o ambiente plural e democrático constituído no âmbito privado daquele

instituto, exigindo de cada um deles o estrito cumprimento de suas diferentes

funções em busca de um único fim, qual seja, viabilizar o convívio harmônico dos co-

proprietários.

O próximo capítulo tratará dos instrumentos regulamentares do condomínio

edilício, quais sejam: a convenção de condomínio e o regimento interno verificando a

forma de elaboração de ambos, e a necessidade deste procedimento seguir em

assembléia um caminho democrático e discursivo, como forma de atribuir

legitimidade às regras criadas, as quais deverão ser, necessariamente, obedecidas

pelos condôminos sob pena de aplicação das multas previstas.

35 A respeito da liberdade de formação de outros órgãos administrativos no âmbito privado do condomínio edilício, Magalhães (1966) ressalta que a diversidade de funções exercidas pelos órgãos que podem ser criados através de seu estabelecimento em Convenção de Condomínio, não pode implicar na subordinação hierárquica entre eles, devendo haver uma minuciosa descrição das atividades prestadas de cada um daqueles órgãos.

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3 OS ELEMENTOS CONDUTORES À CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL

DA PROPRIEDADE URBANA , PELA UNIDADE AUTÔNOMA EM CONDOMÍNIO

EDILÍCIO: CONVENÇÃO DE CONDOMÍNIO E ASSEMBLÉIA DE C ONDÔMINOS

Antes de adentrar nas particularidades da convenção de condomínio e mais

adiante da assembléia de condôminos, mister ressaltar que a análise destes

elementos que compõe a realidade regulamentar e administrativa do condomínio

edilício, faz-se em capítulo à parte em virtude da importância dos mesmos nas

conclusões que serão apresentadas, ao final deste trabalho.

Ressaltar-se-á que o exercício do direito de propriedade no contexto do

Estado democrático de direito, exige uma nova postura do proprietário sobre o

objeto do domínio, e também, frente à coletividade de não titulares, mormente, se

estiver inserido no âmbito privado do condomínio edilício, cujas particularidades

potencializam as condições para a ocorrência de desavença exigindo dos

condôminos uma capacidade aguçada de convívio com o diferente e de superação

dos diversos tipos de problemas que certamente aparecerão.

Lopes (1996) ressalta que a disposição dos apartamentos e a forma de

construção dos edifícios, criam uma contigüidade de vizinhança ímpar e muito mais

intensa do que a que se percebe na propriedade comum, e assim, a legislação

especifica mostra-se insuficiente para suportar todas as exigências apresentadas

faticamente, impondo-se a criação de normas regulamentares, que disciplinem a

vida comunitária específica, que se constitui em cada edifício.

Enquanto o proprietário do apartamento dispõe de um poder amplo no que concerne à utilização do interior do seu apartamento, ao contrário, o seu direito vê-se limitado por uma série de restrições tendentes a que tudo se desenvolva pacificamente, com o respeito recíproco dos interesses de cada um dos demais proprietários. (LOPES, 1996, p. 426)

Nesta realidade propícia ao desacordo, tanto a convenção de condomínio

quanto as assembléias de condôminos exercem papéis, disciplinar e deliberativo

respectivamente, cruciais para a viabilização do convívio em condomínio, uma vez

que grande parte das regras36 daqueles instrumentos deve ser elaborada mediante a

36 Faz-se necessário esclarecer que não se pretende desenvolver aqui qualquer discussão a respeito da existência ou não de diferença entre os termos norma e regra, sendo utilizado neste trabalho o

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discussão democraticamente estabelecida pelos condôminos que a elas se

submeterão.

Por outro lado, todas as deliberações que se verificam no âmbito privado do

condomínio edilício, devem ocorrer, necessariamente, nas assembléias de

condôminos, as quais terão inúmeras atribuições, dentre elas as de promover a

escolha das regras que farão parte da convenção de condomínio, e também, do

regimento interno, bem como escolher os rumos administrativos tomados em

benefício da comunidade de co-proprietários.

Voltando os olhos para a importância destes elementos no âmbito privado do

condomínio edilício é que serão apresentadas as suas características, contornos

gerais e natureza jurídica, não com o intuito de mera reprodução dos diversos

entendimentos doutrinários a respeito do tema, mas, principalmente, com o objetivo

de incluir novas observações ao mesmo e contribuir para a sua análise no contexto

do Estado democrático de direito.

Assim, a concretização da função social da propriedade urbana pela unidade

autônoma no âmbito democrático do condômino edilício, far-se-á com a conjugação

e a colaboração da convenção de condomínio e da assembléia de condôminos,

mediante a observação de suas competências específicas e características

constitutivas, dentro das limitações apresentadas pelo ordenamento jurídico pátrio.

3.1 Os contornos gerais e a natureza jurídica da co nvenção de condomínio e

do regimento interno

A convenção de condomínio e o regimento interno – este como parte integrante

daquela – são instrumentos fundamentais na organização interna do condomínio

edilício, principalmente pelo conteúdo regulamentar que apresentam, viabilizando,

não somente, a convivência entre os co-proprietários, mas também, direcionando a

administração naquela realidade condominial, estabelecendo direitos e deveres para

termo regra para se referir ao conteúdo das convenções dialógica e democraticamente elaboradas no âmbito privado do condomínio edilício, enquanto que o termo norma será utilizado para identificar o conteúdo dos atos do Poder Legislativo que possuem como objetivo, nas palavras de Amaral (2006), o estabelecimento de uma ordem que viabilize a convivência em sociedade, solucionando seus conflitos e garantindo a segurança das relações sociais e jurídicas.

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todos os que dela participam, principalmente o sindico, cuja atividade é

acompanhada de perto pelo conselho fiscal.

No momento da instituição do condomínio edilício é necessária a elaboração

por escrito da convenção de condomínio ou apresentação de esboço que se tornará,

posteriormente, a convenção de condomínio, obedecendo às determinações legais

quanto à matéria estipulada para o seu conteúdo mínimo, bem como ao quorum de

sua aprovação estabelecido em lei.

A elaboração da convenção de condomínio e a respectiva aprovação de seu

texto em assembléia de condôminos exige o quorum de 2/3 (dois terços) das frações

ideais do edifício, ao teor da norma do artigo 1.333 do CCB/02; porém, no que tange

à alteração de seu conteúdo, o quorum será de 2/3 (dois terços) dos condôminos,

isso quando a matéria a ser alterada não possua outro quorum específico

estabelecido em lei.

Além daquele conteúdo mínimo estabelecido por lei e que deverá constar na

convenção de condomínio, a norma do artigo 1.33437 caput do CCB/02 possibilita

aos condôminos, que os mesmos estipulem outras regras que poderão fazer parte

daquele texto convencionado para regularem situações específicas e vivenciadas no

âmbito privado do condomínio edilício.

Em virtude da importância da convenção, no cotidiano do condomínio edilício, a

sua elaboração deve ocorrer em conformidade com as normas constitucionais e

infraconstitucionais relacionadas, principalmente, com o exercício do direito de

propriedade que, atualmente, deve buscar o cumprimento da função social trazida

pelas normas dos arts. 5° inc. XXIII e 182, § 2° da CR/88.

Antes mesmo da promulgação daquele texto constitucional, percebia-se na

doutrina pátria o reconhecimento da importância da convenção de condomínio,

sendo ressaltado por Gomes (2001) que é na convenção que os direitos e deveres

37 Art. 1.334. Além das cláusulas referidas no art. 1.332 e das que os interessados houverem por bem estipular, a convenção determinará: I – a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições dos condôminos para atender às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio; II – a sua forma de administração; III – a competência das assembléias, forma de convocação e quorum exigido para as deliberações; IV – as sanções a que estão sujeitos os condôminos, ou possuidores; V – o regimento interno §1° A convenção poderá ser feita por escritura públ ica ou por instrumento particular; §2° São equiparados aos proprietários, para fins de ste artigo, salvo disposição em contrário, os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas. (BRASIL, 2002) (Grifo nosso)

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recíprocos dos proprietários de unidades autônomas são definidos de modo

particular, pois, os conteúdos de suas regras definem situações peculiares de cada

edifício que a lei não poderia conter, sendo esta uma das razões de sua

indispensabilidade.

A análise das características principais da convenção de condomínio, vem

sendo realizada desde que a sua obrigatoriedade fora impingida pela Lei 4.591/64

aos condomínios edilícios, haja vista que não havia previsão neste sentido no

Decreto 5.481/28, por outro lado, o diferencial entre os condomínios geral e edilício

é, justamente, a presença da convenção de condomínio.

A diferença a sublinhar atém-se ao caráter facultativo da administração e da escolha do administrador, no condomínio comum, e à obrigatoriedade da convenção de condomínio, da assembléia de condôminos e da eleição do administrador (síndico), no condomínio especial que se instala nos edifícios. (BESSONE, 1988, p. 68)

Por outro lado, quando o tema é a natureza jurídica da convenção nota-se

certa desarmonia em nossa doutrina, pois, há o entendimento apresentado por

Avvad (2006) classificando-a como sendo um contrato típico de cunho normativo

celebrado por escrito, onde os co-proprietários e as pessoas a ele equiparadas por

força do artigo 1.334 §2° do CCB/02 deliberam a res peito das regras que terão

vigência no âmbito privado do condomínio edilício.

Outros, também, enxergam natureza contratual na convenção de condomínio,

dentre eles Orlando Gomes e Arnaldo Rizzardo (1991) para quem a convenção de

condomínio possui natureza contratual, pois, nela encontra-se a manifestação de

vontade da maioria dos condôminos, e assim, ficam obrigados a seguirem as suas

disposições que possuem força de lei, assim como terceiros que mantém relações

jurídicas com o condomínio, porém, está subordinada ao ordenamento jurídico, não

podendo com ele conflitar.

Serpa Lopes (1996) visualiza a natureza jurídica da convenção de condomínio

para além do contrato, pois, este não responde a vinculação de condôminos e

terceiros que sequer participaram da elaboração das regras daquele instrumento

regulamentar38; portanto, a convenção de condomínio para os condôminos que

38 Preocupado com a eficácia das regras convencionadas frente a terceiros que venham a fazer parte do condomínio edilício após a sua elaboração, e para que não seja alegado que o descumprimento às regras limitativas ao direito de propriedade ocorreu em virtude de seu desconhecimento, Serpa Lopes (1996) estabeleceu três tipos de regras e as medidas que deverão ser tomadas para evitar o

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participaram de sua elaboração possui natureza contratual, vinculando a todos,

simultaneamente, já para os sucessores mortis causa ou inter vivos que não

participaram da elaboração daquelas regras, a natureza jurídica é de obrigação

propter rem.

Assumindo uma postura cautelosa a respeito do assunto, Rodrigues (2002)

analisa a convenção de condomínio sobre dois aspectos, sendo o primeiro

estritamente formal, onde aquela assumiria sua semelhança com os instrumentos

contratuais, por se tratar de ato plurilateral realizado por escrito; e o segundo

estritamente jurídico, onde a convenção se difere dos contratos por uma série de

razões, dentre as quais, e a principal delas, o fato dos contratos obrigarem as partes

signatárias ou seus herdeiros, enquanto aquela, uma vez aprovada, obriga aos

condôminos atuais e futuros, além dos eventuais ocupantes das unidades

autônomas.

Contando com a adesão de vários nomes da doutrina pátria, Pereira (1999)

atribui à convenção de condomínio natureza de ato-regra39 explicando que as regras

descumprimento premeditado, quais sejam, as que representam obrigações propter rem e que são estabelecidas pelo ordenamento jurídico pátrio – art. 11 do Dec. 5.481/28, atual artigo 1.336, inc. I ao IV do CCB/02 – e que são obrigatórias independentemente de previsão na convenção ou de qualquer outra forma de publicidade; as que são elaboradas mediante a manifestação de vontade dos condôminos e estabelecem restrições semelhantes à servidão – ex: vaga de garagem presa que necessita de passar pela vaga do vizinho para ter acesso à via pública – neste caso a convenção, desde que feita por escritura pública, deve ter a sua inscrição admitida no Registro de Imóveis, tal qual um direito real limitado; e por fim, as que são elaboradas mediante a manifestação de vontade dos condôminos e que estabelecem obrigações propter rem sem aproximação de uma relação jurídica de servidão, neste caso devendo tais limitações serem averbadas nas matriculas de todas as unidades que sofrerem a restrição dominial, nos termos do artigo 246 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73). Nos termos apresentados pelo autor supra, quando uma regra da convenção não tiver seu conteúdo definido pela lei, mas sim, averbada na matrícula do imóvel junto ao competente Cartório de Registro de Imóveis, o adquirente não pode alegar o desconhecimento da regra convencionada. 39 Analisando a questão da moderna doutrina das fontes do direito, Caio Mário da Silva Pereira, assim explica como se pode considerar a convenção de condomínio como um ato regra, senão vejamos: “Levando-se em consideração que a conduta individual não é disciplinada somente pela lei, mas por outras situações objetivas que obrigam da mesma forma que o comando estatal (por exemplo, o contrato, a vontade unilateral, a sentença, etc.), construiu-se modernamente uma teoria genérica de fonte formal, abrangente de todas elas. E criou-se, então, a concepção de que fonte de dire ito é o ato jurídico, expressão que de princípio deve ser diferenciada d a idéia de ato jurídico stricto sensu , uma vez que esse, adotado como equivalente de neg ócio jurídico pelo art. 81 do Código Civil de 1916, acha-se absorvido por aquela general ização. Para cada escola, o elemento essencial de aproximação é a vontade: tanto a lei, como o contrato, como a sentença são gerados por manifestações de vontade, destinadas a produzir efeitos jurídicos. A diferença é que, em certos casos, a vontade criadora é a do grupo social; em outros, a de um agrupamento reduzido; e, em outros ainda, do próprio indivíduo. Por outro lado, as situações geradas são, em uns casos, impessoais, e, em outros, pessoais. Desde, pois, que existe uma similitude de fatores de constituição (vontade) e uma identidade de resultados (produção de efeitos jurídicos), é possível reunir nessa fórmula uniforme toda a noção de fonte de direito, congregamento que se efetua por dizer que a fonte

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que formam o conteúdo daquele instrumento traduzem a manifestação de vontade

dos co-proprietários perpetuando-se com o seu efetivo registro no Cartório de

Registro de Imóveis, para adquirir força de ato jurídico, e como tal, status de fonte de

direito dotada de força coercitiva, tornando-se obrigatória e apta a coordenar o

comportamento individual do grupo reduzido de condôminos que formam a

comunidade do condomínio edilício.

Seu fundamento contratualista, outrora admitido, hoje perdeu terreno, porque sua força coercitiva ultrapassa as pessoas que assinaram o instrumento de sua constituição, para abraçar qualquer indivíduo que, por ingressar no agrupamento ou penetrar na esfera jurídica de irradiação das normas particulares, recebe os seus efeitos em caráter permanente ou temporário. (PEREIRA, 1999, p. 130)

O regimento interno é usualmente caracterizado como instrumento

complementar à convenção de condomínio, dela fazendo parte e tratando de

assuntos de menor complexidade, porém, de interesse geral dos co-proprietários

como por exemplo, os horários destinados às mudanças dentro do edifício, à

utilização do salão de festas, quadra de esportes, garagem e etc., não obstante, o

descumprimento de suas regras acarretar a aplicação das penalidades previstas na

convenção de condomínio.

formal do direito é o ato jurídico. Mas não se pode deixar de atentar para a diferença dos elementos acidentais, e, então, em função da presença de fatores vários (como a manifestação volitiva originária, a morfologia, a extensão dos efeitos etc.), a doutrina realiza uma distinção, e subdivide os atos jurídicos, lato seusu em várias espécies: ato-regra, ato-subjetivo, ato-condição, ato-jurisdicional. Diz-se ato-regra a manifestação volitiva criadora de uma norma de c onduta dotada de força obrigatória e apta a pautar um comportamento indivi dual. No primeiro plano do ato-regra, está, a lei, como expressão de comando geral, dominadora de todo o grupo social. Mas não é somente ela que vem dotada desta força cogente. Qua ndo alguns indivíduos se agrupam e elaboram, pela declaração de sua vontade, um conjun to de normas jurídicas a que se vêem submetidos, procedem em paridade de situação com o legislador, e criam regras jurídicas, que, nem por se constringirem dentro nas fronteiras restritas de um reduzido número de pessoas, deixam de ter o aspecto bem nítido de norm as jurídicas. Sua aproximação, contudo, não implica identificação. Num e noutro caso, press upõe-se a aptidão deliberativa, que, na órbita publicística, se chama competência, e, na pr ivatística, capacidade; num e noutro caso, obtêm-se resultados análogos. Mas apura-se uma dive rsidade extrema se se atentar em que uma, a lei, regula a vida dos indivíduos sem indaga ção da anuência do subordinado, enquanto que as outras normas sujeitam à sua obediência cert as pessoas que voluntariamente se integram naquele agrupamento, ou se acham eventualm ente compreendidas na situação peculiar de participação, ainda que momentânea, de uma dada situação, e, por esse motivo, o direito assim constituído se denomina estatutário ( Gurvitch) ou corporativo (Planiol, Ripert et Boulanger) . Não se situa o seu fundamento na idéia contratual ista tradicional, como por algum tempo se entendeu, porque esta normação não limita a sua cogência às pessoas que subscrevem o ato institucional, porém desborda para quem quer que num momento qualquer, esteja na situação de receber os efeitos da norma. Uma pessoa pode deixar de entrar para o grupo, e, portanto, nunca submeter-se àquela regra; ou pode escapar de sua dominação, dele retirando-se; mas, enquanto participante do agrupam ento, ou integrada na situação objetiva, está sujeita inevitavelmente ao seu imperativo.” (PEREIRA, 2000, p. 40 - grifo nosso)

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A sua elaboração não possui regra específica determinada pela lei, portanto,

geralmente na mesma assembléia são deliberados os conteúdos da convenção de

condomínio e do regimento interno, seguindo este o quorum de aprovação daquela.

O Regulamento, ou Regimento Interno, apenas completa a Convenção. [...] Sua finalidade é meramente interna, trazendo normas minuciosas sobre o uso das coisas comuns. [...] Não podem suas normas alterar ou ultrapassar as da Convenção; sob esse aspecto, a situação é equivalente à dos decretos em relação às leis, no plano do direito público; devem, apenas complementar. Em virtude disso, às vezes, especialmente nos prédios pequenos, a fim de evitar duplo trabalho, o Regulamento é incorporado à Convenção, formando um único documento; é preferível, porém, que tais peças se apresentem em documentos separados. (RODRIGUES, 2002, p. 218)

Hely Lopes Meirelles citado por Dower (2004, p. 268) trata do regimento

interno como sendo um ato de administração do edifício, o qual é instituído para

disciplinar a conduta interna dos condôminos, locatários ou freqüentadores dos

apartamentos ou escritórios, impondo deveres a estes sujeitos, para possibilitar a

coexistência harmônica daqueles que o habitam.

A norma do artigo 1.351 do CCB/02, modificada pela Lei 10.931/2004, deixou

de estabelecer o quorum necessário para a alteração do conteúdo do regimento

interno, ficando essa matéria ausente de regulamentação legal, contudo, a III

Jornada de Direito Civil promovida pelo CJF aprovou o Enunciado 248,

estabelecendo que o quorum para alteração do regimento interno, pode ser fixado

pela convenção de condomínio.

Concluindo em face do que restou apresentado até aqui, percebe-se que a

qualificação da natureza jurídica da convenção de condomínio como ato-regra é a

que mais se adapta à realidade do instituto, pois, trata-se de um instrumento

elaborado por um grupo reduzido de pessoas (condôminos) que se agrupam

voluntariamente e que se submetem às suas regras em virtude da capacidade

específica que adquirem com a aquisição de unidades autônomas.

Neste sentido, a obediência às regras da convenção por parte de quem

escolheu participar da comunidade condominial, deve ocorrer enquanto desta fizer

parte e isso porque cabe, frente ao ato-regra, a escolha de não se submeter aos

seus desígnios, contudo, enquanto participante do agrupamento (condomínio

edilício), encontra-se sujeito ao seu imperativo.

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Ao entendimento da convenção de condomínio como ato-regra acrescenta-se

a idéia de que a sua elaboração deve ocorrer mediante a participação dos

condôminos que, reunindo-se em assembléia, decidem dialógica e

democraticamente parte de seu conteúdo, o qual submeterá todos os co-

proprietários, as pessoas a eles equiparadas por lei, bem como terceiros que

freqüentem o edifício40.

3.1.1 O conteúdo básico da convenção de condomínio

O conteúdo básico das convenções de condomínio é formado por regras que

dizem respeito aos direitos e deveres dos co-proprietários, à organização

administrativa do condomínio, bem como as sanções aplicadas àqueles que venham

a desrespeitar as regras ali estabelecidas.

Tratar deste conteúdo mínimo torna-se importante na medida em que aquele

instrumento convencionado possibilitará, como será demonstrado a seguir, a

concretização da função social da propriedade urbana no âmbito privado do

condomínio edilício.

40 No tocante às razões pelas quais a convenção de condomínio possui eficácia perante terceiros não condôminos, Darcy Bessone (1988) ressalta que não obstante o posicionamento relativo à consideração da convenção de condomínio como ato-regra tenha atraído mais seguidores, a sua oponibilidade frente a terceiros advém mais do respeito que este tem frente à propriedade alheia do que da votação das regras convencionadas, haja vista que sempre que alguém adentre em imóvel alheio, há o aceite aos estilos do proprietário. Ocorre que não se pode concordar com o entendimento supra, primeiramente, em virtude do condomínio edilício pressupor a existência de diversos proprietários, sendo, portanto, diversos os “estilos” que teoricamente deveriam ser seguidos, assim, a convenção de condomínio nivela as expectativas de comportamento para exigir de todos aqueles que estejam em seu âmbito privado, uma conduta uniforme. A eficácia da convenção de condomínio – perante terceiros não condôminos – não pode encontrar o fundamento de sua validade na intenção do outro, ou seja, não se deve buscar a legitimidade daquelas regras a partir do respeito que terceiro possa vir a ter sobre o seu conteúdo, haja vista que nem sempre tal respeito estará presente na conduta daquele que não é condômino. Por exemplo: um co-proprietário convidou algumas pessoas para comemorar um evento qualquer no edifício e no decorrer da comemoração um de seus convidados utiliza, inadequadamente, o espaço gourmet, estando o condômino anfitrião conivente e de acordo com os atos praticados pelo terceiro convidado. Se o respeito que este assumisse frente à propriedade alheia dependesse do “estilo” do proprietário que lhe convidou, nada poderia ser feito. Ocorre que não é isso o que acontece, pois, o zelador ou porteiro, independentemente do pedido de qualquer proprietário, pode tomar medidas para fazer cessar os atos do terceiro não condômino, e posteriormente, comunicar o ocorrido ao síndico que deverá fazer cumprir a convenção de condomínio aplicando as sanções estabelecidas, no caso em análise, ao condômino responsável pela comemoração.

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Parte daquele conteúdo possui lugar reservado, dada à obrigatoriedade de

sua presença determinada por lei, estabelecendo, inclusive, o conteúdo da regra –

arts. 1.332 e 1.334 do CCB/02 – ou seja, observado em sua totalidade o texto

convencionado é a resultante de um conteúdo mínimo estabelecido em lei, com as

regras elaboradas a partir da participação direta dos condôminos que devem se

reunir em assembléia para decidir, dialógica e democraticamente o seu conteúdo.

No que tange aos direitos e deveres básicos dos condôminos informa-se que

os artigos 1.335 e 1.336 do CCB/02, trazem normas relativas ao adequado uso e

gozo das unidades autônomas, estabelecendo, também, o ônus pelo exercício

daquele direito e as respectivas sansões, lembrando que os condôminos podem

deliberar pela inclusão de outros direitos e deveres, desde que não conflitem com

normas constitucionais e infraconstitucionais relativas ao tema.

As sanções podem ser de cunho pecuniário – arts. 1.336 e 1.337 do CCB/02

– ou não, como por exemplo, a nulidade de uma decisão tomada em assembléia de

condôminos que não foi adequadamente convocada, ou que não observou o quorum

estabelecido por lei para aquela decisão.

As regras condizentes com a organização administrativa do condomínio

edilício estabelecem as obrigações do sindico, a regularidade que deve ser

observada na prestação de contas, o procedimento para a convocação e a

constituição da assembléia de condôminos, as situações que autorizam o gasto dos

valores depositados no fundo de reservas e etc.

Sobre o conteúdo das convenções de condomínio, Serpa Lopes (1996), como

ressaltado acima, classifica as regras da convenção em três espécies diferentes,

quais sejam: as disposições obrigatórias em relação a todos os comunheiros e a

seus sucessores “mortis causa” ou “inter vivos”, independentemente de sua

presença no texto da convenção; as disposições que dependem apenas do voto da

maioria, visando a administração e o melhor gozo ou aproveitamento da coisa

comum; e as disposições que exigem o consentimento dos proprietários por elas

afetados, estando incluídas nestas disposições as que interferem extinguindo ou

modificando direito outorgado em escritura, a proprietário de unidade autônoma.

Rodrigues (2002) entende que a convenção de condomínio, quando trata em

seu conteúdo de restrições aos direitos dos condôminos sobre as suas unidades

autônomas, deve observar os direitos personalíssimos e de propriedade atribuídos

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ao titular, pois, a convenção pode tratar amplamente de tudo que interesse às áreas

comuns, mas não de tudo que diga respeito às unidades autônomas.

Estabelecido o conteúdo da convenção de condomínio, o desrespeito às suas

regras é classificado por Burgarelli (2004) como ato ilícito, não podendo aquela

conduta ser exigida do condômino mediante relação de debito/crédito, ou seja,

caracterizando-se o descumprimento como ato ilícito, ao condomínio é dado o direito

à compensação dos danos sofridos em virtude daquele ato, mesmo que a

desobediência esteja vinculada ao pagamento das cotas mensais relativas às

despesas do condomínio, havendo a relação de ato ilícito/dever de indenizar em

razão da natureza jurídica da convenção (ato regra – fonte de direito).

O condômino que age contrariamente ao comando institucional em principio viola a lei, porque a convenção é fonte de direito. Se a infração resulta de ato injustificado, tem-se a presença de ato-ilícito e, conforme o resultado proveniente da violação, afere-se o grau de responsabilidade do agente, o grau de prejuízo ao condomínio e, por conseguinte, o dever de reparar o prejuízo sofrido pela instituição (o condomínio). [...] A relação vinculante é de natureza obrigacional, derivada de ato ilícito, de natureza reparatória, ante a resistência do condômino em cumprir o dever de manter a coisa, de sorte a se alcançar a finalidade comunitária, eleita como objetivo do ente condominial. (BURGARELLI, 2004, p. 108)

Tendo em vista que a entrada em vigor do Código Civil brasileiro de 2002

trouxe novas normas relativas à organização do condomínio edilício, interferindo

diretamente no conteúdo das convenções, questiona-se a respeito da aplicação das

convenções de condomínio confeccionadas sob a égide da revogada Lei 4.591/64.

Tusa (2004) defende a necessidade de se analisar o conteúdo trazido pela

regra da convenção de condomínio para, após, classificá-la como hábil ou inábil a

produzir efeitos, pois, ao teor do artigo 2.035, parágrafo único do CCB/02, nenhuma

convenção poderá prevalecer em afronta a preceitos de ordem pública, portanto,

estabelecendo a convenção de condomínio regra que de alguma forma viole

preceito de ordem pública, haverá necessidade de sua adequação à nova

codificação.

As regras da convenção, também, não poderão conflitar com as normas

expressamente estabelecidas pela legislação codificada, portanto, aquela regra

confeccionada na vigência da lei 4.591/64, permanece em vigor desde que não

conflite com as disposições do texto de 2002.

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Pereira (1999) posiciona-se favoravelmente à desconsideração da regra

presente na convenção de condomínio e que possui conteúdo contrário à lei,

afirmando que um dispositivo dessa natureza não obriga e nem gera conseqüências,

porém, como o Estado de direito veda ao particular “fazer justiça pelas próprias

mãos”, enquanto o Poder Judiciário não se manifesta a respeito da adequação ou

não da regra da convenção à Lei, não cabe ao condômino desrespeitá-la por

vontade própria.

Ressalta-se que o conteúdo da convenção aprovada pelo quorum

estabelecido em lei – pelo menos 2/3 (dois terços) das frações ideais do edifício – é

obrigatória para todos os co-proprietários, possuidores, detentores, bem como para

os titulares de direitos sobre qualquer das unidades autônomas do condomínio

edilício, independentemente de registro no Cartório de Registro de Imóveis, porém,

para que venha produzir efeitos perante terceiros é necessário que haja o devido

registro.

Conforme dito anteriormente, a legislação civil em vigor possibilita aos

condôminos a elaboração de regras para fazerem parte da convenção de

condomínio, oportunizando o diálogo entre os co-proprietários, afim de que estes

apresentem idéias, sugestões e críticas em uma esfera democrática a ser

implementada em cada edifício, objetivando a prevalência do melhor argumento que,

ao final, será incluído no texto convencionado.

Porém, nem sempre os condôminos estão abertos para participarem de

círculos de discussão para a escolha e definição de regras, sendo que por vezes, a

racionalidade não é convidada para o debate, propiciando a inclusão no texto das

convenções de condomínio de regras que não retratam o interesse dos co-

proprietários, ou que se mostram frágeis em seus fundamentos de justificação.

Sabe-se que é na assembléia de condôminos que são decididos os rumos a

serem seguidos pela comunidade de co-proprietários, e a eficácia do conteúdo das

convenções, haja vista que o canal de comunicação entre os co-proprietários se

forma naquela assembléia, sendo possibilitado aos condôminos a oportunidade de

participação na elaboração das regras mediante as quais estarão submetidos.

A análise das assembléias será feita a seguir como forma de apresentação de

seus contornos tradicionais, para em seguida, serem definidas algumas condições

para a instauração de um procedimento dialógico e democrático de tomada de

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decisões e, principalmente, de elaboração de regras para a convenção de

condomínio.

3.2 A assembléia de condôminos

Primeiramente, será apresentado o contorno que, tradicionalmente, a doutrina

pátria atribui às assembléias de condôminos, e em seguida serão apresentadas

algumas contribuições, para que se analise aquele órgão deliberativo dentro de um

contexto que exige uma releitura voltada para o diálogo e a exposição democrática

de idéias, com o alcance da legitimidade de suas decisões fundada na racionalidade

dos argumentos colocados em discussão.

O que se denominou de contorno tradicional da assembléia de condôminos é

aquele que lhe apresenta como órgão deliberativo máximo do condomínio edilício,

formado pela reunião de todos os condôminos, e onde se discute temas

relacionados ao interesse comum da comunidade de co-proprietários, restando suas

decisões registradas em livro de atas específico e devendo ser instaurada de acordo

com os ditames da lei e da convenção de condomínio.

Não se trata de uma análise equivocada, contudo, se observada com um

pouco mais de cuidado, percebe-se, facilmente, que a assembléia de condôminos

instaurada no âmbito privado do condomínio edilício é bem mais do que uma

simples reunião de co-proprietários.

Caracteriza-se como verdadeiro fórum de discussão, onde devem ser

apresentados todos os tipos de questões suscetíveis de deliberação por parte dos

condôminos, seja por determinação legal ou por questões dialógica e

democraticamente incluídas nos textos convencionados.

Inúmeras são as questões suscetíveis de deliberação por parte das

assembléias de condôminos nas quais estão incluídas a aprovação da verba anual

para as despesas do condomínio e das contas da administração realizada pelo

síndico, a eleição e destituição deste, a resolução de contendas entre os

condôminos, enfim, possui amplos poderes deliberativos os quais deverão sempre

estar acompanhados de um procedimento que permita, na maior medida possível, a

participação ativa de todos os co-proprietários.

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Obviamente que o poder atribuído, pela lei, à assembléia de condôminos não

é ilimitado e nem absoluto, podendo sofrer intervenções do Poder Judiciário para

que normas de ordem pública não sejam violadas, bem como outras questões

ligadas à regularidade de instauração das assembléias e ao tema discutido entre os

co-proprietários estejam dentro da competência a eles atribuída, ou mesmo para

decidir questões, quando a assembléia se mostre impossibilitada de se reunir.

Não apenas ordenar ao sindico a convocação da assembléia compete ao juiz, como também decidir diretamente o assunto determinante do pedido de convocação. Há situações de improbabilidade da efetivação da assembléia, mesmo que o ordenar o juiz. Então, é mais conveniente à parte que dirija ao Judiciário o conhecimento direto da questão, postulando uma decisão. (RIZZARDO, 1991, p. 637)

Assim, obedecidas as regras de sua instauração estabelecidas na convenção

de condomínio, além do quorum definido nesta ou no texto legal, as assembléias de

condômino podem deliberar41 sobre tudo que diga respeito aos interesses da

comunidade de condôminos, inclusive a elaboração e/ou modificação da convenção

de condomínio e regimento interno, desde que observado o direito de todos os

condôminos à ampla participação no processo deliberativo, e também o respeito aos

direitos fundamentais de todos os co-proprietários, principalmente, os vinculados à

propriedade e que se encontram estabelecidos na escritura ou no próprio Registro

da unidade autônoma.

41 Em toda assembléia, seja ela ordinária ou extraordinária, necessária se torna a formação da mesa condutora dos trabalhos de deliberação da pauta, inclusive para decidir questões imediatamente colocadas sob suspeita ou que estejam em desacordo com a lei ou com as regras da convenção de condomínio. A mesa terá a seguinte formação: Presidente → qualquer dos condôminos ou terceiro idôneo que estejam presentes em assembléia pode assumir a presidência da mesa devendo ser evitada a nomeação do sindico, principalmente quando se trata de assembléia para eleição ou destituição do mesmo, ou para análise das contas de sua gestão. O presidente da assembléia conduz os trabalhos, dando voz ao condômino, deixando de registrar sua participação quando encontrar-se impedido (art. 1.335, inc. III do CCB/02), contando votos, conferindo procurações, encerrando os trabalhos e etc. Secretário → qualquer dos condôminos ou terceiro idôneo que estejam presentes em assembléia pode secretariar, devendo ser evitada a nomeação do sindico, nas mesmas circunstâncias suscitadas para o presidente. Tem a função de redigir a ata de assembléia, reduzindo a termo todos os atos, declarações e deliberações realizadas em assembléia. Quem pode manifestar, votar e ser votado → o condômino adimplente com as obrigações mensais ordinárias e extraordinárias quando houver. O condômino inadimplente não tem direito a voto e não poderá ser votado, a teor do artigo 1.335, inc. III do CCB/02. “Somente não pode votar o condômino em debito nas deliberações condominiais que dizem respeito à rotina administrativa, tais como eleição do corpo diretivo e fiscal, pequenas obras e serviços, cobranças de débito condominiais etc. É o que se extrai do inciso III acima transcrito. Contudo, quando a deliberação for sobre mudança na especificação do condomínio, na convenção ou no regimento interno, nas características do direito de propriedade, haverá a necessidade da participação de todos, inclusive do inadimplente.” (DOWER, 2004, p. 270)

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Além dessa competência deliberativa, a assembléia de condôminos ainda

pode funcionar de forma análoga à segunda instância do Poder Judiciário, ou seja, o

condômino pode apresentar recurso contra atos do síndico que venham a atingir-lhe,

sendo aquele analisado pela assembléia de condôminos a qual decidirá pela

permanência ou não do ato praticado.

A legislação anterior trazia expressamente essa possibilidade na norma do

artigo 22 § 3° da lei 4.591/64 42, o qual não foi mantido pelo texto codificado de 2002,

porém, mesmo com a revogação daquele artigo nenhum óbice há em que a

convenção de condomínio estipule todo o procedimento a ser seguido pelo

condômino interessado em recorrer das decisões do síndico, mormente daquelas

que lhe atinjam diretamente.

Inclusive, no que diz respeito à aplicação das multas previstas nos artigos

1.336 § 2° e 1.337 43 do CCB/02, aos condôminos faltosos, especificamente no caso

das multas previstas pelo artigo 1.337, o CJF na I Jornada de Direito Civil ocorrida

no mês de setembro de 2002, aprovou o Enunciado n.° 92 o qual estabelece que “as

sanções do art. 1.337 do novo Código Civil não podem ser aplicadas sem que se

garanta direito de defesa ao condômino nocivo.” (CONSELHO DA JUSTIÇA

FEDERAL, 2002, p. 66)

42 Art. 22. Será eleito, na forma prevista pela Convenção, um síndico do condomínio, cujo mandato não poderá exceder a 2 (dois) anos, permitida a reeleição. [...] § 3°. A Convenção poderá estipular que dos atos do síndico caiba recurso para a Assembléia, convocado pelo interessado. (BRASIL, 1964) 43 Art. 1.336. São deveres do condômino: [...] § 2°. O condômino, que não cumprir qualquer dos dev eres estabelecidos nos incisos II a IV, pagará a multa prevista no ato constitutivo ou na convenção, não podendo ela ser superior a 5 (cinco) vezes o valor de suas contribuições mensais, independentemente das perdas e danos que se apurem; não havendo disposição expressa, caberá à assembléia geral, por 2/3 (dois terços) no mínimo dos condôminos restantes, deliberar sobre a cobrança da multa. Art. 1.337. O condômino, ou possuidor, que não cumpre reiteradamente com os seus deveres perante o condomínio poderá, por deliberação de ¾ (três quartos) dos condôminos restantes, ser constrangido a pagar multa correspondente até ao quíntuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, conforme a gravidade das faltas e a reiteração, independentemente das perdas e danos que se apurem. Parágrafo único. O condômino ou possuidor que, por seu reiterado comportamento anti-social, gerar incompatibilidade de convivência com os demais condôminos ou possuidores, poderá ser constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, até ulterior deliberação da assembléia. (BRASIL, 2002)

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Apesar do Enunciado n.° 92 não tratar, expressamen te, da punição prevista

na norma do artigo 1.336, § 2°, entende-se que deve ser concedida oportunidade de

defesa ao condômino sobre o qual recai a punição nele estabelecida, em virtude do

quantum punitivo estabelecido naquela norma (cinco vezes o valor das contribuições

mensais) ser idêntico a um dos valores estipulados no artigo tratado pelo enunciado.

As decisões tomadas em assembléia obedecerão aos quoruns estabelecidos

em lei, e também, na convenção de condomínio, contudo, a norma do artigo 1.352

do CCB/02, estabelece que as deliberações das assembléias devem ocorrer, em

primeira convocação, através dos votos da maioria dos condôminos presentes que

representem pelo menos metade das frações ideais do edifício, e em segunda

convocação através da maioria (simples) dos votos dos presentes, excetuando-se os

casos em que a lei exija quorum especial.

No que tange à contagem dos votos, estes serão proporcionais às frações

ideais de cada unidade autônoma nas partes comuns do terreno e da edificação,

salvo disposição contrária na convenção de condomínio, conforme estabelece a

norma do artigo 1.352, parágrafo único do CCB/02.

Apesar de ser una a assembléia de condôminos, receberá nomenclatura

diversificada de acordo com a matéria estabelecida para a deliberação e a

freqüência com a qual se observa a sua instauração, assim, denomina-se

assembléia geral ordinária aquela que se reúne conforme a norma do artigo 1.350

do CCB/02, para tratar de assuntos específicos, quais sejam, eleição de novo

sindico, análise de previsão de gastos para o próximo exercício, regularidade das

contribuições dos condôminos para os gastos ordinários do condomínio e prestação

de contas da administração que está findando.

Essa assembléia ocorrerá, anualmente, de acordo com a data e a forma

estabelecida na convenção de condomínio, podendo ser convocada pelo síndico ou

por ¼ (um quarto) dos condôminos de acordo com o artigo 1.350 § 1° do CCB/02.

A lei não dispensa

[...] realização da Assembléia Geral Ordinária pelo menos uma vez por ano. Trata-se de disposição de ordem pública, que a Convenção não pode contrariar, até porque o orçamento das despesas de conservação do edifício e manutenção de seus serviços deve ser anualmente submetido à Assembléia Geral dos condôminos. Igualmente, deve o síndico submeter suas contas à deliberação da Assembléia, sendo conveniente que o faça na Assembléia Geral Ordinária em que se deliberar sobre o orçamento do novo período administrativo anual. Devendo o orçamento e as contas do

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sindico ser anualmente aprovados pela Assembléia Geral Ordinária, segue-se a indispensabilidade de sua reunião, sob pena de aquelas matérias serem submetidas ao Poder Judiciário, mediante requerimento dos interessados. (FRANCO; GONDO apud LOPES, 1996, p. 451)

Por outro lado, denomina-se assembléia geral extraordinária aquela que se

torna competente para tratar de todos os demais assuntos que não são de

competência da assembléia geral ordinária e que, não obstante, sejam de interesse

de todos os condôminos. Poderá ser convocada pelo síndico ou por ¼ dos

condôminos de acordo com o artigo 1.355 do CCB/02 sempre que a necessidade se

fizer presente.

Apenas como demonstrativo da diversidade de quoruns exigidos pela lei, em

virtude da natureza do assunto sobre o qual haverá deliberação em assembléia,

apresentam-se os seguintes: artigo 1.349→ maioria das frações ideais; artigo

1.350→ 1/4 (um quarto) das frações ideais; artigo 1.333, 1.336 §2° e 1.342→ 2/3

(dois terços) das frações ideais; artigo 1.337 caput→ 3/4 (três quartos) das frações

ideais e artigo 1.343→ unanimidade das frações ideais.

De todas as competências reservadas à assembléia de condôminos, uma

receberá maior destaque neste trabalho em virtude das conclusões a que se espera

chegar ao final, assim, é com a instauração daquela assembléia que se torna

possível a elaboração das regras que formarão as convenções de condomínio,

juntamente com as outras estipuladas em lei.

Aquela elaboração dar-se-á através da participação efetiva dos co-

proprietários que, reunidos em assembléia geral, decidem discursiva e

democraticamente o conteúdo das regras frente as quais estarão submetidos, bem

como todas as pessoas a eles equiparadas por lei e a terceiros que freqüentem o

edifício, sendo tratado a seguir a forma através da qual poderá restar concretizado o

procedimento de elaboração das convenções de condomínio.

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3.2.1 A participação democrática na assembléia de c ondôminos e a

contribuição dos co-proprietários na elaboração da convenção de condomínio

A dimensão da participação democrática dos co-proprietários no âmbito

privado do condomínio edilício merece ser elucidada, vez que o termo democracia

encontra-se vinculado a uma forma de envolvimento do cidadão com o exercício do

poder político em sociedade44, significando, em termos gerais

a efetiva participação do povo nas decisões e destinos do Estado, seja através da formação das instituições representativas, seja através do controle da atividade estatal. Em síntese, traduz-se na idéia de que o povo é o verdadeiro titular do poder, mesmo que este seja exercido através de representantes eleitos. Nela os representantes devem se submeter à vontade popular, bem como a fiscalização de sua atividade; o povo deve viver numa sociedade livre, justa e igualitária. (DIAS, 2001, p. 224)

Assim, o que se pretende daqui em diante é verificar de que forma a atuação

dos condôminos nas assembléias pode assumir uma conotação democrática, e de

que forma esse agir democrático influencia na elaboração das regras que farão parte

da convenção de condomínio.

A democracia é pensada, enquanto regime político, na maioria das vezes,

para a aplicação em um contexto mais abrangente e complexo do que o que resta

analisado neste trabalho, estando diretamente vinculada às sociedades que exigem

a adoção de um estilo de vida pautado em valores como a liberdade e a igualdade,

retirando do interesse comum de seus integrantes o poder legitimador capaz de

fundamentar as decisões tomadas em prol daquela sociedade.

[...] a democracia é concebida sobretudo como um regime político, pois, sendo o governo do povo, pelo povo e para o povo, que o exerce direta e indiretamente, expressa um estilo de vida política e se converte numa

44 Três tipos de democracia são apontados por Silva (2001) vinculando cada uma delas à forma pela qual o povo participa do poder político, sendo elas direta, indireta ou representativa e semidireta. Na Democracia direta o povo exerce, por si, os poderes governamentais, legislando, administrando e julgando; por outro lado, na Democracia indireta (ou democracia representativa) o povo – que é fonte primária do poder – não interfere diretamente nas questões de Estado em virtude de diversas questões como extensão territorial, densidade demográfica e complexidade dos problemas sociais, e assim sendo, outorga as funções de governo aos seus representantes, os quais são eleitos periodicamente. Por fim, na Democracia semidireta são disponibilizados alguns institutos de participação direta do povo nas funções de governo, institutos que, dentre outros, integram a democracia participativa.

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filosofia de vida que se institucionaliza politicamente no Estado, como forma de convivência social. (CARVALHO, 2007, p. 212)

Na verdade, um Estado que se pretenda democrático tem no principio da

soberania popular um de seus fundamentos, o qual, de acordo com Silva (2001),

impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, não se exaurindo

aquela participação na formação de instituições representativas – as quais

representam um estágio da evolução do Estado democrático, mas não o seu

completo desenvolvimento – já que a realização do principio democrático mostra-se

como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana.

A idéia de uma participação democrática adequada às necessidades de uma

sociedade plural e complexa levou Pettit (2003) a pensar em uma espécie de

democracia, onde as decisões tomadas pelas autoridades públicas representassem

os anseios dos interessados, em que estes pudessem se reconhecer nas decisões

públicas, as quais abandonariam o perfil arbitrário de interferência do poder público

(em qualquer de suas esferas: legislativa, executiva e judiciária). Tal forma de

democracia seria alcançada através do que denominou de contestabilidade, onde

A idéia de contestabilidade oferece-nos uma chave para a resposta correta à nossa pergunta: o que poderia tornar um indivíduo dentre nós capaz de aprovar uma decisão pública? O que poderia fazer essa decisão não parecer um ato arbitrário de interferência? A resposta, implícita em si mesma, é a seguinte: podemos, mais ou menos efetivamente, contestar a decisão tomada, se a considerarmos contrária a nossos interesses e a nossas idéias relevantes. (PETTIT, 2003, p. 371)

Na verdade, foram estabelecidas pelo autor três pré-condições para que a

contestabilidade se instaure e que se possa dizer em uma democracia no sentido

contestatório, e a primeira delas é a observação de um ambiente democrático, onde

o cidadão tem condições de, individual ou coletivamente, e de forma

permanentemente, contestar qualquer decisão pública.

Como base desse processo democrático, mostra-se necessária a abertura e a

possibilidade de contestação por intermédio de procedimentos disponibilizados aos

interessados, onde deverão ser formados canais de interlocução (provenientes

diretamente do setor que pretenda contestar) direcionadores das contestações

surgidas na sociedade, e como conseqüência, há que se formar fóruns de discussão

garantidos para a oitiva daquelas contestações que se fizerem contra as decisões

públicas.

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No final das contas, e como forma de lançar um outro olhar sobre a

democracia, essa “discussão tem-se centrado nos imperativos de inclusão que se

fazem necessários, para que as pessoas possam dispor de uma maneira de

contestar as decisões públicas.” (PETTIT, 2003, p. 376)

Verificado o âmbito público para o qual a democracia fora delineada, nenhum

empecilho há quando grupos menores constituídos no seio de sociedades

democráticas seguem este mesmo perfil (democrático) no trato das questões

privadas que lhe dizem respeito.

Portanto, no contexto deste trabalho e considerando o condomínio edilício

como um grupo de co-proprietários, não seria coerente que essa comunidade

peculiar se estabelecesse desconectada com a realidade democrática vivida no

Brasil, mormente, após a promulgação da Constituição da República de 1988.

À medida que se reduz a dimensão dos grupos sociais e que se alcançam

grupos cada vez menores dentro de uma mesma sociedade, verifica-se que a

atuação democrática no interior destes grupos, inspira o exercício democrático do

poder na esfera pública e vice-versa, ou seja, a constituição de pequenos grupos,

onde se observa, internamente, que a atuação democrática de seus membros é

incentivada na medida em que a sociedade em que aquela se insere, também se

caracterize como democrática.

A relação supra mencionada é realizada por Sartori (1994) através de outra

relação, qual seja, a existente entre o sentido político da democracia – cunhado no

século V a.C. e que a acompanhou, solitariamente, por muito tempo – e outros

sentidos apolíticos ou subpolíticos (todos legítimos), quais sejam, democracia social,

democracia industrial e democracia econômica.

O conceito de democracia social45, inicialmente cunhado por Tocqueville no

século XIX, retrata a idéia de democracia como um estilo de vida, o estilo geral de

uma sociedade “cujo ethos requer que seus membros se concebam como seres

socialmente iguais.” (SARTORI, 1994, p. 25)

45 Sartori (1994) salienta que não há como confundir a democracia social com a Social Democracia (enquanto nomenclatura partidária), e muito menos com a democracia socialista, tendo em vista que aquela existe no plano social de forma espontânea e possui natureza endógena, ao passo que a democracia socialista trata-se de um programa político imposto à uma determinada sociedade, por um Estado socialista, ou seja, a democracia social (enquanto estilo de vida) organiza-se de baixo para cima, a democracia socialista (enquanto estilo de governo) organiza-se de cima para baixo.

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O rótulo de democracia social também se aplica, em conseqüência, à rede de democracias primárias – pequenas comunidades e organizações voluntárias – que podem florescer por toda a sociedade, proporcionando assim a infraestrutura e a coluna vertebral social da superestrutura política. Uma sociedade multigrupal em que a unidade “grupo” consiste de grupos democraticamente estruturados qualifica-se também como democracia social. (SARTORI, 1994, p. 25)

Quanto à democracia industrial, Sartori (1994) ressalta que o seu surgimento

ocorreu no interior das fábricas, durante o transcurso do século XIX, tomando

aqueles locais como unidade de autogoverno do trabalhador, onde o processo

decisório seguia, de forma adaptada, a democracia direta dos gregos, onde o

membro da comunidade política – o polites – é substituído pelo trabalhador em seu

local de trabalho.

Por último, a democracia econômica é tratada por Sartori (1994) como

conceito multifacetado, podendo ser entendido como extensão da democracia

política, já que objetiva a redistribuição da riqueza, com a equalização das condições

e oportunidades econômicas a todos, mas também, pode ser entendida como um

dos significados de democracia industrial, sendo, neste caso, ligado ao controle do

trabalhador sobre a economia, e assim, a democracia econômica consistiria na

igualdade de controle sobre o processo produtivo econômico.

Nesse diapasão, enquanto a democracia econômica torna-se um programa

de ação da própria democracia política, a democracia social e a industrial, enquanto

conotações não-políticas de democracia, aplicam-se às realidades estruturais

especificas, não se referindo aos problemas da democracia no âmbito da sociedade

política, ou seja, do Estado, não sendo também administradas por este.

Não obstante, Sartori (1994) co-relaciona a democracia política com aquelas

formas apolíticas de democracia tratadas nos parágrafos anteriores, estabelecendo,

primeiramente, que a democracia no sentido político é uma macrodemocracia de

larga escala – incidente em entidades supra-ordenadas –, e por outro lado, as

democracias social e industrial são microdemocracias de pequena escala –

incidentes em entidades subordinadas –, ou seja, a democracia política é uma forma

de democracia soberana supra-ordenada, enquanto as outras são democracias

subordinadas, porém, a relação existente entre elas é de tal forma que, se a

sociedade política não se caracterizar como uma democracia, há pouca

probabilidade das entidades subordinadas caracterizarem-se ou sobreviverem-se

como democracias.

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Permanece o fato de que a democracia política é a condição indispensável, o instrumento indispensável de qualquer democracia ou meta democracia que acalentemos. Se o sistema principal, o sistema político global, não é um sistema democrático, então a democracia social tem pouco valor, a democracia industrial tem pouca autenticidade, e a igualdade econômica pode não diferir da igualdade entre os escravos. (SARTORI, 1994, p. 28)

E assim, aquele autor vincula as dimensões do “grupo” onde se pretende

implementar a solução de questões políticas ou não, através da participação

democrática de seus membros, ou seja, quanto maior o “grupo”, maior será a

distância do sentido de um autogoverno e menor será a sua autenticidade enquanto

democracia direta, por outro lado, quanto menor o “grupo” mais intensa será a

participação dos interessados, pois

Quando falamos em autogoverno, mostramos que a intensidade do conceito é inversamente proporcional à sua extensão (no espaço e no tempo). A regra aplica-se de forma ainda mais simples e intuitiva à participação definida como um tomar parte pessoal e voluntário; sua intensidade – isto é, autenticidade e efetividade – é inversamente proporcional ao número de participantes. (SARTORI, 1994, p. 159)

Seguindo o norte traçado pela doutrina supra mencionada, pode-se trabalhar

de maneira análoga com o condomínio edilício, vislumbrando em seu âmbito privado

o que fora denominado de microdemocracia, onde são observadas relações

interpessoais que devem, necessariamente, pautar-se por uma conduta democrática

quando das decisões dos assuntos de interesse da comunidade condominial,

através da participação direta46 do condômino, bem como, quando se trata da

elaboração da convenção de condomínio e regimento interno, mediante a escolha

das regras que formarão o conteúdo daqueles instrumentos reguladores.

46 E essa participação dar-se-á nos moldes de uma democracia direta, na medida em que o condomínio edilício é constituído por um grupo reduzido de interessados (os co-proprietários), o que proporciona a instauração das condições adequadas para o exercício daquela forma de tomada de decisão, pois, “qualquer democracia direta é, de certa forma, uma democracia autogovernante. Mas sabemos que o sentido de autogoverno relaciona-se de maneira crucial com o fator tamanho, assim como o sentido e a realidade da democracia direta. Pode-se dizer que uma democracia direta, literal, autenticamente autogovernante só existe em grupos relativamente pequenos – até grupos do tamanho de uma assembléia, digamos. Além do tamanho de uma assembléia, a diferença mais significativa é, a meu ver, entre uma democracia direta observável e uma democracia direta cujo tamanho escapa à possibilidade de observação direta, isto é, uma democracia direta maior que a observável. Para exemplificar, a democracia dos antigos classifica-se entre as observáveis, pois, constituía-se não apenas de uma reunião de cidadãos num único lugar, mas também de um comportamento observável dos participantes.” (SARTORI, 1994, p. 157)

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Por certo que ao teor do artigo 1° caput da CR/88, que institui no Brasil o

Estado democrático de direito, e nos termos supra mencionados da relação

existente entre as esferas de uma democracia política (macrodemocracia) e das

formas apolíticas de democracia (microdemocracia), outro quadro não poderia surgir

senão, a formação de um ambiente privado ordenado por fundamentos

democráticos que se apresentam desde a regulamentação da conduta exigida entre

os co-proprietários, até as limitações ao exercício do direito de propriedade sobre

cada unidade autônoma.

Em outras palavras, a participação dos co-proprietários nas assembléias, seja

para a discussão e resolução de assuntos de interesse de todos os condôminos,

seja para a elaboração das regras da convenção de condomínio e do regimento

interno, deve ocorrer mediante a observação de parâmetros democráticos de

conduta, na medida em que se vive no Brasil sob as prerrogativas de um Estado

democrático de direito, o qual possui a democracia como pressuposto, seja na

esfera pública de exercício da cidadania, ou nas relações privadas entre os

particulares.

Aos modelos de democracia expostos acima, apresenta-se outro que utiliza a

forma deliberativa como elemento de um processo de comunicação capaz de

fundamentar decisões políticas racionais e que foi proposta por Habermas (2007)

com a denominação de democracia deliberativa, focalizando sobremaneira a forma

de constituição da opinião e da vontade públicas para estabelecer, segundo o autor,

um procedimento democrático ideal para o aconselhamento e a tomada de decisões.

Por deliberação, Reese-Shäfer (2008) esclarece tratar-se de forma de decisão

tomada por intermédio de discussão, ao contrário de uma decisão baseada,

exclusivamente, na ordem, assim, tecendo comentário a respeito da teoria discursiva

de Habermas, aquele autor indica como ponto forte da teoria, o fato de que através

dela não se objetiva analisar o conteúdo ou o resultado da deliberação efetivamente

tomada, mas sim, a realização procedimental e democrática de formação da

vontade.

A referência empírica do conceito de uma política deliberativa, segundo

Habermas (2007), somente é alcançada quando se percebe a diversidade de formas

comunicativas que compõe a vontade comum, ou seja, de um auto-entendimento

mútuo, principalmente, objetivando a tomada de decisão em prol de uma

determinada comunidade, do estabelecimento de acordos juridicamente coerentes e

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em busca do equilíbrio dos interesses divergentes, além da escolha racional de

instrumentos voltada para determinada finalidade.

Portanto,

Esse procedimento democrático cria uma coesão interna entre negociações, discursos de auto-entendimento e discursos sobre a justiça, além de fundamentar a suposição de que sob tais condições se almejam resultados ora racionais, ora justos e honestos. Com isso a razão prática desloca-se dos direitos universais do homem ou da eticidade concreta de determinada comunidade e restringe-se a regras discursivas e formas argumentativas que extraem seu teor normativo da base validativa da ação que se orienta ao estabelecimento de um acordo mútuo, isto é, da estrutura da comunicação lingüística. (HABERMAS, 2007, p. 286)

Esse princípio da democracia deliberativa, segundo Costa (2003), pressupõe,

de forma preliminar e necessária, a possibilidade de questões práticas serem

resolvidas de forma racional e através do discurso, ou seja, através de um agir

comunicativo racional voltado para o consenso do qual depende a legitimidade das

leis produzidas.

Assim, aquele autor conclui que, partindo-se do pressuposto de que é

possível a formação político-racional da vontade, torna-se implícita a necessidade da

institucionalização dessa vontade e opinião políticas racionais, através de um

sistema de direitos que ofereça garantia aos interessados no debate, de participação

igualitária no processo de elaboração das normas jurídicas, ou seja, aquele modelo

deliberativo de democracia “tem como implicação a institucionalização externa e

eficaz da participação simétrica numa formação discursiva da opinião e da vontade,

a qual se realiza em formas de comunicação garantidas pelo Direito.” (COSTA,

2003, p. 43)

Todas essas facetas da democracia foram mencionadas com o objetivo de se

estabelecer um ponto de conexão entre uma esfera pública de exercício da

democracia, e a esfera privada de uma comunidade condominial, formada por

proprietários que passam a exercer, conjuntamente, a titularidade dos direitos que

possuem sobre as partes comuns do edifício, onde se encontra a unidade

autônoma, objeto de seu direito.

Aquela conexão é importante para que se demonstre a semelhança existente

entre algumas características observadas na estrutura das macrodemocracias que

se refletem – guardadas as devidas proporções – nas microdemocracias, e no caso

em tela, no que tange à administração do bem comum, à aplicação de punições e a

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possibilidade de recurso frente a estas, além da atribuição de legitimidade às regras

estabelecidas na convenção.

Sabe-se que a convenção de condomínio não é constituída em sua totalidade

por regras elaboradas diretamente pelos condôminos, havendo disposição expressa

para que aquela estabeleça a discriminação, individualização e a finalidade de cada

unidade autônoma, a determinação da fração ideal, a forma de administração do

condomínio e do rateio de suas despesas mensais entre os condôminos, a

competência das assembléias com os respectivos quoruns, as sanções aplicáveis e

o regimento interno, tudo conforme a norma do artigo 1.334 do CCB/02.

Por outro lado, esse mesmo artigo que reflete o perfil democrático trazido pela

CR/88 permite aos co-proprietários de unidades autônomas em condomínio edilício,

a participação na elaboração das regras que estarão presentes no texto da

convenção de condomínio, sendo que a legitimidade daquelas regras será extraída

da dinâmica democrática e dialógica atribuída à assembléia de condôminos

convocada para esse fim.

3.2.1.1 O agir democrático na elaboração das regras da convenção de

condomínio

Pretende-se com toda essa discussão verificar no condomínio edilício, a

constituição de relações interpessoais capazes de caracterizá-lo como uma

microdemocracia que reflete em seu âmbito privado – guardadas as devidas

proporções – as relações para a tomada de decisão e elaboração de normas que se

estabelecem nas macrodemocracias das quais aquele faz parte.

Nesse norte, seguindo-se um perfil de democracia deliberativa, onde o

discurso assume o papel de um agir racional capaz de produzir consenso entre os

interessados no debate, é que se torna necessária a instauração, no âmbito privado

do condomínio edilício, de pressupostos democráticos capazes de conferir

legitimidade às deliberações tomadas para o atendimento do interesse comum

surgido em virtude do exercício conjunto da titularidade da propriedade sobre as

partes comuns da edificação, onde se instituiu aquela forma especial de condomínio.

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Portanto, dizer que a forma democrática de elaboração das regras da

convenção de condomínio confere legitimidade às mesmas, pressupõe a construção

de um procedimento dialogicamente fundamentado, tomando o debate entre os co-

proprietários – sujeitos igualmente considerados – como um elemento fundamental a

ser observado, principalmente, nas assembléias de condôminos.

Sabe-se que o ordenamento jurídico brasileiro faculta aos co-proprietários de

unidades autônomas em condomínio edilício, a elaboração de regras pertinentes ao

cotidiano vivido na comunidade condominial, as quais deverão fazer parte do

conteúdo da convenção de condomínio que regula o exercício do direito de

propriedade (sobre partes exclusivas e comuns) no âmbito privado das edificações.

Assim como as normas elaboradas pelo Poder Público, mormente o

Legislativo, as regras elaboradas no âmbito privado do condomínio edilício devem

seguir um caminho democraticamente traçado na própria convenção, para que

aquelas adquiram legitimidade perante a comunidade de co-proprietários, e também,

frente a terceiros que venham sofrer os efeitos daquele conjunto de regras.

Esse agir democrático deve ser observado em todas as assembléias que se

instauram para a deliberação de questões inerentes aos interesses dos co-

proprietários, mas principalmente, naquelas onde se decidirá pela elaboração ou

alteração das regras que compõem as convenções de condomínio, para que estas

alcancem a legitimidade pretendida, e também, em virtude do paradigma do Estado

democrático de direito instaurado no Brasil, desde 1988.

Nesse paradigma, a democracia torna-se pressuposto das relações dos

particulares entre si, e também, das relações que se estabeleçam entre o particular

e o Estado, inclusive possibilitando àquele, através de instrumentos trazidos pelo

mesmo texto constitucional, certo grau de interferência nas decisões políticas.

Assim, as regras da convenção de condomínio que não possuem o seu

conteúdo definido em lei, devem buscar a sua legitimidade no procedimento adotado

para a sua elaboração, tornando-se inadmissível a inclusão de regra no texto

convencionado, cuja aprovação não tenha seguido um caminho, democraticamente

construído e que não reflita o interesse comum dos co-proprietários daquela

comunidade condominial manifestado em assembléia.

Tendo em vista o que fora exposto sobre a atuação democrática em

entidades supra-ordenadas e subordinadas – no conceito de Giovanni Sartori –

torna-se necessário verificar de que forma a atuação dos condôminos nas

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assembléias pode assumir uma conotação democrática, e de que forma essa

conduta influencia nas regras que farão parte da convenção de condomínio e do

regimento interno do condomínio edilício.

Para isso, algumas condutas básicas podem ser elencadas com a ressalva de

que em cada edifício há uma realidade diversa que exigirá condutas democráticas

adaptadas às exigências fáticas de cada caso, sendo assim, não há como traçar de

forma definitiva – como numerus clausus – as condutas a serem seguida pelo

condômino não só em assembléias, mas também, no exercício do seu direito de

propriedade.

Primeiramente, presumem-se que os pressupostos democráticos se

encontram presentes em toda assembléia geral instaurada em condomínio edilício,

inclusive como forma de conferir legitimidade às deliberações realizadas,

principalmente aquelas que se dedicam à discussão e a elaboração das regras que

constituirão a convenção de condomínio ou que dela passarão a fazer parte

mediante as alterações permitidas pelo ordenamento jurídico.

Ao se decidir pela instauração de assembléia de condôminos na qual serão

escolhidas as regras para a composição da convenção de condomínio, o síndico ou

um ¼ (um quarto) dos condôminos deverão promover a convocação de todos os

proprietários de unidades autônomas no edifício, informando-lhes da pauta a ser

discutida em dia e hora definidos, com antecedência estabelecida na própria

convenção.

Tal conduta, visando ao comparecimento do maior número possível de

interessados, será eficaz, na medida em que os responsáveis pela convocação não

se limitarem, somente, à forma de convocação estabelecida na convenção, mas sim,

estabelecerem uma forma que garanta a ciência de todos os proprietários, para que

estes possam, livremente, escolher se devem ou não participar da assembléia

noticiada.

Na verdade, a convocação de todos os condôminos é uma medida

democrática estabelecida na norma do artigo 1.353 do CCB/02, quando estabelece

que a assembléia encontra-se impedida de deliberar se algum dos proprietários não

tiver sido convocado no prazo e da forma estabelecidos na convenção.

Ultrapassada a fase de convocação e de divulgação dos assuntos que serão

tratados em assembléia, instaurada a mesma em dia e hora definidos, garantidos

outros requisitos como quorum mínimo de instauração e constituição da mesa

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assemblear, os debates iniciam-se na ordem estabelecida no edital, devendo ser

concedidas a todos os interessados amplas condições de participação.

A participação do condômino mediante apresentação de proposições

racionais em busca de composição da convenção de condomínio, com novas regras

mediante as quais todos os proprietários estarão submetidos, é uma conduta

compatível com o perfil democrático aqui discutido, pois, demonstra o interesse do

co-proprietário em interferir no uso e administração do patrimônio comum que se

constitui no condomínio edilício.

Durante os debates que se instauram nas assembléias de condôminos,

coaduna-se com o perfil democrático a condução dos trabalhos, conforme as regras

da convenção ainda em vigor, seguindo, efetivamente, a pauta veiculada em edital

publicado nos moldes definidos naquele instrumento convencionado.

Além disso, torna-se necessário que os co-proprietários estejam suscetíveis

às opiniões dos outros condôminos, entendendo que haverá, por vezes, a

necessidade de se fazer concessões, devendo pautar a sua conduta pela

solidariedade, principalmente em assembléia, haja vista que o exercício do direito de

propriedade em condomínio edilício exige do seu titular o reconhecimento de que ele

é um dos membros que formam a comunidade de co-proprietários, que possuem

direitos equivalentes.

Esgotadas as possibilidades de discussão através da garantia de iguais

liberdades de participação a todos os interessados e deliberando os condôminos em

observância aos quoruns estabelecidos em lei e/ou na convenção, deve-se

promover a divulgação dos resultados alcançados em assembléia de acordo com a

convenção ou da forma que garanta a maior publicidade possível, inclusive com o

registro da convenção no competente Cartório de Registro de Imóveis para conferir

validade do texto convencionado perante terceiros.

Mesmo após a observação de todas essas condutas é aconselhável que seja

incluída no texto da convenção de condomínio, regra que atribua ao condômino a

possibilidade de apresentação de recurso perante o conselho consultivo/fiscal ou a

assembléia, contra os atos praticados pela administração em geral, estabelecendo o

procedimento a ser seguido até a efetiva decisão assemblear acerca da

manifestação “recursal” apresentada.

Essa forma democrática de agir fará com que o condômino se reconheça

perante as regras que foram elaboradas ou alteradas na convenção, fazendo com

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que as mesmas alcancem a legitimidade através do procedimento democrático

estabelecido, inclusive frente àquele condômino que teve suas propostas recusadas

na assembléia, pois, provocará o sentimento de respeito à regra legitimamente

construída através da instauração de um amplo espaço destinado ao debate,

mediante apresentação de diferentes idéias e sugestões, que na maioria das vezes,

busca na deliberação, o melhor argumento para a comunidade de co-proprietários.

Portanto, conclui-se que o procedimento democrático de elaboração das

regras da convenção de condomínio deve ser estruturado sobre as bases do

diálogo, do debate entre opiniões diversas a respeito dos temas de interesse da

comunidade condominial, como forma de permitir a todos os condôminos a

possibilidade de participar da construção daquelas regras. Essa questão discursiva

será analisada a seguir.

3.2.3 A legitimidade das regras da convenção de con domínio e as assembléias

como arenas destinadas ao debate entre os co-propri etários

Na medida em que se pode identificar no condomínio edilício o perfil de

microdemocracias que refletem os pressupostos de organização das relações

interpessoais para a tomada de decisão e elaboração de normas verificadas nas

macrodemocracias, é que se torna necessário buscar os elementos intrínsecos à

legitimidade das regras que fazem parte das convenções de condomínio e que são

criadas pelos co-proprietários de unidades autônomas, mediante expressa

autorização legal.

Portanto, se pretende-se buscar a legitimidade das regras da convenção de

condomínio com fundamento na institucionalização interna ao edifício de um

procedimento capaz de atribuir a todos os condôminos interessados a garantia, na

maior medida possível, de iguais liberdades de participação no processo de criação

daquelas regras, torna-se necessário tomar como referencial o principio da

democracia que confere ao discurso um lugar privilegiado47.

47 Habermas (2003b) analisa o processo democrático tendo como ponto crucial uma política deliberativa, situação que gera conseqüências frente aos modelos tradicionalmente estabelecidos (liberal e republicano) de democracia na medida em que a razão prática, a partir daquele caso,

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O discurso assume, neste trabalho, o sentido elucidado por Galuppo (2002),

como sendo o de um agir confiável (enquanto ação racional) que procura,

argumentativamente, convencer o interlocutor a respeito da validade de seu

enunciado, buscando a produção de consenso entre os interessados a respeito do

conteúdo de um tema debatido.

Contudo, ressalta-se que a perspectiva do discurso utilizada abaixo,

encontrar-se-á estruturada, prioritariamente, ao redor da justificação das regras que,

democraticamente, serão elaboradas pelos condôminos, não obstante a ciência de

que também há necessidade de utilização de discursos de aplicação daquelas

regras, em virtude de sua incapacidade de previsão antecipada de todas situações

fáticas que se apresentam.

Neste sentido, Habermas citado por Galuppo (2002, p. 144) aponta para a

impossibilidade dos discursos de justificação, em considerar todos os possíveis

casos futuros de aplicação da norma, e que, portanto, em tais situações a

imparcialidade de julgamento não é alcançada através do princípio da

universalização, mas sim, através do principio da adequabilidade das normas válidas

ao caso concreto.

Em um contexto, em que se busca, através do Direito, proporcionar um

ambiente jurídico capaz de garantir a expressão de uma vontade comum entre os

indivíduos que se encontram livremente reunidos,

[...] o principio da democracia destina-se a amarrar um procedimento de normatização legitima do Direito. Ele significa, portanto, que somente podem pretender ter validade legitima leis jurídicas capazes de ter o assentimento de todos os parceiros de Direito em um processo de normatização discursiva. O principio da democracia contém, por conseguinte, o sentido performativo intersubjetivo necessário da prática da autodeterminação legítima de membros do Direito que se reconhecem como membros iguais e livres de uma associação intersubjetiva estabelecida livremente. (COSTA, 2003, p. 42) (Grifo nosso)

A proposta de institucionalização de um procedimento que busque a efetiva

participação dos co-proprietários nas decisões de interesse de todos os que

integram uma determinada comunidade condominial, encontrará pela frente um

ambiente constituído por uma diversidade de problemas das mais variadas espécies,

desloca-se dos direitos humanos universais ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade, para as regras do discurso e as formas de argumentação, que retiram o seu conteúdo normativo da base de validade do agir orientado pelo entendimento.

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desde questões pessoais entre os condôminos, passando por problemas

econômico-administrativos para o gerenciamento e quitação das obrigações

assumidas, até questões estruturais da edificação que, não raramente, são objeto de

fiscalização pelo Poder Publico Municipal.

Independentemente da dimensão das edificações, nas quais se encontra

instituído o condomínio edilício – dos pequenos edifícios aos grandes conjuntos

habitacionais – cada unidade autônoma possui dentro de si uma realidade diferente,

com características diferentes, composta por pessoas com valores e hábitos

absolutamente distintos, o que vai exigir dos co-proprietários, e principalmente dos

administradores, uma capacidade aguçada de resolução e apaziguamento de

conflitos.

Tal situação constrói, no âmbito privado de cada condomínio edilício, uma

realidade complexa diferente, constituída pela pluralidade dos interesses verificados

internamente e que são característicos de cada conjunto de condôminos que se

reúnem em uma determinada edificação, tornando-se necessário o estabelecimento

de regras administrativas e de conduta adequadas especificamente para cada

comunidade condominial observada em si mesma, a fim de viabilizar uma

convivência no mínimo harmoniosa e organizada, segundo o perfil almejado pelos

próprios condôminos.

O pluralismo e a complexidade das comunidades de co-proprietários

formadas no âmbito privado do condomínio edilício, também são vivenciados no

âmbito público48 com intensidade muito superior, assim, tanto em um quanto em

outro, as normas e regras aplicáveis necessitam de buscar a legitimidade de seus

conteúdos para que produzam os efeitos esperados por aqueles que a elas estão

submetidas.

Na perspectiva de uma democracia deliberativa, a participação dialógica dos

interessados na elaboração das normas, faz-se necessária como forma de conferir-

lhes legitimidade através da institucionalização de procedimentos de formação

48 A CR/88 reconhece, segundo Silva (2001), o pluralismo vivenciado pela sociedade brasileira e promove a proteção dos interesses das diversas categorias sociais, de classes, grupos sociais, econômicos, culturais e ideológicos, acolhendo uma sociedade conflitiva, de interesses contraditórios e antinômicos, e buscando construir o equilíbrio entre as múltiplas tensões que se apresentam, para conciliar a sociabilidade e o particularismo através da administração dos antagonismos.

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racional49 e coletiva da vontade, por outro lado, no aspecto privado relativo ao

condomínio edilício, torna-se interessante a utilização dos pressupostos daquele

modelo de democracia para fundamentar a legitimação das regras da convenção de

condomínio que são elaboradas pelos próprios condôminos, a partir da permissão

legal contida na norma do artigo 1.334 do CCB/02.

Assim, a utilização de alguns dos elementos da teoria do discurso para a

atribuição de legitimidade das regras da convenção de condomínio, encontrou sua

primeira motivação na necessidade de instauração de um ambiente democrático

para o desenvolvimento e aplicação daquela teoria, ambiente que também se exige

no âmbito privado do condomínio edilício, conforme mencionado alhures. Observa-

se, conseqüentemente, que

Só na democracia o direito pode se desenvolver de forma a cumprir sua tarefa de permitir a coexistência de diferentes projetos de vida sem ferir as exigências de justiça e de segurança, necessárias à integração social. E a democracia, aqui, deve ser entendida como uma comunidade real de comunicação em que se realiza, na maior medida possível, a situação ideal de fala, ou seja, aquela em que os envolvidos podem desenvolver completamente sua competência comunicativa, o que só é possível, como já foi dito, se eles não sofrerem limitações nem externa (violência) nem interna (ideologia). (GALUPPO, 2002, p. 153)

Em segundo lugar, em virtude do reconhecimento assegurado pela teoria do

discurso aos sujeitos, no maior grau possível, de iguais liberdades subjetivas de

ação o que na hipótese do condomínio edilício pode ser concretizado através da

própria convenção quando estabelece em seu texto, conforme se propôs acima,

formas e possibilidades diversificadas de participação dos co-proprietários na

formação do interesse comum da comunidade condominial.

De acordo com o principio do discurso, podem pretender validade as normas que poderiam encontrar assentimento de todos os potencialmente atingidos na medida em que estes participam de discursos racionais. Isso traz como implicação necessária que os direitos políticos têm que garantir a participação mais ampla possível em todos os processos de deliberação e

49 Galuppo (2002) trata da racionalidade de uma ação na medida da possibilidade de sua fundamentação, e exemplifica tal afirmativa informando que uma escolha entre duas alternativas é racional quando ao sujeito for possível indicar as razões que o motivaram àquela conduta. Da mesma forma, uma pessoa é racional quando fundamenta as suas ações. Porém, “do ponto de vista do conteúdo, as normas emitidas pelo legislador político e os direitos reconhecidos pela justiça são racionais pelo fato dos destinatários serem tratados como membros livres e iguais de uma comunidade de sujeitos de direito, ou seja, em síntese: sua racionalidade resulta do tratamento igual das pessoas jurídicas protegidas em sua integridade.” (HABERMAS, 2003b, p. 153)

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de decisão relevantes para a legislação, de modo que a liberdade comunicativa (liberdade de tomar posição em relação a pretensões de validade criticáveis, entre elas a pretensão à validade jurídica) possa vir simetricamente à tona. (COSTA, 2003, p. 51).

Garantir a observação simétrica dos direitos e da participação dos co-

proprietários nas assembléias deliberativas, principalmente naquelas que estiverem

decidindo o conteúdo das convenções de condomínio, é perfeitamente possível

dentro do contexto reduzido de pessoas que formam o condomínio edilício, mesmo

nos grandes conjuntos habitacionais, pois, todos os condôminos podem atuar

diretamente nas decisões que deverão ser tomadas visando ao atendimento do

interesse comum daquela comunidade condominial.

Da mesma forma como ocorre na esfera pública, onde a Administração

Pública busca, por vezes, encontrar a fundamentação de suas decisões no

atendimento do interesse público50, no âmbito privado do condomínio edilício

também se observa a necessidade de se identificar um interesse comum naquela

comunidade de co-proprietários, o qual será diferente dos interesses particulares de

cada um dos condôminos.

A busca pelo interesse comum de uma comunidade condominial ocorre

através das assembléias de condôminos, as quais devem ser convocadas nas

hipóteses determinadas em lei (art. 1.350 do CCB/02), ou quando se fizer

necessária a deliberação sobre os mais variados assuntos pertinentes aos co-

proprietários.

As manifestações colhidas em assembléia são de fundamental importância

para a condução da vida em condomínio, pois, é através daquelas que o sindico é

votado ou destituído, as contas da administração são aprovadas ou negadas, as

penalidades a condôminos faltosos são aplicadas ou não, e que as regras da

convenção são elaboradas.

Percebe-se que a instauração das assembléias de condôminos provoca a

formação de um espaço aberto à discussão e ao diálogo, onde estarão em pauta

assuntos de interesse comum de todos os co-proprietários; além disso, pressupondo

o contexto democrático exaustivamente anunciado neste trabalho, a todos os

50 Humberto Ávila (2001) ressalta que não é possível descrevermos separadamente o interesse público e o interesse privado no contexto da atividade estatal, devendo a Administração Pública orientar-se pelo influxo dos interesses públicos, sem que possa afirmar pela existência de supremacia de um sobre o outro.

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condôminos devem ser garantidas, na maior medida possível, iguais liberdades de

participação nas assembléias de forma a permitir uma contribuição ativa na criação

das regras convencionadas.

O espaço discursivo aberto nos condomínios edilícios com a instauração das

assembléias de condôminos se assemelha ao que Habermas denominou de

arenas51 destinadas à formação racional da vontade política, contudo, no tocante à

esfera privada dos edifícios, o condômino exerce influência direta na construção

racional da regra convencional, pressupondo um agir comunicativo52 em busca do

melhor argumento que represente os interesses da comunidade condominial.

O melhor argumento pode ser entendido através das palavras de Galuppo

(2002), que o trata como o argumento que melhor resiste às críticas apontadas pelos

outros envolvidos no discurso, não podendo ter o seu conteúdo determinado de

maneira absoluta e de forma anterior ao discurso, mas somente com a sua

verificação, ou seja, em seu contexto, possibilitando a sua modificação sempre que

surgirem novos argumentos ainda mais resistentes às criticas a eles direcionados.

Assim, no discurso, o convencimento encontra-se vinculado à força do melhor

argumento, e dessa forma, não se submeter ao melhor argumento significa deixar de

ser racional no discurso, lembrando que quem entra em um discurso aceita

pragmaticamente que a prática de busca do entendimento “é pública,

51 Habermas (2007) tratou desses espaços informais de surgimento da opinião e vontade políticas, quando esclarece as características que a sua teoria do discurso guarda de semelhante com as formas republicanas de formação da vontade, de como aquela teoria se torna dependente da institucionalização de procedimentos de efetivação de políticas deliberativas e de sua intersubjetividade presente em processos de entendimento passíveis de cumprimento através de formas institucionalizadas no parlamento, e através da opinião pública de cunho político em redes de comunicação sem sujeito. Para o autor, essas redes de comunicação formadas interna e externamente nas corporações políticas programadas para a tomada de decisões é que provocariam o aparecimento das arenas de elaboração (mais ou menos) racional da opinião e da vontade acerca de temas relevantes. 52 Tratando do agir comunicativo e do agir estratégico, Habermas (2003c) analisa a interação social entre os seus participantes e de que forma estes orientam os seus respectivos planos de ação, ou seja, se orientados para o entendimento mútuo ou se para o sucesso. No agir comunicativo os atores harmonizam internamente os planos de ação perseguindo as metas em busca de um acordo existente ou a negociar sobre as conseqüências esperadas; por outro lado, no agir estratégico, os atores encontram-se direcionados para o sucesso, buscando alcançar os objetivos de suas ações, influindo, externamente, sobre a definição da situação ou sobre os motivos dos adversários. Duas características essenciais podem ser verificadas no agir comunicativo: “a) os atores participantes comportam-se cooperativamente e tentam colocar seus planos (no horizonte de um mundo da vida compartilhado) em sintonia uns com os outros na base de interpretações comuns da situação; b) os atores envolvidos estão dispostos a atingir os objetivos mediatos da definição comum da situação e da coordenação da ação assumindo os papéis de falantes e ouvintes em processos de entendimento, portanto, pelo caminho da busca sincera ou sem reservas de fins ilocucionários.” (HABERMAS apud GALUPPO, 2002, p. 130).

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universalmente acessível, livre de violência externa ou interna, e permite apenas a

força racionalmente motivadora do melhor argumento”. (HABERMAS apud

GALUPPO, 2002, p. 132)

Através do agir comunicativo manifestado em assembléia e vocacionado ao

convencimento racional do interlocutor, surge um potencial legitimador das decisões

tomadas coletivamente, semelhante – guardadas as devidas proporções – ao poder

comuncativo presente na teoria do discurso o qual foi tratado por Galuppo (2002)

como um poder formado a partir da vontade ou opinião pública geral em um

processo comunicativo ausente de coerção, sendo este poder capaz de legitimar o

direito, o qual é exercido por meio da política.

Nesse processo de formação da vontade e opinião pública,

[...] o discurso de fundamentação assume um papel central, vez que harmoniza preferências concorrentes e fixa a identidade pessoal/coletiva de uma sociedade, na qual concorrem discursos de auto-entendimento e negociações/barganhas de interesses. Os valores fundamentais de uma sociedade são identificados, ponderados e acomodados entre si. O legislador político constrói essa identidade lançando mão de forma irrestrita de argumentos normativos e pragmáticos, por meio do consenso ou de negociações eqüitativas. (CRUZ, 2008, p. 203)

Ressalta-se que a legitimidade, aqui tratada, é da regra da convenção de

condomínio elaborada pelos próprios condôminos reunidos em assembléia, através

da permissão concedida pela norma do artigo 1.334 caput do CCB/02, pois, as

regras incluídas nos textos convencionados em virtude de determinação legal,

retiram sua legitimidade do processo legislativo ao qual foram submetidas para a

sua promulgação.

A participação capaz de atribuir legitimidade a uma regra diz respeito ao que

Galuppo (2002) denominou de potencialidade de participação, ou seja, se os

destinatários tivessem participado do discurso de construção da regra, pressupondo

que as condições de participação tivessem sido garantidas a todos os interessados

e sendo estes perfeitamente racionais (aderindo ao melhor argumento –

aceitabilidade racional), teria sido elaborada uma determinada regra e não outra.

Dessa forma, a legitimidade de uma regra não estará ameaçada por um

indivíduo que, sofrendo as conseqüências de sua aplicação, recusa-se a participar

do procedimento dialógico de sua criação, e isso, em virtude da possibilidade de

participação que restou amplamente ofertada a todos os interessados,

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considerando-se antecipadamente, o fato de alguns renunciarem, livremente, aquele

direito.

Ou seja, não se pode colocar a legitimidade que surge do procedimento de

elaboração das regras da convenção na dependência exclusiva do comparecimento

do condômino naquele processo, devendo ser valorizado o tratamento sistemático

conferido pela própria convenção aquele procedimento, o qual deverá estabelecer

democraticamente todas as suas fases, resguardando, principalmente, as iguais

liberdades de participação de todos os interessados.

Já se disse que o debate instaurado em assembléia de condôminos deve

ocorrer de forma a buscar o melhor argumento que apresente soluções para os

interesses da comunidade condominial, sendo necessária a sustentação pública de

seus termos, frente às críticas apresentadas pelos demais condôminos.

Contudo, é possível que propostas sejam colocadas em discussão, baseadas,

exclusivamente, no interesse particular do proponente, ou mesmo em fins

específicos almejados por um pequeno grupo de condôminos, o qual desconsidera a

possibilidade de se alcançar um interesse comum na comunidade de co-

proprietários, surgindo, assim, o questionamento a respeito da legitimidade das

regras elaboradas sobre tais argumentos e intenções.

Repita-se que a instauração de um procedimento que privilegie o diálogo

através de condutas democráticas que levem à elaboração das regras da

convenção, é capaz de garantir àquelas a legitimidade esperada por todos os co-

proprietários, desde que também haja o pressuposto de que as deliberações façam-

se racionalmente, ou seja, de maneira fundamentada e considerando

igualitariamente todos os interessados que venham a participar do debate.

Dessa forma, o sucesso ou não que uma proposta apresentada em

assembléia fará perante os condôminos dependerá, necessariamente, da

capacidade argumentativa de seus proponentes que deverão buscar,

dialogicamente, – entenda-se, sem coerção – o convencimento dos demais co-

proprietários de que aquela proposta, e não outra, deve ser escolhida como regra

para fazer parte da convenção de condomínio.

Nesse contexto, mister que se observe em favor de todos os condôminos,

além da garantia de iguais liberdades de participação no procedimento decisório

instaurado em assembléia, a não menos importante garantia de seus direitos

fundamentais, os quais não poderão ser atingidos pela proposta apresentada.

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Assim, trazendo consigo inclusive a possibilidade de eventual acordo

realizado pelos interessados em assembléia, não gozará de legitimidade perante os

co-proprietários a regra da convenção de condomínio cuja proposta não se

submeteu a um procedimento democrático e dialógico, que pode encontrar-se na

própria convenção de condomínio ou que, de alguma forma, viole direitos e

garantias fundamentais como a saúde, intimidade, a propriedade e etc.

A garantia de iguais liberdades de participação de todos os condôminos,

principalmente nas assembléias que se instauram para decidir democraticamente o

conteúdo das convenções de condomínio, evita a imposição de um modus vivendi

conveniente para apenas um grupo restrito ou mesmo para um único condômino ao

redor dos quais giram todas as deliberações tomadas naquele âmbito privado.

Por vezes, observam-se condomínios edilícios, onde não estão presentes os

pressupostos básicos para o exercício democrático do direito de propriedade sobre

unidades autônomas, sendo que nestes casos, a perpetuação de grupos ou de uma

única pessoa na administração do patrimônio comum dos condomínios é certa, até

que se resolva pela implementação – judicial ou não – de preceitos viabilizadores da

participação de todos os interessados na construção conjunta do caminho a ser

tomado em busca de uma convivência, no mínimo harmoniosa e organizada.

O discurso, enquanto agir racional que procura demonstrar através da força

do argumento a validade de seu enunciado, objetiva em última análise o consenso

dos interessados que estão envolvidos no contexto de um debate, e aquele

consenso restará, objetivamente, demonstrado no âmbito privado do condomínio

edilício, através da utilização da regra da maioria, em face da complexidade e

pluralidade dos interesses que nele se apresentam.

Esta regra por si só não é capaz de atribuir legitimidade às deliberações da

assembléia, principalmente, quando se trata de elaboração das regras da

convenção, devendo, portanto, ser observada a racionalidade do procedimento

dialógico presente na convenção e que antecede à efetiva escolha, garantindo-se

sempre iguais liberdades de participação a todos os condôminos em busca da

formação legítima da maioria.

Em sentido análogo, Habermas trata da legitimidade das normas do Direito

estabelecendo que

[...] a legitimidade de regras se mede pela resgatabilidade discursiva de sua pretensão de validade normativa; e o que conta, em última instância, é

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o fato de elas terem surgido num processo legislativo racional – ou o fato de que elas poderiam ter sido justificadas sob pontos de vista pragmáticos, éticos e morais. A legitimidade de uma regra independe do fato de ela conseguir impor-se. Ao contrário, tanto a validade social, como a obediência fática, variam de acordo com a fé dos membros da comunidade de direito na legitimidade, e esta fé, por sua vez, apóia-se na suposição da legitimidade, isto é, na fundamentabilidade das respectivas normas. (HABERMAS, 2003a, p. 50)

A respeito da suposta racionalidade dos resultados obtidos mediante a

observância da institucionalização do discurso no contexto de democracias

deliberativas, e da legitimidade pela regra da maioria, John Dewey citado por

Habermas (2003b, p. 27) ressaltou a importância de se verificar as formas através

das quais a maioria se constitui como tal, ou seja, os debates anteriores, a

modificação dos pontos de vista para levar em conta os interesses da minoria, como

forma de aprimoramento dos métodos e condições do debate.

Assim, necessário que se observe a regra da maioria quando do

estabelecimento da forma de decisão em democracias consolidadas, não sendo

diferente nos condomínios edilícios, ou seja, o que deve ser observado,

efetivamente, é a forma através da qual aquela maioria se constituiu, inclusive para

possibilitar a tutela dos interesses e dos direitos da minoria que ainda continuará

presente naquele espaço privado de exercício do direito de propriedade, e que

poderá, através do discurso, tornar-se maioria futuramente.

Contudo, a utilização da regra da maioria traz consigo algumas questões que

merecem comentário neste trabalho, pois, levantam a possibilidade de

questionamento a respeito do caráter democrático observado no âmbito privado do

condomínio edilício, quando nele se encontra uma maioria pré-definida, e de como

essa situação interfere no discurso, além da igualdade (isonomia) entre os

condôminos quando os votos utilizados nas deliberações ocorridas em assembléia,

levarem em consideração a fração ideal da unidade autônoma à qual o voto

encontra-se vinculado.

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3.2.3.1 A manutenção do perfil democrático no âmbit o privado do condomínio

edilício e da igualdade entre os condôminos

Podem ser observadas situações extremas, em que uma única pessoa é

proprietária de um número significativo de unidades autônomas e,

conseqüentemente, àquela é atribuído um número de votos capaz de determinar

grande parte dos rumos a serem seguidos pelos outros condôminos.

Nestes casos, a maioria constitui-se, antecipadamente, à qualquer

assembléia instaurada para a deliberação de assuntos que digam respeito a toda

comunidade condominial, deixando transparecer que restariam descaracterizados o

procedimento discursivo de tomada de decisão e de elaboração de regras da

convenção, bem como as características democráticas observadas no âmbito

privado do condomínio edilício.

Tal sentimento é provocado em virtude da possibilidade que essa maioria

concentrada nas mãos de um único condômino possui, qual seja, de interferir

diretamente no conteúdo de determinadas regras da convenção, não sem antes

comprometer a legitimidade das mesmas, caso venham a ser elaboradas ao arrepio

da participação dos demais condôminos formadores da minoria no condomínio.

Porém, tentar-se-á demonstrar que neste caso o discurso não restará

prejudicado, primeiramente, em virtude da necessidade do procedimento discursivo

se instaurar em um ambiente intersubjetivo, o qual se apresenta no condomínio

edilício, uma vez que este possui como um de seus elementos característicos a

pluralidade de proprietários.

Exigida a presença de pelo menos dois co-proprietários para a observação do

condomínio edilício, as deliberações realizadas em seu âmbito privado devem,

necessariamente, ser tomadas em assembléia, cuja convocação dar-se-á nos

termos da convenção, respeitando o quorum estabelecido em lei e garantindo, na

maior medida possível, iguais liberdades de participação a todos, além da

integridade dos direitos e garantias fundamentais dos demais condôminos.

Portanto, mesmo neste contexto condominial extremado, a maioria

concentrada nas mãos de um único condômino deverá justificar, racionalmente, as

decisões tomadas no âmbito privado do condomínio edilício, as quais devem refletir

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os interesses de toda a comunidade condominial, o que inclui, necessariamente, os

interesses da minoria.

Por mais que a deliberação possa encontrar respaldo no quorum determinado

por lei, não se concebe legitimidade a uma regra da convenção que desconsidere o

caráter plural inerente ao condomínio edilício, mesmo que tal pluralidade se

apresente de maneira reduzida, ou seja, através de poucos condôminos.

E esse raciocínio se justifica no contexto de um Estado democrático de direito

inaugurado a partir da Constituição de 1988, que exige do proprietário o exercício da

titularidade de seu direito no caminho do respeito à pluralidade que o cerca, da

solidariedade aos demais co-proprietários, da busca por um meio ambiente

saudável, da utilização adequada do solo, enfim, da busca pelo cumprimento da

função social da propriedade.

A democracia no âmbito público não se desnatura nos casos em que a

maioria se forma antecipadamente ao momento deliberativo, haja vista as últimas

eleições presidenciais, bem como as eleições para o governo do Estado de Minas

Gerais, onde a maioria previamente anunciada compareceu às urnas apenas para a

ratificação de seu interesse, sem que fosse suprimido o discurso, ou seja, o amplo

debate democrático para a apresentação das diferentes propostas surgidas como

“melhores opções de governo”.

De forma semelhante, o perfil democrático e o discurso são conservados no

âmbito privado do condomínio edilício e, por conseqüência, nas deliberações

tomadas em seu contexto, ao se garantir, na maior medida possível, iguais

liberdades de participação a todos, garantindo-se, também, a integridade dos

direitos fundamentais dos condôminos.

Será através de todas essas garantias, da utilização discursiva de

argumentos voltados ao convencimento a respeito de um provável melhor

argumento e da possibilidade de reversão das decisões é que a minoria poderá

constituir-se, em algum momento, em maioria.

Em um primeiro momento a maioria encontra-se legalmente constituída

através da aquisição, por uma única pessoa, de diversas unidades autônomas,

contudo, a necessidade de instauração das assembléias para as deliberações

condominiais, abre um espaço discursivo, onde as diferentes argumentações sobre

um determinado assunto entram em colisão, e através desta, a maioria

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antecipadamente constituída, pode se converter em prol do melhor argumento da

minoria.

Ressaltando-se que as decisões da maioria deverão ser tomadas mediante

justificação adequada frente à minoria, uma vez que o fundamento de qualquer

decisão tomada no âmbito privado do condomínio edilício, desde que interfira em

questões de propriedade comum, é o interesse dos condôminos, mesmo que no

caso se observe uma discrepância considerável entre maioria e minoria.

Na tentativa de imposição de um modus vivendi conveniente apenas para o

condômino representante da maioria capaz de decidir diversos assuntos que dizem

respeito a toda comunidade condominial, o Poder Judiciário deve ser acionado para

garantir os interesses da minoria, de iguais liberdades de participação no

procedimento deliberativo interno ao condomínio, bem como de seus direitos e

garantias fundamentais, caso tenham sido violados nas decisões tomadas pela

maioria.

Vários são os exemplos que podem ser aventados para reforçar a idéia

exposta acima, qual seja, a de que determinadas deliberações e regras da

convenção encontram legitimidade no discurso o qual deve se estabelecer no âmbito

democrático do condomínio edilício, mesmo que se observe previamente a formação

de uma maioria através de um único condômino.

Pelos menos duas situações podem ser apresentadas em que a maioria

constituída por um único condômino terá que dialogar com a minoria, para a

concretização de seus interesses, haja vista o “quorum” unânime exigido, quais

sejam: a) quando se pretende alterar a fachada externa do edifício53 e b) quando se

53 O quorum que estabelece a unânime para a alteração da fachada externa do edifício era exigência do art. 10 § 2º da Lei 4.591/64, sendo que, após a revogação promovida em seu texto pelo CCB/02, algumas convenções de condomínio mantiveram esse quorum específico, tornando-se necessária a sua observação nestes casos. Doutro lado, há decisões fundamentadas no texto revogado, porém, o texto codificado de 2002 nada menciona a respeito do quorum unânime que possibilite a alteração da fachada externa do edifício, somente proíbe tal conduta ao condômino. Senão vejamos: DEMOLITÓRIA. LEGITIMIDADE PASSIVA. PROPRIETÁRIO. ALTERAÇÃO DA FACHADA DO EDIFÍCIO. APROVAÇÃO. UNANIMIDADE. 1. As disposições contidas no contrato de promessa de compra e venda havido entre os recorrentes e a empresa estrangeira não obrigam a terceiros, por lhe faltar um dos requisitos de validade: o agente capaz. art. 104, inc. I. Ocorre que a sociedade estrangeira somente adquire capacidade para a prática de atos no Brasil após autorização do Poder Público, nos termos do art. 1.134 do Código Civil. 2. O art. 10 da Lei nº 4.591/64, aplicável ao caso, proíbe a alteração da fachada externa por qualquer condômino. O parágrafo segundo do aludido dispositivo prevê uma exceção à regra, caso a obra que modifique a fachada seja aprovada pela unanimidade dos condôminos. Realizada a respectiva assembléia geral, a alteração da fachada mediante a colocação de vidros não foi aprovada (fl. 96). Destarte, patente a ilegalidade da obra. (MINAS GERAIS, 2007) (Grifo nosso)

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pretende alterar a destinação da unidade imobiliária ou do edifício54

(comercial/residencial ou residencial/comercial).

Nesse dialogo é que poderão surgir acordos entre maioria e minoria,

considerando os interesses de cada parte, com o intuito de viabilizar a convivência

democrática no condomínio edilício, desde que, segundo Habermas (2003a) tais

acordos também observem a manutenção de iguais condições de participação nas

negociações, na influencia recíproca, e também, na concretização de todos os

interesses envolvidos.

Por fim, deve-se observar no caso concreto, qual a maioria alcançada pelo

condômino proprietário de diversas unidades autônomas, pois, vários são os

quoruns estabelecidos por lei ou pela convenção e, por vezes, aquela maioria pode

se formar sobre um determinado assunto, mas para outros deverá dialogar com os

demais condôminos no mesmo procedimento democraticamente estabelecido para a

busca do melhor argumento para os interesses da comunidade condominial.

Assim, as deliberações dessa maioria não podem prevalecer se tomadas em

desacordo com a participação dialógica da minoria, à qual deve ser concedida, na

maior medida possível, iguais condições de participação no procedimento de tomada

de decisão, em que será possível a apresentação se seus interesses, objetivando,

sempre, o convencimento da maioria.

No que diz respeito à questão da igualdade dos condôminos quando do

procedimento de deliberação verificado em assembléia, sabe-se que a cada unidade

autônoma é atribuído o direito a voto e que este será proporcional à fração ideal da

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO ORDINÁRIA - ANULAÇÃO DE ASSEMBLÉIA GERAL EXTRAORDINÁRIA - MATÉRIA VOTADA NÃO INCLUÍDA NA PAUTA DE CONVOCAÇÃO - INVALIDADE DA DELIBERAÇÃO - RATIFICAÇÃO - NÃO OCORRÊNCIA - NECESSIDADE DA PRESENÇA DO NUMÉRO DE CONDÔMINOS ESTIPULADO NA CONVENÇÃO DO CONDOMÍNIO- ALTERAÇÃO DA FACHADA - UNANIMIDADE PARA APROVAÇÃO DA OBRA. Tem-se como inválida a decisão de assembléia geral extraordinária cuja matéria não restou prevista na pauta de convocação, sendo ainda incabível a possibilidade de retificar- se, através de outra AGE, a realização de obras que resultem na alteração da fa chada do prédio, tendo em vista a presença de apenas 2/3 dos condôminos em total afronta a sua convenção que estipula a necessidade de unanimidade em casos deste jaez. (MINAS GERAIS, 2006, grifo nosso) 54 Art. 1.351. Depende da aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos a alteração da convenção e do regimento interno; a mudança de destinação do edifício, ou da unidade imobiliária, depende de aprovação pela unanimidade dos condôminos. (BRASIL, 2002, grifo nosso)

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unidade autônoma ao qual se encontra vinculado, caso a convenção de condomínio

não disponha de maneira diversa55.

Em face dessa questão, a igualdade (isonomia) que deve ser observada entre

os condôminos para que as deliberações tomadas no âmbito privado do condomínio

edilício sejam consideradas legitimas, pode ser questionada vez que de inicio

estariam sendo levados em consideração votos, cuja interferência na decisão dar-

se-ia de maneira diversa.

Porém, a igualdade (isonomia) não é violada, neste caso, uma vez que a

diferença existente entre os votos, no que diz respeito ao poder de decisão baseado

na fração ideal de cada unidade autônoma, é compensada na mesma proporção,

com a responsabilidade das obrigações assumidas pelo condômino frente aos

demais co-proprietários, ou seja, a unidade com maior fração ideal responderá frente

às obrigações assumidas pelo condomínio na proporção daquela fração ideal que

diferencia o voto56.

Assim, não será o caso do condômino que tenha condições de, sozinho,

formar a maioria para determinadas deliberações, e nem o fato de a legislação

possibilitar o estabelecimento de diferença entre os votos, baseada na fração ideal

da unidade autônoma, que retirarão do âmbito privado do condomínio edilício o seu

perfil democrático e nem do procedimento de elaboração das regras da convenção a

sua característica dialógica.

55 Art. 1.352. [...] Parágrafo único. Os votos serão proporcionais às frações ideais no solo e nas outras partes comuns pertencentes a cada condômino, salvo disposição diversa da convenção de constituição do condomínio. (BRASIL, 2002) 56 APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE CONVENÇÃO DE CONDOMINIO. TAXA DE CONDOMINIO. FRAÇÃO IDEAL. LEGALIDADE. PRODUÇÃO DE PROVAS. 1. O juiz e o destinatário das provas cabendo a ele sua valoração e conveniência em sua produção. 2. Deve ser rejeitada a preliminar de nulidade de sentença se ela está formalmente valida, não havendo qualquer macula que lhe possa ser atribuída. 3. A convenção que constitui o condomínio edilício e o documento que reúne o conjunto de normas que rege, onde ficam estabelecidos os direitos e deveres dos condomínios e demais regras pertinentes a administração do condomínio de pagamento das contribuições dos condomínios devendo ser obedecida. 4. Não ofende o princípio da isonomia a convenção do condomínio que estabelece como critéri o de rateio das despesas a fração ideal do imóvel, porquanto, mesmo que fosse nula tal esti pulação, ainda assim seria aplicável as disposições legais que a Lei n. 4.591/64 e no art. 1336, I, do código civil de 2002, que tem como fundamento implícito o valor do bem, sendo justific ável o rateio diferenciado. (GOIAS, 2009) (Grifo nosso)

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3.2.4 Conclusões a respeito da convenção de condomí nio e assembléia de

condôminos

O objetivo da discussão lançada nesta parte do trabalho não é desconstruir a

doutrina que há décadas vem sendo elaborada – através de muito debate e

apresentação de entendimentos divergentes – sobre o instituto do condomínio

edilício e seus elementos constitutivos.

Contudo, levando-se em consideração todas as exigências que, atualmente,

são colocadas para o proprietário frente àqueles não-proprietários, principalmente no

que diz respeito à forma do exercício do direito de propriedade em uma sociedade

plural e complexa garantida pelo paradigma do Estado democrático de direito, há

que se lançar novos olhares para o condomínio edilício, chamando a atenção para

uma faceta deste instituto que, tradicionalmente, não é abordada e que traz

conseqüências para os condôminos em geral.

No início deste capítulo, entendeu-se necessária a apresentação dos diversos

conceitos elaborados a respeito da convenção de condomínio, do regimento interno

e da assembléia de condôminos, para que aos poucos se introduzisse uma nova

perspectiva sobre o instituto ora pesquisado, principalmente, para a busca da

legitimidade das regras da convenção que são elaboradas pelos próprios

condôminos.

Tal questão veio à tona na medida em que a convenção de condomínio pode

ser formada por regras que retiram o seu conteúdo das normas do CCB/02, e

também, por outras que serão elaboradas pelos próprios condôminos para serem

incluídas no texto convencionado, em virtude da permissão concedida pela norma

do artigo 1.334, daquele código.

Neste contexto, sabe-se que as deliberações que se verificam no âmbito

privado do condomínio edilício devem ocorrer, necessariamente, nas assembléias

de condôminos as quais terão inúmeras atribuições, dentre elas a de promover a

escolha das regras que farão parte da convenção de condomínio, e também, do

regimento interno, bem como escolher os rumos administrativos tomados em

benefício da comunidade de co-proprietários.

Certamente, que a formação desse espaço discursivo ocorrerá em um

ambiente democrático construído no âmbito privado do condomínio edilício, de forma

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a possibilitar que as relações interpessoais estejam sempre pautadas na

participação dos condôminos para a resolução das questões que dizem respeito à

comunidade condominial e, principalmente, quando se trata da elaboração das

regras da convenção de condomínio.

Observa-se, com isso, que a assembléia de condôminos caracteriza-se, não

só, como o órgão deliberativo máximo do condomínio, mas também – e este ponto

merece ser enfatizado – como um canal de comunicação entre os condôminos, na

medida em que possibilita a formação de um espaço democrático para a exposição

dialógica de idéias e opiniões, em busca da formação do interesse comum dos co-

proprietários, observando-se a regra da maioria, a garantia, na maior medida

possível, de iguais liberdades de participação a todos os condôminos e a integridade

de seus respectivos direitos fundamentais.

Essa participação dos condôminos nas assembléias gerais, seja para a

discussão e resolução de assuntos de interesse de todos os condôminos, seja para

a elaboração das regras da convenção de condomínio e do regimento interno, deve

ocorrer mediante a observação de parâmetros democráticos de conduta e de

decisão, na medida em que se adota o paradigma de um Estado democrático de

direito, que assume a democracia como pressuposto, seja na esfera pública de

exercício da cidadania, ou nas relações privadas entre os particulares.

Portanto, essa forma democrática de agir fará com que o condômino

reconheça-se perante as regras que foram elaboradas ou alteradas na convenção,

fazendo com que as mesmas alcancem a legitimidade através do procedimento

democrático estabelecido, inclusive frente aquele condômino que teve suas

propostas recusadas na assembléia, pois, provocará o sentimento de respeito à

regra legitimamente construída, através da instauração de um amplo espaço

destinado ao debate, que permite a apresentação de diferentes idéias e sugestões

que, na maioria das vezes, buscam na deliberação, o melhor argumento para a

comunidade de co-proprietários.

Por tudo isso, é que se entende que a identificação da natureza jurídica da

convenção de condomínio como ato-regra é a que mais se adapta à realidade do

instituto, pois, repita-se, trata-se de um instrumento elaborado por um grupo

reduzido de pessoas (condôminos) que se agrupam, voluntariamente, e que se

submetem às suas regras em virtude da capacidade específica que adquirem com a

aquisição de unidades autônomas do edifício.

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E, ao entendimento da convenção de condomínio como ato-regra,

acrescenta-se a idéia de que a sua elaboração ocorre mediante a participação dos

condôminos que, reunindo-se em assembléia geral decidem, dialógica e

democraticamente parte de seu conteúdo, o qual submeterá todos os co-

proprietários, as pessoas a eles equiparadas por lei, bem como terceiros que

freqüentem o edifício.

Mesmo havendo imposição legal a respeito do conteúdo obrigatório que

deverá constar na convenção de condomínio, tal fato não é suficiente para lhe retirar

a particularidade de se tratar de um instrumento construído a partir da participação

dos co-proprietários, que em sua maioria estão comprometidos com o bem-estar de

toda a coletividade que habita ou freqüenta o condomínio edilício.

Quanto ao regimento interno, trata-se de instrumento complementar à

convenção de condomínio, dela fazendo parte para regulamentar matérias de menor

complexidade, mas que, também, são de interesse dos condôminos trazendo em

seu conteúdo regras de comportamento, não obstante, o descumprimento de suas

regras acarrete a aplicação das penalidades previstas na convenção de condomínio.

A sua elaboração não possui regra específica determinada pela lei, portanto,

geralmente, na mesma assembléia são deliberados os conteúdos da convenção de

condomínio e do regimento interno, seguindo este o quorum de aprovação daquela,

a não ser que haja quorum específico estabelecido na própria convenção.

Nesse caso, a liberdade dos condôminos para a definição das regras do

regimento é maior do que a liberdade que os mesmos condôminos têm para definir o

conteúdo da convenção de condomínio, haja vista que aquele instrumento não

possui conteúdo mínimo determinado por lei, ou seja, desde que não afronte as

regras da convenção, as regras do regimento interno terão validade e estarão

adequadas à realidade na qual serão aplicadas.

Assim, a participação dos condôminos em assembléia é importante na

atribuição de legitimidade das regras elaboradas quando de sua instauração, sendo

que tal participação dar-se-á por meio de um procedimento discursivo colocado à

disposição de toda a comunidade de co-proprietários, o qual estabelecerá iguais

condições de participação para todos.

Conseqüentemente, a regra presente na convenção de condomínio que não

se submeteu a um procedimento discursivo de legitimação em assembléia é carente

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de legitimidade perante a comunidade de co-proprietários, pois, estes não

reconheceriam em seu conteúdo, um interesse democraticamente deliberado.

O cumprimento da função social da propriedade urbana pela unidade

autônoma no âmbito democrático do condômino edilício, far-se-á mediante a

conjugação e a colaboração da convenção de condomínio e da assembléia de

condôminos, observando-se as suas competências específicas e características

constitutivas, dentro das limitações apresentadas pelo ordenamento jurídico pátrio. A

maneira através da qual aquela concretização ocorrerá, será analisada nos capítulos

seguintes.

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4 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E O DIREITO CIVIL NO ATUAL

CONTEXTO BRASILEIRO

A Constituição da República de 1988, por força da norma de seu artigo 1°

caput57, instituiu no Brasil o denominado Estado democrático de direito, sendo este o

representante da busca que a sociedade brasileira empreendeu para a modificação

de sua realidade político-social vivida, desde o ano de 1967.

Tal realidade foi experimentada na mesma época por diversos países do

mundo, os quais também empreenderam uma busca pelo restabelecimento da

democracia através, principalmente, da reforma de seus textos constitucionais.

Sensível e concomitantemente a todas essas modificações verificadas no

âmbito constitucional, o Direito Civil também sofreu modificações em seus institutos

basilares (contrato, família e propriedade) que atingem a forma de sua interpretação

e sistematização, provocando uma anunciada crise que, como será analisado

posteriormente, não deve assumir um caráter pejorativo, mas sim, o de superação

de paradigma.

Freqüentemente, as alterações implementadas no Direito Civil pátrio iniciam-

se a partir da influência das discussões que tomam relevância em outros países

(principalmente Alemanha e Itália) para, somente após, serem notadas pela doutrina

e jurisprudência pátrias.

Esta situação pode ser comprovada com a discussão na qual a doutrina pátria

encontra-se atualmente envolvida, qual seja, a eficácia dos direitos fundamentais

nas relações entre particulares, sendo noticiado por Sarmento (2008) que este tema

entrou em pauta na doutrina alemã, na década de 50 do século passado, fato que

interferiu, diretamente, na jurisprudência daquele país, desde então.

Sendo assim, mister que se faça neste ponto uma breve análise conjunta dos

contornos deste novo paradigma inaugurado a partir da CR/88, com as modificações

verificadas no Direito Civil durante todo o século passado até os dias de hoje,

principalmente, as questões ligadas ao seu processo de constitucionalização e a

nova questão da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares,

57 Art. 1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: [...] (BRASIL, 1988)

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para que se possa compreender as exigências apresentadas ao proprietário e o que

dele se espera no momento do exercício de seu direito no âmbito privado do

condomínio edilício.

4.1 Da formação do Estado ao Estado democrático de direito

Não obstante a presença do Estado democrático de direito no artigo inaugural

do texto constitucional brasileiro, a sua concepção chegou por aqui através da

influência de outros textos constitucionais, principalmente europeus, que o

apresentavam como tentativa de resposta para diversas questões sociais que não

foram solucionadas pelo Estado Liberal e nem pelo Estado Social.

A evolução daquelas formas de Estado ocorreu na medida em que novos

problemas exigiam soluções e por outro lado, tratando-se de evolução em busca de

um aprimoramento das respostas apresentadas para a sociedade, as três formas de

Estado moderno que até aqui se mencionou [Estado Liberal, Social e Democrático

de Direito] mantém características comuns.

Silva (2001) apresenta o Estado democrático de direito como um conceito

novo formado, não somente, da união formal dos conceitos de Estado democrático e

de Estado de direito, mas como superação de ambos na medida em que incorpora

componente revolucionário de transformação do status quo, ou seja, estabelecendo

o termo “democrático” como adjetivo do Estado, provoca uma irradiação dos valores

democráticos58 por todos os elementos constitutivos do Estado, mormente, sobre o

Direito.

Tratando-se de dois conceitos de Estado que não se confundem, faz-se

necessário apresentar as características gerais dos Estados Liberal e Social de

Direito enquanto espécies do gênero Estado de Direito, e também do Estado

Democrático, para depois, serem demarcados os contornos do Estado democrático

de direito no qual a realidade brasileira está inserida, 58 Silva (2001), também, ressalta que a democracia realizada pelo Estado democrático de direito pressupõe a convivência social em uma sociedade livre, justa, solidária, participativa, pluralista, onde o poder emana do povo e é exercido em seu proveito diretamente ou por representante eleitos, tornando-se um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão, independentemente do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais. Ou seja, trata-se de um tipo de Estado que objetiva a promoção da justiça social.

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Quando são analisadas as formas de associação empreendidas pelo homem,

deve ser levado em consideração, necessariamente, o período histórico em que a

análise é realizada, bem como a recíproca dependência dos seres humanos entre si

para a viabilização de sua sobrevivência e a consecução de seus interesses.

Bastos (1995) explica que quando os homens se associam coordenando as

suas atividades através de um conjunto de normas em prol de uma determinada

finalidade, tem-se uma sociedade, ou seja, para que se possa afirmar a respeito de

sua efetiva constituição, três elementos básicos hão de estar presentes, quais

sejam: os membros, os objetivos e as regras.

Diversas são as formas assumidas por essas sociedades, sendo a família a

mais difundida e aquela que prepara o homem para a sua realização social,

principalmente no cenário atual, onde se observam o surgimento e o

reconhecimento de diversas formas de entidade familiar, porém, a forma de

sociedade que interessa a este trabalho é a denominada sociedade política.

Sociedade política é, destarte, aquela que tem em mira a realização dos fins daquelas organizações mais amplas que o homem teve necessidade de criar para enfrentar o desafio da natureza e das outras sociedades rivais. As sociedades políticas sempre estiveram circunscritas ao território sob sua jurisdição. São tidas por tais: as tribos, as cidades-estados gregas, o Império Romano, a sociedade feudal e o Estado. (BASTOS, 1995, p. 4)

Bastos (1995) estabelece que o Estado marcou o seu surgimento no século

XVI, pois, somente a partir daquele momento histórico é que os seus elementos

constitutivos puderam ser visualizados, não obstante a observação de seus sinais

desde a Antiguidade Clássica.

Objetivando a manutenção da estrutura adquirida nas primeiras experiências

de sua constituição, o Estado moderno apresentou como características básicas a

criação de um corpo administrativo instituindo a burocracia estatal, realizando a

divisão do trabalho, a administração do erário e o fornecimento de alguns serviços

públicos.

Por outro lado, fez-se necessária a utilização do monopólio legítimo da força

através do qual era mantida a ordem e cumpridas as determinações estatais,

fazendo uso da coerção física aplicada pelos exércitos constituídos para a sua

defesa e agindo através de permissão legal, principalmente, porque em um primeiro

momento aquele Estado moderno se constituiu de forma absolutista, através de uma

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monarquia, que centralizou o poder político e administrativo, e controlou o comércio

dentro de seus limites territoriais.

O absolutismo, por meio da política mercantilista, transformando o Estado na mais forte entidade econômica capitalista, fez dos meios de dominação política um monopólio do Estado e arrebatou às corporações os seus privilégios públicos de autoridade. O Estado absolutista, ainda preservou o capital agrário e fomentou o advento de um poder burguês muito potente, configurado no capital móvel financeiro, comercial e industrial. (SOARES, 2004, p. 84)

Certamente, que essa forma de concentração de poder político-administrativo

tornava-se interessante apenas para quem dela se utilizava (neste primeiro

momento, o Rei), gerando por outro lado inúmeros insatisfeitos, fazendo com que,

segundo Maluf (2006), as teorias racionalistas ganhassem espaço junto àqueles que

sofriam as conseqüências dessa monarquia absolutista, contribuindo sobremaneira

para o abalo da estrutura sobre a qual aquele tipo de monarquia estava assentado.

Segundo o mesmo autor, um dos maiores colaboradores para a difusão do

pensamento racionalista foi Jonh Locke, que se utilizava da teoria contratualista para

defender a diferenciação entre os poderes Legislativo e Executivo, além do direito à

insurreição dos súditos, pois, em um eventual conflito de interesses entre a vontade

do povo e a do governante, aquela deve prevalecer vez que se caracteriza como

única fonte do poder.

O Estado, segundo a doutrina de Locke, resulta de um contrato entre o Rei e o povo, contrato esse que se rompe quando uma das partes lhe viola as cláusulas. [...] Para Locke a propriedade privada é um direito natural: o Estado não cria a propriedade, mas a reconhece e protege. [...] Essa doutrina liberalista, profundamente dignificadora da espécie humana, foi sustentada por inúmeros filósofos, juristas e publicistas dos séculos XVII e XVIII, notadamente por Montesquieu e pelo gênio fulgurante de Rousseau. Estava preparada a resistência invencível, impulsionada pela vontade transcendente das massas sacrificadas, que viria culminar com a revolução francesa, abrindo uma nova era na história da civilização humana. (MALUF, 2006, p. 121-122)

A superação do Estado absolutista monárquico ocorreu com o surgimento do

Estado Liberal, como forma de reação do povo e da burguesia contra todo este

panorama que foi sendo construído desde o fim da Idade Média, contudo, o que

restou daquele período histórico superado foi a sua contribuição para a formação da

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estrutura dos Estados59, os quais, segundo a doutrina clássica, possuem o povo, o

território e o poder como elementos constitutivos60.

Ressalta-se que enquanto a sociedade européia encontrava-se no centro de

todas essas transformações, o Brasil ainda não havia conseguido a sua

independência de Portugal colocando-se frente a este como colônia de exploração

até o ano de 1822. Não obstante, mesmo que tardiamente, as experiências e a

doutrina liberal surtiram efeitos por aqui.

O Estado Liberal refletia os traços da ideologia, então, dominante quanto à

efetivação do conceito de direito natural, do humanismo, da igualdade política

advinda da racionalidade humana, reconhecendo a legitimidade do poder, cuja

origem era identificada na vontade dos cidadãos, pois, tornava-se a concretização

da luta do povo pela liberdade, entendida esta como um instrumento utilizado contra

a tirania do Estado exercida contra o indivíduo.

A Revolução Francesa de 1789 foi uma das grandes responsáveis pela

difusão do ideário liberal, que se encontrava num ponto ótimo de maturação no séc.

XVIII, nivelando os Três Estados, então, constituídos, suprimindo todos os privilégios

e proclamando o princípio da soberania nacional. As máximas daquela revolução

podem ser, assim, estabelecidas:

[...] todo governo que não provém da vontade nacional é tirania; a nação é soberana e sua soberania é una, indivisível, inalienável e imprescritível; o Estado é uma organização artificial, precária, resultante de um pacto nacional voluntário, sendo o seu destino o de servir ao homem; o pacto social se rompe quando uma parte lhe viola as cláusulas; não há governo legítimo sem o consentimento popular; a Assembléia Nacional representa a vontade da maioria que equivale à vontade geral; a lei é a expressão da vontade geral; o homem é livre, podendo fazer ou deixar de fazer o que quiser, contanto que sua ação ou omissão não seja legalmente definida como crime; a liberdade de cada um limita-se pela igual liberdade dos outros indivíduos; todos os homens são iguais perante a lei; o governo destina-se à manutenção da ordem jurídica e não intervirá no campo das relações privadas; o governo é limitado por uma Constituição escrita, tendo esta como partes essenciais a tripartição do poder estatal e a declaração dos direitos fundamentais. (MALUF, 2006, p. 126, grifo nosso)

59 Bastos (1995) apresenta sua definição de Estado como sendo a organização política sob a qual vive o homem, caracterizando-se por ser a resultante de um povo vivendo sobre um determinado território e governado por leis fundadas por um poder não sobrepujado por nenhum outro externamente, e supremo internamente. 60 Diversas são as teorias que buscam delimitar os elementos estruturais do Estado, não sendo o objetivo deste trabalho travar qualquer discussão a esse respeito, sendo assim, apresenta-se o posicionamento clássico da Teoria Geral do Estado quanto aos três elementos constitutivos do Estado, quais sejam: povo, território e poder.

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Bastos (1995) estabelece que o Estado Liberal, além de seus fundamentos

principais, quais sejam: a história política da Inglaterra e o iluminismo francês do

século XVII, tinha como pressuposto, proporcionar o máximo de bem-estar comum

em todos os campos de atuação do cidadão, através da menor presença possível do

Estado, levando em consideração, também, a perspectiva egoísta e ambiciosa da

natureza humana sem repudiá-la, já que essa consideração afirmava que o livre jogo

dos egoísmos, conduziria ao bem-estar coletivo.

Todo esse perfil necessitava de que outros elementos fossem implementados

naquela forma de Estado para que a sua engrenagem pudesse funcionar e gerar os

efeitos desejados, tais como a soberania nacional, o regime constitucional e a

supremacia da lei como limites ao poder do Estado, a divisão de poderes, separação

entre o público e o privado, Estado laico, direitos e liberdades individuais, igualdade

jurídica e, finalmente, não intervenção do poder público na esfera particular.

Zippelius (1997) afirma que a necessidade do Estado afastar-se da maneira

mercantilista de intervenção na economia foi sentida pela sociedade da época,

trazendo consigo a idéia de que o Estado deveria garantir aos cidadãos a sua

segurança e a sua propriedade, e quanto ao restante deixar livre o caminho para a

iniciativa de cada um, pois, acreditava-se que o mercado seria regulado,

naturalmente, proporcionando o desenvolvimento natural da economia.

Adam Smith citado por Zippelius (1997, p. 377), estabelece que o sistema de

liberdades individuais deixou para o Estado apenas três funções/obrigações a serem

cumpridas, quais sejam: proteger a nação contra atos de violência e ataques de

outras nações independentes; salvaguardar, na medida do possível, todos os

membros da própria nação contra agressões ilegais dos seus concidadãos, ou seja,

garantir uma jurisdição imparcial; e criar e manter determinadas instituições públicas,

cuja criação e sustento não se pode esperar da iniciativa privada.

Neste mesmo diapasão, Bastos (1997) sustenta que o fundamental para o

indivíduo no Estado Liberal era a liberdade61 de agir e conduzir sua vida conforme as

61 Zippelius (1997) chama a atenção para a diferença existente entre o conceito de liberdade do liberalismo com o conceito democrático de liberdade. Naquele caso, é atribuído à liberdade um status negativus, ou seja, um espaço de liberdade de atuação individual frente ao Estado; quanto ao conceito democrático de liberdade, há vinculação a um status activus, ou seja, liberdade de participação na formação da vontade comum. Contudo, ambas as liberdades não convergem necessariamente, uma vez que a maioria democrática pode conter traços de tirania, ou seja, quando não associada ao conceito de liberdade do liberalismo, consiste num domínio da multidão sem garantia de liberdade contra ela.

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suas próprias opções fundamentais, esperando daquele, basicamente, a

organização de um exército para a defesa da sociedade contra qualquer inimigo

externo e a viabilização da convivência interna, através da polícia e do judiciário –

ambos com o objetivo de fazer cumprir a lei – pois, todo o restante (saúde,

educação, previdência, seguro social e etc.) seria atingido pela atividade civil.

Defendia-se, portanto, o Estado absenteísta.

Ressalta-se, neste momento, juntamente com Soares (2004), que há uma

diferenciação a ser feita entre o Estado Liberal – enquanto acontecimento histórico –

e o liberalismo – enquanto filosofia política – já que este não encontra no Estado

Liberal a sua única moldura, inclusive, o liberalismo contemporâneo questiona

diversos aspectos daquela forma de Estado como o individualismo, a indiferença e a

sua postura absenteísta.

O liberalismo moderno nasceu do iluminismo que colocava o individuo no centro da existência social. No século XVIII, convergiram a teoria filosófica da autonomia moral do individuo, a exigência política de direitos e liberdades fundamentais do indivíduo e a teoria do liberalismo econômico no sentido de que através de uma defesa adequada dos interesses próprios que se confrontam em livre concorrência se desenvolveria por si mesmo uma vida econômica equilibrada. (ZIPPELIUS, 1997, p. 376, grifo nosso)

Esse liberalismo que sustentava o individualismo como forma de preservação

da liberdade do homem, mostrou-se incapaz de trazer soluções práticas para os

problemas que surgiam em virtude da sua efetiva aplicação na sociedade daquela

época, principalmente, no que diz respeito às novas questões advindas com a

revolução industrial a partir da segunda metade do século XVIII.

O mesmo sistema político-econômico que produziu milhares de operários

desempregados quando da substituição do homem pela máquina, proporcionou aos

proprietários dos meios de produção o acúmulo de imensas fortunas, já que o

acúmulo desenfreado de recursos passou a ser incentivado, surgindo por

conseqüência as grandes empresas, os cartéis e monopólios característicos do

sistema capitalista-liberal.

A passividade do Estado frente a este quadro social encontrando-se limitado

a policiar a ordem pública, não poderia conduzir a outra situação senão ao fracasso

da idéia de permissividade do jogo econômico, regulado através de suas próprias

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leis que eram baseadas no choque de personalidades diversas em busca do êxito

financeiro.

A benção de uma economia que se desenvolvesse sem intervenções nem restrições por parte do Estado revelou-se, para milhares de operários apanhados pela engrenagem das novas fábricas e minas, como sistema de exploração desumana. Os empresários e operários eram, sem dúvida, juridicamente livres de celebrar e rescindir contratos de trabalho, mas em termos econômicos essa liberdade consistia para o operário na escolha entre trabalhar sob condições muitas vezes mais que indignas ou morrer de fome. (ZIPPELIUS, 1997, p. 379)

A relação entre operários e patrões sentiu o impacto do liberalismo, contudo,

a relação entre empresários também sofreu interferência, mormente, quanto “à

liberdade contratual, à propriedade livremente disponível e aos meios de uma

concorrência, inclusivamente ruinosa se for necessário, com o fim de neutralizar a

concorrência liberal e tornar ineficaz o mecanismo do mercado e dos preços.”

(ZIPPELIUS, 1997, p. 380)

Ressaltando a outra face do liberalismo, atribuindo-lhe a responsabilidade por

um desenvolvimento sem precedentes na história, Bastos (1995) chama a atenção

para o fato de que toda Revolução Industrial do final do século XVIII e todo o século

XIX encontrou-se naquela ideologia, e que não obstante tenha falhado em muitos

pontos, levando-o a considerar suas postulações iniciais em outra perspectiva, fato é

que a ideologia do liberalismo é presente ainda hoje encontrando-se, travestida em

novas mensagens para enfrentar os desafios de um novo tempo.

Frente ao perigo iminente de sofrer um rompimento que resultasse no

esfacelamento do Estado Liberal, optou-se por uma reformulação daquele modelo,

transigindo diante de alguns conceitos socialistas sem abandonar o viés liberal

vinculado ao capitalismo, ou seja, optou-se por substituir um Estado absenteísta,

socialmente indiferente, por outro intervencionista cujo objetivo era mediar questões

presentes em uma realidade, em que o capitalismo instaurou-se, mas que interesses

sociais, também, devem ser levados em consideração.

O sujeito não deixou de ter a sua importância nos aspectos políticos e

jurídicos62, contudo, toda aquela euforia individualista pós-revolucionária, cedeu

62 Maluf (2006) ressalta que o Estado moderno, eclético, liberal na sua estrutura e socialista no seu programa de ação, apresenta-se como uma democracia orgânica e considera o homem sob dois aspectos, quais sejam, a) como pessoa humana, titular de direitos naturais respeitáveis; b) como unidade do corpo social, sujeito a determinados deveres e obrigações perante a sociedade.

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lugar a uma perspectiva de intervenção do Estado em certas situações e relações de

forma a resguardar o interesse não só de alguns cidadãos, mas também da

sociedade como um todo; como exemplo, cita-se: questões relativas à economia

popular, ao trabalho, à saúde e segurança.

Santos (1993) vislumbra o alargamento das tarefas públicas assumidas pelo

Estado social, administrando serviços, setores específicos de produção, inclusive

pelo fato do povo necessitar de atendimento seja a custo baixo ou mesmo gratuito,

com o objetivo de se atingir a justiça social oferecendo, na maior medida possível,

igualdade de oportunidades a todos, sem sacrificar a liberdade.

A nova ordem democrática acolhe as cooperativas, os sindicatos, as associações classistas de toda natureza e as instituições de previdência; promove a revisão das leis; cria o ministério do trabalho e demais departamentos; regulamenta o direito de greve; institui a justiça social trabalhista de representação paritária; e, sobretudo, o Estado se arvora em superpatrão para dirigir as condições de trabalho, fixar bases salariais mínimas, impor contratos coletivos de trabalho e prestar assistência efetiva ao trabalhador. As relações de natureza econômica que o liberalismo catalogara nos estatutos de direito privado passam ao domínio de direito público. A legislação penal amplia-se para definir e punir os crimes contra a economia popular. O Estado intervém, inclusive, nas indústrias essenciais, nacionalizando-as; nas empresas de serviços de interesse coletivo, regulamentando-as ou incorporando-as ao patrimônio público; nas fontes de produção, amparando-as mediante assistência técnica e financeira; no comércio, estatuindo normas de distribuição e consumo; e no próprio direito de propriedade, impondo as restrições ditadas pelo interesse da sociedade. (MALUF, 2006, p. 306)

Certamente, que a intervenção estatal desenfreada em todos os setores da

sociedade, não é saudável para os particulares que necessitam de um espaço de

liberdade para a condução de seus interesses, principalmente no âmbito

empresarial, sendo que o desafio colocado para o Estado social foi, justamente, a

busca do ponto de equilíbrio entre a necessária intervenção e o interesse privado, o

que de certa forma se fez com certo êxito na medida em que trouxe para junto dos

direitos individuais conquistados com o liberalismo, novos diretos relativos à ordem

econômica e social.

Pode-se afirmar que, o período histórico marcado pela conquista e

consolidação dos direitos fundamentais iniciou-se com as revoluções burguesas e o

surgimento do Estado Liberal, alcançando o pós-guerra e a implementação do

Estado social, sendo este como forma de superação do modelo antecedente e, nas

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palavras de Lôbo (2003), o tipo de Estado que possui em seu texto constitucional,

normas regulamentadoras da ordem econômica e social.

Durante o transcurso deste período, verifica-se um processo de

democratização do Estado, onde a participação popular assume lugar de destaque,

como forma de resistência à sua estrutura formal e burocrática, bem como aos

abusos cometidos nas relações jurídicas privadas em decorrência da importância

excessiva atribuída ao contrato, à propriedade privada e à livre iniciativa.

O Estado Democrático passa a ser caracterizado, dentre outros aspectos,

pelo espaço concedido à participação popular63, mormente, nos atos de governo,

sendo certo que não há confundir aquela forma de Estado com o Estado de Direito

(seja em sua vertente Liberal ou Social).

Neste sentido, Silva (2001) aponta para o fato do Estado Democrático se

fundar no principio da soberania popular, impondo a participação efetiva do povo na

coisa pública, a qual não se exaure com a formação de instituições representativas,

e objetivando a garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Na verdade, a democracia associou-se a diversos anseios dos homens,

principalmente, no que diz respeito à sua interligação com o poder governante, o

que se concretizou através da participação popular já mencionada, e também, do

estabelecimento e promoção das garantias e liberdades individuais.

A fundação desse sistema na participação popular atrai o encontro de

múltiplos interesses, porém, percebe-se que o contexto formado no Estado

Democrático garante a pluralidade de entendimentos, incentiva a tolerância e o

respeito ao diferente, e preserva as opiniões minoritárias como forma de se evitar a

constituição de uma maioria capaz de ditar os caminhos a serem seguidos por todos

os membros de uma determinada comunidade.

A democracia, em sua estrutura filosófica íntima, é a marcha do mundo para a liberdade e a tolerância, porque o verdadeiro democrata, antes de tudo, deve sentir a possibilidade de que a razão esteja com o adversário,

63 Reconhecendo as dificuldades de se determinar uma noção de democracia, Santos (1993), por outro lado, ressalta a existência de um padrão ideal mínimo a respeito de sua verificação, além disso, aponta para alguns elementos sem os quais a democracia não será alcançada, quais sejam: a) liberdade para constituir e integrar-se em organizações; b) liberdade de expressão; c) direito ao voto; d) acesso aos cargos públicos; e) possibilidade dos lideres políticos competirem através da votação; f) fontes alternativas de informação; g) eleições livres; h) existência de instituições capazes de viabilizar a política do governo e legitimadas pelo voto ou outras manifestações da vontade popular.

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devendo, então, basear-se no sentimento de respeito à opinião alheia. (PINTO FERREIRA apud FAZUOLLI, 2002, p. 66)

Toledo (2003) chama a atenção para o fato de que na democracia, a

autodeterminação dos indivíduos propicia a maximização da sua liberdade como

autonomia e, por conseqüência, a efetivação do principio da igualdade, sendo que

este contexto, somado ao aparato estatal construído durante o Estado Liberal e na

sua transição para o Estado Social, darão ensejo ao Estado democrático de direito.

A democracia assume posição fundamental nessa nova forma de Estado que

vem sendo desenhada desde o final da década de 70, em um contexto globalizado,

onde os interesses de mercado convivem com a necessidade de promoção da

justiça social e da igualdade substantiva entre os indivíduos, que por vezes,

encontra-se presente nos textos constitucionais de diversos países64.

Tal situação se mostrou necessária como forma de superação de um

paradigma social de Estado incapaz de apresentar soluções eficazes para os

problemas de uma sociedade capitalista, pós-industrial e que buscava esquecer as

atrocidades promovidas contra milhares de seres humanos, durante a segunda

guerra mundial.

Fazuolli (2002) utiliza-se da denominação Estado democrático de direito para

indicar o modelo que busca resolver a inadequação do Estado de Direito e as falhas

que o Estado Social, não obstante a sua política intervencionista no âmbito

econômico, não consegue solucionar, e tudo através do resgate da cidadania, da

democracia, enfim, do resgate dos valores revolucionários de liberdade, igualdade e

fraternidade.

No Estado democrático de direito, ainda segundo aquele autor, a liberdade

seria restaurada com a garantia de participação do povo no processo decisório; a

igualdade, seria garantida, não só formalmente, mas também, substancialmente; e a

fraternidade seria restaurada a partir do momento em que a participação

democrática no processo decisório com a formação das alianças (instáveis) a ela

64 Sarmento (2008) afirma que essa nova forma de Estado, também verificada no Brasil e que não pode ser denominada neoliberal por não se afastar da esfera econômico-social, encontra-se influenciada por um paradigma pós-social, tratando-se de um Estado subsidiário, pois, utiliza-se do sistema de privatizações e da realização de parcerias com a iniciativa privada para restituir a esta o exercício de atividades econômicas até então atribuídas ao setor público. Ressalta também que a sua forma de atuação evita a coerção para incentivar o consenso e a conduta dos atores privados conforme o comportamento desejado.

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intrínsecas, aumentasse a percepção do indivíduo de que o outro é adversário em

algumas situações, mas não todas e que não se trata de um sujeito a ser aniquilado,

buscando, assim, o aumento do sentimento de irmandade.

O Estado Democrático de Direito é essencialmente diverso do Estado de Direito e do Estado Social, na medida em que tanto o Estado de Direito quanto o Estado Social não passam de modalidades de Estado de Direito, ainda que suas formas de atuação sejam diversas. Na verdade o “Estado de Direito” muitas vezes é tomado por “Estado Liberal de Direito” e “Estado Social” por “Estado Social de Direito”. O Estado Democrático de Direito vai além dos estritos limites do Estado de Direito, quer seja ele, repita-se, liberal ou intervencionista. Aliás, o verdadeiro Estado Democrático de Direito vai além da mera soma dos conceitos de Esta do, de Democracia e de Direito. Ele representa uma verdade ira fusão atômica que origina algo novo, assim como a fusão de dois á tomos de hidrogênio, elemento altamente explosivo, dá origem à água, que não só não é inflamável como ajuda a combater o fogo. (FAZUOLLI, 2002, p. 82-83, grifo nosso)

Neste contexto, o princípio da legalidade é, no entendimento de Silva (2001),

um principio basilar do Estado democrático de direito, sendo de sua essência a

subordinação ao texto constitucional fundado na legalidade democrática, ou seja,

deve a lei influir na realidade social, submetendo aos seus mandamentos tanto o

cidadão como o próprio Estado, mas não em virtude de sua generalidade, e sim,

para a realização do principio da igualdade e da justiça, em busca da equiparação

das condições daqueles que são socialmente desiguais.

Aquele autor realiza uma análise da igualdade no Estado de Direito clássico –

fundada no elemento, puramente, formal e abstrato da generalidade das leis – no

Estado Social de Direito – que busca, sem sucesso, corrigir as questões sociais

surgidas com a fórmula absenteísta antecessora – e no Estado democrático de

direito, que busca a implementação da justiça material em uma sociedade

democrática, na qual se instaure um processo de participação do povo junto aos

mecanismos de controle de decisão, tendo como tarefa fundamental a superação

das desigualdades sociais.

O principio da igualdade para Galuppo (2002) tornou-se necessário para a

fundamentação do direito moderno e, posteriormente, para a correta compreensão

do Estado democrático de direito, pois, antes mesmo do surgimento de suas bases

constitutivas no século XX, a fundamentação metafísica do direito (Deus e/ou

Natureza) não encontrava mais espaço, sendo o principio da igualdade um dos que

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contribuíram para a superação dos argumentos, principalmente medievais, de

fundamentação do direito.

A estrutura da sociedade moderna na visão de Galuppo (2002), é composta,

essencialmente, de seres com o mesmo valor e cujos projetos concorrem em

igualdade de condições por sua própria realização, assim, a necessidade de

pressupor a igualdade para a fundamentação do direito, na modernidade, decorre,

basicamente, de dois fatores, primeiramente, pela tomada de consciência do

indivíduo de que ele não é apenas o destinatário, mas também, o autor das normas

editadas pelo Estado; e em segundo lugar, sendo o próprio indivíduo o responsável

pela elaboração das normas frente às quais se encontra submetido – sem atribuir tal

responsabilidade a Deus ou à Natureza – a Razão passa a ser utilizada como

fundamento de legitimação daquelas normas.

Por outro lado, a democracia no Estado democrático de direito

[...] há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3°, I), em que o poder eman a do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1°, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de idéias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de fornecer o seu pleno exercício. É um tipo de Estado que tende a realizar a síntese do processo contraditório do mundo contemporâneo, superando o Estado capitalista para configurar um Estado promotor da justiça social que o personalismo e o monismo político das democracias populares sob o influxo do socialismo real não foram capazes de construir. (SILVA, 2001, p. 123-124, grifo nosso)

Toledo (2003) ressalta que o Estado democrático de direito é forma de

organização jurídica do poder assentada em princípios elementares e na declaração,

garantia e estabelecimento de um sistema de direitos fundamentais,

indiscutivelmente mais amplo do que aquele verificado nos primeiros textos

constitucionais, elaborados no período revolucionário, sendo que os direitos

fundamentais e a soberania do povo são complementares entre si, formando a base

daquela forma de Estado.

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Outra diferença existente entre o Estado democrático de direito e as outras

formas modernas65 de organização estatal, também pode ser analisada, segundo

Galuppo (2002), através do entendimento de que aquela forma de organização

estatal é adequada para a sobrevivência de uma sociedade pluralista, uma vez que

a complexidade das sociedades modernas – com a convivência de inúmeros

projetos de vidas diferentes e de valores culturais antagônicos – não lhe permitiu

outra alternativa, senão, assumir a busca pela inclusão daqueles indivíduos

historicamente excluídos do projeto majoritário, ou seja

[...] o Estado Democrático de Direito reconhece com o constitutiva da própria democracia contemporânea o fenômeno do plur alismo e do multiculturalismo, recorrendo preferencialmente à t écnica da inclusão do que da integração. Por isso mesmo o Estado Democrático de Direito não pode eliminar qualquer projeto ou qualquer valor, mas, ao contrário, deve reconhecer todos os projetos de vida, inclusive os minoritários, igualmente valiosos para a formação da auto-identidade da sociedade66. (GALUPPO, 2002, p. 21, grifo nosso)

Os contornos deste Estado democrático de direito no Brasil vêm sendo

consolidados gradualmente, dia a dia, inclusive já se encontra definida uma forma de

organização político-estatal baseada, principalmente, na possibilidade de exercício

direto do poder através da participação popular nas decisões governamentais67

como corolário da soberania68 expressa na CR/88, além do estabelecimento e

65 Galuppo (2002) indica são três as formas do Estado moderno, quais sejam, Estado Liberal, Estado Social e Estado Democrático de Direito. 66 Ainda, Galuppo (2002) buscando fundamento em Habermas, afirma que é desse reconhecimento de projetos de vida diferentes que o Estado democrático de direito assume a tensão entre validade – enquanto dimensão de justificativa racional do direito moderno ligado à exigência de sua fundamentação pelos destinatários da norma – e a faticidade – esta enquanto caráter histórico e contingente do direito moderno sendo este um sistema de ação que, também, utiliza-se da força para a sua concretização – do direito contemporâneo como essencial à sua constituição. 67 Art. 14 A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direito e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular. (BRASIL, 1988) 68 Art. 1° [...] Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. (BRASIL, 1988)

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garantia de um sistema de direitos fundamentais que se encontra norteado pelo

principio da dignidade da pessoa humana69.

Todas as responsabilidades atribuídas ao Estado no texto constitucional de

1988, mormente aquelas relativas à concretização de seus objetivos fundamentais

de garantia de uma sociedade livre, justa, solidária, com a promoção do bem comum

e do desenvolvimento nacional com a erradicação da pobreza e da marginalização,

e a diminuição das desigualdades sociais e regionais, exigiram a instauração de um

sistema composto pelos princípios “da constitucionalidade, princípio democrático,

sistema de direitos fundamentais, princípio da justiça social, princípio da igualdade,

princípio da divisão de poderes e da independência do juiz, princípio da legalidade,

princípio da segurança jurídica. (MATSMOTO, 2002, p. 267, grifo nosso)

Dentro dos itens supra mencionados, a propriedade privada inserida naquele

sistema de direitos fundamentais, implementado pela CR/88, será detidamente

analisada, inclusive, fazendo-se a co-relação direta com a questão da efetividade

dos direitos fundamentais nas relações privadas, para que ao final possa ser

estabelecido um caminho a ser seguido pelo condômino proprietário de unidade

autônoma, em condomínio edilício no que diz respeito à exigência constitucional de

cumprimento da função social da propriedade urbana.

4.2 O Direito Civil contemporâneo e a sua interferê ncia na situação jurídica

proprietária

Antes de se iniciar, aqui, a breve análise dos contornos do Direito Civil

contemporâneo, principalmente, no contexto brasileiro, informa-se que não há

qualquer pretensão de aprofundamento nas minúcias históricas e constitutivas dos

temas, anteriormente, tratados neste capítulo, bem como daqueles que ainda serão

abordados, uma vez que os mesmos, por si, demandariam pesquisa específica.

69 Amplamente reconhecido na doutrina e jurisprudência nacionais, o principio da dignidade da pessoa humana encontra-se estabelecido na norma do artigo 1° III da CR/88, nestes termos: “Art. 1° [...] III – a dignidade da pessoa humana.” (BRASIL, 1988)

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O que se pretende é ressaltar que o Direito Civil acompanhou as

modificações pelas quais a sociedade passou, e ainda vem passando, ao longo de

sua história com o desenvolvimento do Estado, desde a Modernidade até a sua

estrutura atual, no paradigma do Estado democrático de direito.

Concomitante ao processo de transformação estatal já noticiado, o Direito

Civil, sempre influenciado pelos novos paradigmas que se sucedem, mostra-se, nos

dizeres de Hironaka (2003), como uma ciência caracterizada pela sua sensibilidade

aos acontecimentos históricos, encontrando-se em constante movimento para

acompanhar as necessidades de que a vida do homem reclama, tudo isso para que

a sua melhor adequação à realidade transmude-se em melhor qualidade de vida

para os seus destinatários.

A história da civilização humana, em cada um de seus infindáveis momentos, influi, portanto, na conformação e na estrutura do direito privado como um todo, e do Direito Civil em especial. O atual estágio dessa história, quer dizer, o momento histórico que agora vivenciamos, é um estágio que tem imposto ao Direito Civil uma releitura importantíssima, a implicar extraordinárias transformações. [...] A sua organização estrutural e a moldura de sua essência estão – e devem estar, mesmo – umbilicalmente relacionadas às mudanças na vida dos homens, mudanças estas derivadas do progresso das ciências, do avanço das tecnologias e do comportamento das pessoas em face destas todas alterações. (HIRONAKA, 2003, p. 94-95)

Caracterizando o Direito como fenômeno social, cujo estudo exige um

conhecimento paralelo, e não menos importante, da sociedade na qual se encontra

inserido, e com a qual está imbricado, Fachin (2003) ressalta a importância dos

valores dominantes naquela sociedade para a definição dos contornos que os juízos

de inclusão e exclusão, utilizados em seu contexto, tomarão, sendo que, atualmente,

encontra-se construída no Direito Civil e sob influência constitucional, a idéia de um

sujeito concreto, ao qual se agrega a noção de cidadania, e assim,

[...] quando a Constituição Brasileira de 1988 tutela o direito à vida – e coloca em um primeiro grau o direito de personalidade –, situando em um primeiro patamar o sujeito, não está fazendo homenagem àquele sujeito abstrato do sistema clássico. Refere-se a um novo sujeito, alguém que tenha uma existência concreta, com certos direitos constitucionalmente garantidos: vida; patrimônio mínimo (que compreende habitação) e sobrevivência. Nele, selada está a passagem que se opera a partir da crise do Direito Civil tradicional. (FACHIN, 2003, p. 189)

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Neste ambiente, onde o sujeito concreto assume posição de destaque no

ordenamento jurídico, noticia-se há muito uma crise70 no Direito Civil, através da

qual, segundo Fachin e Ruzyk (2006), propriedade, família e contrato receberam

novas configurações por intermédio de um processo de releitura que redirecionou

todos eles para uma racionalidade baseada no principio fundamental da dignidade

humana, o que, por conseqüência, provocou modificações consideráveis nas

relações jurídicas, onde aquele sujeito se envolve, assim

Nos dias correntes, a relação jurídica está passando por uma transformação significativa, a partir de uma nova formulação, que deixa o cunho de abstração e da generalidade de lado e que leva sempre em conta a situação concreta do sujeito e do objeto da relação jurídica. E é por isso que a palavra “coisa”, objeto de uma relação jurídica, cede lugar à definição mais ampla que, a seu turno, se liga ao interesse, inclusive dos não sujeitos nos moldes tradicionais. (FACHIN, 2003, p. 93-94)

No que diz respeito à crise no patrimônio e na propriedade, Fiuza (2003)

informa que estes cederam o lugar privilegiado que ocupavam no Direito Civil para o

ser humano, cuja dignidade fora tutelada, no caso do Brasil, pela Constituição da

República de 1988, tratando-se da necessidade de se cumprir a função social da

propriedade.

Considerando o aspecto sistemático do Direito Civil contemporâneo, a

mencionada crise relacionou-se com o processo de descodificação que culminou na

superação de um sistema legal pautado na crença de que um único instrumento

codificado seria suficiente para suportar (de forma completa e irretocável) as

demandas de toda uma sociedade, sem buscar auxilio em outras fontes legislativas,

crença que terminou sendo frustrada com o surgimento de inúmeras leis extra-

codificadas e a conversão do texto constitucional em centro irradiador dos valores

essenciais da sociedade para todo o ordenamento jurídico.

A releitura promovida nos três institutos basilares do Direito Civil (propriedade,

contrato e família), juntamente com a funcionalização dos mesmos, atribuiu aos

titulares de direitos a eles relacionados uma série de deveres estabelecidos em

observância aos interesses dos outros não titulares.

70 Fiuza (2003) analisa a crise do Direito Civil sob três aspectos diferentes, quais sejam, institucional (patrimônio, família e contrato), sistemático e interpretativo, afirmando que o termo crise deve ser entendido como sinônimo de alteração de paradigma.

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Buscou-se firmar um método interpretativo voltado para a análise dos

elementos do caso concreto em substituição à subsunção pontual da norma ao fato

no momento de sua aplicação, utilizando-se das normas de conteúdo aberto para a

adequação às vicissitudes dos casos analisados.

Neste contexto, onde o Direito Civil é influenciado diretamente pelas

constituições, Tepedino (2004) estabelece que a atividade de interpretação do direito

deverá ser realizada levando-se em consideração três questões, quais sejam: 1) os

princípios constitucionais não são apenas princípios políticos, ou seja, não somente

o legislador ordinário, mas também, os particulares encontram-se diretamente

vinculados aos preceitos constitucionais; 2) princípios gerais de direito não se

confundem com os princípios constitucionais, pois, aqueles são preceitos extraídos

indutiva e implicitamente da legislação, não sendo este o caso dos princípios

constitucionais; 3) deve ocorrer o desapego à regulamentação casuística,

principalmente, pela opção do legislador as cláusulas gerais presentes na

Constituição, e também, na legislação infraconstitucional.

Ainda, quanto à interpretação neste quadro de modificações pelo qual vem

passando o Direito Civil, há que se buscar a superação da dicotomia entre o direito

público e o direito privado, elaborada sob a influência da filosofia liberal presente no

Estado de Direito do século XVIII.

A interpenetração do direito público e do direito privado caracteriza a sociedade contemporânea, significando uma alteração profunda nas relações entre o cidadão e o Estado. O dirigismo contratual antes aludido, bem como as instâncias de controle social instituídas em uma sociedade cada vez mais participativa, alteram o comportamento do Estado em relação ao cidadão, redefinindo os espaços do público e do privado, a tudo isso devendo se acrescentar a natureza híbrida dos novos temas e institutos vindos a lume com a sociedade tecnológica. (TEPEDINO, 2004, p. 18-19)

Tudo o que se disse, até agora, tem como objetivo ressaltar as características

do Direito Civil contemporâneo, frente ao qual o titular do direito de propriedade no

Brasil está submetido, e o que esse novo contexto exige do proprietário de unidade

autônoma em condomínio edilício, uma vez que, também, observa-se um panorama

social multicultural, plural, solidário e, necessariamente democrático tutelado pela

Constituição da República de 1988, coadunando-se com o paradigma do Estado

democrático de direito.

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Serão apresentados os contornos do Direito Civil pátrio, que hoje encontra-se

instrumentalizado no Código Civil de 2002 (e também na legislação extravagante), e

que busca, por vezes, através de normas gerais, promover a tutela dos interesses

particulares com observação das peculiaridades do caso concreto.

Por outro lado, a análise conjunta de questões constitucionais e privadas,

realizadas a seguir, justifica-se na medida em que atualmente se observa um Direito

Civil influenciado diretamente pelo texto constitucional, através do estabelecimento

de um sistema de direitos fundamentais centralizado no princípio da dignidade

humana, os quais poderão ser aplicados diretamente às relações entre particulares,

fazendo do indivíduo o elemento central e merecedor de todas as atenções do

ordenamento jurídico pátrio.

Restará demonstrada ao final qual é realidade em que o co-proprietário de

unidade autônoma em condomínio edilício está inserido atualmente no Brasil e quais

as exigências que lhe são imputadas em decorrência de um Direito Civil

constitucionalizado, despatrimonializado e descodificado.

Noutras palavras, o que se exige e se espera daquele condômino quanto ao

exercício do seu direito de propriedade no âmbito democrático do condomínio

edilício, é que ele deve pautar a sua conduta nos princípios e normas que dão

contorno ao paradigma do Estado democrático de direito instituído com a

Constituição da República de 1988, e por conseqüência, ao Direito Civil

contemporâneo instrumentalizado, basicamente, no Código Civil de 2002.

4.2.1 As mudanças provocadas pelo processo de desco dificação

Os eventos que caracterizam o Direito Civil contemporâneo foram

subdivididos neste trabalho apenas para facilitar a identificação e a denominação de

cada um deles, contudo, os processos de descodificação, constitucionalização e

despatrimonialização do Direito Civil foram conseqüências das mudanças sociais

verificadas, a partir do período revolucionário do século XVIII, e que ocorreram,

paulatinamente, ao longo do tempo, porém, de maneira concomitante.

Roberto (2003) relembra que o século XVIII recebeu a denominação de

século das luzes, em face das controvérsias existentes naquela época, em todo o

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continente europeu a respeito da utilização, pelo homem, da razão como

instrumento de condução para a tomada de decisões em detrimento de das

orientações divinas ou provenientes da natureza, cuja crença era alimentada até

aquele período histórico.

A recepção das idéias iluministas difundidas na Europa do século XVIII

devem, conforme Caenegem (1999), conduzir a análise da renovação que o direito

daquela época sofreu, pois, o contexto do iluminismo trouxe críticas ao ancien

regime referentes à manutenção da desigualdade perante a lei, às limitações

impostas frente à propriedade, às arbitrárias intervenções do monarca no âmbito

privado dos súditos, à ausência de participação do povo na política e à intolerância

religiosa.

O iluminismo promove o surgimento de um sujeito socialmente ativo e

responsável pelo direcionamento de seu futuro, que se utiliza, exclusivamente, da

sua razão independente de qualquer vínculo religioso, já que “a esperança – no

espírito do Iluminismo – era que a lógica e a ciência formassem um novo

fundamento de um aprendizado seguro para toda a Europa civilizada.”

(CAENEGEM, 1999, p. 162)

Nessa época, onde a filosofia individualista afirmava-se e influenciava

diretamente os rumos da sociedade européia, dois fenômenos desenvolviam-se

simultaneamente, nos dizeres de Lôbo (2003), quais sejam: o constitucionalismo –

com o objetivo de estabelecer limites à atuação do Estado Liberal que se fortalecia –

e a codificação71 – que assegurava ao indivíduo um espaço de atuação, onde as

instituições daquele Estado estavam impossibilitadas de intervir.

Dessa forma, Roberto (2003) afirma que no período da codificação se

desenhava uma realidade, onde foi proposta uma nova visão de mundo pelo

iluminismo (contrapondo-se ao ancien régime e apostando firmemente na

racionalidade humana como responsável pela renovação da sociedade), cujas idéias

foram transpostas para o Direito, através do jusracionalismo72 (sistematizando o

71 O termo codificação foi, nos dizeres de Caenegem (1999), elaborado pelo inglês Jeremy Bentham tendo sido este um defensor incansável da lei como fonte do direito moderno e, conseqüentemente, dos códigos como expoentes de suas idéias. Duas de suas obras podem ser citadas para a confirmação destas afirmações, Comentários: princípio da moral e da legislação, de 1798, e Propostas de codificação, de 1823. 72 A respeito da contribuição do jusracionalismo para a história do direito europeu, Fraz Wieacker assim estabelece: “O mais importante contributo do jusracionalismo para o direito privado europeu é, contudo, o seu sistema. A jurisprudência européia fora, até aqui, uma ciência da exegese e do

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Direito racionalmente elaborado a partir de princípios axiomáticos, através dos quais

poder-se-ia deduzir outros princípios para a formação de um sistema completo de

normas) que também contribuiu para a formação de um novo sistema jurídico

concretizado através do movimento de codificação.

O Direito Civil, neste período, não poderia tomar outra forma senão aquela

fundamentada na idéia de estabilização das relações jurídicas entre sujeitos

formalmente igualados pela lei, mas que, invariavelmente, encontravam-se

substancialmente diferenciados, ou seja, o indivíduo cuja igualdade era proclamada

pela legislação codificada, não condizia com o individuo concreto que necessitava

de tutela para as suas reais necessidades, situação que promovia a manutenção da

submissão do mais fraco pelo economicamente mais forte em virtude de um sistema

balizado nos institutos da propriedade privada e do contrato.

Exemplo desse modelo é o Código Civil brasileiro de 1916, que retrata a

imagem de um estatuto elaborado sob a influência do ideário liberal burguês

difundido na Europa, a partir do século XVIII, tutelando-se a propriedade privada

como reflexo da personalidade do indivíduo e como instituto jurídico capaz de

promover a sua liberdade.

Conseqüentemente, o proprietário encontrava-se legitimado para, sozinho,

decidir como exercer o direito de propriedade do qual era titular, sendo-lhe atribuídas

poucas restrições quanto aquele exercício, bem como ao interesse da coletividade.

Roberto (2003) elenca cinco características principais que podem ser

observadas em um código, sendo elas: completitude (pretensão de abranger toda a

área regulamentada pelo Direito, sem deixar espaço para outra fonte); clareza (o

texto deveria ser absolutamente claro, evitando, inclusive, o processo de

interpretação); brevidade (o texto deveria ser conciso, norteando, basicamente, o

sistema); acessibidade (a linguagem do texto deveria ser de fácil entendimento, ou

seja, acessível a todos os seus destinatários) e rigidez (devendo o texto codificado

comentário de textos isolados, tendo permanecido assim depois do fracasso do projecto sistemático do humanismo. Para o jusracionalismo, desde Hobbes e Pufendorf, a demonstração lógica de um sistema fechado tornou-se, em contrapartida, na pedra de toque da plausibilidade dos seus axiomas metodológicos. Quando no século XVIII, ele começou também a ordena r as exposições do direito positivo , facultou-lhes o sistema; aquele sistema que ainda hoje domina os códigos e os manuais. Com o sistema do jusracionalismo, a ciência jurídica positiva adoptou também a sua construção conceitual. Numa teoria que tinha de se comprovar perante o fórum da razão através da exactidão matemática das suas premissas, o conceito geral adquiriu uma nova dignidade metodológica. Agora, ele não era já apenas um apoio tópico, um artifício na exegese e harmonização dos textos, mas o símbolo central que exprimia a pretensão de ordenação lógica da ciência jurídica. (WIEACKER, 2004, p. 309-310, grifo nosso)

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nortear-se pela permanência de seus mandamentos, na medida em que se

caracterizam como sistema coerente de normas).

Contudo, tais características foram pensadas para um momento histórico, em

que a certeza e a estabilidade nas decisões judiciais foram buscadas como forma de

se eliminar todas as imprecisões e incertezas observadas no superado ancien

regime, o que causava abusos dos monarcas, quando da aplicação do direito.

Com a chegada do século XIX, e com o desenvolvimento das relações sociais

promovidas pelo advento da revolução industrial, as demandas sociais tornaram-se

mais complexas do que poderiam imaginar os teóricos da codificação, e assim, a

legislação codificada mostrou-se incapaz de apresentar soluções eficazes para

problemas ligados, por exemplo, às relações de trabalho (da mulher e da criança) e

às transações mercantis.

O processo de descodificação que passa a se consolidar a partir deste

momento encontra-se diretamente ligado à desconstrução das características

sustentadas para os textos codificados, pois, foi a partir da demonstração da

fragilidade de sua completitude, frente aos fatos sociais, que os textos codificados

perderam a rigidez com a explosão legislativa observada, principalmente nos países

da Europa, a partir do início do século XX, inclusive no Brasil.

Neste contexto,

[...] ganham prestígio as cláusulas gerais, que não utilizam termos de conteúdo pré-fixado, mas de conteúdo determinável, o que acarreta uma maior possibilidade de adaptar a norma às situações de fato. Reconhece-se também a relevância e a prevalência normativa dos princípios jurídicos, especialmente daqueles de índole constitucional, na solução concreta dos litígios privados. (RIBEIRO, 2004, p. 86)

O surgimento das leis extravagantes que tratavam dos assuntos ausentes dos

grandes instrumentos codificados coincidiu com o surgimento do Estado Social de

Direito, e colaborou para que aquelas, no entendimento de Tepedino (2003), se

tornassem além do centro unificador de tudo aquilo que dissesse respeito ao

assunto legislado (ou seja, estabelecendo normas de cunho material e processual),

também o centro das atenções do sistema jurídico com a introdução em seus textos

de valores não-patrimoniais de natureza social, objetivando a tutela da pessoa

humana e as intenções daquela forma de Estado.

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A quantidade de normas especiais se avolumava, disciplinando novos institutos do Direito Privado, surgidos com a evolução econômica, ou subtraindo outros no âmbito do Código Civil, para submetê-los à nova disciplina, mais consentânea com as necessidades de uma sociedade que se industrializava e de um Estado que mudava de feições, tornando-se social. Este processo intensifica-se na Europa depois da 2ª Guerra Mundial, pois a evolução do cenário econômico e social passara a reclamar uma intervenção cada vez mais intensa do legislador. (SARMENTO, 2008, p. 73)

O processo de descodificação distanciou os aplicadores e destinatários dos

textos legais daqueles estatutos codificados, elaborados sob a influência

individualista, patrimonialista e absenteísta do Liberalismo, pois, a doutrina

sustentada pelo Estado Social incentivava a inclusão naqueles textos legais extra-

codificados de valores cuja preocupação, também, voltava-se para o âmbito coletivo,

servindo como elementos limitadores da autonomia da vontade das partes.

No Brasil, este processo de descodificação iniciou-se logo após a

promulgação do CCB/16, pois, segundo Fiuza (2003), este código já nasceu em

desconformidade com os objetivos da sociedade brasileira daquela época,

provocando, no início de sua vigência, a ruptura com as características da

completitude e rigidez presentes nos códigos.

Não obstante, aquele instrumento codificado permaneceu no centro do

ordenamento jurídico nacional rodeado de microssistemas73, que, atualmente,

podem ser apontados como exemplos o Código de Defesa do Consumidor, o

Estatuto do Idoso, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e tantos outros.

O processo de descodificação provocou mudanças na situação jurídica

proprietária, na medida em que exige do proprietário nova conduta, frente ao objeto

de seu direito e da coletividade que o cerca, pautada não somente no texto

codificado, mas também, em quantos instrumentos legislativos forem capazes de

73 Aludindo sobre a “era da descodificação” defendida por Natalino Irti, a qual provocaria a substituição do monossistema representado pelo Código Civil, pelo polissistema dos estatutos (estes como microssistemas de direito privado), Tepedino (2003) chama a atenção para a cautela que se deve tomar quando se analisa a relação dos códigos com aqueles estatutos na perspectiva do autor italiano, para que não se provoque um esfacelamento de todo o sistema jurídico privado, fazendo-se tal ressalva em razão da autonomia temática concedida por aquele autor aos microssistemas, deixando ao Código Civil um papel meramente residual, o que poderia fazer com que viessem a conviver diversos estatutos, cada qual com o seu conjunto de princípios e valores próprios. Para evitar tal situação, necessário que a unificação axiológica de um sistema onde convivem os diversos microssistemas com o Código Civil, se faça mediante a tomada do texto constitucional como referencia hermenêutica para todo o ordenamento, papel que antes era desempenhado pelos códigos.

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conduzir à concretização da função social da propriedade exigida, principalmente,

pelo texto constitucional.

Quando se trata do proprietário de unidade autônoma em condomínio edilício

a situação é ainda mais complexa, tendo em vista as peculiaridades que cercam o

exercício do direito de propriedade naquele instituto, e também, em virtude da força

que a convenção de condomínio exerce em seu âmbito interno com interferência

direta de suas regras no exercício do direito de propriedade frente àquela unidade

condominial.

A descodificação mostrou ao proprietário que, aquele instrumento codificado,

que lhe garantia uma posição confortável frente aos não-proprietários perdera o seu

posto central no sistema jurídico, comprometendo sobremaneira o exercício do

direito de propriedade pautado, somente, na autonomia da vontade, uma vez que o

individuo assumiu o lugar de destaque, anteriormente, ocupado pelo patrimônio, por

influência de um texto constitucional fundamentado na dignidade humana.

4.2.2 Personalização e despatrimonialização do Dire ito Civil: o abandono do

perfil absoluto da propriedade

O Direito Civil, enquanto parte de um ordenamento jurídico que se destina à

organização e regulamentação das relações que se estabelecem entre os

particulares de um determinado Estado de Direito, sofre diretamente as

conseqüências promovidas pelas modificações sociais oriundas da alteração dos

interesses dos sujeitos que compõem aquele Estado, até mesmo como forma de

superação dos novos problemas, que se apresentam.

Os processos de personalização e conseqüente despatrimonialização no

Direito Civil ocorreram em virtude das modificações que se sucederam na sociedade

europeia a partir do século XVIII até o final da segunda guerra mundial, e foram

verificadas, não somente, mas também, em dois de seus pilares básicos, a saber: a

propriedade e o contrato.

A análise da primeira metade do século passado permitiu que se concluísse,

a respeito da necessidade de se tutelar juridicamente, vários dos direitos

fundamentais atribuídos ao homem e que, além disso, outros tantos precisavam de

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ser reconhecidos, tendo em vista os absurdos cometidos contra milhares de pessoas

no período das duas grandes guerras, além de outras questões de submissão que o

modelo econômico capitalista proporcionava.

Anteriormente a este contexto, o tema que influenciou diretamente a alteração

sofrida na estrutura do Direito Civil, já havia ganhado a preocupação da doutrina

cristã e de parte da filosofia do século XVIII, porém, foi a partir das atrocidades

cometidas durante a segunda guerra mundial que a dignidade da pessoa humana

ganhou projeção legislativa internacional com a sua inclusão no texto da Declaração

Universal dos Direitos do Homem, elaborada em Paris, durante a Assembléia Geral

da Organização das Nações Unidas (ONU), de 10 de dezembro de 1948.

O caminho trilhado pela dignidade humana, até o seu efetivo reconhecimento

como valor intrínseco da natureza do homem, perpassou a doutrina cristã, o

Iluminismo, a filosofia de Immanuel Kant e o período que sucedeu à Segunda

Guerra Mundial, ganhando de cada uma destas influências, substância e força

conceitual.

A doutrina iniciada por Jesus Cristo igualou todos os seres humanos, na

medida em que traz a mensagem de que o homem foi criado por Deus à sua

imagem e semelhança, e assim, sendo uno o Deus cristão – não obstante a figura

da Santíssima Trindade – o ser humano traz consigo uma parcela daquela

divindade, afastando, por conseqüência, a sua coisificação, através da disseminação

do espírito de solidariedade para lhe garantir condições dignas de sobrevivência74.

O século XVIII trouxe toda a insatisfação com o quadro político e social

promovido pelo Absolutismo Monárquico que o antecedeu na Europa durante alguns

séculos; aquela insatisfação gerou reações sociais que, segundo Castro (2008),

foram traduzidas em um movimento intelectual conhecido como Iluminismo75, o qual

74 Há quem vislumbre um perfil meramente formal na idéia de igualdade defendida pelo cristianismo em virtude das situações de discriminação e desigualdade acobertadas pelas instituições que professam a fé cristã, pois, estas defenderam “durante muitos séculos, a legitimidade da escravidão, a inferioridade da mulher em relação ao homem, bem como a dos povos americanos, africanos e asiáticos colonizados, em relação aos colonizadores europeus.” (COMPARATO, 2004, p. 18) 75 Quanto aos precedentes doutrinários do movimento Iluminista, Castro (2008) ressalta que o Renascimento e a Revolução Científica do século XVII, influenciaram sobremaneira os seus principais pensadores, citando como exemplos: René Descartes como precursor do racionalismo, já que acreditava na dúvida metódica como principio científico; Francis Bacon, que acreditava na potencialidade da ciência para contribuir com o desenvolvimento do homem e com a melhoria de suas condições de vida e John Locke, que questionou a origem divina do poder e contribuiu para o amadurecimento da teoria do contrato social.

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depositava toda a sua confiança na razão humana e no progresso resultante do

incentivo à livre manifestação do pensamento, independentemente da forma

mediante à qual ele se concretizasse.

Wieacker (2004) refere-se ao Iluminismo dos séculos XVII e XVIII, como um

movimento responsável por grandes alterações na realidade social e política

europeia daquela época, em virtude da ruptura moral e religiosa, então, promovida,

assim, cumulando-se a essa ruptura com a crença inarredável na razão como

responsável pela determinação da vontade e felicidade humanas, reconhece o

sujeito como detentor de autonomia e dignidade independentes dos desígnios de

Deus ou do Estado.

Trilhando os caminhos inaugurados pelo Iluminismo, Immanuel Kant se firmou

como expoente de fundamental importância para o desenvolvimento da idéia de

dignidade da pessoa humana, pois, sua filosofia além de buscar os fundamentos

para a explicação de como é possível ao homem conhecer, estabelece uma ética

fundamentada no uso da razão atribuindo liberdade76 a todo ser racional através da

qual aquele deve conduzir as suas ações.

Kant (2005b) propõe que a idéia de liberdade deve ser pressuposta se houver

a intenção de se pensar em um sujeito racional e consciente de suas ações, por

isso, atribui a todos os seres racionais, e por conseqüência, a todos aqueles

(homens) dotados de vontade, a possibilidade de determinar livremente as suas

condutas.

Ela [liberdade] tem de considerar-se a si mesma como autora dos seus princípios, independentemente de influências estranhas; por conseguinte, como razão prática, ou como razão de um ser racional, tem de considerar-se a si mesma como livre; isto é, a vontade desse ser só pode ser uma vontade própria sob a idéia da liberdade, e, portanto, é preciso atribuir, em sentido prático, uma tal vontade a todos os seres racionais. (KANT, 2005b, p. 96)

Neste contexto, o homem é sujeito de dois mundos, por assim dizer,

numênico e fenomênico, tendo naquele a possibilidade de usar a razão para

76 Ressalta-se que nos limites deste trabalho, liberdade será usada no sentido de um “privilégio específico do homem enquanto ser racional” (MAGALHÃES, 2007, pág. 139), que por isso mesmo, sofre influências do mundo sensível. Assim, a demonstração daquele conceito de liberdade não pode ser feita de forma a apresentá-la como algo concreto, haja vista a impossibilidade de se encontrar um objeto ao qual se possa atribuir a denominação de liberdade, portanto, seu conceito é determinado a priori por uma razão pura, constituindo-se como fundamento da ação humana e conhecido por todos aqueles que a experimentam.

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conduzir as suas próprias ações, transitando por conceitos determinados a priori

pela razão e somente suscetíveis de verificação em um plano metafísico – como

Deus, alma e cosmo.

Por outro lado, vivencia uma realidade (fenomênica) onde se observam

inúmeras inclinações que interferem na motivação de suas condutas e que lhes

retiram a autonomia necessária para um agir moral definido e controlado por um

imperativo categórico77 que determina: “age apenas segundo uma máxima tal que

possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.” (KANT, 2005b, p. 59)

Portando, o imperativo categórico estaria a determinar o agir livre de um

sujeito autônomo, conforme as emanações, a priori, da razão e, sendo assim,

Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer). O principio da autonomia é portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal. (KANT, 2005b, pág. 85)

Assim, afirma Kant (2005b), que essa capacidade de conduzir suas ações

através da submissão a regras estabelecidas é atributo exclusivo do homem, o qual

recebe a denominação de pessoa por se caracterizar como ser racional, ao contrário

dos seres irracionais denominados coisas que possuem sua existência assentada na

natureza. Neste sentido,

O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim. [...] Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio. (KANT, 2005b, p. 68)

Esta pessoa que se utiliza da razão para submeter-se a regras, através da

autonomia da vontade e que não pode ser utilizada como meio para o alcance de

qualquer objetivo, sendo, portanto, fim em si mesmo, receberá o atributo da

77 O imperativo categórico reconhecido por Kant verifica a possibilidade de universalização da conduta praticada pelo sujeito e, por conseqüência, válida para todo ser racional. Dessa forma, se aquela conduta suporta a “aprovação” do imperativo categórico, então, o agir é livre e o homem autônomo na medida em que age por dever, ou seja, conforme os ditames da razão.

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dignidade – ao contrário das coisas que possuem valor – garantindo-lhe a

manutenção de sua sobrevivência em um patamar correspondente à sua natureza

humana – insubstituível e superior a qualquer preço –, buscando impedir toda

conduta que tenha por objetivo violar aquela intrínseca natureza.

Sarlet (2008) reconhece que a filosofia kantiana influenciou, expressivamente,

as doutrinas nacional78 e estrangeira, no que diz respeito à dignidade da pessoa

humana, haja vista as bases que forneceu para a sua conceituação e

fundamentação, não obstante a verificação de seus contrapontos, tendo mencionado

como exemplo a filosofia do Direito de Hegel, para quem a dignidade não se

constitui como característica intrínseca ao homem, mas sim, em uma qualidade a ser

conquistada a partir do momento em que este se torna cidadão.

Após o surto racionalista sofrido pelo Direito, através das teorias jurídicas

construídas sob a influência iluminista dos séculos XVIII e XIX, a dignidade da

pessoa humana ganhou, por fim, mais consistência em seus argumentos com o final

da Segunda Guerra Mundial, vez que se observou a necessidade de se proteger o

ser humano da repetição das barbáries, que foram perpetradas nas primeiras quatro

décadas do século XX.

O reconhecimento da dignidade humana pelos textos constitucionais79

provocou o início de uma alteração significativa na estrutura do Direito Privado que,

78 Não obstante a reconhecida dificuldade de se determinar, precisamente, o conceito a respeito da dignidade da pessoa humana e da necessidade deste conceito se adequar às especificidades que a realidade concreta determina, José Afonso da Silva, utilizando-se da Constituição da República de 1988, estabelece que: “Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.” (SILVA, 2001, p. 109) 79 Sarlet (2008), relaciona inúmeros países onde pode ser identificado expressamente, ou não, o reconhecimento do principio da dignidade da pessoa humana, senão vejamos: na União Européia foram identificados como países cujo texto constitucional consagra expressamente o principio da dignidade da pessoa humana, a Alemanha (art. 1°, in c. I), Espanha (preâmbulo e art. 10.1), Grécia (art. 2°, inc. I), Irlanda (Preâmbulo) e Portugal ( art. 1°). Outras constituições, sem expressa menção , reconhecem aquele principio, como o da Itália (at. 3°) e o da Bélgica (art. 23). No âmbito do Mercosul , as únicas constituições que atribuíram à dignidade da pessoa humana o status de norma fundamental foi a brasileira (art. 1°, inc. III) e a do Paragua i (Preâmbulo) sendo que outros textos fazem menção à

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a partir de então, encontrava-se submetido às influências de uma ordem

constitucional que passou a acolher incondicionalmente o ser humano em virtude de

suas condições intrínsecas, garantindo-lhe condições mínimas e dignas de

sobrevivência.

O resultado dessa alteração de paradigma foi a substituição do patrimônio

pelo ser humano, no que diz respeito ao centro das atenções dos ordenamentos

jurídicos privados, estejam estes estruturados sob uma legislação codificada ou não,

haja vista que o mandamento para a garantia da dignidade da pessoa humana, parte

do texto constitucional, devendo ser observado tanto no momento da elaboração da

norma legal quanto no momento de sua aplicação.

A evidência que passou a ser conferida à dignidade humana e a conseqüente

atribuição ao homem de um lugar privilegiado dentro do ordenamento jurídico

privado, provocou um processo de despatrimonialização na medida em que o

patrimônio deixou de ser considerado como um fim em si mesmo e, de merecedor

de tutela jurídica por si só, passou a ser considerado como objeto viabilizador de

condições dignas de sobrevivência ao homem.

Desde então, as situações existenciais recebem maior visibilidade dentro de

um contexto, em que a pluralidade de projetos de vida exige que a resolução dos

casos apresentados ao judiciário, ocorra desvinculada de uma subsunção mecânica

da norma ao fato, voltada para uma análise do caso concreto e de suas

particularidades, sempre observando a solução mais adequada para as partes,

dentro de um padrão interpretativo de dignidade.

Atribuindo a denominação de repersonalização a este processo de

valorização do sujeito nas relações jurídicas privadas em detrimento do patrimônio,

Lôbo (2003) afirma que por algum tempo o processo inverso, qual seja, de

consideração do patrimônio como valor individual a ser legalmente tutelado,

provocou o surgimento de um sujeito abstraído da realidade, e que este quadro não

se encontra adequado aos valores fundados, constitucionalmente, na dignidade da

pessoa humana.

Neste caminho, a CR/88 funcionalizou a propriedade, na medida em que

incluiu nas normas dos artigos 5° XXIII; 170, III, 182, § 2º e 186, a necessidade de

cumprimento de uma função social, devendo o titular daquele direito promover todos

dignidade sem alçá-la ao status de norma fundamental, sendo eles: Cuba (art. 8°), Venezuela (Preâmbulo), Peru (art. 4°), Bolívia (art. 6°, inc. II) e Chile (art. 1°), dentre várias outras.

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os esforços para que o exercício de seu direito ocorra mediante à observação de um

contexto coletivamente estabelecido, devendo deixar para traz aquela concepção

absoluta da propriedade propagada pelo ideário Liberal.

Mais uma faceta da crise pela qual passou o Direito Civil pode ser apontada

com os processos de despatrimonialização e personalização do Direito Civil, haja

vista que aqueles tiveram início a partir de uma conscientização de que o patrimônio

não poderia ser protagonista no ordenamento jurídico privado, situação que não se

coaduna com a sociedade contemporânea.

A crise do sistema antigo do Direito Civil suscita, antes de mais nada, questões concernentes à sua historicidade, à análise de inter-relação entre Direito e Sociedade, e ao princípio de dinamismo que impinge ao Direito seu eterno diálogo com o meio social, seu tempo e seu espaço. Tampouco se distancia da análise dos conceitos frente à concretude dos fatos que a eles se apresentam. A releitura crítica dos estatutos fundamentais do Direito Privado, para tanto, exige uma visita crítica e construtiva aos três pilares fundamentais do Direito Civil, e por conseqüência, do Direito Privado, quais sejam: a) trânsito jurídico, calcado na noção de contrato, de obrigações e sua modalidades; b) as titularidades, fundamentalmente encimadas nas noções de posse e de apropriação de um modo geral, e c) o projeto parental, que se encontra assentado na noção de família. (FACHIN, 2003, p. 26)

Portanto, pode-se afirmar que o processo de despatrimonialização encontra-

se vinculado à personalização do Direito Civil, o que para Sarmento (2008) trata-se

de faces distintas da mesma moeda, na medida em que a despatrimonialização

alocou o patrimônio dentro do ordenamento jurídico, de forma a fazer com que ele

assumisse o lugar de instrumento para a realização dos interesses da pessoa

humana, deixando para traz a concepção liberal que realizava a tutela da

propriedade como fim em si mesmo, já que naquele contexto, assumia a função de

possibilitar ao homem o exercício de sua liberdade.

Certamente que o patrimônio não perdeu a sua importância no Direito Civil,

mormente por encontrar-se no atual contexto, a serviço da viabilização das

condições dignas de sobrevivência do ser humano, sendo esta condição a pedra de

toque do sistema jurídico privado contemporâneo, ou seja, deve-se preocupar em

trazer o ser humano com todas as suas necessidades concretas para o centro deste

sistema no lugar que outrora pertencera ao patrimônio, sendo este o caminho da

personalização do Direito Civil.

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Todas essas observações são pertinentes, também, quando se trata da

apropriação e do uso de unidade autônoma em condomínio edilício, tendo em vista

que no contexto atual o co-proprietário não se pode furtar aos interesses dos demais

condôminos quando do exercício de seu direito, principalmente, quando o

cumprimento da função social encontra-se, diretamente, ligado aos valores

constitucionais da solidariedade e da dignidade humana.

4.2.3 O proprietário frente à Constitucionalização do Direito Civil

Vários são os fatores que influenciaram o processo de constitucionalização

que o Direito Civil vem experimentando desde a segunda metade do século XX,

primeiramente, em grande parte dos países da Europa e no Brasil, após a

promulgação da Constituição da República de 1988.

A constitucionalização encontra-se relacionada com diversos fatos – alguns

observados, simultaneamente, e outros como conseqüência inarredável dos que já

se observavam – como por exemplo, a mudança de paradigma que acompanhou a

transição do Estado Liberal para o Estado Social; a perda por parte dos Códigos do

status centralizador das questões pertinentes às relações jurídicas privadas; a

absorção pelos textos constitucionais (a partir do século XIX) de temas

historicamente relacionados com o Direito Civil, como a família e a propriedade; e,

principalmente, com a adoção da dignidade humana, como principio norteador de

todo o sistema jurídico.

O CCB/16 recebeu forte influência do Código Civil francês de 1804 (Código

de Napoleão) e, por conseqüência, tornou-se fiel ao ideário liberal-burguês

disseminado na Europa no período revolucionário, contudo, essa influência já não

condizia com o contexto social europeu do início do século XX, quando se deu a sua

promulgação e nem ao brasileiro, que apresentava naquela época problemas que o

texto recém codificado se mostrava incapaz de solucionar.

O quadro de superação do paradigma Liberal começou na Europa, já na

segunda metade do século XIX, porém, no Brasil, aquele processo só começou a

ser observado a partir dos anos 20, período em que o Código Civil contava com

apenas 3 (três) anos de vigência, fato capaz de demonstrar que algumas

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disposições trazidas naquele instrumento codificado já estavam defasadas desde a

promulgação.

As modificações que se sucederam no contexto social, e que interferiram,

diretamente, nas formas de Estado, atingiram em grande parte, não somente, os

códigos, mas também, os textos constitucionais daquela época que deixaram de

cuidar apenas da estrutura do Estado (condizente com o perfil Liberal), passando a

abordar temas relacionados com a ordem econômica e social, através de normas de

conteúdo programático que determinavam objetivos a serem perseguidos pelo

Estado, sem estabelecer a forma exata de sua concretização.

Elas [constituições] não mais se limitam à disciplina do fenômeno estatal, passando a cuidar também da ordem econômica e das relações privadas. O Direito Constitucional penetra em novos campos, fecundando-os com seus valores. A Constituição, em suma, não é mais a “Lei do Estado”, mas o Estatuto Fundamental do Estado e da Sociedade. A chamada constituição dirigente substitui as antigas constituições liberais, contendo um projeto global de transformação da sociedade. (SARMENTO, 2008, p. 24, grifo nosso)

Tepedino (2003) afirma que essa mudança no conteúdo das Constituições

deve-se, principalmente, ao processo de industrialização verificado no início do

século passado, observando-se, a partir de então, a inserção de princípios e normas

definidoras de obrigações sociais, o estabelecimento de limites para a autonomia

privada e a propriedade, sendo que foi neste contexto que os códigos perderam o

posto de “constituição do direito privado”, já que as Constituições passaram a

incorporar em seus textos matérias que, anteriormente, estavam submetidas ao

sistema do Direito Civil.

O conjunto das alterações começa a ser operado a partir da Constituição; daí o que se entende por “constitucionalização”, que significa o processo pelo qual a Constituição vai gerar mudanças que irá repercutir no Direito Civil. Em outras palavras, menciona-se a funcionalização de certos institutos, como a função social da propriedade, dos contratos e, mais tarde, da empresa. Reconhecem-se essas atividades como legítimas na economia em que elas se inserem, mas também sobre elas estipula-se um conjunto de deveres inerentes ao seu próprio exercício. (FACHIN, 2003, p. 77-78, grifo nosso)

Concomitante a estas alterações de conteúdo das constituições, observa-se

uma postura mais intervencionista por parte do Estado no âmbito social, fiel à

superação do paradigma liberal que lhe cobrava uma conduta absenteísta,

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principalmente no que dissesse respeito aos assuntos tratados entre particulares,

sendo certo que a evolução daquele processo de intervenção do Estado em diversos

setores da sociedade, culminou naturalmente na retirada de temas inteiros dos

grandes instrumentos codificados, passando aqueles a serem tratados por uma

vasta legislação extra-codificada.

Aquela intervenção estatal na economia e, sobretudo, nas relações jurídicas

privadas recebeu a denominação de dirigismo contratual e encontrou sua justificativa

na tutela do indivíduo frente às iniqüidades promovidas por uma sociedade

construída sobre pilares individualistas e egoístas, e na crença de que a liberdade

conferida e garantida pelo ordenamento jurídico seria capaz de proporcionar a todos

condições igualitárias de contratação e de satisfação dos próprios interesses.

Neste contexto intervencionista, Barroso citado por Ribeiro (2004, p. 136),

informa que os textos constitucionais80 deixaram de lado o estigma de se limitarem,

apenas, ao tratamento da regulação estrutural básica do Estado para incluírem,

além dos direitos individuais, diversas normas relacionadas à organização dos

planos social e econômico, objetivando a proteção do ser humano frente aquele

quadro de desigualdade social mencionado acima.

No Brasil, o CCB/16 não sofreu abalo considerável quando do aparecimento

dos primeiros textos extra-codificados, mantendo sua posição central no

ordenamento jurídico privado, determinando a forma de interpretação e a resolução

dos conflitos surgidos nas relações jurídicas entre particulares, contudo, foi com o

aumento da complexidade destas relações que o código, enquanto sistema fechado

de regras, mostrou-se incapaz de solucionar as novas demandas sociais.

Portanto, a excessiva produção legislativa como reflexo da política

intervencionista assumida pelo Estado Social, e a paulatina absorção pelos textos

constitucionais de disciplinas que, tradicionalmente, eram tratadas exclusivamente

pelo Direito Civil, podem ser apontadas como duas importantes questões que

fizeram parte deste período inaugural da chamada constitucionalização do Direito

Civil81.

80 A Constituição torna-se compromissória, pois, encontra-se “construída sob o embate dialético das diversas classes sociais, sem o predomínio absoluto de uma única tendência política.” (BARROSO apud RIBEIRO, 2004, p. 140). 81 Tepedino (2004) ressalta que no Brasil, aquele movimento de constitucionalização do Direito Civil foi iniciado com a promulgação da Constituição da República de 1988, quando o Código Civil brasileiro passou a ser valorado e interpretado em conjunto com diversos diplomas legislativos que

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Nas palavras de Lôbo (2003), a constitucionalização do Direito Civil82

apresenta-se como a etapa mais importante pela qual passou o Direito Civil, na

transição do Estado Liberal para o Estado Social, tratando-se de critério

hermenêutico que influencia todo o ordenamento jurídico privado, já que absorve

deste os fundamentos de validade das relações jurídicas civis. Assim,

Pode-se afirmar que a constitucionalização é o processo de elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais do direito civil, que passam a condicionar a observância pelos cidadãos, e a aplicação pelos tribunais, da legislação infraconstitucional. (LÔBO, 2003, p. 199)

O processo de constitucionalização do Direito Civil trata-se de uma

reformulação sofrida pelo Direito Civil (em seus institutos fundamentais, em sua

sistematização e métodos interpretativos), não somente pela incorporação às

Constituições de temas antes tratados com exclusividade pelo ordenamento jurídico

privado, mas, sobretudo a partir da interferência direta dos novos valores trazidos

pelos textos constitucionais, os quais, por sua vez, têm agora o seu norte traçado

pela dignidade da pessoa humana.

Explica-se, nesse contexto, as diversas expressões que, surgidas em doutrina, espelhavam a mudança ocorrida na dogmática do direito civil. Socialização, despatrimonialização, repersonalização, constitucionalização do direito civil, em seus diversos matizes, tendem a significar que as relações patrimoniais deixam de ter justificativa e legitimidade em si mesmas, devendo ser funcionalizadas a interesses existenciais e sociais, previstos pela própria Constituição no ápice da hierarquia normativa, integrantes, portanto, da nova ordem pública, que tem na dignidade da pessoa humana o seu valor maior. A Constituição da República, ao absorver uma série de valores não-patrimoniais, intervém diretamente no negócio jurídico, na família, nas relações de trabalho, na empresa, nas relações de consumo; coloca em xeque o dogmatismo próprio da escola da exegese, tão cioso de sua neutralidade e pureza científica, que limitava deliberadamente os horizontes do direito civil às relações patrimoniais. (TEPEDINO, 2003, p. 119)

É assim que os valores e princípios trazidos pelas Constituições passaram a

ser utilizados como referência hermenêutica do Direito Civil em geral, ou seja, a

possuíam em si, a pretensão de abranger em sua totalidade, o conteúdo de um determinado tema que outrora estava (ou deveria estar) submetido ao texto codificado. 82 Lôbo (2003) diferencia o processo de constitucionalização do Direito Civil, com a publicização do Direito Civil, pois aquela, como já se demonstrou, tem como objetivo fazer incidir sobre o direito privado os fundamentos de validade estabelecidos através de seus princípios contidos, sobretudo, no texto constitucional; por outro lado, a denominada publicização pode ser caracterizada como o processo de intervenção Estatal no âmbito privado, muito observado no modelo de Estado Social.

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interpretação das normas infraconstitucionais, inclusive aquelas codificadas, é

realizada sob a influência dos valores e princípios constitucionais.

Sarmento (2008) ressalta que a primazia axiológica conferida aqueles

princípios, bem como a influência que os mesmos exercem sobre todo o

ordenamento jurídico, impõe a este uma reestruturação voltada para a abertura dos

padrões exegéticos atribuídos sobre os institutos tradicionais do Direito Civil, pois,

torna-se inconcebível a manutenção de uma ordem jurídica privada afastada do

novo contexto social pautado na dignidade humana e na solidariedade83.

Fachin e Ruzyk (2006) indicam que a escolha dos direitos fundamentais como

referência interpretativa de todo o ordenamento jurídico, tenha sido uma das

questões que mais promoveu o desenvolvimento do processo de

constitucionalização do Direito Civil, haja vista que, a partir de então, a Constituição

abandona o posto de simples carta política e os direitos fundamentais aparecem,

não somente, como liberdades negativas exercidas contra o Estado, merecendo,

agora, a obediência de todos sem qualquer restrição.

[...] o reconhecimento da força normativa da Constituição e do caráter vinculante dos seus princípios contribuíram decisivamente para que fosse desencadeado o processo de constitucionalização do Direito Privado, diante do qual a própria dicotomia Direito Publico/Direito Privado tornou-se, para dizer o mínimo, extremamente relativa. Esta constitucionalização não apenas expulsou o Código Civil do centro do sistema, mas também catalisou mudanças significativas na ordem jurídico privada, que passou a gravitar em torno da pessoa humana e dos seus valores existenciais. Operou-se, assim, uma verdadeira funcionalização dos direitos patrimoniais, que passaram a ser valorados como simples meios para o desenvolvimento da personalidade humana. (SARMENTO, 2008, p. 102-103)

Reconhecendo a dificuldade de absorção de toda a transformação promovida

no ordenamento jurídico privado, com o processo de constitucionalização do Direito

Civil, principalmente em virtude das raízes deixadas pelos postulados clássicos

daquele ramo do direito, Fachin (2003) ressalta que, além da aceitação da

constitucionalização, caberá, atualmente, verificar criticamente as suas

conseqüências, uma reflexão, longe da aceitação irrestrita e cega ao fenômeno, mas

83 No entendimento de Franz Wieacker “o pathos da sociedade de hoje, comprovado em geral por uma análise mais detida das tendências dominantes da legislação e da aplicação do direito (p. 623 ss), é o da solidariedade: ou seja, da responsabilidade, não apenas dos poderes públicos, mas também da sociedade e de cada um dos seus membros individuais, pela existência social (e mesmo cada vez mais pelo bem-estar) de cada um dos outros membros da sociedade.” (WIEACKER, 2004, p. 718)

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reconhecendo as transformações efetivamente operadas com o seu surgimento, por

exemplo, no que diz respeito à concepção absoluta de propriedade substituída por

uma versão de conteúdo funcionalizado.

É justamente essa transformação ocorrida na propriedade que se busca

ressaltar nessa parte do trabalho, ou seja, busca-se demonstrar que o fenômeno da

constitucionalização do Direito Civil relacionou o direito de propriedade com os

direitos fundamentais e que o proprietário, ao exercer o direito do qual é titular, deve

estar atento à relação existente entre aquelas duas formas de direito para

condicioná-lo aos valores e princípios que os direitos fundamentais trazem consigo

proporcionando, como conseqüência, a concretização da função social da

propriedade.

Quando se trata do exercício do direito de propriedade no âmbito privado do

condomínio edilício, a situação mostra-se ainda mais complexa, em virtude das

peculiaridades que se apresentam na edificação, onde aquele instituto encontra-se

estabelecido, o que exige do proprietário a busca pelo cumprimento da função social

que justificará o titulo de propriedade que lhe pertence, através de uma conduta

pautada, sobretudo, nos princípios da solidariedade e da dignidade humana.

A propriedade sofre como colorário da constitucionalização do Direito Civil, o

que a doutrina denominou de funcionalização voltando-se para um exercício que se

preocupa, também, com os interesses do titular, mas sobretudo, com um papel

social a ser cumprido. Este foi o desafio atribuído ao proprietário com o processo de

constitucionalização do Direito Civil, cujos reflexos se estenderam para o século ora

em curso.

A influência que as normas e os princípios constitucionais passaram a exercer

sobre o ordenamento jurídico privado gerou questionamentos a respeito dos limites

dessa interferência, principalmente, se aqueles poderiam ser aplicados diretamente

às relações jurídicas privadas, ou se haveria a necessidade do legislador

infraconstitucional transformar o comando presente na Constituição em lei ordinária,

para surtir os efeitos pretendidos.

A eficácia das normas constitucionais e sua aplicação direta (ou não) nas

relações jurídicas privadas serão analisadas a seguir, para que se possa concluir ao

final sobre a necessidade do exercício do direito de propriedade no âmbito privado

do condomínio edilício em consonância com os mandamentos constitucionais,

mormente aquele que determina o cumprimento da função social da propriedade.

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4.3 A eficácia dos Direitos Fundamentais frente às relações jurídico-privadas

que se manifestam no âmbito interno do condomínio e dilício

O Estado democrático de direito instituído pela CR/88 é utilizado neste

trabalho como contexto necessário para a análise da situação jurídica proprietária

estabelecida no âmbito privado do condomínio edilício, sendo certo que aquela

forma de Estado recebeu do mesmo texto constitucional um sistema de direitos

fundamentais que se tornou uma de suas características primordiais.

A importância atribuída aqueles direitos fundamentais, bem como o

necessário cumprimento de uma função social, contribuíram para que houvesse

significativa modificação na forma do titular do direito de propriedade se comportar

frente ao objeto de seu direito, bem como frente aos outros não-proprietários

exigindo o uso consciente do solo, seja ele urbano ou rural, em se tratando de bem

imóvel.

As relações jurídicas observadas entre os condôminos envolvendo unidades

autônomas em condomínio edilício caracterizam-se como relações privadas que

sofrem a incidência direta das normas constitucionais instituidoras dos direitos

fundamentais em virtude de sua dimensão objetiva e de seu conseqüente efeito

irradiante, mesmo porque, não há função social que se concretize em desrespeito

aos direitos fundamentais estabelecidos pelo texto constitucional de 1988.

Dessa forma, a presente análise se justifica na medida em que se percebe

que a efetivação de direitos fundamentais entre particulares, importante para a

concretização da função social da propriedade, também pode ocorrer no âmbito

privado do condomínio edilício, através do conteúdo que se atribui à convenção de

condomínio e à conduta que se exige do proprietário, naquele ambiente privado.

Verifica-se que a convenção de condomínio pode servir tanto para auxiliar no

cumprimento do principio da função social da propriedade urbana, quanto na

efetivação de certos direitos fundamentais entre os co-proprietários, tendo em vista

que, em certa medida, o cumprimento de um leva à efetivação do outro e vice-versa,

quando se trata de unidade autônoma em condomínio edilício.

Conforme vasta doutrina pátria e alienígena, os termos Direitos Fundamentais

e Direitos Humanos, que por vezes são utilizados como sinônimos referem-se a

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institutos diferentes não obstante o fato de apresentarem naturezas

consideravelmente próximas.

Canotilho (2002) informa que a diferença entre os direitos do homem e os

direitos fundamentais pode ser buscada em suas respectivas origens, ou seja,

entende-se por direitos do homem aqueles que encontram seu fundamento na

natureza humana, sendo conferidos a todos os seres humanos, a todos os povos e

em todos os tempos, segundo uma dimensão jusnaturalista-universalista; por outro

lado, os direitos fundamentais são os direitos do homem reconhecidos84 e limitados

por um determinado ordenamento jurídico em um espaço de tempo específico,

sendo direitos objetivamente vigentes em uma ordem jurídica concreta.

Respeitar-se-á neste trabalho a distinção supra que também é realizada por

Sarlet (2007) para quem os direitos fundamentais são posições jurídicas que dizem

respeito à pessoa humana e que, em razão de seu conteúdo e importância, podem

apresentar-se incluídas, ou não, nos textos constitucionais sem que haja

possibilidade de disposição sobre aqueles direitos por parte dos poderes estatais

constituídos.

O reconhecimento dos direitos fundamentais ao ser humano não se fez da

noite para o dia e nem de forma definitiva, pois, encontrando-se vinculados às

necessidades essenciais para a sua sobrevivência em cada período histórico,

aquele reconhecimento foi conseqüência de muita luta, e também da tomada de

consciência de que o homem, considerado em si mesmo, deve ser tutelado pelo

ordenamento jurídico contra condutas que afrontem qualquer aspecto de sua

condição humana.

Distante de qualquer pretensão de retomar as raízes históricas dos direitos

fundamentais, afirma-se em apertada síntese que os direitos que se relacionavam

com a natureza intrínseca do homem foram aos poucos sendo retomados no

contexto da Idade Média, principalmente com o auxílio dado pelas doutrinas do

84 Galuppo (2003) ressalta a dificuldade de se traçar uma definição absoluta para os direitos fundamentais, haja vista que estes são produtos de uma construção histórica, irredutíveis, portanto, a um termo que representante uma única realidade. Merece ser destacado o fato do autor reconhecer que, no contexto do Estado democrático de direito, os direitos fundamentais só existem na tensão entre faticidade e validade e que, portanto, não são aqueles reconhecidos e atribuídos pelo Estado ao cidadão, mas sim os direitos que devem ser reconhecidos pelos cidadãos reciprocamente, não havendo uma regra finalizada para o reconhecimento de sua legitimidade, a qual será reconhecida através de um procedimento de interpenetração entre as autonomias privada e pública verificadas na sociedade.

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direito natural e do humanismo, promovendo o aparecimento de diversos pactos e

cartas contendo direitos limitadores dos poderes do monarca.

O tratamento conferido aos direitos fundamentais ganhou relevância com as

declarações de direitos proclamadas durante o século XVIII, sendo elas: Declaração

de Direitos do Bom Povo de Virgínia (1776), Declaração Norte-Americana

consubstanciada no Bill of Rights (1791), e Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão adotada pela Assembléia Constituinte francesa de 1789.

Independentemente da ordem através da qual aqueles documentos foram

declarados, o que se ressalta é que todos eles são reflexos do pensamento

elaborado e desenvolvido na Europa, durante o século XVIII85.

Todo este período estava sob influência do Iluminismo, refletido no aspecto

jurídico, através do jusracionalismo, porém, especificamente no caso francês, a

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 foi uma resposta que os

revolucionários franceses deram ao superado ancién regime, objetivando

reconhecer a todos os cidadãos – mesmo que no âmbito formal – os direitos à

liberdade e à igualdade.

Neste período histórico, as declarações de direitos e as primeiras

Constituições escritas trouxeram, em seus textos, direitos fundamentais condizentes

com o ideário liberal-burguês do século XVIII, ou seja, direitos cuja elaboração fora

influenciada por uma concepção individualista86, entendidos como âmbito legal em

85 Pode-se identificar naquelas declarações, certa uniformidade entre os direitos, então, estabelecidos, senão veja-se: a) igualdade perante a lei; b) ausência de privilégio para ocupação de cargos públicos; c) divisão de poderes; d) liberdade de crença; e) liberdade de imprensa como corolário do direito à liberdade; f) sufrágio universal; g) direito de defesa em processo criminal; h) garantia da propriedade privada e etc. Contudo, Silva (2001) ressalta uma diferença (significativa) existente entre as declarações proclamadas na América do Norte e aquela proclamada na França, qual seja, o sentido universalizante contido no texto de 1789. Tal característica pretende atribuir aos termos daquela declaração uma conotação universal, destinada a todos os seres humanos, diferentemente das declarações americanas que não pretendiam ultrapassar os contornos de seu país. Conforme o autor, essa característica universalizante da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi transferida para outros textos, posteriormente, promulgados tais como, a Declaração dos Direitos Internacionais do Homem de 1928-1929, a Carta das Nações Unidas de 1945 e a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Para concretizar em âmbito regional das determinações estabelecidas nas declarações da ONU, houve a Convenção de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais aprovada em Roma, no ano de 1950, e a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José de Costa Rica de 1969. 86 Outras influências podem ser reconhecidas frente aos direitos fundamentais desta primeira fase, como por exemplo o pensamento cristão primitivo (em que todos os homens devem ser tratados com igualdade e dignidade), o jusracionalismo dos séculos XVII e XVIII, por defender a tese de direitos inerentes à condição humana, e por fim, o pensamento iluminista que movimentou uma sociedade ávida pelo desenvolvimento econômico e social, e que ao mesmo tempo, encontrava-se reprimida por um Estado absolutista que negava a igualdade e a liberdade entre os indivíduos.

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que estaria garantida a autonomia da vontade do cidadão, e onde o Estado

encontrava-se impedido de intervir, sendo, portanto, reconhecidos como direitos de

garantia.

Atribuindo-lhes a denominação de direitos fundamentais de primeira

dimensão87, Sarlet (2007) informa que os direitos fundamentais surgidos no contexto

do Estado Liberal possuíam cunho “negativo” frente ao Estado, uma vez que exigiam

deste uma postura absenteísta em relação às liberdades, então, concedidas ao

indivíduo, após longo período histórico marcado pela intervenção estatal; destacam-

se naquele grupo os seguintes direitos: direito à vida; à liberdade (de expressão

coletiva e participação política); à propriedade; e à igualdade (formal) perante a lei.

Após essa primeira fase de surgimento dos diretos fundamentais, a dinâmica

social em um século fez com que outros direitos fossem pensados, além daqueles

reconhecidos no período revolucionário em virtude do grande impacto promovido

pela revolução industrial e pela constatação de que a igualdade formal, bem como a

garantia da liberdade sem que houvesse a garantia de condições mínimas de

sobrevivência com dignidade, além de não se mostrarem suficientes para o sujeito,

apresentavam um quadro social constituído por poucos (afortunados) detentores dos

meios de produção e muitos (desafortunados) detentores apenas de sua força de

trabalho.

Assim, despontaram-se os direitos de cunho econômico, cultural e social, cuja

elaboração sofreu influência ideológica do manifesto comunista, da doutrina social

da Igreja e do intervencionismo estatal, acompanhando a mudança de paradigma

que propiciou o desenvolvimento do Estado Social ou Estado do bem-estar Social, a

partir da segunda metade do século XIX.

87 A divisão dos direitos fundamentais em grupos de gerações ou dimensões de direitos recebe muitas criticas por grande parte da doutrina, sob o argumento de que tal situação promoveria a idéia de que os direitos reconhecidos em períodos históricos posteriores, substituiriam aqueles reconhecidos anteriormente, traduzindo-se tal raciocínio em um equívoco imensurável. Os direitos fundamentais, além de se encontrarem, diretamente vinculados com a tutela das condições mínimas de sobrevivência digna do ser humano, em razão de sua natureza intrínseca, também são frutos das conquistas que, historicamente, foram reconhecidas aos homens frente ao Estado, não se podendo falar em substituição dos direitos já conquistados, mas sim, em uma nova atribuição de significado em virtude de mudanças nos interesses sociais, além de uma complementação realizada pelos novos direitos reconhecidos. Neste trabalho, será utilizada a expressão geração de direitos fundamentais, seguindo a doutrina de Sarlet (2007) para quem a disciplina dimensional dos direitos fundamentais não indica, somente, o caráter cumulativo e evolutivo do processo de seu reconhecimento, mas também, a unidade e indivisibilidade daqueles direitos no contexto constitucional no âmbito dos Estados, e também, no âmbito internacional com os documentos de proteção aos direitos humanos.

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Surgiram, portanto, os direitos fundamentais de segunda dimensão, dentre os

quais estavam englobados os direitos de cunho positivo (ou prestacional), já que

exigiam a atuação estatal para a efetivação dos direitos relacionados à saúde,

educação, seguridade social, ao trabalho e às condições dignas de seu exercício e

remuneração, além de se buscar a efetivação da igualdade material e a ampliação

da liberdade.

Zippelius (1997) é enfático ao apontar a conversão dos direitos fundamentais

no contexto do Estado Social em prestações, em fundamentos de tarefas para

aquele ente estatal realizar junto à sociedade; além disso, neste novo paradigma a

igualdade é buscada para além da formalidade da lei, experimenta-se a liberdade

sob os olhares do Estado, que neste contexto transforma-se em um gestor da justiça

e do bem-estar geral.

O direito à propriedade encontra-se reconhecido como direito fundamental

desde a primeira geração, não obstante ter sofrido alterações em sua conotação

deixando para trás sua perspectiva absoluta para abraçar um conceito

funcionalizado e preocupado com a sua inserção em um contexto social, onde se

encontram outros tantos não-proprietários.

As indicações que aqui serão realizadas sobre os direitos fundamentais de

terceira e quarta dimensões, apenas contribuirão para demonstrar o que já havia

sido ressaltado, ou seja, a relação direta existente entre a evolução dos direitos

fundamentais ao longo do tempo e as modificações pelas quais a sociedade passou,

interferindo, inclusive, nas formas de Estado, então, observadas.

Certamente que os direitos fundamentais de segunda dimensão não foram

suficientes para atenderem aos reclames sociais advindos com os acontecimentos

históricos, observados durante todo o século XX, mormente após as duas grandes

guerras, pois, o desenvolvimento tecnológico observado primeiramente no âmbito

militar, em razão da canalização dos investimentos nesta área, alcançou

rapidamente a comunidade civil trazendo consigo diversos problemas não

suscitados, até então.

Reconhecendo que os direitos fundamentais de terceira dimensão ainda

estão de fora de grande parte dos textos constitucionais, mas também, que estão

em fase de inclusão em documentos transnacionais e tratados, Sarlet (2007) informa

que aquela dimensão de direitos não se destina diretamente ao homem-indivíduo,

mas sim, aos grupos humanos (família, povo, nação) por se caracterizar como

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direitos de titularidade difusa, sendo eles o direito à paz, à autodeterminação dos

povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à qualidade de vida, o direito à

conservação e à utilização do patrimônio histórico e cultural, além do direito à

comunicação.

Não obstante a existência de defensores dos direitos fundamentais de sexta

dimensão, atualmente se reconhece que a quarta dimensão de direitos

fundamentais está mais próxima de sua concretização, portanto, deve o Estado,

diante da importância e do conteúdo presente nos direitos fundamentais, assumir em

relação a estes, um dever de proteção que se caracteriza não, só pela obrigação de

abster-se de violá-los, como também, pela proteção conferida aos seus titulares,

frente às potenciais ameaças advindas de terceiros.

O dever de proteção poderá ser concretizado pelo Estado, tanto através de

uma atividade legislativa, quanto executiva ou mesmo através da atuação do poder

judiciário, guiando-se sempre na direção da dignidade da pessoa humana.

[...] tem sido sustentado que os deveres de proteção decorrentes das normas definidoras de direitos fundamentais impõem aos órgãos estatais (e é o Estado o destinatário precípuo desta obrigação) um dever de proteção dos particulares contra agressões aos bens jurídicos fundamentais constitucionalmente assegurados, inclusive quando estas agressões forem oriundas de outros particulares, proteção esta que assume feições absolutas, já que abrange todos os bens fundamentais. (SARLET, 2000, p. 71)

Outras exigências realizadas frente ao Estado para que haja, na medida

certa, a sua intervenção com recursos e políticas públicas, em prol da efetivação dos

direitos fundamentais, trazem como conseqüência o reconhecimento de que aqueles

direitos representam os valores de uma determinada sociedade que os considera

como primordiais na condução de suas relações.

É o que a teoria contemporânea denominou de dimensão objetiva dos direitos

fundamentais encontrando-se vinculada, conforme Sarmento (2008) ao

reconhecimento de que os direitos fundamentais trazem, consigo, os valores

primordiais de uma determinada comunidade política, além de determinar certas

prestações aos poderes públicos.

Corolário da dimensão objetiva é a eficácia irradiante dos direitos

fundamentais, pois, os valores reconhecidos através daquela dimensão penetram

em todo ordenamento jurídico interferindo no processo de interpretação das normas

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legais e funcionando como parâmetros de atuação para os poderes Legislativo,

Executivo e Judiciário.

No Brasil, os direitos fundamentais sempre foram previstos pelos textos

constitucionais, obviamente, cada um com as peculiaridades definidas pelo

paradigma de cada época, contudo, a CR/88 encontra-se sustentada por um

conjunto de princípios que orientam as suas disposições, tais como a dignidade da

pessoa humana e o Estado democrático de direito, tendo sido incorporado aquele

texto, direitos individuais, políticos, sociais, difusos e coletivos, os quais foram

alçados à condição de cláusula pétrea na norma do artigo 60, § 4º.

Sobre a eficácia das normas da CR/88, Daniel Sarmento estabelece que

[...] a Constituição brasileira impõe a extensão dos direitos fundamentais às relações entre pessoas e entidades privadas. Pelo menos no ordenamento brasileiro, que tem em seu cimo uma Constituição fortemente voltada para o social, não é possível conceber tais direitos como meros limites ao poder do Estado em favor da liberdade individual. A Constituição e os direitos fundamentais que ela consagra não se dirigem apenas aos governantes, mas a todos, que têm de conformar seu comportamento aos ditames da Lei Maior. Isto porque, a Constituição de 1988 não é apenas a Lei Fundamental do Estado brasileiro. Trata-se, na verdade, da Lei Fundamental do Estado e da sociedade, porque contém os principais valores e diretrizes para a conformação da vida social no país, não se limitando aos papéis mais clássicos das constituições liberais de organização da estrutura estatal e definição das relações entre governantes e governados. (SARMENTO, 2008, p. 235)

O reconhecimento dos direitos fundamentais caracteriza-se por ser um

enorme passo para a garantia de condições mínimas de sobrevivência digna do ser

humano, porém, não basta o reconhecimento se tais direitos não forem,

efetivamente, concretizados, fazendo-se necessária a análise da eficácia daqueles

direitos fundamentais frente às relações jurídico-privadas, principalmente, pelo

impacto que a eficácia direta provocará nas situações jurídicas proprietárias.

A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas pode ser

vislumbrada como conseqüência do reconhecimento da força normativa da

constituição88, retirando dos textos constitucionais o insuficiente adjetivo de conjunto

88 A força normativa da constituição preconizada por Hesse (1991) pode ser entendida como o resultado da atuação de um conjunto de fatores desenvolvidos no seio da sociedade e que conta, principalmente, com a colaboração e participação dos destinatários de suas normas. Aquela proposta buscou demonstrar que a Constituição não se trata de um mero “pedaço de papel”, como afirmado por Lassalle, mas sim, de um texto legal (já que o Direito Constitucional é ciência jurídica) detentor de uma força vital própria que se coloca ao lado das forças reais de poder, tornando-se capaz de interferir na estrutura do Estado, já que sua pretensão supera o simples representar a realidade,

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de normas de conteúdo programático direcionadas unicamente ao Estado, para

buscar a ampliação do seu âmbito de atuação junto à sociedade, e principalmente,

frente às relações jurídicas, firmadas entre os particulares.

Aquela concepção vinculada ao modelo liberal de Direito objetivava, através

da concessão de direitos fundamentais proteger o cidadão das ingerências do

Estado sobre vários direitos relacionados à pessoa e ao patrimônio, abstendo-se

aquele de intervir no espaço privado, onde imperava a autonomia da vontade.

Por outro lado, neste período observa-se a existência de uma dicotomia entre

público e privado refletida na doutrina jurídica que indicava o Estado como

destinatário das normas constitucionais e a sociedade, nas relações estabelecidas

entre os particulares, assumia o posto de receptora das normas de Direito Privado

presentes, sobretudo, na legislação codificada, restando os direitos fundamentais

limitados à incidência sobre as relações entre os indivíduos e o Estado.

A superação deste modelo de Estado para outro, cujas funções foram

ampliadas, consideravelmente, em virtude do aspecto social assumido pelo mesmo,

realçou a importância dos direitos fundamentais frente à sociedade, pois, estes

passariam a interferir em toda situação jurídica – seja ela entre particulares ou entre

estes e o Estado – onde estivesse ausente a igualdade de forças sociais ou

econômicas como forma de compensação dessa desigualdade.

A partir de então, verificou-se a necessidade de se discutir a possibilidade dos

direitos fundamentais, também, produzirem efeitos diretamente nas relações

jurídicas entre particulares – inclusive as proprietárias –, buscando um alargamento

colocando-se a ordená-la. A força vital da constituição encontra-se na realidade social, nas condições culturais, econômicas e nas concepções sociais concretas de uma determinada sociedade. Assim, no que diz respeito à eficácia da norma constitucional é necessária a sua vinculação a uma realidade histórica concreta, somada a uma ordem jurídica pautada na razão, uma vez que a Constituição não pode ser imposta ao homem sob pena de não encontrar solo fértil para a sua aplicação. Contudo, a força normativa da constituição não pode se resumir a uma adaptação da realidade social, deve buscar nessa mesma realidade o reconhecimento de seus mandamentos e a concretização das tarefas por ela estabelecidas, ou seja, deve haver na sociedade o interesse de concretizar a ordem constitucional, já que os indivíduos têm responsabilidades na construção e desenvolvimento da sociedade através da obediência aos mandamentos constitucionais. Portanto, os fatores determinantes da força normativa da constituição, são: 1) adequação do texto constitucional com a realidade na qual ela se insere; 2) a existência da vontade de constituição, ou seja, deve-se exigir de todos os que participam da vida constitucional, o respeito à constituição, a tomada de consciência que o cumprimento das normas constitucionais é fundamental para a sua força normativa, e de que aquela vontade de constituição deve sempre ser preservada; 3) a submissão da interpretação da norma constitucional ao princípio da ótima concretização da norma, devendo ser considerados os fatos concretos da vida, ou seja, aquele processo interpretativo não pode abrir mão da consideração dos fatos concretos da vida, já que estes interferem diretamente no conteúdo da norma constitucional.

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da vinculação do texto constitucional para incluir toda a sociedade sob os seus

mandamentos no que diz respeito às normas garantidoras dos direitos

fundamentais89.

A unanimidade sobre a eficácia direta dos direitos fundamentais não foi

alcançada90, havendo diversos entendimentos, uns defendendo a impossibilidade

dessa vinculação direta do particular aos direitos fundamentais (teoria da eficácia

mediata ou indireta dos direitos fundamentais); e outros apoiando a tese contrária

(teoria da eficácia imediata ou direta dos direitos fundamentais), porém, esta última

89 Tendo em vista o objetivo do presente trabalho, a realização de uma abordagem mais minuciosa a respeito da eficácia dos direitos fundamentais mostra-se inadequada, contudo, não se pode deixar de mencionar a divisão doutrinária estabelecida sobre o tema supra mencionado. Assim, pode-se dizer que foram firmadas duas vertentes a respeito da eficácia dos direitos fundamentais, uma denominada eficácia vertical e a outra denominada eficácia horizontal. A respeito da eficácia vertical dos direitos fundamentais não há qualquer novidade, haja vista que ela encontra-se vinculada ao paradigma do Estado Liberal, onde os direitos fundamentais eram vislumbrados como garantia de uma dimensão de direitos atribuídos ao indivíduo, onde o Estado não poderia interferir e nem agir de forma a promover a sua violação. Neste sentido, a aplicação dos direitos fundamentais ocorria em uma relação onde as forças eram visivelmente desiguais e os direitos fundamentais incidiam como forma de compensação dessa desigualdade. No que diz respeito à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, o entendimento básico se relaciona à possibilidade daqueles direitos atuarem nas relações entre particulares, situações, onde teoricamente as partes se colocam em posição de igualdade. Diz-se que este é o entendimento básico, tendo em vista que os defensores da teoria da eficácia horizontal se dividem com relação à sua implementação no caso concreto, ou seja, há quem se posicione pela eficácia horizontal dos direitos fundamentais de forma indireta (ou mediata) onde a participação do Estado seria fundamental para a sua verificação, já que este utilizar-se-ia de normas de caráter geral elaboradas pelo Legislativo para a implementação dos direitos fundamentais; por outro lado, há quem reconheça a eficácia horizontal dos direitos fundamentais de forma direta (ou imediata) sobre as relações entre os particulares, haja vista o conteúdo abrangido por tais normas e a importâncias das mesmas na garantia de condições mínimas de sobrevivência digna do ser humano. Ainda nesta vertente defensora da eficácia direta, também há divisões, posicionando-se alguns pela consideração das características do caso concreto e do nível de desigualdade observado entre os particulares, uma vez que a incidência direta não deve ocorrer de forma absoluta sobre situações faticamente diversas, defendendo que a eficácia direta encontra-se limitada aos casos onde o Estado não figure como único destinatário. Por outro lado, há quem defenda uma incidência direta mais abrangente dos direitos fundamentais, ou seja, ocorrendo em toda e qualquer situação ou relação jurídica onde se observe a possibilidade de violação dos direitos fundamentais, mesmo que as partes envolvidas se encontrem em posição de igualdade. Não obstante ser possível encontrar entendimentos contrários à eficácia direta dos direitos fundamentais, a doutrina e jurisprudência brasileiras estão cada vez mais simpáticas a ela. 90 Apresenta-se, como exemplo de entendimento contrario à eficácia horizontal dos direitos fundamentais, Canaris (2006), para quem a Constituição não é local adequado para se regulamentar as relações privadas, seja entre pessoas naturais ou jurídicas, pois, deste ofício o Direito Civil já cuida e de forma autônoma em relação àquela, e além disso, pautando-se a teoria da eficácia imediata no fundamento de que todos os direitos fundamentais se caracterizam como proibições de intervenções nas relações privadas e como direitos para a defesa perante terceiros e ao próprio Estado, o Direito Privado estaria fadado à inutilidade já que não seriam mais necessárias suas normas para a resolução de questões envolvendo os particulares. Para aquele autor, “isso contradiz a autonomia do Direito Privado, desenvolvida organicamente no decorrer de muitos séculos, contrariando, também no que diz com o direito alemão, a função dos direitos fundamentais que, em principio, de acordo com a sua gênese e em consonância com a formulação do seu suporte fático, tem por destinatário direto apenas o Estado e não um particular. É por esta razão que a teoria da “eficácia externa imediata” não se impôs na Alemanha, embora ainda conte com seguidores.“ (CANARIS, 2006, P. 237)

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divide-se em duas vertentes, uma que prega certa cautela na vinculação do caso à

norma de direito fundamental; e outra que defende a adoção irrestrita da incidência

dos direitos fundamentais sobre as relações jurídico-privados.

Os adeptos da teoria da eficácia mediata ou indireta dos direitos fundamentais

comungam da formulação traçada pelo publicista alemão Günther Dürig, para quem

a eficácia imediata ou direta dos direitos fundamentais entre os particulares –

restando aqueles caracterizados como direitos de defesa do indivíduo frente ao

Estado –, resultaria na publicização do Direito Privado e, conseqüentemente, no

esvaziamento da autonomia privada.

Assim, caberia primeiramente ao legislador realizar os comandos

estabelecidos pelos direitos fundamentais no âmbito jurídico-privado, não sendo

possível aos particulares oporem diretamente entre si, a norma de direito

fundamental como se estivessem tratando de direitos subjetivos, necessitando para

isso de uma adequação através da “aplicação, interpretação e integração das

cláusulas gerais e conceitos indeterminados do direito privado à luz dos direitos

fundamentais, falando-se, neste sentido, de uma recepção dos direitos fundamentais

pelo direito privado.” (SARLET, 2007, p. 400)

Iniciada por Hans Carl Nipperdey e ganhando a adesão posterior de Walter

Leisner, a teoria da eficácia imediata ou direta dos direitos fundamentais defende a

idéia de que os particulares estão, diretamente, vinculados aos direitos

fundamentais, haja vista que estes expressam valores aplicáveis a toda ordem

jurídica, principalmente, em virtude da força normativa da Constituição, não sendo

possível imaginar que somente o Estado – juntamente com os seus órgãos

componentes – encontrar-se-iam submetidos aos mandamentos daquelas normas

constitucionais.

Como conseqüência desta concepção, os direitos fundamentais não carecem de qualquer transformação para serem aplicados no âmbito das relações jurídico-privadas, assumindo diretamente o significado de vedações de ingerência no trafico jurídico-privado e a função de direitos de defesa oponíveis a outros particulares, acarretando uma proibição de qualquer limitação aos direitos fundamentais contratualmente avençada, ou mesmo gerando direito subjetivo à indenização no caso de uma ofensa oriunda de particulares. (SARLET, 2000, p. 67-68)

Um dos grandes argumentos favoráveis à eficácia direta ou imediata dos

direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas é o reconhecimento de que

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também nestas, podem ser verificadas situações de submissão de um particular

frente ao outro, onde direitos fundamentais encontram-se seriamente violados,

afetando em última análise a dignidade da pessoa humana.

Alguns adeptos dessa teoria, contudo, restringem aquela eficácia direta às

normas que não possuem o Estado (e seus órgãos) única e exclusivamente como

destinatário91, servindo como exemplo

[...] os direitos políticos, algumas das garantias fundamentais na esfera processual (como o hábeas corpus e o mandado de segurança). Já no que diz com os direitos sociais, o exemplo do direito subjetivo ao ensino fundamental (público) obrigatório e gratuito (art. 208, inciso I, da CF) é ilustrativo da circunstância de que o destinatário – sujeito passivo – direto e imediato deste direito é o poder público e não um particular, o que não afasta a incidência de efeitos em relação a particulares e nem a existência de deveres fundamentais, no caso, em caráter ilustrativo, o dever da família (pais ou responsáveis) de zelar pela escolaridade mínima do filho. (SARLET, 2007, p. 397)

Sarlet (2000) ressalta a importância que as particularidades do caso possuem

no momento de se efetivar a vinculação direta dos direitos fundamentais às relações

jurídico-privadas, haja vista que é neste momento que se torna possível observar o

nível de intensidade atribuído à vinculação entre as relações jurídico-particulares e

aqueles direitos fundamentais, para também buscar a manutenção da convivência

entre estes direitos e a autonomia privada das partes envolvidas92.

Fachin (2003) reconhece que os princípios e regras constitucionais devem ser

diretamente aplicados nas relações jurídico-privadas, inclusive pelo fato de que nos

contornos do Direito Civil contemporâneo, também se fazem presentes normas e

91 Quando se trata de um caso de eficácia direta dos direitos fundamentais no âmbito das relações jurídico-privadas, Novais citado por Sarlet (2007, p. 398) não concorda com a afirmação de que possam existir direitos cujo titular seja exclusivamente o Estado ou o particular, ou que sejam destinados exclusivamente a este ou àquele, pois, a qualificação de um direito como fundamental, e a sua alocação no texto constitucional, exigem generalização na sua aplicação. Portanto, prossegue o autor destacando a constatação de que os direitos fundamentais são aplicáveis a todo o ordenamento jurídico, inclusive ao Direito Privado, em razão de se caracterizarem como princípios constitucionais, pela força do que denominou de principio da unidade do ordenamento jurídico, e pela necessidade de se oferecer tutela aos particulares frente aos atos atentatórios praticados pelo Estado ou mesmo por outros particulares, aos direitos fundamentais a eles destinados. 92 Sarlet (2007) ao defender uma eficácia direta prima facie, posiciona-se de maneira cautelosa frente ao assunto, pois, leva em consideração as hipóteses de conflito entre direitos fundamentais e a autonomia privada das partes envolvidas em um litígio, onde se busca a incidência imediata daqueles direitos. Contudo, é enfático no momento de defender a solução desses possíveis conflitos, através da ponderação dos valores envolvidos em prol não do aniquilamento de um daqueles direitos envolvidos, mas de uma convivência, na medida do possível, de todos eles.

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princípios constitucionais que vinculam os particulares, por exemplo, exigindo

respeito à igualdade, à liberdade, às questões vinculadas à família e ao patrimônio.

Trilhando o caminho em defesa da aplicação imediata dos direitos

fundamentais sobre as relações jurídico-privadas, em uma realidade onde a

opressão e a injustiça praticadas entre particulares, também, resulta na violação de

direitos, Sarmento (2008) reconhece a necessidade daquela eficácia direta,

independentemente da matéria vinculada às relações jurídicas entre particulares, ou

seja, em qualquer relação jurídica em que o individuo esteja envolvido, e que haja

necessidade de se realizar a sua tutela contra atos que tenham como objetivo a

violação de direitos fundamentais, a incidência das normas constitucionais deve ser

imediata.

O mesmo autor ainda relaciona a eficácia direta dos direitos fundamentais nas

relações jurídico-privadas com o efeito irradiante daqueles direitos, quando, então,

se tornam valores a serem seguidos por todas as normas do ordenamento jurídico e,

por conseqüência, também pelas regras elaboradas por particulares que de uma

certa forma, envolvem interesses de um grupo determinado de pessoas.

Portanto, o reconhecimento da eficácia direta dos direitos fundamentais na esfera das relações jurídico-privadas não é incompatível com o chamado efeito de irradiação dos mesmos direitos, que os tornam vetores exegéticos de todas as normas que compõem o ordenamento jurídico. Assim, como já foi destacado antes, ao aplicar qualquer norma infraconstitucional a casos concretos, inclusive no campo das relações entre particulares, o judiciário deve mirar os valores constitucionais, que têm no sistema de direitos fundamentais o seu eixo central, e no principio da dignidade da pessoa humana o seu vértice. Caso não seja possível aplicar a norma ordinária existente em conformidade como os direitos fundamentais, deve o órgão jurisdicional exercer o controle incidental de constitucionalidade, para afastar o preceito viciado da resolução da questão, e, diante de eventual ausência de norma, solucionar o litígio através da invocação direta da Constituição. De resto, esta obrigação deriva do próprio principio da supremacia da Constituição e da vinculação do Judiciário, como órgão estatal, aos direitos fundamentais. (SARMENTO, 2008, p. 256)

Pode ser citada neste caso a convenção de condomínio, onde as regras

elaboradas pelos co-proprietários de unidades autônomas devem estar em sintonia

com os valores fundamentais reconhecidos pelo Estado Brasileiro através dos

direitos fundamentais que aqui vigoram (dimensão objetiva dos direitos

fundamentais), estabelecendo no âmbito privado do condomínio edilício um

ambiente compatível com o Estado democrático de direito instituído através da

Constituição da República de 1988.

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Reconhecendo a possibilidade dos direitos fundamentais funcionarem como

limites aos termos estabelecidos na convenção de condomínio e utilizando-se,

aparentemente, de maneira indistinta dos termos direitos individuais 93 e direitos

fundamentais, Daniel Sarmento entende que

Os direitos individuais podem e devem ser aplicados diretamente, por exemplo, na interpretação de cláusulas contratuais ou de outras declarações de vontade, de sentido duvidoso, independentemente da invocação de qualquer conceito jurídico indeterminado formulado pelo legislador privado. Podem e devem ser usados também como pautas exegéticas, ou, em casos patológicos, como limites externos para a regulação jurídica emanada de fontes não estatais do Direito (estatuto de associação de moradores ou do clube, convenção de condômino, regulamento interno da escola privada etc.). Neste particular, o operador do direito não deve ser podado na sua criatividade, reconhecendo-se-lhe a possibilidade de, através dos mecanismos ou instrumentos que a situação concreta revelar como os mais apropriados, proteger os bens jurídicos tutelados pelas normas garantidoras dos direitos fundamentais. Esta é uma conseqüência do reconhecimento da dimensão obje tiva dos direitos fundamentais, e da constatação de que eles valem não apenas como direitos subjetivos, mas também como va lores, cuja plasticidade permite que influenciem, através de di versas formas, a resolução das questões jurídicas envolvendo os bens jurídicos por eles protegidos. (SARMENTO, 2008, p. 257-258, grifo nosso)

Apesar do reconhecimento da eficácia imediata dos direitos fundamentais

sobre as relações jurídico-privadas, Sarmento (2008) afirma que os particulares têm

a obrigação de respeitar os direitos fundamentais de terceiros, mas a tutela destes

direitos deve ser realizada em princípio, pelo Estado – através de seus Poderes

Legislativo, Executivo e Judiciário – que se mostra no contexto atual como detentor

do monopólio do uso da força, cabendo àquele, não somente uma obrigação geral

de abstenção e a reparação dos danos causados àqueles direitos, como também a

viabilização da tutela preventiva conferida pela ordem constitucional, envolvendo,

também, uma atuação repressiva e corretiva.

Além disso, o mesmo autor ainda ressalta que a aplicação direta daqueles

direitos fundamentais não ocorre da mesma forma observada na relação entre

93 Daniel Sarmento parece utilizar-se dos termos direitos individuais e direitos fundamentais como sinônimos, apesar da vinculação que pode ser realizada entre aqueles e os direitos fundamentais de primeira dimensão. A ausência de distinção na utilização dos termos pode ser identificada na seguinte passagem: “Por outro lado, cumpre destacar que, na nossa opinião, a incidência direta dos direitos individuais nas relações privadas nem sempre se dá através do reconhecimento de um específico direito subjetivo de um particular em face do outro. Este é um ponto relevante, em que se torna necessário afastar-se da doutrina germânica em geral, que tende a identificar a vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais ao necessário reconhecimento, no caso concreto, de um direito subjetivo no âmbito da relação interprivada em questão.” (SARMENTO, 2008, p. 257)

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particulares e o Estado, haja vista que os particulares são titulares de direitos

fundamentais e de autonomia privada, merecendo uma atenção especial no

momento daquela incidência para que se verifique o grau de desigualdade entre as

partes e para que não restem violados os direitos fundamentais envolvidos no caso

concreto94.

Na verdade, os direitos fundamentais vinculam os particulares mesmo nos

casos onde se observa paridade nas relações jurídicas, pois, nesta situação,

também, podem ocorrer violações aos direitos fundamentais, e além disso,

verificada a importância do conteúdo daqueles direitos “não há razão para recusar-

se uma proteção constitucional integral a estes bens, independentemente de onde

provier a ameaça ou agressão.” (SARMENTO, 2008, p. 266)

No Brasil, a norma do artigo 5°, § 1º da CR/88 abr e espaço para o

entendimento favorável à eficácia imediata dos direitos fundamentais frente às

relações entre os particulares, pois, estabelece, claramente, que “as normas

definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” (BRASIL,

1988)

Contudo, não obstante a clareza da norma constitucional, observa-se a

existência de controvérsias envolvendo a sua aplicação, extensão e as formas de

sua interpretação, questões que aqui não serão abordadas, tendo em vista que no

tocante à propriedade enquanto direito fundamental, nenhuma daquelas dúvidas

subsiste.

Observando-se o surgimento, a forma de implementação, a positivação dentro

do texto constitucional e o conteúdo dos direitos fundamentais, Sarlet (2007) aponta

uma divisão que os classifica em direitos de garantia e direitos prestacionais,

interferindo, diretamente, na forma de exercício do respectivo titular – e,

94 Sarmento (2008) defende a utilização da ponderação dos direitos fundamentais com a autonomia privada no momento de se fixar limites na incidência direta daqueles direitos. Tal ponderação seria realizada, primeiramente, pelo Poder Legislativo no momento de elaboração da norma infraconstitucional de acordo com os parâmetros estabelecidos pela Constituição; em um segundo plano, o Poder Judiciário atuaria (de maneira tópico-sistemática) na ausência de legislação ou mesmo na sua inadequação frente ao sistema constitucional. Por fim, aquele autor defende a importância de se traçar standards para os casos de colisão entre os direitos fundamentais e a autonomia privada, evitando-se a discricionariedade judicial no momento da utilização direta da norma constitucional, devendo ser observado o grau de desigualdade observada na relação jurídica de direito privado, ou seja, nas relações jurídicas eminentemente patrimoniais, os direitos fundamentais receberiam uma tutela maior do que a autonomia privada; por outro lado, em relações eminentemente existenciais, a tutela da autonomia privada seria mais intensa do que a realizada frente aos direitos fundamentais, devendo lembrar que essa tutela seria realizada mediante a utilização da ponderação.

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conseqüentemente, na sua eficácia – haja vista que nestes o exercício do direito

depende de uma conduta ativa do Estado.

Por outro lado, no tocante aos direitos de garantia o seu exercício independe

de qualquer prestação estatal, exigindo, para isso, apenas uma postura de

abstenção dos órgãos estatais e dos particulares, classificação onde se pode incluir

a propriedade, porém, aquela só estará submetida a uma postura absenteísta do

Estado na hipótese de seu titular observar o atendimento da função social, conforme

será observado no capitulo seguinte.

Independentemente da discussão supra mencionada, a Segunda Turma do

STF decidiu no dia 11 de outubro de 2005, quando do julgamento do Recurso

Extraordinário n.° 201.819/RJ, onde figurou como re lator o Ministro Gilmar Mendes,

o caso de um associado da União Brasileira dos Compositores a quem fora negado

o direito de produzir defesa contra a sua exclusão dos quadros daquela associação,

no sentido de que é possível, no ordenamento jurídico brasileiro, aplicar diretamente

os direitos fundamentais frente relações jurídico-privadas, conforme se observa da

ementa do acórdão prolatado:

SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cida dão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fu ndamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à pro teção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidad e de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, d os postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Consti tuição da República, notadamente em tema de proteção às liber dades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia priva da garantido pela Constituição às associações não está imune à i ncidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normati va também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relaçõe s privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS

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LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL.APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores - UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. (STF – 2ª Turma - RE n. 201.819/RJ – Min. Rel. Gilmar Mendes – data de julgamento: 11.10.2005, grifo nosso)

Portanto, conclui-se pela viabilidade da incidência direta dos direitos

fundamentais nas relações jurídico-privadas e, relacionando esta afirmação com o

objeto de pesquisa deste trabalho, afirma-se que a convenção de condomínio se

mostra como um instrumento que pode viabilizar, concretamente e dentro de seus

limites, o exercício de alguns dos direitos fundamentais elencados pela CR/88, no

âmbito privado do condomínio edilício.

Certamente que a tutela dos direitos fundamentais realiza-se de forma mais

eficaz, por intermédio da estrutura do Estado, principalmente, pela detenção do

monopólio do uso da força, porém, seguindo a doutrina apresentada acima, observa-

se a plausibilidade da convenção de condomínio ser utilizada como mais um

instrumento voltado para a viabilização, concretização e tutela dos direitos

fundamentais entre particulares, o que contribui sobremaneira para o cumprimento

da função social exigida da unidade autônoma.

Ou seja, limitada ao âmbito privado do condomínio edilício, e também, a

certos direitos, cuja viabilização mostre-se possível neste ambiente, a convenção de

condomínio poderá servir como um instrumento para a garantia da igualdade (p.ex.

no estabelecimento de processo democrático para a escolha dos administradores do

condomínio), da dignidade (proibindo que qualquer tipo de situação exponha o

condômino a situações constrangedoras, perante a comunidade de co-proprietários),

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da saúde dos condôminos (quando estabelece normas que organizam o sistema de

recolhimento, separação e acondicionamento do lixo), da liberdade religiosa (há

condomínios que possuem espaços para a livre manifestação religiosa em seu

interior), do exercício do direito de propriedade (sobre a unidade autônoma e sobre

as partes comuns), na promoção da solidariedade entre os condôminos e tantos

outros aspectos que acabam sendo revelados pela realidade fática, rumo ao

cumprimento efetivo da função social da propriedade pela unidade autônoma.

Restou afirmado no capítulo anterior que o ordenamento jurídico confere aos

condôminos certa liberdade na elaboração das convenções de condomínio, e esta é

a oportunidade de se buscar conferir aos condôminos que estarão submetidos às

suas regras, a proteção e a viabilização de diversos direitos fundamentais naquele

espaço privado.

Estando as regras da convenção de condomínio orientadas pelo objetivo

último de garantia da dignidade dos condôminos naquele espaço privado, outros

direitos fundamentais também serão, por sua vez, garantidos; porém, ressalta-se

que o Estado deverá ser acionado – principalmente através do Poder Judiciário –

toda vez que as regras da convenção se mostrarem insuficientes para a tutela ou

implementação dos direitos fundamentais entre os co-proprietários de unidades

autônomas em condomínio edilício.

O que se pretende nesta parte do trabalho é demonstrar que é possível

viabilizar a eficácia dos direitos fundamentais no âmbito privado do condomínio

edilício, como caminho a ser percorrido rumo à concretização da função social pela

unidade autônoma, utilizando-se das regras da convenção de condomínio e sempre

considerando a relação existente entre as normas constitucionais relativas aos

direitos fundamentais e a autonomia privada de cada um dos co-proprietários.

No próximo capítulo serão analisadas diversas questões relacionadas à

obrigatoriedade que o texto constitucional estabeleceu para que a propriedade

cumpra uma função social; por outro lado, sendo a unidade autônoma em

condomínio edilício propriedade urbana, também se encontra vinculada à

obrigatoriedade de cumprimento de uma função social, tornando ponto central a

forma, através da qual o proprietário concretizará o mandamento constitucional no

âmbito privado do condomínio edilício, para fazer com que a sua unidade autônoma

atenda a uma função social.

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166

5 A PROPRIEDADE FUNCIONALIZADA

5.1 Função social da propriedade: uma abordagem nec essária

A necessidade de se realizar uma abordagem sobre os contornos da função

social da propriedade no atual contexto jurídico brasileiro é, para os objetivos deste

trabalho, assunto de fundamental importância na medida em que há muito o instituto

da propriedade vem sofrendo modificações em sua estrutura, exigindo de seu titular

e de terceiros não-proprietários uma mudança de comportamento cujo objetivo é a

realização dos objetivos da República estampados no texto constitucional de 1988.

Porém, sendo o condomínio edilício o objeto dessa pesquisa e considerando

todas as suas características que foram analisadas nos capítulos anteriores,

rapidamente se conclui que à unidade autônoma deve ser imposta uma função

social para ser cumprida no âmbito interno do edifício, como meio de viabilizar não

só a concretização daqueles objetivos constitucionalmente fixados, mas também a

convivência harmônica entre os diversos co-proprietários que constroem a realidade

daquela forma peculiar de exercício do direito de propriedade.

O caminho será percorrido através de uma abordagem que realçará a

passagem de um modelo de propriedade elaborado a partir do paradigma liberal

refletido no CCB/16, para outro modelo que se encontra conectado com os valores

sociais e democráticos apresentados pela CR/88, ou seja, uma propriedade

funcionalizada nos termos deste texto constitucional.

Também um breve histórico da função social e uma análise do lugar ocupado

por essa função na estrutura da propriedade serão realizado para auxiliar na

conclusão que aponta para o entendimento segundo o qual a função social não é

apenas um mero limite externo à propriedade, mas sim, um de seus elementos

estruturantes, atuando internamente naquele instituto para modificá-lo de maneira

considerável e possibilitando a sua adequação aos interesses manifestados na

sociedade contemporânea.

Por fim, a unidade autônoma em condomínio edilício será apontada como

propriedade urbana vinculada ao cumprimento de sua função social, no âmbito

privado daquela edificação, por força das normas dos artigos 5°, incs. XXII, XXIII e

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182, § 2° da CR/88, sendo que a forma através da qu al a função social será

concretizada, está apresentada na última parte deste capítulo.

5.1.1 Breve notícia histórica da função social da p ropriedade

A propriedade sempre esteve vinculada ao cumprimento de uma função

social, variável ao longo do tempo de acordo com os interesses dominantes, não

significando, necessariamente, que tais interesses são provenientes do povo ou

construídos através de um procedimento democraticamente estabelecido.

A realidade brasileira demonstra que de 1824 a 1967, diversos textos

constitucionais trataram do assunto da função social, porém, não com a mesma

importância e nem com a mesma profundidade como as que se verifica na

Constituição de 1988.

Na verdade, a função social relacionada à propriedade nos moldes com os

quais se trabalha atualmente, foi sendo construída e modificada ao logo da história,

contudo, a doutrina cristã foi uma das mais importantes influências sofridas pela

função social em virtude da força do argumento solidário, então, relacionado com a

propriedade.

O grande destaque da doutrina cristã foi Santo Tomás de Aquino, que em sua

Summa Theologica, segundo Mattos (2003), lançou as bases de uma forma de

propriedade afastada do egoísmo, pregando a sua utilização individual (ou seja, não

vinculada a uma concepção coletivizada de apropriação), porém, em atenção aos

interesses coletivos e por isso, tal pensamento é considerado como antecedente ao

principio da função social da propriedade.

No contexto da doutrina cristã, não há como confundir o argumento social

com o socialista, sendo reconhecida a propriedade privada como fruto do trabalho

daquele que se esforça para construir um patrimônio, tornando-se inoportuna e

prejudicial aos trabalhadores a teoria (socialista), segundo a qual, a propriedade

deveria encontrar-se sob a administração do Estado.

Para aquela doutrina a propriedade é um direito natural destinado ao homem

que deve assumí-la para torná-la fértil, produtiva e servir para alimentar aqueles que

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são desprovidos de propriedade, mas que possuem a sua força de trabalho através

da qual conseguirão recursos para a manutenção da vida.

Com o desenvolvimento das idéias tomistas, diversos foram os documentos

elaborados pela Igreja (encíclicas papais) com o intuito de anunciar a sua doutrina

social, enveredando-se por assuntos como a propriedade, a família e o trabalho,

podendo ser indicadas como as mais importantes: Encíclica Rerum Novarum do

Papa Leão XIII; Encíclica Quadragésimo Anno do Papa Pio XI; Encíclica La Solemita

e Oggi do Papa Pio XII; Encíclica Mater et Magistra do Papa João XXIII; Encíclica

Populorum Progressio do Papa Paulo VI e a Encíclica Laborem Exercens do Papa

João Paulo II.

Abaixo, serão apresentados alguns trechos da Encíclica Rerum Novarum,

apenas como forma de demonstrar essa perspectiva da Igreja sobre a propriedade

privada em desacordo com a teoria socialista, onde se percebe os contornos da

função social tão difundida e defendida, atualmente, em relação à propriedade.

Os Socialistas, para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens dum indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua administração deve voltar para - os Municípios ou para o Estado. [...] Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Pelo contrário, é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão completa do edifício social.[...] De facto, como é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem exerce uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é conquistar um bem que possuirá como próprio e como pertencendo-lhe; [...] não só o direito ao salário, mas ainda um direito estrito e rigoroso para usar dele como entender. [...] Assim, esta conversão da propriedade particular em propriedade colectiva, tão preconizada pelo socialismo, não teria outro efeito senão tornar a situação dos operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição do seu salário e roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança e toda a possibilidade de engrandecerem o seu património e melhorarem a sua situação. [...] a propriedade particular e pessoal é, para o homem, de direito natural. [...] no homem reside, em sua perfeição, toda.a virtude da natureza sensitiva, e desde logo lhe pertence, não menos que a esta, gozar dos objectos físicos e corpóreos. Mas a vida sensitiva mesmo que possuída em toda a sua plenitude, não só não abraça toda a natureza humana, mas é-lhe muito inferior e própria para lhe obedecer e ser-lhe sujeita. O que em nós se avantaja, o que nos faz homens, nos distingue essencialmente do animal, é a razão ou a inteligência, e em virtude desta prerrogativa deve reconhecer-se ao homem não só a faculdade geral de usar das coisas exteriores, mas ainda o direito estável e perpétuo de as possuir, tanto as que se consomem pelo uso, como as que permanecem depois de nos terem servido. [...] As necessidades do homem repetem-se perpetuamente: satisfeitas hoje, renascem amanhã com novas exigências. Foi preciso, portanto, para que ele pudesse realizar o seu direito em todo o tempo, que a natureza pusesse à sua disposição um elemento estável e permanente,

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capaz de lhe fornecer perpetuamente os meios. Ora, esse elemento só podia ser a terra, com os seus recursos sempre fecundos. E não se apele para a providência do Estado, porque o Estado é posterior ao homem, e antes que ele pudesse formar-se, já o homem tinha recebido da natureza o direito de viver e proteger a sua existência. Não se oponha também à legitimidade da propriedade particular o facto de que Deus concedeu a terra a todo o género humano para a gozar, porque Deus não a concedeu aos homens para que a dominassem confusamente todos juntos. Tal não é o sentido dessa verdade. Ela significa, unicamente, que Deus não assinou uma parte a nenhum homem em particular, mas quis deixar a limitação das propriedades à indústria humana e às instituições dos povos. Aliás, posto que dividida em propriedades particulares, a terra não deixa de servir à utilidade comum de todos, atendendo a que não há ninguém entre os mortais que não se alimente do produto dos campos. Quem os não tem, supre-os pelo trabalho, de maneira que se pode afirmar, com toda a verdade, que o trabalho é o meio universal de prover às necessidades da vida, quer ele se exerça num terreno próprio, quer em alguma parte lucrativa cuja remuneração, sai apenas dos produtos múltiplos da terra, com os quais ela se comuta. De tudo isto resulta, mais uma vez, que a propriedade particular é plenamente conforme à natureza. A terra, sem dúvida, fornece ao homem com abundância as coisas necessárias para a conservação da sua vida e ainda para o seu aperfeiçoamento, mas não poderia fornecê-las sem a cultura e sem os cuidados do homem. (LEÃO XXIII, 1891)

Mesquita e Lima citados por Bussi (1989, p. 169-170) realizaram um estudo

nas Encíclicas Sociais de João XXIII e concluíram que as linhas fundamentais da

propriedade na doutrina da Igreja Católica são: a) destinação universal dos bens

materiais para todos os homens; b) o direito de propriedade como um direito natural,

o qual deve servir para a manutenção da vida humana; c) o reconhecimento de uma

função social para a propriedade privada; d) a evolução nas formas de propriedade é

reconhecida pela Igreja; e) o Estado é anterior ao homem e tem competência para

determinar as formas do direito de propriedade e de distribuição eqüitativa das

riquezas, insistindo sempre na propriedade do tipo familiar.

Assim, a Igreja buscou conciliar a propriedade privada com os ideais cristãos

de solidariedade e partilha daquilo que se encontra em excesso no patrimônio

particular com aqueles que nada possuem, deixando o Estado de fora desta relação,

evitando possíveis investidas abusivas na propriedade privada sob o pretexto de

atendimento ao interesse coletivo.

A Revolução Francesa no final do século XVIII rompeu com as concepções da

doutrina cristã relativas à propriedade, haja vista que o cunho metafísico e divino

que pesava sobre o instituto, não se adaptava ao viés racional adotado naquele

período histórico, em diversos seguimentos das artes, da ciência e etc.

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Além disso, a ânsia pela construção de uma nova sociedade fundamentada

nos ideais de liberdade e igualdade, traçou um perfil de exercício absoluto da

propriedade condizente com aqueles ideais revolucionários.

Gama e Andriotti (2008, p. 6-7) ressaltam que Jonh Locke foi o responsável

pela elaboração de uma teoria que reafirmava esse perfil absolutista da propriedade,

pois, para aquele autor havia uma propriedade natural (que tem sua origem no

trabalho) e outra convencional (cuja origem é o acúmulo de recursos), legitimando,

assim, o acúmulo de riquezas e o domínio exclusivo da terra e estabelecendo o

fundamento de origem da propriedade no trabalho do homem.

Depois de Santo Tomás de Aquino, outro teórico que influenciou

sobremaneira o tema da função social da propriedade no começo do século XX foi

Leon Duguit, primeiramente, por atribuir ao detentor da riqueza a responsabilidade

pela promoção de certos resultados que só podem ser alcançados com o

envolvimento de seus bens e com o seu comportamento voltado para um objetivo

social.

A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do individuo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária: a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais, às quais deve responder. (DUGUIT apud GOMES, 2008, p. 126)

Não obstante a importância das idéias difundidas por Duguit, na história da

função social da propriedade, Gama e Andriotti (2008) ressaltam que a teoria

daquele autor não ficou imune às criticas, principalmente, por afastar a idéia de

propriedade como direito subjetivo do autor, para considerá-la como função social,

pois, cabendo ao proprietário o cumprimento inarredável de uma função vinculada à

propriedade e voltada para a sociedade, não podendo aquele se quedar inerte a

este dever, a propriedade não teria uma função social, mas seria a própria função

social. Nestes termos, confunde-se a noção de função social com o direito de

propriedade em si.

As criticas impostas à noção de função social de Duguit, promoveram o

aprimoramento do conceito, sendo a doutrina italiana, de acordo com Tepedino e

Schreiber (2000), a que atribuiu o melhor sentido à função social trabalhando de

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forma a desconstruir a contradição imposta entre aquela função e a noção de direito

subjetivo, para estabelecer uma relação onde a função social fosse inserida na

estrutura do direito de propriedade atuando como critério de valoração de seu

exercício, o qual deverá encontrar-se direcionado ao atendimento do interesse

social.

Não se quer com isto dizer que o domínio deve atender exclusivamente ao interesse social. Tampouco se pretende excluir do direito subjetivo sua vocação individualista, voltada para o atendimento de necessidades individuais de seu titular. Cuida-se, ao revés, de dotar o direito subjetivo de uma capacidade expansiva, de modo a que, contemp oraneamente à satisfação das necessidades do proprietário, poss a atender a interesses não proprietários, estes legitimadores d o domínio, segundo a ordem pública definida pela Constituição. (TEPEDINO; SCHREIBER, 2000, p. 47, grifo nosso)

A função social chega aos textos constitucionais do início do século XX,

primeiramente na Constituição Mexicana de 1917, a qual destinou (originariamente)

para a Nação mexicana a titularidade da propriedade das terras, possibilitando a

transferência daquele domínio aos particulares com a intervenção do Estado para

regular a sua utilização na hipótese do particular não promovê-la de acordo com as

suas potencialidades.

A Constituição Alemã de 1919 ou Constituição de Weimar, para Farias e

Rosenvald (2008) avançou no tratamento atribuído à propriedade, quando

estabeleceu a obrigação assumida pelo proprietário no momento em que se

tornasse titular daquele direito, encontrando aquele texto constitucional ainda no

período de transição do Estado Liberal para o Estado Social, exigindo o

estabelecimento de obrigações positivas do poder público na sociedade a fim de

promover a igualdade entre todos, principalmente entre proprietário e não-

proprietários.

Assim, ainda segundo aqueles autores, estabelecendo a propriedade como

relação jurídica complexa, retoma-se o principio da solidariedade, provocando uma

inter-relação de direitos e deveres tanto do titular quanto dos não-titulares devendo

aquele cumprir a função que lhe foi designada pelo texto constitucional, tendo em

vista que a partir de então, a garantia da propriedade passa a ocorrer na medida em

que os deveres sociais forem atendidos.

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O direito de propriedade, até então tido como um direito subjetivo na órbita patrimonial, passa a ser encarado como uma complexa situação jurídica subjetiva, na qual se inserem obrigações positivas do proprietário perante a comunidade. A refundação do direito de propriedade prende-se a três princípios: o bem comum, a participação e a solidariedade. (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 202-203)

No Brasil, a disciplina vinculada à propriedade esteve presente nos textos

constitucionais anteriores à CR/88, sempre em sintonia com as características dos

paradigmas observados em cada momento histórico, sendo que o artigo 179, inc.

XXII da Constituição de 1824, assegurou a plenitude do direito de propriedade com

exceção para os casos de necessidade do Poder Público, havendo nestes casos a

devida indenização.

A proclamação da República trouxe a necessidade de substituição do antigo

texto constitucional por outro mais adequado aos novos valores que se

apresentavam, e isso ocorreu em 24 de fevereiro de 1891 quando restou

proclamado uma nova Constituição, cujo artigo 72, parágrafo 17, assegurava a

inviolabilidade da propriedade em toda a sua plenitude, mantendo o direito à

indenização, em caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública.

Ao consultar o texto das duas Constituições mencionadas, percebe-se a

influência liberal na garantia da propriedade “em toda a sua plenitude”,

demonstrando que a propriedade encontrava-se limitada pela lei, mas que tal

limitação caminhava de acordo com as convicções individualistas importadas pelo

Brasil de outras Constituições da Europa e dos Estados Unidos.

Este contorno liberal conferido à propriedade fica mais evidente quando o

artigo 113, item 17 da Constituição de 1934 garante a inviolabilidade da propriedade

classificando-a como direito individual, excetuando como nos outros textos os casos

de desapropriação e de perigo iminente (guerras ou comoção intestina), restando

garantido o direito à indenização. Porém, esta proteção encontra-se condicionada ao

atendimento do interesse social ou coletivo nos termos da lei.

No dia 10 de novembro de 1937, nova Constituição era promulgada no Brasil,

mantendo a garantia do direito individual à propriedade no artigo 122, item 14,

inclusive a exceção relacionada à desapropriação por necessidade ou interesse

público mediante indenização, porém, não manteve a condição estipulada na carta

política anterior de se observar o atendimento do interesse social ou coletivo.

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O texto constitucional promulgado em 18 de setembro de 1946 manteve no

artigo 141, § 16 a tutela da propriedade como direito individual, inclusive, utilizando-

se de texto idêntico ao utilizado na Constituição de 1937, contudo, inovou quando

trouxe em seu artigo 147, inserido no Título V (Da ordem econômica e social), a

propriedade como elemento da ordem econômica a ser protegido em busca de

promoção da justiça social, da liberdade e da valorização do trabalho tendo o seu

uso condicionado ao atendimento do bem-estar social.

A partir de então, os textos constitucionais que o sucederam sempre

mantiveram esse perfil inaugurado em 1946, sendo prova disso a Constituição de

1967 que trouxe pela primeira vez de forma expressa, o termo função social da

propriedade antes, porém, ressalta-se que o artigo 150, § 2° m anteve a propriedade

como direito individual nos mesmos termos da Constituição de 1946.

Diferentemente do texto constitucional anterior à Constituição de 1967, em

seu Título III, estabeleceu como princípio da Ordem Econômica e Social não a

propriedade, mas a função social da propriedade expressa no art. 157, inc. III,

prevendo ainda formas de desapropriação do imóvel rural.

Lembrando que a Emenda Constitucional n.° 1 de 17 de outubro de 1969, não

alterou os textos da Constituição de 1967 referentes à propriedade, alterando-lhe

apenas a localização dos artigos, ou seja, a propriedade enquanto direito individual

passou a figurar no artigo 153, § 22 e a função social da propriedade no artigo 160,

inc. III como princípio da Ordem Econômica e Social.

A retomada do processo democrático no Brasil culminou com um novo texto

constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, trazendo várias novidades

relacionadas à propriedade, se comparada com as Constituições anteriores,

principalmente, ao incluir aquele instituto no rol dos direitos e garantias fundamentais

e exigindo o cumprimento de sua função social.

A importância da função social para a propriedade presente na CR/88 pode

ser visualizada na medida em que o reconhecimento, a tutela e o exercício desse

direito ocorrerem mediante o cumprimento daquele principio da função social nos

termos dos arts. 5°, inc. XXIII; 170, inc. III; 184 e 186.

Farias e Rosenvald (2008) chamam a atenção para o fato de que a disposição

estabelecida pelo constituinte entre os princípios da propriedade e da função social,

seguidos, respectivamente, um pelo outro, não é por acaso e exige uma leitura

complementar entre eles para que a proteção daquele direito não ocorra

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simplesmente observando-se o seu aspecto formal, mas também, o seu

envolvimento social, sem o qual poderá sofrer sanções das mais diversas.

Os mesmos autores ainda comentam a melhor forma de conciliar as

propriedades inscritas, respectivamente, nos artigos 5°, inc. XXII e 170 da CR/88,

qual seja, destinando aquela primeira para situações proprietárias relacionadas com

a garantia fundamental da pessoa humana, sendo que as outras formas de

propriedade, desvinculadas daquela garantia, encontram-se disciplinadas pelas

normas da ordem econômica, pois, se atualmente se verifica a existência de várias

propriedades “a função social também se avoluma, ultrapassando o estágio primário

do direito das coisas, incidindo atualmente em toda e qualquer relação jurídica

patrimonial.” (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 227)

Quando a CR/88 foi promulgada, ainda estava em vigor o CCB/16 o qual fora

elaborado sob a influência do paradigma liberal, trazendo concepções individualistas

para todo o seu texto, concepções estas que não combinavam com o perfil solidário,

plural, democrático e de valorização da função social da propriedade estabelecido,

após a promulgação daquele texto constitucional.

A função social da propriedade apresentava-se, portanto, no direito brasileiro, inteiramente estranha ao Código Civil. O Novo Código Civil, por sua vez, trouxe importantes inovações na disciplina da propriedade, [...] o § 1º, ao vincular o exercício do direito de propriedade às suas finalidades econômicas e sociais, visa a perseguir a tutela constitucional da função social, reclamando uma interpretação que, para além da mera admissão de eventuais e contingentes restrições legais ao domínio, possa efetivamente dar um conteúdo jurídico ao aspecto funcional das situações proprietárias. (TEPEDINO, 2004a, 305-306)

O Código Civil brasileiro de 2002, no que diz respeito ao tema da propriedade

e de sua necessária função social, buscou a sintonia com a Constituição de 1988,

tentando desvencilhar-se do perfil individualista construído pelo paradigma liberal e

refletido na codificação revogada; neste sentido, não obstante encontrar-se ausente

de seu texto a expressão função social da propriedade, alguns artigos refletem essa

mudança no perfil do instituto.

Souza (2009) retrata muito bem o abandono desse modelo de propriedade

burguesa pelo ordenamento jurídico pátrio, fazendo a escolha por outro modelo que

denominou de propriedade-função, a qual não recebe tutela jurídica por si mesma,

precisando demonstrar a sua vocação para o atendimento dos interesses sociais,

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buscando mais o bem-estar social do que a satisfação dos interesses individuais do

proprietário.

Quando a norma do artigo 1.228 caput, do CCB/02 anuncia as faculdades

atribuídas ao proprietário, em substituição à garantia dada pela norma do art. 524 do

CCB/16, aos direitos de usar, fruir e dispor do proprietário percebe-se que,

atualmente, aquelas faculdades serão tuteladas na medida de uma observação

constitucional da questão e da obediência ao parágrafo primeiro daquele artigo.

A influência constitucional na propriedade também pode ser observada na lei

10.257/01 (Estatuto da Cidade) promulgada com o objetivo expresso de

regulamentar os artigos 182 e 183 da CR/88 e que, dentre tantos instrumentos

disponibilizados para uma melhor organização e utilização do solo urbano,

estabeleceu, em seu artigo 39, a forma de cumprimento da função social pela

propriedade urbana, através do atendimento às exigências trazidas pelo plano

diretor.

Pelo que parece a questão relativa à propriedade e a sua necessidade de

cumprimento de uma função social, adequada à sua natureza e especificidades

retiradas do caso concreto, encontra-se mais aceitável aos olhos da sociedade, não

obstante ainda ser necessário o retorno à explicação de que o estabelecimento da

função social não se traduz em redução de poderes do proprietário, mas sim, de

uma readequação daquele instituto às mudanças ocorridas no ordenamento jurídico

pátrio, nessas duas últimas décadas.

5.1.1.1 A função social como forma de intervenção n a propriedade

A compreensão do papel realizado pela função social na estrutura da

propriedade – e que será analisado adiante quando se verificar a posição da função

social frente à propriedade – pressupõe a observância de quem são os responsáveis

e quais são os objetivos que fundamentam a determinação desse papel estruturante

exercido pela função social que sofre modificações de acordo com o perfil da

sociedade e com o período histórico analisados.

Verificar-se-á como esse papel exercido pela função social também pode ser

observado junto à unidade autônoma em condomínio edilício, por se tratar de forma

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de propriedade urbana sobre a qual se estabelece a obrigatoriedade do

cumprimento de uma função social.

A importância que sempre fora atribuída à propriedade no contexto social,

rendeu aquele instituto, intervenções por parte do Estado (ou por aqueles que detêm

a prerrogativa de exercício do poder político em uma determinada sociedade), seja

definindo as suas formas de transmissão, a legitimidade para a sua aquisição, ou

mesmo, a forma como os poderes ou faculdades inerentes a ela devem ser

exercidos.

No contexto das Cidades-Estados da Grécia Antiga, entre os séculos VIII e IV

a.C, Coulanges (2000) afirma que a propriedade não poderia ser atribuída apenas a

uma pessoa individualmente como direito subjetivo, haja vista que a mesma

pertencia aos antepassados figurando o pai como usufrutuário da propriedade,

principalmente, da casa onde se encontrava o altar para cultuar os deuses

domésticos.

A mulher e o filho não eram proprietários, inclusive, quando aquela se casava

tudo o que ela adquirisse pertencia ao marido; do mesmo modo o filho que nada

possuindo, por conseqüência, nada poderia doar e caso recebesse algum bem pelo

fruto do seu trabalho ou mesmo se alguém testasse em seu favor, era o pai o

beneficiário.

Por isto se explica o texto do direito romano que proíbe todo o contrato de venda entre pai e filho. Se o pai vendesse ao filho, é como se vendesse a si próprio, porque tudo quanto o filho adquirisse ficava pertencendo unicamente ao pai. (COULANGES, 2000, p. 92)

Durante o período histórico em que o Império romano exerceu grande

influência (753 a.C a 1453 d.C), a propriedade sofreu modificações quanto à sua

importância, quanto à forma de aquisição e transmissão da propriedade imóvel, pois,

em um primeiro momento, o caráter religioso atribuído a esse tipo de propriedade,

por exemplo, contribuiu para a manutenção da família e da cidade romanas.

Possibilitada a sua aquisição, apenas, aos cidadãos romanos, a propriedade

do solo encontrava-se diretamente vinculada ao exercício do poder político em

Roma, pois, ambos (poder político e propriedade) eram privilégios daqueles que

possuíam o status de cidadão.

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O período de expansão romana iniciou um processo de transformação nas

características da propriedade a qual deixou de sofrer interferências de cunho

religioso para absorver outras formas de influência com os povos que habitavam as

novas áreas conquistadas, porém, a propriedade ainda servia aos interesses do

Império Romano, situação que vai se modificar, apenas, com as invasões bárbaras

tanto do século V (queda do Império Romano do Ocidente) quanto de do século XV

(queda do Império Romano do Oriente)95.

No período identificado como Idade Média (séc. V – séc. XV), a propriedade

determinava um tipo de relação social que se estabelecia entre senhor feudal e

vassalo, através do denominado contrato feudo-vassálico, onde aquele cedia a este

um pedaço de terra, que deveria ser destinada ao plantio e à moradia, em troca de

subserviência e auxilio nos períodos de guerra.

Ou seja, neste período onde a produção de alimentos e a proteção dos

conflitos por domínio territorial se tornavam prioridade, os grandes detentores de

terra que concentravam poder político, principalmente em seus domínios,

determinavam o perfil que a propriedade assumiria naquela sociedade.

Não foi diferente na Idade Moderna com o surgimento dos Estados Nacionais

e, posteriormente, com as revoluções burguesas, onde o absolutismo daqueles

motivou esse movimento revolucionário que buscava, dentre outras coisas, a

submissão constitucional do Estado e a limitação de sua intervenção nas relações

jurídico-privadas.

Em ambas as situações, o contorno da propriedade se encontrava submetida

aos interesses daqueles que tinham condições de interferir no exercício do poder

político, ou seja, da monarquia absolutista nos Estados Nacionais e, posteriormente,

os revolucionários burgueses do século XVIII.

Tomando-se um cenário social composto por eventos como o

desenvolvimento do capitalismo, a perda de influência dos dogmas da Igreja

Católica, a aceitação dos Estados Nacionais submetidos aos termos de um texto

constitucional, além da inspiração trazida pela filosofia iluminista, a propriedade

acompanha essa reviravolta histórica para se submeter aos interesses de uma 95 Nos dizeres de Castro (2008) os povos germânicos foram adjetivados como “bárbaros” em virtude da discrepância observada entre os costumes verificados entre eles e os romanos, haja vista que aqueles se vestiam com peles de animais e tecidos não refinados, habitando em moradias rústicas por se tratar de um povo seminômade, vivendo da agricultura, do pastoreio, da caça, da pesca e da economia à base da troca de produtos. Esse sistema de produção combinava dois tipos de propriedade, a coletiva e a individual, tendo a guerra como elemento primordial para a sua economia.

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classe capitalista dominante que levantou como bandeira nos movimentos

revolucionários, a sua livre comercialização e transferência.

O perfil individualista e absoluto da propriedade de cunho liberal que resultou

dos movimentos revolucionários do século XVIII não é novidade, contudo, a postura

absenteísta do Estado Liberal somado ao ímpeto do homem em busca do acúmulo

de patrimônio provocou situações de desequilíbrio econômico e social inimagináveis.

Eu diria que o século XIX também teve uma função so cial. E claro, uma função social que se desgastou ao longo do temp o e se mostrou insuficiente para resolver os problemas que vieram se avolumando desde a segunda metade do século XIX. Mas, de qualquer maneira, nós podemos dizer que a marca da função social do século XIX, em relação ao direito de propriedade, era de que a propriedade se mostrava como uma espécie de garantia da liberdade ou mesmo uma condição da própria liberdade. A propriedade colocou-se mesmo como condição da liberdade. (ALVIM, 2006, 12-13, grifo nosso)

A situação sócio-econômica, principalmente na Europa, começa a dar sinais

de que alguma medida deveria ser tomada em busca da construção de uma faceta

da propriedade mais adequada aos anseios sociais do início do século XX, sendo

reflexo dessa tomada de consciência a previsão no art. 153 da Constituição Alemã

de 1919 estabelecendo expressamente que “a propriedade obriga”.

No Brasil, os textos constitucionais promulgados desde 1824 oscilaram no

tratamento deferido à propriedade, pois, cada um daqueles, em consonância com as

influências do paradigma observado na época da promulgação, condicionou o

instituto da propriedade de acordo com os interesses daqueles que exerciam o

poder (p.ex. Constituição de 1824) ou em nome dos quais se exerce o poder (p.ex.

Constituição de 1988).

Não obstante o termo função social da propriedade não se encontrar

expressamente em todas as Constituições brasileiras, já se afirmou que não se trata

de inovação a sua menção no texto constitucional de 1988, pois, a propriedade

sempre cumpriu uma função social, entendendo-se que aquela sempre cumpriu um

papel no contexto da sociedade na qual se encontra inserida.

Incluindo em sua análise o aspecto econômico que também determina o perfil

da propriedade em determinado contexto social, Flores Filho (2008) afirma que a

propriedade muda de acordo com os propósitos que a sociedade escolhe para a

instituição, mantendo uma relação com o sistema econômico e com o poder político

que no Estado democrático de direito vincula-se a um modelo discursivo, onde os

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direitos fundamentais assumem papel importante de legitimação na atuação política

do cidadão.

Silva (2001), utilizando-se das conclusões de Karl Renner a respeito das

alterações sofridas pela função social ao longo do tempo, conclui que a propriedade

sempre teve uma função social atuante em sua estrutura interna e não como

limitação, obrigação e ônus aplicados sobre a propriedade privada.

Em virtude das modificações de paradigma frente as quais a sociedade está

sujeita, ou mesmo dos interesses daqueles que interferem direta ou indiretamente

no exercício do poder político, afirma-se que a função social da propriedade é forma

de intervenção do Estado (de quem exerce o poder, ou em nome de quem o poder é

exercido) na propriedade, visando alcançar um interesse público.

Desde logo se afirma que em um contexto democrático o interesse público

não apresenta divergências com o interesse privado, sendo nova dimensão deste,

pois, de acordo com Mello (2003) a formação do interesse público não ocorre de

forma autônoma e desvinculada do interesse de cada uma das partes que compõe o

todo, ou seja, o interesse desse todo é uma função qualificada dos interesses das

partes, uma forma específica de sua manifestação96.

No contexto de uma sociedade democrática e dialógica, os conceitos de

interesse público e interesse privado não se confundem, mas se interagem através

de um relacionamento de complementaridade, onde este se encontra refletido 96 Para compreender essa forma específica da manifestação do interesse individual ou privado a que se refere Celso A. Bandeira de Mello deve-se considerar que as razões íntimas e particulares que um indivíduo leva em consideração no momento de construir um determinado interesse privado, somente dizem respeito a ele, ao passo que a atuação em um âmbito coletivo deste mesmo indivíduo, provoca a manifestação de um interesse pessoal com conotação diversa daquela presente no interesse estritamente intimo. Em ambas as situações o indivíduo age de acordo com seus interesses, contudo, em uma a produção de efeitos ocorre em sua esfera íntima, noutra situação busca a produção de efeitos no corpo social, agindo como membro de uma coletividade, de um corpo social que extrapola a sua esfera eminentemente privada. É dessa forma que o interesse público se apresenta como uma faceta dos interesses privados, sendo que estes interesses se encontram refletidos no interesse público, não como uma simples soma, mas como auxiliares na construção de um interesse público. Interesse público “é o resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade.” (MELLO, 2003, p. 53) O mesmo autor diferencia interesse público do interesse estatal quando, primeiramente, assevera que aquele é constituído como dimensão publica dos interesses individuais, ao passo que o Estado se configura como pessoa jurídica que está incluído no universo jurídico em concorrência com os demais sujeitos. Assim, o Estado também possui interesses particulares (não sendo caracterizado como interesse público), não obstante a ele ser destinados como objetivo inarredável, a concretização de interesses públicos. A diferença entre os interesses particulares apresentados pelos indivíduos e aqueles interesses particulares apresentados pelo Estado enquanto ente personalizado, é que a defesa dos primeiros ocorre através da generalidade dos sujeitos, ao passo que os interesses privados do Estado, ocorrem na medida em que coincidem com os interesses públicos que devem ser atingidos, prioritariamente.

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naquele, podendo ser implementados canais de comunicação entre a sociedade e a

Administração Pública com o objetivo de captar as manifestações individuais na

busca pela construção daquele interesse público.

Vale lembrar que, no Brasil, a Administração Pública está vinculada ao

principio da legalidade97 e que, portanto, busca na lei a fundamentação para a

prática de suas condutas, situação que reflete não só o principio da divisão de

poderes98, mas também, o pressuposto de que a lei representa os interesses do

povo, haja vista que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de

representantes eleitos ou diretamente [...]”. (BRASIL, 1988)

Segundo Figueiredo (2003) a definição do interesse público pode levar em

consideração conteúdos pré-jurídicos, metajurídicos e jurídico-positivo e que, de

acordo com este último aspecto, interesse público é aquilo que a lei assim o quis, ou

seja, o interesse que a Constituição e a lei trataram de forma especial.

Neste sentido, Celso A. Bandeira de Mello informa que

Tratando-se de conceito jurídico, entretanto, é óbvio que a concreta individualização dos diversos interesses qualificáveis como públicos só pode ser encontrada no próprio Direito Positivo. [...] Uma coisa é a estrutura do interesse público, e a outra é a inclusão e o próprio delineamento, no sistema normativo, de tal ou qual interesse que, perante este mesmo sistema, será reconhecido como dispondo desta qualidade. Vale dizer: não é de interesse público a norma, medida ou providência que tal ou qual pessoa ou grupo de pessoas estimem que deve sê-lo – por mais bem fundadas que estas opiniões o sejam do ponto de vista político ou sociológico –, mas aquele interesse que como tal haja sido qualificado em dado sistema normativo. Com efeito, dita qualificação quem a faz é a Constituição e, a partir dela, o Estado, primeiramente através dos órgãos legislativos, e depois por via dos órgãos administrativos, nos casos e limites da discricionariedade que a lei lhes haja conferido. (MELLO, 2003, 58-59, grifo nosso)

Dessa forma, nem sempre o interesse público refletirá um interesse do povo

ou um interesse democraticamente construído, ou seja, estando o conteúdo jurídico-

positivo do interesse público vinculado a outros conteúdos (pré-jurídicos e

metajurídicos) certo é que, o conceito jurídico-positivo será determinado por aqueles

97 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]. (BRASIL, 1988) 98 Art. 1° [...] Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (BRASIL, 1998)

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que têm o poder de interferir, diretamente, no processo de determinação de

conteúdo do interesse público, seja o povo por intermédio de seus representantes,

seja uma classe econômica por vias transversas ou aqueles que exercem o poder

de forma totalitária de acordo com os interesses próprios (ou de poucos).

Portanto, quanto mais democrático se apresentarem os procedimento de

elaboração das leis, mais chance terá o interesse público de se aproximar do

interesse do povo, ao contrário, quanto mais obscuro e antidemocrático aquele

procedimento de produção legislativa, menos “público” será aquele “interesse”.

O que se pode afirmar é que no atual cenário político-jurídico brasileiro, onde

se encontra em vigor um texto constitucional que institui o Estado democrático de

direito estabelecendo um sistema de direitos fundamentais, que têm como ponto de

equilíbrio a dignidade humana, e que atribui ao povo a fonte do poder Estatal,

presume-se que o interesse público está vinculado ao interesse do povo.

E essa vinculação é mais expressa e perceptível quanto maior for a

participação dos interessados na construção das leis e das políticas públicas a

serem implementadas em prol de uma sociedade plural, multicultural, onde as

diferenças devem ser reconhecidas e a igualdade de tratamento se manifeste na

medida daquelas desigualdades.

Neste contexto democrático e de superação da dicotomia público e privado, a

função social é forma de intervenção do Estado na propriedade, objetivando

alcançar um interesse público (reflexo dos interesses privados presentes na

sociedade), apresentando-se formalizada como princípio constitucional a ser

concretizado pelo proprietário, haja vista a mudança promovida por este princípio na

estrutura interna da propriedade.

Passa-se a exigir do proprietário o cumprimento de uma função social, ou

seja, de uma conduta adequada aos interesses acolhidos por uma determinada

sociedade99, sob pena de aplicação de sanções (conseqüência da intervenção do

Estado) que podem culminar na perda da propriedade, através da desapropriação.

Quando a legislação infraconstitucional atribui faculdades, deveres e direitos

ao proprietário, o ordenamento jurídico tutela um instituto que considera como 99 No caso do Brasil, os interesses captados pelo constituinte naquele período histórico de 1988 e que interferem, diretamente, na elaboração e interpretação ordenamento jurídico, dizem respeito à erradicação da pobreza e da marginalização, à construção se uma sociedade livre, justa e solidária, à realização do bem comum, à preservação do meio ambiente e à utilização racional do solo urbano e rural, à garantia do desenvolvimento nacional, do trabalho digno e da livre iniciativa, enfim, à promoção da dignidade humana.

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importante na estrutura do modelo de Estado instituído pela Constituição, lembrando

que tanto o interesse quanto a função, relacionados à propriedade sofrem alterações

ao longo do tempo devendo o proprietário se adequar às exigências de cada época.

O mesmo raciocínio utilizado para a construção do interesse público em um

determinado contexto social pode ser observado para justificar a formação de um

interesse comum construído e expresso nas regras das convenções de condomínio,

pois, as relações interpessoais de cunho político que são desenvolvidas em um

âmbito social mais complexo, são reproduzidas, guardadas as devidas proporções,

nos condomínios edilícios, como forma de viabilizar a sua administração e

convivência interna.

O interesse da comunidade de co-proprietários identificado no âmbito privado

do condomínio edilício e expresso nas regras da convenção, direciona a conduta

dos proprietários ao cumprimento da função social de suas unidades autônomas

naquele ambiente privado.

Diante da realidade complexa apresentada pelo instituto do condomínio

edilício em todos os seus aspectos, a função social da propriedade assume uma

dimensão ampla, onde os co-proprietários devem atuar em conjunto como titulares

de direitos sobre toda a edificação, restando-lhes obrigações frente à sociedade em

face do interesse público refletido, por exemplo, no plano diretor do Município, onde

o objeto daquele direito de propriedade encontra-se situado.

Assim, uma edificação realizada em respeito à legislação municipal que

determina um percentual mínimo de área verde para a facilitação da drenagem da

água pluvial, cumpre, neste aspecto, uma função social.

Por outro lado, a função social também assume uma dimensão estrita,

quando, se lhe exige o cumprimento pelas unidades autônomas que compõem o

edifício, onde se estabelece o instituto do condomínio edilício, primeiramente,

considerando-as como propriedades urbanas, estando, portanto, vinculadas pelo

texto constitucional de 1988 e pelo artigo 39 da Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade)

ao cumprimento daquela função.

Em segundo lugar, considerando que a estrutura interna do condomínio

edilício reproduz – guardadas as devidas proporções – as relações de natureza

política que se desenvolvem em sociedade, e considerando que o exercício das

faculdades inerentes à propriedade no âmbito privado do condomínio edilício pode

conduzir tanto à concretização quanto ao desrespeito de direitos fundamentais

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estabelecidos pela CR/88 (lembrando-se que estes direitos fundamentais constituem

o conteúdo da função social da propriedade exigido pelo mesmo texto

constitucional), há que se estabelecer, também, para as unidades autônomas a

exigência para o cumprimento de uma função social naquele ambiente privado.

Essa dimensão estrita assumida pela função social da propriedade é o objeto

de análise do presente trabalho, haja vista que a questão para a qual se busca

resposta é: como o co-proprietário em condomínio edilício cumpre a função social

destinada para a sua unidade autônoma?

5.1.2 A propriedade funcionalizada na Constituição da República de 1988

A propriedade em um de seus diversos significados e nos limites deste

trabalho é apresentada como situação jurídica complexa100, onde ao proprietário é

100 Para que se possa compreender a propriedade como situação jurídica complexa nos termos expostos por Perlingieri (2007), necessário que se compreenda o que o autor italiano considerou por relação jurídica e situação jurídica. Em um primeiro momento, situação jurídica é conceito geral das categorias jurídicas que identificam e organizam os efeitos provocados por um fato jurídico, sendo que a identificação de tais efeitos é importante na medida em que determina as responsabilidades, direitos, deveres e faculdades dos sujeitos envolvidos (caso existam) naquela situação. Em um âmbito mais restrito, a situação jurídica é uma das categorias jurídicas, que identificam os efeitos já mencionados, ou seja, quando se fala em situação jurídica proprietária, trata-se de identificar os efeitos provocados em virtude de um fato jurídico, por exemplo, de aquisição ou o recebimento em doação de um objeto, podendo estar entre aqueles efeitos as faculdades de usar, fruir e dispor daquele determinado bem. A situação jurídica é um centro de interesses tutelado pelo ordenamento jurídico, podendo ser mais ou menos complexo de acordo com os interesses em análise. Por sua vez, a relação jurídica é o ponto de confluência das situações jurídicas, ou seja, a estrutura da relação jurídica se forma a partir da ligação entre situações jurídicas subjetivas, já que na visão de Perlingieri o sujeito não é uma figura indispensável na relação jurídica, havendo situações em que se observam a existência de interesses mesmo com a ausência de sujeitos. Portanto, no núcleo da relação jurídica estará sempre presente a ligação entre um interesse e outro, entre uma situação jurídica e outra, de forma que toda situação jurídica pressupõe uma relação jurídica correspondente. Neste contexto, a relação jurídica proprietária é a ligação entre a situação jurídica do proprietário com centros de interesses antagônicos aos seus, ou seja, com as situações jurídicas de quem quer que contraponha os interesses do proprietário, lembrando que em se tratando de propriedade as faculdades de usar, fruir e dispor pressupõe a composição de sua situação jurídica, além de outros direitos e deveres que se alteram de acordo com o tipo de propriedade com o qual se esteja tratando, pois, a relação jurídica real pressupõe a presença de um direito real. Por fim, Perlingieri estabelece que em toda relação jurídica se encontra uma estrutura e uma função. Na perspectiva estrutural há uma ligação entre a situação jurídica do proprietário com a de terceiros, constituindo centros de interesse contrapostos. A perspectiva funcional é prevalente naquela relação jurídica entre os centros de interesse do proprietário e de terceiros (vizinhos, o Estado, entes públicos e etc), havendo relação nestes casos, não de subordinação, mas de cooperação, pois, nem sempre os interesses do proprietário serão atendidos, mas os do vizinho quando, por exemplo, a este for permitida a realização de uma atividade, cuja tolerância deverá ser exercitada pelo proprietário.

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conferida a possibilidade de utilização de um objeto ou direito de maneira direta e

exclusiva, desde que sejam observados, não somente os seus interesses, mas

também, os interesses de outros sujeitos (proprietários ou não) que sofrem os

efeitos do exercício do direito de propriedade, que se encontra inserido naquela

situação jurídica.

Buscando o sentido etimológico do termo, Szaniawski (2000) ressalta a

origem latina da propriedade derivada de proprietas ou proprius que significavam

aquilo que pertence a um indivíduo, por outro lado, o domínio, que não se confunde

com propriedade, deriva de dominus e domare, traduzindo a idéia de senhorio,

senhor, dominar, ou seja, o poder que o indivíduo exerce sobre um objeto que lhe

pertence.

O termo propriedade encontra-se vinculado a diversos significados101,

inclusive, a CR/88 se utiliza daquele termo ora como direito fundamental individual

(art. 5°, inc. XXII), ora como princípio geral da a tividade econômica (art. 170, II) e ora

como objeto da situação jurídica da propriedade (arts. 182, § 2° e 186), por outro

lado, a norma do artigo 1.225, inc. I do CCB/02 elenca a propriedade como direito

real atribuindo ao seu titular as faculdades de uso, fruição, disposição e

reivindicação do bem objeto do direito.

Afirma-se, que na modernidade, a propriedade ganhou destaque como direito

subjetivo atribuído e garantido pelos instrumentos legislativos Estatais que refletiam,

a partir do século XVIII, e até a segunda metade do século XIX, o ideário burguês

difundido com as revoluções ocorridas, principalmente, na Europa e América do

Norte, vinculando o exercício daquele direito à idéia de liberdade e autonomia do

indivíduo que acabara de se livrar de um modelo absolutista de Estado102.

101 Fiuza (2007) estabelece três sentidos em que o termo propriedade poder ser utilizado, quais sejam: 1) sentido amplo: situação jurídica complexa, da qual fazem parte uma relação jurídica dinâmica entre o proprietário e a coletividade de não-proprietários, surgindo direitos e deveres para ambas as partes; 2) sentido restrito: relaciona-se aos direitos de uso, fruição, disposição e reivindicação, podendo-se dizer nestes casos em direitos de propriedade; e 3) sentido específico: trata-se da propriedade enquanto objeto do domínio, podendo-se utilizar como sinônimos, propriedade urbana ou imóvel urbano, e propriedade rural ou imóvel rural. 102 O tema relacionado à propriedade é vastíssimo, haja vista que seus contornos são estabelecidos de acordo com vários fatores sociais, históricos, econômicos e etc. Escolheu-se, neste trabalho, a propriedade construída sob a influência do paradigma liberal como ponto de partida da análise realizada e como contraponto da propriedade que se apresenta na realidade jurídica brasileira, e que está sob a influência dos princípios estabelecidos no texto constitucional de 1988. O fator determinante para aquela escolha é que a propriedade animada pelo paradigma liberal (direito subjetivo) ainda povoa o subconsciente de muitos proprietários que não se deram conta da mudança

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Garantindo-se a propriedade (apenas) como direito subjetivo, o outro estava,

automaticamente, desconsiderado, ou seja, ao direito daquele período histórico

interessava a tutela do proprietário enquanto titular de um direito cabendo aos

demais não-proprietários, o dever negativo de não obstruir o titular, no exercício de

seu direito.

O modelo absenteísta assumido pelo Estado Liberal, somado ao

individualismo excludente, que fundamentava a propriedade como direito subjetivo,

provocou reações adversas no sentido de alterar o perfil da propriedade, o que

acabou por acontecer ao final das duas grandes guerras.

A partir de então, passa-se a conferir maior visibilidade a um elemento que,

não obstante ser observado no contexto proprietário em momentos históricos

pretéritos, assumiu papel chave na condução da propriedade ao perfil

funcionalizado103 que, hodiernamente, atribui-se-lhe, ou seja, fala-se da função

social da propriedade.

Farias e Rosenvald (2008) explicam a origem latina do termo função – functio

– dizendo respeito ao cumprimento de algo ou desempenhar um dever ou uma

atividade, assim, no âmbito jurídico, atribuir uma função a um instituto é determinar

qual o papel a ser desempenhado por este em um ordenamento jurídico.

O termo social, quando vinculado à propriedade, remete a um âmbito que

supera os limites daquilo que se relaciona, apenas, com os interesses do

proprietário, para se vincular ao interesse público de uma determinada comunidade,

mas não, necessariamente, um interesse imposto pelo Estado, podendo se

identificar, de acordo com a sociedade analisada, como um interesse público que

reflita os interesses privados, por se tratar de um interesse construído democrática e

dialogicamente.

de perspectiva provocada na propriedade pela instituição do Estado Democrático de Direito, após a vigência da CR/88. 103 Analisando a intensidade e velocidade da mudança ocorrida no instituto da propriedade iniciada no século passado, principalmente no contexto do direito civil, Bercovici (2001) aponta Karl Renner como o responsável pela demonstração de que o processo de funcionalização sofrido pela propriedade, ocorre de acordo com as transformações nas relações produtivas o que, na época analisada, teria transformado a propriedade capitalista, sem socializá-la. Aquele primeiro autor responsabiliza a relativização da propriedade pela sua função social – desconsideração do indivíduo como eixo da noção da propriedade e consideração do coletivo – pelas mudanças ocorridas, já que o bem-estar coletivo também passa a ser responsabilidade do indivíduo. O exercício dos direitos individuais deixa de observar, apenas, os interesses do seu titular, para buscar, principalmente, a construção de algo coletivo.

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A superação do paradigma liberal incentivou o surgimento de uma nova

perspectiva a respeito da propriedade, principalmente, quanto ao seu exercício

tendo em vista que a sociedade contemporânea espera uma nova conduta do

proprietário titular do direito, o que acaba por refletir nos textos legais, que passam a

exigir uma conduta pautada na solidariedade, no diálogo, na consideração do

próximo, como alguém que sofre as conseqüências do exercício daquele direito.

[...] o direito de propriedade deixou de ser medido exclusivamente a partir do ponto de vista do proprietário, para ser delineado conforme interesses da coletividade. [...] Esse novo enfoque ocorreu porque a necessidade de garantir interesses sociais relevantes ficou incompatível com a concepção de um direito de propriedade intangível. O século XX conheceu transformações demográficas, econômicas, culturais e sociais bastante significativas, que haviam começado no século anterior. O aumento expressivo da população, a industrialização, o êxodo rural e a urbanização resultaram no surgimento de problemas inéditos e graves, que impuseram a emergência de novos paradigmas no Direito. É fácil perceber, por exemplo, que uma metrópole de milhões de habitantes conta com dificuldades inexistentes num pequeno vilarejo. [...] O que se quer ressaltar é que a relativização do direito de propriedade não decorreu de concessão generosa dos proprietários, mas para atender a situações de incontestável necessidade. (GUIMARÃES JÚNIOR, 2003, p. 115 a 117)

Fachin (2003) afirma que os comportamentos passam a ganhar relevância

junto ao objeto da relação, ou seja, os objetos passam a ter função e deixam de ser

considerados em si mesmos, valorizando, repita-se, o elemento subjetivo (conduta)

verificado na relação jurídica.

A consideração de uma função social da propriedade adequada aos

interesses que passaram a ser apresentados no contexto mundial, após o fim das

duas grandes guerras, possui vinculação direta com a importância assumida pela

dignidade humana como fundamento de diversos textos constitucionais, bem como,

das declarações de direitos elaboradas desde a segunda metade do século XX.

Esse contexto de valorização da dignidade humana é incompatível com o

exercício egoísta do direito de propriedade que desconsidera a manifestação de um

interesse que está além do interesse privado do titular do direito, exigindo deste uma

reciclagem das suas concepções.

Quanto à realidade brasileira, não é correto afirmar que a função social da

propriedade surgiu com a Constituição da República de 1988, interessando neste

momento realizar um comentário a respeito daquele texto constitucional, como forma

de demonstrar que a propriedade funcionalizada, animada pela promoção da

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dignidade humana, encontra-se definitivamente consolidada no ordenamento jurídico

pátrio.

Ao estabelecer em seu artigo 1°, inc. III, a dignid ade da pessoa humana como

princípio fundamental da República Federativa do Brasil, a CR/88 submeteu todo o

ordenamento jurídico a este princípio, ou seja, tanto o Estado (através dos órgãos do

Executivo, Legislativo e Judiciário) possui um padrão norteador e interpretativo para

o exercício de suas atividades, como também os particulares, no âmbito das

relações jurídicas privadas, devem buscar este princípio como um dos parâmetros

de suas condutas.

Doutro lado, a norma do artigo 3°, inc. I a IV do m esmo texto constitucional,

elenca como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção

de uma sociedade livre, justa e solidária, com desenvolvimento nacional,

erradicação da pobreza e das desigualdades sociais, para buscar o bem-estar de

todos sem qualquer tipo de preconceito e/ou discriminação.

Considerando que a propriedade em seus diversos sentidos pode contribuir,

diretamente, para a realização de todos estes objetivos e, por conseqüência, para a

garantia do respeito à dignidade humana, a propriedade funcionalizada convoca o

proprietário a exercer o direito do qual é titular nos contornos estabelecidos pelo

texto constitucional de 1988, qual seja, em busca do cumprimento da função social

que foi destinada ao objeto de seu direito.

Nota-se, que a função social no atual contexto jurídico nacional, possui uma

importância singular frente à propriedade, pois, vários são os momentos em que a

propriedade aparece na CR/88 tendo a sua tutela vinculada ao cumprimento daquela

função, conforme se verifica nos artigos 5°, inc. X XIII; 170, inc. III; 184 e 186.

Repita-se, a função social não é uma inovação do texto constitucional de

1988, ao contrário, sempre acompanhou a propriedade ao longo do tempo, ocorre

que a relevância de sua intervenção, bem como o seu conteúdo, são sensíveis às

alterações sociais, às mudanças de paradigma e dos interesses que são construídos

no contexto da sociedade ao longo do tempo, traduzindo-se, ao final, em formas de

intervenção do Estado ou dos detentores do poder político sobre a propriedade.

Em sentido semelhante, Fiuza atesta que

[...] se tomarmos a definição de propriedade como direito apenas (direito subjetivo absoluto, de natureza real), estaremos excluindo toda a coletividade, menosprezando a função social que a propriedade

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sempre teve, além de lhe emprestar perfil absolutamente estático. A função social da propriedade foi sempre preocupação do legislador. Apesar de só vir a ser estudada recentemente, sempr e esteve presente, ora mais aguçadamente, ora menos. O Códig o de Hamurabi, editado entre 2067 e 2025 a.C., dispunha em seu art . 40 que “a sacerdotisa, o mercador ou outro feudatário poderá vender seu campo, pomar e casa desde que o comprador assuma o serviço ligado ao campo, ao pomar e à casa. Assim, dizer que a propriedade é o direito de exercer com exclusividade o uso, a fruição, a disposição e a reivindicação de um bem, é dizer muito pouco. É esquecer os deveres do dono e os direitos da coletividade. Ao esquecer os direitos da coletividade, ou seja, do outro, do próximo, estamos excluindo-o. É esquecer, ademais, o caráter dinâmico da propriedade, que consiste em relações que se movimentam, que se transformam no tempo e no espaço. Sem essa visão da propriedade como fenômeno dinâmico, é impossível se falar em função social e, muito menos, em função econômica. (FIUZA, 2007, p. 758-759, grifo nosso)

Essa característica flexível da função social impossibilita que a esta seja

estabelecido um conteúdo rígido e definitivo, inclusive pela estrutura das normas que

lhe dizem respeito no ordenamento jurídico brasileiro, seja no texto constitucional,

seja nos textos infraconstitucionais.

O fato é que todas as situações jurídicas proprietárias – inclusive a da

propriedade rural que obteve do texto constitucional uma lista de requisitos para o

cumprimento da função social – deverão retirar do caso concreto as evidências que

levarão ao entendimento sobre o cumprimento, ou não, da função social, mesmo

porque, várias são as formas de propriedade cada qual exigindo situações

específicas para o cumprimento daquela função.

Cada qual desses tipos de propriedade pode estar sujeito, e por regra estará, a uma disciplina particular, especialmente porque, em relação a eles, o princípio da função social atua diversamente, tendo em vista a destinação do bem objeto da propriedade. Tudo isso, aliás, não é difícil de entender, desde que tenhamos em mente que o regime jurídico da propriedade não é uma função do Direito Civil, mas de um complexo de normas administrativas, urbanísticas, empresariais (comerciais) e civis (certamente), sob fundamento das normas constitucionais. (SILVA, 2001, p. 277)

É indubitavel que a presença mais destacada da função social junto à

propriedade promoveu alterações na estrutura deste instituto, exigindo do

proprietário uma conduta compatível, não somente com atendimento de seus

interesses, mas também, com os interesses da sociedade, onde o objeto do seu

direto esteja inserido, e de acordo com a destinação econômica daquele objeto.

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A inserção da propriedade em várias passagens do texto constitucional de

1988, segundo Mattos (2000), obrigou aquela a se adequar aos princípios que

norteiam o Estado democrático de direito instaurado no Brasil, desde então, fazendo

com que se passasse a considerar questões ligadas à igualdade (material e formal),

legalidade, dignidade humana, solidariedade, preservação do meio-ambiente e etc.,

questões que, até então, não possuíam o mesmo relevo e que provocaram o

afastamento de uma perspectiva egoísta quando do exercício do direito de

propriedade.

A função da propriedade tornou-se social, a partir do momento em que o ordenamento reconheceu que o exercício da propriedade deveria ser protegido não no interesse do particular, mas no interesse coletivo da sociedade. A partir de então, a titularidade da situação proprietária passa a implicar para o seu titular no respeito às situações não proprietárias. (GONDINHO, 2000, p. 405)

Alvim (2006) assegura que essa propriedade funcionalizada influenciada por

princípios constitucionais e voltada para o atendimento de interesses não

relacionados com aqueles estritamente vinculados à esfera de interesses do

proprietário, não elimina daquele instituto o que ele tem de privado.

Ou seja, a propriedade ainda permanece com um núcleo essencial (formado

pelo direito de usar e de dispor), que permite a identificação do instituto com suas

origens privatísticas possibilitando ao seu titular um exercício exclusivo104 do objeto

sob o qual se exerce o domínio, não obstante a forte intervenção do direito público

em seu conteúdo e quanto ao seu exercício105.

104 E o caráter exclusivo da propriedade encontra-se vinculado à possibilidade de exclusão de terceiros não-proprietários do acesso ao bem objeto da propriedade. Realizando uma análise do instituto da propriedade no contexto do Estado democrático de direito, Flores Filho (2008) identifica o direito de excluir como elemento presente na estrutura de todas as formas de propriedade, sendo característica marcante do perfil da propriedade moderna elaborada sob a influência do paradigma liberal. Sendo a propriedade um instituto que se modifica de acordo com os interesses sociais, a propriedade moderna (excludente) não se mostra de acordo com a sociedade contemporânea, tornando-se necessária a inclusão, na estrutura da propriedade, do direito de não ser excluído (ou, direito de acesso), mantendo-se o direito de excluir em conformidade com a sociedade contemporânea pautada nos princípios do Estado democrático de direito, ou seja, estabelecendo tutelas diferentes para propriedades diferentes. Assim, essa nova forma de propriedade deve reconhecer a existência de inúmeros interesses que compõe o substrato social, e que todos eles, de forma democrática, devem encontrar-se ali representados, pois, mantendo-se a estrutura tradicional (excludente) da propriedade, apenas o proprietário se beneficia, por outro lado, se forem concedidas novas tarefas à propriedade, como o livre acesso a bens essenciais, toda a sociedade será beneficiada com essa nova propriedade de perfil democrático. 105 Flores Filho (2008) faz menção à doutrina de Perlingieri segundo a qual a propriedade é uma situação jurídica complexa, composta por uma função social e por um conteúdo mínimo que garante

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Todas essas mudanças ocorridas na estrutura da propriedade levaram Silva

(2001) a defender a tese segundo a qual o regime jurídico da propriedade encontra-

se definido na CR/88 (art. 5°, XXII; 170, II; 182; 183; 184 a 191) e que, portanto,

aquela não pode mais ser considerada como direito individual e nem como

instituição do Direito Civil.

O mesmo autor afirma que a doutrina civilista não dá conta das

transformações pelas quais passou o instituto da propriedade, restando para o

Direito Civil a regulamentação das relações civis relativas à propriedade quanto às

faculdades de usar, gozar e dispor, mesmo assim, condicionadas às premissas

constitucionais básicas que estruturam o direito de propriedade no atual

ordenamento jurídico pátrio.

Não obstante a amplitude do tratamento conferido pela Constituição de 1988

à propriedade e todas as significativas modificações ocorridas após este tratamento,

entende-se mais adequado reconhecer que a propriedade, também, encontra

regulamentação relativa à sua estrutura no Direito Privado (p. ex: art. 1.228 caput do

CCB/02), além de manter uma parte destinada ao arbítrio do titular (núcleo

essencial).

Neste sentido, Farias e Rosenvald (2008) asseveram que, não obstante toda

a abordagem constitucional conferida à propriedade, esta ainda se mostra como

formalmente privada, ou seja, é privada na forma e estrutura uma vez que o domínio

é exclusivo; contudo, mostra-se social no controle de sua legitimidade e

merecimento, bem como na sua destinação.

Também, não se pode deixar de reconhecer que o tratamento dispensado

pela CR/88 à propriedade com a sua vinculação à função social, diversifica ao longo

daquele texto, ou seja, no art. 5°, XXII (direito i ndividual fundamental) garante o

direito à propriedade (direito de acesso, possibilidade de se alcançar a titularidade

do direito), enquanto os arts. 182, § 2° e 186 estão garantindo o direito de

propriedade (titularidade efetiva do direito, podendo exercer as faculdades que a lei

estabelece)

as faculdades do proprietário, ao mesmo tempo que estabelece uma direção social para o instituto. É situação jurídica complexa por estabelecer direitos, obrigações, ônus, vínculos e limites para o titular do direito e para terceiros que podem exigir daquele uma conduta compatível com a sociedade contemporânea. Além disso, é também relação jurídica, inclusive em virtude da obrigação de abstenção que o proprietário possui em relação a terceiros, ou seja, a propriedade seria uma situação jurídica complexa que pressuporia uma relação jurídica igualmente complexa.

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Neste mesmo sentido,

A idéia de interesse social corresponde ao início da distribuição de cargas sociais, ou seja, de previsão de que ao direito subjetivo da apropriação também correspondem deveres. Nessa esteira, passa-se a entender que esse direito subjetivo tem destinatários no conjunto da propriedade, de modo que o direito de propriedade também começa a ser lido como direito à propriedade. Gera, por conseguinte, um duplo estatuto: um de garantia, vinculado aos ditames sociais, e outro, de acesso. (FACHIN, 2003, p. 289, grifo nosso)

As garantias atribuídas à propriedade são importantíssimas para a realização

da justiça social, principalmente quando se atribui àquela, o status de direito

fundamental, pois, como afirma Rawls citado por Weber (2006, p. 210-211), a

propriedade, enquanto direito fundamental, tem a intenção de oferecer condições

suficientes para promover a independência e o auto-respeito, sendo ineficaz se falar

em democracia, sem que se garanta condições materiais mínimas de subsistência.

Dessa forma, considerando tudo o que fora explicitado neste trabalho a

respeito das transformações sociais ocorridas nestes últimos séculos, as quais,

invariavelmente passam a fazer parte dos textos constitucionais como forma de

representação dos interesses da sociedade, em determinado momento específico,

afirma-se que a propriedade e a função que esta exerce na sociedade mudaram.

Corolário destas mudanças é o novo perfil que se exige do proprietário, o qual

deve encontrar a forma mais adequada de cumprir aquela função, considerando não

somente os seus próprios interesses, mas também, o interesse público construído a

partir dos diversos interesses privados dos indivíduos que constituem uma

determinada sociedade.

O contexto formado na realidade político-jurídica brasileira e que está à

espera do proprietário é complexa, pois, aquele se encontra em um Estado

democrático de direito plural e multicultural, submetido a uma Constituição que traz

consigo um sistema de direitos fundamentais pautado na igualdade, na dignidade

humana, no respeito à diferença, na propriedade que cumpre uma função social, na

busca pela erradicação da pobreza e da promoção do bem comum, sem qualquer

tipo de preconceito.

Por outro lado, e sentindo os reflexos desse texto constitucional em vigor

desde 1988, o Direito Civil pátrio encontra-se despatrimonializado e

constitucionalizado.

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Considerando o objeto do presente trabalho, a análise que se faz pertinente é

a da unidade autônoma como forma de propriedade que, também, sofre as

conseqüências do processo de funcionalização supra mencionado, obrigando ao co-

proprietário a se pautar, de acordo com todas as considerações já realizadas, além

de observar as particularidades que envolvem o exercício do direito de propriedade

no ambiente privado do condomínio edilício.

Mais do que isso, aquele co-proprietário deve se conscientizar de que a

estrutura na qual a sua unidade autônoma encontra-se inserida exige,

invariavelmente, um senso aguçado de exercício solidário, democrático, participativo

e dialógico do direito de propriedade, sob pena de se tornar inviáveis a convivência

dos co-proprietários e a própria administração daquele patrimônio comum.

O perfil do co-proprietário é fundamental para que a unidade autônoma possa

cumprir a função social que lhe fora exigida pelo texto constitucional, lembrando que

o conteúdo da função não se identifica com o perfil individualista construído pelo

paradigma liberal, mas sim, com os princípios e fundamentos de um Estado

democrático de direito apresentado diversas vezes ao longo deste trabalho.

5.1.3 A posição da função social em relação à propr iedade

O tratamento conferido à função social, nas últimas décadas, promoveu

diversas discussões a respeito de seu efetivo papel junto à propriedade (ou seja, um

limite definidor das formas de exercício da propriedade ou um elemento estruturante

daquele instituto), de quem seria o responsável pela sua efetivação e cumprimento,

e quais os tipos de propriedades estariam sujeitas àquela determinação que, no

caso brasileiro, encontra-se fixada principalmente na Constituição de 1988.

Nesse ponto, é interessante relembrar que o termo propriedade possui

diversos significados, os quais foram indicados neste trabalho e que podem ter sido

(ou, serão) utilizados para significar, respectivamente, ora uma situação jurídica

complexa, ora as faculdades atribuídas pelo ordenamento jurídico ao proprietário,

ora o objeto inserido naquela situação jurídica, e ora o principio constitucional da

ordem econômica brasileira.

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Contudo, o significado que mais interessa aos objetivos deste trabalho é a

propriedade como situação jurídica complexa, pois, o que se mostra relevante na

adoção deste perfil de propriedade é a importância atribuída ao outro, afastando a

conduta individualista e egoísta do proprietário ao lhe determinar uma postura

solidária e preocupada com o coletivo no momento do exercício das faculdades

estabelecidas pelo ordenamento.

Observada a propriedade como situação jurídica complexa, necessariamente

deve-se observar o conjunto de faculdades, obrigações e deveres que fazem parte

da sua estrutura e que são atribuídas não somente ao proprietário, mas, a todos os

outros não-proprietários que têm interesses contrapostos aos daquele.

Tais características ganham ainda mais relevo no âmbito privado do

condomínio edilício, haja vista as peculiaridades que o exercício do direito de

propriedade naquele modelo de condomínio exige do seu titular, em virtude da forma

que a sua edificação assume, promovendo um contato direto e indissolúvel entre

todas as unidades autônomas.

Neste contexto privado, multicultural, plural e, necessariamente, democrático

que se forma no âmbito privado do condomínio edilício, a função social assume

papel importante frente às diversas situações proprietárias que constróem aquela

realidade condominial, devendo ser atribuída à cada unidade autônoma a

obrigatoriedade de cumprimento de uma função naquele contexto privado como

forma de viabilização do convívio entre todos os co-proprietários.

O papel que a função social exerce naquele contexto condominial também se

repete em outras formas de situação proprietária urbana, rural, intelectual e etc.,

interferindo, diretamente, na conduta do titular do direito que compõe a situação

jurídica real, sendo essa a importância de se verificar qual o lugar assumido pela

função social frente àquelas diversas formas de propriedade.

Fazendo remissão ao ordenamento jurídico italiano, Perlingieri (2007) garante

que a função social não se qualifica, apenas, como um limite traçado para a

propriedade privada, atribuindo àquela um lugar na estrutura da situação jurídica

proprietária ao estabelecer que a ausência de sua atuação provocaria a falta de

garantia e de reconhecimento da propriedade, e que a sua classificação, apenas,

como limite à propriedade lhe garantiria um papel de tipo negativo que tolheria os

poderes do proprietário os quais tornar-se-iam desimpedidos com a supressão

daqueles limites.

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Em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa (art. 2 Const.) o conteúdo da função social assume um papel de tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza somente finalizando a disciplina dos limites à função social. Esta deve ser entendida não como uma intervenção ”em ódio” à propriedade, mas torna-se “a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito”, um critério de ação para o legislador, e um critério de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as situações conexas à realização de atos e de atividade do titular. (PERLINGIERI, 2007, p. 226, grifo nosso)

Realmente, não se pode equiparar a função social com os limites atribuídos

pelo ordenamento jurídico à propriedade, primeiramente, em virtude dos limites

atuarem sobre o exercício das faculdades inerentes à propriedade, ao passo que a

função social atuará na própria estrutura da propriedade condicionando não somente

o exercício, mas a razão de atribuição daquele direito.

A diferença se torna mais marcante quando se observa o fato da função

social ser inseparável do instituto da propriedade, não sendo possível imaginar este

sem aquela, ou mesmo uma propriedade em descompasso com a função exercida

no contexto social em que esteja inserida; essa relação é muito nítida e serve como

outro diferencial para os limites impostos à propriedade.

Quando um proprietário age em relação ao objeto de seu direito de forma a

provocar em outrem um prejuízo ao sossego, saúde ou segurança, a norma do

artigo 1.277 do CCB/02 autoriza ao prejudicado fazer cessar as interferências

danosas, assim, tratando-se de limite ao direito de propriedade (normas relativas ao

uso anormal da propriedade), aquele conteúdo normativo aproxima-se da relação

jurídica proprietária para evitar que o uso anormal da propriedade continue a causar

dano a outrem, afastando a sua aplicação a partir do momento em que o uso da

propriedade se normaliza.

A função social atua de maneira diversa, pois, o exercício das faculdades

inerentes ao direito de propriedade em desconformidade com aquela função, pode

conduzir à perda da propriedade como forma extrema de punição pela

desobediência aos termos dos artigos 182, § 2° e 18 6 da CR/88.

Por outro lado, agindo o proprietário de forma a cumprir a função social

atribuída ao objeto de seu direito, aquela função permanece posicionada junto à

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estrutura do direito para continuar a orientar os atos de seu titular bem como para

conferir-lhe tutela constitucional, frente às investidas contrárias aos seus interesses.

Ressalta-se, juntamente com Mattos (2004), que o status constitucional da

função social reflete a sua identidade com as opções políticas fundamentais

assumidas pelo Estado, atribuindo àquela função uma importância significativa

frente às demais normas do ordenamento jurídico que tratam da propriedade e que

não possuem o mesmo patamar hierárquico.

Na medida em que se atribui papel de tipo promocional à função social, além

do poder de transformar a estrutura da propriedade, garante-se, também, a busca

pela promoção dos princípios e valores fundamentais do ordenamento jurídico,

através da propriedade (ou seja, através de sua funcionalização), os quais estão

refletidos, principalmente, no texto constitucional sem que isso signifique uma

redução dos poderes ou faculdades do proprietário.

Tais objetivos são bem diferentes daqueles traçados para os limites106

colocados à propriedade (direito de vizinhança, direito real sobre coisa alheia, poder

de polícia da Administração Pública, cláusula de inalienabilidade e etc.), os quais

delimitam a propriedade sem fazer parte de sua estrutura, pois, ao contrário da

função social, não têm condição de promover modificação na estrutura daquele

instituto por incidirem, periodicamente, em situações relativas ao exercício

conflituoso da propriedade, ou a partir dos interesses dos titulares.

Sarmento (2008) faz essa leitura, ressaltando que em um ordenamento

jurídico, onde o ser encontra-se antes do ter, garante-se o patrimônio não como fim

em si mesmo, mas como forma de realização dos valores existenciais da pessoa,

atribuindo àquele uma função social não como limite invocável apenas

excepcionalmente em situações patológicas, mas como elemento que atua junto ao

conteúdo da propriedade em seu cotidiano, e diariamente, no exercício do direito.

106 Estabelecendo uma distinção entre função social da posse e da propriedade, onde aquela função exerce papéis diversos em ambos os institutos, Fachin (1998) informa que o conteúdo da função social da propriedade é formado por limitações, restrições e induzimentos, e que aquela se relaciona com o uso da propriedade, ou seja, com o exercício das faculdades que lhe são inerentes. Portanto, as alterações conceituais promovidas pela função social no regime tradicional da propriedade, encontram-se vinculadas à relação externa de exercício da propriedade e não com a sua essência, pois, aquela função, enquanto princípio, não é suficiente para transportar a propriedade para o direito público, não obstante corresponder às limitações impostas sobre a propriedade para conferir-lhe um conceito dinâmico em reação ao conceito estático ligado ao superado perfil individualista da propriedade.

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Incluindo a função social entre os elementos da propriedade (usar, fruir,

dispor e reivindicar), Farias e Rosenvald (2008) classificam-na como um quinto

elemento da propriedade, porém, enquanto aqueles são caracterizados como

elementos estáticos, a função social traria um conteúdo dinâmico para a propriedade

e garantem que se os direitos existem na medida em que são exercidos, a

propriedade sem função social (aspecto dinâmico) perde o seu fundamento

constitucional de atribuição e para proteção.

Apesar de encontrar previsão na legislação infraconstitucional pátria, é da

CR/88 que a função social retira o seu conteúdo como princípio constitucional

fundamental (art. 5°, XXIII), ou seja, a exigência estabelecid a para que a

propriedade cumpra uma função social está vinculada à necessidade de alcançar os

objetivos fundamentais da República.

Obviamente, não se pode esquecer que a dignidade humana é fundamento

da República e que, portanto, além de orientar todo o ordenamento jurídico também

integra o conteúdo da função social atribuída à propriedade, cujo exercício encontra-

se condicionado ao cumprimento daquela função, como forma de adequar os

interesses privados dos proprietários ao interesse público exposto no texto

constitucional de 1988.

A função social no contexto brasileiro ganhou espaço na legislação

infraconstitucional, principalmente, com a norma do artigo 1.228 do CCB/02, com o

tratamento expresso conferido pela lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade), e a releitura

dos artigos da Lei 4.504/64 (Estatuto da Terra) que tratam da função social

vinculada ao uso da propriedade rural.

Realizando uma análise privatística do conteúdo da função social da

propriedade, Souza (2009) afirma que o CCB/02 traz o conteúdo daquela função nos

três primeiros parágrafos do artigo 1.228, sendo que no § 1º foram apresentadas

funções à propriedade de cunho econômico, social, ambiental e cultural, no § 2º

limites à prática de atos emulativos por parte do proprietário, e no § 3º funções da

propriedade por sua necessidade ou utilidade públicas ou por interesse social.

Neste caso, o legislador infraconstitucional caminhou na direção estabelecida

pelo texto constitucional de 1988, tratando de forma mais específica do cumprimento

da função social da propriedade sem abandonar a característica da codificação de

2002 de estabelecimento de cláusulas gerais.

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Assim, não sendo possível a verificação de um direito de propriedade em

desconformidade com a função social que lhe é determinada pelo ordenamento,

estabeleceu-se no formato de cláusula geral, os termos do artigo 1.228 do CCB/02

referente ao exercício das faculdades do proprietário, de forma a adequar a

realidade concreta que se apresenta cotidianamente, com os interesses refletidos no

texto legal e também com os objetivos e fundamentos constitucionais.

A adequação de que se falou há pouco, pode ocorrer espontaneamente

quando particulares e o Poder Público atuarem como proprietários conscientes do

dever de observância da função social que lhes fora imposto pelo texto

constitucional, porém, há situações em que o conflito de interesses, seja do

particular com o Poder Publico, seja dos particulares entre si, resulta em demandas

judiciais que devem ser solucionadas a partir da orientação interpretativa fornecida

pela função social da propriedade, cujo conteúdo é formado pelos princípios

constitucionais ligados aos fundamentos e aos objetivos da República.

A função social é também critério de interpretação da disciplina proprietária para o juiz e para os operadores jurídicos. O intérprete deve não somente suscitar formalmente as questões de duvidosa legitimidade das normas, mas também, propor uma interpretação conforme os princípios constitucionais. A função social é operante também à falta de uma expressa disposição que a ela faça referência; ela representa um critério de alcance geral, um princípio que legítima a extensão em via analógica daquelas normas excepcionais no ordenamento pré-constitucional, que têm um conteúdo que, em via interpretativa, resulta atuativo do princípio. (PERLINGIERI, 2007, p. 227-228)

A função social é parâmetro interpretativo a ser utilizado pelo legislador, por

intérpretes e operadores do direito, nos momentos de elaboração da norma ou de

conflito de interesse, porém, aquela função está destinada como principio geral,

principalmente, para o proprietário a quem cabe o exercício das faculdades

inerentes ao direito do qual é titular e de quem se espera uma conduta voltada não

só para o atendimento de seus interesses, mas também para a coletividade que

pode ser atingida pelos efeitos de sua conduta.

Dessa forma, a responsabilidade pelo cumprimento da função social é do

proprietário, ou seja, cabe ao titular do direito exercer as faculdades que lhes são

atribuídas de maneira compatível com a orientação principiológica traçada pelo texto

constitucional de 1988, fazendo-o de forma mais adequada ao tipo de propriedade

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que estiver sob análise, pois, existem diversas formas de cumprimento daquela

função em face da diversidade de propriedades também existentes.

Quanto à atribuição e ao necessário cumprimento da função social pela

propriedade exigidos em diversos instrumentos legislativos do ordenamento jurídico

pátrio, nota-se que não há razão para limitar a exigência constitucional à

propriedade dos bens de produção como defende renomada doutrina107.

A propriedade está acompanhada da função social em diversas passagens da

CR/88, contudo, a sua inclusão na parte destinada aos direitos individuais

fundamentais (art. 5°, XXIII), não fez qualquer tip o de ressalva àquele que se pode

identificar como um direito à propriedade, e assim, toda forma de propriedade deve

cumprir uma função social adequada às suas características e em conformidade

com a sua relevância no contexto social.

Perlingieri (2007) afirma não ser possível estabelecer discriminações quanto

ao cumprimento da função social da propriedade, obrigando o intérprete a individuá-

la na identificação dos interesses com ela relacionados, e sendo assim, não

somente a empresa deve cumprir uma função social, mas também, o imóvel

destinado à moradia e os seus móveis, os objetos destinados ao exercício de uma

profissão, enfim, toda forma de propriedade deve cumprir uma função social

adequada à suas características.

Ainda o mesmo autor, referindo-se à importância do aspecto funcional das

situações jurídicas na determinação de sua relevância no contexto das relações

sociais, ressalta que há situações que têm função social e outras que são função

107 Grau (2006) estabelece uma diferenciação entre dois tipos de propriedade, aquela que está submetida a uma função individual (art. 5° XXII da CR/ 88) por se caracterizar como direito individual qualificada como instrumento para a efetivação da dignidade humana, e outra que está vinculada ao cumprimento de uma função social (art. 170, II; 182 § 2°; 184 e 186 da CR/88) em vi rtude de seus fins, seus serviços e sua função. Assim, não é toda propriedade que está submetida ao cumprimento de uma função social, mas somente aquelas que se apresentam vocacionadas para tanto e aquelas que, não obstante se caracterizarem como submetidas a uma função individual, são o excedente utilizado para especulação ou acumulação para uso distinto ao que se destina. Assim, segundo o autor a propriedade dotada de função individual observa o art. 5°, XXII do texto constitucional, porém , ao exceder a quantidade suficiente para qualificá-la como instrumento garantidor da dignidade humana, aquela propriedade dotada de função individual, submete-se aos termos do art. 5°, XXIII para o cumprimento de uma função social, submetendo-se também às penalidades a ela destinadas. Por fim, estabelece que o princípio da função social da propriedade, aplicada à propriedade dos bens de produção (art. 170 II, III da CR/88), integra a estrutura do conceito jurídico-positivo de propriedade, tornando-a verdadeira propriedade-função. Apesar da relevante opinião de Eros Grau, observa-se que não somente aquela propriedade alçada como principio constitucional da ordem econômica e financeira, mas, todas as demais formas de propriedade estão acompanhadas pela função social, inclusive a que se encontra no art. 5° XXII da CR/8 8. Portanto, não só a propriedade dos meios de produção, mas sim, toda propriedade que de uma forma mais ou menos intensa, interfira na esfera jurídica alheia através da atuação de seu titular, deve cumprir uma função social.

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social de acordo com os reflexos e a importância que aquela situação assuma em

determinado contexto.

Acredita-se, que tal discussão, não interfira no papel exercido pela função

social junto à situação jurídica proprietária, tendo sido estabelecida aquela

diferenciação para identificar as diferentes formas, através das quais a função atua

frente à propriedade.

Entende-se mais adequado à realidade jurídica pátria, a propriedade que

tenha uma função social a cumprir, sem que se confunda essa com aquela, ou seja,

a função é o elemento dinâmico que se junta aos outros elementos (estáticos),

direitos, deveres, faculdades e etc., para formarem a situação jurídica proprietária, e

não a situação jurídica em si.

5.2 A função social da propriedade urbana

Conforme restou afirmado anteriormente, diversas são as formas através das

quais a propriedade apresenta-se no ordenamento jurídico pátrio, sendo identificada,

primordialmente, na Constituição de 1988 e no Código Civil brasileiro de 2002;

também se afirmou que a função social, por se caracterizar como elemento

estruturante da propriedade, não apresenta conteúdo unívoco variando de acordo

com a forma assumida pela propriedade no caso concreto.

Quando se trata da propriedade adjetivada como urbana, automaticamente se

estabelece como seu contraponto aquela outra denominada rural, tendo como

semelhança o fato de se referirem a um tipo de propriedade imóvel, porém,

apresentando características, obrigações e legislação diversas em virtude da forma

assumida por ambas no contexto social vinculando o proprietário a exercer o direito

do qual é titular, de forma a buscar o cumprimento de funções sociais também

diversas.

Não se pretende estabelecer, neste trabalho, a discussão sobre a viabilidade

de uma delimitação extremada entre as formas de propriedade urbana e rural108,

108 Sobre o tema: REIS, Douglas Sathler dos. O rural e o urbano no Brasil. Caderno de Geografia , Belo Horizonte, v. 15, n. 25, p. 77-92, 2º sem. 2005. E também: VEIGA, José Eli da. Nem tudo é

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porém, a identificação de suas diferenças é importante para que o proprietário

direcione sua conduta de forma a perceber em que medida a função de sua

propriedade está sendo cumprida, já que para a propriedade rural o próprio texto

constitucional determina os passos a serem seguidos109.

No caso da propriedade urbana a CR/88 estabeleceu na norma do artigo 182,

§ 2°, que a sua função social restará cumprida quan do forem atendidas as

exigências traçadas no plano diretor para a ordenação das cidades; nesse norte, o

texto constitucional atribui parte da responsabilidade pela demarcação dos

parâmetros que conduzirão ao cumprimento da função social para a legislação

infraconstitucional, exigindo que, neste âmbito, o assunto seja tratado de forma mais

específica, de acordo com a realidade concreta de cada caso.

Portanto, utilizar-se-á neste trabalho um critério objetivo para a caracterização

e identificação das propriedades urbana e rural, considerando, primeiramente, o fato

de que o Município recebeu da CR/88, autonomia política, administrativa e financeira

figurando como mais uma peça na construção do modelo federativo adotado por

aquele texto constitucional.

Isso significa capacidade para elaboração de leis, principalmente, a Lei

Orgânica que atuará sobre o espaço territorial destinado ao Município; autonomia na

administração dos próprios recursos; autonomia na organização de seus poderes

com a formação democrática de um corpo administrativo e outro legislativo,

independentes entre si, os quais deverão atuar segundo os interesses locais (art. 30,

I) e nos limites das competências estabelecidas pela Constituição.

Essa capacidade de auto-organização dos Municípios vem acompanhada da

responsabilidade pelo ordenamento de seu espaço territorial, sendo este dever

estabelecido em norma constitucional (art. 30, VIII), a qual exige o planejamento e o

controle sobre o uso do solo urbano, bem como o seu parcelamento e ocupação.

Contudo, em se tratando de tema vinculado ao direito urbanístico, cuja

competência legislativa é atribuída de forma concorrente à União, aos Estados e ao

urbano. Ciência e cultura. 2004, vol. 56, n.° 2, p. 26-29. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v56n2/a16v56n2.pdf>. 109 Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. (BRASIL, 1988)

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Distrito Federal, a competência dos Municípios para legislar sobre aquela matéria é

suplementar, ou seja, deve trazer em seu conteúdo questões específicas do local

onde o Município se encontra estabelecido.

Verificada a competência legislativa atribuída pela Constituição aos

Municípios no que diz respeito aos assuntos de interesse local, bem como para a

organização do seu espaço territorial e também, de forma suplementar, em matéria

vinculada ao direito urbanístico, afirma-se que cabe aos Municípios a determinação

do perímetro urbano que definirá quais as suas áreas urbana e rural.

O Código Tributário Nacional, ao tratar dos impostos incidentes sobre as

propriedades territorial rural (arts. 29 a 31) e predial e territorial urbana (32 a 34),

auxilia na diferenciação e identificação entre as duas formas de propriedade,

estabelecendo a propriedade rural como bem imóvel (por natureza) que se localiza

fora da zona urbana do Município, por outro lado, estabelece que a propriedade

urbana se caracteriza como bem imóvel (por natureza ou acessão física) localizado

dentro daquela área.

Para os fins a que se destina aquele código, o seu art. 32, § 1° estabelece

qual o significado de zona urbana, nestes termos:

Art. 32. [...] § 1º Para os efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos pelo Poder Público: I - meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais; II - abastecimento de água; III - sistema de esgotos sanitários; IV - rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar; V - escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado. (BRASIL, 1966, grifo nosso)

A competência do Município para a determinação do seu perímetro urbano,

também é reconhecida pela Lei 4.771/65 (Código Florestal) quando estabelece que,

Art. 2°. [...] Parágrafo único. No caso de áreas urbanas, assim en tendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, observar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo. (BRASIL, 1965, grifo nosso)

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A definição do perímetro urbano através de lei municipal é conseqüência da

autonomia concedida aos Municípios pela CR/88, os quais têm a competência para

definir as suas áreas urbana e rural, possibilitando, não só, a orientação quanto às

políticas públicas incidentes em cada uma daquelas áreas, como também, a

identificação das respectivas formas de propriedades, urbana e rural.

Fiuza (2007) reconhece que o Município pode transformar terras rurais em

urbanas, desde que observe os termos do art. 32 do CTN, sendo que, para a

definição do perímetro urbano o Município não precisa da permissão da União,

devendo tão somente comunicar ao INCRA e aos Cartórios de Registro de Imóveis,

depois de seguir o trâmite legal para a aprovação da lei municipal que vier a definir

aquela limitação.

Identificada a propriedade urbana como aquela que se encontra dentro dos

limites da área assim estabelecida por lei municipal, passa-se à verificação da

necessidade do cumprimento de sua função social por determinação do artigo 182,

§2° da CR/88, bem como pela legislação infraconstit ucional.

A promulgação da Constituição da República de 1988 trouxe consigo a

necessidade de discussão a respeito do tema da função social da propriedade em

virtude da importância que o mesmo alcançou naquele texto constitucional e, por

conseqüência, da mudança que veio a provocar no instituto da propriedade.

Natural que dentre as questões mais importantes que passaram a ser

discutidas estivesse a aplicabilidade daquele princípio e os efeitos que passariam a

ser observados no âmbito de atuação do proprietário, o qual ainda estava preso a

uma concepção liberal de amplo exercício da autonomia da vontade sobre o objeto

do seu direito de propriedade, principalmente, quando aquele objeto se tratava de

um bem imóvel.

Afastados de uma concepção pós-positivista que vislumbra a força normativa

da constituição capaz de, por si, exigir a concretização de suas determinações,

várias foram as posições externadas no sentido de que a função social da

propriedade, enquanto norma programática, não poderia ser invocada diretamente

da constituição para incidência no caso concreto, sendo necessário que uma norma

infraconstitucional viesse a conferir-lhe essa condição de aplicabilidade.

Importante relembrar que no texto constitucional de 1988, o princípio da

função social acompanha a propriedade na parte destinada aos direitos e deveres

individuais e coletivos (art. 5°, XXIII), reaparecendo como princípio geral da atividade

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econômica (art. 170, II) e depois, na seção correspondente à política urbana como

elemento da propriedade urbana (art. 182, § 2°).

Aquele entendimento desconsiderava os termos do art. 5°, § 1° da CR/88, os

quais estabelecem que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais

têm aplicação imediata.” (BRASIL, 1988)

Ocorre que em 10 de julho de 2001, a Lei 10.257 (Estatuto da Cidade) foi

promulgada colocando fim à discussão, pois, trouxe expressamente em seu

preâmbulo os objetivos que tornaram necessária a sua entrada em vigor, quais

sejam, a regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição da República de

1988, além de trazer diretrizes gerais para a política urbana encontrando-se

incluídas em seu texto a propriedade urbana e a sua respectiva função social.

O conteúdo do artigo 39 do Estatuto da Cidade determina110, expressamente,

a necessidade da propriedade urbana cumprir a sua função social, não obstante ser

bastante clara a opção adotada pelo legislador infraconstitucional de instituir, por

todo o conteúdo daquela lei, instrumentos e diretrizes capazes de possibilitar a

concretização da função social.

Essa opção pode ser percebida através da análise das diretrizes de política

urbana, estabelecidas nos dezesseis incisos do artigo 2° do Estatuto da Cidade,

dentre os quais se incluem a garantia do direito à cidade sustentável, a ordenação e

controle do uso do solo, a gestão democrática da cidade, a integração e

complementaridade entre as atividades urbanas e rurais dentre outras.

Instrumento que já havia ganhado status constitucional através do artigo 182,

§ 2° como instrumento básico da política de desenvo lvimento e de expansão urbana,

e que possui um papel fundamental no direcionamento da conduta do proprietário

rumo ao cumprimento da função social, é o plano diretor, o qual deverá ser aprovado

através de lei municipal, encontrando disposições específicas no Capítulo III do

Estatuto da Cidade (arts. 39 a 42), dentre as quais, o seu conteúdo mínimo.

Mattos (2003) assinala o fato do Estatuto da Cidade ter estendido em seu

artigo 41 a obrigatoriedade de aprovação do plano diretor em outros casos além

daquele estabelecido pelo texto constitucional para os Municípios com mais de vinte

110 Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei. (BRASIL, 2001)

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mil habitantes, contribuíndo, dessa forma, para a difusão do instrumento básico de

política de desenvolvimento e expansão urbana.

A importância do papel atribuído ao plano diretor no contexto das cidades, fica

evidenciada quando suas diretrizes e exigências fundamentais são tomadas como

parâmetro mínimo para o cumprimento da função social da propriedade urbana.

O plano diretor é o instrumento fundamental de intervenção do Município na política urbana de garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade. Ele tem a função de concretizar quatro esferas da Lei n.° 10.257/01: a) determinação de critérios para cumprimento da função social da propriedade, mediante ordenamento territorial de uso e ocupação do solo; b) identificação dos instrumentos urbanísticos a serem adotados para a concretização do projeto; c) criação de mecanismos locais de regularização de assentamentos informais; d) regulamentação dos processos municipais de gestão urbana participativa. (FARIAS; ROSENVALD, 2008, p. 211)

Mister ressaltar que a propriedade urbana que esteja localizada em um

Município, onde ainda não tenha sido aprovado o respectivo plano diretor não está

isenta da obrigatoriedade de cumprimento daquela função social, e isso porque se

trata de uma norma constitucional cuja aplicabilidade imediata é inquestionável (art.

5°, § 1° CR/88), e que se encontra intrinsecamente vinculada à estrutura da

propriedade, não podendo ser afastada sua incidência pela inobservância de

aprovação de uma lei municipal.

Assim, toda propriedade imobiliária urbana já é condicionada, na sua origem, a uma função social, não fazendo sentido algum a idéia de que tal condicionamento só seria exigível para aquelas propriedades situadas em cidades com mais de vinte mil habitantes ou que estejam situadas em região metropolitana, enfim, situadas em cidades nas quais seja obrigatória a existência de um plano diretor. Na ausência desse instrumento – básico da política urbana, sem dúvida –, são fundamentos da exigência do cumprimento da função social da propriedade os artigos 5°, XXIII, 170, III e 182 da Constituição Federal e todas as normas do Estatuto da Cidade, sobretudo as referentes às diretrizes gerais, à gestão democrática da cidade e aos instrumentos urbanísticos ali previstos. (MATTOS, 2003, p. 114)

Torna-se óbvia, assim, a conclusão sobre a necessidade que a propriedade

urbana tem de cumprir uma função social que, em um primeiro momento, encontra-

se definida pelas normas do plano diretor que for aprovado pelo Município

competente, sendo que a ausência daquele instrumento básico não inviabiliza a

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concretização da função social da propriedade urbana que poderá retirar os seus

fundamentos diretamente do texto constitucional.

Porém, nem tudo é tão simples como parece, pois, a propriedade urbana não

se apresenta em formato único, existindo formas diferenciadas de propriedade

urbana que não encontrarão diretamente no conteúdo do plano diretor as diretrizes

necessárias para que possa cumprir sua função social, uma vez que aquelas

normas estão direcionadas para o contexto geral do Município.

A unidade autônoma em condomínio edilício é uma forma de propriedade

urbana, pois, compõe a estrutura da edificação onde se estabelece o instituto

condominial regulado pelo CCB/02 e que surgiu para tentar solucionar um problema

relacionado com déficit habitacional em centros urbanos que apresentam alta

concentração populacional.

Utilizando-se do mesmo espaço urbano é possível erigir uma edificação para

abrigar diversas famílias ou estabelecimentos comerciais contribuindo para o uso

racional do solo urbano, desde que obedecidas todas as normas municipais

competentes para o seu devido uso e ocupação.

Esse tipo de edificação composto por unidades separadas entre si, através de

plataformas horizontais em relação ao solo e de paredes internas, é característico

dos centros urbanos que possuem elevada densidade populacional, tornando

inviável a sua construção afastada deste ambiente urbano, onde o solo se apequena

diante da demanda proporcionada pelos interessados em manter suas relações

pessoais e comerciais nas grandes cidades.

Sendo a unidade autônoma em condomínio edilício uma forma de

propriedade urbana, ela está vinculada ao cumprimento de uma função social

determinada pelo texto constitucional e que encontra correspondência em toda

legislação infraconstitucional.

Porém, essa função social relativa à unidade autônoma deverá ser cumprida

em relação aos demais co-proprietários e no âmbito interno do condomínio edilício,

tendo em vista a relevância que os comportamentos dos co-proprietários assumem

naquela edificação, tanto para a viabilização do convívio, quanto para a

administração do patrimônio comum que se forma a partir do estabelecimento

daquele instituto condominial.

Repita-se que frente ao instituto do condomínio edilício a função social da

propriedade urbana pode assumir uma dimensão ampla, onde todos os co-

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proprietários atuam em conjunto como titulares de direitos sobre toda a edificação,

restando-lhes obrigações frente à sociedade em face do interesse público refletido,

por exemplo, no plano diretor do Município, bem como uma dimensão estrita,

quando se lhe exige o cumprimento pelas unidades autônomas que compõem a

edificação, principalmente, pelo fato da sua estrutura interna reproduzir – guardadas

as devidas proporções – as relações de natureza política que se desenvolvem em

sociedade, e considerando que o exercício das faculdades inerentes à propriedade

no âmbito privado do condomínio edilício pode conduzir tanto à concretização

quanto ao desrespeito de direitos fundamentais estabelecidos pela CR/88.

Como o objetivo deste trabalho é a verificação do cumprimento da função

social da propriedade urbana no âmbito privado do condomínio edilício, nota-se que

as determinações contidas nos planos diretores não se mostram suficientemente

adequadas (em face da amplitude de suas normas) para direcionar a conduta do

condômino proprietário rumo ao cumprimento daquela função social.

Assim, considerando a posição que a função social ocupa na estrutura do

direito de propriedade, além da obrigatoriedade de seu cumprimento imposta,

principalmente, pela Constituição de 1988, o co-proprietário de unidade autônoma

em condomínio edilício deve buscar outro conjunto de regras reconhecido no

ordenamento jurídico pátrio que lhe dê condições, não só, de pautar a sua conduta

em busca do cumprimento daquela função social, como também, de exigir dos

demais co-proprietários o mesmo comportamento.

O que se afirma é que em relação à unidade autônoma, as normas do plano

diretor não se mostram suficientemente adequadas para direcionar a conduta do

condômino proprietário rumo ao cumprimento daquela função social e isso ocorre

em face do interesse público que suas normas buscam atender111, não alcançando

as peculiaridades das situações que se constróem no âmbito privado do condomínio

edilício e que naquele contexto, chegam a ser absolutamente relevantes.

Ou seja, tendo em vista que as determinações do plano diretor são de caráter

geral, visando atender o interesse dos munícipes ao funcionar como instrumento de

regulamentação de toda propriedade imóvel urbana estabelecida no Município sobre

111 Como exemplo, transcreve-se o artigo 1° do Plano D iretor do Município de Belo Horizonte: Art. 1º - O Plano Diretor do Município de Belo Horizonte é o instrumento básico da política de desenvolvimento urbano - sob o aspecto físico, social, econômico e administrativo, objetivando o desenvolvimento sustentado do Município, tendo em vista as aspirações da coletividade - e de orientação da atuação do Poder Público e da iniciativa privada. (BELO HORIZONTE, 1996)

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o qual suas normas incidem, a unidade autônoma em condomínio edilício se

submete também, a um conjunto de regras reconhecido pelo ordenamento jurídico

pátrio, e que se apresenta mais adequado às especificidades de sua estrutura e

constituição.

O proprietário de unidade autônoma em condomínio edilício deve orientar seu

comportamento no interior do edifício, segundo as diretrizes constitucionais e

infraconstitucionais, estando incluído aqui o plano diretor (no que for cabível), porém,

outro regulamento mais específico faz parte deste conjunto de regras que terminam

por conduzir ao cumprimento da função social da propriedade urbana.

Qual é este regulamento e como a função social da propriedade urbana é

concretizada no âmbito privado do condomínio edilício, são as questões tratadas a

seguir.

5.2.1 O cumprimento da função social da propriedade urbana no âmbito

privado do condomínio edilício

Para que se compreenda a proposta deste trabalho quanto ao cumprimento

de uma função social pela unidade autônoma no âmbito privado do condomínio

edilício, necessária se torna a retomada de alguns pontos já expostos,

principalmente, no que diz respeito à convenção de condomínio e à assembléia de

condôminos, pois, que fundamentam as conclusões apresentadas ao final.

Primeiramente, observa-se que o exercício do direito de propriedade não

ocorre mais de acordo com o paradigma liberal observado no início do século XX, o

qual fora retratado no CCB/16, tendo em vista que o movimento de

constitucionalização do Direito Civil somado ao paradigma do Estado democrático

de direito inaugurado no Brasil após 1988, passaram a exigir do proprietário uma

nova postura não somente relacionada ao objeto do domínio, como também, frente

aos demais não proprietários.

Tratando-se do instituto do condomínio edilício definido pelas normas dos

artigos 1.331 a 1.358 do CCB/02, e de como as unidades autônomas estão

interligadas no interior da edificação, onde se observa a instauração daquele

instituto, o exercício do direito de propriedade deve ocorrer de forma a considerar

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que naquele ambiente se potencializam as condições para a ocorrência de

desavenças entre os co-proprietários, exigindo destes uma capacidade aguçada de

convívio com o diferente em um contexto, plural, multicultural e pautado por

princípios democráticos.

Assim, o instituto do condomínio edilício submetido ao paradigma do Estado

democrático de direito, bem como a todas as transformações promovidas no Direito

Civil, a partir de então, é incompatível com o perfil egoísta e individualista do co-

proprietário, pois, encontra no princípio democrático o caminho para a

compatibilização dos diversos interesses privados que passam a se relacionar

obrigatoriamente, por diversos motivos.

Neste contexto, a convenção de condomínio e as assembléias de condôminos

exercem papéis, respectivamente, disciplinar e deliberativo, cruciais para a

viabilização do convívio em condomínio, uma vez que grande parte das regras que

compõem aquele instrumento deve ser elaborada mediante a discussão

democraticamente estabelecida pelos condôminos, que a elas se submeterão.

Essas discussões para a elaboração das regras da convenção ocorrem nas

assembléias de condôminos, as quais passam a funcionar como espaços destinados

à exposição dos interesses de todos aqueles que constituem a comunidade de co-

proprietários das unidades autônomas que compõem o condomínio edilício.

Em outras palavras, a participação dos co-proprietários nas assembléias, seja

para a discussão e resolução de assuntos de interesse de todos os condôminos,

seja para a elaboração das regras da convenção de condomínio e do regimento

interno, deve ocorrer mediante a observação de parâmetros democráticos de

conduta, na medida em que se vive no Brasil sob o paradigma do Estado

democrático de direito, o qual possui a democracia como pressuposto, seja na

esfera pública de exercício da cidadania ou nas relações privadas entre os

particulares.

Entende-se que a forma deliberativa de democracia é a que melhor

representa as relações interpessoais que se estabelecem no âmbito privado do

condomínio edilício e que, conseqüentemente, melhor contribui para a viabilização

do convívio, para administração do patrimônio comum e para a solução dos diversos

problemas que surgem naquele contexto peculiar.

E isso em virtude de atribuir aos debates que se instauram mediante a

conformação a um discurso racional, a capacidade de fundamentar decisões,

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também racionais, segundo um procedimento democrático de captação das opiniões

dos co-proprietários, contribuindo, não somente, para a construção de um interesse

comum àquela comunidade condominial, mas também, para o conteúdo e a

legitimidade das tomadas de decisão.

A pluralidade e a complexidade das comunidades de co-proprietários

formadas no âmbito privado do condomínio edilício, também são vivenciadas no

âmbito público, obviamente com intensidade muito superior, contudo, tanto em um

quanto noutro, as normas e regras aplicáveis necessitam de buscar a legitimidade

de seus conteúdos para que produzam os efeitos esperados por aqueles que a elas

estarão submetidas.

A elaboração das regras da convenção de condomínio também deve assumir

um perfil democrático, pressupondo a verificação de um procedimento

dialogicamente fundamentado que considera o debate e a atribuição (na maior

medida possível) de iguais liberdades de participação a todos os co-proprietários,

como elementos fundamentais a serem observados nas assembléias de condôminos

que se instaurarem para tal mister.

Nesse contexto, além da garantia de iguais liberdades de participação no

procedimento discursivo e decisório instaurado em assembléia, deve-se observar a

garantia dos direitos fundamentais de todos os co-proprietários, suscetíveis de

verificação naquele ambiente privado e que poderão restar violados de acordo com

as decisões tomadas.

O debate instaurado em assembléia de condôminos deve ocorrer de forma a

buscar o melhor argumento que apresente soluções para o interesse comum dos co-

proprietários, sendo necessária a sustentação das propostas apresentadas frente às

críticas dos demais condôminos para, utilizando-se da regra da maioria, se chegar a

uma decisão.

Porém, aquela maioria deverá ser constituída conforme o modelo democrático

já explicitado, possibilitando a tutela dos interesses e dos direitos da minoria que

ainda continuará presente naquele espaço privado de exercício do direito de

propriedade e que poderá, através do discurso, tornar-se maioria.

Portanto, quanto à convenção de condomínio, entende-se tratar de um ato-

regra nos moldes apresentados anteriormente, ou seja, como instrumento elaborado

por um grupo de pessoas (condôminos) que se reúnem voluntariamente e se

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submetem às suas regras em virtude da capacidade específica que adquiriram com

a aquisição de unidades autônomas do edifício.

Acrescenta-se ao conceito da convenção de condomínio o fato de que a sua

elaboração deverá ocorrer mediante a participação dos condôminos em assembléia,

os quais decidirão dialógica e democraticamente parte do seu conteúdo que

submeterá todos os co-proprietários, as pessoas a eles equiparadas por lei, bem

como terceiros que freqüentem o edifício.

Dessa forma, a assembléia de condôminos caracteriza-se não só como o

órgão deliberativo máximo do condomínio, como também, um canal de comunicação

entre os condôminos, na medida em que possibilita a formação de um espaço

democrático para a exposição dialógica de idéias e opiniões, em busca da formação

do interesse comum dos co-proprietários, observando-se a regra da maioria, a

garantia, na maior medida possível, de iguais liberdades de participação a todos os

condôminos e a integridade de seus respectivos direitos fundamentais.

Essa forma democrática de agir fará com que o condômino se reconheça nas

regras que foram elaboradas para a convenção, atribuindo legitimidade àquelas,

uma vez que o sentimento de respeito à regra legitimamente construída estará

refletida quando da instauração de um amplo espaço destinado ao debate e à

apresentação de diferentes idéias e sugestões que buscam na deliberação o melhor

argumento para a comunidade de co-proprietários.

Tendo em vista o que fora apresentado até este momento, faz-se algumas

considerações:

a) a função social da propriedade é uma forma de intervenção do Estado (de

quem exerce o poder, ou em nome de quem o poder é exercido) na

propriedade, visando alcançar um interesse público, sendo que no caso da

propriedade urbana, esse interesse também estará presente no plano diretor,

já que este se apresenta como instrumento básico a ser seguido por aquela

forma de propriedade, em busca do cumprimento de sua função social;

b) a unidade autônoma em condomínio edilício é forma de propriedade urbana

que está vinculada ao cumprimento de uma função social determinada tanto

pela CR/88, quanto pelo Estatuto da Cidade, mas que não encontra

diretamente no plano diretor as condições específicas para o cumprimento

daquela função, dado o caráter geral de suas normas;

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c) a convenção de condomínio retrata o interesse comum da comunidade de co-

proprietários que forma o condomínio edilício, tendo em vista o procedimento

dialógico e democrático obedecido para a elaboração de seu conteúdo em

assembléia de condôminos, o qual se torna fundamental para lhe conferir

legitimidade;

d) as regras da convenção, também deverão estar em conformidade com as

normas constitucionais e infraconstitucionais passiveis de serem aplicadas no

âmbito privado do condomínio edilício; portanto,

e) a convenção de condomínio, nos moldes estabelecidos acima, é o

instrumento no qual o condômino encontrará as determinações adequadas

para que a sua unidade autônoma cumpra uma função social, no âmbito

privado do condomínio edilício.

Ou seja, a unidade autônoma em condomínio edilício cumpre a sua função

social quando o co-proprietário exerce o domínio sobre aquele imóvel de modo a

obedecer e fazer cumprir as regras presentes na convenção de condomínio, por

outro lado, não havendo esse comportamento obediente às regras da convenção,

pode-se afirmar, categoricamente, que aquela unidade autônoma não cumpre a

função social que lhe é exigida.

Nesse espaço democrático formado no contexto do condomínio edilício, são

reproduzidas (guardadas as devidas proporções) as relações políticas que se

desenvolvem no contexto social, por exemplo, quando da escolha dos

administradores e daquele que representa a comunidade de condôminos, bem como

na formação de um interesse comum aos co-proprietários, responsável pelas

escolhas tomadas naquele ambiente privado.

De forma análoga ao que ocorre no âmbito municipal, onde a propriedade

urbana cumpre a sua função social submetendo-se às determinações do plano

diretor, a unidade autônoma, especificamente no âmbito privado do condomínio

edilício, deve submeter-se às regras da convenção como forma de cumprir a função

social que lhe é imposta pelo ordenamento jurídico.

Neste ponto, também, encontra-se outra coincidência entre a esfera pública e

o âmbito interno do condomínio edilício reforçando a idéia defendida neste trabalho

de que a unidade autônoma deve cumprir uma função social em relação às demais

que compõem a edificação onde se estabelece o condomínio edilício.

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Sendo o repositório do interesse comum construído pelos co-proprietários de

unidades autônomas em condomínio edilício, a convenção de condomínio atua

como o conjunto de regras que direciona a conduta dos condôminos em direção ao

cumprimento da função social.

Repita-se que essa função é assumida pela convenção de condomínio, haja

vista que, a unidade autônoma não encontra diretamente no plano diretor o

repositório normativo capaz de promover a concretização da função social no âmbito

privado do condomínio edilício, em virtude da natureza abrangente de suas normas.

Assim, a convenção de condomínio, cuja parte do conteúdo encontra-se

definida nos termos do artigo 1.332 do CCB/02 e a outra sendo definida pelo

procedimento dialógico e democrático que deve ser assumido naquele contexto

interno, para lhe conferir legitimidade, é o instrumento capaz de organizar o

interesse comum dos co-proprietários e submetê-los aos princípios, determinações e

diretrizes do ordenamento jurídico como um todo, traçados para a propriedade

urbana de forma a buscar naquele ambiente privado, a concretização de princípios e

direitos fundamentais trazidos pelo texto constitucional de 1988.

Obedecendo estritamente às regras da convenção de condomínio, o co-

proprietário dará à sua unidade autônoma uma função social no âmbito privado do

condomínio edilício, e isso em virtude daquele instrumento regulamentador possuir

refletido em seu conteúdo um interesse público, representado pelas diretrizes gerais

do ordenamento jurídico pátrio definidas para a propriedade urbana, como também,

um interesse comum construído dialógica e democraticamente no âmbito privado do

condomínio edilício, refletindo as peculiaridades da comunidade de co-proprietários

que se forma em cada edifício, onde se instaura aquele instituto de Direito Civil.

A concretização da função social da propriedade urbana pela unidade

autônoma no âmbito democrático do condômino edilício far-se-á com a conjugação e

a colaboração da convenção de condomínio e da assembléia de condôminos,

mediante a observação de suas competências específicas e características

constitutivas dentro das limitações apresentadas pelo ordenamento jurídico pátrio.

Nota-se que, além de conduzir ao cumprimento da função social, a

convenção de condomínio também pode funcionar como instrumento viabilizador da

concretização de direitos fundamentais entre os co-proprietários, desde que traga

em seu conteúdo regras de uso das unidades autônomas que viabilizem a incidência

direta de direitos fundamentais entre os condôminos.

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Dentro de seus limites, a convenção de condomínio pode funcionar entre os

condôminos e no âmbito privado do condomínio edilício, como mais um instrumento

voltado para a viabilização, concretização e tutela de direitos fundamentais

estabelecidos pela Constituição da República de 1988.

Como visto, limitada ao âmbito privado do condomínio edilício, e também, a

certos direitos, cuja viabilização mostre-se possível neste ambiente, a convenção de

condomínio poderá servir como um instrumento para a garantia da igualdade, da

dignidade, da saúde dos condôminos, da liberdade religiosa, do exercício do direito

de propriedade, na promoção da solidariedade entre os condôminos e tantos outros

aspectos que acabam sendo revelados pela realidade fática.

O respeito e a garantia do exercício de direitos fundamentais deve ser

implementada nos textos das convenções de condomínio, através da abertura

concedida pelo ordenamento jurídico, quando permite que a comunidade de co-

proprietários decida quais serão as regras capazes de conduzir as diversas

situações jurídicas que se observam na realidade condominial.

Estando as regras da convenção de condomínio orientadas pelo objetivo

último de garantia da dignidade dos condôminos naquele espaço privado, outros

direitos fundamentais também serão garantidos, sendo certo que o Poder Judiciário

deverá ser chamado para intervir sempre que restarem comprovadas situações

fáticas de violação e/ou inobservância de direitos fundamentais naquela esfera

privada, para promover a obediência irrestrita ao texto constitucional e, por

conseqüência, a eficácia direta daquelas normas fundamentais entre os particulares.

O que se pretende com essas afirmações é propor mais uma forma de se

viabilizar a eficácia daqueles direitos fundamentais entre os particulares, podendo

ser tentada através das regras da convenção de condomínio, que serão elaboradas

de forma democrática, através da permissão legal prevista no CCB/02, sempre

considerando a relação existente entre as normas constitucionais relativas aos

direitos fundamentais e a autonomia privada de cada um dos co-proprietários.

Por fim, há que se considerar, também, a possibilidade dos direitos

fundamentais agirem como limite hermenêutico para as regras da convenção de

condomínio que foram elaboradas em desconformidade com o parâmetro

estabelecido pela Constituição da República de 1988, que está pautada,

principalmente, nos princípios democrático e da dignidade humana.

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A realidade que hoje se apresenta ao co-proprietário de unidade autônoma

em condomínio edilício é complexa, pois, aquele se encontra em um Estado

democrático de direito, submetido a um texto constitucional que traz consigo um

sistema de direitos fundamentais, pautado na dignidade da pessoa humana e que

exerce influência sobre todo o ordenamento jurídico.

Neste contexto, ainda se faz presente um Direito Civil despatrimonializado,

constitucionalizado e descodificado, somado ao ambiente multicultural, plural e,

necessariamente, democrático que se instala no interior dos inúmeros edifícios que

se fazem presentes no contexto dos centros urbanos.

Cada uma daquelas edificações apresenta características únicas, singulares e

que não se repetem em outro condomínio, motivo que atribui à convenção um papel

fundamental na busca pela concretização da função social da propriedade urbana

pela unidade autônoma, uma vez que possui em seu conteúdo o interesse comum

daquela comunidade singular de co-proprietários.

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6 CONCLUSÃO

Independentemente da época em que a forma de edificação constituída por

unidades autônomas sobrepostas em planos horizontais apareceu, chega-se à

conclusão de que a necessidade do homem de equacionar o uso do solo nas

cidades foi a sua grande incentivadora, uma vez que se trata de instituto

eminentemente urbano.

Verifica-se que a disposição daquelas unidades autônomas na edificação cria

um ambiente propício ao desenvolvimento de conflitos, já que pessoas

absolutamente diferentes, com culturas e valores também distintos passam não

somente a exercer em conjunto as faculdades inerentes à propriedade sobre as

áreas comuns da edificação, como também necessitam deliberar em conjunto

diversas questões que dizem respeito ao patrimônio comum adquirido com aquela

unidade autônoma.

Toda essa realidade complexa exige a incidência de um conjunto de normas e

regras capazes de organizar a convivência que passa a se desenvolver em seu

interior, sendo possível identificar no condomínio edilício o perfil de

microdemocracias que refletem os pressupostos de organização das relações

interpessoais para a tomada de decisão e elaboração de normas verificadas nas

macrodemocracias.

Estabelecido o paradigma do Estado democrático de direito a partir da

Constituição da República de 1988 e, conseqüentemente, restando atribuído ao

princípio democrático um local de destaque neste contexto político-social, as

relações privadas que se estabelecem no âmbito privado do condomínio edilício

também devem estar fundamentadas em procedimentos e valores democráticos.

Esse perfil democrático que os proprietários devem assumir tem como

objetivo principal a busca pelo cumprimento do principio da função social da

propriedade urbana, cumprimento esse que fora exigido pelo texto constitucional de

88, bem como por toda a legislação infraconstitucional que trata do assunto relativo

ao uso e ocupação do solo urbano, mormente, a Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade).

Mister ressaltar que neste contexto democrático a função social é forma de

intervenção do Estado na propriedade objetivando alcançar um interesse público

(como reflexo dos interesses privados presentes na sociedade), apresentando-se

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formalizada como princípio constitucional a ser concretizado pelo proprietário, haja

vista a mudança promovida por este princípio na estrutura interna da propriedade.

Na medida em que se atribui papel de tipo promocional à função social, além

do poder de transformar a estrutura da propriedade, garante-se também a busca

pela promoção dos princípios e valores fundamentais do ordenamento jurídico

através da propriedade (ou seja, através de sua funcionalização), os quais estão

refletidos no texto constitucional, sem que isso signifique uma redução dos poderes

ou faculdades do proprietário.

A obrigatoriedade de concretização do principio da função social da

propriedade urbana deve estar presente na natureza jurídica do condomínio edilício,

pois, encontra-se constituído por unidades autônomas, as quais se apresentam

como forma de propriedade urbana e como tal vinculadas àquela concretização.

Ressalta-se que a análise realizada neste trabalho conduz à verificação da

necessidade do cumprimento de uma função social pela unidade autônoma no

âmbito privado do condomínio edilício, e que a função social exigida da edificação

considerada em seu conjunto é diversa.

Tanto a Constituição de 1988 quanto o Estatuto da Cidade atribuem ao plano

diretor o papel de instrumento básico para que a propriedade urbana cumpra a sua

função social, ocorre que as determinações contidas nos planos diretores são

demasiadamente amplas para direcionar a conduta do condômino proprietário rumo

ao cumprimento daquela função.

Considerando a posição estruturante que a função social ocupa junto à

propriedade, além da obrigatoriedade de seu cumprimento imposta, principalmente,

pela CR/88, o co-proprietário de unidade autônoma em condomínio edilício deve

buscar outro conjunto de regras reconhecido no ordenamento jurídico pátrio que lhe

dê condições não só de pautar a sua conduta em busca do cumprimento daquela

função, mas também, para exigir dos demais co-proprietários o mesmo

comportamento.

O proprietário de unidade autônoma em condomínio edilício deve orientar seu

comportamento no interior do edifício segundo as diretrizes constitucionais e

infraconstitucionais, estando incluído aqui o plano diretor (no que for cabível), porém,

outro regulamento mais específico (convenção de condomínio) faz parte deste

conjunto de regras que termina por conduzir ao cumprimento da função social da

propriedade urbana.

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Necessário que se encare de maneira diversa o instituto do condomínio

edilício, tendo em vista toda a complexidade das relações que se estabelecem em

seu interior, o que faz com que se exija do co-proprietário um perfil solidário que leve

em consideração os interesses do outro e que provoque a internalização de uma

conduta consciente de que naquele conjunto de unidades autônomas, cada decisão

tomada interferirá diretamente na vida de todos os demais condôminos.

É por isso que se defende um procedimento dialógico e democrático de

elaboração das regras da convenção de condomínio onde se garanta, na maior

medida possível, a participação de todos os interessados na construção do interesse

comum daquela comunidade de co-proprietários, para que aquelas regras alcancem

a legitimidade e eficácia através da identificação de cada condômino com os seus

conteúdos.

Mesmo porque, a concretização da função social da propriedade urbana pela

unidade autônoma somente é possível através da conduta assumida pelo co-

proprietário frente ao objeto de seu direito, ou seja, o cumprimento daquela função

cabe ao titular do direito de propriedade que deve se comportar perante a

comunidade de co-proprietários de acordo com a destinação do seu imóvel, uma vez

que caracterizada como elemento constitutivo do direito de propriedade a função

social é legítima para a atribuição daquela titularidade.

O proprietário de unidade autônoma neste tipo de edificação deve tomar

ciência da peculiaridade do direito do qual se torna titular ao se agregar a um

condomínio edilício, pois, se compromete a respeitar as regras que ali vigoram e que

foram elaboradas por determinação de todos os outros co-proprietários.

Tendo sido construído em assembléia o interesse comum daquela

comunidade de proprietários, o qual se encontra registrado nos termos da

convenção de condomínio, conclui-se que este instrumento se apresenta como o

ideal para conduzir o proprietário ao cumprimento da função social da propriedade

urbana destinada à unidade autônoma em condomínio edilício.

Obedecendo estritamente às regras da convenção de condomínio, o co-

proprietário dará à sua unidade autônoma uma função social no âmbito privado do

condomínio edilício e isso em virtude, principalmente, daquele instrumento

regulamentador possuir refletido em seu conteúdo um interesse comum construído

dialógica e democraticamente, bem como as peculiaridades da comunidade de co-

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proprietários que se forma em cada edifício onde se instaura aquele instituto do

Direito Civil.

Além de conduzir ao cumprimento da função social, a convenção de

condomínio também pode funcionar como instrumento viabilizador da concretização

de direitos fundamentais entre os co-proprietários, desde que traga em seu conteúdo

regras que viabilizem a sua incidência direta.

A efetivação de direitos fundamentais entre particulares pode ocorrer no

âmbito privado do condomínio edilício através do conteúdo que se atribui à

convenção de condomínio e à conduta que se exige do proprietário naquele âmbito

privado, em outras palavras, verifica-se que a convenção de condomínio pode servir

tanto para auxiliar no cumprimento do principio da função social da propriedade

urbana, quanto na efetivação de certos direitos fundamentais entre os co-

proprietários.

Dentro de seus limites, a convenção de condomínio pode funcionar entre os

condôminos e no âmbito privado do condomínio edilício como mais um instrumento

voltado para a viabilização, concretização e tutela de direitos fundamentais

estabelecidos pela Constituição da República de 1988.

Repita-se que a proposta é mais uma forma de se viabilizar a concretização

da função social da propriedade urbana, sendo esta verificada no âmbito privado do

condomínio edilício através da obediência às regras da convenção, que trazem em

seu conteúdo o interesse comum da comunidade de co-proprietários.

A convenção de condomínio também se mostra como um instrumento capaz

de viabilizar concretamente e dentro de seus limites, o exercício de alguns dos

direitos fundamentais elencados pela Constituição da República de 1988 no âmbito

privado do condomínio edilício.

Portanto, considerando que a unidade autônoma pode contribuir diretamente

para a realização de todos estes objetivos e, por conseqüência, para a garantia do

respeito à dignidade humana, o proprietário encontra-se convocado a exercer o

direito do qual é titular e que se encontra inserido em uma situação jurídica

proprietária, nos contornos estabelecidos pelo texto constitucional em busca da

concretização da função social da propriedade urbana.

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