a serpente que só pica pés descalços - desigualdade e direito penal

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A serpente que só pica os pés descalços- desigualdade e direito penal – Marcelo Semer A menor chance de acertar a resposta ocorre quando se faz a pergunta errada. Tal como se deu na economia com o dragão da inflação, a lentidão da justiça acede como o grande vilão em praticamente todos os projetos de reforma. Estes se direcionam para diminuir prazos, extinguir recursos, melhorar gestões ou elaborar metas, enfim, criar mecanismos que pretendam tornar mais fluída a distribuição de justiça. Sem se preocupar, em regra, em como ela é distribuída. E tal como se deu na economia, o vilão jamais deixou de existir, mas a ansiedade de seu combate vem servindo de

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Capítulo do Livro "Criminologia do Cotidiano" (Lumen Juris, 2014)

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Page 1: A Serpente Que Só Pica Pés Descalços - Desigualdade e Direito Penal

A serpente que só pica os pés descalços- desigualdade e direito penal

– Marcelo Semer

A menor chance de acertar a resposta ocorre quando se faz a pergunta errada.

Tal como se deu na economia com o dragão da inflação, a lentidão da justiça acede

como o grande vilão em praticamente todos os projetos de reforma.

Estes se direcionam para diminuir prazos, extinguir recursos, melhorar gestões ou

elaborar metas, enfim, criar mecanismos que pretendam tornar mais fluída a distribuição

de justiça. Sem se preocupar, em regra, em como ela é distribuída.

E tal como se deu na economia, o vilão jamais deixou de existir, mas a ansiedade de seu

combate vem servindo de cortina de fumaça para manter inatacável o defeito estrutural

que mais compromete os esforços de reconstrução do sistema: a desigualdade.

É este o vício que desnatura e deslegitima a ação do Estado, seja quando distribui

direitos, seja quando regula a conflituosidade e a litigância.

Para combater esse mal, todavia, o mais difícil é conseguir enxergá-lo, pois partimos em

regra, na produção das leis, na operação das agências executivas ou mesmo nas decisões

judiciais, da premissa de sua inexistência. Para tanto, reconstruímos os sentidos e os

alcances da igualdade, de modo a encaixotá-la em regras tão vazias que nos permitam

prosseguir, ainda que de forma hipócrita, com a distribuição de direitos –sem levar em

conta que, assim o fazendo, ignoramos a escassez que se perfaz como norma

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fundamental de uma massa incalculável de pessoas, para quem o direito e a justiça são

pouco mais do que miragens ou promessas constantemente descumpridas.

Aqui costumamos ser vítimas de duas habituais perversões: a-) a consideração da

igualdade perante uma lei na melhor das hipóteses inerte (quando não claramente

desproporcional), que estabelece a priori uma falsa equiparação de oportunidades que

faz tábula rasa das diferenças profundas que oculta; b-) a regra de que a igualdade é

também o tratamento desigual dos desiguais, quando as condições das ditas

desigualdades apenas buscam contornar e legitimar as diferenças que o princípio

deveria neutralizar (a regra é muito empregada, por exemplo, para justificar o foro

privilegiado, por tratar-se de pessoas “desiguais”, ou seja, em espaço superior de

tratamento).

A desigualdade no sistema de justiça é ainda mais perversa do que a que resulta da

realidade sócio-econômica, embora lhe seja claramente tributária. Primeiro, porque é

em si, ou deveria ser, um dos motores da ideia do justo, sendo uma de suas funções

precípuas corrigi-la; depois, porque a desigualdade do sistema de justiça aprofunda

todos aqueles efeitos já suficientemente perversos.

Quando a defesa da propriedade, por exemplo, é estruturada com instrumentos tão

vigorosos, rápidos e efetivos, a função excludente do patrimônio erga omnes (as

proibições que se aplicam a todos os outros), provoca uma redução ainda maior de

direitos aos que não a tem. Os que padecem de falta de moradia tendem a padecer,

então, das violências provocadas pelas ações de defesa da propriedade ou mesmo a

criminalização de suas lutas –pois seu direito é um direito fraco e em geral, mal

tutelado.

Em outras palavras, a defesa armada da propriedade é garantida pelo sistema (o

desforço físico necessário para protegê-la é tutelado seja pelo direito civil, seja pelo

direito penal), enquanto a luta pelo direito constitucional à moradia é fortemente

reprimida1.

1 É curioso, entretanto, como em outros campos a concretização de direitos constitucionalmente assegurados se dá de forma mais palatável pelo sistema, como o direito à saúde e seu reflexo, sem dúvida oneroso, na dispensação pública de medicamentos de alto custo. No âmbito da moradia, todavia, o choque com a propriedade vem inviabilizando a adoção jurisdicional de quaisquer políticas públicas.

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Quem não tem, tem cada vez menos.

É uma situação hercúlea, ainda, incluir o sistema financeiro no âmbito de proteção ao

consumidor e tratá-lo como um contraente verdadeiramente leonino2, embora, à sua

disposição, para os fins de cobrança, o sistema já chegou a disponibilizar até mesmo a

prisão3.

Mas se o sistema de justiça não é suficientemente acessado pela população de baixa

renda e de poucos direitos, por temor, desconhecimento ou a incapacidade de

transformar sofrimentos perenes e déficits seculares sobre direitos fundamentais em

demandas legítimas, é certo que o sistema, de outro lado, os acessa com muita

prodigalidade –e os efeitos, então, são ainda mais danosos.

Vítimas fáceis de constantes abordagens4 e desvalidos de proteção contra excessos

policiais5, a população mais carente sofre como nenhuma outra a incidência penal (a

vigilância inequivocamente partilha da opção preferencial pelo pobre) o que, por óbvio,

contribui fortemente para a disparidade sócio-econômica que se encontra nas celas.

A desigualdade que o sistema penal provoca quando age, por sua vez, é feroz –uma

temporada, por mais curta que seja, na prisão, fulmina qualquer pretensão de inserção

produtiva oficial no mercado –vão se embora as chances da carteira registrada ou de um

emprego público. E o regramento dos antecedentes como uma marca distintiva, quase

perpétua, funciona como elemento fortemente discriminatório. Se o sistema penal já

2 Confira-se a propósito, “Súmula sobre juros é contrária ao princípio do direito”, Gerivaldo Neiva, Consultor Jurídico (http://www.conjur.com.br/2009-jun-09/sumula-contratos-bancarios-contraria-principio-direito consultado em 24/04/14, às 18h00) e do mesmo autor “Consumidor está perdendo de goleada no STJ”, http://www.gerivaldoneiva.com/2009/09/consumidor-esta-perdendo-de-goleada-no.html, consulta em 24/04/14, 18h10).3 A discussão longeva sobre a inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel, com base no Pacto de San José da Costa Rica, só chegou a termo com a revogação da Súmula 619 do STF que a expressamente admitia, em dezembro de 2008 (HC 92566). 4 A propósito, a consideração de Adriana Loche: “As revistas policiais refletem o modus operandi da PM que, sob a rubrica de suspeição, associa pobreza e criminalidade (a maioria delas é realizada em bairros populares) e que tem como alvo principal o jovem negro”. “As revistas policiais, prevenção ou abuso”, site da Fundação Perseu Abramo ( http://csbh.fpabramo.org.br/node/6971) consulta em 22/04/14, 18h00.5 “Um em cada 5 mortos em São Paulo é vítima da PM” – Folha de S. Paulo, edição de 27/01/12, Caderno Cotidiano. “Taxa de negros mortos pela polícia de SP é três vezes a de brancos, diz estudo”, G1 (http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/03/taxa-de-negros-mortos-pela-policia-de-sp-e-3-vezes-de-brancos-diz-estudo.html, consulta em 24/04/14, 18h20).

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serve naturalmente como estuário da mão-de-obra excedente da globalização6, o

carimbo de egresso invariavelmente impulsiona o condenado ao limbo, projetando, em

um círculo vicioso, um pronto regresso.

Uma breve consulta a duas estatísticas cruzadas, do Censo Penitenciário7 e dos maiores

litigantes dos tribunais superiores, do Conselho Nacional de Justiça8, nos permite uma

conclusão inarredável. Enquanto a massa carcerária é, sobretudo, composta de jovens,

de baixa escolaridade, baixos rendimentos e desproporcionalmente negra ou parda, os

principais acionistas dos tribunais superiores, excluindo-se os entes públicos, são

instituições financeiras e grandes corporações que herdaram os serviços privatizados.

Enquanto os pobres superlotam as cadeias, são os ricos que entopem os tribunais.

A lentidão também é desproporcionalmente distribuída, tal como os direitos e suas

formas de tutela.

No âmbito penal, o excesso de prisões provisórias, sem condenação definitiva, atinge a

quase metade da população carcerária (o que faz, muitas vezes, que a custódia cautelar

sirva como a própria condenação). Tem resistido de forma persistente a uma disciplina

constitucional de matiz garantista e uma legislação infraconstitucional que vem

procurando, sem sucesso, corrigir as distorções do sistema.

As medidas alternativas à prisão cautelar, criadas pela Lei 12403/11, estão sendo

convertidas, na prática, em medidas alternativas à própria liberdade – tarifando-a com

recolhimento domiciliar, fianças elevadas para réus carentes ou monitoramento

eletrônico. A lei da detração (12736/12), que em certa medida, veio compensar o prazo

6 Para Lois Wacquant, esse é efetivamente o sentido do recrudescimento penal: “De fato, o endurecimento generalizado das políticas policiais, judiciárias e penitenciárias que se observa na maioria dos países do Primeiro Mundo nas duas últimas décadas faz parte de uma tríplice transformação do Estado, que contribui, simultaneamente, para acelerar e confundir, aliando a amputação de seu braço econômico, à retração de seu regaço social e à maciça expansão de seu punho penal”. Punir os Pobres - A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro. Ed. Revan, 2007, p. 30.7 Censo Penitenciário referente a dezembro de 2012: 60% de presos sem ensino fundamental completo; 50% com idade inferior a 30 anos, 60% entre negros e pardos (Portal do Ministério da Justiça – InfoPen)8 Consulta em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/21877-orgaos-federais-e-estaduais-lideram-100-maiores-litigantes-da-justica (dia 24/04/14, às 19h00).

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longevo da prisão processual na posterior fixação de regime menos gravoso9, também

vem sendo insistentemente ignorada.

Não é possível, então, pensar no sistema apenas como forma de reduzir os seus gargalos

–o funil é bem mais embaixo.

Se de um lado, temos sabidamente um excesso de litigância (principalmente pela

enormidade das questões que se repetem, fruto também da contumaz intolerância do

próprio Judiciário à coletivização das lides), de outro ainda contamos com a escassez de

demandas, em especial, aquelas que possibilitem o acesso da população mais carente a

políticas públicas.

Nesse particular, acesso à justiça não significa apenas redução de recursos, mas

ampliação de competências, como, por exemplo, a legitimidade da Defensoria Pública

para a tutela de demandas coletivas, que podem trazer a população excluída a exigir

prestações de há muito devidas.

Em suma, os obstáculos são muito menos matemáticos do que se tem normalmente

considerados –e quase sempre não explicam a profunda desigualdade que cerca o

universo jurídico.

A charge de Latuff que encima estas reflexões desvela uma das desigualdades presentes

no sistema de justiça criminal: por que o domicílio de quem tem pouco vale bem menos

do que o sigilo fiscal de quem tem tanto?

9 Exposição de Motivos da Lei 12736/12: “Na atualidade, o sistema de justiça criminal é composto de aproximadamente 40% de presos provisórios. Essa realidade ocasiona problemas ao sistema de justiça, em especial no que tange ao cumprimento da pena imposta por aqueles que durante o processo permaneceram presos. Comumente ocorre que após a sentença condenatória ter sido proferida, tenha o réu que aguardar a decisão do juiz da execução penal, permanecendo nesta espera alguns meses em regime mais gravoso ao que pela lei faz jus, em razão de não existir previsão expressa no Código de Processo Penal conferindo ao juiz do processo de conhecimento a possibilidade de, no momento da sentença, realizar o desconto da pena já cumprida(...) O que se almeja com o presente projeto, portanto, é que o abatimento da pena cumprida provisoriamente possa ser aplicada, também, pelo juiz do processo de conhecimento que exarar a sentença condenatória conferindo maior celeridade e racionalidade ao sistema de justiça criminal, evitando a permanência da pessoa presa em regime que já não mais corresponde à sua situação jurídica concreta”

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É verdade que parte da consideração desigual decorre de uma legislação que se centra

fundamentalmente na tutela da propriedade -que é, como dizia Rousseau, o primeiro e

principal fator de desigualdade.

Mas parte disso, mantém-se de pé ainda, à custa de uma interpretação normativista que

privilegia regras sobre princípios, forma sobre conteúdo, e, na absoluta perversão, a

disciplina de leis sobre direitos fundamentais, tratados como letras mortas de pura

poesia.

Os operadores do direito continuam se comportando como zeladores do ancièn regime,

capatazes de uma escravatura já abolida. Mantêm rígida a tutela da propriedade e

desprezam uma noção mais aguçada da proteção da dignidade humana.

O novo constitucionalismo que nasce do pós-guerra, seja positivando direitos naturais,

seja superando o próprio positivismo enquanto método (que se legitima apenas pela

forma e não pelo conteúdo) agrega Constituições mais analíticas, maior valor aos

princípios e, sobretudo, a expansão de mecanismos de proteção -pactos, tratados e

convenções- que municiam cortes internacionais. A compreensão de que direitos

humanos são legados da humanidade, não apenas “assuntos internos”, projeta uma nova

relação de legitimidade às normas.

A superação do positivismo enquanto método, também é uma superação de valores.

O epicentro desse novo direito que nasce não é mais o respeito incondicional à

autoridade e a sagração da propriedade, mas a preservação da dignidade humana -limite

que aufere legitimidade à lei.

É esse basicamente o retrato da transição que vivemos hoje no direito: da propriedade à

dignidade humana. Na compreensão dessa superação está a principal função do

operador do direito, e mais especificamente, do juiz nos dias atuais.

Seu papel é compreender a mudança da disciplina da lei para a supremacia do princípio

–que não é complementar à lei, sobressaindo-se apenas nas lacunas, mas informa como

interpretá-la e lhe dá legitimidade. Acompanhar a transição do formalismo à

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efetividade, pois o estado democrático de direito não é apenas um conjunto de regras

vagas (da consideração da igualdade formal, por exemplo, ao reconhecimento da ação

afirmativa). Compreender a rotação da propriedade como direito ‘erga omnes’, que se

exerce contra todos, ao centro da solidariedade, que só exerce ‘com todos’.

Enfim, sobretudo, uma mudança na própria atuação do juiz: da falsa “neutralidade” ao

garantismo –pois sua função é, predominantemente, a garantia dos direitos

fundamentais, nem que para isso deva assumir, como sói acontecer sobretudo nas

questões criminais, um papel contramajoritário. Isto porque, como ensina Pedro

Serrano, a soberania popular encontra limites nos direitos fundamentais da minoria, e “a

proteção e fortalecimentos dos valores democráticos só podem ser preservados com a

existência de um órgão independente que possa defender os direitos dessa minoria por

meio de declaração de inconstitucionalidade das normas jurídicas10.

Não há dúvidas que essa é uma mudança de grande calibre. Afinal, se de um lado a

propriedade justificou a escravidão, a dignidade humana fundamenta hoje as políticas

compensatórias dela, como a de cotas.

Dependendo da lenta absorção, ou da simples recusa, a duração dessa transição pode

demorar séculos ou jamais acontecer, considerando que a tradição e o hábito costumam

ser, dentro desse universo jurídico, muito mais resistente do que princípios e conceitos.

A tarefa primordial de quem opera com o direito é conhecer e entender a dimensão da

dignidade humana (que entre nós, é inserida como objetivo primordial da República) e

fazer gerar seus reflexos nos mais diversos campos, a partir de uma interpretação

balizada na própria Constituição.

No direito de família, não há como desconhecer o extraordinário impacto da dignidade

humana, projetando a ideia de igualdade entre os cônjuges (eliminada a chefia do casal),

a gradativa substituição da culpa (fundada ainda na autoridade) e seus reflexos na

propriedade (partilha), especialmente a questão da guarda, que desidrata a noção de

10 SERRANO, Pedro Estevam. “Constituição”, p. 39. Coleção Para Entender Direito, Estúdio Editores.Com, São Paulo, 2014.

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propriedade. Não se enfoca mais o direito do paterfamiliae, mas a noção de interesse da

criança; a solidariedade é positivada na ideia de guarda compartilhada.

No direito de propriedade, a dignidade humana desponta no conceito da função social

(uma propriedade que não se exerce ‘contra todos’, mas que sirva a todos), e o

reconhecimento de um direito autônomo à moradia.

No direito comercial, a prevalência do consumidor (que é quem deve ser tutelado nas

relações de comércio) e não o proprietário (que é em relação a quem ele deve ser

tutelado).

No horizonte da psiquiatria, o reconhecimento do doente mental como um sujeito de

direitos, no bojo de uma política de cunho eminentemente antimanicomial.

No direito do trabalho, o reconhecimento da indignidade que equivale ao trabalho

escravo, a tutela do assédio moral (como limite à autoridade patronal) e os danos

coletivos por contratações irregulares –que ferem um sistema, não apenas direitos

individuais.

No direito administrativo, a transição do Estado supremo para o Estado público –que se

funda não mais na mera autoridade, mas no princípio da solidariedade (a coisa que é de

todos, para todos). Transparência e participação são regras indispensáveis à apropriação

pública do Estado e a desconstrução da rede de patrimonialismos e privilégios que o

marcaram por séculos.

A postura judicial que reconhece a possibilidade de se exigir políticas públicas

essenciais para a concretização dos direitos fundamentais, é que justamente confere

substância a essa publicização do Estado.

No direito penal, o impacto é também considerável e a transição hoje se verifica no

enorme hiato entre a jurisprudência dos tribunais superiores, que reconhece, ainda que

com certa hesitação, os padrões constitucionais, e a tradicionalista dos tribunais de

justiça, que a ignora por completo.

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São pontos dessa dissonância: o reconhecimento do princípio da insignificância (eis que

a punição por bagatela expõe de forma cruel o ínfimo valor da liberdade diante do

patrimônio), a proibição da inserção do condenado em regime mais gravoso por falta de

vaga no regime correto (a dignidade humana deve prevalecer sobre a cautela da

segurança pública), a individualização da pena (que é corolário da noção de dignidade),

o direito de estar presente à audiência e, entre tantos outros, o conceito de prisão

provisória como exceção no processo penal –fulminando-se, enfim, a arcaica noção de

garantia de ordem pública, medida de segurança herdada de um direito processual

autoritário e racista.

O reconhecimento da dignidade humana tem, assim, um efeito contundente sobre as

desigualdades do sistema, ainda que, por essência, sabe-se que elas jamais se

extinguirão do direito penal, cuja marca indistinta é a própria seletividade –a serpente

que só pica os pés descalços, como costuma lembrar Zaffaroni, com base em ditado

salvadorenho. Para Alessandro Baratta, inclusive, a situação é de outra ordem: “quanto

mais a sociedade é desigual, tanto mais ela tem a necessidade de um sistema de controle

social do desvio do tipo repressivo11”.

E o maior obstáculo a este reconhecimento, hoje, no âmbito do direito penal, se dá em

razão do massacre da criminonologia midiática, de que trata Zaffaroni12 –incensando o

perigo e estimulando fortemente, como convém a grandes corporações, a emergência de

um estado policial, ameaça direta à sobrevivência dos estados sociais. O impacto disso

sobre o julgar, infelizmente é assombroso13.

11 Criminologia crítica e crítica do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro. Ed. Revan, 1982, p. 206.

12 La cuestión criminal. Buenos Aires. Planeta, 4ª edição, 2012, p. 21613 Desenvolvi o tema na palestra “Mídia e Justiça: democracia interrompida e crescimento do estado policial”, em http://blog-sem-juizo.blogspot.com.br/2013/08/midia-e-justica-democracia-interrompida.html, consulta 24/04/14, às 19h30.

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A despeito de todas as contradições14, a valorização da dignidade humana e a

consequente luta contra a desigualdade são instrumentos indispensáveis para a principal

tarefa dogmática de reconstrução hoje no direito penal: a redução de danos.

Um direito penal mínimo, que seja em si mesmo a limitação do poder punitivo, é o

único que se compatibiliza com o estado democrático de direito, ou o que menos dele se

distancia.

A bem da verdade, o fundamento da legalidade já pressupõe em si mesmo a noção de

igualdade: a ideia de uma lei válida para todos, que limita as situações previstas como

crime e autoriza o poder punitivo, é a base da contraposição ao arbítrio15.

Mas esta concepção liberal da igualdade, que se realiza exclusivamente perante a lei

veio a ser superada pela emergência de Estados democráticos e sociais que projetam, em

suas Constituições, também um conteúdo material: a igualdade na lei (aquela que

vincula também o legislador) ou a igualdade através da lei (considerando indispensável

o seu papel para promovê-la).

Como afirma José Afonso da Silva, a igualdade constitui o signo fundamental da

democracia16. Para o autor, embora a Constituição de 1988 tenha disposto em seu art.

5º, caput, a igualdade perante a lei, previu, além disso, uma série de dispositivos para

expandir o próprio conceito da igualdade, inclusive impondo, dentro dos objetivos da

República, a redução das desigualdades sociais e regionais, bem como exigências de

justiça social entre os objetivos da ordem econômica17.

14 A respeito do papel do juiz, nas contradições próprias do direito penal, Eugenio Raúl Zaffaroni: “Es absurdo pretender que los sistemas penales respeten el principio de la legalidade, el de reserva, el de culpabilidade, el de humanidade y sobretodo, el de igualdad, cuando sabemos que, estruturalmenente, están armados para violarlos a todos. Lo que puede lograrse –y debe hacerse- es que la agencia judicial ponga em juego todo su poder em forma que haga descender hasta donde su poder lo permita el número e intensidade de essas violaciones, operando como contradicción dentro del mismo sistema penal y obteniendo de este modo uma constante elevación de los niveles de realización operativa real de esos princípios”. Em busca de las penas perdidas. Bogotá. Editorial Temis, 1993.

15 O pensamento que segue está deduzido no capítulo Princípio da Igualdade de meu Princípios Penais no Estado Democrático, Coleção Para Entender Direito, Estúdio Editores.Com, São Paulo, 201416 Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo. Ed. Malheiros, 28ª edição, 2007, p. 211

17 Op. Cit. p 211/2

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No mesmo sentido, Paulo Bonavides, para quem a igualdade é o centro medular do

estado social18 e é justamente o que permite materializar a liberdade. Com isso, “deixa

de ser a igualdade jurídica do liberalismo para se converter na igualdade material da

nova forma de Estado, ou seja, através da lei”19.

Isso implica dizer que o princípio da igualdade não pressupõe apenas a exclusão do

arbítrio e a aplicação igualitária da lei, como ainda, diante das discriminações

permitidas na própria Constituição, o propósito de igualizar, ou seja, tratar

desigualmente de forma a atingir situações de igualdade.

A primeira das arbitrariedades, com relevantes implicações na formação da clientela

penal, é justamente a seleção dos crimes e das penas, efetuadas pelo legislador. De seu

esquadro, permite-se visualizar ainda a inequívoca preponderância da tutela da

propriedade.

As distorções são evidentes, com predomínio da proteção do patrimônio sobre a vida, a

integridade física e a liberdade, de modo a colocar em xeque o próprio respeito à

dignidade humana.

Nesse sentido, colacionando exemplos de texto que já escrevemos:

“O furto qualificado pelo rompimento de obstáculo tem pena equivalente à lesão

corporal dolosa de natureza gravíssima (que gera, por exemplo, uma deformidade

permanente ou enfermidade incurável na vítima). A lesão dolosa, da qual resulta por

culpa a morte, tem apenamento proporcional ao roubo simples (sem arma nem concurso

de pessoas). Mas se a lesão deriva do próprio roubo –ainda que por culpa e não por dolo

do agente- a pena mínima é ainda maior do que a do homicídio doloso em sua forma

não qualificada. O constrangimento ilegal é crime de menor potencial ofensivo, ao qual

se pode aplicar tão-somente a pena de multa; mesmo com emprego de arma, a pena

máxima não ultrapassa a metade do mínimo cominado se o mesmo constrangimento,

desarmado, se dá com intuito de obter indevida vantagem econômica. O seqüestro é 18 Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Malheiros Editores, 4ª edição, 1993, p. 340.

19 Op. cit. p. 341

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crime menor, que comporta suspensão condicional do processo, salvo se com objetivo

de obter vantagem econômica no resgate, quando se transforma em crime hediondo20”.

A propriedade é o centro da tutela penal, mas a expressividade da proteção não alcança,

na mesma medida, o patrimônio público, sendo proporcionalmente mais tênues as

sanções quando a conduta é contra a administração.

O espectro dessa proteção, cujas normas principais datam da década de 1940, não

corresponde a um Estado democrático e social, em que até mesmo a propriedade

privada deve cumprir uma função social. Na prática, o sistema se inverte, porque é o

direito penal quem vem realizando uma função social para a propriedade.

Aplicar o princípio da igualdade, como vetor de correção ao sistema penal, inclusive

para a preservação da dignidade humana, significa, em grande medida, reduzir o

encarceramento dos crimes contra a propriedade.

Seria o caso, por exemplo, de exigir representação da vítima para os crimes sem

violência (como furto, receptação, apropriação indébita, estelionato), permitir a extinção

de punibilidade com a restituição do bem, incorporar o princípio da insignificância,

reduzir penas de furto simples para as hipóteses de transação penal, criar a figura do

roubo privilegiado, entre outras possíveis.

A seletividade, todavia, não se resume à previsão legal, tendo enorme impacto a ação

das agências executivas –principal executoras do poder punitivo. E nesse ponto, é

inequívoco que a população mais carente acaba por ser muito mais objeto de vigilância

do que outros estratos sociais, por diversos motivos, a começar pela maior intensidade

da fiscalização de rua.

Enquanto a criminalidade mais instruída e socialmente valorizada se aproveita das

fragilidades e da falta de estrutura da polícia judiciária (para uma investigação de crimes

de gabinete), a população mais vulnerável suporta o vigor e os excessos da polícia

militarizada (responsável pela vigilância de rua).

20 SEMER, Marcelo. “Projeções constitucionais para a reforma penal”, in Revista da Procuradoria Geral do Estado, n. 51/52, jan-dez/1999

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Os resultados são gritantes, considerando ainda que a expressiva maioria dos inquéritos

policiais deriva de prisões em flagrante realizadas pela Polícia Militar. A distorção é

decisiva para a formação dos selecionados pelo poder punitivo.

Diante do processo judicial, a desigualdade também tem sensível impacto no percurso

de encarceramento.

Se de um lado preservam-se, até hoje, distinções processuais herdadas do absolutismo

(como o foro privilegiado), de outro, a omissão com políticas públicas de assistência

jurídica, impedem uma luta efetiva com paridade de armas. Ou seja, a enorme diferença

de tratamento entre o órgão mantido para a acusação, em uma carreira tradicional,

longeva e bem distribuída e equipada como o Ministério Público, e o da defesa, em uma

instituição nova, ainda precária e que atinge não mais de um quinto das cidades

brasileiras, como a Defensoria Pública (que Bueno de Carvalho define como agente

igualizador21).

Não são poucas situações em que a paridade de armas se situa em um plano meramente

retórico –às vezes, até fora do simbólico, como acontece com normas, absolutamente

incongruentes com o sistema acusatório, que permitem que em audiências criminais

representantes do Ministério Público tomem assento ao lado do juiz, em posição

superior à defesa22.

Algumas demonstrações de distorção sócio-econômicas são preservadas no cotidiano

forense, como a exigência de comprovação de residência fixa e trabalho lícito para a

obtenção da liberdade provisória, prejudicando essencialmente cidadãos mais

vulneráveis, como desempregados ou moradores de rua.

Mandados de busca e apreensão domiciliar também exibem claras diferenças.

21CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a marteladas. Rio de Janeiro. Ed. Lumen Juris, 2013, p. 26.

22 Rubens CASARA explica o absurdo em “Um banquinho, o Ministério Público e a Constituição: em busca de um espaço público republicano”, in Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais v.13, n.151, p. 6-7, jun. 2005.

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Mandados coletivos para buscas em favelas e cortiços, extremamente comuns,

desrespeitam comando legal, que exige individualização da residência a ser vasculhada.

Mandados genéricos como esses, todavia, jamais se aplicam para buscas em todos os

apartamentos de um prédio ou casas de uma quadra inteira em bairro nobre. A tutela do

domicílio também é profundamente desigual.

E aqui retornamos à charge de Latuff, que expõe como certos direitos, ainda que

constitucionalmente assegurados (como é o caso da inviolabilidade do domicílio) são

entregues à própria sorte, com base em interpretações que privilegiam o senso comum, a

contínua sensação de perigo produzida pela mídia e uma dose significativa de

preconceito –uma morada que, afinal de contas, nada pode ser mais do que

armazenamento de materiais ou fortaleza de criminosos.

A ideia de recorrer continuamente ao expansionismo do direito penal como forma de

tutela ao vulnerável e recuperação da igualdade, encontra, todavia, sérias objeções.

Buscar restabelecer a isonomia, projetando mais e mais vigor no direito penal não deixa

de ser uma contradição com a ideia de limites como garantia. Como o são as propostas

de estender o rol de crimes hediondos, aumentar indiscriminadamente penas para crimes

de colarinho branco ou suprimir direitos de defesa em julgamento de poderosos.

Esta é, paradoxalmente, uma atividade prejudicial à própria igualdade.

Quanto mais direito penal, mais desigualdade, pois todos os avanços da repressão, todas

as novas interpretações restritivas, todas as fissuras nas garantias individuais, acabarão

por voltar-se à população mais vulnerável, destinatária, enfim, de grande parte da

atividade cotidiana da repressão, e com ainda menores chances de defesa.

A mais contundente crítica deste uso indevido do direito penal foi apresentada por

Maria Lúcia Karam, descortinando o caráter e o equívoco do que denominou esquerda

punitiva, afirmando que a pena, sendo na essência uma manifestação de poder, acabará

Page 15: A Serpente Que Só Pica Pés Descalços - Desigualdade e Direito Penal

por ser “prioritariamente dirigida aos excluídos, aos desprovidos deste poder”.

Aumentar sua incidência em nada lhes auxiliará23.

E aqui aportamos no lado reverso da crítica do cartunista, para concluir que a supressão

de direito dos mais bem tutelados, tampouco ajuda a colocar o direito penal em um pé

de igualdade.

A heterodoxia e a flexibilização de princípios básicos em julgamentos criminais de

poderosos não deve ser motivo de comemoração -como o resultado da ação penal 470 e

a ideia de que os braços do direito penal finalmente aportaram nos mais empoderados.

Primeiro, porque a seletividade também deita raízes na escolha desses alvos, como se vê

pela flutuação da jurisprudência. Depois porque a vulgarização das violências, ou a

fragilização das garantias, adquirem enorme probabilidade de se tornarem regras que se

espalham a outros públicos –como a falta de rigor na apreciação da prova ou o

acréscimo da pena para evitar prescrição.

Nesses momentos, em que o próprio direito penal parece perder o domínio dos fatos,

pouco há a se comemorar, eis que o que se enfraquece não é propriamente o direito de

punir, mas justamente os instrumentos aptos à sua limitação.

A diminuição da seletividade e, em especial, das desigualdades do direito penal, é mais

eficaz com a redução de seu âmbito, seja em relação aos crimes, seja em relação às

penas.

Não é a privacidade dos ricos que deve ser entregue para compensar a incolumidade do

patrimônio dos pobres; é a proteção dos indivíduos contra a opressão do poder que pode

permitir a redução dos danos.

A intervenção mínima ainda é o melhor antídoto às más consequências do sistema,

inclusive e principalmente a desigualdade.

23 “A esquerda punitiva”, in Discursos Sediciosos, número 1. Rio de Janeiro. Ed. Relume Dumará, Instituto Carioca de Criminologia, 1996.