a semiose da escrita e sua … victoria... · pontifÍcia universidade catÓlica de sÃo paulo...

177
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA Uma análise semiótico-sistêmica MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA SÃO PAULO 2011

Upload: ledieu

Post on 03-Oct-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Isabel Victoria Galleguillos Jungk

A SEMIOSE DA ESCRITA

E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

Uma análise semiótico-sistêmica

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO

2011

Page 2: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

3

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Isabel Victoria Galleguillos Jungk

A SEMIOSE DA ESCRITA

E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

Uma análise semiótico-sistêmica

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para a obtenção do título de Mestre

em Comunicação e Semiótica, sob

orientação da Profa. Dra. Maria Lucia

Santaella Braga.

São Paulo - 2011

Page 3: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

4

BANCA EXAMINADORA

Page 4: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

5

P ra Haresh, Diana e Arthur

Page 5: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

6

AGRADECIMENTOS

Cada realização é um mosaico único de inspiração, superação e

aprendizado, para o qual tantos contribuem de tantas formas. Esta pesquisa

não poderia ser diferente. E pela felicidade de ter chegado ao fim desta

jornada, agradeço sinceramente àqueles que a tornaram possível:

À professora e orientadora Lucia Santaella, com quem tanto aprendi,

pelo incentivo generoso e constante. Minha profunda admiração.

À professora e orientadora Leda Tenório da Motta, pela amizade que

me dedicou e pelo apoio inestimável. Minha eterna gratidão.

Ao professor Winfried Nöth, pelos textos e apontamentos

fundamentais para os rumos desta pesquisa. Ao professor Fernando

Andacht, pelo estímulo e sugestões valiosas durante a qualificação.

Aos professores do programa em Comunicação e Semiótica, Jorge

Albuquerque Vieira, por descortinar um mundo de possibilidades

epistemológicas; Ivo Assad Ibri, por compartilhar seu conhecimento em aulas

inspiradoras; e Arlindo Machado, pela ajuda e compreensão durante o

seminário de pesquisa. Ao professor Claudio César Montoto, por ter me

mostrado o caminho para este trabalho, ainda no curso de especialização.

À minha mãe, pela presença e colaboração incondicionais. A meu pai,

por praticar e me ensinar o significado da palavra resiliência.

A meu esposo e nossos filhos, pela ajuda carinhosa e paciência

sempre renovadas. À minha irmã, pelos ensinamentos em conversas

gratificantes.

A meus amigos e familiares, cujos nomes não cabem aqui, mas que

estão gravados em meu coração, por toda a ajuda e incentivo que de mil

maneiras fizeram tanta diferença.

A Deus, pois “é bom lembrar que cada uma das verdades científicas é

devida à afinidade da alma humana com a alma do universo, por imperfeita

que seja esta afinidade” (CP 5.47).

Ao CNPq, pela bolsa concedida que grandemente contribuiu para a

concretização deste projeto.

Page 6: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

7

“De fato, homens e palavras educam-se

mutuamente; cada aumento de informação humana

envolve e é envolvido por um aumento de informação das

palavras.”

“Todo pensamento se dá por meio de signos; e os

ignorantes também usam signos. Mas, talvez, eles

raramente pensem neles como signos. Fazê-lo é,

evidentemente, um segundo passo no uso da linguagem.”

Charles Sanders Peirce

(CP 5.313; 5.534)

Page 7: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

8

RESUMO

Com o advento da Internet e das tecnologias hipermidiáticas de

transmissão de texto, novas grafias de palavras do léxico estão se tornando

usuais, como forma de adaptação da linguagem escrita aos suportes digitais

e suas peculiaridades. Esta pesquisa tem como principal objetivo investigar

as manifestações e as potencialidades da palavra escrita a partir dessas

novas grafias caracterizadas por um grau considerável de hibridismo e

complexidade.

Parte-se do pressuposto de que a análise semiótica da palavra no

interior do sistema da língua e da palavra escrita reconfigurada na hipermídia,

dada a natureza eminentemente híbrida que adquire, pode ser facilitada pelo

uso da classificação dos signos idealizada por Charles S. Peirce, e da

distinção apontada entre a palavra como lei geral e a sua efetiva aplicação.

Visando ao exame teórico do contexto em que as mudanças têm

ocorrido, adotamos um enfoque sistêmico, tanto do sistema de escrita quanto

da hipermídia, segundo a Teoria Geral dos Sistemas, como elaborada por

Jorge A. Vieira. Questões concernentes aos desafios que esse novo tipo de

escrita representa para a escrita convencional são levantadas por meio de

bibliografia especializada sobre a linguagem verbal na hipermídia, auxiliar na

contextualização lingüística do problema.

O corpus constitui-se de exemplos práticos das transmutações da

natureza semiótica da escrita e das novas grafias. A análise do corpus é feita

por meio da aplicação dos conceitos semióticos, especialmente aqueles

extraídos da teoria e classificação dos signos operacionalizados em função

das necessidades que o objeto da pesquisa impõe.

Espera-se que os resultados da pesquisa nos levem a uma

compreensão criticamente fundada dos processos evolutivos da escrita.

Palavras-chave: semiótica peirceana; teoria sistêmica; escrita digital; novas

grafias.

Page 8: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

9

ABSTRACT

With the advent of Internet and hypermedia technologies for text

transmission, new spellings of words of the lexicon are becoming common as

a form of adaptation of written language to digital media and its peculiarities.

The main target of the present research is to investigate the manifestations

and potentials of the written word in these new spelling characterized by a

considerable degree of hybridism and complexity.

The starting point is the assumption that the semiotic analysis of the

word within the language system and of the written word reconfigured in

hypermedia, given its eminently hybrid features, can be facilitated by using

the classification of signs devised by Charles S. Peirce and by the distinction

drawn between the word as a general law and its effective application.

Aiming to examine the theoretical context in which changes have

occurred, a systemic approach to the writing system as well as to hypermedia

is adopted, according to the general systems theory as developed by Jorge A.

Vieira.

Questions concerning the challenges posed by this new kind of writing

to conventional writing are raised through specialized bibliography on verbal

language at hypermedia, auxiliary of the problem contextualization.

The corpus consists of practical examples of the transmutations of the

semiotic nature of writing and of new spellings. Corpus analysis is done by

means of semiotic concepts appropriately operationalized to the needs

required by the research object.

It is expected that the research results will lead to a critically founded

understanding of evolutionary processes of writing.

Keywords: peircean semiotics; systems theory; digital writing; new spellings.

Page 9: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

10

ABREVIATURAS UTILIZADAS

CP Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Hartshorne, C.; Weiss, P.

(Eds.) V. I-IV; BURKS, W. (ed) v. VII-VIII. Cambridge: Harward University

Press. A forma usual de citação dos Collected Papers é CP, seguido do

número do volume, ponto e o número do parágrafo.

SS Semiotic and Significs. The correspondence between Charles S. Peirce

and Victoria Lady Welby. Ed. Charles S. Hardwick. (1977) Indiana university

Press.

MS The Charles S. Peirce Papers. Peirce Edition Project, cf. Annotated

Catalogue of the Papers of Charles S. Peirce, Richard Robin, Amherst:

university of Massachussets Press, 1967.

W Writings of Charles S. Peirce, vols. 1 a 6. Edição cronológica. Peirce

Edition Project. Blomington: Indiana University Press, 1980-2000.

CLG Cours de linguistique générale. Ferdinand de Saussure (1906-1911),

organizado por C.Bally, A.Sechehaye, e A.Riedlinger, publicado em 1915

(1ª.ed.). Tradução para o português de A.Chelini, J.P. Paes, I.Blikstein. São

Paulo, Cultrix, 2006.

Page 10: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

11

SUMÁRIO

RESUMO, 8 ABSTRACT, 9 ABREVIATURAS, 10 INTRODUÇÃO, 14 Capítulo 1 - TEORIA PEIRCEANA

1. AS CATEGORIAS E A TEORIA GERAL DOS SIGNOS ................................................... 18

1.1. Primeiridade, 22

1.2. Secundidade, 24

1.3. Terceiridade, 24

1.4. Interdependência entre as categorias, 26

2. O CONCEITO DE SIGNO .................................................................................................. 27

2.1. Representamen, 29

2.2. Objeto do signo, 30

2.3. Interpretante, 31

3. CLASSIFICAÇÃO DOS SIGNOS ...................................................................................... 34

3.1. As três tricotomias, 34

1ª. tricotomia: o signo em relação a si mesmo, 35

2ª. tricotomia: a relação signo-objeto dinâmico, 36

3ª. tricotomia: a relação signo-interpretante final, 39

3.2. As dez classes de signos, 41

4. A SEMIOSE OU AÇÃO DO SIGNO .................................................................................. 45

4.1.Relações de implicação entre os signos, 47

Capítulo 2 - MANIFESTAÇÕES SÍGNICAS DA PALAVRA

1. A PALAVRA: SIGNO LINGÜÍSTICO POR EXCELÊNCIA ................................... 51

1.1. A palavra multifacetada, 55

2. A PALAVRA COMO LEGISSIGNO ...................................................................... 57

2.1. Convenção: fundamento do legissigno, 57

2.2. Legissigno e objeto dinâmico, 58

2.3. Objeto dinâmico, necessidade e a motivação da palavra, 59

Page 11: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

12

2.4. Onipresença e recursividade das categorias, 61

2.5. Combinação de signos: necessidade lógica, 62

2.6. Legissignos indiciais, 64

2.7. Legissignos simbólicos, 68

2.8. Legissignos icônicos, 75

3. A PALAVRA COMO SINSIGNO ........................................................................... 80

4. A PALAVRA COMO QUALISSIGNO .................................................................... 84

Capítulo 3 - LINGUAGEM VERBAL: CONJUNTO DE SISTEMAS SÍGNICOS 1. VISÃO SISTÊMICA ............................................................................................... 88

1.1. Ontologia Sistêmica e Semiótica, 88

1.2. Sistemas abertos e parâmetros sistêmicos fundamentais, 92

1.3. Evolução da linguagem verbal, 95

2. UM CONJUNTO SISTÊMICO VERBIVOCOVISUAL ........................................... 97

2.1. Sistemas sígnicos: as três matrizes, 101

2.2. Funções dos signos nos sistemas de escrita, 105

Capítulo 4 - ESCRITA E HIPERMÍDIA

1. TECNOLOGIA E HIPERMÍDIA ........................................................................... 115

2. HIPERMÍDIA: SISTEMA AMBIENTE DA ESCRITA ........................................... 117

3. HIPERMÍDIA E HIPERTEXTO ............................................................................ 118

4. SUPORTE MULTIDIMENSIONAL DA ESCRITA ............................................... 122

5. LINGUAGEM VERBAL E ESCRITA HIPERMIDIÁTICA ..................................... 125

6. ICONICIDADE DA ESCRITA EM AMBIENTES HIPERMIDIÁTICOS ................. 129

Capítulo 5 - RECONFIGURAÇÃO DA ESCRITA: NOVAS GRAFIAS 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................. 135

2. PRECURSORES ................................................................................................ 138

2.1. Edgar Allan Poe, 139

2.2. Stéphane Mallarmé, 142

2.3. Poesia concreta, 142

2.4. E-poetry, 146

Page 12: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

13

3. NOVAS GRAFIAS .............................................................................................. 149

3.1. Economia de caracteres, 151

3.2. Omissão vocálica, 151

3.3. Grafia silábica, 152

3.4. Sinais semográficos, 154

3.5. Rébus e grafias híbridas, 154

3.6. Números e letras, 155

4. SOBRE OS EMOTICONS .................................................................................. 156

5. CONEXÃO LEXICAL: A PALAVRA PERFEITA .................................................. 160

Capítulo 6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. ALGUMAS CONCLUSÕES ................................................................................ 163

2. O FUTURO DA ESCRITA ................................................................................... 168

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 172

Page 13: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

14

INTRODUÇÃO

A proposta do presente estudo é lançar luz sobre o fenômeno

multifacetado da reconfiguração da escrita em ambientes hipermidiáticos.

A linguagem verbal passa por um momento único. As inovações nos

suportes da escrita determinam mudanças sensíveis na grafia convencional,

em função de princípios como economia, velocidade, oralidade, que antes

ficavam restritos à linguagem verbal oral, e que vão sendo incorporados à

linguagem verbal escrita com rapidez crescente. Questões como a natureza

dos suportes e do próprio sistema de escrita não se fazem esperar.

Como abordar um fenômeno com implicações de tamanha magnitude

para o sistema de escrita atual? A metodologia foi um grande desafio neste

estudo. Como concatenar a miríade de aspectos e relações envolvidas

buscando clareza sem deixar de contemplar detalhes significativos foi

igualmente um caminho árduo.

O primeiro passo foi adotar a semiótica idealizada por Charles

Sanders Peirce, dado o pressuposto de que, devido ao seu poder de análise

dos mais diversos tipos de signos, ela poderia revelar sutilezas e diferenças

entre a palavra como lei geral e a palavra escrita que, via de regra, passam

despercebidas. Para a consecução desse fim, buscou-se uma definição de

palavra como unidade autônoma, possibilitando sua análise pela aplicação

das classes de signos e suas relações semiósicas.

A contribuição de Peirce para a linguagem verbal é impar. Seus

exemplos e aplicações da teoria semiótica ao signo lingüístico (que à sua

época ainda estava por receber essa denominação) são incontáveis, e seu

valor, inaquilatável. No entanto, seu interesse não estava na estrutura

gramática, tendo ele deixado essa tarefa a futuros pesquisadores.

“Peirce interessava-se intensamente por língua e gramática, mas não pode

ser considerado um lingüista no sentido moderno. Por isso, mesmo quando

ele fala de palavras ou de significado ao explicar as conseqüências de sua

Page 14: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

15

teoria dos signos e interpretantes, Peirce não investiga a estrutura gramática

(...). Não é de surpreender, portanto, que ele tenha deixado a tarefa de

aplicar e ampliar sua teoria a campos como a lingüística para futuras

gerações de pesquisadores.” (SHAPIRO 1988: 124)

A semiótica peirceana foi concebida com um caráter extremamente

geral e abstrato, pois as categorias são onipresentes, e um mesmo signo

pode exibir uma pluralidade de faces ao mesmo tempo. Isso torna muito difícil

a tarefa de aplicá-la com proveito a processos concretos de linguagens, e

determina a necessidade de estabelecer os caminhos pelos quais as

aplicações se fazem possíveis.

Em contrapartida, as peculiaridades hipermidiáticas pediam uma

reflexão cuidadosa, tanto quanto as peculiaridades sígnicas dos sistemas de

escrita, o que não poderia ser feito por intermédio somente da teoria

peirceana. No entanto, o ecletismo teórico neste caso, não só é bem vindo

como é necessário para abordar particularidades impossíveis de analisar

somente sob conceitos gerais e abstratos como os de Peirce, e para

conhecer a semiose específica que se busca compreender.

“É evidente que para tudo isso, o mapa lógico peirceano precisa,

veementemente necessita, da interação com outras teorias específicas da

semiose sob exame (o ecletismo teórico, quando se trabalha com os

diagramas de Peirce, é não apenas bem-vindo, mas também indispensável).

Além disso, como todo mapa, este também precisa do contato estreito com

seu objeto; exige a familiaridade e intimidade do analista com a semiose

específica que ele quer compreender.” (SANTAELLA 1992a: 200)

A visão peirceana, em todas as áreas em que seu pensamento se

desenvolveu, é sistêmica, os conceitos formando uma rede complexa de

interconexões, o que possibilitou sua ponte com os conceitos da Teoria Geral

dos Sistemas, conforme elaboração de J.A.Vieira. Na intersecção entre esses

dois quadros teóricos, a hipermídia e os sistemas de escrita puderam ser

abordados de forma a iluminar o contexto das transformações em curso.

Page 15: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

16

Por outro lado, a semiótica peirceana não estabelece relações

estanques, já que um continuum de gradações, regressões e progressões

infinitas são justamente o que seu arcabouço filosófico busca evidenciar.

Coerentemente, optamos por justapor a seus conceitos uma classificação

dos sistemas de escrita em função da natureza de seus signos elaborada por

R.Bringhurst, que além de estar em prefeita consonância com as tipologias

mais conhecidas, se apresenta de forma diagramática e contínua.

Os conceitos peirceanos, ao serem aplicados, apresentam um grau de

dificuldade diretamente proporcional ao nível de esclarecimento a que se

pretende chegar na análise de um determinado fenômeno, esforço

certamente recompensado pelo potencial que uma teoria dessa envergadura

representa para o progresso epistemológico humano.

Por meio desse caminho metodológico, acreditamos então, ter

abordado os principais fatores e características das novas formas de

utilização da escrita em contexto hipermidiático, que exigiram, para sua

compreensão, uma análise cuidadosa de todos os seus aspectos envolvidos:

semióticos, sistêmicos e lingüísticos.

No primeiro capítulo, a teoria peirceana é apresentada com vistas à

elucidação dos conceitos teóricos que serão utilizados nas análises. Os

conceitos da semiótica são apresentados dentro do quadro categorial de

Peirce e no contexto de sua arquitetura filosófica. Ao final, diagramas

explicativos do processo de semiose foram elaborados para facilitar sua

visualização e compreensão.

Já no segundo capítulo, as manifestações sígnicas da palavra como

unidade autônoma são analisadas segundo o quadro conceitual da semiótica,

a fim de estabelecer a distinção entre a palavra como lei geral e a sua efetiva

aplicação, bem como demonstrar sua capacidade de se manifestar

Page 16: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

17

iconicamente, motivadamente, desmontando antigos conceitos e

preconceitos oriundos da tradição saussureana.

No terceiro capítulo, é enfocada a linguagem verbal como conjunto

de sistemas sígnicos. Conceitos da Teoria Geral dos Sistemas são

expostos e aplicados para a compreensão das inter-relações entre os

diversos sistemas sígnicos que compõem o todo da linguagem verbal e de

sua evolução. As funções dos signos no interior dos sistemas de escrita são

consideradas em detalhes.

O quarto capítulo, a fim de contextualizar as mudanças que se

processam, trata das relações entre escrita e hipermídia sob diversos

ângulos: tecnologia, sistema ambiente, sistema hipertextual, suporte

multidimensional. Ao final, as relações entre linguagem verbal e escrita

hipermidiática são estabelecidas, e sua crescente iconicidade é analisada.

No quinto capítulo, a reconfiguração da escrita em novas grafias é

considerada sob a influência de alguns fatores determinantes, alguns

precursores relevantes são apontados, e as novas grafias e suas

peculiaridades são exemplificadas e teoricamente analisadas.

No sexto e último capítulo, considerações finais são tecidas;

algumas conclusões são depreendidas do percurso de estudo e análise, bem

como são apontadas possíveis tendências do desenvolvimento da escrita no

futuro.

Este estudo busca, dessa forma, elucidar as novas reconfigurações da

escrita desvendando o funcionamento de seus processos sígnicos, aliado a

um enfoque sistêmico e lingüístico. Sem a pretensão de esgotar o assunto,

esperamos que seus resultados sejam frutíferos para outros pesquisadores

tanto quanto foi percorrer o caminho de sua pesquisa.

Page 17: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

18

Capítulo 1 - TEORIA PEIRCEANA

“Tento uma análise do que aparece no mundo.

Aquilo com que estamos lidando não é metafísica: é logica, apenas.” (CP 2.84)

“A lógica deve, para a realização de sua idéia seminal, ser l’art de penser.

L’art de penser! Que sublime concepção! (CP 4.46)

1. AS CATEGORIAS E A TEORIA GERAL DOS SIGNOS

Para compreender a lógica das ciências e seus métodos de raciocínio,

foco dos estudos peirceanos (SANTAELLA 2001:32), toda sua Lógica foi

concebida dentro de uma teoria geral dos signos ou Semiótica (SANTAELLA,

1983:20), que em sua arquitetura científico-filosófica1, mantinha uma posição

de dependência em relação à Faneroscopia2, dela extraindo todos os seus

princípios. Seu sonho era elaborar

“uma filosofia como aquela de Aristóteles, quer dizer, delinear uma teoria tão

abrangente que, por um longo tempo, o trabalho inteiro da razão humana, na

filosofia de todas as escolas e espécies, na matemática, na psicologia, nas

ciências físicas, na história, na sociologia, e em qualquer outro departamento

que possa haver, deve aparecer como o preenchimento de seus detalhes. O

primeiro passo para isso é encontrar conceitos simples, aplicáveis a

qualquer objeto.” (CP 1,p.vii)

Nessa medida, para compreendermos a Semiótica, faz-se necessário

compreender primeiramente a Faneroscopia, como ciência da observação,

geral e abstrata, dedicada a estudar o phaneron, ou fenômeno, e cuja função

1 Peirce dialogou com toda a tradição filosófica ocidental para construir uma abrangente e coerente arquitetura  classificatória  das  ciências  e  de  suas  inter‐relações.  Conseqüentemente,  para  ele,  as ciências podiam  ser divididas em  ciências 1) da descoberta, 2) da digestão e 3) aplicadas, as mais gerais  fornecendo princípios norteadores para as mais específicas, e estas, por sua vez,  fornecendo dados para as mais gerais. As ciências da descoberta (Matemática, Filosofia e Ideoscopia) estão num tal  nível  de  generalidade,  que  são  consideradas  ciências  da  observação.  Dentro  da  Filosofia, encontraremos  a  Faneroscopia  juntamente  com  as  Ciências  Normativas  (Estética,  Ética  e  Lógica considerada como Semiótica) e a Metafísica (SANTAELLA 1983:23‐27).  2  Faneroscopia  foi  o  nome  dado  por  Peirce  a  sua  Fenomenologia  por  volta  de  1902,  quando  da construção arquitetônica de seu sistema (SANTAELLA 1983:27). 

Page 18: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

19

era a de “realizar a mais radical análise de todas as experiências possíveis”

(SANTAELLA 1983:28), já que Peirce entendia fenômeno3 no sentido mais

amplo que se pode conceber, simplesmente como tudo aquilo que se

apresenta à percepção e à mente, independentemente de ser um evento

externo ou uma idéia, sonho ou abstração, sendo a primeira tarefa da

Filosofia, e, portanto, da Faneroscopia, a de desenvolver uma doutrina de

categorias formais, gerais e abstratas, absolutamente universais, no sentido

de que fosse possível observá-las em todo e qualquer fenômeno, sem excluir

nem mesmo conflitar com outras tantas categorias materiais e particulares

possíveis de ser encontradas em todas as coisas.

Tais categorias não poderiam brotar nem da língua, como as de

Aristóteles, nem da lógica da proposição, como as de Kant (SANTAELLA

1983: 28; CP 5.294), mas somente do exame agudo da própria experiência.

Para Peirce,

“... a palavra Categoria possui substancialmente o mesmo significado em

todos os filósofos. (...) a categoria é um elemento dos fenômenos com uma

generalidade de primeira ordem. Segue-se daí que as categorias são poucas

(...). A tarefa da fenomenologia é traçar um catálogo de categorias, provar

sua eficiência, afastar uma possível redundância, compor as características

de cada uma e mostrar as relações entre elas. (...) As categorias universais,

de seu lado, pertencem a todo fenômeno, talvez sendo uma mais

proeminente que a outra num aspecto do fenômeno, mas todas pertencendo

a qualquer fenômeno.” (CP 5.43)

Peirce chegou à conclusão que toda a diversidade fenomênica era

redutível a três, e não mais que três modos de ser, que, sendo universais,

3 O fenômeno pertence à categoria do real, do existente, da secundidade, daquilo que pode forçar‐se sobre  nossa  percepção  a  despeito  daquilo  que  sobre  ele  possamos  pensar,  mas  que  pode  ser investigado  pela  nossa  mente.  Para  Peirce:  “Há  coisas  Reais,  cujos  caracteres  independem  por completo  de  nossas  opiniões  a  respeito  delas;  esses  Reais  afetam  nossos  sentidos  segundo  leis regulares e conquanto nossas sensações sejam tão diversas quanto nossas relações com os objetos, poderemos,  valendo‐nos  das  leis  de  percepção,  averiguar,  através  do  raciocínio,  como  efetiva  e verdadeiramente  as  coisas  são;  e  todo homem, desde que  tenha experiência bastante e  raciocine suficientemente acerca do assunto, será  levado à conclusão única e Verdadeira. A concepção nova que se introduz é a de Realidade.” (CP 5.384)  

Page 19: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

20

deveriam ser observáveis em todo e qualquer fenômeno, ainda que em

diferentes graus de proeminência:

“Minha opinião é que existem três modos do ser. Afirmo que podemos

observá-los diretamente nos elementos de tudo que está a qualquer

momento presente à mente de qualquer maneira. São o ser da possibilidade

qualitativa positiva, o ser do fato atual, e o ser da lei que governará os fatos

no futuro.” (CP 1.23)

Esses modos de ser são o fundamento de uma lógica ternária cujas

categorias são tão abstratas que podem ser consideradas intangíveis,

simples matizes de conceitos4, mas que, no entanto, ganham força nas

relações de interdependência em que estão envolvidas, gerando uma

combinatória que, na Semiótica, dá origem às diversas classificações de

signos.

Esses três elementos formais, no seu grau de abstração máxima,

devem ser entendidos como mônada, relação diádica e relação triádica,

respectivamente:

“Terceiridade, no sentido de categoria é o mesmo que mediação. Por essa

razão, pura díada é um ato de vontade arbitrária ou força cega; pois se

houver alguma razão ou lei governando-a [a díada], ela [a razão ou lei] se

constitui em mediação [da díada] entre os dois sujeitos trazendo a tona sua

conexão. A díada é um fato individual, já que ela é existencialmente, não

possuindo qualquer generalidade. O ser de uma qualidade monádica é uma

mera potencialidade, sem existência. Existência é puramente diádica.” (CP

1.328)

Por esses motivos, buscando expressar conceitos sem precedentes,

que se constituem em substratos lógico-formais universais, Peirce batizou-os

como categorias ceno-pitagóricas (CP 2.87), em virtude de suas conexões

com os números, chamando-as de primeiridade (firstness), secundidade

(secondness) e terceiridade (thirdness). Em suma,

4  “Talvez nem se devesse chamar as categorias de concepções; são tão intangíveis que mais parecem timbres ou matizes dos conceitos...” (CP 1.353) 

 

Page 20: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

21

“Por serem tão universais a ponto de se presentificarem em tudo e qualquer

coisa, Peirce resolveu esvaziar os termos de qualquer conteúdo material,

reduzindo-os à sua natureza puramente lógica. Daí as categorias passarem

a ser designadas por (1) primeiridade = mônada, (2) secundidade = relação

diádica e (3) terceiridade = relação triádica. Em cada fenômeno particular, a

roupagem aparente dessas categorias se modifica, mas o substrato lógico

sempre permanece.” (SANTAELLA 2001:15)

O fundamento para a compreensão das categorias está, portanto, na

compreensão do substrato lógico-formal de cada uma delas, substratos

esses que se mantêm inalterados, apesar da “roupagem” de que se revestem

quando observados na variabilidade material de cada fenômeno específico.

Para Peirce, a lista de categorias “é uma tábua de concepções extraída da

análise lógica do pensamento, aplicáveis ao ser” (CP 1.300). Dessa forma,

podemos observar que

“O primeiro esta aliado às idéias de acaso, indeterminação, frescor,

originalidade, espontaneidade, potencialidade, qualidade, presentidade,

imediaticidade, mônada... O segundo às idéias de força bruta, ação- reação,

conflito, aqui e agora, esforço e resistência, díada... O terceiro esta ligado às

idéias de generalidade, continuidade, crescimento, representação,

mediação, tríada...” (SANTAELLA 2000:8)

As categorias poderão ser, então, compreendidas em si mesmas,

como modos de apreensão dos fenômenos, a saber: qualidade de sentimento

(primeiridade), ação e reação (secundidade) e mediação (terceiridade), ou

ainda como modos de ser, tanto dos fenômenos do universo físico, bem

como da mente ou consciência, como é possível observar nas passagens a

seguir:

“Peirce concluiu que tudo que nossa mente é capaz de apreender, tudo que

aparece à consciência, assim o faz numa gradação de três e não mais do

que três elementos formais: (1) qualidade de sentimento, (2) ação e reação e

(3) mediação. Suas conclusões, contudo, foram ainda além disso. Esses

modos de apreensão não são, para ele, apenas elementos presentes no ato

de apreender os fenômenos, e, portanto, fatores devidos à natureza peculiar

da nossa mente, mas são também elementos formais de todo e qualquer

Page 21: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

22

fenômeno (...) Nos fenômenos, a gradação dos elementos se expressa

como: (1) qualidade, (2) reação, (3) representação.(...)

Se tomarmos o acaso do universo físico, como um outro exemplo, nele, as

categorias aparecerão sob a forma de (1) acaso, (2) leis mecânicas e (3) a

tendência evolutiva do universo para adquirir novos hábitos.” (SANTAELLA

2001:15)

“Aqui, portanto, temos indubitavelmente três elementos radicalmente

diferentes da consciência, só estes e nenhum outro. E eles estão

evidentemente ligados às idéias de um-dois-três. Sentimento imediato é a

consciência do primeiro; o sentido da polaridade é a consciência do

segundo; e consciência sintética é a consciência do terceiro ou meio.” (CP

1.382)

As categorias peirceanas não são, dessa forma, noções estáticas ou

terminais; elas são dinâmicas e interdependentes, formais, onipresentes e,

portanto, universais. Assim, “não substituem, não excluem, nem entram em

atrito com a infinita variedade de outras tantas categorias materiais e

particulares que podem ser encontradas em todas as coisas” (SANTAELLA

2001: 36).

1.1. Primeiridade

A categoria da primeiridade também foi chamada de Presentidade

(presentness, CP 5.44), bem como de Originalidade (CP 2.89) ou Oriência. A

primeiridade é o modo de ser daquilo que é tal como ele é, sem referência a

qualquer outra coisa (CP 8.328). Essa pura qualidade positiva é o primeiro

modo de ser, e enquanto tal, está presente em todo e qualquer fenômeno. É

o ser da possibilidade qualitativa positiva (SANTAELLA 2001: 35; CP 1.304),

é mera potencialidade (CP 1.328), e, portanto, originalidade e liberdade.

“Primeiridade é a categoria que dá à experiência sua qualidade distintiva,

seu frescor, originalidade irrepetível e liberdade. Não liberdade em relação a

uma determinação física, pois que isso seria uma proposição metafísica,

mas liberdade em relação a qualquer elemento segundo.” (SANTAELLA

1983:50)

Page 22: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

23

Essa qualidade monádica do fenômeno é difícil de ser percebida, uma

vez que ao pensarmos, já não é mais possível captá-la em sua

imediaticidade, já que pensamento é mediação (SANTAELLA 1983: 43). Para

captá-la é preciso suspender o fluxo do pensamento, estar com a consciência

aberta, porosa, disponível para aquilo que a ela se apresenta sem relação

com nada mais. Peirce diz que o modo como o artista vê o mundo é aquele

capaz de captar as qualidades do mundo fenomênico (CP 5.41), e afirma que

a pura qualidade de sentimento que experienciamos quando estamos com a

percepção completamente aberta ao fenômeno é a representante psíquica da

primeiridade.

“Quando algo se apresenta ao espírito, qual é a primeira característica que

se nota (...)? A sua presentidade, certamente. (...) O presente é o que é, não

determinado pelo ausente, passado e futuro. É como tal, ignorando

totalmente qualquer outra coisa. (...) Imaginemos, se quisermos, uma

consciência onde não existe nenhuma comparação, relação, nenhuma

multiplicidade reconhecida (uma vez que partes não seriam o todo),

nenhuma mudança, nenhuma imaginação de qualquer modificação daquilo

que está positivamente lá, nenhuma reflexão, - nada além de uma simples

característica. Tal consciência pode ser simples odor, por exemplo, essência

de rosas; ou uma contínua dor de cabeça, infinita (...). Em suma, qualquer

qualidade de sentimento, simples e positiva, preenche a nossa descrição

daquilo que é tal como é, absolutamente sem relação com nenhuma outra

coisa. A qualidade de sentimento é a verdadeira representante psíquica da

primeira categoria do imediato em sua imediaticidade, do presente em sua

presentidade.” (CP 5.44)

Como exemplo de uma qualidade em si mesma, um poder ser não

necessariamente realizado (CP 1.303), pura primeiridade, podemos pensar “a

mera qualidade em si mesma da vermelhidão, sem relação com nenhuma

outra coisa, antes que qualquer coisa no mundo seja vermelha” (SANTAELLA

2001:35), lembrando que uma qualidade em si nunca é objeto de

observação; ela é produto de reflexões lógicas:

“Uma qualidade, como tal, nunca é objeto de observação. Olhando, vemos

que uma coisa é azul ou verde, mas a qualidade de ser azul e a qualidade

de ser verde não são coisas que possamos ver; são produtos de reflexões

lógicas.” (CP 5.369)

Page 23: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

24

1.2. Secundidade

Assim como as outras, esta categoria recebeu diferentes nomes ao

longo da obra de Peirce, tais como Conflito (CP 5.45), Obsistência (CP 2.89),

Binariedade (CP 2.79).

“Obsistência (sugerindo obviar, objeto, obstinado, obstáculo, insistência,

resistência, etc.) é aquilo no que a secundidade difere da primeiridade; ou é

aquele elemento que, tomado em conexão com a Originalidade, faz de uma

coisa aquilo que uma outra a obriga a ser.” (CP 2.89)

Onde há um fenômeno, há uma qualidade (primeiridade) que não é

senão parte desse fenômeno, e que para ganhar existência tem de,

necessariamente, incorporar-se, “materializar-se” num singular. É nesta

corporificação que se dá a secundidade, já que existência é puramente

diádica (CP 1.328). A díada é, portanto, um “fato individual, existencial; não

tem generalidade” (CP 1.328), sendo “a ação mútua de duas coisas sem

relação com um terceiro, ou medium, e sem levar em conta qualquer lei da

ação” (CP 1.322), isto é, “sem o governo da camada mediadora da

intencionalidade, razão ou lei” (SANTAELLA 1983:51). Nesse sentido, temos

como exemplo, “a qualidade sui generis do vermelho no céu de um certo

entardecer de outubro” (SANTAELLA 2001: 35).

Para a consciência, que está em constante reagir com o mundo, o

aspecto diádico de todo fenômeno ou secundidade é o momento da surpresa

(CP 5.52), do choque, do conflito. É quando, inesperadamente, algo diferente

de nossas expectativas se força sobre nossa percepção.

1.3. Terceiridade

Como terceiridade, no sentido categorial, é o mesmo que mediação

(CP 1.328), ela também foi chamada de Transuasão, no sentido de

“modificação da primeiridade e da secundidade” (CP 2.89), já que

terceiridade é o modo de ser daquilo que coloca em relação recíproca um

primeiro e um segundo “numa síntese intelectual” ou “elaboração cognitiva”.

(SANTAELLA 2001: 51). Dessa forma, é possível observar que, assim como

Page 24: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

25

a primeiridade sempre está contida na secundidade, ambas, primeiridade e

secundidade estão sempre presentes na terceiridade.

De fato, a forma mais típica da terceiridade encontra-se na noção do

signo. O signo é, portanto, uma relação triádica, na qual a ação do signo ou

semiose, que é a ação de ser interpretado em outro signo, realiza-se.

“A forma mais simples de terceiridade é a noção de signo. Se o universo do

signo é o território legítimo da semiótica, esta já tem início dentro da própria

fenomenologia, ou mais precisamente, a terceira categoria fenomenológica

já é uma categoria semiótica.” (SANTAELLA 2001: 36)

E como Peirce defende a idéia de que não há pensamento sem signos

(CP 5.283), e isto equivale a dizer que pensamento é representação, a

categoria da terceiridade é o modo de ser da mente, do pensamento, enfim,

de toda inteligência:

“Então, estes são esses três modos de ser: primeiro, o ser de um

sentimento, em si mesmo, não ligado a qualquer sujeito, que é uma mera

possibilidade atmosférica, uma possibilidade flutuando in vacuo, não racional

porém capaz de racionalização; segundo, o ser que consiste na arbitrária e

bruta ação sobre outras coisas, não somente irracional, mas também anti-

racional, já que racionalizá-lo seria destruir seu ser; e terceiro, há uma

inteligência viva da qual toda realidade e todo poder são derivados; que é

necessidade e necessitação racionais.” (CP 6.342)5

A categoria da terceiridade pode, ainda, ser considerada a categoria

do próprio homem, já que em mais de uma passagem, Peirce afirmou que o

homem é signo, “pois o homem é o pensamento” e o pensamento é signo

(CP 5.314), sendo os signos as únicas coisas com as quais um ser humano

pode ter qualquer relação.

“Signos, as únicas coisas com as quais um ser humano pode, sem com isso

inferiorizar-se, admitir ter qualquer relação, sendo ele mesmo um signo, são

triádicos; uma vez que um signo denota um sujeito, e significa uma forma de

fato, que posteriormente ele conecta com o primeiro.” (CP 6.344)

5 No original: “... which is rational necessity and necessitation.” (CP 6.342) 

Page 25: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

26

1.4. Interdependência entre as categorias

As categorias formam uma tríade lógica, invariavelmente

interdependentes umas das outras. Isso implica dizer que toda vez que nos

referirmos a alguma das categorias, podemos supô-la sem as demais, no

entanto, sem poder dissociá-la completamente das outras duas. Da mesma

forma, as categorias não podem ser distinguidas totalmente umas das outras.

O princípio a determinar a lógica das categorias é o principio da

prescisão. Peirce fala em graus de separabilidade de uma idéia em relação a

outra, constituindo-se a prescisão no grau de separabilidade a elas aplicável,

pelo qual a “categoria do primeiro pode ser prescindida do segundo e

terceiro, e o segundo prescindindo do terceiro. Mas o segundo não pode ser

prescindido do primeiro, nem o terceiro do segundo” (CP 1.353). Essas

relações de prescisão entre as categorias, por outro lado, evidenciam um

crescente de complexidade à medida que o primeiro, necessariamente, se

faz presente no segundo, e o primeiro e o segundo no terceiro,

conseqüentemente. Peirce dá exemplos claros de como manejar a

dependência de uma categoria em relação a outra:

“Na minha primeira tentativa de trabalhá-las [as categorias] lancei mão de

três graus de separabilidade de uma idéia em relação a outra. Em primeiro

lugar, duas idéias podem estar tão pouco ligadas que uma pode achar-se

presente à consciência como imagem que de forma alguma conterá a outra;

neste sentido, podemos imaginar vermelho sem imaginar azul e vice-versa;

podemos também imaginar som sem melodia, mas não melodia sem som.

Chamo esta espécie de separação de dissociação. Em segundo lugar,

mesmo em casos em que duas concepções não possam ser separadas na

imaginação, podemos freqüentemente supor uma sem a outra, assim

podemos supor um espaço não colorido, embora não possamos dissociar o

espaço da cor. Chamo este modo de separação de prescisão. Em terceiro

lugar, mesmo quando um elemento supõe o outro, podem distinguir-se

muitas vezes. Assim, mais alto supõe mais baixo, mas pode-se distinguir o

mais baixo do mais alto. É a distinção. Ora as categorias não podem ser

dissociadas umas das outras na imaginação (nem das outras idéias).” (CP

1.353)

Page 26: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

27

Em outra passagem, Peirce esclarece esse tipo de separação mental,

a chamada prescisão, em termos de atenção e negligência:

“um tipo particular de separação mental, nomeadamente, aquele por atenção

a um ponto e negligência em relação a outro. Aquele ao qual atenta-se é

chamado de prescindido; e aquele que é negligenciado é dito abstraído. (...)

Atenção é uma concepção definida ou suposição de um elemento da

consciência, sem nenhuma suposição positiva da outra.” (W1:518 [1866])

Dessa forma, se por um lado as categorias são indissociáveis,

interdependentes, é justamente neste sutil grau de separabilidade a elas

aplicável, que l’art de penser ganha força, força na qual está assentado todo

o edifício filosófico de Peirce, sua classificação das ciências e,

conseqüentemente, sua lógica ou semiótica e toda a classificação dos

signos.

2. O CONCEITO DE SIGNO

A Faneroscopia define terceiridade como a categoria da generalidade,

continuidade, crescimento e inteligência, já que ela pode ser entendida como

o modo de ser daquilo que coloca em relação um primeiro e um segundo

“numa síntese intelectual, [que] corresponde à camada de inteligibilidade, ou

pensamento em signos, através da qual representamos e interpretamos o

mundo” (SANTAELLA 1983: 51).

Na Semiótica ou Lógica, que tem por função classificar e descrever

todos os tipos de signos logicamente possíveis (SANTAELLA 1983: 29),

encontramos a forma mais simples de terceiridade, a noção de signo, já que

ele se constitui numa relação triádica, na qual a ação do signo ou semiose,

que é a ação de ser interpretado em outro signo, realiza-se.

Conseqüentemente, o signo é definido como uma estrutura

irredutivelmente triádica formada pelo representamen, pelo objeto, e pelo

interpretante do signo.

“Um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo,

representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa

pessoa, um signo equivalente, ou talvez, um signo mais desenvolvido. Ao

Page 27: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

28

signo assim criado, denomino interpretante do primeiro signo. O signo

representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos

os seus aspectos, mas com referência a um tipo de idéia que eu, por vezes,

denominei fundamento do representamen.” (CP 2.228)

Devido a essa estrutura triádica, o signo pode ser analisado sob

diversos aspectos, ou seja, o signo pode ser considerado em relação a um,

dois ou aos seus três componentes ou correlatos.

“Um Representamen é o Primeiro Correlato de uma relação triádica, o

Segundo Correlato sendo chamado de seu Objeto, e o possível Terceiro

Correlato, chamado de seu Interpretante, por cuja relação triádica o possível

Interpretante é determinado como sendo o Primeiro Correlato da mesma

relação triádica para o mesmo Objeto e para algum possível Interpretante.”

(CP 2.242)

Esses correlatos passam ainda por algumas subdivisões. O objeto se

divide em objeto dinâmico e objeto imediato, e o interpretante, por sua vez,

se divide em interpretante imediato, interpretante dinâmico, e interpretante

final ou em si (in itself), conforme o diagrama do signo a seguir (SANTAELLA

1983:59):

Objeto dinâmico

Objeto Imediato

Fundamento

SSIIGGNNOO

Interpretante Imediato

Interpretante dinâmico

(intérprete)

Interpretante final ou em si

Page 28: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

29

Importante distinção que o diagrama do signo aponta é a de que nem

todas as subdivisões dos correlatos do signo se encontram no signo

propriamente dito. Como veremos mais adiante, o signo é formado

internamente pelo seu fundamento, pelo objeto imediato, e pelo interpretante

imediato, enquanto permanece inexoravelmente ligado, embora

exteriormente, ao seu objeto dinâmico e aos interpretantes dinâmico e final.

2.1. Representamen

Na irredutível relação triádica do signo, o representamen desempenha

o lugar de um primeiro. Em algumas passagens dos textos peirceanos, ele

também foi chamado simplesmente de signo, palavra que, então, passou a

ter duas acepções:

“Antes de tudo, deve-se levar em conta que a palavra signo pode ser tomada

sob dois sentidos: um geral e um específico. (...) a palavra signo pode se

referir tanto à relação triádica, signo-objeto-interpretante, quanto ao primeiro

membro dessa relação. Algumas vezes, Peirce utilizou o termo

representamen, no lugar de signo, para designar o primeiro membro da

tríade.” (SANTAELLA 2001:191)

Por representamen entende-se aquilo que funciona como signo para

quem o percebe. É o signo considerado em relação a si mesmo, ao seu

fundamento, ou seja, àquilo que o faz funcionar como signo, qualidade essa

que somente poderá ser percebida por abstração, já que ela não aparece

isoladamente, e sim, constitui-se num modo pelo qual o representamen

substitui o objeto.

“Tão somente por algum aspecto ou modo que lhe é próprio, o

Representamen ficará no lugar do objeto. A esse aspecto ou modo, Peirce

aqui denomina fundamento do representamen. Sendo o fundamento alguma

qualidade do signo, somente será captada distintamente por via de

abstração.” (SILVEIRA 2007: 31)

Para Peirce, tudo pode ser signo, qualquer coisa pode funcionar como

signo, sendo necessário, no entanto, identificar nessa potencialidade sígnica

Page 29: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

30

dos fenômenos, o quê ou qual aspecto do representamen está funcionando

como signo na semiose, ou seja, o seu fundamento.

“Qualquer coisa que seja, pode ser um signo, isto é, pode funcionar nesse

papel; mas para que faça isso, deve ter algum caráter em virtude do qual

pode assim funcionar. Esse caráter é o que constitui o fundamento ou razão

de sua capacidade para ser signo, embora ele não seja realmente um signo

enquanto não for interpretado como tal.” (RANSDELL 1966:80 apud

SANTAELLA 2000:21)

2.2. Objeto do signo

Por objeto do signo entende-se aquilo que é representado pelo signo,

aquilo no lugar do qual o signo está.

“Um signo intenta representar, em parte (pelo menos), um objeto que é,

portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo que o

signo represente o objeto falsamente.” (CP 6.347)

Sendo um segundo, do qual o representamen é um primeiro, o objeto

se dividirá em: objeto dinâmico, aquele que determina o signo e permanece

fora dele, ou ainda, aquilo que o signo substitui, e objeto imediato, que é o

objeto interno ao signo, ou o modo como o objeto dinâmico está representado

no signo.

“Resta observar que normalmente há dois tipos de Objetos [...]. Isto é, temos

de distinguir o Objeto Imediato, que é o Objeto tal como o próprio Signo o

representa, e cujo Ser depende assim de sua representação no Signo, e o

Objeto Dinâmico, que é a Realidade que, de alguma forma, realiza a

atribuição do Signo à sua Representação.” (CP 4.536)

O objeto dinâmico é o objeto em si próprio, a coisa em si, o existente,

sendo que para Peirce, mesmo sonhos e coisas in abstracto são

consideradas existentes. O objeto dinâmico é sempre multideterminado,

permanecendo o signo sempre incompleto em relação a ele, já que não é

possível capturá-lo em um único signo. No entanto, é ele que se impõe,

conferindo aos signos que a ele se conformam em algum grau ou aspecto,

Page 30: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

31

um valor de verdade, que nunca é absoluto, mas sempre passível de

aperfeiçoamento. Mas é justamente essa incompletude do signo que

determina uma semiose ad infinitum, na tentativa de sempre apreender e

conhecer o objeto dinâmico com mais precisão.

O objeto imediato funciona como mediação entre o signo e o objeto

dinâmico, exterior a ele. É o objeto tal como está representado, ou ainda,

aquele aspecto que o signo recorta do objeto dinâmico ao representá-lo. O

objeto imediato está dentro do signo, no próprio signo.

“O objeto dinâmico, portanto, tem autonomia, enquanto que o

imediato só existe dentro do signo. Mas uma vez que não temos acesso ao

objeto dinâmico a não ser pela mediação do signo, é o objeto imediato, de

fato, aquele que está dentro do signo, que nos apresenta o objeto dinâmico.

O objeto dinâmico, como o próprio nome diz, não cabe dentro de um só

signo. Por isso mesmo pode ser representado de uma infinidade de

maneiras, através dos mais diversos tipos de signos. (...) O objeto dinâmico

é infinitamente determinado. Cada signo representa apenas algumas de

suas determinações.” (SANTAELLA 1998: 48,49)

2.3. Interpretante

O interpretante não pode ser confundido com o intérprete. Ele é o

efeito que o signo está destinado a causar naquele ou naquilo que o

interpreta. Também é preciso ressaltar que a teoria peirceana não é

logocêntrica. Seu conceito de mente interpretadora, i.e., passível de sofrer a

ação do signo, não se restringe à mente humana, sendo tão abrangente a

ponto de Peirce considerar como dotados de mente científica, aquela capaz

de aprender com a experiência, não somente animais e insetos, mas

inclusive os cristais6.

Como visto, é a incompletude do signo em relação a seu objeto que

gera sempre um novo signo, ou seja, um novo interpretante, tornando o

processo da semiose infinito.

6  “O  pensamento  não  está  necessariamente  conexo  a  um  cérebro.  Ele  aparece  no  trabalho  das abelhas, dos cristais, e em meio ao mundo puramente físico; e ninguém mais pode duvidar que ele esteja  realmente  lá,  tanto  como  estão  as  cores,  as  formas,  etc.  dos  objetos.  (...) Não  somente  o pensamento se encontra no mundo orgânico, mas nele se desenvolve.” (CP 4.551) 

Page 31: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

32

“Mas dizer que ele [signo] representa seu objeto implica que ele afete uma

mente, de tal modo que, de certa maneira, determina, naquela mente, algo

que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa

imediata ou determinante é o signo e da qual a causa mediada é o objeto

pode ser chamada de interpretante.” (CP 6.347)

O interpretante é um terceiro determinado pelo signo, um primeiro, e

por sua vez, se divide em imediato, dinâmico, e final. Embora existam

diversas classificações e nomenclaturas para as subdivisões de

interpretantes, esta primeira divisão é bastante elucidativa para a

compreensão do conceito de signo, pois trata-se mais de diferentes graus ou

níveis na geração do interpretante do que de diferentes tipos de

interpretantes.

“O segundo princípio de divisão do interpretante (...) está baseado na

fenomenologia ou teoria das categorias, correspondendo à divisão triádica do

interpretante em imediato (primeiridade), dinâmico (secundidade) e final

(terceiridade). Esta divisão diz respeito aos níveis por que passa o

interpretante até se converter em um outro signo, caminhando para o

interpretante em si ou interpretante final. Esta divisão não corresponde, de

modo algum, a três interpretantes, vistos como coisas separadas, mas, ao

contrário, são graus ou níveis do interpretante, ou melhor, diferentes

aspectos ou estágios na geração do interpretante.” (SANTAELLA 2000: 67)

O interpretante imediato é o potencial interpretativo do signo

independentemente do efeito que será produzido na mente do intérprete,

sendo esse potencial do signo que torna possível sua interpretação. É a

interpretabilidade do signo. O interpretante dinâmico é externo ao signo e

refere-se ao efeito efetivo, singular, produzido em uma mente interpretadora

(intérprete), dependendo desta para sua realização. Já o interpretante final,

seria o resultado interpretativo último, caso o processo da semiose fosse

levado até o fim, e corresponderia à coincidência total sempre adiada, entre

interpretante e objeto dinâmico, anunciando um fim nunca alcançado da

semiose e da mediação signo. Essa correspondência ideal equivaleria à

revelação completa do real, o que é impossível, já que da verdade só

podemos nos aproximar assintoticamente.

Page 32: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

33

Com referência ao interpretante, este ainda pode dividir-se em

emocional, energético e lógico. No interpretante emocional, o signo produz

apenas uma qualidade de sentimento, sem produzir cognição. No

interpretante energético, há um esforço envolvido, seja ele físico ou mental.

No interpretante lógico, uma regra interpretativa vai comandar a associação

de idéias para que o signo possa ser interpretado. Há dissensões sobre esta

divisão, se ela seria aplicável aos três níveis de interpretante, ou se ficaria

restrita somente ao interpretante dinâmico, ou se ela seria equivalente aos

interpretantes imediato, dinâmico e lógico, respectivamente.

“O primeiro efeito significado de um signo é o sentimento por ele provocado.

Na maior parte das vezes existe um sentimento que interpretamos como

prova de que compreendemos o efeito específico de um signo, embora a

base da verdade neste caso seja freqüentemente muito leve. Este

‘Interpretante emocional’, como o denomino, pode importar em algo mais do

que o sentimento de recognição; e, em alguns casos, é o único efeito

significado que o signo produz (...) Se um signo produz ainda algum efeito

desejado, fá-lo-á através da mediação de um interpretante emocional, e tal

efeito envolverá sempre um esforço. Denomino-o ‘Interpretante energético’.

O esforço pode ser muscular (...), mas é usualmente um exercer do mundo

interior, um esforço mental. Não pode ser nunca o significado de um conceito

intelectual, uma vez que é um ato singular (...) Mas que espécie de efeito

pode ainda haver? (...) Vou denominá-lo ‘interpretante lógico’. (...) Devemos

dizer que este efeito pode ser um pensamento, o que quer dizer, um signo

mental? Sem dúvida pode sê-lo; só que se esse signo for de natureza

intelectual - como teria de ser - tem de possuir um interpretante lógico; de

forma que possa ser o derradeiro interpretante lógico do conceito.” (CP

5.475-76)

Há ainda uma última subdivisão da qual trataremos quando

abordarmos a terceira tricotomia da classificação dos signos, aquela que

divide os interpretantes em rema, dicente e argumento. Também neste caso

encontramos divergências7 de opinião, sendo essa subdivisão considerada

aplicável ao interpretante lógico por alguns, e ao interpretante final, por

outros.

7 Para uma abordagem detalhada das posições sustentadas por diversos autores em relação à teoria dos interpretantes de Peirce, ver SANTAELLA 2000: 61‐88. 

Page 33: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

34

3. CLASSIFICAÇÃO DOS SIGNOS

Da principal classificação de signos elaborada por Peirce decorrem

dez classes de signos a partir de três tricotomias. Essa classificação

apresenta um considerável grau de complexidade na análise dos signos,

podendo nos dar uma contribuição importante na análise da palavra escrita.

A base desta classificação é o princípio de prescisão ou implicação

que rege as categorias, aquele segundo o qual o primeiro prescinde do

segundo e do terceiro, e o segundo do terceiro, sendo que todo terceiro

implica o segundo e o primeiro. É também esse princípio lógico que vai

mostrar porque, enquanto são possíveis 27 combinações sígnicas, somente

10 são válidas.

“As relações de implicação mantidas entre as categorias nortearão todo o

processo classificatório. A categoria da terceiridade, e tudo que por ela for

caracterizado, implicará nas realizações que se fizerem na instância da

categoria de secundidade, e essas, por sua vez, dependerão do que se der

ao nível da categoria da primeiridade.” (SILVEIRA 2007:65)

Observando detalhadamente esta classificação e justapondo-a ao

diagrama do signo, é possível notar que ela se baseia no fundamento do

signo e na relação deste com duas subdivisões de seus correlatos que

permanecem fora do signo: o objeto dinâmico e o interpretante final. Para

melhor compreendermos os elementos que a compõe, é oportuno descrever

a natureza das três divisões de signos a partir das quais as classes são

formadas.

3.1. As três tricotomias

As dez classes de signos foram obtidas por Peirce pela combinação

lógica das três categorias fenomenológicas (primeiridade, secundidade e

terceiridade) com as três tricotomias estabelecidas pela consideração do

signo em função de três aspectos:

Page 34: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

35

1º) o signo em relação a si mesmo (fundamento ou representamen)

2º) a relação do signo com seu objeto dinâmico

3º) a relação do signo com o interpretante final

Em cada um desses aspectos será possível observar a ação das

categorias, o que resultará em três tricotomias de signos de acordo com as

relações entre os correlatos do signo, conforme quadro8 a seguir:

Cate- gorias

Representamen

(fundamento)

Objeto dinâmico

(relação S-OD)

Interpretante final

(relação S- IF)

1º QUALISSIGNO ÍCONE (Hipoícones:

Imagem, Diagrama, Metáfora)

REMA

2º SINSIGNO ÍNDICE DICENTE

3º LEGISSIGNO SÍMBOLO ARGUMENTO

1ª tricotomia: o signo em relação a si mesmo

A primeira tricotomia será formada pela consideração do signo em

relação a si mesmo, ou ainda, pela ação das categorias sobre seu

fundamento (ground). É o modo de apreensão do signo em si mesmo.

No fundamento do signo, considerado um primeiro, operam as três

categorias, havendo, a esse respeito, três tipos de signos: qualissignos,

sinsignos e legissignos, que também receberam o nome de tones, tokens (ou

réplicas) e types (tipos), respectivamente. Surge aqui a primeira tricotomia do

signo.

Nos qualissignos, são as meras qualidades que, apresentando-se à

percepção, funcionam como signos. Aqui encontramos sons, cores, formas,

entre outras formas de primeiridade, funcionando como representamina.

“Um Qualissigno (por exemplo, o sentimento [feeling] de vermelho) é uma

qualidade qualquer, na medida em que é um signo.” (CP 2.254)

8 Este quadro  foi elaborado  com base em SANTAELLA 1983:62. Foram  feitas algumas modificações para adequá‐lo ao presente trabalho.  

Page 35: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

36

Já os sinsignos constituem-se por existentes, individuais e singulares

que, na sua secundidade, funcionam como signos para quem os percebe.

“... um sinsigno (onde a sílaba sin é tomada como significando ‘sendo uma

única vez’, como em singular, em simples, no latim: semel) é uma coisa ou

evento existente que é um signo.” (CP 2.245)

Os legissignos, por sua vez, constituem-se de tipos gerais, hábitos,

convenções e leis, entre outras formas de terceiridade, que funcionam como

signos para aquele ou aquilo que os percebe

“Um legissigno é uma lei que é um Signo. (…) Não é um objeto singular, mas

um tipo geral que, há concordância a respeito, será significante.” (CP 2.246)

2ª tricotomia: a relação signo-objeto dinâmico

Na determinação das dez principais classes de signos, é na relação

entre o signo (S) seu objeto dinâmico (OD) que aparece a segunda tricotomia

de signos, onde igualmente operam as três categorias fenomenológicas.

Essa tricotomia, que relaciona o signo ao objeto representado, exterior a ele,

e que divide os signos em ícones, índices e símbolos, é, provavelmente, a

mais conhecida de Peirce, sendo ela uma das tricotomias que ficou mais

claramente definida em sua extensa obra.

Na passagem a seguir, fica evidente quão diferentes podem ser as

representações de um mesmo e único objeto, e as diferentes relações que

um signo pode manter com seu objeto dinâmico.

“Esclareçamos: o signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu

objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de

representar, substituir uma outra coisa diferente dele. Ora, o signo não é o

objeto. Ele apenas está no lugar do objeto. Portanto, ele só pode representar

esse objeto de um certo modo e numa certa capacidade. Por exemplo: a

palavra casa, a pintura de uma casa, o desenho de uma casa, a fotografia de

uma casa, o esboço de uma casa, um filme de uma casa, a planta baixa de

uma casa, a maquete de uma casa, ou mesmo o seu olhar para uma casa,

são todos signos do objeto casa. Não são a própria casa, nem a idéia geral

que temos de uma casa. Substituem-na, apenas, cada um deles de um certo

modo que depende da natureza do próprio signo. A natureza de uma

fotografia não é a mesma de uma planta baixa.” (SANTAELLA 1983:58)

Page 36: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

37

Um signo será um ícone quando ele partilhar de alguma das

qualidades de seu objeto dinâmico, e a relação que com ele manterá será de

semelhança (likeness).

“Eu chamo um signo que está para alguma coisa simplesmente porque ele

se assemelha a ela, um ícone. Ícones são tão completamente substituíveis

pelos seus objetos que dificilmente são distinguidos deles.” (CP 3.362)

Ícones puros, por pertencerem unicamente à categoria da

primeiridade, são meras possibilidades. Assim, para existirem efetivamente,

os ícones precisam encontrar sustentação no universo da experiência,

passando a ser denominados hipoícones por Peirce (CP 2.276-277), e

subdividindo-se em imagens (primeiridade), diagramas (secundidade) e

metáforas (terceiridade). Estes já são signos genuinamente triádicos que

representam seus objetos dinâmicos e que mantêm relações de semelhança

com os objetos representados: semelhança na aparência, nas relações

internas e no significado, respectivamente. Importante ressaltar que, como a

lógica categorial determina, a terceiridade compreende a secundidade e esta,

a primeiridade, levando a que metáforas encapsulem diagramas, e estes

envolvam imagens.

“As imagens propriamente ditas participam de simples qualidades ou

Primeiras Primeiridades. Essa definição de imagem, à primeira vista

enigmática, fica mais simples quando se traduz ‘primeiras primeiridades’ por

similaridade na aparência. As imagens representam seus objetos porque

apresentam similaridades ao nível de qualidade. (...) Os diagramas

representam as relações - principalmente as relações diádicas ou relações

assim consideradas - das partes de uma coisa, utilizando-se de relações

análogas em suas próprias partes. Assim sendo, os diagramas representam

por similaridade nas relações internas entre signo e objeto... As metáforas

representam o caráter representativo de um signo, traçando-lhe um

paralelismo com algo diverso (CP 2.277). É por isso que a metáfora faz um

paralelo entre o caráter representativo do signo, isto é, seu significado, e

algo diverso dele. (...) Pela lógica peirceana, no entanto, quando passamos

da imagem para o diagrama, este embute aquela, assim como a metáfora

Page 37: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

38

engloba, dentro de si, tanto o diagrama quanto a imagem.” (SANTAELLA e

NÖTH 1999: 62)

Os índices, por pertencerem à categoria da secundidade, estão numa

relação de fato, existencial, com seus respectivos objetos.

“O índice não afirma nada; ele somente diz ‘Lá!’ Ele toma conta de seus

olhos, e os dirige para um objeto em particular, e lá ele pára.” (CP 3.361)

O índice indica, aponta seu objeto dinâmico em função da conexão

dinâmica que estabelece com ele. Índices são, dessa forma, necessários a

toda forma de apresentação e representação para que estas se conformem a

um particular. Um índice poderá ter como fundamento um sinsigno ou um

legissigno.

Os símbolos, por sua vez, estão relacionados a seus objetos em

virtude uma lei, convenção ou hábito de associação, e funcionam em virtude

dessa associação de idéias que produzem em razão de uma regra

interpretativa já ter sido estabelecida a priori.

“Essa mesma lógica de encapsulamento dos níveis mais simples pelo mais

complexo também vai ocorrer nas relações entre ícone, índice e símbolo. É

por isso que o símbolo não é senão uma síntese dos três níveis sígnicos: o

icônico, o indicial e o simbólico.” (SANTAELLA e NÖTH 1999: 62)

Há um exemplo bastante simples e elucidativo. Pensemos numa

nuvem: se toda coisa pode ser signo, o que é uma nuvem, em termos

semióticos? A melhor resposta é: depende. Depende do aspecto pelo qual a

coisa está sendo tomada como signo. Se ficarmos olhando as nuvens e

imaginando com o quê elas se parecem, elas estarão funcionando como

ícones para nós. Já se observarmos as nuvens procurando indicações sobre

se choverá esta tarde ou não, então elas estarão funcionando como índices.

Mas para um físico, que conhece as leis de formação das nuvens, elas são

símbolos. Assim fica claro como e porque qualquer coisa, ou ainda, como

qualquer existente, pode funcionar como signo, inclusive como diversos tipos

de signo, sem, no entanto, deixar de ser aquilo que é.

Page 38: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

39

Ícones e índices não crescem em significado; o índice porque aponta

para um objeto particular e nele se detém; e o ícone porque sua

referencialidade é mera possibilidade em função de semelhanças

qualitativas, e a ponte com o objeto dinâmico deverá ser sempre construída

pela mente interpretadora no ato da interpretação. Já o símbolo é sempre

maior do que a interpretação que se tem dele, pois ele é uma soma geral, um

acúmulo de interpretantes, estando em contínuo crescimento, sendo

suscetível também de mudanças. No entanto, assim como qualquer outro

signo, não é capaz de esgotar o objeto dinâmico.

“Um signo plenamente geral deverá ser um símbolo produzido por via

argumentativa, por uma estrita necessidade lógica. Signos cujo interpretante

é determinado por necessidade lógica crescem, indefinidamente, como o

pensamento por sua própria virtude. São genuinamente capazes de se auto-

organizarem sem qualquer limitação, representando, em constante

crescimento e evolução, toda classe de fenômenos. Por esta razão,

conferem a todo pensamento uma dimensão cósmica e assumem a forma de

uma rede em infinita expansão.” (SILVEIRA 2007:45)

Assim, ícones representam em função de uma relação de semelhança,

sendo seu objeto e seu interpretante meras possibilidades, a serem

estabelecidos pela mente interpretadora. Já o índice funciona em função de

uma conexão dinâmica com seu objeto, sem a qual não subsistiria, podendo

ter como interpretante tanto uma existência (secundidade) como uma

possibilidade (terceiridade). Já o símbolo, signo genuinamente triádico,

carrega em si a regra (lei ou hábito) segundo a qual ele será interpretado de

determinada forma.

3ª tricotomia: a relação signo-interpretante final

É na relação entre o signo e seu interpretante final (IF) que surge a

terceira tricotomia. Essa relação pode ser entendida como a natureza da

influência de um signo, que poderá ser de possibilidade (primeiridade),

existência (secundidade) ou lei (terceiridade). Sob esse aspecto, um signo

Page 39: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

40

poderá ser um rema, um dicente, ou um argumento, respectivamente, em

função da categoria fenomenológica que predominar em cada relação.

Um rema é uma mera possibilidade lógica, um termo, um signo de

essência. Um dicente é uma proposição, um signo que diz algo da existência

concreta de seu objeto. Um argumento pode ser exemplificado por um

silogismo, duas premissas das quais segue uma conclusão.

“Um Rema é um Signo que, para seu Interpretante, é um Signo de

Possibilidade qualitativa, ou seja, entendido como representando tal e tal

espécie de Objeto possível. Todo Rema fornecerá, talvez, alguma

informação; mas não é interpretado como destinado a fazê-lo.

Um Dicente é um Signo que, para seu Interpretante é Signo de existência

concreta. Não pode, conseqüentemente, ser um ícone, porque este não

fornece base para sua interpretação, como referindo-se a uma existência

concreta. Um Dicisigno envolve, como parte dele e necessariamente um

Rema para descrever o fato que se entende que indique. Trata-se, porém,

de uma peculiar espécie de Rema; e embora seja essencial para o Dicisigno,

de nenhuma forma o constitui.

Um Argumento é um Signo que, para seu Interpretante é Signo de lei.

Podemos dizer que um Rema é um signo que se entende representar seu

objeto simplesmente em seus caracteres; que o Dicisigno é um signo que se

entende representar seu objeto com referência à existência concreta; e que

um Argumento é um Signo que se entende representar seu Objeto em seu

caráter de Signo.” (CP 2.250-253)

No tocante a essa relação signo-interpretante final, portanto, teremos,

novamente, que o argumento (lei) incorporará o dicente (existência) e o rema

(possibilidade), e o dicente envolverá somente o rema.

Outro importante ponto a observar, é o de que a relação de

interpretante nunca poderá ser mais “forte”, i.e., pertencer a uma categoria de

ordem superior na escala categorial, do que a relação de objeto, e esta, por

sua vez, não poderá ser superior à relação de representamen (SILVEIRA

2007: 62).

Page 40: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

41

3.2. As dez classes de signos

Nesta classificação, a combinação não é aleatória, pois as divisões e

subdivisões do signo não são independentes; ela segue uma seqüência

rigorosa baseada na lógica das categorias. Como conseqüência, temos

apenas 10 classes principais de signos, e não 27 como decorreriam da

combinação independente das subdivisões das tricotomias. Todas as demais

combinações possíveis entre essas tríades inexistem por inconsistência

lógica. Vale observar que essa classificação foi claramente elaborada e

explicada por Peirce, o que a torna uma ferramenta extremamente útil para

qualquer análise sígnica.

A seguir, são apresentadas sucintamente as definições das dez

classes de signos, resultantes da combinação das três tricotomias descritas.

Esse detalhamento nos será útil tanto na análise da natureza semiótica da

escrita, como também das transformações da escrita na hipermídia, pois nele

observamos claramente a crescente complexificação dos signos na medida

em que cada classe incorpora elementos das anteriores.

I) Qualissigno icônico remático: é uma qualidade qualquer que

funciona como signo, em virtude de alguma semelhança com o objeto

denotado (CP 2.254).

II) Sinsigno icônico remático: é qualquer objeto de experiência, ou

seja, um existente, que determina a idéia de um objeto em função de alguma

de suas qualidades, i.e., ele incorpora um qualissigno (CP 2.255).

III) Sinsigno indicial remático: é qualquer objeto de experiência direta

que direciona a atenção para um objeto pelo qual sua presença encontra sua

causa. Envolve um sinsigno icônico (CP 2.256).

IV) Sinsigno indicial dicente: qualquer objeto de experiência que,

sendo realmente afetado pelo seu objeto, fornece informação no que diz

respeito a ele. Envolve um sinsigno icônico para incorporar a informação e

um sinsigno indicativo remático para indicar o objeto ao qual a informação se

refere (CP 2.257).

Page 41: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

42

V) Legissigno icônico remático: qualquer lei ou tipo que em cada uma

de suas instâncias incorpora uma determinada qualidade que o torna capaz

de suscitar idéias de objetos a ela semelhantes. Suas réplicas serão

sinsignos icônicos de tipo especial (CP 2.258).

VI) Legissigno indicial remático: também um tipo geral ou lei, que

independentemente de como tenha sido estabelecido, requer que cada uma

de suas instâncias seja de fato afetada por seu objeto de modo a chamar a

atenção sobre esse mesmo objeto. Suas réplicas serão sinsignos indiciais de

tipo especial, e para seu interpretante, ele funcionará como um legissigno

icônico (CP 2.259).

VII) Legissigno indicial dicente: é qualquer tipo geral ou lei que requer

que cada uma de suas instâncias seja de fato afetada pelo seu objeto de

maneira a fornecer informação definida a respeito desse mesmo objeto. Ele

envolverá um legissigno icônico para significar tal informação e um legissigno

indicial remático para denotar o sujeito dessa mesma informação. Suas

réplicas serão sinsignos dicentes de tipo especial (CP 2.260).

VIII) Legissigno simbólico remático: um tipo ou lei geral conexo a seu

objeto por uma associação geral de idéias de modo a suscitar uma imagem

na mente por ele afetada, imagem, que, em virtude de certos hábitos e

disposições daquela mente, tende a produzir um conceito geral. Suas

réplicas, sinsignos indiciais remáticos de tipo especial, serão interpretadas

como instâncias daquele conceito. Seu interpretante o representará como um

legissigno indicativo remático em algumas ocasiões, e em outras, como um

legissigno icônico (CP 2.261).

IX) Legissigno simbólico dicente: é uma proposição ordinária, um signo

conexo ao seu objeto por uma associação de idéias gerais, atuando de forma

semelhante a um símbolo remático, mas sendo a existência ou lei que ele

evoca realmente conexa ao objeto que ele indica. O interpretante vê o

símbolo dicente como um legissigno indicial dicente, que envolve um

legissigno indicial remático e um legissigno icônico como vimos. Sua réplica é

um sinsigno dicente de tipo especial (CP 2.262).

Page 42: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

43

X) Legissigno simbólico argumentativo: ou simplesmente argumento, é

um signo cujo objeto é geral, e cujo interpretante representa seu objeto como

sendo um signo ulterior, em função da lei pela qual a passagem do conjunto

das premissas envolvidas para o das conclusões tende para a verdade. Sua

réplica será um sinsigno dicente (CP 2.263). Ele envolverá símbolos dicentes

e símbolos remáticos.

A seguir, apresentamos um quadro elaborado a partir dos exemplos

que Peirce (CP 2.254-263) nos dá de cada uma das classes:

Classe de signo Abrevia-tura

Exemplo

I Qualissigno icônico remático 111 um sentimento de vermelhidão

II Sinsigno icônico remático 211 um diagrama individual

III Sinsigno indicial remático 221 um grito espontâneo

IV Sinsigno indicial dicente 222 um catavento

V Legissigno icônico remático 311 um diagrama, abstraída sua individualidade

VI Legissigno indicial remático 321 um pronome demonstrativo

VII Legissigno indicial dicente 322 um pregão de rua

VIII Legissigno simbólico remático 331 um nome (substantivo) comum

IX Legissigno simbólico dicente 332 uma proposição

X Legissigno simbólico argumentativo

333 um silogismo

Dessa combinatória, temos que um qualissigno (111) só poderá ser

icônico e remático; um sinsigno icônico (211) será necessariamente remático;

e um legissigno icônico (311) também será sempre remático. Todo símbolo

Page 43: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

44

(33_) será necessariamente um legissigno, e todo argumento (333), um

legissigno simbólico. Essas relações merecem atenção detalhada.

Todo qualissigno será necessariamente um ícone, uma vez que, tendo

como fundamento uma pura possibilidade, somente poderá se relacionar ao

seu objeto dinâmico também numa forma de primeiridade. Seu interpretante

também pertencerá, necessariamente, ao domínio da primeira categoria.

“Como a qualidade é, seja o que for, positivamente aquilo que é, só pode

denotar um objeto em virtude de algum ingrediente comum com o objeto ou

uma similaridade com ele; de tal modo que um Qualissigno é

necessariamente um ícone. E mais ainda, uma vez que uma qualidade é

uma mera possibilidade lógica, somente pode ser interpretada como um

signo de essência, isto é, um Rema.” (CP 2.254)

Já sinsignos são signos de existência, e serão necessários a todos os

outros tipos de signo para que estes possam ser incorporados em algum

existente, i.e., todo sinsigno incorporará qualidades (qualissignos), e toda

réplica de outros signos será um sinsigno de tipo especial. A essa relação

também foi dado o nome de type-token, em função da tríade legi-sin-

qualissigno ter sido chamada também de type-token-tone, respectivamente.

Por seu representamen pertencer ao domínio da secundidade, a

relação de um sinsigno com seu objeto poderá ser: indicial, quando apontar,

através de uma conexão dinâmica, para aquilo que representa; ou

meramente icônica, quando esta relação se restringir a uma mera associação

entre atributos qualitativos. Quanto ao seu interpretante, também este não

poderá ultrapassar a categoria do segundo, podendo ficar no nível dicente,

oferecendo informações concretas sobre seu objeto, ou restringir-se ao nível

conjectural, remático.

Os legissignos, cujo representamen ou fundamento já pertence à

categoria da terceiridade, implicarão em todas as realizações das categorias

anteriores. Poderão, assim, manter uma relação com seu objeto dinâmico em

qualquer um dos três níveis, icônico, indicial ou simbólico, sendo que neste

último representará seu objeto por força de um sistema de signos no interior

Page 44: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

45

do qual estará determinado o seu funcionamento. Respeitando-se o nível em

que essa relação com o objeto se der, seu interpretante pertencerá: ao nível

do primeiro (rema), para os legissignos icônicos e indiciais; e ao domínio do

segundo (dicente), para legissignos simbólicos e indiciais; ficando o

interpretante de terceiridade (argumento) restrito a legissignos simbólicos.

Outro aspecto a destacar é a implicação entre as categorias, pela qual

signos mais gerais implicam signos menos gerais, resultando em que o geral

(terceiro) não pode prescindir do existente (segundo), e nem este do

potencial (primeiro). Esse princípio categorial, que poderá ser melhor

observado ao se estudar o processo semiósico,

“permite que se perceba tanto na relação do Representamen, onde o

primeiro correlato do signo é constituído, quanto na relação do

Representamen para com o Objeto, segundo correlato do signo, de que

modo o geral implica o existente e este, implica o potencial: o Legissigno

implica Sinsignos e estes implicam Qualissignos; enquanto que, os

Símbolos implicam Índices e Ícones a estes atribuíveis. (...) A classe dos

Argumentos, constituída pelos interpretantes de lei implicam Dicentes

como interpretantes de existência. Ambas as classes implicam, por sua vez,

Remas, como interpretantes de potencialidade.” (SILVEIRA 1996: 47)

4. A SEMIOSE OU AÇÃO DO SIGNO

Semiose significa processo sígnico ou ação do signo. Para Peirce,

todo pensamento se dá em signos, portanto é através do estudo dos

mecanismos sígnicos, através da teoria dos signos, ou semiótica entendida

como lógica, que podemos compreender mais amplamente a percepção, a

cognição e o raciocínio humanos. Como sempre, vale lembrar que os

conceitos de mente e pensamento em Peirce não são logocêntricos, não se

restringindo ao ser humano. No entanto, o presente trabalho foca

especificamente aspectos da linguagem humana, para os quais as

classificações sistemáticas de signos podem ser altamente elucidativas,

desde que não sejam tomadas como um esqueleto rígido de definições

estanques. As classificações de signos

Page 45: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

46

“fornecem um padrão para análise sígnica compreensiva ao invés de

funcionar como uma classificação estrito senso. Esse padrão inclui todos os

aspectos epistemológicos e ontológicos do universo dos signos, o problema

da referência, da realidade e ficção, a questão da objetividade, a análise

lógica do significado, e o problema da verdade” (BUCZINSKA-GAREWICZ

1983:27 apud SANTAELLA 1992a: 55)

Em se tratando da percepção e cognição humanas, é mister dizer que

não temos acesso direto ao real, ao objeto dinâmico. Ele nos chega através

da medi(ação) sígnica, em que o signo, sempre incompleto em relação a seu

objeto (sendo por isso mesmo um signo), o representa parcialmente. A

apreensão do objeto em si, se dá somente por meio do objeto imediato, que é

o objeto semiótico tal como aparece na semiose, isto é, a maneira como o

objeto dinâmico está representativamente presente nesse processo. Assim, o

objeto, para nós sempre mediado, é aquele que pensamos ser, a coisa como

representada até então, não obstante se nosso pensamento sobre ele é falso

ou verdadeiro.

Dessa forma, a semiose ininterrupta, contínua do universo,

representará, através de signos, os objetos aos quais não temos acesso

direto, mas que, no entanto, através do signo, se imporão para determinar

interpretantes que se multiplicarão em novos signos, criando sempre na

mente interpretadora outros signos, mais desenvolvidos ou não, do seu

objeto. É nesse respeito que podemos concluir que o objeto imediato sempre

levará em conta a possibilidade de erro, enquanto o objeto dinâmico será

requerido para a concepção da verdade, sempre in futuro.

“Semiose quer dizer ação do signo. A ação que é própria ao signo é a de

determinar um interpretante, quer dizer, ação do signo é a ação de ser

interpretado num outro signo, pois o interpretante tem sempre a natureza de

um signo (mesmo que seja um signo rudimentar, um sentimento, por

exemplo, ou uma percepção ou uma ação física ou mental).” (SANTAELLA

2001: 43)

Page 46: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

47

4.1. Relações de implicação entre os signos

A seguir, apresentamos as relações de implicação entre legissignos e

sinsignos, bem como alguns aspectos da sintaxe entre as dez classes de

signos, tendo parte delas sido apresentada com a descrição de cada classe

sígnica. A relação de implicação entre legi e sinsignos é também chamada de

instanciação ou de relação type-token. As instâncias de um tipo geral ou

legissigno corresponderão às suas réplicas ou ocorrências, ou ainda, a

sinsignos de tipo especial, que, por sua vez, incorporarão qualidades

(qualissignos).

“As réplicas dos Símbolos, como as de qualquer Legissigno, serão

constituídas por existentes - Sinsignos, na linguagem peirceana - dotados

de uma configuração tal que possam ser identificados para o exercício da

função de indicar a presença daquele Legissigno. Exercerão, como também

Peirce afirmava, o papel de ‘ocorrências’ (tokens) de um determinado ‘tipo’

(type). [CP 4.537 e CP 5.429].

A configuração distintiva das réplicas resultará do confronto de

determinadas qualidades de que devem ser dotados aqueles Sinsignos.

Estas qualidades, como potencialidades positivas necessárias para

constituição de qualquer signo, estarão no início de todo processo semiótico.

Qualidades que são signos, são denominadas por Peirce, Qualissignos.”

(SILVEIRA 1996: 47)

As relações entre as dez classes podem ser divididas em três grupos,

dependendo se elas forem relações de envolvimento, de “instanciação”

(“governar réplicas”), ou de interpretação (“seu interpretante representa-o

como...”). Essas relações estão baseadas nas relações entre as três

categorias, e descrevem como gerais (types) são instanciados num número

indeterminado de singulares e existentes (tokens) e como suas qualidades

(tones) são prescritas.

“Pode-se dividir em três grupos as relações acima descritas:

(i) ‘envolvimento’: 211>111, 221>211, 222>221, 222>211, 322>311,

322>321, 332>331, 332>321;

(ii) ‘governar réplicas’: 311>211, 321>221, 322>222, 331>221, 332>222,

Page 47: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

48

333>222;

(iii) ‘seu interpretante representa-o como (...), e isso ele o é’ (compartilha da

natureza): 321>311, 331>321, 331>311, 332>322.” (QUEIROZ 2004:97)

Essas relações são acima indicadas de forma sucinta, usando-se os

nomes das classes abreviadamente, e podem ser descritas, conforme

Queiroz (2004:96) com base em Peirce (CP 2.254-263) como segue:

- um qualissigno (111) só poderá ser observado ao ganhar corpo num

existente, que será um sinsigno icônico (211) que o envolverá, e que por sua

vez será envolvido por um sinsigno indicial remático (221). Um sinsigno

indicial dicente (222) envolverá tanto um sinsigno icônico (211) como um

sinsigno indicial remático (221);

- um legissigno icônico (311) será replicado em sinsignos icônicos

(211). Um legissigno indicial remático (321) será replicado em sinsignos

indiciais remáticos (221); no entanto, será “em certa medida” para seu

interpretante, um legissigno icônico (311). Um legissigno indicial dicente (322)

envolverá um legissigno icônico (311) e um legissigno indicial remático (321),

mas será replicado em sinsignos indiciais dicentes (222);

- um símbolo remático (331) compartilha da natureza do legissigno

indicial remático (321) e do legissigno icônico (311), e será replicado em

sinsignos indiciais remáticos (221). Um símbolo dicente (332) atua como um

símbolo remático (331), embora seja um legissigno indicial dicente (322) para

seu interpretante; suas réplicas serão sinsignos indiciais dicentes (222).

Argumentos (333) serão replicados em sinsignos indiciais dicentes (222).

Outra relação entre as classes, sob um ponto de vista lógico,

determina que “o discurso consiste de argumentos [333], compostos de

proposições [332], e estas de termos gerais [331]” (MS 930:27 apud

SANTAELLA 2001: 279)

Para facilitar a compreensão e visualização de todas essas relações,

elaboramos dois diagramas, nos quais é possível observá-las

separadamente, e um esquema geral, em que todas são contempladas. No

Page 48: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

49

primeiro, somente as diferentes relações de envolvimento e de instanciação

são retratadas, representadas pelas setas tracejadas e pelas setas simples,

respectivamente. Note-se que os sinsignos encontram-se dentro de uma

esfera, demonstrando que somente eles têm existência concreta:

No segundo diagrama, as relações de “interpretação” são mais

claramente observadas, onde fica evidenciado que símbolos dicentes são

interpretados como legissignos indiciais também dicentes, enquanto

legissignos remáticos relacionam-se entre si na relação de interpretação.

A seguir, apresentamos um quadro geral da semiose entre as dez

classes de signos, elaborado parcialmente a partir do modelo de Marty (apud

QUEIROZ 2004: 119), porém dando destaque às relações descritas por

Peirce (CP 2.254-263). Note-se que foram incluídas as relações entre os

argumentos (333) e os símbolos dicentes (332), e entre estes e os símbolos

remáticos (331):

Page 49: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

50

Page 50: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

51

Capítulo 2 - MANIFESTAÇÕES SÍGNICAS DA PALAVRA

“Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível que lhe deres:

Trouxeste a chave?”

Drummond de Andrade (1962: 187)

1. A PALAVRA: SIGNO LINGÜÍSTICO POR EXCELÊNCIA

Para compreender as mudanças que hoje se operam na escrita em

contextos hipermidiáticos, iniciaremos com uma análise das potencialidades

e manifestações sígnicas da palavra.

Especulações de todo tipo sobre a palavra têm estado presentes de

diferentes formas ao longo da história do conhecimento, nas mais diversas

épocas e ciências, a começar pela gramática tratada como parte da filosofia,

passando por outros campos das humanidades, tendo recebido, no século

XX, um tratamento específico dado pela lingüística, ciência iniciada por

Saussure, que considerou o signo lingüístico arbitrário, ou seja, sem ligação

necessária (no sentido filosófico) entre a imagem acústica e conceito.

A etimologia de palavra9 vem de sua origem grega parabole, que

significa “lançar ao lado de”, “ação de se desviar do caminho reto”, usada no

sentido de comparação, aproximação, semelhança. Isso mostra como

estamos sempre observando, conhecendo e tentando nos aproximar do real,

do existente10, e que a possibilidade de uma maior e melhor adequação entre

palavras e os objetos que elas designam é, portanto, uma busca humana

constante. A diversidade das línguas e palavras é gigantesca; ao buscar

9 Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.  

Page 51: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

52

transpor esse abismo entre os humanos e a realidade, produzimos uma

miríade de signos e combinações lingüísticas, pelas quais se transformam e

evoluem todas as línguas e seus correspondentes sistemas de escrita, e das

quais somos, como diz Peirce, a própria “encarnação”

“O homem denota qualquer objeto de sua atenção num momento dado.

Conota o que conhece ou sente sobre o objeto e é também a encarnação

desta forma ou espécie inteligível.” (CP 7.591)

Mas o que vem a ser uma palavra? Embora a resposta pareça óbvia,

ela demanda uma discussão sobre seu status na estrutura lingüística.

Primeiramente, palavra é um termo vago, impreciso, difícil de ser definido de

maneira a contemplar a diversidade de formas que ela incorpora na enorme

variedade das línguas, mormente no que tange às suas diferenças no âmbito

das línguas isolantes e aglutinantes11.

“Palavras são as típicas unidades da Lexicologia e Lexicografia. Isso parece

bastante óbvio, mas tem havido uma grande discussão acadêmica sobre o

status da palavra na estrutura lingüística. Alguns lingüistas evitam o termo

dando preferência ao morfema como a menor e mais básica unidade

gramatical (...) ‘palavra’ é um termo altamente ambíguo e difícil de definir de

uma forma válida para todas as línguas. Palavras são unidades no limite

entre a morfologia e a sintaxe servindo a importantes funções como

portadoras de informação tanto semântica como sintática, e como tais estão

sujeitas à variação tipológica. Em algumas línguas, as palavras parecem ser

mais claramente delimitadas e mais estáveis do que em outras.” (COULMAS

2003: 38)

Dessa maneira, temos, inicialmente, a palavra definida como a típica

unidade da lexicologia e lexicografia, como uma unidade portadora de

informação tanto sintática quanto semântica, ou seja, a palavra é uma

11  Isolante,  em  lingüística,  diz‐se  da  língua  cujas  palavras  tendem  a  ser  ou  são  sujeitas  a  poucas variações, ou seja, nelas não se podem distinguir o radical e os elementos gramaticais (as funções e as categorias são expressas por palavras autônomas, preposições ou partículas). O principal exemplo de língua isolante é o chinês. Aglutinante, em lingüística, diz‐se de ou língua cujo mecanismo predominante de formação de palavra é a aglutinação, e cujas palavras podem ser segmentadas numa série de morfemas que permanecem nitidamente distintos. (cf. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa)  

Page 52: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

53

unidade significativa e gramaticalmente autônoma, e apesar de existirem

unidades mais básicas que a compõe, ela é a “menor unidade que pode

sustentar-se sozinha”, dotada de mobilidade posicional sem com isso afetar a

gramaticalidade da sentença em que está inserida. Vejamos:

“Apesar dessas dificuldades, lexicologistas concordam mais ou menos nas

unidades de sua pesquisa, embora eles possam diferir em alguns detalhes

de como distinguir palavras de outras unidades lingüísticas. Palavras são

significativas e são gramaticalmente autônomas. É verdade que há unidades

semânticas abaixo do nível das palavras - por exemplo, raízes verbais nas

línguas aglutinantes - bem como constituintes mínimos que consistem em

mais de uma palavra - por exemplo, expressões como ‘round the bend’, em

inglês, que significa ‘pirado’, maluco. Entretanto a palavra, tipicamente, é a

menor unidade que pode sustentar-se sozinha como uma emissão completa,

e que pode ser inserida, extraída, movida e disposta na sentença sem

destruir sua gramaticalidade. Mobilidade posicional, portanto, é uma

importante característica das palavras, que entre outras coisas, permite-lhes

serem retiradas de contextos e dispostas em listas.” (COULMAS 2003: 39)

Assim, as palavras são unidades lexicais, intuitivamente

compreensíveis, porém difíceis de “capturar” numa definição, por situarem-se

nos limites entre a morfologia e a sintaxe, e capazes de serem fixadas por

signos visíveis nos quais ganham corpo. Elas constituem-se, assim, em

“unidades analíticas da língua escrita”.

“Importante o fato de que palavras são unidades dadas intuitivamente, mas

difíceis de determinar. Uma vez fixadas por signos visíveis, elas adquirem

uma existência corporal. Deve ser lembrado que antes de mais nada as

palavras são unidades lexicais ou lemmata, isto é, unidades analíticas da

língua escrita.” (COULMAS 2003: 39)

Outro ponto sob o qual pode a unidade lexical ser observada é o

ortográfico, ou mesmo, tipográfico: a palavra é uma unidade limitada por

espaços na língua escrita. No entanto, esse critério também é bastante

impreciso, uma vez que há questões concernentes à separação e à

hifenização das palavras que precisam ser consideradas. O uso do hífen

Page 53: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

54

varia bastante de uma língua para outra, mudando também no curso do

tempo dentro do sistema de cada língua.

“Claramente, não há nada universal sobre a separação de palavras. Em

algumas línguas, mas não em outras as palavras escritas são unidades

reconhecíveis de acordo com esse critério, e não é difícil encontrar exemplos

de quão inconsistentemente ele é aplicado numa dada língua. Almost

pareceria ser uma palavra ortográfica, all right são duas, e all-out não é nem

uma nem outra. O espaçamento entre palavras, além disso, não é somente

diferente em diferentes línguas, mas também contingente em função de

desenvolvimentos históricos.” (COULMAS 2003: 39,40)

Por todos esses fatores, é bastante difícil definir com precisão o que

seja uma ‘palavra’. Para o estudo dos sistemas de escrita, é imperioso notar

que ‘isso’, a que denominamos palavra, ou uma unidade claramente

delimitada, é muito mais um produto desse mesmo sistema de escrita do que

um pré-requisito para que ela seja grafada. Dessa forma, assumiremos, com

Saussure, que ela é uma unidade que “atinge a mente”, um conceito, ou seja,

que a palavra, como nos diz Pignatari (1979: 9), “é o signo lingüístico por

natureza”, ou ainda, o signo lingüístico por excelência.

“Para os propósitos presentes é apropriado trabalhar com uma simples e

pragmática noção da palavra, porque onde palavras são reconhecidas na

escrita isso não é o resultado de uma análise teórica da fala, mas uma

interpretação. Nós assumiremos que a palavra é uma unidade ‘que atinge a

mente’ no sentido em que Saussure aludiu, mas também assumiremos que

seu status como uma unidade claramente delimitada de uma determinada

língua é mais um resultado do que um pré-requisito da escrita.” (COULMAS

2003: 40)

As palavras são signos, e para Peirce todo pensamento se dá em

signos que são, na maior parte, “da mesma estrutura geral das palavras”,

além de contar com outros signos necessários para “melhorar os defeitos das

palavras”, constatando assim, a não suficiência dos símbolos, ou palavras de

caráter eminentemente simbólico, para exprimir o pensamento:

“... todo pensamento é conduzido em signos que são, na maioria, da mesma

estrutura geral das palavras; aqueles que não são assim, são daquela

Page 54: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

55

natureza de signos dos quais nós, aqui e ali, em nossas conversas com

outros, necessitamos para melhorar os defeitos das palavras ou símbolos.

Esses signos-pensamento não-simbólicos são de dois tipos: primeiro, figuras

ou diagramas ou outras imagens (eu os chamo Ícones) tal como aqueles que

tem que ser usados para explicar o significado das palavras; e segundo,

signos mais ou menos análogos aos sintomas (eu os chamo Índices) dos

quais as observações colaterais, pelas quais sabemos sobre o que um

homem está falando, são exemplos. Os ícones ilustram principalmente a

significação dos pensamentos-predicado, os índices as denotações dos

pensamentos-sujeito. A substância dos pensamentos consiste dessas três

espécies de ingredientes.” (CP 6.338)

Essa constatação será esclarecedora quanto à riqueza das

manifestações que as palavras podem e precisam assumir para cumprir suas

funções representativas, sejam elas simbólicas, indexicais ou icônicas, e

quanto a todas as transformações pelas quais ela passa na hipermídia.

1.1. A palavra multifacetada

Apesar das dificuldades em estabelecer uma definição precisa do que

seja uma palavra, como vimos, ela é o signo lingüístico por excelência. Uma

das principais características de que ela é dotada é sua mobilidade

posicional, o que permite considerá-la um signo, de certa forma, autônomo,

não necessariamente inserido num texto: podemos encontrar palavras numa

lista, por. ex., ou ainda escritas sobre uma caixa, indicando seu conteúdo.

Ainda que as palavras estejam inseridas num texto, pode-se considerá-las

em sua individualidade.

Essa autonomia relativa das palavras sempre permitiu que elas se

manifestassem de forma multifacetada, o que fica ainda mais evidenciado no

contexto hipermidiático, em que elas aparecem de modo híbrido, renovado,

na forma de links e hotwords, por exemplo (ver capítulo V), e que torna

necessária uma análise minuciosa de suas manifestações sígnicas, o que, a

Page 55: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

56

partir de agora, faremos por meio da aplicação da classificação peirceana

dos signos aos signos lingüísticos.

Nesta jornada que empreenderemos rumo a uma maior compreensão

dos atributos sígnicos das palavras, é imperioso lembrar a lógica das

categorias, pela qual cada uma delas está presente, indissociavelmente, em

todo e qualquer fenômeno, tornando impossível criar classificações

estanques. Um olhar plural faz-se, então, mister, para podermos enfocar o

grau de proeminência de cada categoria em cada signo de forma

enriquecedora para nossa compreensão e espírito investigativo.

“As categorias peirceanas são onipresentes o que significa que um mesmo

signo pode exibir uma pluralidade de faces ao mesmo tempo. Nessa medida

as classificações devem funcionar como meios para iluminar essa

pluralidade e não para fixar um signo dentro de uma distinção em detrimento

das outras. (...) Assim como para ser signo, algo não precisa deixar de ser

coisa, para ser um legissigno, um signo não precisa deixar de ser um

sinsigno e um qualisigno. Ao contrário, não pode deixar de ser esses três

aspectos ao mesmo tempo.” (SANTAELLA 2001: 53)

E o próprio Peirce é quem enfatiza a talvez impossível precisão

classificatória:

“Constitui interessante problema dizer a que classe pertence um dado signo,

pois que todas as circunstâncias do caso têm de merecer consideração.

Contudo, raramente se exige grande precisão, pois que se alguém não situa

o signo de modo adequado, pelo menos dele se aproximará, com facilidade,

o suficiente para caracterizá-lo com vistas a qualquer objetivo ordinário de

lógica.” (CP 2.265)

Dessa forma, contando com a compreensão peirceana das

dificuldades do caminho, examinaremos as facetas sígnicas da palavra.

Page 56: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

57

2. A PALAVRA COMO LEGISSIGNO

A linguagem verbal constitui-se num típico sistema de legissignos. No

entanto, entre as dez principais classes sígnicas, há seis tipos de legissignos,

todos pertencentes ao domínio da terceiridade em função do seu

representamen ser uma lei, norma ou convenção, mas com possibilidades de

relacionar-se ao seu objeto dinâmico de formas tanto simbólicas, quanto

icônicas e indiciais. Como nos diz Santaella:

“Para começar é preciso considerar que nem todo legi-signo é

necessariamente simbólico, mas pode também ser indicial e icônico. O

universo lingüístico, desde o nível fonológico até o discursivo está repleto

deles.” (SANTAELLA 2001: 271)

Esse é um dos objetivos do presente estudo: investigar as

potencialidades sígnicas da palavra à luz das dez principais classes de

signos idealizadas por Peirce, que permitirão esmiuçar o signo lingüístico,

identificando nuanças que, de outra forma, passariam despercebidas.

2.1. Convenção: fundamento do legissigno

Tomando a palavra como signo na acepção peirceana do termo, se

considerada em relação ao seu representamen, em relação a si mesma,

como signo, i.e., seu fundamento, ela é um legissigno. Um legissigno é uma

lei, hábito ou convenção pela qual um signo será interpretado de determinada

maneira.

Essa classificação da palavra como convenção é a mais aceita, já que

na própria lingüística ela é assim considerada. Mas o que precisa ficar

evidenciado, e esse é o primeiro ponto importante que vai fundamentar as

análises buscadas neste estudo, é que essa convencionalidade se refere ao

seu fundamento, ao aspecto pela qual ela é tomada como signo. Desse

modo, é possível dizer que, a palavra, embora nasça como legissigno, posto

que nasce no interior do sistema da língua, não tem suas potencialidades

sígnicas restritas à convenção.

Page 57: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

58

A convencionalidade das palavras é requisito para a comunicação. O

próprio Peirce, em seu conceito de mente, refere-se àquela mente que

consiste de tudo aquilo que dever ser bem compreendido entre emissor e

intérprete para que o signo cumpra sua função:

“mente na qual as mentes do emissor e do intérprete têm de se fundir a fim

de que qualquer comunicação possa ocorrer. Esta mente pode ser chamada

de Comens. Ela consiste de tudo aquilo que, de saída, é e deve ser bem

compreendido entre emissor e intérprete a fim de que o signo em questão

cumpra sua função.” (SS 196,197)

2.2. Legissigno e objeto dinâmico

Outro importante aspecto a ser considerado, que pode parecer mais

controverso em função de toda a tradição saussureana, é o do objeto ao qual

a palavra se refere. Lembrando que a lingüística não leva em conta o objeto

referido (referente), sendo que para ela o signo lingüístico relaciona somente

conceito (significado) e imagem acústica (significante) (CLG 81), a teoria

peirceana tem uma contribuição importante a fazer no que tange à questão

do objeto. Como vimos, para Peirce, o objeto do signo se divide em objeto

dinâmico e objeto imediato, e o objeto dinâmico sempre determinará o signo

visto que ele é sua causa (CP 4.531; 6.347).

Na classificação peirceana dos signos, fica evidente que a palavra é

sempre convencional12, e que essa convencionalidade refere-se ao

fundamento da palavra como signo que ela é, fazendo dela, invariavelmente,

um legissigno. Um legissigno, então, sendo uma lei ou convenção, poderá

ser, na sua relação com o objeto dinâmico, um ícone, um índice ou um

símbolo. Saussure não distinguiu essas nuances e considerou o signo

lingüístico arbitrário como um todo.

12 Note‐se que Peirce usa a palavra convenção ao se  referir aos símbolos, que são  invariavelmente legissignos:  “Pois  símbolos  fundam‐se  tanto  sobre  hábitos,  que  são,  é  claro,  gerais,  ou  sobre convenções ou acordos, que são igualmente gerais.” (SS 70; ver também SS 33). Saussure, por outro lado, também usa a palavra hábito: “... a idéia de que a língua seja um hábito” (CLG 221). 

Page 58: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

59

Então a palavra, por sua vez, dentro do sistema da língua, sendo

invariavelmente um legissigno em relação ao seu fundamento, poderá

apresentar-se sob diferentes aspectos na sua relação signo-objeto dinâmico,

sem ficar restrita à sua função simbólica:

“a [afirmação] de que a palavra é pura e simplesmente símbolo é

decididamente equivocada.” (SANTAELLA e NÖTH 1999: 63)

Essa variação, que não afeta seu caráter convencional, possibilitará à

palavra, ao manifestar-se, que ela também o faça de formas icônicas e

indiciais, além das formas simbólicas já amplamente reconhecidas. Dessa

maneira, a palavra, nas suas manifestações sígnicas, poderá, dentro do

espectro das dez classes de signos, ser um:

- legissigno icônico,

- legissigno indicial, ou

- legissigno simbólico.

A distinção de como a palavra se relaciona com seu objeto dinâmico é

primordial para o melhor entendimento das mudanças pelas quais passa a

palavra escrita nos suportes eletrônicos. Analisando suas manifestações

simbólicas, indiciais e icônicas, bem como seus desmembramentos em

imagens, diagramas e metáforas, teremos uma compreensão ampliada das

relações sígnicas que a regem.

2.3. Objeto dinâmico, necessidade e a motivação da palavra

O signo lingüístico foi considerado arbitrário13, não motivado, por

Saussure, o que equivale a dizer que não há ligação necessária (no sentido

filosófico) entre a imagem acústica e conceito, muito menos entre imagem

acústica e o objeto do signo.

13 “... queremos dizer que o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade” (CLG 83). 

Page 59: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

60

De fato, não há (e provavelmente nunca haverá) ligação14 necessária15

entre um objeto e um signo lingüístico, seja de que língua for. Por

necessidade16 lógica entende-se uma relação onde uma causa sempre leva a

determinado efeito. Este é o principal argumento daqueles que, como

Saussure, postulam contra a motivação do signo lingüístico: não há nada que

determine que um dado objeto receberá necessariamente tal denominação,

sendo a própria diversidade das línguas a primeira e mais evidente prova de

tal argumento (CLG 81,82).

Mas a liberdade17 (filosoficamente, por livre entende-se aquilo que não

sofre determinação) na criação de diferentes palavras (signos) designando

um mesmo objeto, não impede que a palavra seja considerada motivada,

uma vez que não se trata de liberdade, mas sim, da variedade dos aspectos

passíveis de darem motivação ao surgimento de uma palavra.

A palavra, ou melhor, a forma que ela assume, é fruto da percepção

humana18, da captação, através do aparelho sensório, de diferentes aspectos

de um determinado objeto, ou melhor, de um determinado existente. Como

fruto da mediação sensória, ela é traduzida19 para a linguagem verbal a fim

de que o humano possa expressar-se. Nesse momento, ao ser cunhada, a

palavra visa a designar um determinado objeto, referindo-se a ele em função

de um determinado aspecto que se faz mais premente naquele momento.

Dessa maneira, a palavra se liga, por meio de uma das formas de

relação signo-objeto dinâmico (iconicidade, indexicalidade, simbolicidade), a

um dos aspectos do objeto, sendo impossível que uma palavra se ligue ao

14 “A língua , ao contrário, não está limitada por nada na escolha de seus meios, pois não se concebe o que nos impediria de associar uma idéia qualquer com uma seqüência qualquer de sons” (CLG 90). 15 “... não existem relações necessárias entre som e sentido” (CLG 220). 16 Necessário, em  lógica e metafísica,  falando de relações: 1)É dito necessário o encadeamento das causas e dos efeitos num sistema determinado; ou ainda, 2) é dita necessária a relação de um meio com um fim, de uma condição com um condicionado, se esse fim for atingido apenas por esse meio ou esse condicionado se puder realizar apenas sob essa condição (cf. LALANDE 1999: 726,727). 17 “Livre é o que não tem outro atrás de si determinando suas ações; (...) A liberdade só se manifesta na multiplicidade e na variedade incontrolada ...” (CP 1.302). 18 Cf. artigo “A palavra como mediação entre a percepção humana e o existente” (JUNGK: 2010). 19  Peirce  nos  dá  um  exemplo:  “Substantivos  comuns  são  primariamente  (primitively)  usados  para denotar perceptos sensórios (sense‐percepts)...” (CP 2.353). 

Page 60: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

61

objeto que representa em todos os seus aspectos. Neste caso, ela teria que

ser o próprio objeto, e não sua representação. Daí a diversidade das línguas,

onde cada palavra nasce ligada somente a um dos aspectos do objeto

representado, ligação essa que muitas vezes se enfraquece com o tempo,

com a necessidade da convencionalidade, levando a uma aparente

arbitrariedade do signo lingüístico20.

Dito de outro modo, a palavra pode ser motivada em relação a seu

objeto de formas icônicas e indiciais, não somente simbólicas, captando, em

sua trama sígnica, um aspecto do seu objeto com mais evidência do que

outros, sem deixar de ser um legissigno, ou seja, sem contrariar a natureza

convencional que ela incorpora no interior do sistema da língua.

“Porque símbolo é coisa viva, e isto, sem usar figura retórica. O corpo do

símbolo muda lentamente, mas o significado cresce inevitavelmente,

incorpora novos elementos e deita fora elementos antigos. (...) Cada símbolo

é, em sua origem, ou imagem da idéia significada, ou reminiscência de

ocorrência individual, pessoa ou coisa, ligada com seu significado, ou é

metáfora.” (CP 2.222)

2.4. Onipresença e recursividade das categorias

Existem dois aspectos fenomenológicos que corroboram a abordagem

da palavra como legissigno icônico e indicial, além de simbólico: a

onipresença e a recursividade das três categorias, o que faz com que os

legissignos (terceiridade) possam relacionar-se aos seus respectivos objetos

dinâmicos tanto em nível de primeiridade (icônicos), de secundidade

(indiciais), como de terceiridade (simbólicos).

Por onipresença devemos entender que não é possível encontrar uma

categoria pura, isolada das outras. As três encontram-se sempre

relacionadas, em maior ou menor grau, dentro de um fenômeno e, portanto,

de um signo. Por isso, Peirce as chamou de categorias universais de toda e

qualquer experiência e pensamento (SANTAELLA 1983: 29).

20 Esse argumento foi  levantado e analisado com mais detalhes, sob o ponto de vista da psicanálise, em trabalho anterior, intitulado “Modelos de Sensibilidade” (JUNGK 2009). 

Page 61: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

62

Por outro lado, o princípio da recursividade das categorias, que podem

ser utilizadas como “recursos formais diferenciadores”, nos diz que, dentro de

cada signo, primeiridade, secundidade e terceiridade voltam sempre a operar

repetidamente, “à maneira de uma caixa chinesa” (SANTAELLA 1992a: 122),

o que também pode ser claramente observado no caso do ícone, que

pertencendo predominantemente à categoria da primeiridade, subdivide-se

em imagens (primeiridade), diagramas (secundidade) e metáforas

(terceiridade).

2.5. Combinação de signos: necessidade lógica

Outro aspecto importante, de natureza eminentemente cognitiva, é o

da necessidade lógica, para a qual Peirce aponta com veemência, da

combinação de signos ligados às três categorias: símbolos, índices e ícones.

“Juntamente com a tese de que não há pensamento sem signos, ele [Peirce]

também defendeu a tese de que não há pensamento, linguagem ou

raciocínio que possa se desenvolver apenas por meio de símbolos, nem

mesmo o raciocínio puramente matemático, dedutivo. Há sempre uma

mistura de signos que é constitutiva de todo pensamento.” (SANTAELLA

2001:32)

O motivo para essa necessária combinação de signos é que cada um

deles serve para apresentar, perante a mente, ou seja, perante o

pensamento, um tipo especifico de objeto que os outros não apresentam.

“O próximo passo consiste em considerar porque os pensamentos devem

tomar essas três diferentes formas. Observar-se-á que cada tipo de signo

serve para trazer perante a mente objetos de diferentes tipos daqueles

revelados pelas outras espécies de signos.” (CP 6.339)

Para Peirce, um sistema de notação lógica, ou seja, uma linguagem, e,

portanto, uma língua, deve empregar signos desses três tipos para que os

raciocínios empreendidos possam ser completos. Nos símbolos, predominam

relações de terceiridade, especialmente a de generalidade, pela qual eles

Page 62: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

63

apontam para conceitos mais ou menos gerais e abstratos que precisam que

uma conexão dinâmica com um existente venha a ser estabelecida a fim de

que tenham poder referencial. Este poder lhes é conferido pelos índices,

signos nos quais a relação com o objeto dinâmico é predominantemente uma

secundidade. Por outro lado, os símbolos precisam, para ter poder de

significação, de ícones que lhes forneçam seu conteúdo.

“Eu tive dificuldades para tornar clara minha distinção entre ícones, índices e

tokens21 [símbolos], a fim de enunciar esta proposição: num sistema perfeito

de notação lógica, signos desses vários tipos devem todos ser empregados.

Sem tokens não haveria generalidade nas declarações, por eles serem os

únicos signos gerais, e generalidade é essencial ao raciocínio. (...) Mas

somente tokens não estabelecem o tema de um discurso, que não pode, de

fato, ser descrito em termos gerais; somente pode ser indicado. O mundo

real não pode ser distinguido de um mundo imaginário por nenhuma

descrição. Daí a necessidade de pronomes e índices, e quanto mais

complicado for o assunto, maior é a necessidade deles. (...) Índices também

são necessários para mostrar de que maneira outros signos estão

conectados. Com esses dois tipos de signos somente, qualquer proposição

pode ser expressa, mas não pode ser raciocinada, pois o raciocínio consiste

na observação de que onde certas relações subsistem, certas outras são

encontradas, e isso, portanto, requer a exposição das relações raciocinadas

dentro de um ícone.” (CP 3.363)

A partir disso, podemos compreender como, num discurso, os

símbolos servem à generalidade e inteligibilidade do raciocínio; os índices

exercem a função referencial e denotativa que lhes é própria, além de

servirem como conectores entre outros tipos de signos; e finalmente como os

ícones, sem os quais o discurso perderia qualquer poder de significação,

contribuem para a compreensão da proposição expressa pelos símbolos e

índices, fornecendo-lhes seu conteúdo. Peirce reforça o caráter indispensável

da ação conjunta dessa tríade de signos para todo raciocínio:

21 Peirce usou diversos termos para denominar seus tipos sígnicos até chegar a uma nomenclatura um pouco mais  definida. Na  passagem  citada,  a  palavra  token  foi  usada  como  sinônimo  de  símbolo. Posteriormente,  token  é  tomado  como  sinônimo  de  sinsigno,  na  equivalência  entre  as  tríades qualissigno‐sinsigno‐legissigno e tone‐token‐type (ver capítulo I). 

Page 63: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

64

“Uma tríade muito importante é a seguinte: encontraram-se três espécies de

signos que são absolutamente indispensáveis em todo raciocínio; a primeira

é o signo diagramático ou ícone, a qual exibe uma semelhança ou analogia

com o sujeito do discurso; a segunda é o índice que, semelhante a um

pronome demonstrativo ou relativo, força a atenção sobre o objeto particular

pretendido sem descrevê-lo; a terceira (ou símbolo) é o nome geral ou

descrição que significa seu objeto por meio de uma associação de idéias ou

conexão habitual entre o nome e o caráter significado.” (CP 1.369)

Dessa forma, é possível inferir que, por meio de ícones, índices e

símbolos, toda língua e seu correspondente sistema de escrita notam,

denotam e conotam, sons e significados entretecidos numa sintaxe para

expressar o que a mente humana é capaz de conhecer.

“Instrutivamente, esses termos (ícone, índice, símbolo) e/ou seus

equivalentes provisórios, são definidos em termos de denotação ou extensão

e conotação ou compreensão. Assim, ícones (copies, likenesses) conotam

sem denotar, índices (signs, mere signs, conventional signs) denotam sem

conotar, e símbolos ou termos gerais denotam em virtude de conotar.”

(BROCK 1997:560)

Lembramos, mais uma vez, que entre as dez classes de signos, três

são icônicas, quatro são indiciais e três são simbólicas, independentemente

da natureza de seus representamina.

2.6. Legissignos indiciais

Por motivos didáticos, começaremos pelos legissignos indiciais. Estes

não são signos gerais, pois, embora sejam signos de lei em sua relação de

representamen, sua relação com o objeto não é de natureza simbólica, e não

representam, assim, nenhuma classe geral de objetos, o que não os impede

de participarem de processos genuinamente semióticos, i.e., triádicos, que

envolvam interpretantes.

“As classes de signos... mostram que pode haver processos genuinamente

semióticos não constituídos por signos gerais e, mais ainda, por signos

convencionais. (...) Há signos lingüísticos, como são os pronomes

Page 64: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

65

demonstrativos e os nomes próprios, que constituídos pelo código

lingüístico, somente indicam os objetos que designam deles não produzindo

um conceito geral.” (SILVEIRA 1996: 46)

Os legissignos indiciais podem ser de dois tipos: dicentes ou

remáticos. O rema é um interpretante lógico de possibilidade; as palavras de

características indiciais pertencerão, portanto, a esta classe de legisssignos

indiciais, embora, no seu uso efetivo, possam adquirir um caráter dicente22.

Eles podem ser definidos como:

“qualquer tipo ou lei geral, independentemente de como tenha sido

estabelecido, que requer que cada uma de sua instâncias seja realmente

afetada por seu objeto, de maneira tal a simplesmente atrair a atenção para

aquele Objeto.” (CP 2.259)

A caracterização do legissigno indicial remático é de extrema

importância para toda a teoria da linguagem (SILVEIRA 2007: 104) em

função de sua capacidade designativa ou referencial, já que dentro dos

sistemas convencionais de signos, ele é o elemento indispensável para

atribuir uma idéia ou representação geral a uma individualidade em função da

insuficiência dos símbolos para designar sujeitos de atribuição e,

conseqüentemente, produzir efeitos no universo da experiência. Conforme

Silveira:

“Sendo em sua constituição própria um tipo ou lei geral, (o legissigno indicial

remático) integra o universo das demais representações, por mais gerais e

abstratas que elas sejam. Contudo, em sua relação com o Objeto, faz com

que suas ocorrências sofram efetiva ação do Objeto, ligando, portanto, as

representações gerais à individualidade dos Objetos representados,

efetivamente designando-os, chegando, em certos casos, a fisicamente

apontá-los.” (SILVEIRA 2007:104)

Peirce nos explica o funcionamento dessa capacidade designativa

(referencial) dos legissignos indiciais remáticos, a necessidade que temos

deles e sua importância para a clareza da mensagem:

22 Peirce dá o exemplo do legissigno indicial remático, a palavra aquele, que na expressão “Aquele é Farragut“ adquire um caráter dicente. (CP 2.265) 

Page 65: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

66

“Nenhuma questão de fato pode ser asseverada sem o uso de algum signo

que sirva como índice. Se A diz a B: “Há um incêndio”, B perguntará?

“Onde?” A partir do que A vê-se forçado a recorrer a um índice, mesmo que

ele esteja fazendo referência a um lugar qualquer do universo real, passado

e futuro. Caso contrário, ele apenas teria dito que existe uma idéia como a

de fogo, que não veicularia informação alguma, pois a menos que já fosse

conhecida, a palavra “fogo” seria ininteligível. Se A aponta o dedo na direção

do fogo, seu dedo está dinamicamente conectado com o fogo, tal como se

um alarme contra fogo auto-ativante (self-acting) o tivesse voltado nessa

direção, ao mesmo tempo em que também força o olhar de B a virar-se

nessa direção, sua atenção a debruçar-se sobre o fato, e sua compreensão

a reconhecer que sua pergunta está sendo respondida.” (CP 2.305)

Foi o próprio Peirce quem nos legou exemplos valiosos destes

legissignos indiciais remáticos na linguagem verbal, tais como nomes

próprios, pronomes demonstrativos (este, isto, isso, aquilo, etc.) e pronomes

relativos (que, quem, cujo, etc.), que “são quase puros índices, porque eles

denotam coisas sem descrevê-las” (CP 3.361). Peirce esclarece que os

nomes próprios são produzidos por associação por contigüidade, pois são

“palavras que denominam coisas, coisas essas que ele (o homem) identifica

pela união de suas reações” (CP 4.157). Vejamos outros exemplos:

“A par dessas orientações indiciais do que fazer para chegar ao objeto

apontado, devem classificar-se aqueles pronomes a que importa chamar

seletivos (ou quantificadores) por que informam a pessoa que ouve acerca

de como deve ela escolher um dos objetos referidos; os gramáticos

denominam esses pronomes utilizando a indefinida designação de pronomes

indefinidos. Duas espécies desses pronomes são particularmente

importantes em lógica, os seletivos universais, tais como quivis, quilibet,

quisquam, ullus, nullus, nemo, quisque, uterque; em português, qualquer,

cada, todos, nenhum, ninguém. Significam eles que o interlocutor tem

liberdade de escolher o exemplo que lhe agrade, dentro dos limites

expressos ou entendidos, e a asserção pretende aplicar-se a esse exemplo.

A outra espécie logicamente importante inclui os seletivos particulares, quis,

quispiam, nescio quis, aliquis, quidam; em português, algum, alguém, alguma

coisa, um, certo, este ou aquele.

Page 66: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

67

Relacionados com os pronomes acima referidos estão expressões tais como

“todos menos um”, “um ou dois”, “uns poucos”, “quase todos”, etc. Além dos

pronomes, devem ser qualificados os advérbios de lugar, de tempo, etc.

Não muito diversas seriam expressões como “o primeiro”, “o último”, “o

sétimo”, “dois terços de”, “milhares”, etc.” (CP 2.289)

“Outras palavras indiciais são as preposições e as frases preposicionais, tais

como ‘à direita (ou esquerda) de’. Direita e esquerda não podem ser

identificadas por qualquer expressão geral. Outras preposições poderão,

talvez, indicar relações passíveis de serem descritas, mas quando se

referem, como acontece com maior freqüência do que se poderia supor, a

uma situação relativa ao observado ou admitido como de conhecimento por

experiência, lugar e atitude de quem fala, em relação à do ouvinte, então o

elemento indicial se torna o elemento dominante.” (CP 2.290)

Peirce discute, ainda, as “eficiências e ineficiências de cada tipo de

signo”, e considera que os índices, impossibilitados de fornecer qualquer

insight sobre a natureza dos objetos que eles designam, por outro lado,

“fornecem uma certeza positiva acerca da realidade”, além da proximidade

com seus objetos (CP 4.531). Por isso, a linguagem verbal precisa de índices

dos mais variados tipos para se referir ao mundo real:

“Nenhuma língua, tanto quanto eu saiba, tem qualquer forma particular de

discurso capaz de mostrar que é do mundo real que se está falando. Mas

isso não é necessário, visto que os tons e olhares são suficientes para

mostrar quando o falante está sendo sério. Esses tons e olhares agem

dinamicamente sobre o ouvinte, e fazem-no atentar para as realidades. São,

portanto, índices do mundo real.” (CP 2.337)

Não por acaso encontramos os índices desempenhando suas funções

de conexão com a realidade nos traços supra-segmentais23 da fala e na

comunicação gestual, não-verbal que a acompanha.

“São ainda exemplos de índices muitos dos traços supra-segmentais da fala

e boa parte da comunicação não-verbal que a acompanha. (...) Em razão

disso é que a oralidade está sempre entremeada de traços indiciais, não-

23 Supra‐segmental, em lingüística, diz‐se dos fatos prosódicos que se superpõem à cadeia de fonemas segmentais, como o acento tônico, o tom, a duração e a entonação. Prosódia, por sua vez, é a parte da gramática tradicional que se dedica às características da emissão dos sons da fala, como o acento e a entoação. (Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa) 

Page 67: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

68

verbais, responsáveis pelas sinalizações que ligam o universo discursivo ao

universo dos fatos, daquilo que está fora do discurso.” (SANTAELLA 2000:

126)

2.7. Legissignos simbólicos

Os símbolos, lembrando que todo símbolo é um legissigno, se referem

a seu objeto em virtude de sua relação representamen-objeto dinâmico que

pertence à categoria da terceiridade, que envolve os conceitos de lei, norma,

hábito e convenção. Devido à categoria da terceiridade ser aquela da

generalidade, os símbolos representam seus objetos como constituindo uma

classe geral, sendo os substantivos comuns, o exemplo mais usual de

legissigno simbólico na linguagem verbal.

“Os Símbolos,... só se referem ao Objeto que denotam, em virtude de uma

lei e, freqüentemente, por força de uma convenção. Referem-se usualmente

ao Objeto, atribuindo-lhe conjuntos de predicados e é somente devido a esta

atribuição que atuam como signos do Objeto.

Devido ao nível de generalização com que representam o Objeto, deverão

os Símbolos representá-lo como constituindo uma classe geral. Para o

cumprimento desta função, os Símbolos em sua própria constituição como

signo, ou seja, no fundamento de sua relação de Representamen,

necessitam ser um signo geral e compartilhar da natureza da lei. Devem ser,

segundo a nomenclatura peirceana, um Legissigno. Assim procedem, aliás,

os substantivos comuns, que lhe servem de exemplo.” (SILVEIRA 1996: 46)

Assim, Peirce, esclarece que a palavra não tem existência em si

mesma, embora tenha um “ser real” ao qual todas as suas manifestações, ou

réplicas, deverão conformar-se. A palavra é um tipo geral de sucessão de

sons (palavra falada), e ainda, um tipo geral de representamens de sons

(palavra escrita) que se torna um signo em função de um hábito ou lei pela

qual ela será interpretada de determinada forma, toda vez que ela se

apresentar, seja para ser ouvida, ou para ser lida.

“Falamos de escrever ou pronunciar a palavra “homem”, mas isso é apenas

uma réplica ou materialização da palavra que é pronunciada ou escrita. A

palavra, em si mesma, não tem existência, embora tenha ser real,

Page 68: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

69

consistindo em que os existentes deverão se conformar a ela. É um tipo geral

de sucessão de sons, ou representamens de sons, que só se torna um signo

pela circunstância de que um hábito ou lei adquirida levam as réplicas, a que

essa sucessão dá lugar, a serem interpretadas como significando um

homem. Tanto as palavras quanto seus signos são regras gerais, mas a

palavra isolada determina as qualidades de suas próprias réplicas.” (CP

2.292)

Pode-se dizer, com muita parcimônia, é claro, que o ser real de uma

palavra a que Peirce se refere, é algo que está acima de qualquer língua. Ele

é, de certa forma, em certo sentido, e para alguns fins, um ser supra-

lingüístico, não havendo diferença em qual língua encarna-se sua réplica.

“Suponhamos que eu apague esta palavra ‘seis’ e escreva ‘Seis’. Não se tem

aí uma segunda palavra, mas sim, a primeira novamente. Elas são idênticas.

Ora, pode a identidade ser interrompida ou devemos dizer que a palavra

existia, embora não estivesse escrita? Esta palavra ‘seis’ implica que duas

vezes três é cinco mais um. Esta é uma verdade eterna, a verdade que

sempre é e será verdade; e que seria verdade, embora não houvesse no

universo seis coisas que pudessem ser contadas, dado que ainda seria

verdadeiro que cinco mais um teriam sido duas vezes três. Ora, essa

verdade É a palavra SEIS; se por seis entendemos não este traço de giz,

mas aquilo em que concordam seis, six, sex, sechs, zes, sei.” (CP 7.593)

Esse ser real pode ser comparado a uma idéia, um compósito de

qualidades, real, isto é, sobre o qual não pode exercer nenhuma influência o

pensamento. Essa idéia não se confunde com o conceito, que para Peirce, é

um hábito formado pela ocorrência repetida de tal idéia associada à

experiência de sua utilização. Para Ransdell, essa idéia que vem à mente

quando estamos diante de uma palavra é “um conjunto antecipatório” ou

gestalt resultante de uma mistura de dados perceptivos reais e imaginários

(apud SANTAELLA 2001: 269).

“Uma idéia, que pode grosseiramente ser comparada a uma fotografia

composta, ganha vividez, e essa idéia composta pode ser chamada de idéia

geral. Não é propriamente um conceito; porque o conceito não é, de modo

algum uma idéia mas um hábito. Porém, a ocorrência repetida de uma idéia

geral e a experiência de sua utilidade, resulta na formação de um hábito ou

Page 69: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

70

fortalecimento daquele hábito que é o conceito; ou se o conceito já é um

hábito cuidadosamente compacto, a idéia geral é a marca do hábito.” (CP

7.498).

Vem daí a generalidade que é própria ao símbolo, e que nenhuma

ocorrência interpretativa em um intérprete particular poderá esgotar. Vem daí

também, a plasticidade do símbolo. Sua aptidão para a mudança, já que tais

mudanças são produzidas quando ocorrem transformações no hábito

interpretativo de um símbolo, pois as regras de interpretação, isto é, os

interpretantes lógicos podem ser modificados (SANTAELLA 2001: 266). Por

isso mesmo, o símbolo é um signo em crescimento nos interpretantes que ele

gerará no longo caminho do tempo:

“a característica ontolológica de mudança que diz respeito à estrutura do

signo, se aplica apenas aos legissignos (aos quais pertencem todos os

signos lingüísticos). Todos os outros signos, incluindo qualquer réplica de um

legissigno, é incapaz de um crescimento de significado (embora nossa

compreensão de sua significação possa continuar a crescer). (...) Mas os

símbolos, os principais tipos de legissigno, crescem não só conceitualmente,

bem como formalmente...” (SHAPIRO 1988: 124,125)

Signos gerais implicam signos menos gerais para se constituírem, e o

símbolo, na sua generalidade, conterá ícones para instanciar seu objeto na

mente em que efetivar seu interpretante, e implicará índices, suas réplicas,

como decorrência de se instanciar existencialmente.

“O que é certo é que signos mais gerais implicam signos menos gerais e não

se constituiriam sem assumi-los. É neste momento, que se torna possível

compreender plenamente a exigência expressa por Peirce de que todo signo

seja um Ícone ou nele o tenha contido. (...)

O caráter geral do Símbolo, para inserir-se no universo da experiência ao

qual pertence e somente no qual cabe-lhe atuar, exige, então, que ele

próprio se concretize em réplicas e que o Objeto por ele denotado possa se

instanciar existencialmente. Embora de um Símbolo, devido ao seu caráter

essencialmente geral, só se possa exigir que a instanciação de seu Objeto

se realize, diz Peirce, ‘no universo possivelmente imaginário ao qual o

Símbolo se refere.’ [CP 2.249].” (SILVEIRA 1996: 46)

Page 70: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

71

É por isso que o símbolo “é aplicável a tudo aquilo que possa

concretizar a idéia relacionada com a palavra”, já que, por si mesmo, o

símbolo “não identifica as coisas”. Peirce nos diz que ele, o símbolo, não é

capaz de nos mostrar “um pássaro”, mas supõe que somos capazes de

imaginar tais coisas, tendo a elas associados as palavras (CP 2.298). É esse

universo imaginário ao qual o símbolo se refere.

Com respeito ainda à generalidade do símbolo, existem dois tipos de

generalidade, uma ligada à categoria da primeiridade e outra à categoria da

terceiridade (RANSDELL apud SANTAELLA 2001: 267). A primeira pode ser

considerada subjetiva ou entitativa, e está relacionada ao ícone; e a segunda,

objetiva ou referencial, relacionada ao símbolo. O símbolo funciona então

como síntese de todas essas dimensões, já que, como vimos, eles “denotam

em virtude de conotar” (BROCK 1997:560). Santaella nos ensina com

clareza:

“Há, portanto, dois modos de generalidade: (1) objetiva ou referencial; e (2)

subjetiva ou entitativa, esta subdividida em (2.1) qualitativa e (2.2) nômica. O

sin-signo indicial é o único tipo de signo que está desprovido de

generalidade. Ele sempre indica, aponta para individuais ou coleção de

individuais. O ícone apresenta uma generalidade entitativa do tipo

qualitativo. O símbolo, por sua vez, possui tanto a generalidade referencial,

geral, quanto a entitativa do tipo nômico, isto é, a generalidade que pertence

a necessidade condicional. Mas, uma vez que o símbolo contém dentro de si

elementos de iconicidade e elementos de indicialidade, o símbolo funciona

como síntese de todas essas dimensões. (...) Ao retomar as noções lógicas

tradicionais de compreensão (profundidade) e extensão (aplicação), Peirce

considerou-as como as duas propriedades semióticas do símbolo. O nome

que deu a elas foi variado, tais como significação, conotação para a

profundidade e denotação para a extensão. Enquanto a denotação, extensão

ou aplicação, isto é, o poder aplicativo, referencial do símbolo corresponde

ao seu ingrediente indicial, a significação, conotação ou profundidade

corresponde ao seu ingrediente icônico” (SANTAELLA 2001: 268)

Então, o símbolo denotará em função de seu ingrediente indicial, e

conotará, isto é, significará por meio de seu componente icônico, que terá um

Page 71: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

72

caráter especial dado estar atrelado ao símbolo. Como diz Pignatari (1979:9),

“não se pode ter uma idéia (terceridade) isolada de sua forma (primeiridade)”.

O símbolo, portanto, conterá um conceito, ingrediente simbólico24 que é um

hábito, e uma idéia geral, ingrediente icônico, que é um compósito de

qualidades.

“Para ligar ‘o pensamento a uma experiência particular ou uma série de

experiências conectadas por relações dinâmicas’ (CP 4.56), o símbolo

precisa de índices. Assim, o poder de referência, poder indicativo do símbolo

vem de seu ingrediente indicial. Entretanto, o índice está desprovido do

poder de significar. Por isso mesmo, para significar, o símbolo precisa de um

ícone. Nesse caso, não se trata de um ícone tout court, mas de um tipo

especial de ícone, a saber, um ícone que está atado a um ingrediente

simbólico. Esse ingrediente ou parte - símbolo, Peirce chamou conceito; a

parte-ícone, ele chamou de idéia geral. Para Ransdell..., o conceito é o

sentido e a idéia geral é a significação. A parte-símbolo, conceito ou sentido,

corresponde ao hábito geral e não atualizado. A parte-ícone ou idéia geral é

aquilo que atualiza o hábito produzindo a significação. É por isso que Peirce

repetiu tantas vezes que o símbolo significa por meio de um hábito e de uma

associação de idéias.” (SANTAELLA 2001: 268)

Na linguagem verbal, isso se traduzirá em palavras produzidas em

função de uma associação de idéias por semelhança, “palavras que

significam ou querem dizer qualidades que são fotografias compostas de

idéias de sentimentos, e tais palavras são verbos ou porções de verbos, tais

como são os adjetivos, os substantivos comuns, etc.” (CP 4.157), e palavras

constituídas por uma associação de idéias por contigüidade, das quais, como

vimos, os nomes próprios são exemplo. Santaella nos explica como o

conceito e a idéia geral funcionam quando o símbolo é uma palavra:

“Como todos os símbolos, as palavras também contém o ingrediente

propriamente simbólico do símbolo, a saber, o conceito ou hábito.

Entretanto, Peirce afirmou que a palavra e o conceito são regras gerais. Há

aí duas regras portanto. Para essa dualidade, Ransdell (IBID.: 187) fornece 24  Interessante notar que Peirce  se  refere especificamente àquelas palavras puramente  simbólicas: “Ou ela [a palavra] pode ser puro símbolo, nem  icônica, nem  indicativa, como as palavras e, ou, de, etc.” (CP 4.447) 

Page 72: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

73

uma explicação muito clara. A regra, que é a palavra, é puramente

intralingüística, ou seja, regra que determina as combinatórias permitidas e

proibidas para a palavra no sistema da língua. Já a regra ou lei que é o

sentido ou hábito é a regularidade do conceito. As línguas humanas

relacionam, por meio de associações de idéias, as regras intralingüísticas

com as regras do conceito.

É por isso que o símbolo ‘homem’ ou símbolo ‘seis’ não são as palavras

‘homem’ e ‘seis’, mas sim o conceito de homem e seis nas suas

manifestações de fato com as palavras ‘homem’, ‘homme’, ‘hombre’, ‘man’,

etc. e com as palavras ‘seis’, ‘six’, ‘sechs’, ‘zes’, etc. As réplicas das palavras

atualizam o conceito tanto na sua manifestação denotativa, aplicativa

(índice) quanto na sua manifestação icônica. Como atualização do conceito

que constitui o sentido do símbolo, o ícone é uma idéia geral que o símbolo

produz ao se concretizar em uma réplica.” (SANTAELLA 2001: 269)

Importante frisar, então, que cada palavra, conterá duas regras: a

regra intralingüística, que determina sua sintaxe, isto é a forma como ela será

utilizada dentro do sistema da língua; e a regra que é a regularidade do

conceito, a regularidade da aplicação da idéia geral que ela comporta, e que

constitui o sentido do símbolo; podemos mesmo acrescentar que a regra

intralingüística se desdobrará em diversas regras: sintáticas, gramaticais,

ortográficas, e até mesmo tipográficas, se tomarmos como exemplo que

substantivos comuns em alemão devem ser grafados com inicial maiúscula.

Mais importante ainda, é frisar que a linguagem verbal relaciona todas essas

regras intralingüísticas com as regras do conceito.

Silveira nos explica, uma vez mais, como essas três dimensões,

icônica, indicial25 e simbólica, se apresentam no símbolo, denotando em

função de elementos indicadores e conotando qualidades:

“A associação de idéias gerais que o Símbolo representa, por constituir-se

num atributo mais ou menos complexo da classe de objetos denotada,

25  “É  por  isso  que,  no  universo  do  discurso,  há  vários  tipos  de  palavras,  entre  elas,  as  gerais, estritamente simbólicas e as indiciais, como são os pronomes pessoais, demonstrativos, os advérbios de  lugar etc. estas últimas se constituem no  ingrediente  indicial do símbolo,  também chamadas de marcas enunciativas, cuja função é conectar o pensamento, o discurso, o signo geral a experiências particulares.” (SANTAELLA 2001: 267)  

Page 73: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

74

deverá implicar tais idéias sob a forma de ícones, ou qualidades gerais

atribuíveis a objetos as podendo possuir. Devem também conter, elementos

indicadores, - Índices, para Peirce - que designem o lugar de sua ligação

com o objeto, sujeito da atribuição.” (SILVEIRA 1996: 47)

Essas três dimensões se encadeiam num crescente de significado,

que Peirce, em sua Ética da Terminologia (CP 2.219-224), evidencia

textualmente. Por essa progressão é que signos em que predominam

primeiridade e secundidade chegam a transformar-se em símbolos, em cuja

origem encontram-se, conseqüentemente, ou relações de semelhança com o

objeto significado (relações icônicas), ou a conexão dinâmica com a

ocorrência individual (relações indexicais) à qual o signo encontrava-se

primeiramente ligado. Reiteramos esta passagem seminal:

“Porque símbolo é coisa viva, e isto, sem usar figura retórica. O corpo do

símbolo muda lentamente, mas o significado cresce inevitavelmente,

incorpora novos elementos e deita fora elementos antigos. (...) Cada símbolo

é, em sua origem, ou imagem da idéia significada, ou reminiscência da

ocorrência individual, pessoa ou coisa, ligada com seu significado, ou é

metáfora. Termos da primeira e terceira origens serão inevitavelmente

aplicados a concepções diversas ...” (CP 2.222)

Nesse crescente, os símbolos se expandem, se desenvolvem26 a partir

também de outros símbolos, de seus conceitos, e como conseqüência, seu

significado se amplia. É o que acontece com as palavras:

“Os símbolos se expandem. Surgem por desenvolvimento a partir de outros

signos, especialmente a partir de ícones ou de signos mistos que participam

da natureza de ícones e de símbolos. Só pensamos através de signos. Os

signos mentais são de natureza mista; as partes-símbolo são chamadas

conceitos. Se um homem cria novo símbolo, ele o faz por via de

pensamentos que envolvem conceitos. Assim, só a partir de símbolos é que

um novo símbolo se pode desenvolver. Omne symbolum de symbolo. Uma

26 Em outra passagem, Peirce mostra como, no desenrolar da evolução da linguagem humana, esses aspectos icônicos e indiciais vão sendo obliterados pela simbolicidade dos signos: “Se os sons foram, originalmente, em parte icônicos, em parte indiciais, esses caracteres há muito tempo perderam sua importância. As palavras apenas representam os objetos que representam, e significam as qualidades que significam, porque vão determinar, na mente do ouvinte, signos correspondentes.” (CP 2.92) 

Page 74: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

75

vez existente, o símbolo dissemina-se. Por meio do uso e da experiência,

seu significado se amplia. Palavras como ‘força’, ‘lei’, ‘riqueza’, ‘casamento’,

tem, para nós, significado muito diverso do que tinham para nossos

ancestrais...” (CP 2.302)

Então fica claro como a formulação da parte-conceito de um símbolo

precisa de ícones, que Peirce diz que muitas vezes passam despercebidos,

mas cuja influência é “viva”, e pela qual, pode-se dizer, se forma em nossas

mentes o sistema conceitual que é a linguagem verbal:

“Um conceito não é apenas uma mistura de particulares - esta é apenas a

sua forma mais crua. Um conceito é a influência viva que exerce sobre nós

um diagrama, ou ícone, com cujas diversas partes um número igual de

sentimentos e idéias se une no pensamento para formar sistemas. Mas o

ícone nem sempre é claramente apreendido. Podemos não saber sequer o

que ele seja; ou podemos tê-lo apreendido por observação da natureza.” (CP

7.467)

2.8. Legissignos icônicos

Se as representações gerais ou símbolos dizem respeito à

inteligibilidade dos fenômenos, sendo nisso insubstituíveis, além da

capacidade referencial do discurso fornecida pelos índices, será a necessária

significação advinda dos signos icônicos.

“O raciocínio deve estar relacionado com as formas que são os principais

objetos do insight racional. Por isso mesmo, ícones são especialmente

requisitados para o raciocínio.” (CP 4.531)

Já vimos como a iconicidade está presente em todo símbolo por meio

da idéia que ela envolve; mas ela se manifesta de muitas outras maneiras na

linguagem verbal, nas quais a forma como a iconicidade aparece pode ser

considerada até mais aparente.

Segundo Nöth (1995: 98) há, basicamente, dois tipos de iconicidade

na língua: exofórica, que se refere à similaridade entre a linguagem e aquilo

que está fora dela, pois aqui “o representamen lingüístico possui, a princípio,

Page 75: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

76

um correlato no mundo não lingüístico”; e endofórica, que diz respeito a

segmentos lingüísticos que se assemelham a outros segmentos lingüísticos

precedentes, ou seja, “nas estruturas que não se referem ao mundo externo,

mas ao mundo do próprio discurso”.

“Iconicidade do tipo endofórico é, desse modo, referência icônica a outros

lugares dentro de um mesmo texto. Tal referência é a base do princípio da

recorrência da linguagem. Repetições, paralelismos, rimas, aliterações e

outras formas de reiteração de unidades equivalentes num mesmo texto são

formas de iconicidade endofórica. A base semiótica da poeticidade, que

Jakobson localiza no princípio da recorrência, é portanto, uma relação de

iconicidade endofórica.” (NÖTH 1995: 98)

A iconicidade endofórica, além de intratextual, pode ser intertextual,

quando identificamos padrões num texto que se referem a “padrões de

semelhança em outros textos: citações, alusões, e outras relações

intertextuais...” (NÖTH 1999: 614).

Também podemos encontrar exemplos de iconicidade endofórica no

interior do sistema da língua, que são principalmente de tipo diagramático,

como, por exemplo, aquelas encontradas nos sufixos de superlativos (NÖTH

1999: 614), já que se pode considerar o sistema da língua como constituindo

“um ícone diagramático, um sistema de padrões estruturais e relações entre

forma e conteúdo” (NÖTH 1999: 615).

Já no caso da iconicidade exofórica, similaridade entre o signo

lingüístico e aquilo que está fora dele, temos como um primeiro exemplo de

legissignos icônicos, as onomatopéias e as palavras delas derivadas, que

podem ser interpretadas como “ícones de seus objetos (modelos icônicos de

seus objetos)” (QUEIROZ 2007:155), por serem signos que compartilham

propriedades qualitativas (fonéticas) com seus objetos.

“Na categoria de ícones que participam das qualidades simples dos objetos,

temos em substância, as palavras onomatopéicas: murmúrios, sussurro,

chiado ou bum são exemplos de palavras que participam das qualidades

acústicas dos seus objetos.” (NÖTH 1995: 97)

Page 76: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

77

No entanto, na busca da compreensão dos legissignos icônicos, é

necessário lembrar que o conceito de ícone se desdobra em imagem,

diagrama e metáfora, e que,

“... para Peirce, nem todos os signos icônicos são imagens visuais, podendo

englobar formas acústicas, táteis, olfativas, formas conceituais de

semelhança, ou podendo englobar, com a noção de ícone puro, até mesmo

as quase-formas mentais em estado de gestação.” (SANTAELLA 2001:188)

Assim, quando falamos de onomatopéias, estamos considerando um

legissigno icônico somente no que diz respeito a uma imagem acústica. Outra

fonte de iconicidade da palavra é a etimologia, pela qual se estuda o seu

étimo, sua origem. Ela não nos dá o significado27 de uma palavra, mas nos

mostra, em muitos casos, o objeto imediato do signo lingüístico, isto é, o

objeto dinâmico como ele está, ou como foi inicialmente, representado em

determinada palavra.

São exemplos28 as palavras hipopótamo, cuja etimologia significa

“cavalo de rio”, mas que muito bem poderia ter sido representado como

cavalo grande, gordo, cinza, ou por qualquer uma de suas outras qualidades;

como verdura, pela cor verde dos vegetais; ou mesmo em palavras

compostas, como cavalo-marinho, que não é um mamífero e sim um peixe,

mas cuja cabeça tem um formato similar à cabeça de um cavalo. A

iconicidade dessas palavras pode ser considerada imagética, afinal, o

hipopótamo é geralmente visto sob a água, e a cor e a forma são visualmente

perceptíveis.

Em outros casos, como a palavra centeio, que vem do número cem,

devido à crença de que a planta produzia cem grãos por semente, e a

palavra centopéia, que significa ‘que tem cem pés’, pode-se considerar a 27 Peirce diz: “a história das palavras, não sua etimologia, é a chave para seus significados” (SS 79). Lady Welby, ao se referir à etimologia da palavra holliness (wholle‐ness), ressalta: “Como em muitos casos  semelhantes,  nós  aqui  tristemente  perdemos  uma  lição  psicológica  na  derivação  rastreável, geralmente curiosa de um termo recente.” (SS 178) 28 Cf. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Para uma abordagem das palavras como modelos de seus objetos, ver JUNGK: 2009. 

Page 77: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

78

iconicidade do tipo diagramática, já que no caso de centeio, a etimologia

expressa uma relação entre uma característica da planta e um número, o

mesmo acontecendo com a quantidade de pés da centopéia. Existe uma

miríade de palavras baseadas em números que buscam expressar atributos

quantitativos dos objetos que representam. Pode parecer discutível a

afirmação dessas palavras como ícones diagramáticos de seus objetos, no

entanto, também parece difícil considerá-la uma iconicidade imagética ou

metafórica. Tampouco se trata de uma relação puramente simbólica, e muito

menos de indexicalidade. É, sem dúvida, uma relação entre qualidades do

objeto dinâmico e do signo que o representa.

Peirce procurou mostrar a natureza mental desse tipo de ícone, que é

indicado por signos simbólicos, exemplificando-o com um sistema de

equações algébricas. Ele afirma:

“Quando, em álgebra, escrevemos equações, compondo um sistema, e

especialmente quando usamos letras semelhantes para traduzir coeficientes

correspondentes, o sistema é um ícone. Eis um exemplo:

a1x + b1y = n1

a2x + b2y = n2

Isso é um ícone no sentido de que faz parecerem semelhantes quantidades

que mantêm relações análogas para com o problema. Em verdade, toda

equação algébrica é um ícone, na medida em que exibe, por meio de signos

algébricos (que em si mesmos não são ícones), as relações das quantidades

em causa.

Serem todos os ícones semelhanças ou não é algo discutível. Por exemplo,

se um ébrio é apontado (exhibited) para mostrar, por contraste, a excelência

da temperança, temos certamente um ícone, mas pode-se duvidar se se

trata ou não de uma semelhança. A questão parece até certo ponto sem

importância.” (CP 2.282)

Os ícones de tipo algébrico, e, portanto, diagramático, mesmo que de

forma simples, quase rudimentar, poderíamos dizer, existem, são exibidos

Page 78: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

79

em todas as proposições gramaticais ordinárias. Para Peirce, eles são ícones

lógicos do tipo dos que podem ser auxiliados pelas regras convencionais:

“O fato de os ícones de tipo algébrico, embora geralmente muito simples,

existirem em todas as proposições gramaticais ordinárias é uma das

verdades filosóficas trazidas à luz pela lógica booleana. Em todas as escritas

primitivas, tal como os hieróglifos egípcios, há ícones de tipo não lógico, os

ideógrafos. Nas primeiras manifestações da comunicação verbal houve

provavelmente amplo elemento de imitação. Todavia, em todas as línguas

conhecidas essas representações foram substituídas por signos auditivos

convencionais. Estes, contudo, são tais que só podem ser explicados por

meio de ícones. Na sintaxe de todas as línguas há, porém, ícones lógicos do

tipo dos que podem ser auxiliados pelas regras convencionais.” (CP 2.280)

Um exemplo de ícone diagramático propriamente lingüístico é a

palavra quiasmo, que significa “a disposição cruzada da ordem das partes

simétricas de duas frases, de modo que formem uma antítese ou um

paralelo” (p.ex.: vou sempre ao cinema, ao teatro não vou nunca; meu filho

abraçou-me carinhosamente, carinhosamente o abracei). Sua etimologia vem

do grego khiasmós, que por sua vez significa 'disposição em cruz, em forma

da letra grega khi (X)’.

Temos de considerar, ainda, que um legissigno icônico poderá ser do

tipo metafórico. Nesse sentido, encontramos ainda um enorme conjunto de

palavras cujo “sentido figurado” não passa de seu uso metafórico, isto é,

icônico. São exemplos as palavras: solução (de um problema), que

originariamente significa “o efeito de solver”; chave (de um enigma), etc.,

lembrando que toda metáfora compreende um diagrama e uma imagem

encapsuladas dentro de si. Peirce demonstra o quanto as metáforas

participam da criação de uma linguagem, já que além de certas preposições

elencáveis, todo o restante de uma linguagem fica por conta delas:

“Se um lógico tivesse que construir uma linguagem de novo... diria

naturalmente: necessitarei de preposições para expressar as relações

temporais ‘antes’, ‘depois’, e ‘ao mesmo tempo que’; necessitarei

Page 79: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

80

preposições para expressar relações espaciais ‘contigüidade’, ‘inclusão’,

‘justaposição’, ‘no âmbito de’, ‘próximo de’, ‘distante de’, ‘à direita de’, ‘à

esquerda de’, ‘acima de’, ‘abaixo de’, ‘antes de’, ‘atrás de’; e necessitarei de

preposições para expressar movimentos, no sentido ou a partir dessas

situações. Quanto ao resto, posso fazê-lo com metáforas.” (CP 2.290)

Essa iconicidade metafórica tendo sido, desde sempre, explorada por

poetas e artistas, é fonte tanto de riqueza expressiva da língua, quanto de

significação para o símbolo.

“... há imagens alegóricas que figuram simbolicamente aquilo que denotam.

Assim, também há necessariamente imagem no símbolo, pois sem a

imagem, o símbolo não poderia significar.” (SANTELLA e NÖTH 1999: 63)

3. A PALAVRA COMO SINSIGNO

Todo signo precisa estar encarnado num existente. Sendo os

legissignos leis gerais, hábitos ou convenções, nenhum deles terá, por si só,

existência concreta, e, portanto, só tomarão corpo através de existentes,

denominados réplicas ou sinsignos de tipo especial por Peirce.

Sendo signos em que predomina a categoria da secundidade, os

sinsignos poderão ser de dois tipos quanto à relação com seu objeto

dinâmico: sinsignos icônicos e sinsignos indiciais.

Em relação ao seu interpretante final, sinsignos icônicos serão sempre

remáticos, enquanto os sinsignos indiciais poderão ser dicentes ou remáticos.

Os três poderão funcionar como réplicas de legissignos, conformados às leis

que os regerem em cada ocorrência específica (ver capítulo I).

No caso das palavras, lembrando que a tricotomia quali-sin-legissigno

também foi denominada tone-token-type em algumas passagens, Peirce nos

dá um exemplo claro de como um legissigno toma corpo em réplicas

(sinsignos):

Page 80: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

81

“Haverá, de ordinário, por volta de vinte ‘the’ em uma página, e naturalmente

eles contam como vinte palavras. Em um outro sentido da palavra ‘palavra’,

contudo, há somente uma palavra ‘the’ na língua inglesa; e é impossível que

esta palavra estivesse visivelmente em uma página ou fosse ouvida em uma

fala, pois não é ela uma coisa ou um acontecimento particular. Ela não

existe; ela somente determina coisas que efetivamente existem. A uma tal

Forma definitivamente significante, proponho que se denomine um Tipo

[Type]. Uma acontecimento particular que acontece uma vez e cuja

identidade se limita àquele acontecimento ou um objeto particular ou coisa

que se encontra em um determinado lugar em algum instante do tempo, um

tal acontecimento ou coisa sendo significante somente enquanto ocorre,

quando e onde ocorrer, me aventurarei a denominar Ocorrência [Token]. Um

caráter significante indefinido tal como o tom de uma voz não poderá ser

denominado Tipo ou Ocorrência. Proponho denominar um tal Signo, Tom

[Tone]. A fim de que um Tipo possa ser usado, deve ser ele corporificado em

uma Ocorrência que será um signo do Tipo, e através disso do objeto que o

Tipo significa. Proponho denominar tal Ocorrência de um Tipo, uma Instância

do Tipo. Desse modo, pode haver vinte Instâncias do tipo ‘the’ em uma

página...” (CP 4.537)

Dessa forma, a palavra será tanto legi quanto sinsigno, dependendo

da instância em que for considerada. No interior do sistema da língua, ela

será sempre um legissigno, uma lei que regerá as formas de seu uso e de

suas combinações com os demais componentes do sistema. Mas ao ser

efetivamente utilizada, ela o será através de uma réplica, que se constituirá

num singular, único e concreto a cada vez que ela for pronunciada ou escrita.

Peirce é bastante claro a esse respeito:

“Um legissigno é uma lei que é um Signo. Essa lei é geralmente estabelecida

pelo homem. Todo signo convencional é um legissigno (porém o inverso não

é verdadeiro). Ele não é um objeto singular, mas um tipo geral que, há

concordância a respeito, será significante. Todo legissigno ganha significado

por meio de um caso de sua aplicação, que pode ser denominado Réplica.

Assim, “the” (em inglês) comumente aparecerá de 15 a 25 vezes numa

página. Em todas essas ocorrências é uma e a mesma palavra, o mesmo

legissigno. Cada instância singular sua é uma Réplica. A Réplica é um

sinsigno. Dessa forma todo legissigno requer sinsignos. Todavia, esses não

Page 81: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

82

são sinsignos ordinários, uma vez que são ocorrências peculiares,

encaradas como revestidas de significação. Nem a Réplica seria revestida

de significação, não fosse a lei que lhe confere significação. ” (CP 2.246)

No exemplo de um substantivo comum, numa ocorrência determinada,

ele se fará acompanhar por um pronome demonstrativo, ou mesmo por um

artigo definido, que funcionará como um indicador de um caso particular da

lei geral.

“Tomemos, por exemplo, uma palavra, do tipo substantivo comum, qualquer

substantivo comum, digamos, ‘estrela’, o objeto dessa palavra não é uma

estrela que vejo, aqui e agora, neste céu ao escurecer. É claro que esta

estrela, aqui e agora, pode ser referida pela palavra ‘estrela’, mas, para isso,

temos de colocar um pronome demonstrativo antes da palavra ‘estrela’. É

esse demonstrativo que tem o poder neste momento determinado. Sem o

pronome, que funciona como indicador, a palavra ‘estrela’ não pode se referir

a uma estrela particular, mas a um tipo de coisa, isto é, algo que tem um

caráter tão geral quanto o da própria palavra.

Do mesmo modo, o efeito interpretativo, ou interpretante, que a palavra

‘estrela’ produz, é tão geral quanto ela mesma, ou seja, é um outro símbolo.

Se alguém lhe perguntar o que é uma estrela, para responder, você terá de

usar algo semelhante a um sinônimo, exatamente aquilo que encontramos

no dicionário: estrela = astro celeste. O significado do símbolo é, assim, um

outro símbolo. Temos aí a explicação do que é um signo relativamente

genuíno. Digo relativamente porque o simples fato de o símbolo estar

atualizado numa réplica em que ele, que é necessariamente abstrato e geral,

materializa-se já o faz perder seu caráter de genuinidade, adquirindo certas

características de degeneração, isto é, passa a ter algo de situacional,

provisório, passageiro, irrepetível.” (SANTAELLA 1998: 42)

No tocante às réplicas do legissigno indicial remático, estas se

constituirão em sinsignos indiciais remáticos de tipo especial, sendo que na

complexa rede da semiose, o “interpretante de um legissigno indicial remático

representa-o como um legissigno icônico; e isso ele o é em certa medida -

Page 82: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

83

mas em medida muito reduzida” (CP 2.259). Essas relações ficarão mais

claras quando analisarmos os emoticons (ver capítulo V).

A escrita considerada como subsumida à fala nada mais é do que a

sua consideração no seu caráter de réplica, de sinsigno. Porém a escrita

também tem uma gramática própria, suas leis e modos próprios de significar

que não pertencem a fala, sendo que sua capacidade de registrar sons não é

sua única função.

“Há um importante elemento de verdade no argumento de que a escrita foi

inventada quando certa correlação sistemática foi estabelecida entre marcas

gráficas e palavras. Mas prever a história e fazer do alfabeto um ideal

teleológico, simplesmente desvaloriza essa verdade, o que é, em efeito, o

que acontece quando a capacidade do sistema para indicar a pronúncia é

erigido no critério para reconhecer a escrita como tal.” (HARRIS 1986: 122

apud PAULUK 2003: 45)

Algumas vezes, as nuances do sinsigno implicam diferenças de

sentido, ou mesmo lingüísticas, sendo encaradas como ortografia e com

conseqüências até mesmo gramaticais. No sistema de escrita, a letras

podem ser grafadas de diferentes formas. Por exemplo, em português, no

caso de uso de palavras estrangeiras num texto, estas devem ser grafadas

em itálico. Nomes próprios devem ter a inicial maiúscula, bem como a

primeira letra de uma sentença. Em alemão, todos os substantivos devem ser

grafados com a inicial maiúscula, enquanto os adjetivos são grafados com

inicial minúscula, o que resulta num interessante exemplo:

“... a distinção entre maiúsculas e minúsculas pode ter uma relevância

grafêmica, embora esses pares correspondam, respectivamente, apenas a

um grafema, pois sua troca conduz a palavras variadas, por ex., em fest

(‘firme’) VS. (das) Fest ([a] ‘festa’) ou bar (‘efetivo’) vs. (die) Bar ([o] ‘bar’) na

escrita alemã.” (NÖTH 2010: 19)

Page 83: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

84

4. A PALAVRA COMO QUALISSIGNO

Um qualissigno é uma qualidade que funciona como signo, e será

sempre icônico em relação a seu objeto. No todo da linguagem verbal, esse

potencial encontra condições favoráveis para manifestar-se no sistema de

escrita, através da exploração de suas qualidades, tais como formas, cores,

diagramações.

“... um maior potencial para criar imagens existe no território das artes

gráficas. Aí temos múltiplas possibilidades de utilizar letras e palavras de

calibres, cores e disposições diferentes, de forma a criar constelações de

correspondências com os objetos do mundo. A poesia concreta tem

explorado, de forma mais sistemática, esse potencial da língua.” (NÖTH

1995: 98)

Quanto à palavra encarada como qualissigno, é preciso lembrar que

seus atributos somente ganham corpo nos sinsignos, sendo notório como as

formas29 em que se materializam se prestam a todos os tipos de

expressividade, que encontramos nas mais diferentes artes ligadas à escrita,

tais como tipografia, caligrafia, design gráfico, bem como a poesia concreta,

a e-poetry (poesia em contexto digital), etc. A literatura e a propaganda

também são pródigas em destacar esse aspecto autônomo do qualissigno

que está encapsulado no legissigno e no sinsigno, criando efeitos de sentido

a partir de suas qualidades materiais, que em princípio, nada tem a ver com a

função representativa que o sistema da língua lhes atribui.

“Uma vez que o signo não é idêntico à coisa significada, mas dela difere sob

alguns aspectos, ele deve claramente (plainly) possuir algumas

características próprias, que nada tenham a ver com sua função

representativa. Chamo estas características de qualidades materiais do

29 Ao contrário do que disse Saussure: “... o signo gráfico é arbitrário, sua forma  importa pouco, ou melhor, só tem importância dentro dos limites impostos pelo sistema; ... o meio de produção do signo é totalmente  indiferente, pois não  importa ao sistema (...). Quer eu escreva as  letras em branco ou em preto, em baixo ou alto relevo, com uma pena ou com um cinzel, isso não tem importância para a significação.” (CLG 138,139)  

Page 84: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

85

signo. Como exemplo dessas qualidades, tome-se, na palavra “homem”, ela

consistir de cinco30 letras; numa foto, ela ser plana e sem relevo.” (CP 5.287)

As classificações peirceanas, como já vimos, não são estanques, e

sua aplicação dependerá dos aspectos sígnicos que o observador quiser

destacar, já que nenhum signo pertence exclusivamente a nenhum tipo.

“Como se pode ver, as tricotomias peirceanas devem ser usadas como

ferramentas analíticas por meio das quais três aspectos diferentes da

semiose podem ser distinguidos. Essas distinções são sempre aproximativas

e dependentes do ponto de vista que o analista assume diante do signo.

Nenhum signo pertence exclusivamente a apenas um desses tipos, assim

como não há nenhum critério apriorístico que possa infalivelmente decidir

como um dado signo realmente funcionará. Tudo depende do contexto de

sua atualização e do aspecto pelo qual é observado e analisado.”

(SANTAELLA 2000: 102)

Consideremos um exemplo onde o aspecto qualitativo encontra-se

evidenciado na apresentação do signo, chegando mesmo a obliterar, em

certa medida, o caráter de lei de um signo verbal, em virtude da semelhança

entre duas letras “O” maiúsculas e o formato dos olhos, seu objeto:

“Observe-se esta seqüência:

Olho olhO OlhO

Temos aí três diferentes quali-signos atualizados em três ocorrências ou sin-

signos que funcionam como réplicas de um mesmo legi-signo. Em que

medida a exacerbação do aspecto qualitativo é capaz de obliterar o caráter

de lei de um signo verbal é uma questão de grau, dependente das condições

de apresentação do signo, apresentação esta que pode muitas vezes estar

voltada tão só para a criação de um efeito de contemplação ou dilatação dos

sentidos, numa demora perceptiva com vistas à regeneração da

sensibilidade de quem percebe.” (SANTAELLA 2000: 102)

30 No original: “... take in the word ‘man’, its consisting of three letters …” (CP 5.287) 

Page 85: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

86

Multiplicam-se os exemplos onde a forma do signo ratifica o significado

da palavra: eu am você, matemá+ica, DOI2, QU4TRO, SE7E, OIT8, N9VE,

infinit8, alf, entre muitos outros. Nestes casos, pode-se dizer que a palavra e

o signo que está sendo sugerido pela sua forma possuem objetos dinâmicos

equivalentes ou iguais.

No entanto, se muitas vezes a forma que o sinsigno assume é usada

para ratificar, encarnar o significado da palavra, aumentando seu poder

expressivo, em outras esses trabalhos acrescentam mais uma camada

sígnica, significante, à já complexa trama entretecida entre língua e escrita,

adicionando aspectos que não estão representados no legissigno.

Vejamos o exemplo:

P ra você.

A substituição de uma letra “A” pela figura de um coração, não interfere na

inteligibilidade da sentença (legissigno), no entanto, acrescenta uma camada

significante, pois seja lá o que for que estiver sendo destinado àquela

pessoa, está sendo com um sentimento, com algo que vem do coração, e

que pode ser expresso numa frase como: “para você com amor”, ou ainda,

“para você com carinho”. Neste caso, o objeto do signo icônico “coração” é

totalmente diferente do objeto da palavra “para”.

Outro exemplo (e este se constitui também numa singela homenagem

de minha parte) é o caso do nome próprio (patronímico) Peirce. Ele poderá

designar qualquer membro da mesma família, seu pai, Benjamin Peirce, por

exemplo, ou mesmo algum de seus irmãos. Mas pode ser grafado:

PEIRC3

onde a substituição de uma letra por um número três, em razão de sua

semelhança na forma, novamente não prejudicará a inteligibilidade do signo

lingüístico, adicionando, no entanto, um elemento que determinará, dentro de

determinado contexto, é claro, a qual dos membros da família o nome se

Page 86: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

87

refere, já que somente Charles Sanders Peirce concebeu três categorias

universais, e era mesmo conhecido como “triadomaníaco”31. Mesmo aqueles

que não conhecessem esses detalhes, saberiam que uma certa pessoa cujo

nome é Peirce, está ligada, mantém alguma relação com o número 3.

Essas camadas significantes permanecem embutidas no signo

lingüístico na forma de múltiplos e sucessivos palimpsestos32, camadas

essas que, embora não se dêem a conhecer ao olhar apressado dos usuários

da língua, sempre são exploradas por escritores, poetas e artistas os mais

diversos, que buscam um acréscimo de sentido em suas obras, e nas quais a

escrita encontra uma fonte quase inesgotável de riqueza expressiva, e onde

signos se complexificam para condensar significados.

Uma última observação se faz necessária quanto à natureza da

relação entre legissignos, sinsignos e qualissignos. Sendo que só sinsignos

tem existência concreta, a diferença entre legissignos e qualissignos, já que

nenhum deles tem individualidade, ou seja, nenhum deles é um singular, é

que um legissigno tem uma identidade definida, apesar de admitir uma

grande variedade de formas nas quais pode se materializar. O qualissigno,

por sua vez, não tem identidade; “é um mero qualissigno de uma aparência, e

não exatamente o mesmo do começo ao fim de um segundo. Em vez de

identidade, ele tem grande semelhança, e não pode diferir muito sem ser

chamado de um outro qualissigno.” (CP 8.334)

31 CP 1.568‐572. 32  Palimpsesto:  “papiro  ou  pergaminho  cujo  texto  primitivo  foi  raspado,  para  dar  lugar  a  outro” (Dicionário  eletrônico  Houaiss  da  língua  portuguesa).  No  sentido  figurado,  camadas  que  se sobrepõem.  

Page 87: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

88

Capítulo 3- LINGUAGEM VERBAL: CONJUNTO DE SISTEMAS SÍGNICOS

“A complexidade do real exige teorias à sua altura.”

Lucia Santaella (2001:29)

1. VISÃO SISTÊMICA

1.1. Ontologia Sistêmica e Semiótica

O presente estudo visa à compreensão da semiose da escrita em

geral e de algumas particularidades das mudanças pelas quais passa

atualmente em contextos hipermidiáticos. A consecução deste objetivo

iniciou-se tendo como base primeira a Teoria Semiótica de Charles S. Peirce

(capítulo I) à qual agora acrescentaremos a aplicação de alguns conceitos da

Ontologia Sistêmica, vista a partir da complexidade, conforme elaboração e

síntese do professor Jorge de Albuquerque Vieira, numa construção de

“bases pluri-inter e transdisciplinares que têm orientado sua trajetória rumo à

meta nuclear de construção de uma epistemologia da complexidade de

cunho próprio” (SANTAELLA in VIEIRA 2007: 14,15).

Esta visão sistêmica se justifica em função do caráter eminentemente

sistêmico dos elementos envolvidos, isto é, o fato da linguagem verbal poder

se considerada como um conjunto de sistemas e a hipermídia como um

sistema ambiente, imbricados num todo complexo de inter-relações.

A Ontologia Sistêmica vista a partir da complexidade parte do

pressuposto de que, como pano de fundo filosófico para as hipóteses

gnosiológicas das mais diversas ciências, faz-se necessária uma “Teoria da

Realidade” identificada a uma “Teoria do Ser ou dos Objetos (Ontologia)”,

que segundo a Filosofia clássica, pode ser definida como “o estudo do ser

enquanto ser, com independência de suas determinações particulares”, ou

ainda segundo Bunge (apud VIEIRA 2008a: 22), “a ciência concernente à

totalidade da realidade”.

Page 88: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

89

“Embora ainda sendo um rico e potencial terreno de pesquisa,

reconhecemos que há um profunda conexão entre tal forma de semiótica e a

teoria geral dos sistemas... Acreditamos assim que um estudo integrando a

semiótica, a teoria geral de sistemas e a ontologia clássica pode vir a

esclarecer os conceitos de auto-organização e complexidade, que tem se

tornado tão caros ao cenário de pesquisa contemporânea.” (VIEIRA 2008a:

53)

É nesse sentido que a Teoria Geral dos Sistemas é uma candidata a

uma Ontologia Científica, que “permitiria uma maior eficiência no tratamento

das ciências a partir de suas raízes ontológicas”. No entanto, a riqueza de

sua abordagem reside no fato dela ser aplicável a qualquer tipo de sistema,

incluindo aqueles típicos do âmbito das humanidades. Segundo Vieira:

“Podemos agora frisar um aspecto importante de nossa proposta: a visão

que pretendemos apresentar é aplicável a qualquer tipo de sistema, o que

inclui aqueles típicos das Ciências, aqueles típicos da Filosofia e aqueles

com que lidamos no domínio das Artes. Uma Ontologia que permita, além de

construções inter e transdisciplinares, o estudo de sistemas que até bem

pouco tempo foram tratados como incompatíveis ou incoerentes, como

pertencentes a áreas de conhecimento mesmo antagônicas, a partir da

fratura por demais artificial entre ciências exatas e ciências humanas, por

exemplo. O que propomos é que o conceito de sistema, em sua

fundamentação ontológica, possa vir a lidar com sistemas de alta

complexidade, onde Arte, Filosofia e Ciência mesclam-se, como em muitos

sistemas culturais.

Adotaremos assim como linha de trabalho a discussão de definições do

termo Sistema e a partir daí a discussão do que alguns autores chamam

Parâmetros Sistêmicos. Tais parâmetros formam um conjunto de conceitos

gerais o suficiente para a descrição e embasamento de representações de

qualquer coisa, satisfazendo o ideal ontológico perseguido. O que teremos

então é uma ferramenta que além de descrever bem qualquer entidade irá

permitir o vislumbre, a percepção de possíveis traços ou processos

associados aos sistemas, características estas que ficariam mais ocultas

sem o enfoque sistêmico.” (VIEIRA 2008a: 28)

Page 89: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

90

Por essas razões, já que “admitir uma realidade implica a necessidade

de hipóteses sobre a mesma”, um conjunto de tais hipóteses, em

consonância com a proposta de Vieira (2008a: 24), e que tem sido cada vez

mais adotado, pode ser:

1) a realidade é sistêmica, como conseqüência das noções de coisa e

objeto passarem a ser adotadas “como sendo relativas a sistemas” (VIEIRA,

2008a: 27), ou em outras palavras, porque todos os elementos componentes

da realidade passam a ser vistos como sistemas;

2) a realidade é complexa, já que todo sistema é sistema aberto e

portanto, em constante intercâmbio com outros sistemas e com o meio em

que emerge e se desenvolve. Dessa forma, a complexidade está sempre

presente, sem prender-se a nenhum parâmetro sistêmico específico, embora,

segundo Bunge (apud VIEIRA 2008a: 41), “teríamos duas formas de

complexidade, a dita ontológica, que se refere à complexidade que existe

realmente nas coisas; e a semiótica, que consiste na complexidade de

nossas representações das coisas”, é por isso que a

“Semiótica, a ciência geral de todos os signos e processos de comunicação,

emerge neste século como uma das principais ferramentas para o estudo e

conseqüente domínio sobre o problema da complexidade. Seu caráter geral

e amplo, próximo ao de uma Ontologia, torna-a adequada a todas as

tentativas de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Também neste

século assistimos à emergência de novos paradigmas, todos eles envolvidos

com a questão da complexidade e geralmente delineados contra um fundo,

também genérico, do que poderíamos chamar uma proto-Teoria Geral dos

Sistemas. (...) É exatamente o caráter quase-ontológico da teoria de

sistemas que permite uma ponte com o domínio da Semiótica...” (VIEIRA

2007: 45,46)

3) a realidade é legaliforme; considerando que todo elemento da

realidade pode ser compreendido como sistema aberto, a conseqüente troca

de informação com outros sistemas, sua internalização e elaboração, passam

assim a gerar “hábitos no sentido da semiótica peirceana” coerentes com “a

natureza do sistema e sua história passada”, e que possuem o caráter de leis

Page 90: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

91

a reger o comportamento do sistema em interações presentes e futuras

(VIEIRA 2008b: 21). É neste sentido que a Teoria dos Sistemas pode-se

somar às categorias fenomenológicas de Peirce, tidas como um sistema

exaustivo de relações monádicas, diádicas e triádicas, sob cujo prisma

qualquer fenômeno pode ser observado.

“De acordo com Hookway (1985: 80), ‘uma teoria das categorias é uma série

de concepções altamente abstrata e que funciona como um sistema

completo de summa genera, qualquer objeto do pensamento ou da

experiência devendo pertencer a uma das categorias deste sistema.’ Ao

longo dos anos, as categorias recebem muitas denominações, resultado de

experimentos em muitas áreas, e suas correspondências são analisadas em

diversos domínios.(...)

As categorias foram logicamente descritas como um sistema exaustivo de

relações, hierarquicamente organizado em classes de relações (3-ádicas, 2-

ádicas e 1-ádicas)... Esta é a fundação formal de seu modelo de semiose

(‘ação do signo’) e de suas classificações sígnicas.” (QUEIROZ 2004: 272,

273)

Dessa forma, acreditamos que a aplicação dos conceitos da Teoria

Geral dos Sistemas ao estudo das mudanças pelas quais passa o sistema de

escrita atual nos contextos hipermidiáticos, aliada a uma análise semiótica

das peculiaridades dos signos que a integram, pode lançar novas luzes para

o entendimento dos processos evolutivos da escrita, de vez que “uma das

vantagens da prática ontológica é que, ao lidarmos com traços muito gerais

de coisas, podemos utilizar os mesmos para fazer comparações e conexões

inter e transdisiciplinares” (VIEIRA 2008a: 26).

Vale ressaltar, ainda, que para Saussure (CLG 87), a língua, objeto de

nosso estudo, constitui um “sistema demasiado complexo”, pelo que ela não

é “completamente arbitrária”, e onde “impera uma razão relativa”. Esses

conceitos de sistema e complexidade, de arbitrariedade e razão, e mesmo de

signo, encontram-se em estado embrionário no Cours, e podem ser

amplamente elucidados pelas teorias em que se baseia o presente estudo.

Page 91: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

92

1.2. Sistemas abertos e parâmetros sistêmicos fundamentais

Sistema pode, genericamente, ser definido (cf.UYEMOV apud VIEIRA

2008a: 29) como um agregado de elementos, qualquer que seja sua

natureza, entre os quais existe um conjunto de relações de forma a que eles

partilhem determinadas propriedades. Ou seja, o conceito de sistema é

aplicável também a todo subsistema, já que essa condição é muito mais uma

questão de enfoque do que da natureza das relações envolvidas.

Segundo a ontologia sistêmica, como proposta por Bunge (apud

VIEIRA 2008a: 29), a realidade é formada por sistemas abertos, conexos, em

constante intercâmbio de informação com outros, segundo parâmetros

sistêmicos, sendo o Ambiente o mais imediato desses (VIEIRA 2008a: 33).

“É no sistema ambiente que encontramos todo o necessário para trocas

entre sistemas, desde energia até cultura, conhecimento, afetividade,

tolerância, etc., estoques necessários para efetivar os processos de

permanência. (...) O que é observado é que todos os sistemas parecem ser

abertos em algum nível; sistemas que tendem ao isolamento e perdem o

contato com o ambiente tendem à morte...” (VIEIRA 2008a: 34)

Parâmetros sistêmicos são aquelas características que ocorrem em

todos os sistemas, independentemente das particularidades de cada um

(VIEIRA 2008a:31). Esses parâmetros podem ser de dois tipos: Básicos

(também chamados Fundamentais), e Evolutivos33. Neste estudo, nos

deteremos nos parâmetros básicos, aqueles que todo sistema possui,

independente de processos evolutivos. São eles: Permanência, Ambiente e

Autonomia, e os três encontram-se intimamente relacionados.

Permanência pode ser entendida como “sobrevivência” de um

sistema, como sua viabilização ou duração no tempo em razão de

determinadas condições prévias (VIEIRA 2008a: 33) onde o sistema emergiu,

chamadas condições de permanência.

33 Para a compreensão dos parâmetros evolutivos, ver VIEIRA 2008a: 35‐42. 

Page 92: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

93

“ ‘Todas as coisas tendem a permanecer.’ No sentido acima, as coisas ou

objetos, a partir do momento em que se tornam existentes, ‘tentam’ durar,

tentam permanecer.” (VIEIRA 2008a: 32)

A duração, maior ou menor, de um sistema no tempo, se dá em função

de determinadas características que o adéquam ao seu Ambiente, o

segundo parâmetro sistêmico fundamental, que nada mais é do que um

segundo sistema envolvendo o primeiro.

“É visível também que há um meio prévio ao sistema onde essas condições

[de permanência] atuam localmente. Esse também é um sistema, que

envolverá e envolve o sistema em questão. Esse sistema envoltório é o

chamado Ambiente.” (VIEIRA 2008a: 33)

A Autonomia, como terceiro parâmetro básico, leva em consideração

o fato de que todo sistema é aberto em algum nível, realizando trocas de

algum tipo com o ambiente em que está inserido, a partir das quais o sistema

internaliza informações que tendem a gerar uma espécie de “estoque” interno

ao sistema que lhe garantam autonomia em relação às condições de

permanência iniciais e às modificações do próprio ambiente ao longo do

tempo.

“Ou seja, o conceito de sistema aberto é coerente com aquele de ambiente.

Como resultado da interação entre o sistema e seu ambiente, trocas

energéticas e entrópicas levam o sistema a internalizar informações, desde

diversidade material e energética (...) até diversidade sígnica (...) de vários

tipos. À medida que a internalização ocorre, uma espécie de ‘estoque’ é

gerado no sistema. É a chamada Autonomia.” (VIEIRA 2008a: 34, grifos

nossos)

Pela aplicação dos parâmetros sistêmicos fundamentais, podemos

admitir que um sistema de escrita, a partir do momento em que emerge como

tal em determinado ambiente, procurará manter-se no tempo através de

estoques de informação auridos de seu intercâmbio com outros sistemas

(entre eles o próprio ambiente) que lhe forneçam a necessária autonomia em

relação às possíveis transformações pelas quais venham a passar os demais

sistemas com os quais interage.

Page 93: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

94

No entanto, há três capacidades dos sistemas abertos necessárias à

manutenção de sua autonomia: a sensibilidade aos fluxos de informação

advindos de diversas fontes, capaz de alimentar uma função memória,

flexível e capaz de armazenar informações adequadamente, e, por último, a

elaboração eficiente do estoque de informações de acordo com as

necessidades do sistema. Vejamos:

“Um sistema aberto em determinado ambiente permanece no tempo se

apresentar três capacidades:

- deve possuir sensibilidade, no sentido de reagir adequadamente e à

tempo às variações ou diferenças que ocorrem nele mesmo ou no ambiente.

Essas cadeias de eventos, geradoras de processos se manifestam para o

sistema como sinais ou simplesmente fluxos de informação;

- o sistema deve ser capaz de reter parte desse fluxo, sob a forma de um

colapso relacional, a partir da progressiva internalização de relações

nascidas de sua atividade interna e do contato com o ambiente... O sistema

passa a adquirir não só a capacidade de perceber a informação, mas

também de percebê-la de uma certa maneira. Construída ao longo do

tempo, essa função é na verdade uma função memória, que ganha uma

grande flexibilidade na medida em que o sistema evolui para níveis mais

altos de complexidade. É a partir da memória, aqui generalizada, que um

sistema consegue conectar seu passado, na forma de uma história, com o

presente transiente e com possíveis futuros. Os três parâmetros

fundamentais da Teoria Geral de Sistemas, ou seja, Permanência,

Autonomia e Meio Ambiente, manifestam-se assim com coerência.

- finalmente, o sistema deve ser capaz de elaborar este estoque de

informação, na medida de suas necessidades. Uma elaboração eficiente não

só em flexibilidade, mas também em temporalidade. Sistemas tendem a

permanecer; como abertos, necessitam de um ambiente; para permanecer,

evoluem elaborando informação a partir de uma história. Esta última é a

capacidade mais nobre, típica dos sistemas cognitivos. Podemos encontrar

sistemas de todos os tipos, em todos os níveis de complexidade da

natureza, satisfazendo o exigido até a segunda capacidade. Já citamos aqui

o conceito de função de transferência, aplicado a sistemas ditos não vivos. É

a capacidade de elaboração eficiente que garante as formas mais elevadas

de complexidade em nossa realidade sistêmica.” (VIEIRA 2008b: 21,22)

Page 94: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

95

Ora, mais uma vez aqui, encontramos uma ponte com os conceitos

peirceanos, já que essas três habilidades, ontologicamente atribuídas aos

sistemas abertos, e, portanto, a qualquer componente da realidade, somente

podem ser atributos de uma mente, tal qual compreendida por Peirce.

Embora não se trate aqui de postular que a linguagem verbal se

consubstancie num tipo de mente, o que estaria além dos limites do presente

estudo (mas que bem poderia ser feito em outra ocasião, já que Peirce

comparou por diversas vezes o símbolo a um ente vivo), é preciso frisar que

ela, a linguagem verbal, está em constante intercâmbio com as mentes de

seus usuários, nas quais essas três habilidades operam incessantemente, o

que tem conseqüências inegáveis para qualquer sistema.

1.3. Evolução da linguagem verbal

Uma das principais conseqüências das três capacidades dos sistemas

abertos necessárias à manutenção de sua autonomia (sensibilidade aos

fluxos de informação, função memória e elaboração eficiente) é a sua

constante evolução. Dessa forma, os sistemas não se mantêm fixos ou

estáticos, passando por mudanças mais ou menos perceptíveis, porém

inevitáveis, no curso do tempo. Peirce, como poucos, tinha consciência dessa

inexorabilidade evolutiva, sendo que, para ele, também as leis (requisito

básico de todo sistema) modificam-se e evoluem, adaptando-se,

transformando-se e regenerando-se em função da interação com fatores

externos ao sistema. É nesse sentido que todo sistema lingüístico pode ser

considerado aberto.

“Nessa medida, não apenas a vida é uma espécie de linguagem, mas

também todos os sistemas e formas de linguagem tendem a se comportar

como sistemas vivos, ou seja, eles se reproduzem, se readaptam, se

transformam e se regeneram como as coisas vivas.” (SANTAELLA 1983:14)

Além de abertos, os sistemas lingüísticos são sistemas de signos,

predominantemente do tipo simbólico, em função de sua natureza conceitual:

Page 95: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

96

“O que define basicamente a natureza da linguagem verbal é o seu poder

conceitual, a ponto de podermos afirmar que o verbal é o reino da abstração.

Isso corresponde com exatidão às características daquilo que Peirce definiu

como signo simbólico, o universo da mediação das leis.” (SANTAELLA 2001:

190)

A própria essência sígnica do símbolo também é de natureza

evolutiva; Peirce chega a afirmar que se trata mesmo de uma “coisa viva”

(CP 2.222), por pertencer primordialmente à categoria da terceiridade, aquela

da continuidade, do pensamento e da evolução (CP 6.32), e assim

permanecer em contínuo estado de transformação. Por outro lado, pela

lógica recursiva das categorias, a terceiridade não pode prescindir da

secundidade e esta da primeiridade, fazendo com que o símbolo incorpore

elementos de ambas. Dessa forma, entender esses processos evolutivos

complexos depende, então, da compreensão do funcionamento semiótico

dos elementos envolvidos nos diversos sistemas que compõem o todo da

linguagem verbal, para a qual as classificações sígnicas de Peirce abrem

possibilidades de análise sem precedentes. Jakobson nos dá a entrever esse

novo cenário, com um exemplo:

“É assim que a idéia sugestiva e luminosa de Peirce, de que ‘um símbolo

pode comportar um ícone ou um índice [acrescentemos, de nossa parte, ‘ou

os dois ao mesmo tempo’] a ele incorporados’, propõe à ciência da

linguagem tarefas novas e urgentes e abre-lhe vastas perspectivas. Os

preceitos formulados por esse ‘desbravador’ da Semiótica estão repletos de

conseqüências vitais para a teoria e a prática lingüísticas. Os constituintes

icônico e indicial dos símbolos verbais foram muito freqüentemente

subestimados ou mesmo ignorados; por sua vez, o caráter primordialmente

simbólico da linguagem, e a diferença radical que, por conseguinte, a separa

dos outros conjuntos de símbolos, principalmente indicativos ou icônicos,

esperam igualmente encontrar seu exato lugar na metodologia lingüística

moderna.” (JAKOBSON 1963: 116)

Parte dessa análise já foi feita no capítulo II, em que a palavra,

considerada como o signo lingüístico por excelência, recebeu uma

abordagem à parte, em função da importância com que aparece

Page 96: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

97

reconfigurada em ambientes hipermidiáticos, o que será analisado com

exemplos práticos no capítulo V. No entanto, não só a palavra considerada

como uma unidade deve ser abordada, mas também outros signos da

linguagem verbal merecem análise pormenorizada. Eles aparecem

compondo as próprias palavras, substituindo-as, ou mesmo de forma

independente, ajudando a compor a riqueza sígnica da linguagem verbal que

se manifesta através de um conjunto de sistemas que a integram, e cujos

potenciais encontram-se evidenciados nos ambientes hipermidiáticos.

2. UM CONJUNTO SISTÊMICO VERBIVOCOVISUAL

Como vimos, sistema define-se em função do conjunto de relações

entre seus elementos, e de determinadas propriedades por eles partilhadas.

O conceito de sistema implica a idéia de um todo ordenado, sendo as

relações entre esses elementos as responsáveis pela composição da

estrutura do sistema, o que significa dizer que o caráter sistêmico só aparece

na função que os elementos desempenham no interior do sistema (NÖTH

apud SANTAELLA 2001: 256). Dessa forma, língua é sistema, bem como seu

correspondente sistema de escrita também o é. No entanto, são sistemas

diferentes, inter-relacionados no todo da linguagem verbal, como veremos

melhor a seguir.

Podemos dizer que se trata de um conjunto de sistemas

verbivocovisual, para utilizarmos a terminologia dos poetas concretos, já que

a capacidade de representação humana se expressa através da língua, da

fala e de seu correspondente sistema de escrita. Analisemos cada conceito

separadamente.

A linguagem verbal, como prerrogativa humana que é, nasce de sua

capacidade de representação, que ao perceber os diferentes estímulos do

existente, os converte em signos a fim de designar o que o pensamento

Page 97: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

98

elocubra, e que “encarnam-se” nas mais diversas línguas, que nascem,

assim, como “produtos da consciência” (SANTAELLA 1983:13).

Linguagem precisa ser entendida, então, num sentido amplo, como

mediação através de sistemas codificados de signos destinados à

transmissão de um determinado tipo de informação. A língua, por sua vez, é

essa faculdade humana de representação (ou linguagem) cristalizada num

determinado código ou sistema de signos, num dado espaço histórico-

temporal e associada a um determinado grupo de indivíduos, tampouco se

confundindo com a fala, que é a manifestação individual e concreta da

linguagem humana através de uma língua. Cada uma se insere dentro da

outra, como no esquema34 a seguir:

Um sistema de escrita, por sua vez, consegue captar somente uma

parte, tanto da linguagem verbal oral (fala), rica em gestos cuja significação

total é intransponível para qualquer tipo de escrita, como da própria língua,

que possui funções e dimensões diferentes da escrita, que, por outro lado, é

capaz de exprimir idéias que a fala não exprime. Como conseqüência, temos

que língua e escrita, apesar de inter-relacionadas, apresentarão

características e desempenharão funções próprias no todo da linguagem

verbal.

“Sistemas de escrita são sistemas que têm propriedades não encontradas na

fala. No entanto não se pode negar que os sistemas de escrita são sistemas

para a materialização da língua (language). Que eles são filogeneticamente

34  Esquema  elaborado  com  base  nos  esclarecimentos  do  Professor Winfried Nöth  sobre  a  escrita durante a qualificação da presente dissertação, e no esquema de BASTOS e CANDIOTTO 2007:16, que inclui somente linguagem, língua e fala. 

Page 98: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

99

mais jovens que a fala e que esta é natural e universal, enquanto a escrita é

artificial e está presente em somente algumas comunidades falantes, são

dificilmente boas razões para ignorá-los na pesquisa lingüística. A língua

escrita (written language) é uma forma de linguagem, e se é uma forma que

está presente somente em algumas línguas (languages), mas não em

outras, ela é contudo, um potencial para todas as línguas (languages). Ela é

uma forma de linguagem que não é nem mais nem menos perfeita que a

língua falada (spoken language), mas que dela difere em alguns importantes

aspectos porque, naturalmente a escrita serve a funções que são diferentes

daquelas da fala. Se esse não fosse o caso, não haveria nenhuma boa razão

para a escrita ter chegado a existir. A invenção da escrita é a resposta às

limitações da fala em relação ao aqui e agora. Como conseqüência ao

adquirir uma forma escrita, o poder expressivo da língua (language) é

ampliado em relação à fala.” (COULMAS 1989: 272)35

A importância dessa distinção e reconhecimento da língua e da escrita

como sistemas diferentes nem sempre foi clara, de um lado porque o

princípio da escrita deveu-se, em parte, à necessidade de documentar as

línguas faladas, e, por outro, porque o próprio Saussure, apesar de

reconhecer a diferença entre os dois sistemas, acreditava que a imagem

gráfica se comportava como a imagem fonética, julgando “imerecida” (CLG

35) qualquer importância dada à escrita, uma vez que seu estudo, a seu ver,

não fazia parte da lingüística36. Nöth nos esclarece:

“É um paradoxo da história da semiótica que a teoria dos signos e de seus

sistemas, desenvolvida desde a escolástica medieval em uma longa tradição

escrita, tenha descoberto só tardiamente o sistema sígnico da escrita

propriamente dita como objeto de reflexão semiótica (cf. Harris 1995: 1). Sob

a influência da lingüística estrutural, a semiótica, desde Saussure, foi por

muitas décadas orientada por uma visão fonocêntrica até que, finalmente,

Derrida (1967a) exigiu o abandono do fonocentrismo dessa tradição e a

instituição de uma autêntica semiótica da escrita sob a designação de

gramatologia. Exceto pela dimensão histórica e tipológica dos sistemas de

35 Note‐se que no original,  somente a palavra  language é usada, uma vez que no  inglês ela possui tanto a acepção de “língua” quanto de “linguagem”. 36 “Língua e escrita são dois tipos distintos de signos; a única razão de ser do segundo é representar o primeiro; o objeto  lingüístico não se define pela combinação da palavra escrita e da palavra falada; esta última, por si só, constitui tal objeto.” (SAUSSURE 1916:34) 

Page 99: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

100

escrita, o sistema sígnico da escrita havia recebido, até então, pouca

atenção dos estudos de linguagem.” (NÖTH 2010: 1)

Afortunadamente, hoje assistimos à valorização do estudo da escrita

como um sistema de peculiaridades sígnicas independente do sistema da

língua e da fala, sob os mais variados ângulos:

“Sistemas de escrita relacionam-se a estruturas lingüísticas, e onde eles são

adotados para uma dada língua, eles se desenvolvem como subsistemas

lingüísticos... Qual posição esse subsistema e essa forma ocupam dentro do

todo complexo da língua, e qual papel eles têm no seu funcionamento e

desenvolvimento, o lingüísta pode somente esperar compreender estudando

a escrita, e não ignorando-a.” (COULMAS 1989: 273)

Essa distinção da escrita como um sistema semiótico peculiar,

relacionado à fala, porém não submisso a ela, com características e

possibilidades de mudanças e evolução próprias, e em constante interação

com o meio em que se materializa, é um dos principais passos rumo a uma

compreensão criticamente fundada dos processos evolutivos da escrita. Seu

estudo sob esse enfoque aliado a uma teoria semiótica de envergadura,

permite captar as variações prismáticas dos signos usados para exprimir o

pensamento e a sensibilidade humanas.

“Vinculado à semiótica, o estudo da escrita é destituído não apenas da

perspectiva fonocêntrica, em que entende-se a escrita como registro ao

invés de linguagem, como da perspectiva logocêntrica, em que

desconsidera-se que a linguagem tem qualidades não-verbais que são

indissociáveis de sua mediação. A primeira das duas perspectivas é comum

nos estudos de linguagem com metodologias derivados dos estruturalismos

e formalismos pioneiros na lingüística e na semiologia, tendo sido objeto de

críticas contundentes durante todo o período pós-estruturalista. A segunda

aparece na maioria dos estudos de linguagem do século XX, tendo em

Derrida e Peirce duas importantes vozes dissonantes. A semiótica é mais

ampla que a desconstrução no desmonte do logocentrismo, na medida em

que mais abrangente quanto aos tipos de manifestações que inclui o

conjunto de fenômenos possíveis de serem entendidos como linguagem.”

(BASTOS 2008: 274,275)

Page 100: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

101

2.1. Sistemas sígnicos: as três matrizes

Segundo a hipótese das três matrizes (SANTAELLA 2001:20),

alicerçada na fenomenologia e semiótica de Peirce, os três tipos de

linguagem, sonora, visual e verbal, constituem-se nas três grandes matrizes

lógicas da linguagem e pensamento, a partir das quais se originam todos os

tipos de linguagens e processos sígnicos produzidos pelos seres humanos.

Embora a natureza da linguagem verbal pertença predominantemente ao

domínio do simbólico, ela engloba tanto a matriz sonora (fonética), quanto a

matriz visual (escrita).

“A lógica implícita nas categorias também prescreve que, sendo a mais

primordial, a categoria da primeiridade está na base, servindo de alicerce à

secundidade, assim como esta alicerça a terceiridade. Então, a matriz

sonora, em nível de primeiro, alicerça a matriz visual, do mesmo modo que

esta alicerça a matriz verbal. Isso também significa dizer que a matriz sonora

prescinde da matriz visual-secundidade, do mesmo modo que esta prescinde

da matriz verbal-terceiridade. Disso ainda decorre que a secundidade, matriz

visual, engloba a primeiridade, matriz sonora, enquanto a terceiridade, matriz

verbal, engloba tanto a secundidade, a matriz visual, quanto engloba,

naturalmente, a primeiridade, matriz sonora.” (SANTAELLA 2001:79)

Um sistema verbal, que como todo sistema se define como um

agregado de elementos, entre os quais existe um conjunto de relações de

forma a que eles partilhem determinadas propriedades, permite considerá-lo

como uma “rede conceitual logicamente estruturada”, pertencente, portanto,

ao domínio da terceiridade (SANTAELLA 2001:15).

Por essa definição, a linguagem verbal é o exemplo mais evidente de

sistema de legissignos. As palavras ou signos lingüísticos são interpretados

de determinada forma, em função das leis estabelecidas no sistema de uma

língua. No entanto, somente terão existência concreta através de um tipo

especial de sinsigno chamado réplica, que ocorrem em um tempo e espaço

determinados.

Page 101: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

102

“A linguagem verbal é o exemplo mais evidente de legi-signo ou sistema de

legi-signos. Por pertencerem ao sistema de uma língua, as palavras são

interpretadas como representando aquilo que representam por força das leis

desse sistema. Como quaisquer outros exemplares de legi-signo, no seu

estatuto de leis, as palavras só tomam parte na experiência ou têm

existência concreta por meio de suas manifestações. Peirce chama de

‘réplicas’ essas instâncias de manifestação. Trata-se de sin-signos de tipo

especial. São sin-signos porque são existentes individuais que ocorrem em

um tempo e espaço determinados, mas são réplicas porque atualizam,

corporificam legi-signos.” (SANTAELLA 2001:262)

Dessa maneira, a linguagem verbal, conceitual, pertencente ao

domínio da terceiridade, cujo signo lingüístico (legissigno por excelência) tem

como função unir um representamen, um objeto externo (dinâmico), e um

interpertante, se materializa em outros canais37, que por sua vez se

constituem também em linguagens próprias, a saber, a sonora e a visual,

pertencentes, predominantemente, aos domínios da primeiridade e da

secundidade, respectivamente, e que contam também com suas próprias

características.

“Quanto à linguagem visual, sua característica primordial está na insistência

com que imagens singulares, aqui e agora, se apresentam à percepção. Ver

é estar diante de algo, (...), pois o que caracteriza a imagem é sua presença,

estar presente, tomando conta da nossa apreensão. Aliada ao seu caráter

perceptivo, que corresponde tipicamente ao universo da secundidade, a

linguagem visual, quase sempre figurativa, tem uma vocação referencial, o

que a categoriza como signo indicial. Essa vocação mimética das imagens

transcende as determinações históricas, pois desde as primeiras inscrições

nas grutas, a humanidade esteve guiada pelo desejo complexo e

provavelmente eterno de duplicar o mundo (...).

A linguagem sonora, por outro lado, tem um poder referencial fragilíssimo. O

som não tem poder para representar algo que está fora dele. Pode, no

máximo, indicar sua própria proveniência, mas não tem capacidade de

substituir algo, de estar no lugar de uma outra coisa que não seja ele

37 Interessante neste ponto, notar que para cada sentido humano, há sistemas de signos específicos e que a mesma linguagem verbal pode encarnar‐se em outros canais. Exemplos são a escrita braile, que contempla especialmente o tato, embora também possa ser vista, e a linguagem gestual dos surdos‐ mudos, que prescinde totalmente do canal auditivo. 

Page 102: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

103

mesmo. Essa falta de capacidade referencial do som é compensada por seu

alto poder de sugestão, o que fundamentalmente o coloca no universo

icônico, onde operam as mais puras associações por similaridade...”

(SANTAELLA 2001: 190)

Os signos lingüísticos contam, então, com dois sistemas em que

podem se materializar, isto é, dois sistemas que compreendem suas réplicas,

um no nível sonoro, fonético, constituído de imagens acústicas, que surgiu

concomitantemente com a própria linguagem verbal, à medida que esta se

desenvolvia, e outro visual, que se desenvolveu muito tempo após o

surgimento da linguagem verbal, e cuja capacidade referencial sempre foi

explorada por poetas e artistas como forma de aproximar o verbal de seu

objeto. Dessa forma, o signo lingüístico possui dois códigos distintos,

chegando Pignatari a sugerir que é “bilíngüe” quem domina e utiliza ambos

os códigos, tamanha a diferença entre eles em determinados aspectos.

“a palavra... possui dois códigos distintos, com peculiaridades diversas - um

falado e outro escrito. Ora, a Lingüística estuda a palavra falada e não a

palavra escrita, mas não pode deixar de sofrer a influência desta (na

verdade, não poderia sequer existir sem a palavra escrita). Talvez seja por

isso que um amigo, durante um debate, tenha sugerido a interessante

hipótese de que toda pessoa que saiba ler e escrever é uma pessoa

bilíngüe...” (PIGNATARI 1979: 9)

A linguagem verbal, definida basicamente pelo seu poder conceitual,

de abstração (SANTAELLA 2001: 190), corporifica-se então em um sistema

de imagens acústicas e noutro de imagens visuais, e que, portanto, se

dirigem a dois diferentes sentidos humanos: audição e visão. Embora, essa

mídia acústica (oral) tenha existido durante muito tempo sem a grafia,

necessidades as mais variadas levaram o homem a grafar a língua, sendo a

função primária de um sistema de escrita, porém não única, captar a língua,

ou linguagem verbal oral nas redes da linguagem escrita.

“Historicamente, a escrita é perante a língua falada um sistema sígnico

secundário. Na evolução da cultura, o homo loquens inventou a escrita só

relativamente mais tarde. A mídia acústica da língua falada precedeu

historicamente a mídia visual da escrita.” (NÖTH 2010: 1)

Page 103: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

104

Daí surgirem os sistemas de escrita, visíveis, criados pelas mãos para

apelar aos olhos através de signos gráficos relativamente duráveis que se

apoiaram em toda a experiência pictórica que o ser humano possuía.

“A escrita é visível. Ela é uma forma de comunicação criada pela mão e que

apela aos olhos. Estudiosos da escrita concordam nesses dois pontos acima

de todas as diferenças teóricas... Outra característica de grande importância

é que a escrita consiste de signos, isto é, marcas relativamente duráveis que

têm um referente externo. Os seres humanos produziram signos gráficos por

muitos milênios antes que a escrita fosse inventada.” (COULMAS 2003: 19)

Dessa maneira, a linguagem verbal, que inicialmente tomou corpo nos

signos acústicos, encarna-se também em outro sistema mais apto a

permanecer no tempo, o da escrita alfabética, no caso das línguas ocidentais.

Os sistemas de escrita são, dessa forma, ferramentas para serem

utilizadas pelos indivíduos com a finalidade primeira, mas não única, de

registrar uma determinada língua, e que, por serem grafados, adquirem uma

gramática interna na medida em que amadurecem:

“Um sistema de escrita consiste em um conjunto de símbolos, um grupo de

definições para os símbolos (isto é, um léxico gráfico) e regras para sua

utilização (uma sintaxe gráfica). Na maior parte do tempo, os símbolos são

entendidos como glifos, isto é, sinais e formas visíveis e repetitivas,

constritas pelas propensões e limites das mãos e dos olhos humanos.”

(BRINGHURST 2006: 27)

Por isso, a escrita alfabética, inserida na matriz visual, é um sistema

de formas representativas que assim se apresentam e funcionam por

convenção (SANTAELLA 2001:256), convenção essa que não se confunde

com aquela que rege a interpretação das palavras, nem tampouco com

aquelas que regem a emissão vocal da linguagem.

Disso decorre ser a linguagem verbal um conjunto de sistemas, que

embora intimamente relacionados, têm cada qual suas peculiaridades e

funções específicas, contando cada um com uma sintaxe própria aplicável

igualmente a signos específicos de cada um deles.

Page 104: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

105

2.2. Funções dos signos nos sistemas de escrita

As funções de um sistema de escrita não se confundem com as

funções dos signos que compõem um sistema de escrita, isto é, os signos

usados para grafar a linguagem verbal.

Embora não seja o foco principal neste estudo analisar as funções dos

sistemas de escrita, é relevante lembrar que elas permeiam todas as

realizações da escrita, e se refletem, por conseqüência, em todos os seus

signos e na forma como eles são usados.

Sinteticamente, conforme Nöth (2010:14) com base em Coulmas

(1989: 11-14) e Glück (apud Nöth), pode-se resumir as funções semióticas da

escrita da seguinte forma:

(1) a função mnemônica, que possibilita lembrar conteúdos;

(2) a função de superação de distância, que amplia o alcance da mensagem

no tempo e no espaço;

(3) a função de amadurecimento (reyfing function), ou “função

materializadora”, que permite que um objeto material surja a partir de uma

efêmera língua falada;

(4) a função de controle social, segundo a qual compete à palavra escrita

uma autoridade e uma legitimidade social;

(5) a função interativa, de acordo com a qual informações escritas podem

instruir e ordenar;

(6) a função estética, ou poética, segundo Jakobson;

(7) a função mágica da escrita, destacada por Glück, função relevante em

muitas culturas.

Em função das diferentes soluções que cada cultura encontrou para

dar conta dessas funções, a diversidade dos sistemas de escrita é

gigantesca, haja vista o trabalho de Daniels e Bright, intitulado The world’s

writing systems (1996), um compêndio de sistemas de escrita dos mais

diversos pontos do planeta. Maior ainda a diversidade de signos que as

compõem, sendo que não há uma terminologia única para designá-los, nem

Page 105: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

106

tampouco uma tipologia única que os classifique, o que dificulta qualquer

trabalho de análise. Quanto a essa diversidade, Pauluk concluiu que:

“Dada a variedade dos critérios utilizados e as idiossincrasias de seus

autores, as tipologias dos sistemas de escrita divergem muito mais do que

concordam quando se trata de classificar uma determinada escrita.”

(PAULUK 2003: 113)

Por todos esses fatores, optamos por utilizar, para os presentes

propósitos, uma tipologia simplificada e graficamente representada proposta

por Robert Bringhurst (2006), cuja atividade como renomado tipógrafo, além

de escritor, tradutor, poeta e professor universitário, certamente aguçou sua

sensibilidade em relação a características gráficas da escrita que não se

encontram desenvolvidas e expostas por outros autores de outras áreas

(lingüistas, historiadores, arqueólogos, entre outros) com a mesma clareza.

Dessa forma, com o surgimento de novas grafias na hipermídia, é

interessante focar os tipos de signos em relação à sua função dentro dos

sistemas de escrita. Nesse sentido, a primeira constatação é a de que todos

os sistemas de escrita podem ser interpretados semântica ou foneticamente,

o que equivale a dizer que seus signos destinam-se a representar sons ou

significados.

“A diversidade dos sistemas de escrita do mundo é enorme, mas todos eles

podem ser interpretados semanticamente e foneticamente. A comunicação

do significado é o propósito primário da maior parte das escritas, e de uma

forma ou de outra, as relações convencionais entre unidades gráficas e

fonéticas são estabelecidas para consecução desse fim. Significado e som

são as duas dimensões referenciais utilizadas por todos os sistemas de

escrita.” (COULMAS 2003: 18)

Essas duas dimensões podem mesmo servir como critério de

classificação dos sistemas de escrita, e Nöth esclarece que não há

superioridade de uma em relação à outra.

“Para a transcrição da língua falada existem duas opções básicas: a

transcrição fonética e a transcrição semântica. Na história da escrita, os

sistemas semânticos de transcrição são mais antigos que as escritas

Page 106: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

107

fonéticas. Entretanto, a hipótese de que os sistemas fonéticos são

basicamente superiores aos sistemas semânticos, e de que a evolução da

escrita, em geral, caminha em direção a uma escrita fonética baseia-se, sem

dúvida, em um preconceito fonocêntrico.” (NÖTH 2010: 1)

Para a transcrição fonética, chamada escrita cenêmica38, há também

outras duas opções: as sílabas, quando estas são representadas sem a

possibilidade de serem decompostas ou representadas em unidades

menores; e os sons isolados das consoantes e vogais, como na escrita alfa-

bética, em que a sílaba é geralmente representada por uma combinação de

signos.

“Um número de sistemas de escrita são geralmente descritos como

silabários. Suas unidades gráficas operacionais básicas são interpretadas

como sílabas da fala (speech syllables).” (COULMAS 2003: 62)

“É um fato reconhecível, e tem sido por milênios, que há duas classes

complementares de sons da fala (speech sounds), consoantes e vogais.”

(COULMAS 2003: 109)

Para a transcrição semântica, também chamada de escrita

plerêmica, há várias opções de signos, tais como pictogramas, ideogramas e

logogramas, embora a terminologia não “seja de modo algum homogênea”

(NÖTH 2010: 4).

Pictogramas são signos icônicos, imagéticos, sendo um exemplo os

signos pictóricos da escrita egípcia, embora nenhuma língua possa ser

representada somente por signos desse tipo. Esses signos também

representam seus objetos por uma via metonímica, indexical.

“A iconicidade dos signos pictográficos hieroglíficos é, além disso,

freqüentemente enfraquecida através de abstrações. Com freqüência, o

signo icônico também representa seu objeto somente pela via indireta,

indexical (metonímica). Este é, por ex., a estratégia semiótica da

38  Lembrando, mais  uma  vez,  a  heterogeneidade  das  terminologias  existentes,  e mesmo  a  pouca definição de alguns conceitos, um estudo bastante abrangente e esclarecedor sobre as  tipologias e classificações  dos  sistemas  de  escrita  é  o  de  PAULUK  2003,  intitulado:  “Sistemas  de  escrita: abordagens, tipologias, perspectivas em semiótica”. 

Page 107: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

108

apresentação pictográfica de processos. Assim, os caracteres hieroglíficos

representando ‘duas pernas’ significam ‘andar’, um ‘olho com lágrimas’

representa ‘chorar’ e um ‘pássaro com asas abertas’ significa ‘voar’...”

(NÖTH 2010: 4)

Já os ideogramas, podem ser descritos como signos que representam

idéias, mas sua diferenciação dos pictogramas é bastante problemática, já

que ambos têm um forte componente icônico. Como exemplo, temos

“determinados caracteres chineses” que são “muitas vezes, ícones

diagramáticos” de seus objetos (NÖTH 2010: 5).

O princípio de rébus é um interessante uso de um signo pictográfico

ou ideográfico, que originalmente definido para a designação de determinado

conceito, passa a ser utilizado para outro que é idiomaticamente homófono a

ele. Um exemplo do inglês é o pictograma de um “olho” (‘eye’), que por

homofonia pode representar a palavra “eu” (‘I’). No português poderíamos ter

a imagem de nós (numa corda, por ex.), representando o pronome “nós”.

“Um exemplo adaptado da língua alemã: o pictograma de um braço (‘Arm’)

poderia também ser usado como signo rébus para representar o adjetivo

‘pobre’ (‘arm’), ou o pictograma de um banco poderia também servir como

signo rébus para representar o conceito de ‘instituto monetário’. Tanto no

sistema de escrita hieroglífica egípcia quanto na escrita chinesa existem

caracteres segundo o principio do rébus.” (NÖTH 2010: 5)

Já logógrafos ou logogramas, ou ainda signos semográficos, são

caracteres39 ou combinações de caracteres que representam palavras, ou

ainda, significados, embora sua definição possa confundir-se com os

ideogramas ou ideógrafos.

39 A palavra caractere ou caráter, do grego kharaktêr, ‘o que grava, sinal gravado, marca, traço, sinal’ pode  ser  entendida  como  letra,  número,  símbolo  (no  sentido  corrente  da  palavra)  ou  sinal  de pontuação, etc., i.e., como figura usada na escrita. Na terminologia informática, pode designar: letra do alfabeto, algarismo, sinal de pontuação ou símbolo de qualquer natureza que pode ser introduzido em um computador pelo teclado ou por outro dispositivo de entrada, assim como exibido na tela ou em outro dispositivo de saída. (Cf. Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa). 

Page 108: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

109

“Logógrafos encontram-se também associados a nossa própria tradição de

escrita alfabética. Logógrafos são, por ex., caracteres como $, £, §, &, % ,+

ou –, e todos os algarismos arábicos de um dígito (de 0 a 9) são da mesma

forma logógrafos (e ao mesmo tempo ideógrafos) que representam palavras

inteiras.” (NÖTH 2010: 5)

Como dissemos, Bringhurst apresenta uma classificação dos sistemas

de escrita em virtude dos tipos de signos que cada sistema utiliza, que ele

chama de matizes de significado, e que bem poderiam ser chamados de

matizes de representação, já que se trata de estabelecer a relação entre os

signos da escrita e o respectivos objetos que eles representam. Mas ele

adverte que nenhuma taxonomia pode ser completa, e que todo sistema de

escrita utiliza vários desses tipos de signos em maior ou menor grau:

“A taxonomia que resumirei abaixo deve muito ao trabalho de Gelb e

Daniels, embora apresente algumas discrepâncias em relação a ambos os

estudos. Achei-a prática e útil, mas não há nenhuma garantia de que esta,

ou qualquer outra taxonomia, seja efetivamente completa - uma vez que

novos sistemas sempre podem ser criados, e várias escritas permanecem

indecifradas (e, portanto, não classificadas).

Os sistemas de escrita podem ser caracterizados como semográficos,

silábicos, alfabéticos ou prosódicos.

Estes quatro termos ou matizes de significado formam um círculo

taxonômico simples. Distinções mais detalhadas são certamente possíveis,

até mesmo úteis, em certas instâncias. O silábico, por exemplo, pode ser

subdividido em logossilábico e alfassilábico.

O prosódico pode ser dividido em semoprosódico e alfaprosódico. Mas

nenhum termo - não importa quanto significado tenha - é, por si só, uma

classificação satisfatória. A razão é que os sistemas de escrita são, à sua

maneira, como liquens: entidades mutualísticas. Todo sistema desenvolvido

pertence a mais de uma categoria, entre as quatro categorias primárias

existentes.” (BRINGHURST 2006: 61,63)

O interessante dessa classificação é a inclusão de caracteres

semográficos, que também podem ser chamados logográficos, como vimos,

e que podem ser considerados supra-lingüísticos.

Page 109: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

110

“Em certo sentido, claro, uma escrita semográfica é supralingüística. Não faz

nenhuma diferença (para alguns propósitos) se o símbolo 2 é pronunciado

como dois, dos, deux, zwei, ni, (...). Embora muitas expressões possam ser

grafadas em escritas semográficas com grande precisão, podem ser

igualmente representadas em linguagem falada. (A expressão 1+1=2, por

exemplo, será pronunciada de forma diferente nos idiomas inglês, grego e

hebreu ...” (BRINGHURST 2006: 67)

Outro ponto a destacar dessa classificação é a prosódia, que se

constitui de características de entonação, como tom, duração, ênfase e

pausa, mas que também é essencial à leitura silenciosa. Interessante notar a

importância da prosódia, já que, não raro, a entonação com que uma palavra

é proferida pode alterar totalmente seu sentido, como nos casos de ironias,

sendo essa nuance passível de ser representada na escrita pelo uso de

aspas. Ou seja, nesse caso, elas são usadas como um sinal semoprosódico,

i.e., que transmite um significado por meio de uma modulação do som.

“A vírgula, os dois-pontos, o ponto-e-vírgula, os parênteses, os colchetes, a

interrogação, a exclamação e as aspas são sobreviventes de um grande

rebanho de símbolos usados como sinais de prosódia por muitas gerações

de escribas europeus.” (BRINGHURST 2006: 74,75)

Bringhurst (2006: 64-70) apresenta sua classificação num diagrama

que ele chama de círculo taxonômico simples das “capacidades dos sistemas

de escrita”, que são representadas por meio dos quadrantes, cada qual se

referindo a um dos quatro principais “tipos de informação lingüística

tipicamente transmitida pelos sistemas de escrita”. O centro do círculo (num

tom mais escuro) indicaria um tipo de informação completa em cada

quadrante, sendo que o autor ressalta que “não há nenhuma escrita humana

conhecida que transmita um nível completo de informações” em qualquer um

dos quadrantes, embora toda escrita forneça algum tipo de informação em

algum grau em um ou mais quadrantes.

Page 110: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

111

A utilidade desse diagrama é incontestável. Nele encontra-se a

possibilidade de visualizar a transcrição fonética dividida em letras

(alfabética) e sílabas; e a transcrição semântica dividida em semografia e

prosódia. Isso facilita muito a análise de alguns caracteres cuja definição é

bastante imprecisa, como no caso de pictogramas, ideogramas e

logogramas, entre os quais muitas vezes não há como estabelecer limites

definidos e que podem ser todos considerados signos semográficos.

Por outro lado, também é possível visualizar a existência de signos

entre os quadrantes, como de fato acontece, já que existem sinais

semoprosódicos na língua, tal qual exclamação e interrogação40, além de

signos que ficam entre o alfabeto e a sílaba, o que não está previsto

atualmente em muitas gramáticas ocidentais, mas que se constitui em uma

das mudanças das novas grafias (ver capítulo V). Outros signos da escrita

bastante difíceis de classificar, simplesmente por serem invisíveis, são os

espaços interliterais e interlexicais, que além de essenciais à leitura, têm

40  Um  exemplo  interessante  é  o  caso  do  português  (e  de  outras  línguas  românicas),  em  que, diferentemente  do  inglês  (e  também  outras  línguas  anglo‐saxônicas),  não  existe  uma  construção sintática que especifique se uma frase escrita se trata de uma ou pergunta ou não.  A sentença: “Você vai  à  escola.”  é  uma  afirmação  com  ponto  final;  diferentemente  de  “Você  vai  à  escola?”,  uma pergunta. A mesma sentença poderia ainda expressar dúvida ou insinuação com reticências “Você vai à escola...”; ou mesmo uma ordem, ou ainda, espanto e surpresa, com o uso de ponto de exclamação “Você vai à escola!”. 

Page 111: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

112

grande valor semântico na poesia. Podem ser considerados semográficos,

pois embora não sejam propriamente grafados, estão presentes na forma de

se grafar as línguas41.

Outras possibilidades de signos mistos são os usos alfaprosódicos das

letras, como por exemplo, o uso de letras maiúsculas para se expressar um

grito ou ênfase, e a grafia em itálico, usada, por exemplo, para dar ênfase ou

grafar palavras estrangeiras. Há ainda os logossilábicos, tão comuns às

escritas orientais, em que um mesmo signo pode representar uma sílaba e/ou

um significado.

Mais uma característica semiótica do círculo taxonômico de Bringhurst

é sua cor, que representa radialmente o nível de informação de cada signo

em cada quadrante, o que permitiria, por exemplo, visualizar o uso da letra ‘h’

41 Duas passagens não podem deixar de ser citadas neste estudo. A primeira porque mostra que nem sempre  a  escrita  fez  uso  de  espaços  entre  seus  caracteres;  e  a  segunda  porque  é  altamente esclarecedora sobre o assunto. “O  advento  da  escrita  alfabética  entre  os  gregos,  com  sua  notação  de  vogais,  reduziu  o  nível  de ambigüidade  intrínseca  aos  sistemas  consonantais  e  possibilitou  o  abandono  dos  separadores interlexicais; esta modalidade de escrita sem qualquer pontuação ou espaçamento  ficou conhecida como  scriptura  continua  e  ganhou  uso  generalizado  entre  aqueles  que  faziam  uso  dos  alfabetos grego, romano e cirílico,e até mesmo do sânscrito  ... A reintrodução da separação entre palavras se deu no início da Idade Média, com copistas irlandeses e anglo‐saxões trabalhando com textos gregos arcaicos,  tornando‐se  uma  prática  comum  também  na  Itália  e  França  renascentistas...  Apesar  de figurar  claramente  como  um  elemento  complexo  e  de  grande  importância  no  estudo  do funcionamento semiótico de diversos sistemas de escrita, a maior parte dos lingüistas que estudam a escrita parece simplesmente não notar a existência deste grafema.” (PAULUK 2003: 209) “Como é habitual no mundo dos sistemas de escrita, a diferença não reside nos signos, mas em como eles  são usados. Aquele  símbolo onipresente, embora  invisível,  conhecido hoje em dia  como hard return,  é  um  símbolo  alfaprosódico  em  versos  métricos,  mas  semoprosódico  em  listas  de supermercado,  alguns  versos  não métricos  e,  normalmente,  em  prosa  literária. Os  colchetes  e  os parênteses normalmente são semoprosódicos em textos literários, como também o são em notações matemáticas. Mas o mais importante símbolo de semoprosódia em uso geral é o wordspace. Ele  é  desnecessário  em  chinês  clássico,  no  qual  quase  toda  sílaba  e  símbolo  escrito  são  palavras. Entretanto,  pode  ser  útil  no  chinês  moderno,  no  qual  frases  semânticas  de  duas  e  três  sílabas excedem em número as palavras monossilábicas. Por outro  lado, em matemática, o wordspace  (ou algum signo equivalente que representa conjunção prosódica) é essencial. Muitos alfabetos passaram sem a semoprosódia, mas os que a absorveram a mantiveram. Ela é crucial à leitura silenciosa (que é, em essência, leitura semoprosódica) e, por esta razão, também é crucial para a velocidade da leitura. No  fluxo normal de um  texto em  inglês, os  símbolos alfabéticos excederão o número de  símbolos semográficos  e  de  prosódia  em  cerca  de  cinco  para  um  (cerca  de  75%  a  80%  dos  signos  não alfabéticos serão os espaços entre as palavras). Contudo,  em  um  teclado  normal,  existem  mais  signos  semográficos  e  de  prosódia  que  letras alfabéticas.” (BRINGHURST 2006: 76,77)  

Page 112: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

113

na palavra ‘hospital’ em português, como um signo alfabético que não

transmite nenhuma informação sonora, pois não é pronunciado.

Todas essas vantagens se apresentam na tipologia que Bringhurst

estabelece em função de seu correspondente diagrama estar baseado num

continuum representativo, tanto entre os quadrantes como radialmente,

diferente de outros diagramas e tipologias que pretendem estabelecer

classes estanques, claramente delimitadas, onde fatalmente certos atributos

híbridos são excluídos.

Uma classificação bastante simplificada, adaptando-se o diagrama de

Bringhurst e sem considerar signos ou usos de signos que ficassem entre

dois quadrantes, mostraria que no caso do inglês e do português, seus

correspondentes sistemas de escrita podem ser atualmente representados

como no diagrama à esquerda, em que o tamanho de elipses pretas mostra a

freqüência com que signos de cada tipo são utilizados. Tendências desses

sistemas podem ser visualizadas à direita, como veremos em detalhes mais

adiante, em que o uso silábico aparece, o alfabético diminui por

conseqüência, e o semográfico e o prosódico são expandidos.

Page 113: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

114

No capítulo V sobre as novas grafias, trataremos de como essas

técnicas de transcrição da linguagem verbal estão sendo exploradas e

reconfiguradas na hipermídia. Por outro lado, podemos observar

semioticamente que, embora essas técnicas se constituam em signos que

representam seus objetos segundo normas e convenções próprias dentro de

cada sistema de escrita, na world wide web estão ganhando cada dia mais

força expressiva (icônica) em função das possibilidades que o suporte

eletrônico abre para sua utilização, contrariando teorias que consideram a

transcrição fonética da linguagem verbal, i.e., simbólica, como o ápice do

desenvolvimento de um sistema de escrita (cf. NÖTH 2010: 10).

Ao termos uma visão sistêmica de suas transformações poderemos

perceber como essa evolução é muito mais um produto de necessidades de

adaptação e permanência, e que a iconicidade, indexicalidade e

simbolicidade dos seus signos pode reinventar-se, simplificar-se ou

complexificar-se para atendê-las.

Page 114: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

115

Capítulo 4 - ESCRITA E HIPERMÍDIA

“Vivemos em um mundo submerso e infuso na palavra escrita.”

Steven Fischer (2006:291)

1. TECNOLOGIA E HIPERMÍDIA

O século XX foi considerado a era das imagens e da proeminência dos

meios audiovisuais. Nesse contexto, a escrita estava restrita aos meios

impressos, nos quais se encontrava cada vez mais assolada por imagens em

função da crescente facilidade em reproduzi-las.

No entanto, às portas no século XXI, o texto escrito migrou para a tela

dos computadores, absorvido pelos seus recursos e processos tecnológico-

digitais que permitiram tratar todos os tipos de informação sob um mesmo

princípio, a digitalização, que se constituiu, assim, em uma linguagem

técnológica “universal” (SANTAELLA 2007: 300) que refuncionalizou o papel

da escrita nos novos meios.

“Na realidade, quando surge um novo meio de comunicação, ele não

substitui o anterior ou os anteriores, mas provoca uma refuncionalização no

papel cultural que era desempenhado pelos meios precedentes. Via de

regra, um período inicial de impacto é seguido por uma readaptação

gradativa até que um novo desenho de funções se instale.” (SANTAELLA

2007: 288)

A partir de então, transformações profundas se iniciaram desde que

essas tecnologias digitais entraram em uso, especialmente pelo surgimento

de uma nova linguagem híbrida, mista, complexa, chamada hipermídia, em

cuja base está a tecnologia digital, na qual quaisquer fontes de informação

podem ser transmitidas em cadeias de bits, unidades binárias (0 e 1) de

codificação de informação, e que se materializa pela integração de textos,

imagens e sons de diversos tipos. Deve-se distinguir, assim, o advento de um

novo canal, as tecnologias digitais, da linguagem que lhes é própria, a

hipermídia, a fim de tornar possível uma visão clara das potencialidades

Page 115: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

116

intersemióticas entre os mais diversos processos sígnicos que para ela

confluem.

Outro fator que costuma impedir uma visão dialógica, interativa e

intersemiótica das linguagens decorre do hábito de se confundir uma

linguagem com o canal que a veicula. As linguagens são estudadas de

acordo com o suporte, meio ou canal que lhes dão corpo e em que elas

transitam. (...) é evidente que o meio através do qual uma linguagem é

veiculada tem importância soberana para se compreender a maneira como

suas mensagens são produzidas, transmitidas e recebidas. (...) Contudo, a

atenção ao canal veiculador das linguagens não deveria ser tão proeminente

a ponto de nos cegar para as similaridades e as trocas de recursos entre os

mais diversos sistemas e processos sígnicos.” (SANTAELLA 2001: 27)

Nesse ambiente digital, o texto escrito se constituiu, de modo

privilegiado, em uma das “marcas registradas da hipermídia” (SANTAELLA

2007: 292), uma vez que, apesar da mistura de linguagens, a maior parte da

informação transmitida via rede se apresenta em forma de texto, e portanto,

por meio da escrita.

“... o texto escrito saltou do papel impresso para o sistema alfanumérico das

telas eletrônicas. E aqui começa uma nova história do texto, a de sua

absorção na hipermídia e sua conseqüente transmutação de sólido em

líquido, de fixo em escorregadio, instável, volátil.” (SANTAELLA 2007: 293)

Nesse sentido, o advento da hipermídia nesse novo suporte eletrônico-

digital, significou uma mudança de natureza original, ímpar, na escrita, cujas

proporções ainda não vislumbramos com clareza, mas que revelam novas

práticas semióticas que este estudo busca investigar:

“não se pode negar também a originalidade que diferencia as

transformações que hoje se processam das ocorridas em outros períodos.

Enquanto no passado elas eram desconjuntadas, hoje ocorrem de forma

integrada, implicando, a um só tempo, novas técnicas de produção de textos,

novos suportes de escrita e novas práticas de escrita. Essa revolução não se

processa sem que se modifiquem também as práticas políticas, semióticas e

jurídicas que interpõem e se associam à leitura e à escritura.”

(BEIGUELMAN 2003:17)

Page 116: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

117

2. HIPERMÍDIA: SISTEMA AMBIENTE DA ESCRITA

Uma definição de hipermídia nos mostra como ela se constitui num

ambiente de informação digital, pois ela pode ser considerada “a integração

sem suturas de dados, textos, imagens de todas as espécies e sons dentro

de um único ambiente de informação digital” (FELDMAN apud SANTAELLA

2007:317).

Dessa forma, a hipermídia, encarada como um sistema ambiente, bem

como a escrita que nela se processa, podem ser consideradas sistemas

abertos e dinâmicos, não-lineares em função de sua complexidade, onde as

relações entre seus elementos transformam-se com o tempo, e onde o todo é

mais do que a simples soma das partes, já que resulta das constantes trocas,

permutações e relações de mútua determinação entre elas, a exemplo da

própria mente humana e da rede de conexões neurais de que ela se serve.

“Já vimos que a hipermídia é uma tecnologia que permite escrita e leitura

não-linear, o que favorece o desenvolvimento de um pensamento complexo.

(...) Considera-se sistema, segundo Hirsch (1985:189-192), qualquer objeto

de estudo composto por mais de uma parte, e que respeite a condição de

que haja interação entre essas partes. Em outras palavras, a princípio, o

estudo dos sistemas é uma tentativa de se tentar compreender o

relacionamento entre elementos interativos. Sistemas dinâmicos, por sua

vez, são aqueles que têm seu estado alterado com o tempo. Considera-se

que o que muda e se transforma nos sistemas dinâmicos é o seu estado, ou

seja, o relacionamento entre as partes do sistema. (...) O pensamento não-

linear compreende as questões dentro do conceito de sistemas, isto é,

dentro de relações de troca e mútua determinação. (...) O conceito de não-

linearidade deriva da matemática e tem sido empregado de uma forma

bastante freqüente, quando se fala de sistemas complexos dinâmicos. Hoje

está totalmente fora de contexto alguém pensar que o todo é uma simples

soma de suas partes. A ecologia e várias outras ciências já provaram que

esse tipo de raciocínio linear não coaduna com a complexidade das relações

dos sistemas envolvidos. Mesmo no caso da nossa mente, sabe-se que ela

é governada por dinâmicas não-lineares de um complexo sistema que forma

a rede neuronal e que percorre o nosso cérebro e o corpo como um todo.”

(LEÃO 1999: 55-57)

Page 117: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

118

Esse enfoque sistêmico da hipermídia traz consigo todas as

características ontológicas próprias dos sistemas abertos (ver capítulo III),

bem como todas as capacidades a elas ligadas. Isso significa que todos os

fluxos de informação que se processam nesse ambiente são captados,

elaborados e apreendidos resultando em mudanças constantes no próprio

sistema ambiente, a hipermídia, e em todos os outros sistemas que com ele

interagem, a exemplo da escrita.

Outro aspecto a considerar é que esse ambiente não é linear, a

exemplo do próprio pensamento humano, que nele encontra a possibilidade

de expressar-se numa linguagem isomórfica, acrescida de recursos

poderosos, que oferecem o meio propício para sua expansão, criatividade e

desenvolvimento.

3. HIPERMÍDIA E HIPERTEXTO

A codificação de informação em unidades binárias, base da

hipermídia, possibilita a convergência de todas as mídias que a antecederam,

além de garantir a manutenção da qualidade de sua reprodução em qualquer

tempo e em quantos suportes se desejar, sejam eles eletrônicos ou não.

“Essa mistura de áudio, vídeo e dados é que recebeu o nome de

‘hipermídia’, pois nasce da junção do hipertexto com a multimídia.

Hipermídia se refere, portanto, ao tratamento digital de todas as informações

(som, imagem, texto, programas informáticos) com a mesma linguagem

universal, uma espécie de esperanto das máquinas. Tendo sua base na

digitalização, foram dois os fatores que levaram à emergência da hipermídia:

a hibridização das tecnologias e a convergência das mídias.” (SANTAELLA

2007: 318)

Dessa forma, a hipermídia inaugura um novo tipo de linguagem, ou

ainda, se constitui, ela mesma, num tipo inédito de linguagem, numa rede

mundial, a Internet, para onde confluem informações das mais distintas

naturezas, de suportes os mais variados (que antes se encontravam

separados), e de todas as partes do globo.

Page 118: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

119

“Um dos aspectos evolutivos mais significativo dessa conjuntura

revolucionária está no aparecimento e rápido desenvolvimento de uma nova

linguagem: a hipermídia. Antes da era digital, os suportes estavam

separados por serem incompatíveis: o desenho, a pintura e a gravura nas

telas, o texto e as imagens gráficas no papel, a fotografia e o filme na

película química, o som e o vídeo na fita magnética. Depois de passarem

pela digitalização, todos esses campos tradicionais de produção de

linguagem e processos de comunicação humanos juntaram-se na

constituição da hipermídia. Para ela convergem o texto escrito (livros,

periódicos científicos, jornais, revistas), o audiovisual (televisão, vídeo,

cinema) e a informática (computadores e programas informáticos). Aliada às

telecomunicações (telefone, satélites, cabo) das redes eletrônicas, a

tecnologia da informação digital conduziu à disseminação da internet que

resultou da associação de dois conceitos básicos, o de servidores de

informação com o de hipertexto. (...) O universo virtual das redes tem se

alastrado tão exponencialmente por todo o planeta a ponto de produzir a

emergência de uma nova forma de cultura, a cultura do ciberespaço ou

cibercultura. (...) Trata-se, de fato, de uma linguagem inaugural em um novo

tipo de meio ou ambiente de informação no qual ler, perceber, escrever,

pensar e sentir adquirem características inéditas...“ (SANTAELLA 2001: 390)

Tudo isso se integra por meio do sistema hipertextual, uma estrutura

fluida, cartográfica. A hipermídia pode ser considerada então, uma “junção do

hipertexto com a multimídia, esta formada pela justaposição de textos, sons e

imagens das mais variadas ordens” (SANTAELLA 2007: 305) que configuram

os ambientes de hipermídia, o que traz à tona duas principais características

hipermidiáticas: coexistência de mídias e linguagens, como já vimos, e o

hipertexto,

“que permite ligações cruzadas entre diversas partes de um mesmo

documento ou através de documentos diferentes. As ligações são realizadas

a partir de elos (links) entre os diferentes pontos do sistema hipertextual.”

(LEÃO 1999: 140)

A partir de um documento presente em um servidor de informação, o

usuário tem a possibilidade de navegar para outro texto em outro servidor,

através de elos, verdadeiras encruzilhadas de informação que, de forma

Page 119: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

120

ilimitada estão interconectadas em redes de computação interativa capazes

de trocar informação entre os pontos mais distantes do globo, ligando

pessoas e instituições em todo o mundo. Nesse ambiente, o texto digitalizado

é reconfigurável livremente, organizado de forma não linear, reticular.

“A hipermídia é uma extensão do hipertexto, pois não se limita à informação

escrita, mas permite acrescentar aos textos não apenas os mais diversos

grafismos (símbolos matemáticos, notações, diagramas, figuras), mas

também todas as espécies de elementos audiovisuais (voz, música, sons

imagens fixas e animadas). Em ambos os casos, o termo hiper se reporta à

estrutura complexa alinear da informação.” (SANTAELLA 2001: 24)

O hipertexto, com sua estrutura de elos (links) em rede, tem seus

precursores nas conexões literárias (citações, referências, índices, etc.) que

há muito vem sendo utilizadas.

“Como o próprio Nelson42 assinalou, ‘o hipertexto, ou a escrita não-

seqüencial com liberdade de movimentação entre os links, é uma idéia

simples e óbvia. É apenas a versão eletrônica das conexões literárias tal

como já as conhecemos’.” (BEIGUELMAN 2003: 66)

O link, geralmente representado por uma hotword, é a unidade básica

do sistema hipertextual, pois é através dele que os diferentes pontos da world

wide web estão interconectados, formando, por isso mesmo, uma rede entre

as várias partes de um mesmo documento, ou entre diferentes pontos da

internet, ou entre ambos concomitantemente.

Dessa maneira, o texto tradicional foi absorvido por esse sistema de

vínculos associativos não lineares entre diversos pontos do sistema,

interligados por conexões conceituais, indicativas e visuais entre os mais

diversos tipos de conteúdo.

“Ao ser absorvido por esse novo suporte, o texto passou por transformações,

por verdadeira mudança de natureza na forma de hipertexto, isto é, de

vínculos não lineares entre fragmentos textuais associativos, interligados por

42 Theodor Holm Nelson, criador do termo hipertexto em 1965 (BEIGUELMAN 2003: 66). 

Page 120: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

121

conexões conceituais (campos), indicativas (chaves), ou por metáforas

visuais (ícones) que remetem, ao clicar de um botão, de um percurso de

leitura a outro, em qualquer ponto da informação ou para diversas

mensagens, em cascatas simultâneas e interconectadas.” (SANTAELLA

2007: 299, 300)

Essas transformações representam desafios para a escrita tradicional,

que como é possível observar, já começa a responder a essas dimensões

multilineares do sistema hipertextual. Bolter (apud LEÃO 2005: 112) chamou

“escrita topográfica” a essa escrita que se processa nos sistemas

hipertextuais, em que o conteúdo esta usualmente distribuído em tópicos,

blocos de texto interconectados pelos elos da rede.

Topos, do grego, significa “lugar”. Assim, a escrita topográfica, embora

não se limite ao meio digital, já que é comum dividir-se um texto em tópicos e

organizar essas unidades numa estrutura interconectada, apresenta essa

característica de ser concebida como um “diagrama no espaço” de forma

potencializada no sistema hipertextual. Nesse sentido, parece ter sido o

advento do hipertexto que nos fez atentar para todas essas interfaces visuais

dos textos em geral.

“É curioso notar que deve ter sido o advento do hipertexto que nos tornou

mais atentos à existência das interfaces visuais em quaisquer textos

impressos. Conforme nos alerta Chartier (1996), depois de várias décadas

de teorias puramente semânticas que tratavam o texto independentemente

de seu suporte físico, os estudiosos das práticas culturais começaram a

considerar os efeitos de sentido gerados pelas formas materiais inerentes

aos textos.” (SANTAELLA 2007: 312)

Se na escrita tradicional, sua estrutura topográfica pode ser indicada

através da divisão em parágrafos, capítulos, sumários, índice analítico, bem

como por meio das interconexões entre os tópicos que são encontradas nos

índices remissivos, é a maximização dessa potencialidade da escrita que

salta aos olhos em contexto digital, que oferece um “espaço de escritura”

privilegiado para a exploração visual e espacial da escrita.

Page 121: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

122

“o hipertexto é uma ‘rede de elementos simbólicos interconectados

interativamente’. A ‘escrita topográfica’, por sua vez, é aquela na qual se

divide o texto em unidades, os tópicos, de tal forma que se possa, num outro

momento, organizar essas unidades numa estrutura coerente. (...) Bolter

(1990) defende a idéia de que escrever sempre foi algo espacial. Isso porque

‘nós só podemos ver e compreender os signos se eles estiverem dispostos

num espaço de pelo menos duas dimensões’. O hipertexto, por sua vez, nos

oferece um método de exploração visual e conceitual do espaço de escritura

(writing space) apresentado para nós pela tecnologia do computador (Bolter,

1990:105). A ‘escrita topográfica’ problematiza a questão da hierarquia (...)

Em lugar de hierarquias, nós temos uma escrita que não é apenas tópica:

nós podemos chamá-la também de ‘topográfica’. A palavra ‘topografia’

originariamente significava uma descrição escrita de um lugar, tal como um

antigo topógrafo poderia fornecer. Mais tarde, a palavra começou a se referir

ao ato de desenhar ou fazer um mapa - isto é, a uma descrição visual e

verbal. Não é a escrita de um lugar, mas, mais propriamente, uma escrita

com lugares, com tópicos concebidos espacialmente.” (LEÃO 1999: 111,112)

O sistema hipertextual oferece, assim, todas as condições para que as

caracterísiticas topográficas da escrita sejam exploradas, evidenciando suas

qualidades espaciais e diagramáticas como nunca antes.

4. SUPORTE MULTIDIMENSIONAL DA ESCRITA

A evolução da escrita está intimamente relacionada à mudança dos

seus suportes materiais, sendo possível constatar, ao longo da história da

escrita, como essas mudanças alteraram e reconfiguraram o modo de

escrever. Pedra, argila, madeira, couro, entre outros, já foram os suportes

principais da escrita. O papel, veículo da cultura impressa, tem suas origens

nos antigos papiros.

Apesar de que, a partir do surgimento de cada um desses suportes,

mudanças e impactos específicos puderam ser observados, é imperioso

notar que todos têm uma característica comum: sua bidimensionalidade.

“Como mídia da escrita Gelb define também objetos tridimensionais. Signos-

objetos encontram-se entre os precursores da escrita..., e hoje,

Page 122: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

123

oportunamente, também em forma de objetos de design gráfico constituídos

como letras. Todavia, a tridimensionalidade não é prototípica para todos os

sistemas de escrita, mas sim a superfície de escrita bidimensional, em geral,

branca... Apenas a bidimensionalidade é, com isso, valida para muitos

teóricos também como traço distintivo da mídia escrita.” (NÖTH 2010: 11,12)

Embora seja possível argumentar que pedra, madeira, por ex., são

tridimensionais (e de fato são), a escrita que neles se processa fica limitada à

bidimensionalidade. O mesmo ocorre com o papel, cujo advento, sem dúvida,

permitiu um sem número de aprimoramentos bem como de explorações

espaciais da escrita, mas que de igual maneira, só timidamente romperam

com sua bidimensionalidade. Já a hipermídia funciona como um suporte

multidimensional sem precedentes para a escrita, nascida da criação de

hipersintaxes.

“Longe de ser apenas uma nova técnica, um novo meio para a transmissão

de conteúdos preexistentes, a hipermídia é, na realidade, uma nova

linguagem que nasce da criação de hipersintaxes capazes de refuncionalizar

linguagens (textuais, sonoras, visuais) que antes só muito canhestramente

poderiam estar juntas, combinando-as e retecendo-as em uma malha

multidimensional.” (SANTAELLA 2007: 320)

As inovações introduzidas pela hipermídia não se refletem, apenas, na

forma como a escrita é produzida e reproduzida. Ela se constitui numa forma

inovadora de se produzir o texto escrito devido à sua fusão com as outras

linguagens, o que transforma a escrita de forma inédita, “colocando em

questão a natureza mesma da escritura e de seus potenciais” (SANTAELLA

2007: 294) já que o princípio da hipermídia instala-se no “âmago da

linguagem”.

“De fato, a linguagem digital realiza a proeza de transcodificar quaisquer

códigos, linguagens e sinais, sejam estes textos, imagens de todos os tipos,

gráficos, sons e ruídos, processando-os computacionalmente e devolvendo-

os aos nossos sentidos na sua forma original, o som como som, a escrita

como escrita, a imagem como imagem. Entretanto, por ter a capacidade de

colocar todas as linguagens dentro de uma raiz comum, a linguagem digital

permite - sua proeza maior - que essas linguagens se misturem no ato

mesmo de sua formação. Criam-se assim, sintaxes híbridas, miscigenadas.

Page 123: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

124

Sons, palavras e imagens que antes, só podiam coexistir passam a se co-

engendrar em estruturas fluidas, cartografias líquidas para a navegação com

as quais os usuários aprendem a interagir, por meio de ações participativas,

como num jogo. Esse é o princípio da hipermídia, um princípio que se instala

no âmago da linguagem.” (SANTAELLA 2007: 293, 294)

Os suportes eletrônicos caracterizam-se, então, pela hibridização

permitida pela digitalização e pela linguagem hipermidiática por ela

introduzida “com seus processos de comunicação inteiramente novos,

interativos e dialógicos” (SANTAELLA 2007: 293), o que revela sua natureza

intersemiótica, já que seus sentidos se materializam somente na mistura e

complementaridade entre esses diversos processos sígnicos que nele estão

incorporados, consubstanciando-se, por isso mesmo, num suporte

multidimensional para a escrita que nele se processa.

Dessa forma, um dos elementos mais inovadores da hipermídia é o

suporte, maleável, rápido, multidimensional, rico em possibilidades

expressivas para o complexo pensamento humano, que não é linear nem

seqüencial, e muito menos, fixo, o que tem conseqüências diretas sobre a

escrita.

“Os sistemas hipermidiáticos oferecem o suporte maleável e

multidimensional mais adequado para exprimir o pensamento em sua

complexidade do que os meios que dispúnhamos anteriormente, a oralidade

e a escrita. Sabe-se que a mente humana não segue uma linha de raciocínio

linear, tal qual o suporte impresso nos exige assumir. Mesmo a oralidade nos

limita a uma só voz que, também, obrigatoriamente, segue no seu narrar. A

complexidade dos processos mentais e corporais... tem agora a

possibilidade de ser expressa em um espaço multidimensional.

Um dos limites impostos pela escrita (quer seja ela em barro, papiro ou

papel) é que ela promove uma fixação estável do pensamento. Com os

computadores, estamos vivendo um outro tipo de experiência, a da ilimitada

mutabilidade.” (LEÃO 1999: 65)

Page 124: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

125

5. LINGUAGEM VERBAL E ESCRITA HIPERMIDIÁTICA

As línguas e os sistemas de escrita estão em constante mudança. A

passagem das escritas icônicas (pictogramas, ideogramas, hieróglifos, entre

outros) às fonéticas ou simbólicas (p.ex., alfabetos, COULMAS 1989: 29) nos

conta que a invenção das línguas foi lenta e gradual, passando por inúmeras

transformações, tanto no léxico como no registro escrito, até chegar ao que

conhecemos em nossos dias.

Devido ao hibridismo da hipermídia, e sua síntese de recursos

sonoros, visuais e verbais, a linguagem verbal assume características cada

vez mais dinâmicas, híbrida também de propriedades de som e imagem,

evidenciando-se sua capacidade de potencializar e maximizar as

manifestações sígnicas da palavra (signo lingüístico por excelência) e de

suas grafias. São essas três fontes básicas, a verbal, a visual e a sonora que

se hibridizam e se reconfiguram mutuamente, dotando a escrita

hipermidiática de características inéditas.

“O que vale ainda acentuar é o fato de que toda mistura de linguagens da

multi e hipermídia está inegavelmente fundada sobre três fontes básicas: a

verbal, a visual e a sonora. Tanto é assim que os programas multimídia

(softwares) literalmente programam as misturas de linguagem a partir dessas

três fontes primordiais: os signos audíveis (sons, músicas, ruídos), os signos

imagéticos (todas as espécies sígnicas de imagens fixas e animadas) e os

signos verbais (orais e escritos).” (SANTAELLA 2007: 319, 320)

Esse universo eletrônico-digital é um universo substancialmente de

escritura, tanto no sentido do que nele escrevemos como no sentido do

código escrito que lhe é subjacente. Essas formas da textualidade eletrônica

são multimidiáticas, semioticamente híbridas, pois exploram as

potencialidades que se abrem para a escrita, sua performatividade, fazendo

dela uma atividade semiótica que usa as várias espécies de mídia que nela

se manifestam.

“Com a Internet, qualquer pessoa pode fazer uma tela eletrônica, seja o

conteúdo em áudio, gráfico, textual, animado, em vídeo ou na mistura entre

Page 125: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

126

eles. Isso tem um impacto direto não apenas sobre a escrita, mas sobre o

que é a escritura.” (SANTAELLA 2004a: 164)43

Dessa forma, a e-escrita, aí incluída a e-poesia, ou poesia nas redes,

já que os artistas são sempre aqueles a explorar de forma intensiva o

potencial das novas tecnologias, não é linear, fixa, nem tampouco um arranjo

de símbolos estáticos em uma página estável; pela primeira vez, um suporte

lhe possibilita que ela se manifeste dinamicamente, através de “signos

digitais”, permitindo novas codificações. Como na poesia de Cummings, “o

modo como o corpo das palavras se comporta entra em perfeita isomorfia

com o significado que se quer sensivelmente comunicar” (SANTAELLA

2004a:170).

“a natureza híbrida dos signos digitais não pode ser separada dos signos

visuais, verbais e auditivos. Programas especiais foram até desenvolvidos

para a tradução de um signo escrito em tom e imagem, como por exemplo o

Verbarium. As hipermídias permitem novas codificações, pois uma única

superfície parece ser adequada para todos os sistemas sígnicos... Na web

os signos escritos transformam-se em complexas cópias sígnicas. A

integração de diversos sistemas sígnicos anteriormente separados é

acelerada pelo computador.” (WENZ 2008: 259,260)

E nessas espessas hibridizações hipermidiáticas entre o sonoro, o

visual e o verbal, a fala, por sua vez, aparece como um “fluxo audível”, uma 43  A  palavra  escritura  deriva  do  francês  écriture,  e  para  o  filósofo  contemporâneo Derrida  (1930‐2004), se “constitui no jogo de diferenças que gera os processos de significação em qualquer forma de discurso,  inclusive o  falado,  ao  contrário do que  concebe uma  tradição  lingüística  e  filosófica que considera a voz articulada ‐ em íntima conexão com a verdade da alma ‐ a origem da linguagem” (cf. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa). Sobre  essa  concepção  de  escritura,  Derrida  postula  o  surgimento  de  uma  nova  ciência,  a gramatologia, que substituiria a semiologia proposta por Saussure. Nesse sentido, vale ressaltar que a Semiótica  de  Peirce  cuida  e  vai muito  além  de  todas  as  questões  levantadas  por  Saussure  e  que escritura, num sentido amplo, pode ser considerada a capacidade humana de grafar  linguagens, de quaisquer tipos, em quaisquer suportes, não se restringindo à linguagem verbal. No Dicionário Larousse Illustré (100º.ed), encontramos: écriture,   do lat. scriptura: representação da palavra e do pensamento por signos gráficos convencionais; sistema de signos gráficos que permitem essa representação. Ainda  nesse  sentido,  pode‐se  citar  Coulmas:  “Ao  invés  de  dar  uma  definição  formal  de  escrita, discutamos  três  de  suas  características  fundamentais:  1)  ela  consiste  de marcas  gráficas  artificiais numa superfície durável; 2) seu propósito é comunicar algo; 3) esse propósito é alcançado em virtude da relação convencional entre as marcas e a língua (language).” (COULMAS 1989: viii)  

Page 126: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

127

camada intermediária entre a língua e os meios em que é transmitida,

fenômeno devido, em grande parte, ao aparecimento de diversos gadgets

(celulares, pagers, etc.) em que a Internet se tornou uma rede móvel, no

sentido de acompanhar seus usuários onde quer que eles estejam. Nesse

estreitamento entre fala e escrita, é a escrita que se enriquece de atributos

dinâmicos antes considerados propriedade exclusiva da fala.

“Pode-se concluir, a partir disso, que a fala nos aparece hoje como uma

camada intermediária, fluxo audível entre duas formas de escritura, a língua

à qual está prescrita..., de um lado, e, de outro, na superfície material dos

meios, oferecendo-se ao olhar, aparece a escritura fonética. Assiste-se,

assim, em ambos os lados, a uma formidável sublevação da escrita contra

qualquer exclusivismo e sobrevalorização da fala. Enquanto a lingüística e a

psicanálise adensam a exploração do traço e da letra nos interstícios da fala,

o surpreendente desenvolvimento dos meios de impressão e o advento de

novos suportes para a escritura alfabética vêm também, a seu modo,

reduzindo a pó as tradicionais oposições da riqueza vitalista da fala contra a

uniformidade tediosa da escrita.” (SANTAELLA e NÖTH 1999: 68,69)

Outra peculiaridade da linguagem verbal na hipermídia é aquela

concernente à liberação da escrita de sua função de suplemento da fala,

numa “corrupção da fonética”, temática de muitos trabalhos e

experimentações digitais44, na tentativa de expandir os limites tradicionais do

texto e da escrita:

“Uma zona de fricção entre a letra e a locução é estabelecida aí, indicando

um atributo radical da escrita eletrônica: a corrupção da fonética. Corrupção

esta que ocupa o centro do trabalho da australiana Marie-Anee Breeze ...

Definido pela autora como ‘network language system’, desenvolve uma

textualidade única, que mescla símbolos matemáticos, códigos de

programação e a iconografia da Web, cujo objetivo poético é criar, via Rede,

uma escritura em camadas...” (BEIGUELMAN 2003: 46)

44 “O premiadíssimo I/O/D é não só referencia obrigatória nessa discussão, mas um marco histórico. Programa de visualização das  informações da Web,  lançado em 1997, e que  já está em sua quarta versão, transforma as palavras em diagramas dinâmicos.” (BEIGUELMAN 2003: 69)  

Page 127: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

128

Depreende-se dessas experimentações a constatação de que os

meios eletrônicos são mais do que receptáculos de conteúdos textuais e

hipertextuais, “esses suportes são contextos de leitura nos quais as

significações se constroem” (BEIGUELMAN 2003: 35), onde “implode-se” a

horizontalidade da linha e a fixidez da diagramação numa rede mundial

“fundada numa tecnologia da escrita que se rebela contra sua função de

inscrever”, simplesmente (BEIGUELMAN 2003: 36). Como nos diz Leão

(2005: 111), os meios eletrônicos oferecem “um espaço dilatado para a

escritura, que se propaga em diversos sentidos, ‘multidimensional’, sem

limites predefinidos”.

Apesar de todas essas inovações, críticas45 têm sido feitas a respeito

da estrutura da Internet ainda simular o aspecto hierárquico organizacional do

códex, além da aparência do papel que ainda subsiste em muitas de suas

interfaces, resultando num formato ainda bastante linear se consideradas as

possibilidades que as novas tecnologias disponibilizam.

“É o não-reconhecimento dessas especificidades [das novas tecnologias] o

que explicaria a preponderância do formato linear da Internet, podendo-se

dizer que a grande parte do conteúdo hipertextual disponível não passe

ainda de uma massa de textos e imagens clicáveis que reitera as

convenções formais de organização do volume impresso, trocando, na velha

divisão do índice em capítulos, a referência ao número da página pelo link.”

(BEIGUELMAN 2003: 68)

Fica claro, desse modo, que a hipermídia ainda é uma tecnologia em

desenvolvimento, passível de grandes mudanças tanto estruturais quanto em

sua aparência, e que no futuro, será imperioso pensar modelos de

45 “Os paradigmas fundamentais do mundo da computação são simplesmente tradições. Os princípios básicos do computador,  tal qual os ensinamos, dizem  respeito a convenções e não à  realidade. Os computadores  hoje,  basicamente,  simulam  duas  coisas:  hierarquia  e  papel.  A  hierarquia  foi cuidadosamente colocada na estrutura dos arquivos do computador porque os que assim o fizeram consideraram‐na  correta, natural  e  a única  forma. O papel  foi  também  simulado na estrutura dos computadores porque parecia correto, natural e a única  forma. Acredito que ambas são  formas de aprisionamento  que  constrangem  e  distorcem  o  nosso  trabalho  e  nosso  pensamento.  (...)  Desse modo,  esses  dois  formatos  glorificam  a  aparência  em  detrimento  da  administração  do  fluxo  de conteúdo ...(NELSON apud BEIGUELMAN 2003: 67)  

Page 128: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

129

hipertextualidade para além dos paradigmas da cultura impressa

(BEIGUELMAN 2003: 66) em estruturas não-hierárquicas e em um ambiente

que não simule o papel, de forma a dar conta do rompimento das noções de

página e volume (Idem 2003: 77).

Seria, dessa forma, ingenuidade pensar que o advento dessas novas

formas midiáticas da escrita permitem, por si só, novos exercícios de autoria

(BEIGUELMAN 2003: 54), sendo necessário levar suas conseqüências para

além da mera utilização dos diversos tipos de mídias embutidas em seus

códigos, iniciando a reflexão sobre como “criar sentido” ao invés de

simplesmente “distribuir conteúdo” nessas novas tecnologias da escrita.

No entanto, por tudo que ela já possibilitou à exploração do potencial

da escrita, a escrita hipermidiática já é chamada de e-escrita, ou escrita em

meios eletrônicos, em função de características singulares que se

diferenciam de todas as modalidades que a precederam.

“Brotando da convergência fenomenológica de todas as linguagens, a

hipermídia significa uma síntese inaudita das matrizes da linguagem e

pensamento sonoro, visual e verbal com todos os seus desdobramentos e

misturas possíveis. Nela estão germinando formas de pensamento

heterogêneas, mas, ao mesmo tempo, semioticamente convergentes e não

lineares, cujas implicações mentais e existenciais, tanto para o indivíduo

quanto para a sociedade, estamos apenas começando a apalpar.”

(SANTAELLA 2001: 392)

6. ICONICIDADE DA ESCRITA EM AMBIENTES HIPERMIDIÁTICOS

Uma das grandes mudanças que se apresentam na reconfiguração da

escrita é sua crescente iconicidade, daí acreditarmos que a investigação da

escrita hipermidiática como sistema em constante intercâmbio com seus

suportes (sistema ambiente) abre novos caminhos na compreensão dos seus

processos evolutivos. Assim, embora este tópico sobre iconicidade também

pertença à discussão da natureza semiótica da escrita, é sua conexão com

as funções sistêmicas e o sistema ambiente que abordaremos aqui.

Page 129: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

130

Os sistemas de escrita contam com regras mais ou menos flexíveis

que determinam sua utilização. Mas para que se mantenham eficientes, face

às constantes mudanças por que passam as condições em que são

utilizados, eles devem se adaptar ao ambiente e às suas transformações.

Isso significa que todo sistema de escrita é aberto, dinâmico, passível de

modificações a despeito de todos aqueles que tentam “cristalizá-lo” em

gramáticas e dicionários dos mais variados tipos. Dito de outro modo, um

sistema de escrita, como qualquer outro sistema, precisa evoluir para

permanecer, adaptando-se ao meio ambiente que o envolve e aos diferentes

usos e necessidades dos seus usuários. No caso da escrita, parece-nos

evidente como a mudança na natureza dos seus suportes geraram a

necessidade de sua evolução adaptativa. O próprio Saussure destaca as

constantes mudanças a que o todo da linguagem verbal está submetido:

“A língua - e esta consideração sobreleva todas as demais - é, a cada

momento, tarefa de toda a gente; difundida por u’a massa e manejada por

ela, é algo de que todos os indivíduos se servem o dia inteiro. (...) da

língua... cada qual participa a todo instante e é por isso que ela sofre sem

cessar a influência de todos.” (CLG 88)

Interessante notar, nesse esforço adaptativo da linguagem verbal na

hipermídia, a quantidade de conteúdo imagético que se infiltra nos textos, nas

mais diversas modalidades, o uso de caracteres de natureza icônica cada

vez maior, bem como a diagramaticidade da escrita que se processa nesses

meios hipertextuais.

Segundo aponta Michael Shapiro, autor da teoria semiótica das

mudanças lingüísticas, a evolução da linguagem verbal caminharia para uma

maior iconicidade diagramática.

“Na teoria semiótica das mudanças lingüísticas (language change), a

evolução da língua em direção a uma maior adequação entre forma e

conteúdo e rumo a paradigmas mais coerentes e completos tem sido

interpretada como um movimento em direção a uma maior iconicidade

diagramática.” (NÖTH 1999:615)

Page 130: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

131

Esse aumento de iconicidade que pode ser observado e que não se

restringe somente à sua forma diagramática, parece estar ligado à demanda

por uma maior eficiência do sistema de escrita nesses suportes, que tenderá

a complexificar-se para atender às diversas novas necessidades que as

características também cada vez mais complexas dos ambientes

hipermidiáticos impõem.

Nesse sentido podemos observar uma ativação da “função memória”

do sistema, através da qual todo sistema se vale de sua “experiência”

passada, para garantir sua autonomia face a transformações nos demais

sistemas com os quais mantém intercâmbios, e dessa forma, assegurar sua

permanência (sobrevivência) no futuro. Como vimos no capítulo III, a função

memória de um sistema tem um caráter histórico, conectando o presente do

sistema ao seu passado.

A escrita surgiu embasada por todos os desenvolvimentos

pictográficos prévios da humanidade, que fala há mais ou menos 50.000

anos, desenha há pelo menos 35.000, e escreve somente há cerca de 5.000.

É nesse sentido que vislumbramos um estoque sígnico de natureza icônica

na escrita, que tendo sido separada de seu caráter imagético com o advento

do alfabeto, agora ressurge, novamente híbrida de propriedades de imagem,

som e texto, ressaltando aspectos importantes de sua trajetória que talvez

tenham sido negligenciados na Era de Gutemberg.

“De fato, se considerarmos o vasto papel que a imagem desempenhou na

escrita em geral (pinturas rupestres, escrita chinesa, hieroglífica etc.) a era

do códex pode ser considerada como um período aberrante quando o texto e

a imagem foram temporariamente isolados um do outro.” (SANTAELLA

2004a:166)

Mudam os suportes, as necessidades, e como qualquer sistema, a

escrita precisa evoluir para continuar a cumprir suas funções dentro de novos

contextos. A iconicidade do sistema de escrita, ou seja sua semelhança com

os objetos representados por seus signos (segundo o conceito peirceano de

Page 131: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

132

ícone, ver capítulo I), foi o ponto de partida de seu surgimento e agora parece

ser a característica que mais está se complexificando para que o sistema

consiga manter a ponte com o real necessária à sua permanência.

A escrita deve captar em sua malha sígnica características das três

entidades: fala, língua e linguagem, além de ser adaptável ao meio ambiente

que a envolve, sensível às variações externas, sejam elas de que natureza

forem, culturais, científicas, históricas, geográficas, políticas, entre tantas

outras, garantindo, assim como um sistema vivo, o grau de coerência com o

real necessário à sua eficiência, e portanto, à sua permanência, à sua

continuidade. Nesse sentido, a escrita parece estar se complexificando para

corresponder a uma nova visão do real:

“Contudo, no pensamento científico contemporâneo, começa a emergir a

noção de um multiverso, a ‘n’dimensões, suportado por uma teoria de

mundos paralelos. Como exprimir lingüisticamente uma tal visão

multifacetada do Real? O cibertexto, na sua multiplicidde variacional

intrínseca, parece constituir de certo modo uma estrutura textual homóloga

do modelo de um multiverso.” (BARBOSA 2009: 357)

Interressante notar, neste ponto, a quantidade de “línguas mortas” que

existem, sistemas que deixaram de exercer um intercâmbio dinâmico com o

ambiente em que eram utilizados. É nesse sentido que um sistema de escrita

deve estar pronto para adaptar-se às imposições do real, do existente,

daqueles fatores que insistem e persistem a despeito do que possamos deles

pensar. Todo sistema precisa entrar em certa isomorfia semiótica com o real,

utilizando-se dessa informação para nele subsistir. É essa a reconfiguração

pela qual, hoje, a escrita passa, nos mais diferentes níveis.

“Parece inegável, principalmente através do conceito de Umwelt [ambiente],

que o semioticamente real tem suas raízes em aspectos do real: nossa

percepção e, de maneira geral, nossa cognição, contêm mapas iso ou

homomórficos com a realidade, pois se assim não fosse os sistemas vivos

não sobreviveriam, não conseguiriam atingir os graus de coerência com o

real necessários para a permanência.” (VIEIRA 1999: 155)

Page 132: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

133

Tanto a iconicidade imagética, diagramática e metafórica, quanto a

mutidimensionalidade da escrita hipermidiática, que nada mais é que uma

iconicidade (isomorfia) em relação ao real, cumprem a função de adaptar o

sistema de escrita ao sistema ambiente, seja ele o suporte em que ela se

desenvolve ou ainda a própria concepção do real, que vai se aprimorando

para refleti-lo com crescente acuidade.

É esse real, peirceanamente definido, e que Saussure chama de

tempo, que se impõe, fruto da conjunção das mais diversas variáveis, tanto

aquelas que não apreendemos totalmente, como daquelas que percebemos

e de tantas outras sobre as quais não temos como intervir. Saussure, apesar

de distante dos conceitos de legissigno, evolução e continuidade, tão bem

definidos por Peirce, bem como dos conceitos de sistema e ambiente tão

presentes na ciência contemporânea, percebeu todas essas nuances ao

observar a imutabilidade e mutabilidade do signo nesta passagem

memorável:

“O tempo, que assegura a continuidade da língua, tem um outro efeito, em

aparência contraditório com o primeiro: o de alterar mais ou menos

rapidamente os signos lingüísticos e, em certo sentido, pode-se falar, ao

mesmo tempo, da imutabilidade e mutabilidade do signo.

Em última análise, os dois fatos são solidários: o signo está em condições

de alterar-se porque se continua. O que domina, em toda alteração, é a

persistência da matéria velha; a infidelidade ao passado é apenas relativa.

Eis porque o princípio de alteração se baseia no princípio de continuidade.

(...) Isso se vê bem pela maneira por que a língua evolui; nada mais

complexo: situada, simultaneamente, na massa social e no tempo, ninguém

lhe pode alterar nada e, de outro lado, a arbitrariedade de seus signos

implica, teoricamente, a liberdade de estabelecer não importa que relação

entre a matéria fônica e as idéias. Disso resulta que esses dois elementos

unidos nos signos guardam sua vida, numa proporção desconhecida em

qualquer outra parte, e que a língua se altera, ou melhor, evolui, sob a

influência de todos os agentes que possam atingir quer os sons, quer os

significados. Essa evolução é fatal; não há exemplo de uma língua que lhe

resista. (...)

Page 133: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

134

A continuidade do signo no tempo, ligada à alteração no tempo, é um

princípio de Semiologia geral; sua confirmação se encontra nos sistemas

de escrita ...

As causas da continuidade estão a priori ao alcance do observador; não

ocorre o mesmo com as causas de alteração através do tempo. ... o tempo

altera todas as coisas; não existe razão para que a língua escape a essa lei

universal.” (CLG 89-91, grifos nossos)

Suassure afirma ainda, não ser ele próprio bastante claro em relação à

necessidade das mudanças (CLG 91) em função de não distinguir “os

diferentes fatores de alteração”. Essa tarefa a teoria sistêmica parece cumprir

com clareza. Quanto à natureza das transformações, é a teoria peirceana

que nos dá o norte. Além disso, é impressionante a similitude entre o

vocabulário de Saussure e o de Peirce, especialmente se observarmos que

suas teorias vêm de fontes tão distintas. Mais uma vez aqui, confirmamos o

que Peirce postulou sobre o real que se impõe, num caminho assintótico,

rumo à verdade (ver capítulo I).

Page 134: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

135

Capítulo 5 - RECONFIGURAÇÃO DA ESCRITA: NOVAS GRAFIAS

“Ninguém pode se tornar um homem de letras, como se diz,

sem reconhecer sua aparência, bem como seu som e suas várias notações.”

Jonathan Williams (1967 in Solt 1969: 85)

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Esta parte final do presente trabalho, e que se constitui também em

um dos objetivos principais desta pesquisa, visa a analisar teoricamente as

transformações pelas quais passa a escrita no ambiente hipermidiático.

Todas as transformações a que hoje assistimos foram sendo gestadas

lentamente, no decorrer da história da humanidade, que aprendeu a

desenhar antes de escrever, desenvolveu sua sensibilidade e capacidade

representativa nos mais diversos suportes, técnicas e linguagens,

culminando, no século XX, com a criação uma avalanche de novas mídias

que se sucederam incessantemente até o advento da hipermídia, às

vésperas do século XXI. O código alfabético, portanto, recebeu e processou

todos esses fluxos de informação.

“Com o crescimento e sofisticação da imprensa e da publicidade, a partir do

início do século, novos campos de possibilidades, no tamanho e variação

dos tipos gráficos e no uso substantivo do espaço, foram se abrindo rumo à

exploração da natureza plástica, imagética, do código alfabético. Mais

revolucionária, no entanto, seria a recente introdução desse código nos

meios eletrônicos. Desde o videotexto, com a lenta varredura das letras em

luz-cor, até a chegada dos computadores pessoais e domésticos, ‘recursos

antes restritos aos profissionais do design gráfico, técnicos em tipografia ou

em fotocomposição, complicados de usar ou com alto custo de produção se

ampliaram e deixaram de ser obscuros para qualquer usuário...’ Além disso,

já nos meios gráficos, impressos, também se assistia ao desabrochar de

uma nova linguagem híbrida, entretecida nas misturas entre a palavra e a

imagem diagramática e fotográfica. Agora, com a nova geração de designers

gráficos que se deliciam na manipulação das letras, palavras, configurações

Page 135: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

136

e desenhos nas telas informatizadas movidas a luz e cores que se

multiplicam ao infinito, esse código híbrido já preenche todas as condições

para se tornar dominante.” (SANTAELLA e NÖTH 1999: 68,69)

Para as análises que se pretendem neste estudo, deve ficar claro, no

entanto, que identificar um signo classificando-o dentro de uma tipologia não

demonstra, automaticamente, o modo ou o motivo pelo qual ele assumiu

essa configuração dentro de um determinado contexto, nem tampouco

determina, necessariamente, quais mudanças se seguirão na continuidade

do processo de semiose.

Serão utilizadas, primeiramente, as classes de signos elaboradas por

Peirce que foram explicitadas no capítulo I. Embora essa abrangente

classificação de signos possa ser considerada suficiente para dar conta da

maior parte dos desafios que a escrita apresenta atualmente, como já

dissemos, elas se constituem em conceitos altamente abstratos e cujo

instrumental teórico pode e será complementado pelos tipos de signos dos

sistemas de escrita apresentados no capitulo III, que enfocam atributos

sígnicos específicos da escrita, e cuja compreensão, acreditamos, pode

apontar possíveis caminhos pelos quais a escrita venha a se desenvolver.

Os exemplos a serem analisados foram selecionados pelo critério da

freqüência com que são utilizados, ou seja, foram escolhidos os tipos mais

representativos das transformações mais usualmente observadas, por

acreditarmos que esse critério adéqua os exemplos aos objetivos que guiam

a pesquisa, e por acreditarmos, igualmente, que sua seleção e análise

poderão contribuir para a compreensão teoricamente fundada das

transformações da escrita na hipermídia.

Ao longo da pesquisa de casos práticos, tanto na Internet como no

livro de David Crystal, “Txtng the gr8 db8” 46, que lista exemplos de mais de

dez línguas diferentes, inclusive orientais, como o chinês, foi possível

46 O  livro de Crystal  lista exemplos em  inglês, chinês,  tcheco, holandês,  finlandês,  francês, alemão, italiano,  português,  espanhol,  sueco  e  galês  (2008:  189‐229,  apêndices  A  e  B),  além  de  fornecer endereços na web para busca de exemplos em outras línguas. 

Page 136: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

137

observar que a escrita hipermidiática, em todos os países e culturas onde é

usada, sofre grande influência do inglês, que como nos diz Chartier, foi

transformado numa espécie de língua franca eletrônica, cujos procedimentos

de simplificação da gramática, de invenção de palavras e de multiplicação de

abreviaturas são usados de forma semelhante por outras línguas, embora

isso não signifique o desaparecimento das características próprias de cada

uma delas.

“De uma forma mais encoberta do que no caso das línguas inventadas no

século XIX, o inglês, transformado em “língua franca” eletrônica, é uma

espécie de língua nova que reduz o léxico, simplifica a gramática, inventa

palavras e multiplica abreviaturas (do tipo I you).” (CHARTIER 2002: 17)

Outra característica observável, e que se deve, por um lado, ao forte

conteúdo icônico dessas novas grafias, e por outro, ao crescente uso de

signos semográficos, é a de que essas novas formas têm algo de língua

universal, que procura expressar o pensamento humano de maneira não-

verbal, supra-lingüística. Como bem ressalta Chartier,

“Por um lado, o texto eletrônico reintroduz na escrita alguma coisa das

línguas formais que buscavam uma linguagem simbólica capaz de

representar adequadamente os procedimentos do pensamento. (...)

É o caso da invenção dos símbolos, os emoticons, como se diz em inglês,

que utilizam de maneira pictográfica alguns caracteres do teclado

(parênteses, vírgula, ponto e vírgula, dois pontos) para indicar o registro de

significado das palavras: alegria:-) tristeza :-( ironia ;-) ira :-@... ilustram a

procura de uma linguagem não-verbal e que, por essa mesma razão, possa

permitir a comunicação universal das emoções e o sentido do discurso.”

(CHARTIER 2002: 16,17)

Se no início, o computador cumpria muitas das funções que eram

realizadas em papel, com o desenvolvimento de toda uma geração de

gadgets para a comunicação interpessoal, a e-escrita assumiu uma forma de

oralidade que até então pertencia exclusivamente à fala. Até o advento

desses aparelhos, fala e escrita estavam separadas por limites mais ou

Page 137: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

138

menos definidos, ao passo que hoje se encontram lado a lado em chats, e-

mails, messagers, etc.

Em conseqüência, o conceito de economia no que diz respeito ao

código alfabético também passa por transformações. O alfabeto romano tem

sido considerado uma ferramenta extremamente econômica em função de

seu número limitado de caracteres possibilitar uma quantidade quase infinita

de combinações. Essa economia sígnica foi sem dúvida de grande valia em

diversos aspectos, entre os quais, a divulgação do alfabeto nos seus

primórdios e a aprendizagem da escrita por um maior número de pessoas e

culturas. No entanto, na hipermídia, já não é a economia da quantidade de

caracteres que conta, mas sim a economia de tempo, a velocidade e a

facilidade de digitar o texto escrito, necessidades que se impõem mais a cada

dia.

2. PRECURSORES

Na poesia encontramos a linguagem verbal elevada à sua potência

máxima, pela tentativa de expressar a miríade de sentimentos, emoções,

sonhos e desejos humanos. Por esse motivo, nela encontram-se os

precursores na exploração das potencialidades sígnicas da palavra. Tanto ao

longo da história, como agora, com o advento da hipermídia, são os artistas e

poetas os responsáveis pela exploração estético-vanguardista dos novos

suportes da escrita.

“Ao longo da história humana, todas as vezes que houve mudanças no

suporte da escrita, foram os artistas e poetas que tomaram a dianteira na

exploração de seus potenciais para a criação. Na continuidade dessa

tradição, hoje são os artistas e poetas que estão extraindo das novas mídias

características inéditas da escritura, tanto no nível da aparência da escrita

quanto no nível de seu sistema de codificação interno.“ (SANTAELLA,

2007a: 333)

Os artistas, verdadeiros faróis da humanidade, sempre demonstraram

essa capacidade de expandir nossos horizontes sígnicos em movimentos

artísticos que propunham investigar as potencialidades latentes dos mais

Page 138: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

139

diferentes tipos de linguagens. No que tange à palavra escrita, Pignatari nos

diz que uma verdadeira “ideografia ocidental” foi inaugurada no século XX,

expressão que traduz com clareza muitas das transmutações que se

processam atualmente na sua codificação:

“Nos fins do século passado e começos do presente, a palavra escrita

impressa havia atingido o ponto máximo de sua curva ascendente, enquanto

meio hegemônico de comunicação de massa, e algumas de suas

manifestações (como o cartaz publicitário e o Un coup de dés) já eram

índices de que ela estava inaugurando um novo mundo da codificação - o

moderno mundo da ideografia ocidental.” (PIGNATARI 1979: 84)

Dessa forma, os séculos XIX e XX foram férteis em explorações

espaciais, gráficas e tipográficas inovadoras, e muitos artistas e poetas

poderiam ser citados como precursores ou, melhor ainda, como exploradores

de vanguarda das potencialidades sígnicas do conjunto de sistemas

verbivocovisual de que se vale a linguagem verbal para expressar-se. Na

impossibilidade de citá-los todos, alguns deles são: Edgar A. Poe (1809-

1849), Stéphane Mallarmé (1842-1898), Machado de Assis (1839 - 1908),

Guillaume Apollinaire (1880-1918), James Joyce (1882-1941), Vicente

Huidobro (1893-1948), e.e.cummings (1894-1962) e Ezra Pound (1885-

1972), e o movimento da poesia concreta. A seguir examinaremos alguns

exemplos mais detalhadamente.

2.1. Edgar Allan Poe

A obra de Poe (1809-1849) inspirou três dos maiores poetas

franceses: Baudelaire, Mallarmé e Valéry. Escritor, jornalista e tipógrafo,

utilizou em seus contos procedimentos de linguagem que operam sobre a

própria materialidade dos signos verbais.

Uma grande obsessão de Poe foram os processos de espelhamento e

reversão dos signos. No famoso poema The raven, a estrofe que diz: “Quoth

the raven, "Nevermore!"”, se repete diversas vezes no poema. Raven, que

significa corvo em inglês, é um anagrama de never (nunca), a palavra que o

Page 139: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

140

corvo repete insistentemente. Em O escaravelho de ouro, o personagem

William Legrand vai morar sozinho numa ilha chamada Sullivan Island, que

possui quase todos os fonemas do nome do personagem.

“Trata-se de uma espécie de manuseio que se processa na medula da

maquinaria combinatória dos fonemas e estruturas lingüísticos, produzindo

jogos fônicos e sintáticos os mais diversos (figuras de som e sentido ou de

forma e sentido) que, em Poe, vão apresentar como constante aquilo que

poderia ser chamado de obsessão pelos processos de inversão ou reversão

do signo sobre si mesmo. (...) E, em termos sonoros, trata-se... [de]

interações, junturas e revérberos de som e sentido, onde a poesia

continuamente instala os seus parentescos e afinidades eletivas entre

significante e significado, contestando, pelo menos em seu domínio

específico, o postulado saussuriano da arbitrariedade do signo lingüístico. É

infinito o número desses procedimentos em Poe...” (SANTAELLA 1986:

179,180)

Sob a luz da semiótica, acreditamos que a influência de Poe foi tão

grande devido ao fato dele saber tão bem que o verbal pode se expressar

também de formas icônicas e indiciais, que se encontram encapsuladas no

simbólico, e que ao serem evidenciadas, tecem “malhas pluralistas de

linguagem” em operações intersemióticas.

“... consideramos, ao contrário (para sermos mais fiéis às operações

intersemióticas), que o próprio E. A. Poe sabia muito bem que o verbal não

precisa sair de si mesmo para encontrar outros códigos, pois os níveis

icônicos e indiciais (formas, imagens, desenhos, diagramas, pegadas,

bússolas de orientação...) já se encontram encapsulados, embutidos no

próprio verbal. Poe vira, na realidade, o verbal pelo avesso, desentranha-o,

desnuda-o, fazendo aflorar as camadas não-verbais em igualdade de direitos

e numa convivência democrática com o verbal, criando tecidos híbridos e

espessos, malhas pluralistas de linguagem.” (SANTAELLA 1986: 183)

Um fato inusitado merece destaque: Poe chegou mesmo a inspirar

Peirce (1839-1914), que ensaiou criativamente experimentos no campo da

“arte quirográfica” (MS 1.539), “enriquecendo de novas dimensões a palavra

escrita e sugerindo novas correspondências aos níveis falado e sonoro”, que

Page 140: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

141

como bem comenta Pignatari, mostram que “na mente e sensibilidade de

Peirce, coerem teoria e prática”:

“trata-se de algo assim como iluminuras expressionistas, que vão tecendo

comentários não-verbais ao poema O corvo, de Poe... e a um texto que me

parece a abertura de um salmo (“Estranhas coisas se murmuram de ti, Sião,

cidade de nossa rainha”)...

As aparentes garatujas introduzem no poema, ou melhor, extraem dele

ícones interpretativos, transcodificando-o em outro nível semiótico por meio

de acidentes e ligaduras que conferem ao todo estranhas vibrações. As

palavras e versos se ligam mediante uma sintaxe visual direta sobreposta à

sintaxe verbal e à sintaxe analógica (correspondências sonoras e grafo-

tipográficas) inerentes ao poema. Certos traços, como que interrogativos,

ficam suspensos no vazio, pensamento não-verbal; palavras e grupos de

palavras se associam iconicamente em relações visuais novas. Ícones de

terror vibram, além do verbal: novos significantes icônicos para os

significantes verbais.” (PIGNATARI 1979: 52)

À esquerda, o poema de Poe em que Peirce fez as intervenções quirográficas (in BRENT

1998: 330). À direita, o salmo submetido ao mesmo experimento, publicado em negativo (in

PIGNATARI 1979: 51).

Page 141: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

142

2.2. Stéphane Mallarmé

Poeta francês, Mallarmé (1842-1898) participou do movimento

simbolista, e promoveu uma renovação da poesia na segunda metade do

século XIX, sendo que sua obra caracteriza-se pela experimentação

gramatical e espacial da língua. Un coup de dés (1897), um de seus poemas

mais conhecidos, é composto de versos livres e tipografia revolucionária,

tendo sido de importância seminal para o movimento da poesia concreta,

pelo caráter diagramático da linguagem verbal que buscou evidenciar:

“os poetas concretos compreenderam como poucos que o Lance de dados

transpôs o limiar da escrita ocidental como mero desenho do som para uma

indagação aberta no seio do possível e impossível da escritura. Em virtude

disso, o aspecto visual do poema de Mallarmé é apenas uma conseqüência

superficial de uma revolução mais visceral que aquilo que os olhos podem

perceber. A questão mallarmeana diz respeito a outro tipo de visualidade, a

visualidade estrutural ou diagramática. Toda grande poesia, mesmo oral, e

principalmente a música (não por acaso foram as sinfonias que inspiraram

Mallarmé), é portadora dessa visualidade que só pode ser sentida na

sincronicidade dos sentidos. Trata-se dos diagramas internos, fluxos e

refluxos das analogias, força de atração e repulsão das semelhanças e

diferenças, energias do tempo e do espaço, tudo isso configurado nas

malhas da linguagem, o que tem muito pouco que ver com o visual

meramente ótico.” (SANTAELLA 2007: 341)

2.3. Poesia concreta

A poesia concreta impôs-se como a expressão mais viva e atuante da

vanguarda estética brasileira a partir dos anos 50. O grupo formado por Décio

Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, foi quem deu o pontapé

inicial na exploração da sintaxe espacial e verbivocovisual da palavra, que

teve representantes em muitos outros países.

Os trabalhos são regidos pela idéia de extrema condensação,

ocupando a página com uma diagramação calculada que procura, para além

da sintaxe tradicional das palavras, outras articulações e um ritmo mais

propriamente plástico. Os textos são compostos especialmente pela

Page 142: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

143

fragmentação e/ou fusão de palavras, com exploração da tipografia e das

diferentes cores em que são impressas as palavras de um mesmo poema.

Os poemas caracterizam-se pela sua natureza experimental, fruto da procura

constante de novas soluções de linguagem.

Precisamente neste aspecto, é que a poesia concreta pode ser

considerada como precursora das transmutações da escrita que hoje se

processam, já que seus procedimentos buscam atingir e explorar as camadas

materiais do signo: o som, a letra, a linha, a superfície da página, a cor, a

tipografia, e, por isso, levam a comunicação dos sentidos a se perfazer no

nível da própria estrutura verbo visual.

“A poesia Concreta posicionou-se como uma poética da objetividade,

tentando, simplesmente, posicionar suas premissas nas raízes da linguagem,

com a intenção de criar novas condições operacionais para a elaboração de

um poema na esfera da revolução tecnológica. Tecnicamente, os poetas

concretos podem ser distinguidos de seus antecessores pela radicalização e

condensação dos meios de estruturar um poema, no horizonte dos meios de

comunicação da segunda metade do século. Isso implica, entre outras

características, no seguinte... explicitar a materialidade da linguagem nas

suas dimensões visual e sonora; passagem entre os níveis verbal e não-

verbal.” (AUGUSTO DE CAMPOS apud FRANK 2004: 155, grifos nossos)

Em função da poesia concreta ter se desenvolvido no seio da

revolução tecnológica do século XX, muitos de seus poemas serviriam de

exemplo no presente estudo. Três deles, no entanto, merecem destaque pela

forma como antecipam usos que hoje se desenvolvem na hipermídia.

O primeiro é um poema que explora a iconicidade de alguns sinais que

estão presentes nos teclados dos computadores, e que igualmente se

encontravam nas máquinas de escrever. Ele aparece citado por Solt

(1969:85) e pode ser considerado um precursor, um verdadeiro “avô” dos

emoticons, pois a cada estrofe, sinais e letras vão formando a expressão

facial de um sorriso. Seu autor, o poeta concreto norte-americano Robert

Creeley, enviou-o numa carta a Jonathan Williams, outro poeta concreto, em

Page 143: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

144

1954, e após mencionar seu título “Hi There!” acrescentou uma nota

desconfiada: “Talvez eu esteja ficando louco?”. Williams comenta que o

poema é um dos menos conhecidos do autor, e que recebê-lo foi um deleite,

abrindo um novo mundo de possibilidades para ele.

O segundo são os Poemóbiles (1968, 1974) de Augusto de Campos e

Julio Plaza, um livro com doze poemas em folhas soltas que rompem a

bidimensionalidade da escrita, tornando-se tridimensionais por meio de

cortes, dobraduras e montagens no papel.

“Poemóbiles são coreografias de formas e cores que se atualizam à medida

que o leitor movimenta as páginas duplas de um livro desamarrado. Ao abrir

cada uma das páginas soltas, as cores-formas vão surgindo como palavras,

combináveis, recombináveis, livres no ar, entre os brancos, vazios do

espaço. Sem deixar de ser palavra, a palavra salta de leito plano sobre o

papel e passa a existir como corpo volumétrico que se mexe como coisa

viva.” (SANTAELLA 2007: 344)

Page 144: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

145

Fotos: página de abertura de Poemóbiles e alguns poemóbiles abertos 47.

Outro poema que merece destaque é o de Philadelpho Menezes

(1991), que de forma original descobre, no negativo da foto do número

612309 em uma calculadora, a palavra POESIa. Nas análises do capítulo V

veremos como números e letras se aproximam na hipermídia de formas

antes inimagináveis.

47 Fotos disponíveis em http://www2.uol.com.br/augustodecampos/poemobiles.html (março/2011). 

Page 145: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

146

2.4. E-poetry

Na e-poetry ou e-poesia, também chamada de ciberpoesia e

infopoética, os autores se valem das possibilidades do hipertexto para

reconfigurar completamente a linguagem, fugindo de sua dimensão linear.

Todas as possibilidades que foram exploradas até então, parecem simples

ensaios se comparadas aos recursos tecnológicos disponibilizados pela

confluência das mídias. Antônio Risério, antropólogo, poeta e ensaísta

mostra como essas novas formas escriturais se insubordinam perante a

escrita alfabética, recorrendo a toda uma gama de dispositivos extralineares

para festejar a liberdade dimensional da linguagem:

“Os textos produzidos a partir dessas formas escriturais - trazendo-nos à

lembrança, aqui e ali, antigas inscrições chinesas, egípcias e astecas -

escapam ou destoam, como já disse, de uma tradição milenar, desenho

histórico que vem dos embriões mesopotâmicos da escrita ou, se preferirem

passar ao largo dos sinais sumero-acadianos, dos primeiros alfabetos

consonantais e vogais da Fenícia e da Grécia, respectivamente. Tal

insubordinação gráfica diante da fonetização da escrita e da imposição

cultural da Ordem Alfabética - recorrendo a toda uma gama de dispositivos

extralineares de inscrição textual, quando figura e letra se co-ordenam numa

configuração sígnica peculiar, ou a própria letra vem a ser submetida a

operações pansemióticas -, engendra assim uma poesia que quer, procura,

afirma e festeja a liberdade dimensional da linguagem. Graças a essa

irrupção contra a rigidez foneticista, contamos hoje com uma produção

textual criativa que reflete, expressa e critica a realidade sígnica global da

sociedade contemporânea.” (RISÉRIO 1998: 163)

Risério, ao examinar o impacto do uso das tecnologias computacionais

sobre a poética em contextos digitais, ou ainda, “na práxis escritural

contemporânea” como ele a chama, enumera três principais características:

1º) A possibilidade de articulação conjunta na composição textual das

representações icônicas e simbólicas, no sentido peirceano dos termos.

Page 146: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

147

Essa é uma característica que na escrita, se apresenta com bastante

freqüência nos links e hiperlinks, onde ao clicar-se numa palavra, temos as

imagens e sons a elas associadas:

“De saída, a possibilidade da articulação, numa composição textual, do

conjunto ícone/símbolo, no sentido semiótico desses termos. Vale dizer,

ícone=representação analógica do objeto, como um desenho realista ou uma

fotografia; símbolo=representação arbitrária, socialmente instituída, como no

caso da palavra.” (RISÉRIO 1998: 159)

2º) A possibilidade de iconização da própria escrita, através da adaptação de

elementos infra-vocabulares ao significado (semantização) que se quer

transmitir:

“Em segundo lugar, a possibilidade de iconização da própria escrita e de

semantização de elementos infra-vocabulares, graças ao bombardeio,

icônico ou não, da letra. No caso, as próprias relações óticas dos signos

entre si, numa determinada mensagem poética, podem propiciar tal

semantização.” (RISÉRIO 1998: 159)

3º) E por último, a quebra da linearidade da escrita, que está baseada em sua

função de reprodução da fala, e de sua respectiva linearidade no tempo.

“Por fim, o fato desses e de outros processos escriturais concorrerem para

uma superação do modelo (ou da norma) linear da escrita fonética, que

durante séculos dominou, de modo incontestável, a paisagem textual do

Ocidente.” (RISÉRIO 1998: 159)

A natureza semiótica desses procedimentos foi em grande parte

analisada no capítulo II, sendo que no contexto poético, digital ou não,

Risério nos esclarece como eles são levados a efeito, levando à

conseqüência última da quebra de linearidade da escrita alfabética. A

passagem a seguir é inspiradora, seminal, e merece ser transcrita para a

compreensão de como os processos artísticos estiveram envolvidos na

exploração do que hoje se tornam usos cada vez mais comuns da escrita:

“Com a caligrafia, a letraset ou o computador, pode-se investir a própria letra,

elemento básico do símbolo, de uma função icônica - criar uma relação

Page 147: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

148

fundamental, um nexo semiótico, entre a fisionomia da escrita e a dimensão

referencial do símbolo. Nesse particular, a escrita terá sido investida de um

duplo valor, ao mesmo tempo fonético e icônico, escrita fono-ideogramática.

Teremos assim, em todos esses casos, e em muitos outros mais, criações

que podem ser definidas, semioticamente, como textos icônico-simbólicos,

nos quais é possível fazer, ainda, intervenções indiciais (um signo é indicial

sempre que há, entre ele e o que ele representa, contigüidade física) - uma

impressão digital numa foto montagem, por exemplo. Como se insistirá

adiante, esses textos icônico-simbólicos remetem para a mesma questão

escritural - são textos que não se contentam, expressivamente, com a

linearização alfabética.

Quando me referi acima à iconização do próprio símbolo, ao valor

‘fisionômico’ que a letra pode adquirir em determinado conjunto textual,

compondo assim uma escrita picto-fonética, eu já estava entrando, na

verdade, no campo antes mencionado da semantização de elementos infra-

vocabulares. Uma letra é uma letra é uma letra. Aqui, o poeta não apenas

cria estruturas em que o símbolo é colocado em relação direta com outros

espécimes sígnicos. Ele atua no espaço da própria inscrição simbólica.

Sobre a forma material da palavra, ou sobre a fisicalidade da letra. E

consegue, assim, carregar de sentido um elemento de uma palavra. Por

exemplo: se gravo uma palavra num determinado tipo e numa determinada

cor, posso, adiante, usar metonimicamente, sua letra inicial por ela - a grafia

e o colorido irão garantir a eficácia de funcionamento do mecanismo pars pro

toto, fazendo com que o receptor da mensagem reenvie a letra à palavra,

assim como é capaz de identificar um barco por sua vela inflada. Ou,

também, se trabalho uma letra específica de forma distinta, na arquitetura do

texto, posso fazer com que ela venha a veicular uma outra mensagem, que

não a da palavra (ou das palavras) em que se acha incluída. Ainda aqui, a

linearidade range - ou mesmo racha.” (RISÉRIO 1998: 159-160)

Giselle Beiguelman, artista e escritora, em O livro depois do livro,

indica e comenta mais de 50 obras e projetos hipermidiáticos, em cujos

endereços na web é possível verificar como a palavra pode ficar “entre a

escrita e a fala, entre a música e o desenho, entre a letra e o dígito” (Idem

2003: 25). O próprio trabalho artístico da autora busca refletir e explorar

Page 148: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

149

essas transformações, expandindo, de forma poética, os limites do código

alfabético pelo seu uso concomitante com outros sistemas de escrita.

“Sua obra Poetrica, em quaisquer de suas diferentes versões, é uma

exploração lúcida e imaginativa da escrita poética em um espaço cíbrido,

entrópico e nômade, um espaço digital que tornou possível a qualquer mídia

conectar-se a qualquer outra mídia em qualquer ponto do espaço ao mesmo

tempo.

Em uma de suas versões, Poetrica se constitui de poemas digitais cujo

processo de composição envolve o uso de fontes não fonéticas (dings e

system fonts) e operações algébricas. O título de cada poema apresenta a

equação que descreve suas seqüências de operações (adições,

superposições, divisões, etc.). O resultado são formas animadas de escrita

que reverberam em nossa memória real ou imaginária como uma

arqueologia de imagens de escrituras.” (SANTAELLA 2007: 350)

Todos esses usos inovadores do código alfabético, que também

podem ser largamente encontrados na publicidade e no design gráfico,

prepararam nossa sensibilidade para as inovações semióticas que hoje se

processam a olhos vistos. Essas formas de expansão dos limites da escrita

tradicional são precursoras da atual reconfiguração da escrita na hipermídia,

na qual o enorme salto dos suportes bidimensionais para a tela eletrônica

marca, certamente, um novo ciclo de mudanças para a escrita e sua natureza

semiótica.

3. NOVAS GRAFIAS

A reconfiguração da palavra escrita na hipermídia é caracterizada,

igualmente, pelas novas formas em que ela aparece grafada nos meios

eletrônicos. As palavras do léxico, legissignos do sistema da língua e também

do sistema de escrita que determina suas réplicas, corporificam-se em

sinsignos nos quais aparecem abreviadas, representadas ou escritas de

forma inédita, híbridas de letras, sinais e números, isto é, híbridas de formas

Page 149: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

150

convencionais e não convencionais. Como aponta Crystal (2008: 17), a razão

para isso é que a inteligibilidade da mensagem precisa ser mantida.

Como vimos, há duas formas básicas de transcrição da linguagem

verbal, a fonética e a semântica. Para a transcrição fonética temos a

possibilidade de grafar unidades silábicas, ou usar consoantes e vogais

separadamente. Já para a transcrição semântica, pictogramas, ideogramas e

logogramas são algumas opções.

Importante frisar que a hipermídia não é uma linguagem sedimentada,

que ela ainda se encontra em estado de experimentação e exploração de

todos os seus recursos e potenciais. Por isso, é possível encontrar diferentes

grafias para uma mesma palavra, e impossível fazer um inventário exaustivo

delas. Como afirma Crystal (2008: 21), diversidade é a “e-norm”. Na world

wide web é possível encontrar listas com dezenas, mesmo centenas de

exemplos. No entanto, certas maneiras de grafar as palavras já são bastante

usuais, o que permite elencá-las e analisá-las em conjuntos mais ou menos

definidos. Na maioria dos casos, é um e o mesmo legissigno do léxico que se

corporifica de diversas maneiras, em diferentes sinsignos. Como exemplifica

Peirce, no caso da conjunção e (and em inglês): “&, e (and), e o som são

todos uma mesma palavra” (CP 8.334).

Por razões de economia de tempo, muitas das novas grafias podem

ser consideradas formas diferentes de abreviação das palavras. As maiores

razões pelas quais palavras e expressões aparecem abreviadas são a

necessidade de uma maior velocidade na digitação de textos e os meios

muitas vezes exíguos onde isso é feito, como por exemplo, os botões de

aparelhos celulares, que não foram originalmente pensados para tal função, e

nos quais é preciso dar de um a quatro toques para conseguir grafar o

caracter desejado. Isso não impede que essas grafias migrem para outros

meios onde elas poderiam ser grafadas tradicionalmente, como o e-mail.

Essas abreviações e grafias podem ser agrupadas em diferentes tipos:

Page 150: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

151

3.1. Economia de caracteres

As palavras aparecem grafadas com menos caracteres e/ou

caracteres diferentes do que seria esperado, como filings para feelings, em

inglês, ou mesmo vamu para vamos, em português, caso em que a grafia

também expressa uma pronúncia local, como em wiv, para with, e wassup

para what’s up, em inglês (CRYSTAL 2008: 49).

É preciso lembrar que suprimir letras em palavras é um procedimento

lingüístico que pode ser claramente observado na evolução do léxico de

qualquer língua aglutinante, e que também se encontra na utilização do

apóstrofo, pouco usado em português (como por ex. em d’água), porém

largamente empregado em francês e inglês, como em I’m (I am), you’re (you

are), para citar alguns exemplos.

A grande parte das abreviações usadas não é convencional, e muitas

surgem de coloquialismos da língua. É o caso de bro para brother, e hols

para holidays, coloquialismos comuns em inglês (CRYSTAL 2008: 25), e cel

(celular) e finde (fim de semana) em português. Outras surgem ad hoc, sendo

que, nestes casos, o contexto da mensagem em que se encontram

proporcionará a possibilidade para sua decodificação. Isso ocorre tanto em

palavras inseridas no texto como em assinaturas ao final das mensagens,

onde somente a inicial ou iniciais do remetente são usadas.

O uso de iniciais, também conhecido como acrônimos, serve

igualmente para abreviar nomes e expressões completas, como em ‘omg’

(Oh my God!) e ‘ily’ (I Love you) em inglês, e ‘dn’ (de nada) e ‘tdb’ (tudo de

bom) em português.

3.2. Omissão vocálica

Também é bastante usual a grafia das palavras sem vogais, tais como

msg (mensagem), msm (mesmo), mt (muito), ñ (não), obg (obrigado), txt

(texto), entre outras. Crystal comenta essa variante com tranqüilidade:

Page 151: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

152

“As pessoas, evidentemente, intuíram um princípio básico da teoria da

informação: que consoantes carregam muito mais informação que as vogais.

Embora não estejamos acostumados a escrever sem vogais em inglês, esse

é um sistema perfeitamente normal em muitas línguas, tais como o árabe e o

hebreu. E mesmo em inglês, já houve muitas demonstrações de que um

texto sem vogais é inteligível, enquanto um sem consoantes não é...”

(CRYSTAL 2008: 26)

Ele apresenta ainda um exemplo desse uso ao comentar o texto de

um aluno adolescente no qual algumas palavras apareciam grafadas sem

vogais. Apesar da inovação, ler o texto não apresenta maiores dificuldades:

“A maioria de nós não teria problemas em ler sem as vogais a palavra

summer [smmr], embora precisaríamos parar por um momento para ler

palavras como wr, thr, e plc [were, their, place, respectivamente].”

(CRYSTAL 2008: 25)

Eventualmente, algumas omissões consonantais também podem ser

encontradas juntamente com a omissão vocálica, sempre que isso não

prejudique a inteligibilidade da leitura.

3.3. Grafia silábica

Embora existam línguas onde a sílaba é grafada como um todo

indecomponível, chamados sistemas silábicos ou logossilábicos (quando à

sílaba também está atrelado um significado), encontráveis especialmente

entre as línguas orientais, nas línguas românicas e anglo-saxônicas é a

escrita alfabética que prevalece, com suas consoantes e vogais.

“Em sistemas silábicos, cada signo representa uma sílaba, que é com

freqüência tratada como um todo não analisável. Em sistemas

logossilábicos, pode haver muitos signos para uma determinada sílaba, cada

um com um significado diferente. Os hieróglifos egípcios e maias são em

parte logossilábicos. A escrita chinesa é primariamente logossilábica para o

idioma mandarim, porém a mesma escrita é basicamente semográfica

quando empregada em japonês. A razão é que, ao ler o idioma japonês, os

componentes fonéticos do kanji - originalmente ideogramas chineses - são

Page 152: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

153

com freqüência ignorados. Embora cada ideograma signifique um

monossílabo chinês, muito são lidos como polissílabos em japonês.”

(BRINGHURST 2006: 69)

Embora não esteja prevista a possibilidade de uma grafia silábica em

todos os sistemas de escrita, a sílaba possui uma saliência intuitiva, como

demonstra Coulmas:

“A maioria dos sistemas de escrita são interpretados como referindo-se de

alguma maneira à composição fonética das formas faladas (speech forms).

Nesse processo o contínuo e natural fluir do som é artificialmente quebrado

em unidades discretas de vários tamanhos. A sílaba é uma unidade

intuitivamente saliente explorada com esse fim por diversos sistemas de

escrita, antigos e modernos...” (COULMAS 2003: 131)

No alfabeto romano, embora não exista a grafia silábica, cada letra

possui um nome mono ou dissílabo, usado geralmente para a soletração de

palavras, mas que nas novas grafias encontra-se como substituto de uma ou

até duas sílabas completas.

“As letras do alfabeto latino..., exceto por alguns casos particulares...,

geralmente possuem nomes monossilábicos usados na sonorização do

soletramento das palavras. Essas mesmas letras têm, ocasionalmente, sido

tratadas como sílabas por escribas não familiarizados com o sistema, tais

como os escribas maias que tiveram contato com o alfabeto latino através

dos espanhóis... Tudo isso testemunha a saliência intuitiva da sílaba.”

(COULMAS 2003: 62)

Na hipermídia, a crescente utilização de letras com valor silábico, não

somente alfabético tem por fim a economia de caracteres, aumentando a

velocidade da escrita. Em inglês, é o caso das letras R, U, B, C, usadas no

lugar das palavras are, you, be, see, respectivamente, ou ainda a letra X, lida

como ks em Xmas (christmas). Em português, temos a letra K, tanto no lugar

da sílaba ‘ca’, como em ksa, e como substituta de ‘qu’, em grafias como aki,

Page 153: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

154

bem como C, no lugar de ‘ce’ (você), L, no lugar de ele, D, no lugar de de, e

Q no lugar de ‘que’, entre outros exemplos.

3.4. Sinais semográficos

A maioria destes signos encontra-se incorporada ao teclado mais

usual nos computadores, também chamado teclado “qwerty”, em função de

serem essas as primeiras letras que aparecem na sua parte superior.

Interessante observar que esses caracteres superam em número as letras do

alfabeto, fato que geralmente passa despercebido.

Os números são os primeiros e mais óbvios deles. Quando a questão

é economia, não é necessário escrever seus nomes, bastando grafá-los no

sistema indo-arábico. Outros sinais também vêm da matemática, tais como +

(mais), - (menos), = (igual), x (vezes), ½ (para ‘meia’ ou ‘meio’) sendo

utilizados para substituir palavras inteiras.

Outro sinal bastante usado é o &, conhecido como e comercial, que

nasceu da junção das letras E e T, como na palavra latina et, e que significa

a conjunção ‘e’ em português.

3.5. Rébus e grafias híbridas

A palavra rébus vem de uma expressão latina, non verbis sed rebus, e

que significa “não com palavras mas com coisas” (CRYSTAL 2008: 40). Ele é

um signo originalmente pictográfico ou ideográfico, cujo uso se desloca para

designar outro conceito, diferente daquele que estava iconicamente

representado, e que é idiomaticamente homófono a ele.

Na escrita hipermidiática, vários caracteres, especialmente os

números, que também possuem nomes mono ou dissílabos, são largamente

usados com base nesse princípio. O som associado a eles serve, então, para

substituir sílabas em palavras, novamente com vistas ao incremento da

Page 154: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

155

velocidade de digitação, como por exemplo, a letra X, lida como cross, em

Xing (crossing). Assim, novas grafias de palavras e expressões vão sendo

criadas, híbridas de letras, sílabas, números e sinais, em composições

criativas que estão reconfigurando a escrita como a conhecemos.

No português, temos: d+ (demais), +ou- (mais ou menos). Em inglês,

os exemplos multiplicam-se: 4u (for you), 2 (to), 2u (to you), 2b (to be), 2c (to

see), 2day(today), 2morrow(tomorrow), b4 (before), db8 (debate), gr8 (great),

h8 (hate), Cul8er (see you later), @ (que se lê at) e é usado para at, ch@

(chat), th@ (that), @oms (atoms), entre muitos outros.

3.6. Números e letras

Assim como Saussure se surpreendeu com a intromissão da tipografia

na escrita, movimento semelhante se verifica em relação aos números, que

aparecem na e-escrita de forma antes inimaginável na escrita convencional.

Isso se dá por diversas razões, como vimos, mas talvez a mais inovadora

delas é a correspondência entre números e letras nos reduzidos botões dos

gadgets usados para a comunicação pessoal.

Nos botões, o número 2 corresponde às letras A,B,C; o 3 às letras

D,E,F; o 4 às letras G,H,I; e assim sucessivamente até o 9 que corresponde

às letras W,X,Y,Z. Dessa forma, a sequência 288866 pode produzir tanto

autumn e como button, dependendo da quantidade de toques que se dê em

cada número. Em função disso, uma tecnologia chamada predicting texting

(CRYSTAL 2008: 67), ou texto preditivo, disponibiliza na tela, no início da

digitação, as versões mais freqüentemente usadas, no intuito de igualmente

reduzir o tempo de digitação. Essas palavras tem sido chamadas de

textonyms ou homonumeric words, i.e, textônimos ou palavras

homonuméricas que formam grupos representáveis pela mesma sequência

numérica. Essa inovação tem levado a uma prática inversa, em que as

palavras e as sequências numéricas são utilizadas de forma intercambiável,

como se fossem sinônimos. Um exemplo:

Page 155: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

156

“O fato da sequência 2665 produzir tanto book (livro) quanto cool (legal), tem

resultado em uma prática onde alguns usuários deliberadamente usam a

primeira palavra em lugar da segunda. ‘u like the movie?’ pergunta A. ‘book’,

responde B.” (CRYSTAL 2008: 68)

Outra utilização dessas inusitadas grafias pode ser encontrada em

números de telefones públicos, como por exemplo, o telefone de uma

biblioteca norte-americana que é divulgado mais ou menos assim: “fone: 375-

book”, o que facilita bastante sua memorização ao relacionar número e

palavra ao objeto a que se referem, a biblioteca.

4. SOBRE OS EMOTICONS

Os limites entre a escrita e oralidade estão se tornando cada vez mais

difusos com uso das novas tecnologias que se servem da linguagem

hipermidiática. Antes de seu advento, escrever e falar eram consideradas

atividades distintas, sendo que a escrita, via de regra, apresentava uma

linguagem mais formal, enquanto que a linguagem coloquial era reservada

quase que exclusivamente à fala.

Esses limites já não são tão fáceis de definir, pois se é verdade que a

escrita, seja em meio eletrônico ou não, ainda serve a situações ditas

formais, hoje, pessoas “conversam literalmente”, isto é, no sentido

etimológico da palavra literal, pessoas conversam por meio de letras, não

mais por meio de sons, maximizando a função de superação da distância que

a escrita sempre desempenhou, expandindo o alcance comunicativo das

mensagens no tempo e no espaço.

“Comunicar-se oralmente requer a presença conjunta do falante e do

ouvinte. Escrever, pelo contrário, possibilita a comunicação a qualquer

distância no espaço ou no tempo... Essa função será chamada de função de

superação da distância (distancing function)... Os três componentes

essenciais da comunicação lingüística - o falante, o ouvinte e a mensagem -

Page 156: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

157

podem estar espacialmente e temporalmente separados um do outro.”

(COULMAS 1989: 12)

Atualmente, mensagens escritas são intercambiadas em uma

velocidade muitas vezes instantânea (comparável somente àquela

disponibilizada pelo telefone para a transmissão de sons), seja por meio de

celulares e outros gadgets portáteis ou através das telas dos computadores

em chats, e-mails e outros ambientes hipermidiáticos. Nesse contexto

inaugural, um dos limites da escrita, aquele pelo qual não lhe é possível

transpor para um suporte material a riqueza de gestos, expressões e

modulações vocais da fala, foi sentido mais intensamente.

“...o controle do tom de voz - ‘não é o que se diz, mas a forma como se diz’ -

expresso por meio de variações vocais no diapasão (entonação), na altura

(ênfase), na velocidade, no ritmo, na pausa e em outros efeitos vocais. Têm

havido esforços algo desesperados para substituir o tom de voz na tela, sob

forma de um uso exagerado de ortografia, pontuação, letras maiúsculas,

espaçamento e símbolos especiais para ênfase. Os exemplos incluem letras

repetidas (aaaahhhhh, claaaaro), sinais de pontuação repetidos (quem????,

ei!!!) e convenções para expressar ênfase (como a *verdadeira* questão).

Essas características são capazes de uma certa expressividade, mas a

variedade de significados que elas transmitem é pouca e está restrita a

noções grosseiras como excesso de ênfase, surpresa e perplexidade.

Nuances menos exageradas não são passíveis de serem usadas dessa

forma.” (CRYSTAL 2004: 85)

Essa necessidade de transpor os limites expressivos da escrita em

relação à oralidade deu origem ao que hoje se chama de emoticons (que vem

da junção das palavras emotion e icon) ou smileys (da palavra smile, sorriso).

Eles se apresentam como signos eminentemente pictográficos nos quais não

só as qualidades materiais das letras bem como a forma de outros signos

usados na escrita (especialmente semográficos) são usados para representar

expressões faciais na sua maioria, embora seu uso não se restrinja a elas.

“Relacionada a isso está a forma como o netspeak carece de expressões

faciais, gestos e convenções de postura corporal, que são tão críticos para

se externar opiniões e atitudes pessoais e moderar os relacionamentos

Page 157: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

158

sociais. Essa limitação foi notada desde o começo do desenvolvimento do

netspeak, e levou à introdução de smileys ou emoticons - combinações de

caracteres do teclado, planejadas para demonstrar uma expressão facial de

emoção. Os dois tipos básicos expressam atitudes positivas e negativas,

respectivamente (a omissão do ‘nariz’ parece ser unicamente uma questão

de velocidade de digitação ou de gosto pessoal):

:-) ou :)

:-( ou :(

Centenas de formas e seqüências lúdicas têm sido inventadas e reunidas em

dicionários de smiley, algumas extremamente engenhosas e artísticas, mas

quase nunca usadas em comunicações sérias. Fica claro que elas são uma

maneira potencialmente útil, mas muito rudimentar, de capturar algumas das

características básicas da expressão facial. Elas podem evitar uma

percepção errada das intenções de um falante, mas um smiley individual

ainda permite um vasto número de leituras (felicidade, piada, simpatia, bom

humor, deleite, diversão etc.) que só podem ser despidas de ambigüidade

com uma referência ao contexto verbal.” (CRYSTAL 2004: 85,86)

Ao representar expressões faciais, os emoticons se constituem em

uma interessante nova forma de prosódia, i.e., adicionam uma entonação

vocal dotada de significado às palavras e frases escritas, e assim são

capazes de acrescentar uma carga considerável de expressividade à escrita,

seja quando ela é usada para dialogar ou mesmo em mensagens que não

requerem respostas imediatas por parte do receptor.

Outra utilidade interessante dos emoticons é diminuir a ambigüidade

de mensagens que, sem o uso desses signos, poderiam ser interpretadas de

forma diferente àquela imaginada pelo emissor, como no caso de

brincadeiras, piadas e ironias tão comuns em diálogos e mensagens

informais.

Embora seu uso seja freqüente, não existem regras estabelecidas,

ficando sua utilização a critério daquele que escreve a mensagem.

Semioticamente, trata-se de sinsignos, já que o hábito e as regras de sua

utilização ainda estão em formação. Com o tempo, poderão ser incorporados

Page 158: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

159

ao sistema da língua, o que fará deles legissignos, assim como outros signos

de prosódia, como a exclamação e a interrogação.

Quanto à relação com seus objetos dinâmicos, isto é, com aquilo que

representam, sua carga icônica é incontestável, já que eles se assemelham

imageticamente às expressões faciais que significam. Interessante notar que

os emoticons podem ser considerados signos icônicos de prosódia, e em

função dessa iconicidade imagética ostentam uma forte característica supra-

lingüística, já que eles se tornam compreensíveis indistintamente para

usuários de diversas línguas e culturas.

Vejamos alguns exemplos mais utilizados e seus possíveis significados:

:-) sorriso, alegria, consentimento

:-)))) muito feliz, rindo muito

:-( tristeza, desaprovação

;-) ironia, brincadeira, piscadela

:-@ gritos, ira, raiva, indignação

Em japonês e outras línguas asiáticas, os emoticons são grafados de forma

diferente, em outro sentido espacial, mas com as mesmas finalidades e

servindo-se igualmente dos caracteres disponíveis do teclado. São alguns:

(*o*) supresa, espanto

(^_^) sorriso, elogio

É espantoso até onde pode chegar a capacidade representativa

humana, em explorações criativas da linguagem que contribuem para seu

enriquecimento. Alguns usos menos freqüentes na web e que podem ser

encontrados em listas de dezenas e até centenas de variantes, mostram o

potencial icônico, expressivo, que se esconde por trás de uma linguagem,

com desenhos formados de letras e sinais:

Page 159: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

160

@(---‘---‘--- que representa uma rosa, e pode ser usado para mandar “flores”

(_8^() que representa Homer Simpson, famoso personagem do desenho

animado The Simpsons

A influência desse potencial icônico pode também ser sentida em

outras áreas, como o design gráfico e a publicidade, que o exploram ao

transmitir suas mensagens. Um exemplo é a Propaganda de telefonia Alô-

Claro, veiculada na Revista Veja em 21/4/2010, onde as mesmas letras da

palavra alô formam uma face sorridente, condensando escrita, mensagem e

imagem de forma original.

5. CONEXÃO LEXICAL: A PALAVRA PERFEITA

De certa forma, é paradoxal que na hipermídia, a talvez mais potente

das mídias pela confluência de meios de que se constitui, seja a palavra, esta

velha conhecida nossa, quem rouba a cena, intermediando todos os fluxos de

informação e navegação, renovando-se e exercendo todas as suas

potencialidades, demonstrando e confirmando, mais uma vez, ser ela a

“mídia das mídias” (MOTTA 2004:10).

Page 160: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

161

Nos ambientes hipermidiáticos, sites, chats, SMS, e-mail, entre outros,

essa riqueza de potencialidades e manifestações da palavra escrita pode ser

mais facilmente percebida, especialmente porque ela assume a condição de

uma conexão lexical, isto é, um vínculo associativo entre ela, palavra, e a

miríade de conteúdo informacional que a ela pode ser associada, sem

hierarquias, e sem limites predefinidos. Pode-se dizer que na linguagem

chamada hipermídia, e no seu sistema hipertextual, a palavra poderá exercer

a função de conexão lexical de forma exponenciada, função essa que se

soma a todas as outras que ela sempre foi capaz de desempenhar,

isoladamente, ou em textos tradicionais.

A indicação do uso de uma palavra nessa função conectiva pode ser

chamada de hiperlink, hotlink, hotword ou simplesmente link, que vem do

verbo ‘to link’ em inglês, e cujo significado é elo, ligação.

Essa função de conexão lexical pode ser encontrada, de forma

bastante rudimentar, em dicionários, por ex., e em outras formas de

armazenamento e busca de informação em diferentes meios, mas que não

podem ser comparados à hipermídia, onde as palavras podem ser a conexão

que liga um ponto do sistema hipertextual a outro qualquer, sendo que esses

pontos podem conter qualquer tipo de informação: sonora, visual, textual, em

seus mais variados formatos.

Semioticamente, essas palavras são verdadeiros índices do sistema

hipertextual, que lhes permite não só que mantenham, mas que sejam em si

mesmas, uma conexão de fato com aquilo que representam. Por ex., ao

lermos o nome de um site na web, seu próprio nome ou “endereço” poderá

ser “clicado” para acessá-lo quase que imediatamente; a notícia de um fato

ou evento poderá dar acesso a suas fotos; o título de uma música ou canção

poderá ser “clicado” para ouvi-la; o título de um artigo, de um poema, de um

livro podem ser o acesso para seu conteúdo, etc.

Essa possibilidade de conexão aparece na forma como a palavra é

escrita, isto é, através de um sinsigno em que ela se materializa. Por meio de

um atributo gráfico, que tanto pode ser uma sublinha, letras em itálico, ou

Page 161: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

162

uma cor diferente, ou ainda, dois ou mais deles conjuntamente, a palavra é

destacada do texto a fim de mostrar que há conteúdo explorável naquele

ponto hipertextual.

Devemos considerar o poder representativo que isso confere a uma

palavra, ou ainda, a ampliação sem precedentes de seu poder, já que ela

pode, na linguagem hipermidiática, entrar em isomorfia com aquilo que se

quer significar. Para ficarmos num exemplo bastante simples, ao escrever a

palavra mesa, ela se refere a um conceito geral e é capaz de provocar na

mente do leitor a idéia de uma mesa, no entanto, como emissor da

mensagem, nunca poderei saber se o que ele “visualiza” ao ler essa palavra,

se parece com aquilo a que me refiro. Se houver a necessidade de ser muito

específico, se quero me referir a um tipo diferente de mesa, a um design

inovador, por ex., uma foto da mesa ou qualquer outro conteúdo icônico

ligada à palavra (desenhos, diagramas, por ex.), poderá facilmente resolver a

questão.

Imprescindível retomar Peirce nesta questão, que referindo-se às

funções icônicas, indiciais e simbólicas de um signo, afirmou que, embora

seja freqüentemente desejável que um representamen apresente um ou dois

desses três tipos de relação com seu objeto dinâmico, excluindo os demais,

“os signos mais perfeitos são aqueles nos quais as características icônicas,

indiciais e simbólicas estão amalgamadas tão eqüitativamente quanto

possível” (CP 4.448).

Nesse sentido, a palavra, o legissigno lingüístico por excelência, de

natureza simbólica na maior parte das vezes, ganha na linguagem

hipermidiática a possibilidade de chegar a essa perfeição sígnica, onde sua

indicialidade e iconicidade podem ser exploradas em graus exponenciais,

sem detrimento de sua simbolicidade, e de forma conjunta, amalgamada,

“sem suturas” entre essas três dimensões semióticas.

Page 162: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

163

Capítulo 6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

“A escrita muda à medida que a humanidade se transforma.

É uma dimensão da condição humana.”

Steven Fischer (2007: 10)

Os velhos materiais já não podem atender às novas necessidades e

os signos também são materiais e instrumentos.”

Décio Pignatari (1979: 57)

1. ALGUMAS CONCLUSÕES

As transformações pelas quais passa a escrita ocorrem conjuntamente

em dimensões tecnológicas, culturais e lingüísticas que transcendem tudo

aquilo que para nós significava a palavra escrita. Em uma verdadeira “maré

barroca de signos”, em uma rede computacional planetária, acentral, a

palavra se assume como elemento de um “dicionário possível”, se é que

alguma antiga metáfora ainda pode ser usada.

Nesse cenário, Chartier (2002:9) nos avisa que, se quisermos ter uma

visão mais aprofundada, não podemos nos apegar a “lamentações

nostálgicas” mas nem tampouco nos deixar levar por “entusiasmos ingênuos

suscitados pelas novas tecnologias”. Para um olhar ampliado, alguns pontos

relevantes merecem ser levantados.

Por um lado, a revolução tecnológica deita raízes profundas na

sociedade, inaugurando não só um novo tipo de mídia com características e

potencialidades inéditas, como igualmente uma nova cultura, numa nova

ordem econômica e social mundializada.

“Propiciada, entre outros fatores, pelas mídias digitais, a revolução

tecnológica que estamos atravessando é psíquica, cultural e socialmente

muito mais profunda do que foi a invenção do alfabeto, do que foi também a

revolução provocada pela invenção de Gutenberg. É ainda mais profunda do

que foi a explosão da cultura de massas, com os seus meios técnicos

Page 163: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

164

mecânico-eletrônicos de produção e transmissão de mensagens. Muitos

especialistas em cibercultura não têm cessado de alertar para o fato de que a

revolução teleinformática, também chamada de revolução digital é tão vasta

a ponto de atingir proporções antropológicas importantes, chegando a

compará-la com a revolução neolítica. Para se ter uma idéia das

conseqüências trazidas por essa revolução, basta dizer que a nova ordem

econômica, social e cultural mundializada são seria possível sem ela.”

(SANTAELLA 2001: 389)

Por outro lado, muito do que se processa hoje não é novo. Essa

sensação de dejá vu se dá porque a permanência de qualquer sistema no

tempo exige que ele seja coeso o suficiente para sobreviver a crises, mas

suficientemente flexível para adaptar-se a elas na medida do possível. Ou

seja, entre a flexibilidade necessária à sua adaptação e a fixidez de suas leis,

um sistema está sempre em contínua evolução. Baron nos mostra

claramente que em outras épocas situações adaptativas semelhantes foram

enfrentadas, e superadas:

“Como sociedade letrada, continuaremos a escrever, no entanto, a atual

atitude geral em relação à grafia e à pontuação convencionais poderá

reverter num quadro que lembra a quase anarquia medieval e mesmo

renascentista da Inglaterra à época. Em inglês medieval, por exemplo, a

palavra nice (que então significava ‘ignorante’ ou ‘tolo’ [e não agradável

como atualmente]) podia ser escrita ‘nis’, ‘nys’, ‘nice’ ou ‘nyce’. Mais tarde,

William Shakespeare grafou seu próprio nome pelo menos de seis maneiras

diferentes. E o uso de vírgulas, dois pontos, e maiúsculas era, por vezes,

simplesmente questão de adivinhação." (BARON 2008: 171).

Essa explosão de signos faz parte de fases de instabilidade e

expansão próprias de todo sistema evolutivo, fases críticas em que há

flutuações e um crescimento da diversidade, que visam romper com antigos

paradigmas a fim de que o sistema possa se reestruturar em novas bases (cf.

VIEIRA 2008b: 60-64). Essa é uma visão poética do real que a teoria

sistêmica descortina, sendo “poiesis” a forma adequada de sua auto-

organização produtora de signos e significado, destinada a expressar,

assintoticamente é claro, a perfeição do pensamento humano

Page 164: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

165

“Sendo pensamento, todo real seria evolutivo e destinado a expressar em

futuro a perfeição de sua forma. Um universo semiótico é necessariamente

auto-organizado - cujos princípios e regras de organização, eles mesmos

evoluem... A teoria geral dos sistemas e da auto-organização vem deste

modo complementar e colaborar para um entendimento semiótico e

matafísico do real... O âmago de nossas representações da realidade é

poético, daí decorrendo em constante emulação obras artísticas, produções

tecnológicas e representações de natureza científica.” (SILVEIRA in VIEIRA

2008a: 18)

Autopoiesis, significa assim, que o sistema é capaz de autonomia em

relação ao ambiente, bem como de auto-manutenção e auto-reprodução,

elevando seu nível de complexidade a partir da formação de novos signos

que se constituem em novos sistemas e subsistemas. É nesse sentido que

Pignatari afirma que os signos também são materiais e instrumentos que se

reconfiguram para atender a novas necessidades.

Do ponto de vista lingüístico, Crystal nos mostra que podemos e

devemos ter uma visão enriquecedora desses constantes fluxos e

intercâmbios entre sistemas, que proporcionam a renovação do léxico,

acrescentam valor semântico às línguas e possibilitam ao pensamento

humano expressar-se de forma cada vez mais matizada.

“O inglês mudou, sem dúvida, mas isso foi uma coisa ruim? Grande parte do

impacto expressivo de Chaucer e Shakespeare - para se tomar apenas dois

entre muitos autores - se deveu às suas habilidades de trabalhar com todo

aquele vocabulário multilíngüe. E todos se beneficiam com uma língua

lexicalmente enriquecida. Em inglês temos muitos “duplos” e “triplos”, como

kingly, royal e regal, que se originam na história de empréstimos da língua -

um germânico, um francês e um latino. Três palavras para o mesmo conceito

básico permitem toda uma variação de nuances estilísticas a ser expressa,

que não seria possível de outra maneira. Os empréstimos sempre

acrescentam valor semântico à língua, oferecendo às pessoas a

possibilidade de expressar o pensamento de forma mais matizada.”

(CRYSTAL 2004: 55)

Page 165: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

166

Coulmas, por sua vez, afirma que é mais do que merecido um estudo

de como a natureza e o uso dos sistemas de escrita afetam as línguas, já

que, de fato, “as propriedades dos sistemas de escrita podem ter um efeito

em como a escrita é concebida, e, inversamente concepções sobre a escrita

podem influenciar a maneira com a qual lidamos com certos signos”

(COULMAS 2003: 2).

“Foi por meio do meu interesse por escritas não-alfabéticas que eu comecei

a ver mais claramente que as línguas são afetadas de várias maneiras pelos

sistemas de escrita adotados para sua materialização, e que, portanto, não

só deveria ser dado um lugar próprio a eles na lingüística, como também

deveriam ser reconhecidos como um fator de mudança lingüística. Como

exatamente uma escrita influencia a língua é uma questão que os lingüistas

deveriam tentar responder... uma resposta correta a essa questão depende

da natureza do sistema em questão.” (COULMAS 1989: viii)

Mais ainda, é preciso considerar que cada conjunto linguístico,

englobando língua e escrita, tem relação direta com a construção e

configuração dos padrões de nossa consciência, mediando nossa percepção

do existente.

“Cada linguagem é um vasto sistema de configuração (pattern-system),

diferente dos outros, no qual são culturalmente ordenadas as formas e

categorias mediante as quais a personalidade não apenas se comunica, mas

analisa a natureza, reconhece ou negligencia certos tipos de relação e de

fenômenos, canaliza seu raciocínio e edifica a casa de sua consciência.”

(WHORF apud HAROLDO DE CAMPOS 1994: 88)

Por tudo isso, visões estanques nunca deram conta dos desafios da

escrita, haja vista a heterogeneidade infrutífera das terminologias e tipologias

que buscaram compreendê-las. Daí esta tentativa de elucidar os processos

de transformação da escrita ao longo do tempo por meio da aplicação da

teoria semiótica de Peirce em conjunto com a teoria sistêmica e uma

classificação das funções dos signos utilizados na escrita.

Page 166: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

167

A escrita sendo linguagem, não deixará nunca de evoluir, de

transformar-se a cada revolução humana, num casamento entre meios e

signos cujo poder multiplicador e proliferativo agora sentimos nas telas

eletrônicas como nunca antes.

“As linguagens são muitas. Desde a revolução industrial, e mais

recentemente, a revolução eletrônica, seguida da revolução informática e

digital, o poder multiplicador e o efeito proliferativo das linguagens estão se

ampliando enormemente. (...) Não há quase nada de natureza real, artificial,

simulada ou fictícia que o imaginário numérico não dê conta de colocar nas

telas dos monitores. (...) Além de crescerem na medida exata em que cada

novo veículo é inventado, as linguagens também crescem através do

casamento entre meios.” (SANTAELLA 2001:28)

A linguagem humana não pode ser controlada (CRYSTAL 2004:54).

Ela, em si mesma, pode ser considerada uma tecnologia do pensamento,

pois como diz Peirce, nosso pensamento é um diálogo, em constante fluir, e

depende em grande parte dos signos lingüísticos para expressar suas idéias,

mesmo na sua própria interioridade. Os demais signos de que ele se utiliza,

destinam-se a cobrir “os defeitos das palavras”.

Por isso, a maior conclusão deste estudo talvez seja a de que é

preciso dilatar nosso olhar em relação ao que a linguagem verbal e seu

correspondente sistema de escrita representam para o pensamento humano.

Não há como criar ou mesmo satisfazer-se com um sistema estático. Peirce

mais uma vez, nos prova magistralmente porque isso é impossível:

“Quando garoto eu inventei uma língua (language) na qual quase toda letra

de toda palavra dava uma contribuição clara para sua significação

(signification). Ela envolvia uma classificação de todas as idéias

possíveis; e eu não preciso dizer que ela nunca foi completada.” (SS 95,

grifos nossos)

Page 167: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

168

2. O FUTURO DA ESCRITA

Será possível identificar tendências para o futuro da escrita? Nada

parece ser mais desafiador. A escrita tem estado conosco por vários

milênios, e hoje em dia é mais importante do que nunca. Ela pode também

ser considerada uma tecnologia, cuja criação possibilitou o surgimento de

uma verdadeira inteligência escrita à qual temos acesso por meio dos

suportes eletrônicos, que estão redesenhando a sociedade a cada instante.

“Tendo se espalhado gradualmente, através dos séculos, de pedaços de

argila a chips de computador, ela [a escrita] está preparada para progressos

ainda mais drásticos. Apesar de que centenas de milhões de pessoas ainda

são incapazes de ler e escrever, a humanidade depende da escrita numa

extensão sem precedentes. É bem provável que, hoje, mais comunicações

se dêem de forma escrita do que de forma oral. Não há medidas objetivas,

mas se houvesse alguma dúvida, a explosão da internet relegou de uma vez

por todas a idéia de que, para a raça humana, a escrita é somente uma

forma menor de comunicação. Não é arriscado chamar a escrita da

tecnologia de maiores conseqüências já inventada. A imensidade do

conhecimento e registro escritos conservados em bibliotecas, bancos de

dados e redes multifacetadas de informação tornam difícil imaginar um

aspecto da vida moderna que não seja afetado pela escrita. ‘Acesso’, a

palavra de ordem da sociedade do conhecimento significa acesso à

inteligência escrita. A escrita não somente oferece formas de recobrar o

passado, mas é também uma habilidade crítica para dar forma ao futuro.”

(COULMAS 2003: 1)

Como bem observa Risério, a escrita eletrônica nasceu de uma

sociedade fundada nas modalidades do espaço moderno, também chamado

ciberespaço, na mobilidade de suas redes, diferentemente dos sistemas

anteriores, cuja base foi uma sociedade do ‘chão’, do solo agrícola, do

suporte da celulose, e, portanto, fundada num território delimitado.

“Interconexões, redes, circuitos, cadeias, fluxos, termos que se apresentam

naturalmente à mente, quando se procura analisar as modalidades novas do

espaço moderno; traduzem a relação fundamental da mobilidade, da qual

procedem as tendências à onipresença e os sistemas ‘fora do chão’, escreve

Page 168: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

169

Chesnaux. E é justamente em tal contextura, em meio a hipertextos e

“groupwares” cosmopolitas, que se inscreve e se move a palavra eletrônica.

A escrita informática é uma escrita “fora do chão”. Enquanto a escrita

tradicional e a sociedade agrícola se plantavam, respectivamente, no suporte

de celulose e num território delimitado, o que temos agora é uma outra

realidade: vida e texto em movimento permanente...” (RISÉRIO 1998: 194)

Dessa forma, existe um processo histórico, social e cultural contínuo

de transformação da escrita. Mas se em cada época os sistemas de escrita

foram moldados de acordo com necessidades “locais”, para usar um termo

da contemporaneidade, é preciso lembrar que agora a sociedade e a

comunicação são globais, numa comunidade planetária, supranacional, em

cuja rede interagem, lado a lado, arte, comércio e ciência, bem como

indivíduos, comunidades e línguas, fatores que, se isoladamente já

influenciavam a escrita, hoje se encontram amalgamados, exponenciados em

uma linguagem hipermidiática que ainda não está sedimentada, mas sim, em

ebulição na complexidade de todos esses fatores.

“A complexidade adicional dessas questões encontrou-se no fato... de que a

hipermídia não é uma linguagem já sedimentada. Trata-se de uma linguagem

que ainda está se buscando e, portanto, encontra-se em estado de

metabolismo, transformando-se ininterruptamente...” (SANTAELLA e NÖTH

2008: 356)

A escrita alfabética solidifica a palavra, paralisa-a no espaço e no

tempo, e diferentemente das representações ideográficas e pictográficas,

corta radicalmente o nexo com o objeto representado. Mas hoje as palavras

são aladas, voam de um ponto a outro do planeta sem fronteiras, renovadas

em sua iconicidade, que representa a ligação do próprio ser humano ao real,

e cuja presença se faz de luz, brilho e cor.

“Seja como for, o fato é que é outra - agora - a presença visual da palavra no

mundo. Palavra-mutante, protéica, feita de pontos, de cor e luz - o texto

como paisagem virtual articulada pelo cibersigno... A palavra ganha ânimo,

brilho, motion.” (RISÉRIO 1998: 195,196)

Page 169: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

170

Nossa época se caracteriza, então, por uma profunda mudança de

paradigmas em todos os níveis. A ciência nos dota a cada dia de novos

modelos epistemológicos. Barbosa (2009) observa como as teorias do texto e

do sentido existentes estão baseadas num modelo atomístico e estruturalista,

e, portanto redutor e ultrapassado, aplicado ao âmbito das ciências humanas.

Atualmente, já vivemos no paradoxo da luz, que é onda e partícula num só

movimento, e que é capaz de nos proporcionar um modelo ondulatório de

linguagem, não linear, dinâmico e integrador, no qual a palavra é onda, e

pode ser compreendida dentro do conceito de sistemas, isto é, dentro de

relações de troca e mútua determinação.

“Da busca dos elementos mínimos que são os átomos de tudo (elementos

químicos ou fonemas, letras, palavras), governados por uma gramática

combinatória infinita (tanto na natureza como no texto), talvez seja hoje

necessário passar a uma teoria ondulatória mais fluida da linguagem.

Reparece-se que é assim que funciona e sempre funcionou o plano do

sentido no que chamamos de hermenêutica com a sua semiose ou

interpretação perpétua.” (BARBOSA, 2009)

Poderia uma tal palavra escrita, híbrida e ondulatória, vir a tornar-se

convenção, legissigno? Como nos diz Peirce, “não temos razão para pensar

que todos os fenômenos, em seus mínimos detalhes, sejam precisamente

determinados pela lei. Vê-se que há um elemento arbitrário no universo, a

saber, sua variedade” (CP 6.30).

Essa variedade pode e deve ser atribuída a alguma forma de

espontaneidade, de vagueza, que nunca poderá ser ignorada. Ela é

primeiridade, e está presente em todo e qualquer fenômeno. A arte sempre

se insurgiu contra o status quo. A partir de Mallarmé, houve uma reação

intensa à norma linear do código alfabético. Em alguns mo(vi)mentos

artísticos, a reação foi extrema. Hoje, apesar da ebulição das

transformações, vemos, lado a lado, “a escrita ou a norma alfabética e as

novas e variáveis formas de escritura, buscando... uma multidirecionalidade

high-tech, em meio a desvios, desvãos, distorções, fractais.” (RISÉRIO

1998:163)

Page 170: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

171

A palavra escrita parece diluir-se na infinitude de sua própria semiose,

fruto de sua condição ontológica de signo. Nesse sentido, Ransdell nos

mostra que as progressões e regressões sem fim, implícitas na concepção

geral de representação não são viciosas, e que são nossos interesses

práticos que fornecerão os limites no momento oportuno.

“A infinitude da semiose é uma conseqüência da definição do signo em

abstrato, isto é, definido à parte de uma aplicação concreta. Em concreto,

contudo, haverá sempre considerações situacionais ad hoc que nos

fornecerão razões para tratar um dado interpretante como se fosse o último

e um dado objeto como se fosse o primeiro. Assim, as progressões e

regressões infinitas, implícitas na concepção geral de representação não são

viciosas, mas devem ser vistas como indicadoras de que são nossos

interesses práticos, num dado momento, que fornecem limites...”

(RANSDELL apud SANTAELLA 1992a: 199)

Quando e como esse momento chegará, só podemos conjecturar.

Talvez o próprio conceito de norma lingüística precise ser revisto para se

tornar mais aberto ao expressivo potencial da língua e da escrita. Talvez, o

estabelecimento de limites mais flexíveis na consideração das práticas

escriturais seja uma resposta em médio prazo. Sem dúvida, o alargamento

do conceito de linguagem verbal, ou mesmo sua concepção renovada, se

fará necessária para que estudos teóricos tenham seu alcance ampliado,

sem esterilizar as capacidades que a escrita pode desenvolver para

representar o pensamento. Sem dúvida, artistas e cientistas, por trabalharem

no jogo experimental das linguagens, estarão sempre na dianteira, rasgando

fronteiras, prenunciando o futuro, para que a linguagem verbal se aperfeiçoe

em direção à verdade de seu ser real. Esse futuro é por definição insondável,

faz-se fazendo-se no presente, no continuum da semiose de que o próprio

homem faz parte.

Page 171: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

172

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENEDITO, Joviana (2003). Dicionário para chat, SMS, e e-mail. Portugal, Lisboa: Edições

Centro Atlântico Ltda. ISBN: 972-8426-65-8.

BASTOS, Marcus. (2008) ex-Crever? In Palavra e imagem nas mídias: um estudo

intercultural. Ed.Universitária UFPA. Santaella, Nöth (orgs).

BASTOS, Cleverson Leite; CANDIOTTO, Kleber B. B. (2007). Filosofia da Linguagem.

Petrópolis, RJ: Vozes.

BARBOSA, Pedro. (2010) - Entrevista a Ana Paula Ferreira. In: Espaço e poesia na

comunicação em meio digital. Doutorado em Comunicação e Semiótica - PUC/SP.

________, (2009) Aspectos quânticos do cibertexto (pgs.11-42). Disponível em:

http://www.po-ex.net/pdfs/barbosa.pdf - acesso em 01/02/2011.

BARON, Naomi S. (2008) Always on: language in an online and mobile world. New York, NY:

Oxford University Press Inc.

BEIGUELMAN, Giselle. (2003) O livro depois do livro. São Paulo, SP: Editora Peirópolis.

BORGES, Priscila Monteiro (2005). Tipografia: Ideograma ocidental. Dissertação de

mestrado - Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica - PUC-SP.

________, (2010) Mensagens Cifradas: a construção de linguagens diagramáticas. Tese de

doutorado - Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica - PUC-SP.

BRENT, Joseph. (1998) Charles Sanders Peirce: a Life. Revised and enlarged edition.

Indiana University Press.

BRINGHURST, Robert. (2006) A forma sólida da linguagem: um ensaio sobre escrita e

significado. São Paulo: Edições Rosari.

BROCK, Jarret. (1997) The development of Peirce’s theories of proper names. In: Studies in

the logic of Charles Sanders Peirce. Nathan Houser editor. Indiana University Press, 1997.

CAMPOS, Haroldo de (org.) (2000) Ideograma: Lógica, poesia, linguagem. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo – USP.

Page 172: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

173

CARVALHO, Castelar de. (2003) Para compreender Saussure: fundamentos e visão crítica.

Petrópolis, RJ: Vozes.

CASTELLS, M. et al. (2006) The language of wireless communication. In: Mobile

communication and society: a global perspective. Pgs.179-184. The MIT Press, 1st. edition.

CATACH, Nina (1996) A escrita enquanto plurissistema, ou teoria de L’ (L linha). In Para uma

teoria da língua escrita. Ed. Ática, Nina Catach (org.)

CHARTIER, Roger (2002) Os desafios da escrita. SP: Editora UNESP.

COULMAS, Florian (1989). The writing systems of the world. Blackwell Publishers Ltd.

Malden, Massachusetts, USA.

________, (2003). Writing Systems: An introduction to their linguistic analysis. Cambridge

University Press.

CRYSTAL, David. (2001) Language and the internet. Cambridge University Press.

_____. (2004) A revolucão da linguagem. RJ: Jorge Zahar Editor.

_____. (2008) Txtng: the gr8 db8. New York, NY: Oxford University Press Inc.

DILEO, Jeffrey R. (1997). Charles Peirce’s theory of proper names. In: Studies in the logic of

Charles Sanders Peirce. Nathan Houser editor. Indiana University Press, 1997.

DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. (1962) Antologia poética (org. pelo autor). Ed. Record,

1986, 20ª. edição.

FISCHER, Steven Roger. (2006) História da leitura. SP: Editora UNESP.

________, (2007) História da escrita. SP: Editora UNESP.

FRANK, Peter (2004). Geometric literature in Beyond geometry, Zelevansky, L. (org.). The

MIT Press.

HOUAISS, Antônio (Ed.) (2001) Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Instituto

Antonio Houaiss, Editora Objetiva.

HOUSER, Nathan (1991) A peircean classification of models in On semiotic modeling -

Myrdene Anderson and Floyd Merrell Editors. Mouton de Gruyter, 1991.

IBRI, Ivo Assad. (1992) Kósmos Noetós: a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce – São

Paulo: Editora Perspectiva.

Page 173: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

174

_____. (2004) Semiótica e pragmatismo: interfaces teóricas. In Cognitio - Revista de Filosofia

- PUC-SP - V.5, n.2, 2004. EDUC

_____. (2006) Pragmatismo e realismo. A semiótica como transgressão da linguagem. In

Cognitio - Revista de Filosofia - PUC-SP - V.7, n.2, 2006. EDUC

JAKOBSON, Roman, (1963) 2005. Lingüística e Comunicação. Editora Cultrix: São Paulo.

JUNGK, Isabel, (2008). Era Poética: uma visão da arte e das novas linguagens no século

XXI. In CIANTEC – Congresso internacional em Arte, Novas Tecnologias e Comunicação

(pgs.149-153). S.Paulo: Museu de Arte Contemporânea, USP – 2008.

_______, (2009). Modelos de Sensibilidade: alíngua e condensação, sentido e motivação.

Monografia de pós-graduação lato sensu em Semiótica Psicanalítica - COGEAE – PUC/SP.

_______, (2010). A palavra como mediação entre a percepção humana e o existente. In: 13ª.

Jornada Peirceana- Caderno13- Centro Internacional de Estudos Peirceanos- CIEP-PUC/SP.

JOHANSEN, Jorgen Dines, (1993). Dialogic Semiosis: an essay on signs and meaning.

Advances in Semiotics. Indiana University Press.

LALANDE, André. (1999) Vocabulário técnico e crítico de Filosofia. S. Paulo: Martins Fontes.

LEÃO, Lúcia. (2005) O labirinto da hipermídia. São Paulo: Iluminuras.

LÉVY, Pierre. (2004) A ideografia dinâmica: rumo a uma imaginação artificial?. São Paulo -

Edições Loyola - 2ª. Ed.

MARTINS, André. (1999). Por um novo paradigma ontológico-comunicacional para as

humanidades. Revista Face, 1999, vol.2, Caos e ordem: Filosofia e Ciências. SP: EDUC.

MENEZES, Philadelpho. Poesia concreta e visual. SP: Editora Ática.

________, (1991) Achados e construídos. Edição do autor.

________, (1991b). Poética e visualidade: uma trajetória da poesia brasileira

contemporânea. Campinas, SP: Editora da Unicamp.

MOTA, O.S. ; HEGENBERG, L. (1975) Semiótica e filosofia: textos escolhidos de Charles

Sanders Peirce. Ed. Cultrix. São Paulo - USP.

MOTTA, Leda Tenório da, (1995) O abismo da palavra. In: Catedral em obras: ensaios de

literatura. São Paulo: Iluminuras.

______. (2004) Literatura e contracomunicação. São Paulo: Unimarco Editora.

Page 174: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

175

NÖTH, Winfried. (1995) Panorama da semiótica: de Platão a Peirce. SP: Annablume.

______. (1996) A semiótica no século XX. São Paulo, SP: Annablume.

______. (1999) Peircean semiotics in the study of iconicity in language in Transactions of the

Charles S. Peirce Society, Vol.35,no.3, pgs.613-619.

______.(2000) Word and Image. Disponível em http://www.medienpaed.com/00-2/noeth1.pdf

______. (2010) Escrita. (pgs.1-23). Texto inédito fornecido pelo autor.

PAPE, Helmut (1982) Peirce and Russell on proper names in Transactions of the Charles S.

Peirce Society, Vol.18,no.4, pgs.339-348.

PAULUK, Marcel Pereira (2003). Sistemas de escrita: abordagens, tipologias, perspectivas

em semiótica. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

PEIRCE, Charles S. (1977) Semiotic and Significs. The correspondence between Charles S.

Peirce and Victoria Lady Welby. Ed. Charles S. Hardwick. Indiana university Press.

_______. (1983) Os pensadores. Peirce: escritos coligidos. 3ª.ed. SP: Abril Cultural

_______. (1992) Collected Papers. Versão eletrônica, Intelex.

_______. (2005) Semiótica. Trad. de José Teixeira Coelho Neto. SP: Perspectiva.

PEREIRA, Wilcon J., (1976) Escritema e figuralidade nas artes plásticas contemporâneas.

São Paulo, SP: Ed. Hucitec Ltda.

PIGNATARI, Décio. (2004) O que é comunicação poética. Cotia, SP: Ateliê.

__________, (1979) Semiótica e literatura. SP: Cortez & Moraes.

QUEIROZ. João, (1997). Sobre as 10 classes de signos de C.S.Peirce. Dissertação de

mestrado - Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica - PUC-SP.

_________, (2001). Tipologia da consciência: Um estudo comparativo baseado na filosofia

de C.S.Peirce. In: Galáxia: Revista transdisciplinar de comunicação, semiótica, cultura.

PUCSP – no. 1. SP, EDUC, 2001.

_________. (2004). Semiose segundo C.S. Peirce. SP: EDUC; Fapesp.

_________. (2007). Linguagem e acoplamento de artefatos semióticos. In: Galáxia: Revista

transdisciplinar de comunicação, semiótica, cultura. PUCSP – no. 14 (dez/2007). SP, EDUC.

Page 175: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

176

RANSDELL, Joseph M. (1977) Some leading ideas of Peirce’s semiotic. In Semiotica no.

19:3/4, 1977, pgs.157-178.

________. (1979a) The epistemic function of iconicity in perception. In Peirce studies no.1 -

pgs. 51-66. Institute for Studies in Pragmaticism, Lubbock, Texas, USA.

________. (1979b) Semiotic objectivity. In Semiotica no. 26:3/4,1979, pgs. 261-288.

SANTAELLA, Lúcia. (1983). O que é semiótica. São Paulo: Ed. Brasiliense.

_______. (1986a) O que em mim sonhou está pensando. Estudo crítico in Contos. Edgar Allan Poe. São Paulo, SP: Cultrix.

________. (1992a) A assinatura das coisas: Peirce e a literatura. RJ: Imago.

________. (1992b) Palavra, imagem & enigmas. Revista da USP.

________. (1996) Cultura das mídias. São Paulo: Experimento.

________. (1998) A percepção: uma teoria semiótica. SP: Experimento.

________. (2000) A teoria geral dos signos. São Paulo, SP: Pioneira Thomson Learning.

________. (2001) Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal: aplicações na

hipermídia. 3ª. Ed. SP: Iluminuras: FAPESP.

________. (2003) Culturas e artes do pós-humano: Da cultura das mídias à cibercultura. São

Paulo: Paulus.

________. (2004a). A poética antecipatória de Augusto de Campos. In: Sobre Augusto de

Campos. Pgs. 161-178. Flora Süssekind, Júlio Castañon Guimarães (org.) RJ: 7Letras.

________. (2004b) Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. SP: Paulus.

________. (2007a) Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus.

________. (2007b). O que é o símbolo. In Computação, cognição, semiose. Queiroz, J.;

Loula, A.; Gudwin, R.(orgs.). Salvador, BA: EDUFBA.

________. (2007c). Sinequismo e onipresença da semiose. In Cognitio - Revista de Filosofia

- PUC-SP - V.8, n.1, 2007. EDUC

________. (2008a) A originalidade e relevância do conceito peirceano de hábito. In: 11ª.

Jornada do Centro Internacional de Estudos Peirceanos-CIEP.

________. (2008b) Epistemologia semiótica. In Cognitio - Revista de Filosofia - PUC-SP -

V.9, n.1, 2008. EDUC.

________. (2010) Ícone e cognição: O ícone puro, os ícones perceptivos e os hipoícones.

(Artigo inédito a ser inserido na edição ampliada do livro Percepção: uma teoria semiótica.)

SANTAELLA, L.; NÖTH, W.. (1997) Imagem: cognição, semiótica, mídia. Iluminuras.

SANTAELLA, L.; NÖTH, W.. orgs.(2008) Palavra e imagem nas mídias: um estudo

intercultural. Ed.Universitária UFPA.

Page 176: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

177

SANTOS, Alckmar Luiz dos. (2003) Leituras de nós: ciberespaço e literatura. São Paulo, Itaú

Cultural.

SAUSSURE, Ferdinand de. (1916) 2006. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix.

SHAPIRO, Michael. (1980) Poetry and Language, considered as semeiotic in Transactions of

the Charles S. Peirce Society, Vol.16,no.2, pgs. 97-117.

_________.(1988) Dynamic Interpretants and Grammar in Transactions of the Charles S.

Peirce Society, Vol.24,no.1, pgs.123-130.

_________.(2002) Aspects of a Neo-Peircean Linguistics: Language history as linguistic

theory . Disponível online (acesso em 01/04/2010): http://www.languagelore.net/wp-

content/uploads/2009/04/aspects-of-a-neo-peircean-linguistics.pdf

SHORT, T.L. (1982) Life among the legisigns. in Transactions of the Charles S. Peirce

Society, Vol.18,no.4, pgs.285-310.

SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa da. (1996) A iconicidade dos signos linguísticos e

algumas de suas consequências. In O falar da linguagem, São Paulo, Ed.Lovise.

_________. (2001) A comunicação de um ponto de vista pragmaticista. In Cognitio - Revista

de Filosofia - PUC-SP - V.2, 2001. EDUC

_________. (2004) Observe-se o fenômeno: forma e realidade na semiótica de Peirce. In

Cognitio - Revista de Filosofia - PUC-SP - V.5, n.2, 2004. EDUC

_________. (2007) Curso de semiótica geral. SP: Quartier Latin.

SOLT, Mary Ellen (1968). Concrete poetry: a world view. Indiana University Press, Bloomington.

THIBAUD, Pierre (1987). Peirce on proper names and individuation in Transactions of the

Charles S. Peirce Society, Vol.23,no.4, pgs.521-538.

VIEIRA, Jorge de Albuquerque (2007). Ciência: formas de conhecimento: Arte e Ciência -

uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora.

_______, (2008a). Ontologia sistêmica e complexidade: formas de conhecimento: Arte e

Ciência - uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora.

_______, (2008b). Teoria do Conhecimento e Arte: formas de conhecimento: Arte e Ciência -

uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora.

WENZ, Karin (2008) As formas intermidiáticas em textos digitais. In Palavra e imagem nas

mídias: um estudo intercultural. Ed.Universitária UFPA. Santaella, Nöth (orgs).

Page 177: A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Isabel Victoria Galleguillos Jungk A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA

178

Dicionários:

COLAPIETRO, Vincent M. (1993). Glossary of Semiotics. New York, NY: Paragon House.

SEBEOK, Thomas A. (Gen.Ed.) (1986) Encyclopedic dictionary of semiotics. New York:

Mouton de Gruyter.