a segunda guerra mundial nas páginas da revista careta

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[REVISTA CONTEMPORÂNEA– DOSSIÊ GUERRAS E REVOLUÇÕES NO SÉCULO XX] Ano 5, n° 8 | 2015, vol.2 ISSN [22364846] 1 Anedotas do horror: a Segunda Guerra Mundial nas páginas da Revista Careta Marcelo Almeida Silva * As livrarias e bibliotecas por todo o país estão repletas de obras sobre a Segunda Guerra Mundial, o Nazismo, o Fascismo, o Comunismo russo, escritas por estrangeiros ou mesmo por brasileiros. E diversas foram as indagações, que privilegiaram algumas óticas e, portanto, fontes específicas: coletâneas sobre a guerra, operações secretas, memórias de combatentes; as origens do nazi-fascismo, a vida e os hábitos dos grandes líderes, as revolucionárias técnicas de propaganda, os horrores do genocídio, diários de vítimas do holocausto, dentre outras questões. Por muitos caminhos se enveredaram pesquisadores dos mais variados campos do saber para compreender os acontecimentos que marcaram com sangue o século XX – uns optaram por abordar o aspecto técnico-bélico do conflito, outros se valeram do horror para construir sua análise, alguns, ainda, se ocuparam da iconografia mnemônica que sobreviveu aos anos. Listas, documentos, relatórios, mapas, cartas, fotos, vitórias, derrotas, encontros e despedidas, terror, lágrimas, dor e morte. Todas essas foram opções que deram suporte para a construção da vasta bibliografia existente sobre a guerra e o nazi-fascismo. Aqui triunfou o riso. Neste texto, me interessa abordar o horror dos eventos da guerra sob o prisma metamórfico do humor, através da análise de elementos da chamada “memória cultural”, isto é, a memória incorporada em artefatos como o teatro, a ficção, o cinema, nos monumentos, na escultura, na pintura, na arquitetura (HUYSSEN, 2014, * Doutorando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. 1 Lançada em 1908 por Jorge Schmidt, a Careta era publicada semanalmente no Rio de Janeiro, embora circulasse nacionalmente e aos sábados. Possuía um caráter humorístico presente tanto em seu aspecto textual quanto no iconográfico, sempre na oposição de quem estivesse na situação dominante e contando com um quadro de coparticipantes composto por literatos, artistas plásticos e desenhistas, a

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[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

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Anedotas do horror: a Segunda Guerra Mundial nas páginas da

Revista Careta Marcelo Almeida Silva*

As livrarias e bibliotecas por todo o país estão repletas de obras sobre a Segunda

Guerra Mundial, o Nazismo, o Fascismo, o Comunismo russo, escritas por

estrangeiros ou mesmo por brasileiros. E diversas foram as indagações, que

privilegiaram algumas óticas e, portanto, fontes específicas: coletâneas sobre a guerra,

operações secretas, memórias de combatentes; as origens do nazi-fascismo, a vida e

os hábitos dos grandes líderes, as revolucionárias técnicas de propaganda, os horrores

do genocídio, diários de vítimas do holocausto, dentre outras questões. Por muitos

caminhos se enveredaram pesquisadores dos mais variados campos do saber para

compreender os acontecimentos que marcaram com sangue o século XX – uns

optaram por abordar o aspecto técnico-bélico do conflito, outros se valeram do horror

para construir sua análise, alguns, ainda, se ocuparam da iconografia mnemônica que

sobreviveu aos anos. Listas, documentos, relatórios, mapas, cartas, fotos, vitórias,

derrotas, encontros e despedidas, terror, lágrimas, dor e morte. Todas essas foram

opções que deram suporte para a construção da vasta bibliografia existente sobre a

guerra e o nazi-fascismo. Aqui triunfou o riso.

Neste texto, me interessa abordar o horror dos eventos da guerra sob o prisma

metamórfico do humor, através da análise de elementos da chamada “memória

cultural”, isto é, a memória incorporada em artefatos como o teatro, a ficção, o

cinema, nos monumentos, na escultura, na pintura, na arquitetura (HUYSSEN, 2014,

* Doutorando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. 1 Lançada em 1908 por Jorge Schmidt, a Careta era publicada semanalmente no Rio de Janeiro, embora circulasse nacionalmente e aos sábados. Possuía um caráter humorístico presente tanto em seu aspecto textual quanto no iconográfico, sempre na oposição de quem estivesse na situação dominante e contando com um quadro de coparticipantes composto por literatos, artistas plásticos e desenhistas, a

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p. 159), e também nas charges – objetos de estudo deste artigo. Trata-se de fontes que,

até um passado bem recente, estavam relegadas a segundo plano na academia, tidas

como arte vulgar, em posição de descrédito justamente por mobilizarem o humor

como forma de comunicação: se provoca riso não é coisa séria, e não deve ser tratada

como tal (MOTTA, 2006, p. 16). No entanto, o que recentemente se viu foi um

florescer de estudos que, satisfatoriamente, reconheceram nas charges objetos

potencialmente poderosos de estudo, carregados de historicidade, veículos próprios de

representações simbólicas que a sociedade e a cultura forjam sobre si mesmas.

Se, de acordo com Rodrigo Patto, em épocas de grande insegurança e temor as

formas de linguagem capazes de mobilizar a comicidade e o humor se tornam

particularmente atraentes, já que o riso ajuda a lidar com o medo (MOTTA, 2006, p.

13), minha proposta é analisar o conjunto reflexivo de charges publicadas na revista

Careta1 sobre os eventos da Segunda Guerra Mundial, em que o periódico assumiu

um discurso libertário e democrático traduzido num combate implacável aos países do

Eixo. As charges foram publicadas em um cenário interno de ditadura que desde 1937

caracterizava o Estado Novo de Getúlio Vargas, o qual, embora não se definisse

propriamente como fenômeno fascista, possuía inspirações e recebia influências das

experiências alemãs e italianas, especialmente no que se refere à propaganda política

(CAPELATO, 1999, p.166). É, portanto, plausível supor que, embora silenciados pela

censura do DIP estado-novista, ao mergulharem em críticas as ditaduras estrangeiras -

quando, por exemplo, J. Carlos2 expõe a propaganda nazista como mentirosa – os

1 Lançada em 1908 por Jorge Schmidt, a Careta era publicada semanalmente no Rio de Janeiro, embora circulasse nacionalmente e aos sábados. Possuía um caráter humorístico presente tanto em seu aspecto textual quanto no iconográfico, sempre na oposição de quem estivesse na situação dominante e contando com um quadro de coparticipantes composto por literatos, artistas plásticos e desenhistas, a revista detinha ainda a colaboração de profissionais de grande renome no campo nacional da caricatura, como Djalma Pires Ferreira – Théo – e José Carlos de Brito e Cunha – J. Carlos, cuja produção artística, reconhecida mundialmente, foi presença constante nos mais de cinquenta anos de veiculação do semanário. Nas palavras de R. Magalhães Junior, a Careta “Transcende do plano municipal e nacional ao internacional, dando os seus tiros de atiradora solitária contra os tubarões do fascismo, contra os pretensos salvadores do mundo, do tipo de Mussolini, de Hitler, de Franco, de Salazar, etc” (LIMA, 1963, p. 152). 2 José Carlos de Brito e Cunha, ou só J. Carlos, que, ao lado de Raul e Kalixto, formaram a grande trindade da caricatura brasileira, nasceu em Botafogo em 1884. Trabalhando a maior parte da sua vida na Careta, J. Carlos transformou-a na crônica mais exata da realidade política de seu tempo. Considerado o maior caricaturista brasileiro de todos os tempos, seus desenhos ficaram logo com uma vida à parte na nossa coletividade gráfica. Todos os acontecimentos marcantes – exceto o Estado Novo

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caricaturistas expressavam seu descontentamento com a experiência antidemocrática

que os próprios vivenciavam.

Acho admirável o espírito de síntese da charge, que supre com algumas imagens e duas ou três frases todo o texto de um artigo, chegando à alma popular e a compreensão das multidões, de uma forma tão direta e tão facilmente assimilável que nos mete inveja, a nós, que manejamos apenas a arma das palavras (LIMA, 1963, p. 1394).

Com a frase do jornalista Raimundo Magalhães ficou em destaque um dos

maiores atributos das charges, ou seja, a maneira prática e assimilável com que

resumem artigos inteiros, facilitando sua compreensão e atingindo maior número de

pessoas. São capazes de atingir um público superior ao do discurso verbal justamente

por carregarem uma linguagem artística simples e, portanto, de grande alcance

popular, mobilizada para a extensão do debate político. Elas ajudam a trazer a

política, como seus conflitos, seus líderes e situações, para a “língua do povo”,

tornando-os temas menos complexos. Notei isso precisamente na análise das charges

da Careta, que, lançando mão de múltiplos recursos linguísticos e visuais, associados

à intrínseca atividade reflexiva própria a esta categoria imagética, simplificaram a

guerra e seus múltiplos desdobramentos. Era preciso traduzir o emaranhado de

acontecimentos envolvendo os múltiplos agentes de cada uma das potências em

conflito em um código que fosse mais simples e direto, de fácil entendimento e fácil

reprodução. Os caricaturistas tornaram a guerra inteligível, mas, além disso,

tornaram-na familiar.

Levando em conta apenas o universo de revistas publicadas no período da

guerra, isto é, entre setembro de 1939 e agosto de 1945, o conflito ocupou quase 60%

– ficaram registrados indelevelmente pela ironia do seu traço e do seu comentário (LIMA, 1963, V. 3. p. 1070).

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das capas do periódico. Os números revelam a presença intensa da guerra na revista,

de forma direta – capas sobre a guerra em si – e indireta – capas contendo elementos

aos quais se opunham, como Hitler, por exemplo. É importante, contudo, salientar o

silencio imposto sobre a imprensa brasileira na época da circulação das charges, e

lembrar que o ano de 1942 foi um divisor de águas na política externa brasileira,

quando Vargas decide romper com a conveniente neutralidade bélica e declarar guerra

às potências do Eixo. É quando se dá o aparecimento de Hitler nas capas da revista, e

quando os caricaturistas têm maior liberdade para se posicionarem sobre os

acontecimentos, conferindo às charges maior densidade argumentativa e tornando a

guerra mais presente no cotidiano brasileiro.

A charge de Théo3 conduz o leitor a um micro cenário caótico de guerra,

evidenciado pela referencia escalar incorporada no cogumelo e demais insetos.

3 Théo – Djalma Pires Ferreira – nasceu em Salvador em 1901. Transferindo-se definitivamente para o Rio de Janeiro em maio de 1922, passou a colaborar com diversas publicações ilustradas, entre elas a Careta. Era dotado de extraordinária capacidade de apreensão do detalhe fisionômico decisivamente

Figura 1 Théo. Careta, 09/08/1941, nº 1728, ano XXXIV, p. 4.

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Através de inúmeras metáforas, o que se tem é uma releitura denunciativa da guerra,

onde o artista transportou os elementos do conflito do plano dos humanos para o dos

animais: ocupando quase toda a área expositiva da imagem, libélulas-aviões e

caracóis-tanques combatem no jardim-arena, enquanto no canto inferior direito duas

formigas – importante destacar que são mãe e filha – encontram-se sobre o

formigueiro-abrigo. Se, por um lado, a charge de Théo corrobora a ideia já exposta de

incorporação da guerra no imaginário coletivo brasileiro, uma vez que houve uma

espécie vulgarização do conflito com a transposição dos homens pelos animais, por

outro, denuncia através das metáforas o terror vivido pelos civis europeus durante a

guerra – não são “formigas-soldado” as interlocutoras da charge, mas “formigas-

civis”, representadas por uma mãe que tenta proteger sua filha dos perigos da guerra.

Numa breve comparação com a Primeira Guerra Mundial, em termos de baixas a

Segunda Guerra possui o alarmante particular de ter entre os civis o maior índice de

mortes – o número total é calculado entre 50 e 55 milhões de pessoas, entre as quais a

maioria esmagadora foi de civis – 33,35 milhões, contra 19,8 milhões de militares

(OVERY, 2011, p. 72).

Datada de agosto de 1941, a charge é fruto de um contexto de êxitos alcançados

pelos países do Eixo, traduzidos em importantes vitórias e conquistas territoriais.

Paralelamente, assistia-se à guerra mais violenta da História, com as tropas alemãs e

sua Blitzkrieg – a guerra relâmpago mecanizada em escala gigantesca, que aniquilou o

exército polonês –, a chamada “guerra de aniquilação” contra a União Soviética e os

assustadores “bombardeios de terror” (KERSHAW, 2010, p. 603) da Luftwaffe de

Hermann Göering sobre Londres e outras cidades inglesas iniciados em setembro de

1940.

característico, o que lhe permitiria se tornar, com o passar do tempo, um dos maiores caricaturistas políticos do Brasil. (LIMA, 1963, V. 1, p. 1388).

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O Regresso do front

- John! Como você está bem disposto! Não imagina como é a vida numa

cidade, sob o sílvio das sirenes, a matraca das metralhadoras, a explosão

dos obuses, o crepitar dos incêndios...

Na capa da edição de número 1717 novamente a denúncia da violência da

guerra contra os civis, materializada no reencontro de uma família inglesa – o robusto

soldado John acabara de regressar do front de batalha à cidade, e reencontrara sua

mulher e filha. A surpresa está na inversão da lógica da guerra, em que o front é lugar

de inquietude e a cidade de calmaria. Na charge, a mulher recebe o marido num misto

de alívio e incompreensão em relação à sua condição física, e fornece um relato do

cotidiano das cidades sob alvo dos nazistas, em que a incerteza se mesclava com a

incessante iminência da morte. A história sugere não se encerrar com o reencontro, e

a harmonia da cena é desestabilizada pela filha do casal, que, apenas através de

linguagem corporal, confere suspense e dramaticidade à cena – visivelmente

Figura 2 J. Carlos. Careta, 24/05/1941, nº 1717, ano XXXIII, capa.

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assustada e olhando para o alto, a menina puxa a saia da mãe numa tentativa de avisar

que algo estava prestes a acontecer vindo dos céus. Ambos os caricaturistas, J. Carlos

seguido de Théo, se valeram do apelo à figura da família – não apenas da família, mas

das mulheres das famílias – buscando sensibilizar os leitores através da denúncia da

violência contra inocentes pela ironia, no caso da charge de J. Carlos, e pela metáfora,

no caso de Théo.

A barbárie que acometeu a Europa esteve ainda na capa da Careta do dia 18 de

maio de 1940, quando J. Carlos novamente trabalha a ideia de lógicas opostas para

consolidar sua mensagem.

Figura 3 J. Carlos. Careta. 18/05/1940, nº 1664, ano XXXII, capa.

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Os selvagens (?)

UM CAFRE – O que mais admiro é o grau de civilização ao qual eles

atingiram.

Em terceiro plano, a imponente construção gótica identifica a territorialidade do

conflito; em segundo plano, um grande tanque cinza, símbolo da guerra e da

violência, ocupa o centro da imagem e bombardeia a dita construção; emoldurando a

cena em primeiro plano a realidade oposta da floresta, em que o enredo da charge se

desenrola. Escondendo-se atrás da folhagem, três negros identificados como cafres,

ostentando pinturas corporais e artefatos tribais, observam a cena caótica da guerra. É

quando um deles se impressiona, em uma frase declaradamente irônica, com o nível

de civilização atingido pelos europeus. Na charge, os que seriam os legítimos

selvagens portam nada mais que lanças e escudos, equipamentos primitivos de luta

corpórea, enquanto os civilizados estadeiam armas de potencial destrutivo muito

superior, expondo ainda mais a dicotomia da cena. Construída sobre o antagonismo

entre civilização e barbárie, a charge relativiza ambos os conceitos ao exibir as duas

realidades simultaneamente.

Em paralelo a essas charges que, através de um discurso politicamente neutro,

procuravam denunciar através do humor e de diversos recursos imagéticos e

linguísticos as mazelas da guerra, muitas outras refletiram de maneira direta o

posicionamento editorial da revista Careta, caracterizado por um ideal de preservação

da liberdade, manutenção da paz e aversão às ditaduras. Eram, portanto charges

críticas às potências do Eixo e à sua atuação na guerra – charges que se posicionavam

contra a Alemanha, a Itália e o Japão. Naturalmente, Hitler e o Nazismo estiveram

mais em evidência, sem que isso significasse que seus aliados tivessem sido poupados

pelo traço crítico dos caricaturistas. Théo, após a guerra, em uma carta ao presidente

Eurico Gaspar Dutra, traduziu em palavras tudo aquilo que já havia representado

através de imagens:

V. Ex.a, que já prestou tantos serviços à nação, suprimindo o jogo e não se deixando envolver pelos interesses escusos dos politiqueiros paulistas, não vacile em varrer a testada. Quando, durante o Estado

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Novo, combatemos Hitler e Mussolini, nós o fizemos burlando a inepta censura e, se hoje combatemos Stalin, não o fazemos levados pela vasta propaganda oficial. Ontem, como hoje, nós combatemos os ditadores, todos eles, porque, nas ditaduras, se suprime a liberdade4 (LIMA, 1963, V. 4, p. 1402).

As palavras de Théo, outra forte razão para se considerar a extensão das críticas

às ditaduras europeias ao Estado Novo de Vargas, esclarece a motivação ideológica

por trás do trabalho dos caricaturistas a serviço da Careta – o de carnavalizar e tornar

ridículos os líderes das ditaduras a serem combatidas e sua atuação nos teatros de

guerra pelo mundo. Os países do Eixo foram pintados aos leitores da revista, em

geral, como covardes, medrosos, inoperantes, incapazes de suportar a guerra e,

consequentemente, fracassados. Com poucas palavras, Osvaldo 5 foi capaz de

sintetizar, em outubro de 1942, toda a linha de raciocínio das charges da Careta a

respeito da Itália.

4 Grifos do autor. 5 Osvaldo Navarro nasceu no Rio de Janeiro em 1893, mas mudou-se cedo para Barbacena, no interior de Minas Gerais. Suas charges justificam o título que recebera de Kalixto, o de “caricaturista rural” – Osvaldo se especializou justamente na fixação das figuras mais genuínas das cidadezinhas do interior, tão bem conhecidas de seus percursos do Rio de Janeiro para Minas Gerais (LIMA, 1963, V. 4, p.1345).

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Mussolini, o braço direito de Hitler.

(O Fuehrer deve ser canhoto...)

A charge traz o Duce de perfil, quase posando para o artista, que o retrata em

um cenário devastador de guerra. A charge é a expressão de total descrédito em

relação à Itália, metonimizada na figura de Mussolini. Buscava-se, com isso, diminuir

o papel exercido pelos italianos no conflito e, então, isolar a Alemanha em uma

posição de solidão bélica, tornando-a um inimigo menos temível. Na guerra, a Itália

em grande medida teve uma participação coadjuvante, ofuscada pelas conquistas

alemãs e japonesas. Despreparada para a guerra e enfrentando contradições internas a

esse respeito entre o próprio Estado Maior, a atuação italiana deu-se principalmente

no Mediterrâneo e no Norte da África, onde fracassou em ambos (KITCHEN, 1993,

p. 55).

Com a charge de Osvaldo, se veiculou de fato ideia de aliado inoperante, braço

esquerdo de um destro, ideia que se reforçou em diversas outras ocasiões, como em

março de 1943, numa charge assinada por Théo e denominada “O lastro”. Nela,

encontram-se no cesto de um balão de nome “Eixo” Hideki Tojo, general do Exército

Imperial Japonês e Primeiro Ministro do Japão, e Hitler, que segura um facão; do lado

externo, pendurado por uma âncora, Mussolini evidencia por seu rosto grande

desespero. Ao ouvir a queixa de Hitler de que o balão estaria perdendo altura – o que,

Figura 4 Osvaldo. Careta, 10/10/1942, nº 1789, ano XXXV, p. 3.

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desconstruindo a metáfora, equivalia a dizer que o Eixo não estaria se saindo bem na

guerra –, Tojo replica dizendo “corte a amarra da âncora para aliviar o peso”.

A participação pouco positiva da Itália nos episódios da guerra deram aos

caricaturistas os estímulos que precisavam para construir as narrativas em suas

charges. Foi fortemente endossada a ideia de que os exércitos italianos eram medrosos

e covardes – duas personagens de Théo dialogam em um cenário neutro e, ao ouvir de

seu interlocutor que na Itália há absoluta falta de óleo de rícino, um deles garante que

os italianos têm um ótimo substituto: o medo. Classificando o adversário como

medroso, os caricaturistas esvaziavam seu discurso ameaçador e davam fôlego à

proposta Aliada. Comum também foi a caracterização dos exércitos italianos como

covardes.

Figura 5 Théo. Careta, 12/06/1943, nº 1824, ano XXXV, p. 32.

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Só corro!...

HITLER – Agora não é hora de correr, é hora de nadar!

Muito em função dos fracassos italianos no Norte da África, onde os exércitos

da Itália ora recuavam, ora recorriam aos aliados alemães, houve um considerável

volume de charges cujo objetivo era desqualificar a coragem dos exércitos de

Mussolini. Na charge, Théo utiliza o próprio recurso imagético para dar sentido ao

jogo de palavras, separando a primeira sílaba do restante da palavra “socorro”, sátira

que encontra seu sentido no título, que representa a grafia correta da frase “só corro”.

Mussolini, prestes a se afogar, implora pelo socorro de Hitler, que, observando o

aliado em uma posição que beira o ridículo, não entende o sentido desejado por

Mussolini e o manda nadar, ao invés de correr. A charge foi às bancas no mesmo

momento em que grandes forças Aliadas do Norte da África foram transportadas para

a Sicília, onde as tropas alemãs eram poucas para segurar a costa inteira. A defesa

dependia muito das forças italianas. A superioridade aérea dos Aliados logo ficou

evidente. Na Alemanha, chegaram notícias alarmantes de soldados italianos que

jogavam fora suas armas e fugiam (KERSHAW, 2010, p. 793).

Não foi exclusividade da Itália o rótulo da covardia. Foi um recurso utilizado

também contra o Japão e a Alemanha, e potencialmente eficiente no sentido de que

um exército covarde é ainda pior que um fracassado, pois não teria passado pela prova

da batalha e perdido com honra. Fazia parte, como já dito, da proposta dos

caricaturistas amenizar a ameaça e o medo que a guerra e todos os seus terríveis ônus

pudessem causar nos leitores. Transformando os exércitos inimigos em algo passível

de riso e descrédito, dissolve-se grande parte de seu caráter de ameaça, tornando-os,

enfim, palpavelmente superáveis.

A violação do pacto de não agressão entre Alemanha e URSS caracterizado pela

invasão da URSS pelas tropas alemãs em junho de 1941 também foi tema de charges

da Careta. E a guerra contra a União Soviética foi um eixo-condutor de um grande

número de obras empenhadas em representar uma Alemanha de exércitos fracassados,

subjugados pelo inverno russo, incapazes de combater em diversas frentes de batalha.

Em maio de 1942, Théo, como fizera Osvaldo com Mussolini, sintetizou com uma

charge a ofensiva alemã contra a URSS: Hitler, no alto de uma montanha, realiza

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esforços sobre-humanos para segurar uma enorme pedra – denominada URSS –

prestes a cair; um narrador oculto é o autor da frase “A hora é boa! Agora é dar-lhe

uma investida nos ‘países baixos’ porque ele não pode largar a pedra...”. O acesso ao

código dos dizeres coloquiais, associado à mensagem clara traduzida pela charge,

contribuiu para aproximar o leitor da realidade da guerra e tornar o grande conjunto

de operações militares simplificado e inteligível, mas não somente isso: pintou um

quadro de otimismo por meio da carnavalização das derrotas alemãs na guerra. O

mesmo se observa na charge a seguir:

Figura 6 Théo. Careta, 20/03/1943, nº 1812, ano XXXV, p. 12.

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No parque de diversões

CHURCHIL – percebe-se que eles não estão gostando nada da “montanha-

russa”

ROOSEVELT – Pior será quando nós o metermos no “trem fantasma”

Em julho de 1941, foi estabelecida uma aliança de força entre a URSS e a Grã-

Bretanha, a que posteriormente aderiram os Estados Unidos, que se justificava pelo

fato de que, não estando dispostos a travar uma guerra na Europa continental, os

britânicos e norte-americanos encararam a Aliança como algo que enfraqueceria

simultaneamente a União Soviética e a Alemanha, após o que eles viriam para

operações de limpeza. Para assegurar-se de que a URSS suportaria o impacto da

agressão alemã sem sucumbir a ela, ambos os países forneceram ajuda material. Foi

um baixo preço pago para evitar que a Alemanha dominasse a Europa e, portanto,

fosse capaz, no futuro, de subjugar a Grã-Bretanha e de desafiar os EUA pela

hegemonia mundial (MENDEL, 1989, p. 118). O ano de 1942 assistiu a um

desenvolvimento geral de forças em todos os mais importantes Estados beligerantes,

tendo os êxitos da guerra oscilado primeiro para um lado, depois para o outro. No

final desse ano, a Wehrmarch – o exército alemão – foi derrotada em Stalingrado, o

que deu à URSS a posição de iniciativa no teatro de guerra da Europa Oriental.

A charge de Théo, composta por um conjunto de metáforas, data de momento

posterior à derrota alemã em Stalingrado, e mostra Hitler e Mussolini desesperados na

montanha russa – a luta contra a URSS – de um “parque de diversões” – a guerra. Em

solo, os líderes das três potências Aliadas observam e debocham da cena, mas não em

unidade: Churchil e Roosevelt de um lado – o lado esquerdo, ocidental – e Stalin de

outro – direito, oriental; mas separados, sobretudo, é possível supor, ideologicamente.

A charge traduziu o apuro em que se encontrava o Eixo em guerra com a URSS e

acenou com otimismo para a chegada da Segunda Frente – composta por ataques a

oeste da Alemanha pela Grã-Bretanha e EUA – solicitada por Stálin, representada na

charge pelo “trem fantasma” ao qual se refere Roosevelt. Condensando no Eixo na

figura do inimigo, sua eliminação por meio da articulação de forças entre as potências

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Aliadas tornava-se algo desejável e permitia uma releitura otimista dos

acontecimentos.

Após o desembarque anglo-americano na Normandia, em 6 de junho de 1944,

denominado “Dia D”, o quadro de otimismo e esperança ganhou força e as charges

passaram a acenar mais diretamente para o que seria o fim de Hitler e do sistema e

perigo que representava.

CHURCHIL – Sopra de lá que eu abano de cá...

Na charge, a Alemanha de 1944 é metaforicamente encarnada em um barril de

pólvora cercado por chamas que se aproximam de todas as direções. Dos lados

esquerdo e direito, Churchil e Stalin, respectivamente, representam as duas frentes de

batalha e estimulam as chamas a progredirem até o barril. Sobre ele, em nítida

Figura 7 Théo. Careta, 15/07/1944, nº 1881, ano XXXVII, p. 8.

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inquietude e fragilidade, um Hitler prestes a explodir ao lado do Reich que

estruturara, representando, finalmente, o fim da guerra que se arrastava há cinco anos.

Essa continuidade da narrativa iniciada pela charge, a cargo da interpretação dos

próprios leitores, era desejada pelos caricaturistas, pois apontava para a mesma

direção que todo o conjunto de seu trabalho na Careta – um fim de guerra

desfavorável às potências do Eixo, encarnadas como as vilãs da Segunda Guerra

Mundial.

*****

Por este texto, creio ser aceitável concluir que as charges conferiram à guerra e

aos seus múltiplos desdobramentos um caráter popular, trazendo-os para a língua do

povo. E isso graças ao brilhantismo das estratégias e recursos visuais e linguísticos

aos quais lançaram mão os caricaturistas. Era preciso traduzir o emaranhado de

acontecimentos envolvendo os múltiplos agentes de cada uma das potências em um

código que fosse mais simples e direto, de fácil entendimento e fácil reprodução. A

personificação dos países nas figuras de seus chefes de Estado configurou a

possibilidade de intensa reiteração, que se traduziu em familiaridade. Essa síntese

permitia que mirabolantes acontecimentos se tornassem simples e reproduzíveis em

um desenho. Ademais, as charges, produzidas por intelectuais que dominavam a

articulação entre o riso e a sobriedade, associaram o humor à uma intensa atividade

reflexiva que se traduzia também em um questionamento à própria realidade vivida

pelos leitores brasileiros. Não pretendi – nem poderia – esgotar todas as vias de

análise e possibilidades de leitura das charges – suportes carregados de forte

polissemia. Ao contrário, procurei atribuir-lhe certo significado e coerência.

Page 17: a Segunda Guerra Mundial nas páginas da Revista Careta

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  GUERRAS  E  REVOLUÇÕES  NO  SÉCULO  XX]  

Ano  5,  n°  8  |  2015,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

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