a saúde humana e a amazônia no século xxi
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Novos Cadernos do NAEA/UFPA, 9(1):77-94, jun. 2006. ISSN 1516-6481.
A SADE HUMANA E A AMAZNIA NO SCULO XXI:
REFLEXES SOBRE OS OBJETIVOS DO MILNIO Hilton P. Silva
Resumo A Amaznia, alm de um vasto e complexo ecossistema, tambm o habitat de um
considervel contingente populacional humano. Embora grande parte desse contingente
esteja concentrada nas reas urbanas, milhes de pessoas vivem nas reas rurais. Essas
populaes incluem os diversos grupos indgenas, as populaes caboclas, os quilombolas e
os imigrantes recentes da vrias partes do pas. Pouco ainda se conhece sobre esses grupos,
e menos ainda sobre sua situao de sade e saneamento ambiental. Este artigo faz uma
sntese dos principais desafios para a sade das populaes amaznicas e apresenta
exemplos da precria situao de alguns grupos rurais. Observa-se que nesta regio no
ser possvel atingir os Objetivos do Milnio dentro dos prazos estabelecidos, e
apresentam-se algumas propostas de polticas pblicas na rea de sade e meio ambiente
que, caso venham a ser implementadas, podero, no futuro, melhorar as condies de sade
das populaes amaznicas e, simultaneamente, promover a proteo do meio ambiente.
Palavras-chave: meio ambiente, Brasil, sade, caboclos, Par.
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Abstract
The Amazon region is known for its vastness and complex ecosystem. Nevertheless,
this area is also the habitat of a considerable human contingent. Even though a large part of
this population is concentrated in the urban areas, millions of people also live in the rural
areas. These populations include several indigenous groups, traditional populations such as
the caboclos and the quilombolas, and recent immigrants from several parts of Brazil.
However, little is still known about these groups and even less about their health and
environmental sanitation situation. This article provides an overview of some of the major
challenges to the health of the Amazon populations and presents examples of the precarious
situation of some rural groups. It is shown that in this region it will not be possible to reach
the Millenium Objectives in the currently proposed timeframe, and some proposals for
public policies in the areas of health and the environment are presented which, if
implemented, will improve the health of the Amazonian populations and help to
simultaneously promote environmental protection.
Key-words: environment, Brazil, health, caboclos, Par.
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INTRODUO
Discutir perspectivas sobre as complexas relaes entre meio ambiente e sade na
Amaznia um enorme desafio que, porm, jamais deixa de ser fascinante e necessrio.
Quando se trata da Amaznia, nada simples como pode parecer primeira vista, por isso,
sero abordados neste artigo apenas alguns aspectos considerados fundamentais para a
reflexo sobre a rea da sade, se queremos ter no horizonte futuro da Amaznia um
desenvolvimento socioeconmico com bases minimamente sustentveis.
Qualquer viajante na Amaznia percebe facilmente as grandes disparidades em
termos de acesso aos servios bsicos de infra-estrutura, como saneamento ambiental1,
atendimento de sade, e servios de tratamento de gua, entre as reas urbanas e as reas
rurais da regio. Infelizmente, essa realidade mudou pouco e muito lentamente nas ltimas
dcadas (COUTO et al., 2002; JATENE et al., 1993). Garantir o acesso a tais servios para
a maioria da populao continua a ser um dos maiores desafios das polticas pblicas para
esta parte do Brasil (SILVA, 2004a).
Complexidade e diversidade so as caractersticas fundamentais da regio
amaznica. A Amaznia legal brasileira formada por nove Estados, ocupa 61% do
territrio nacional e tem 12.5% do contingente populacional do pas. So mais de cinco
milhes de quilmetros quadrados de terras e guas. Na Amaznia encontra-se a maior
biodiversidade da terra, quase um tero da variabilidade gentica estimada do planeta, a
maior sociodiversidade da humanidade, as principais reservas estratgicas superficiais de
gua doce e algumas das maiores, e ainda intocadas, reservas de minerais estratgicos do
mundo.
Quantos pases cabem na Amaznia? E quantas etnias e culturas? Com alguma
licena potica, na Amaznia cabe quase o mundo inteiro. O problema que, se muito se
conhece sobre outros pases e culturas do resto do mundo, muito pouco ainda se sabe sobre
esse mundo que a Amaznia.
Por exemplo, h muito se fala, escreve, filma, fotografa e documenta de vrias
formas a enorme biodiversidade e a importncia ecolgica da Amaznia para o planeta; no
1 O Ministrio das Cidades tem recomendado o uso da expresso saneamento ambiental em vez de saneamento bsico.
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entanto, nessas expresses todas, destaca-se a pouca importncia dada ao homem e
mulher amaznicos. E, quando eles aparecem, so tratados como parte da paisagem natural,
ou caracterizados como agressores eternos do meio ambiente. Ambas as formas de
representao so incorretas e perpetuam mitos como o do bom selvagem ou o do
conflito insolvel entre o ser humano e a natureza. Freqentemente, quando se trata de
populaes no-amerndias, a mensagem, equivocada, a de que determinados setores,
como os imigrantes, o campesinato rural, ou determinados movimentos sociais so
eternamente nocivos ao meio ambiente; omite-se, ou ignora-se, o fato de que essas
populaes so, tambm, detentoras e guardis de vasto conhecimento ecolgico, advindo
de sculos de vivncia na regio (CUNHA; ALMEIDA, 2002; DIEGUES, 2000; LISBOA,
2002; MORN, 1981, 1983).
A bioantropologia encarregou-se, h dcadas, de demonstrar a falcia que tentar
separar o ser humano do seu meio ambiente ecolgico (BAKER; LITTLE, 1976;
KORMONDY; BROWN, 2001). Nos ltimos milhes de anos, os seres humanos e seus
antepassados contriburam de forma decisiva para o surgimento e a manuteno de muitos
dos ecossistemas naturais existentes hoje, inclusive a Amaznia (BENCHIMOL, 1998;
DENEVAN, 2002; HECKENBERGER et al., 2003). Portanto, desconsiderar os seres
humanos em qualquer aspecto da discusso ambiental uma grande insensatez. Felizmente,
h setores da sociedade, entre os quais algumas organizaes no-governamentais (ONGs) -
ainda que poucas - e reas do governo federal, dos governos estaduais e municipais que j
apresentam uma perspectiva mais avanada sobre a relao entre os seres humanos e o
meio ambiente. Esse movimento est cada vez mais forte no Brasil (ALIER, 1998;
FATHEUER et al., 1998). No entanto, dadas dificuldades enfrentadas pela maioria dos
amaznidas, os desafios ainda so enormes.
OS PRINCIPAIS DESAFIOS PARA A SADE NA AMAZNIA
A transio socioecolgica e a carga dupla de doenas
Enquanto j se nota alguma predisposio da comunidade acadmica e da mdia
para incluir os seres humanos na equao ecolgica, faltam ainda dados que permitam essa
incluso de forma correta com seus efeitos calibrados e concretamente avaliados. Embora a
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Amaznia Legal tenha o maior contingente populacional rural do pas, pouco se sabe sobre
a diversidade sociocultural dessas populaes, e muito menos conhecido sobre sua
situao de sade. Os principais esforos de pesquisas tm se concentrado em duas grandes
vertentes: as capitais e outras reas urbanas, como Belm, Santarm, Manaus, Boa Vista e
Rio Branco, e as populaes indgenas. Nessas duas frentes, muito embora o quadro esteja
ainda incompleto, j h um acmulo considervel de informaes sobre sade e condies
de vida das populaes, como pode ser visto nos dados do DATASUS, do Ministrio da
Sade (BRASIL, 2005) e em publicaes nacionais e internacionais (COIMBRA JR. et al.,
2003; COUTO et al., 2002; JATENE et al., 1993).
No entanto, h um outro segmento da populao amaznica sobre o qual
conhecemos menos ainda: o campesinato (as populaes rurais no-indgenas, caboclos e
ribeirinhos). Esse segmento, que o antroplogo britnico Stephen Nugent chama de
populao invisvel (NUGENT, 1993), permanece no limbo cientfico (SILVA, 2001).
Como resultado, um percentual expressivo da populao da regio simplesmente ignorado
pelas estatsticas oficiais. Como ocorria h cem ou duzentos anos, milhares de pessoas
continuam a nascer e a morrer nos rinces amaznicos todos os anos sem que o poder
pblico tome conhecimento de sua existncia. Alm disso, enquanto a era da tecnologia
leva o telefone celular e a televiso a quase todos os cantos da regio, a Amaznia continua
a apresentar o segundo mais alto ndice do pas de mortes por causas mal definidas, isto
, no identificadas pelo mdico que assinou o atestado de bito (CFM, 2005; JATENE et
al., 1993), perdendo apenas para alguns dos estados do Nordeste. Isto indica que essas
pessoas morrem antes de conseguir acesso a qualquer tipo de assistncia mdica.
Em geral, apesar de alguns avanos nas ltimas dcadas, os dados disponveis sobre
a sade no Brasil ainda deixam muito a desejar. Porm, as informaes existentes
compem, para a Amaznia em particular, um quadro bastante preocupante. Embora
muitos dos indicadores epidemiolgicos e sociodemogrficos tradicionais (mortalidade
infantil e materna, expectativa de vida ao nascer, cobertura vacinal da populao,
longevidade, status nutricional, acesso educao bsica etc.) tenham apresentado no pas
melhoras nos ltimos vinte anos (IBGE, 2004; OPAS, 2002), na Amaznia, os avanos,
quando ocorrem, tm sido bem mais lentos e irregularmente distribudos, privilegiando,
invariavelmente, os principais centros urbanos da regio, em detrimento do grande
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contingente populacional das zonas rurais (BRASIL, 2004a; COSTA et al., 1993;
FERREIRA et al., 2000; OPAS, 2002; SILVA, 2004a, 2004b).
Dados dos ltimos documentos do Observatrio da Cidadania do Par (FAOR,
2003a) mostram que, na maior bacia hidrogrfica do planeta, apenas 42% dos domiclios (e
apenas em reas urbanas) tm abastecimento regular de gua. Essa informao ganha
relevncia quando confrontada com os dados da Organizao Mundial da Sade (OMS),
que demonstram que as doenas de veiculao hdrica so responsveis por 65% das
internaes hospitalares de crianas at 10 anos de idade e por 80% das enfermidades que
ocorrem nos pases em desenvolvimento (RIBEIRO; MARIN, 2002; WHO, 2000). Para
usar um exemplo paraense, o trabalho de Silva (2001, 2003, 2006) em populaes
ribeirinhas do mdio rio Amazonas mostra a relao existente entre fonte de gua para
consumo domstico e prevalncia de mltiplas parasitoses intestinais (ver Tabela 1).
Estudos em outras populaes da Amaznia tm demonstrado, tambm, nveis superiores a
20% de poliparasitismo intestinal (DIAS et al., 1982; FERRARONI et al., 1979; IEC,
2000), o que refora a relao entre acesso a saneamento ambiental e incidncia de
parasitoses intestinais.
Tabela 1: Percentagem de indivduos infectados com parasitas intestinais em trs populaes ribeirinhas. Caxiuan Aracampina Santana Parasitas % da populao % da populao % da populao
Ascaris lumbricoides 57.8 13.8 6.1 Strongyloides stercoralis 5.2 0.0 0.6 Tricocephalus trichiurus 18.1 0.0 0.0 Ancylostoma duodenale 19.8 6.5 5.2
Enterobius vermicularis 0.0 0.8 0.2 Escherichia coli 16.4 1.1 0.0 Entamoeba histolytica 31.0 30.1 48.7 Giardia lamblia 5.2 39.8 25.4 Endolimax nana 37.1 0.0 13.1 Blastocistis hominis 20.4 21.1 6.7
Mltiplos parasitas 43.0 37.0 20.8 Fonte: SILVA (2001, 2006).
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Nas trs populaes apresentadas na Tabela 1 no h saneamento ambiental ou
acesso gua encanada, e as famlias dependem dos rios e crregos, como fonte de gua
para todos os usos domsticos (SILVA, 2001). Como descrito naquele trabalho, embora as
trs populaes sejam rurais e no tenham acesso a saneamento ambiental, as duas
populaes em situao socioecolgica mais vulnervel Caxiuan e Aracampina
apresentam, em mdia, maior prevalncia de parasitoses intestinais.
O Observatrio da Cidadania do Par (FAOR, 2003a) aponta, ainda, que apenas
6,5% dos domiclios no Par, aproximadamente, esto ligados a redes de esgotos. O quadro
das indstrias, provavelmente, no em nada melhor. Na regio norte como um todo,
menos de 20% dos domiclios esto conectados a redes de esgotos. Um provvel efeito
disso que, de acordo com estimativas recentes, grande parte das fontes de captao de
gua para consumo humano est contaminada com poluentes de diversos tipos, de fezes
humanas a metais pesados (COUTO et al., 2002; LISBOA, 2002).
Em termos de ndice de Desenvolvimento Humano (IDH), taxas de analfabetismo,
proporo de pobres na populao, mortalidade infantil, mortalidade perinatal e
mortalidade materna, os estados da Amaznia apresentam dados melhores apenas que os
dos estados mais pobres do Nordeste (BRASIL, 2004a; COUTO et al., 2002; FAOR,
2003b; UFRGS; UFPA; PUC-Minas; PNUD; IDHS, 2004). Tomando-se como exemplo o
Estado do Par, de acordo com o Mapa da Fome (FGV, 2001), o IBGE estima que 41% dos
cerca de 6 milhes de habitantes do Estado so indigentes. Entre a rea urbana e a rea
rural, so cerca de 2,5 milhes de pessoas nessa situao. Entre os principais plos de
pobreza esto Ananindeua, Marituba e Santa Brbara, alm da periferia de Belm, a cidade
com a maior proporo de favelados do Brasil segundo o IBGE. O Par recordista em
utilizao de trabalho escravo no Brasil; quase 2000 pessoas foram encontradas pelas
autoridades nessa situao em 2002 (FAOR, 2003a). Os dados sobre a violncia no campo,
o trabalho e a situao infantil so igualmente alarmantes. Outro dado grave que, de
acordo com dados do SUS (BRASIL, 2004b), tanto na cidade quanto no campo elevado o
ndice de gravidez na adolescncia, fato que est diretamente ligado falta de acesso a
informaes bsicas em sade, baixa escolaridade das meninas e dos meninos, ausncia
de opes de lazer e trabalho e falta de redes de suporte institucional.
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De acordo com dados do Fundo das Naes Unidas para a Infncia (UNICEF) e do
Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), ainda muito elevado
tambm o ndice de desnutrio infantil em toda a regio. Os trabalhos de Silva (2001,
2002a) e do Programa Pobreza e Meio Ambiente (POEMA) da Universidade Federal do
Par (UFPA) (relatrio no publicado) com algumas populaes ribeirinhas exemplificam
isso. Conforme demonstrado na Tabela 2, que compara dados de trs populaes que vivem
em diferentes reas geogrficas do Par, em mdia, at 50% das crianas investigadas
apresentam algum grau de desnutrio quando comparadas com os dados de referncia
internacionais.
Tabela 2: Situao de trs populaes caboclas do Par em relao subnutrio, ao atraso agudo e ao atraso crnico de crescimento. Populao Grupo etrio Subnutrio % Atraso agudo de
crescimento % Atraso crnico de crescimento %
Caxiuan* 0-10 57,2 34,8 79,6
Ituqui* 0-10 49,3 26,6 72,1
Praia Grande** 0-5 59,1 59,1 -
Fontes: *SILVA (2001); **dados no publicados cedidos pelo POEMA/UFPA (1994).
Do ponto de vista de outras minorias vulnerveis, uma situao crtica a dos
remanescentes dos vrios quilombos espalhados pela Amaznia. Estimativas de
organizaes no-governamentais apontam que em at 80% deles no h infra-estrutura de
saneamento ambiental, unidades de sade ou escolas oficiais. O mesmo pode ser dito sobre
centenas de vilas e povoados ribeirinhos da regio.
As populaes no-indgenas e indgenas que vivem perto ou dentro de reas
protegidas (florestas nacionais, parques nacionais, reas de proteo ambiental e outras
unidades definidas no Sistema Nacional de Unidades de Conservao (SNUC)) tambm se
encontram geralmente em situao crtica, pois legalmente no podem explorar os seus
recursos naturais tradicionais e, por seu isolamento, tampouco tm acesso aos mercados e
aos bens e servios oferecidos pelo Estado em outras reas. A populao da Floresta
Nacional de Caxiuan, por exemplo (Tabelas 1 e 2), tem os piores indicadores em relao
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desnutrio e prevalncia de parasitoses intestinais, alm de cries, dermatites, diarrias e
infeces respiratrias (SILVA, 2001, 2002a, 2003, 2006).
Em relao s doenas infecciosas mais graves, em toda a Amaznia, a malria, as
hepatites virais, a hansenase, a tuberculose, a leishmaniose, a dengue e mais recentemente
a AIDS continuam a ser grandes desafios para a sade pblica. H na regio uma incidncia
de malria maior que a de muitos pases da frica subsaariana; a hansenase, a dengue, a
leishmaniose e a tuberculose ainda so endemias prevalentes, e pouco se sabe sobre a
situao da sorologia das hepatites virais e do HIV, especialmente entre populaes rurais
(SILVA, 2002b, 2004b). No caso da malria, em muitas regies, seus nmeros continuam a
crescer, sendo as cepas multirresistentes de Plasmodium falciparum cada vez mais
freqentes (UNEP, 2003). No caso particular da infeco pelo HIV, a tendncia nacional
aponta para a feminizao, a pauperizao e a interiorizao cada vez maiores da epidemia,
que afeta indivduos nos segmentos adultos mais jovens da populao, principalmente na
faixa dos 15 aos 25 anos de idade (BRASIL, 2004b; BRITO et al., 2000; GUIMARES,
2001; SILVA, 2002b). Com a confirmao dessa tendncia, os efeitos da infeco pelo HIV
sero catastrficos nas populaes rurais, j to sofridas e desassistidas em termos de
sade.
Por outro lado, estudos tm demonstrado o surgimento do que a OMS chama de
double burden (ou carga dupla): o quadro epidemiolgico apresenta ainda altas taxas de
doenas infecciosas, mas comeam a emergir, em nmeros cada vez maiores, as doenas
crnico-degenerativas, como a hipertenso arterial, o diabetes, a obesidade e o cncer, que
j esto entre as principais causas de morte nos estados da Amaznia (BRASIL, 2004a;
SILVA 2004a). Por exemplo, comparando os nveis de presso arterial e a prevalncia de
doena hipertensiva nas trs populaes ribeirinhas do mdio rio Amazonas apresentadas
nas tabelas anteriores (Caxiuan, Aracampina e Santana), pode-se ter uma idia da
dinmica da carga dupla nas populaes amaznicas.
Nos trs grupos investigados, alm da alta prevalncia de parasitoses intestinais,
doenas respiratrias agudas, cries, dermatites e outras doenas infecciosas agudas (as trs
reas so relativamente livres de malria) (SILVA, 2001), comea a haver, tambm, um
aumento nos nveis de presso arterial, especialmente entre as mulheres. Cerca de 20% dos
homens e de 25% das mulheres nas trs comunidades apresentam nveis pressricos
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elevados (PA 140/90 mmHg em duas medies consecutivas em perodos diferentes
(STEIN, 1994)). Aproximadamente 60% dos hipertensos so mulheres, e 28% so pessoas
com menos de 45 anos de idade (SILVA et al., 2006). Apenas uma pessoa estava em
tratamento com anti-hipertensivos na poca do estudo.
Em relao obesidade (ndice de Massa Corporal 30), a prevalncia entre os
homens de 18.9%, 22.9% e 20.8% em Caxiuan, Aracampina e Santana respectivamente.
Mulheres obesas representam 11.1%, 38.6%, e 44.6% respectivamente, nos trs grupos
(SILVA, 2001).
Apesar da amostra quantitativamente limitada, os ndices de hipertenso e obesidade
nesses trs grupos so maiores que os de outras populaes rurais j investigadas na regio
(SILVA et al., 1995; SILVA; ECKHARDT, 1994) e similares aos de populaes de
grandes reas urbanas do Brasil e do mundo (DRESSLER; SANTOS, 2000; FEIJO et al.,
2005; MONTEIRO et al., 2000; YUSUF et al., 2001), o que deve fazer soar um alerta para
os potenciais custos humanos, sociais e econmicos acarretados pela carncia de polticas
pblicas de sade solidamente embasadas em dados de campo regionalizados, que
considerem a complexidade das mudanas socioecolgicas em curso na Amaznia.
Alm da dificuldade de obteno de informaes confiveis sobre as reas rurais,
em geral, a qualidade dos dados em sade disponveis no Brasil um outro grave problema
epidemiolgico a resolver. Por exemplo: em 1997, o Ministrio da Sade estimava a
mortalidade infantil no pas em 16,6/1000 nascimentos, enquanto o IBGE a estimava em
36,2/1000, mais que o dobro. Ainda hoje, cerca de 25% dos bitos registrados (quase 40%
no Maranho) resultam de causas mal definidas ou no diagnosticadas (CFM, 2005).
Como dito anteriormente, na Amaznia rural, milhares ainda nascem e morrem sem
qualquer atestado da sua existncia. Essa situao no mudou em vrias dcadas (JATENE
et al., 1993) e , provavelmente, a maior demonstrao da falta de Cidadania que atinge a
maioria dos amaznidas.
A questo da carncia de profissionais
Uma outra questo fundamental a ser resolvida a carncia de profissionais de
sade na regio. Os dados disponveis (DUARTE et al., 2002; BRASIL, 2004a;)
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demonstram que h uma grande concentrao de recursos materiais e de profissionais da
sade nas capitais e nas maiores cidades dos estados do Norte, e carncias em outras reas,
havendo ainda municpios onde, mesmo na rea urbana, a assistncia bsica sade
extremamente precria ou inexistente (FAOR, 2003a). Essa m distribuio de recursos
humanos, e tambm materiais, avilta a situao dos profissionais da regio. Em funo da
competio, so obrigados a trabalhar por baixos salrios e em condies freqentemente
precrias nos principais centros urbanos alis, uma situao que se repete nas grandes
cidades em todo o Brasil. J nas reas rurais, as prefeituras tm de oferecer salrios
altssimos (e muitas vezes inviveis de manter a mdio prazo) para tentar fixar os
profissionais nas menores localidades, onde as condies infra-estruturais, como acesso a
transporte, mtodos diagnsticos, leitos para internao, salas para cirurgia, e insumos para
tratamento so, via de regra, insuficientes, o que dificulta sobremaneira a atuao dos
poucos profissionais que se dispem a trabalhar nesses locais.
Alm disso, os dados mais recentes disponveis no Conselho Federal de Medicina
(CFM, 1998) demonstram que o nmero de profissionais em diversas especialidades na
regio insuficiente para atender as demandas. Essa situao gerou o aparecimento, no
mercado, especialmente no interior, de mdicos provenientes de outros pases da Amrica
do Sul, muitos com formao de qualidade duvidosa, o que coloca em risco a populao
atendida.
Por outro lado, atualmente, a formao curricular dos profissionais da sade,
baseada grandemente na dependncia de equipamentos de alta tecnologia para diagnsticos,
custosos equipamentos e insumos para tratamento (ARRUDA, 2001), dificulta a captao e
a reteno dos profissionais na rea rural e nas pequenas cidades do interior, onde esses
recursos so escassos. Por isso, alm de mudanas da infra-estrutura e das polticas de
sade ora vigentes, um aspecto fundamental para a mudana das condies de sade das
populaes amaznicas o planejamento e a implementao de uma ampla reforma nos
currculos da rea de sade da regio. necessria uma real transformao conceitual e
prtica, visando formar profissionais que compreendam a realidade amaznica, capazes de
atuar de maneira segura e eficaz dentro dessa realidade, engajados, e que no tenham receio
de encarar os desafios dos politraumatizados urbanos, nem de conduzir com confiana as
equipes do Programa Sade da Famlia (PSF) nos rinces regionais.
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CONSIDERAES FINAIS
Em abril de 2005, foram lanadas no Brasil as dezoito Metas do Milnio da
Organizao das Naes Unidas (ONU) e os oito Objetivos do Milnio, do PNUD. Os
objetivos so: erradicao da pobreza extrema e da fome; universalizao do acesso
educao primria; promoo da igualdade entre os gneros; reduo da mortalidade
infantil; melhoria da sade materna; combate a AIDS, malria e outras doenas; promoo
da sustentabilidade ambiental; organizao de parcerias para o desenvolvimento
(http://www.objetivosdomilenio.org.br/ , acesso em 6/6/06). As Metas da ONU e os
Objetivos do PNUD superpem-se consideravelmente, uma vez que ambas as propostas
fazem parte de uma agenda socioeconmico-sanitrio-ambiental ampla, cujas razes esto,
por exemplo, na Conferncia de Estocolmo, em 1972, na Agenda 21, que o principal
documento resultante da Eco-92 no Rio de Janeiro (BRASIL, 2001), e na Agenda do
Milnio da ONU. Um conjunto de documentos preparado por especialistas de vrias
instituies brasileiras para o PNUD apresenta detalhadamente o quadro nacional para cada
um dos objetivos e suas projees (UFRGS; UFPA; PUC-Minas; PNUD; IDHS, 2004). Em
geral, o Brasil est bastante aqum do cumprimento da maioria das metas e objetivos, sendo
a situao particularmente preocupante na Amaznia e no Nordeste, onde muitos objetivos
e metas no sero alcanados em 20015, e nem nas prximas dcadas. Mas o que fazer
diante da crescente situao adversa de sade, saneamento e degradao social e ecolgica
do pas?
As ligaes entre sade, qualidade de vida e qualidade do meio ambiente j so
bastante conhecidas, a ponto de se tornarem hoje uma obviedade (UNEP, 2003). Os dados
nacionais e internacionais ligando queimadas ao aumento de doenas respiratrias e cncer,
os dados da Amaznia ligando alguns grandes projetos hidroeltricos e, mais recentemente,
o avano da fronteira da soja ao aumento da malria e da dengue, os efeitos da poluio
mercurial na cadeia alimentar das populaes ribeirinhas, o efeito da pobreza na
degradao ambiental peri-urbana e rural so alguns dos exemplos mais graves das
respostas ambientais influncia antrpica (CHIVIAN et al., 1994; COUTO, 2002;
GRIFO; ROSENTHAL, 1997; PORTO; FREITAS, 2002; SILVA, 2004a, 2004b).
Programas de compensao social, como o Bolsa Famlia, de sade pblica, como o
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Programa de Agentes Comunitrios de Sade (PACS) e o Programa de Sade da Famlia
(PSF), iniciativas como o SUS Verde (Projeto Amaznia Legal) (MACHADO, 2003), e
mesmos possveis polticas de gerao de emprego e renda que venham a ser implantadas
s funcionaro efetivamente para melhorar a qualidade de vida da populao se
diagnosticarmos claramente os problemas com os quais estamos lidando, se
compreendermos a enorme diversidade socioecolgica da Amaznia e se integrarmos as
populaes locais elaborao e fiscalizao das polticas pblicas de sade e ambiente.
Pessoas doentes e carentes, sem educao e sem expectativa de sobrevivncia, isto
, sem Cidadania, so o resultado de um ambiente poltico e social altamente degradado, e
no possvel esperar que em tais circunstncias o ambiente natural possa ser respeitado ou
preservado. A Carta da Terra, aprovada em 2000, em Paris, aponta isso claramente quando
clama, em seus quatro princpios centrais, pela indissociabilidade da relao entre as
polticas sociais (justia social e econmica, democracia, no-violncia e paz, respeito e
cuidado da comunidade de vida) e a qualidade do meio ambiente (integridade ecolgica).
No campo propositivo, pelo menos quatro iniciativas so necessrias para promover
a melhoria da qualidade de vida e de sade das populaes amaznicas:
a) reforo da vigilncia epidemiolgica, sanitria e ambiental, com maior
participao popular e maior integrao entre os mltiplos agentes regionais, para
a gerao de dados globais e confiveis sobre as realidades da regio;
b) aumento dos investimentos em cincia, tecnologia, formao e capacitao
continuada de recursos humanos, para o desenvolvimento de infra-estrutura,
estratgias e programas baseados nas realidades regionais, voltados para as
questes de sade, meio ambiente e desenvolvimento socioeconmico com bases
ambientalmente sustentveis;
c) aumento da interao, em todas as esferas e nveis de governo, entre as
instituies pblicas e privadas regionais que lidam com a sade, com o meio
ambiente e com polticas pblicas, visando compreender melhor a dinmica das
relaes sade-doena-meio ambiente, em particular no que concerne s doenas
emergentes e reemergentes;
d) desenvolvimento de indicadores de sade e ambiente simples e mensurveis, que
levem em considerao as especificidades microrregionais e a capacidade de
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participao das comunidades na coleta e na utilizao das informaes geradas
local e regionalmente.
A Organizao Panamericana de Sade estima que, para cada R$ 1,00 investido em
saneamento ambiental, so economizados R$ 4,50 em servios de sade. Mas o quanto esse
investimento significa em termos de vidas humanas salvas e de preservao dos
mananciais, das florestas e da biodiversidade ainda no pode ser calculado. A Amaznia,
como um dos muitos Brasis, marcada por uma enorme diversidade ambiental, social,
econmica e cultural. Dados os inmeros dilemas impostos pelo gigantismo da regio e
pela prpria ameaa soberania nacional, resultantes de descasos histricos e de
estratgias geopolticas recentes, apontados por alguns autores (CABRAL, 1999;
CARVALHO, 2004; GASPARINI, 2005; MATTOS, 2005), o principal desafio para a
sociedade brasileira no sculo XXI decidir como lidar com a megadiversidade que
herdamos, em todas as suas mltiplas dimenses.
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