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A Sabedoria da Cabala – Parte 4 Em que Sentido a Cabalá é Sabedoria? – Parte 2 Durante a avodá, o judeu está "sozinho" com seu D'us, mas está também "no meio" do Seu povo. A avodá de cada israelita é, portanto, um serviço a um D'us pessoal, mas também está necessariamente incluída no serviço que o ‘Klal Israel’, "a totalidade de Israel", presta a D'us. Esta condição é que dá valor ao serviço individual, pois ninguém é capaz de atender sozinho a todas as exigências da avodá. Então o judeu se encontra ‘iachid’, "a sós" com D'us, mas ‘iachad’, "junto com", e "no meio de", Seu povo. Ligando-se a Israel, ele se une mais firmemente a D'us. Pois, por sua própria natureza, Israel está ligado à Torá, e a Torá, por sua própria essência, está vinculado a D'us, que "habita" na Congregação de Israel. O ‘oved ha-Shem’ está assim duplamente e completamente ligado a seu D'us. A avodá realizada por um judeu tem um valor pessoal pelo fato de atender às necessidades que a "raiz" de sua alma no mundo superior estimula em sua alma aqui na terra. Por meio de seu serviço, o judeu ascende às fontes de seu ser, renova seu vínculo com a "raiz" da alma. A última responde a essa ascensão transmitindo luz para "iluminar", para espiritualizar o corpo que aqui embaixo abriga sua extensão, a alma humana. O corpo tem grande necessidade da alma. Sendo o instrumento físico e material da realização "corpórea" da Mitzvá, ele deve tornar-se digno e capaz de colaborar com a alma. Da alma vem a Kavaná "espiritual" necessária, de modo que aquele que cumpre a Mitzvá, ainda que seja no sentido físico, pode ser capaz de dirigir sua "inspiração" às alturas, onde a Mitzvá está "enraizada". Na realidade, não existe nada, "aqui embaixo", que não tenha sua forma espiritual no alto. Por meio da avodá, o judeu torna-se mais profundamente consciente de seu D'us, e D'us regenera nele a revelação da Torá e das Mitzvot, pessoalmente. Na verdade, o homem nem mesmo teria consciência de seu "ser" se não conhecesse sua origem e seu fim no "Eu sou" de seu D'us, se não extraísse sua força, sua "vitalidade", do "Eu sou" Daquele que, quando outorgou a Torá no Sinai, se revelou como "Eu sou". O "eu" humano extrai todo o seu valor do "Eu sou" divino. Sem Este, ele não seria. Tudo o que diz respeito ao homem encontra um lugar na avodá. "Em tudo neste mundo D'us escondeu uma Mitzvá para Israel."

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Page 1: A Sabedoria da Cabala Parte 4 Em que Sentido a Cabalá é ... · Ligando-se a Israel, ele se une mais firmemente ... Ele não esquece nem por um instante que está ... Santifique-se

A Sabedoria da Cabala – Parte 4

Em que Sentido a Cabalá é Sabedoria? – Parte 2

Durante a avodá, o judeu está "sozinho"

com seu D'us, mas está também "no meio" do Seu povo.

A avodá de cada israelita é, portanto, um serviço a um D'us pessoal, mas

também está necessariamente incluída no serviço que o ‘Klal Israel’, "a totalidade de Israel", presta a D'us. Esta condição é que dá valor ao serviço individual, pois ninguém é capaz de

atender sozinho a todas as exigências da avodá. Então o judeu se encontra ‘iachid’, "a sós" com D'us, mas ‘iachad’, "junto

com", e "no meio de", Seu povo. Ligando-se a Israel, ele se une mais firmemente a D'us. Pois, por sua própria natureza, Israel está ligado à Torá, e a Torá, por sua

própria essência, está vinculado a D'us, que "habita" na Congregação de Israel.

O ‘oved ha-Shem’ está assim duplamente e completamente ligado a seu D'us.

A avodá realizada por um judeu tem um valor pessoal pelo fato de atender às necessidades que a "raiz" de sua alma no mundo superior estimula em sua alma aqui na terra.

Por meio de seu serviço, o judeu ascende às fontes de seu ser, renova seu vínculo com a "raiz" da alma.

A última responde a essa ascensão transmitindo luz para "iluminar", para espiritualizar o corpo que aqui embaixo abriga sua extensão, a alma humana.

O corpo tem grande necessidade da alma. Sendo o instrumento físico e material da realização "corpórea" da Mitzvá,

ele deve tornar-se digno e capaz de colaborar com a alma. Da alma vem a Kavaná "espiritual" necessária, de modo que aquele que cumpre a Mitzvá, ainda que seja no sentido físico, pode ser capaz de dirigir

sua "inspiração" às alturas, onde a Mitzvá está "enraizada". Na realidade, não existe nada, "aqui embaixo", que não tenha sua forma

espiritual no alto. Por meio da avodá, o judeu torna-se mais profundamente consciente de seu D'us, e D'us regenera nele a revelação da Torá e das Mitzvot,

pessoalmente. Na verdade, o homem nem mesmo teria consciência de seu "ser" se não

conhecesse sua origem e seu fim no "Eu sou" de seu D'us, se não extraísse sua força, sua "vitalidade", do "Eu sou" Daquele que, quando outorgou a Torá no Sinai, se revelou como "Eu sou".

O "eu" humano extrai todo o seu valor do "Eu sou" divino. Sem Este, ele não seria.

Tudo o que diz respeito ao homem encontra um lugar na avodá.

"Em tudo neste mundo D'us escondeu uma Mitzvá para Israel."

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No entanto, a avodá, o serviço a D'us, não está limitada aos três grandes

ideais personificados pelos três patriarcas hebreus, e que também foram inscritos no coração de seus filhos e descendentes para sempre, ou seja: o

"amor", por meio da prática generosa de boas ações; a "força", por meio do fervor da oração; e o "esplendor", por meio do estudo assíduo da Torá. É verdade, "eles estabeleceram o mundo sobre estes três pilares".

Contudo, o homem da Cabalá sabe, assim como sabiam os patriarcas, que neste mundo, onde eles viveram e onde vivemos agora, a Torá e as Mitzvot

envolvem a totalidade de seu ser e exigem todo o seu tempo. Tudo o que diz respeito ao homem tem seu lugar na avodá; tudo que se refere à sua vida, no sentido pleno da palavra, existe nela.

Sua própria existência deve ser uma avodá contínua. Certamente, a avodá contém vários estágios ascendentes, de acordo com

sua pureza, sua devoção absoluta e sua qualidade; porém, se considerada quantitativamente, a avodá diz respeito a todo judeu. As exortações que se seguem são dirigidas a cada um deles: "Em todos os

teus caminhos, conhece-O" (Provérbios 3:6); "Conhece o D'us de teu pai e serve-0 com um coração perfeito..." (I Crônicas 28:9).

No homem da Cabalá, o desejo de conhecimento e a disposição para servir são dirigidos unicamente a D'us.

O homem sábio deve "ter D'us sempre diante de seus olhos" (conforme Salmos 16:8) e deve sempre se lembrar que "Seus olhos estão sobre ele" (conforme Salmos 34:16).

Ele não esquece nem por um instante que está perante D'us. Cada sopro que passa por seus lábios, cada batida do coração, declara o

louvor a D'us; cada palavra que pronuncia exalta as obras maravilhosas de D'us; cada gesto recorda que D'us o acompanha. Quando adormece, ele sabe que sua alma "ascende para prestar contas nas

alturas de seu comportamento durante o dia". Ele se consola de ter de interromper a avodá "consciente" lembrando-se

que o sono lhe permitirá servir a D'us no dia seguinte com forças renovadas. O homem sábio da Cabalá, o homem de Sabedoria, sabe que cada

pensamento, cada palavra, cada ato "fica registrado nas alturas num livro" e tem repercussões em todos os mundos, mesmo quando atinge o próprio

D'us. "Em tudo neste mundo D'us escondeu uma Mitzvá para Israel." Por isso, todas as pessoas e todas as coisas que um judeu encontra podem

ser objeto de uma Mitzvá, potencialmente capazes de ser integrados à avodá.

Caso ele tenha sede de cumprir ainda mais Mitzvot, D'us lhe dará a oportunidade de fazê-lo. Ele lhe proporcionará novas Mitzvot, "iluminando-o" para que possa

pronunciar "cem bênçãos" todos os dias. Se ele se revelar digno, D'us o levará a descobrir lugares e pessoas que

"mantêm presas as centelhas sagradas". A estes ele ajudará a fazer teshuvá, a encontrar o caminho de volta à sua própria origem, ao seu verdadeiro ser, do qual eles abusaram, a D'us, a

quem eles ofenderam; com isto ele libertará aquelas "centelhas sagradas". Assim, toda ação pode constituir uma Mitzvá que enriquecerá sua avodá.

Fazer um estudo minucioso da Torá para descobrir seus mistérios e assim ser elevado sobre suas asas, em êxtase divino, aos mundos superiores; ou

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descer de propósito ao mundo material e físico, a fim de espiritualizá-lo e

elevá-lo aos mundos superiores — ambos fazem parte da avodá de uma pessoa e conduzem à santidade.

Pois a avodá inclui tanto as coisas "pequenas" que podem nos parecer insignificantes quanto as coisas "grandes" que podem nos parecer muito importantes; tudo, sem exceção, espera ser "santificado" por nós.

Graças a este "cuidado" que temos tanto com as "grandes" coisas como com as "pequenas", o ser humano estará emulando seu Criador, que "em

Sua grandeza e em Sua modéstia" presta a mesma atenção a todas as coisas mediante Sua Hashgachá, Sua "Providência" e Sua "Vigilância". Além disto, nossa consideração tanto pelas "pequenas" coisas como pelas

"grandes" exige e ocasiona a intervenção providencial de D'us.

Mesmo o ato de comer, quando executado com santidade, é altamente espiritualizado.

"Aquele cuja Kavaná, cuja 'intenção' ou pensamento, permanece ligada ao Seu Nome, louvado seja Ele, durante as suas ocupações materiais, realiza

uma avodá perfeita, um perfeito serviço a D'us. Por outro lado, aquele que não mantém seus pensamentos e suas intenções assim ligados enquanto se

dedica ao estudo da Torá e à oração, não respeita o Nome, louvado seja Ele." Este ensinamento referente à avodá espiritual, que foi transmitido a seus

seguidores por um santo discípulo de Rabi Israel Baal Shem Tov (século XVIII), está relacionado com, e completa, a doutrina que seu mestre, o pai

do Chassidismo, lhe confiara no que se refere à avodá terrena e material. Ele afirmou especificamente: "Pela maneira que você come, você serve a D'us".

Com isso, ele queria dizer que, na medida em que saibamos como comer (com santidade), "servimos a D'us" com santidade.

Se não for executado com santidade, o ato de comer não passa de um ato instintivo necessário para a preservação da vida no corpo, ou unicamente um meio de satisfazer a gula.

O Primeiro Homem cometeu seu primeiro erro pelo ato de comer; os israelitas, após saírem do Egito, "repararam sua falta" comendo pão ázimo,

o "pão da fé", o "pão da cura"; também nos tempos messiânicos a salvação será celebrada com um banquete. Quando realizado com santidade, o ato de comer é altamente

espiritualizado (a palavra ‘maachal’, "comida", compõe-se das mesmas letras, dispostas de maneira diferente, que formam a palavra ‘malach’,

"anjo"). Esse ato deve ser executado de acordo com os ritos estabelecidos pelas respectivas Mitzvot.

Ele deve ser espiritualizado pelos Divrei Torá, as "Palavras de Torá" que pronunciamos à mesa, e por orações que nos lembram que é D'us quem

"gera o pão — um alimento especificamente humano — da terra" e que "alimenta o mundo inteiro com Sua bondade". (Por meio dessas ‘berachot’, dessas "bênçãos", reconhecemos que tudo

provém Dele e pertence a Ele.) Assim, nossa alma será nutrida por orações e Divrei Torá, e nosso corpo

será sustentado pelo alimento que necessita para servir a D'us. Sabemos que a alma e o corpo constituem uma entidade única.

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Se o corpo não recebesse alimentação material (que traz em si um

elemento espiritual, o qual evocamos com as berachot), ele não conseguiria mais abrigar a alma e assim executar conjuntamente a avodá.

O homem, enquanto ser consciente de sua vocação para servir a D'us, é chamado de nefesh, "alma", "espírito vital", e deve subordinar o corpo à alma de modo a se aproximar da santidade.

Isto não significa privar o corpo de sua dignidade moral, ou de seus direitos naturais; o corpo deve ser respeitado, pois, enquanto "pequeno mundo", ele

simboliza, em sua maravilhosa estrutura e forma, o "universo maior". Os dois compõem o magnífico mundo do Criador. Nutrir o corpo, cuidar dele, mantê-lo "limpo", torná-lo digno da "pureza" da

alma e capaz de participar de sua "santidade", tudo isto constitui uma Mitzvá.

Zelar pelo bem-estar das nefashot, o corpo e a alma, e dos espíritos "animal" e "divino" que juntos residem no homem constitui uma Mitzvá. Este corpo, "santificado" pela prática da Torá e das Mitzvot, torna-se ele

mesmo espírito. O homem que cumpre sua avodá deve portanto ser considerado como um

ser integral, na sua totalidade física e psíquica. Inicialmente dentro dele mesmo, e depois por intermédio dele, dentro do

mundo maior, aquilo que é físico, material, visível e externo torna-se espiritual e interno, e o elemento espiritual e interno torna-se visível. O objetivo supremo (messiânico) da avodá é revelar a perfeita harmonia

intrínseca entre o elemento externo "carnal", material e visível, e o elemento espiritual interno invisível.

O visível "entra" no invisível e o invisível torna-se manifesto. Este estado de santidade é o principal objetivo da avodá.

Reza e alimentação. O homem é julgado em sua totalidade

espiritual e física. A unidade de suas atividades.

Como um objetivo tão elevado pode ser alcançado? Somente se levarmos a sério a exortação: "Santifica-te pelo que te é

permitido!". Santifique-se pelo que você é, pelo que o seu Criador lhe oferece! Eis um exemplo de santificação.

Para comer, o homem usa a boca. Para estudar a Torá e recitar orações ele também usa a boca.

A boca serve para realizar dois atos de valores diferentes. Ora, um judeu reza em pé "diante de D'us". Ele põe a mesa e come "diante de D'us".

Rezar e comer são atos rituais. Tanto a "reza" como a "mesa" relembram e substituem o ritual de sacrifício

do Templo de Jerusalém. Quando reza, o judeu o faz "por amor ao Nome de D'us"; ele come "por amor ao Nome de D'us".

Não é só estudando a Torá e recitando as orações que ele invoca os Nomes de D'us; quando leva o ‘maachal’, a "comida", à boca, ele também invoca

os Nomes de D'us.

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De fato, o valor numérico da palavra ‘maachal’ (91) é igual ao dos Nomes

divinos HaValaH e Ado-nai juntos (o primeiro denota D'us como Criador do mundo e o segundo D'us como Senhor do universo).

A mesma boca humana tem de executar atos que parecem ter natureza e importância diferentes e que, no entanto, são complementares e demonstram a unidade do homem, a unidade intrínseca de suas atividades

e de sua vocação. Rabi Shimeon bar Iochai, o grande místico judeu da era talmúdica (no

século II), participou a D'us seu desgosto por Ele não ter dado duas bocas àquele que é chamado pelo seu Criador de "filho" e "servo", a saber, uma para estudar a Torá e recitar as orações e outra para comer.

D'us, contudo, em Seu desejo de que o homem seja um e O sirva em sua totalidade, deu-lhe uma única boca para uma variedade de atividades, que

devem ser realizadas de acordo com os preceitos da Torá. "Sua boca se tornará uma Torá." D'us exige que o homem, por meio desse mesmo órgão, santifique tanto

aquilo que é material quanto aquilo que é espiritual por natureza, para formar um todo.

Assim será alcançado o objetivo elevadíssimo da avodá: unir as funções materiais e espirituais num ato único de santificação, executado pelo

homem "total".

Correlação entre cérebro e coração,

dois fatores essenciais na vida espiritual de um ser humano.

A unidade de um ‘oved ha-Shem’, um "servo de D'us", é realizada por intermédio da relação viva que vincula os diferentes órgãos do corpo

humano, todos funcionando juntos para uma perfeita avodá. Existe então uma correspondência, uma correlação, entre o cérebro "frio",

glacial e pensante, que ordena ao homem que execute uma Mitzvá com "precisão meticulosa" por "temor" a D'us, e o coração "quente", ardoroso e sensível, que incita o homem a cumprir a mesma Mitzvá com "bondade" e

"entusiasmo" por "amor" a D'us. A "água fria" que vem do cérebro é dirigida para o "fogo candente" do

coração, sem, porém, extingui-lo. Tanto a água, que esfria, quanto o fogo, que aquece, são integrados ao próprio tecido da Mitzvá e o reforçam.

Essa correspondência, essa correlação entre o cérebro e o coração, dois fatores essenciais na vida espiritual e psicossomática do ser humano,

acarreta um intercâmbio de suas propriedades e uma complementaridade permanente de suas faculdades. Graças a esta correlação, o homem devotado a D'us, o homem que é

espiritualmente sadio e equilibrado, é capaz de oferecer ao seu Criador uma avodá, um serviço completo.

Quando o "cérebro", a "sede do Espírito Divino", recebe a influência do "coração", ele é "aquecido", partilha de sua ternura e começa a "sentir". O "coração ardoroso", por sua vez, influenciado pelo "cérebro", "esfria",

reflete, começa a "raciocinar". Torna-se o "coração de um homem sábio", um coração que "pensa",

"entende", "sabe", "fala", "vê" e "ouve".

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Essas virtudes aparecem em sua "cavidade do lado esquerdo", a "sede do

espírito"; esta se defronta com a cavidade do lado direito, repleta de sangue, e a "sede do espírito animal", da "má inclinação".

Essas duas cavidades do coração estão ligadas, e no entanto são opostas uma à outra por todas as suas disposições. A oposição entre ambos os lados do coração foi prevista e desejada pelo

Criador. Se Ele formou o homem desta maneira, foi para que dentro dele, dentro de

seu coração, pudessem habitar duas "criaturas", denominadas a boa e a má inclinação. Na verdade, no Livro do Gênesis, a palavra hebraica que indica a criação do

homem, e mais precisamente sua "formação", é obtida com uma duplicação do lud, a primeira letra de sua raiz.

Esta letra é a menor e a mais concentrada de todas as letras do alfabeto hebraico, que serviu para escrever a Torá e criar o mundo. O Iud é um único ponto que emerge do nada e é condensado; ele revela o

primeiro pensamento, a intenção original do Criador, que presidiu à criação dos "mundos superiores" e do "mundo vindouro", que é a meta "deste

mundo (humano)". A letra lud é "o princípio e o fundamento do mundo".

É por isso que a letra lud, a primeira das "Quatro Letras" que compõem o Nome de D'us, é também a primeira das cinco letras que compõem o nome ‘Iehudá’ , que contém "Quatro Letras" que formam o Nome divino.

Iehudá é aquele que "dá graças ao Senhor". Ele é um símbolo e uma descrição do judeu, o Iud, o Yid [Judeu em íidish.],

chamado a "celebrar D'us" neste mundo. O lud também personifica o Homem, que é convidado a reconhecer D'us e a servi-Lo.

"A letra lud é também o sinal da Aliança" entre o D'us de Israel e o povo de Israel.

Duas "criaturas" coexistem no coração do homem:

a "criatura que é boa" e a "criatura com mau potencial".

Os dois ietzarim, as duas "criaturas" simbolizadas pelo duplo lud, coexistem

no coração do homem. No lado "direito" do coração reside o ietzer tov, a "criatura que é boa", e no esquerdo o ietzer há-rá, a "criatura" com o potencial de tornar-se "má".

A última não é "perversa" em sua origem, mas é capaz de assim tornar-se, de "tender" para o mal, de mudar de lado e por fim passar para o outro

lado, o do mal. Devido à influência nociva que pode exercer sobre essa criatura, o homem pode corrompê-la e aviltar sua natureza originalmente boa ("tudo que D'us

fez era muito bom!") (Gênesis 1:31). Fascinado com as imagens que lhe chegam de fora e entusiasmado com as

exaltações que se seguem, o homem é levado a transformar este segundo ietzer numa "criatura" ativamente perversa, a ponto de ser cognominada "a criatura má", ietzer ha-rá (enquanto a "criatura que é boa" permanece o

que ela é intrinsecamente, em sua essência imutável, tov e não ha-tov: "boa", sem ser "a boa").

Assim, embora ambas sejam obras de D'us, o "Criador de Tudo", por causa da imprudência e leviandade do homem elas não vivem em harmonia.

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Elas se agitam, cada uma em sua própria "casa"; alvoroçam-se e brigam

pela ascendência que cada uma gostaria de ter sobre o homem. No conflito que ocorre entre esses dois adversários, o ietzer tov e o ietzer

ha-rá, no campo de batalha do coração humano, é o último que tem a iniciativa. O ietzer ha-rá desfere um violento golpe em sua luta contra o ietzer tov a

fim de silenciá-lo e assim obter um controle completo sobre o homem e fazer com ele o que quiser.

Ele deixa de ser o ietzer ha-rá e passa a ser simplesmente um ietzer, que "se apodera do homem" — itzró shel adam. De fato, o homem com freqüência sucumbe às paixões que o ietzer ha-rá, a

"má inclinação", desencadeia nele, inflamando seus instintos, prometendo-lhe todo tipo de deleite e prazer.

O ietzer ha-rá é muitas vezes bem-sucedido em seu esforço, pois é "mais velho" e mais experiente que o ietzer tov. O ietzer ha-rá está em ação "a partir do momento em que o homem entra

neste mundo", ocasião em que ele se identifica apenas com seus instintos, e continua a exercer pressão durante toda a adolescência.

O ietzer tov é mais jovem e não aparece efetivamente antes que o menino complete treze anos e a menina doze, quando passam a receber ajuda de

cima. Ele em geral é menos vociferante, menos apressado, menos veemente, mais calmo, mais moderado e mais "prudente" que seu inimigo "mais

velho". Este, apesar de ser "um rei velho e tolo", recorre a vários meios de

"sedução", a vários "ardis", a fim de dominar o homem com mais firmeza. Deste modo, para enganar o homem no que se refere às suas intenções, o ietzer ha-rá sugere que ele obedeça algumas Mitzvot, alguns preceitos da

Torá, e faça "boas ações", mas na realidade essas "boas ações" propostas pelo ietzer ha-rá escondem exatamente a mesma quantidade de incentivos

para a prática de ‘averot’, para a transgressão dos mandamentos da Torá, que haveria num grande número de "más ações". Um homem honesto e devoto que confia em seu ietzer tov com pouco

conhecimento dos "truques" do seu ietzer ha-rá, com freqüência cai nas armadilhas que lhe são preparadas pelo último e não consegue libertar-se,

a menos que, por sua vez, recorra a "ardis".

"Conhecimento" divino e "escolha" humana.

À custa de muito esforço, o homem pode conseguir "segurar o ietzer ha-rá

em suas mãos", tornar-se seu senhor. A questão é, como sairá ele "vitorioso" desta "batalha" sedutora e sediciosa, velada e manifesta, que seu "inimigo", o ietzer ha-rá, está travando no

terreno acidentado de seu coração? Consultando seus poderes de raciocínio e sua neshamá, sua "alma

espiritual", o homem recorre à "capacidade de escolha" que o Criador lhe concedeu. Esta dádiva divina permite ao homem, o único entre todas as outras

criaturas, escolher entre "a bênção e a maldição", entre "a vida e a morte" (a "morte" é o ietzer ha-rá), entre o bem e o mal, sabendo que D'us lhe

recomenda que "escolha a vida" (conforme Deuteronômio 30:19) ("a vida é a estrada que a Torá lhe mostra"), que "escolha o bem", aquilo que é

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verdadeiramente bom para o homem, a quem seu Criador, que o fez,

conhece melhor do que ele mesmo. Seguindo o conselho de sua inteligência, o homem está pronto para usar o

livre-arbítrio que lhe foi proporcionado, como medida excepcional, pelo Criador. Oferecendo-lhe esta dádiva preciosa, o Criador deseja ensinar ao homem o

que ele é, "fazê-lo saber" que ele é "criado à Sua imagem e semelhança" (Gênesis 1:26), que recebeu um poder imenso.

Embora este seja apenas um tênue "reflexo" de Sua Inteligência e Vontade absolutas, o homem é convidado a emulá-las dentro dos limites de seu potencial.

D'us desejava mostrar Seu "amor" pelo homem escolhendo-o desta maneira, não somente entre todas as outras criaturas deste mundo, mas

até mesmo entre aquelas de outros mundos que, como os anjos, não têm "poder para escolher". Assim como Ele fez na criação do mundo, o Criador pôs em execução, por

assim dizer, um Tzimtzum, uma "contração" dos Seus próprios poderes, a fim de aumentar os do homem.

Poder-se-ia dizer que Ele renunciou a uma parte de Suas prerrogativas como Senhor Todo-Poderoso do universo e transferiu-as para o homem.

É devido justamente a este fato que o homem recebeu o direito e o dever de determinar livremente sua própria conduta moral. D'us optou por limitar Sua Autoridade incomensurável em favor do homem,

sabendo ao mesmo tempo que o homem será tentado a rebelar-se contra Ele.

Contudo, pode-se supor que essa "liberdade de escolha" basicamente relativa, repleta de inúmeras conseqüências boas e más para o homem, não é tão determinante como se poderia esperar ou temer.

No entanto, a Torá a transforma no incentivo para a observância das Mitzvot; o Talmud e o Zohar também a consideram um incentivo para a

aplicação dos preceitos divinos, e Maimônides, médico e psicólogo, exalta seu poder e sobretudo sua importância vital na vida religiosa do homem. Mas deve-se reconhecer que este tão celebrado "poder de escolha", o

‘koach ha-bechirá’, é em grande medida condicionado pela disposição inata aparentemente imutável do homem e é obstruído por fronteiras físicas

aparentemente intransponíveis e, muitas vezes, por obstáculos sociais e políticos. Para dizer a verdade, diante da ‘Iediá’, o "Conhecimento" divino, a Bechirá,

o "poder de escolha" que o homem exerce ao agir, fica quase perdida na imensa vastidão do espaço e do tempo governada pela Inteligência e pela

Vontade divina. No entanto, continua sendo verdadeiro que por meio de seus atos, e até mesmo por meio de seus pensamentos e palavras, o homem pode exercer

uma boa ou má influência tanto sobre os mundos inferiores quanto sobre os superiores.

Esta capacidade que o homem tem de escolher como irá agir pode parecer insignificante perante a presciência e a onisciência de D'us, que ultrapassam em todos os aspectos o espaço reservado para a vida humana e o tempo

dividido, em benefício do homem, em passado, presente e futuro. (Uma divisão que, em relação ao homem, está até mesmo inscrita no Nome

de D'us, o Tetragrama.)

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O Conhecimento divino olha para o espaço infinito e abrange o tempo

infinito. Aos Seus olhos, desaparecem quaisquer fronteiras imaginadas no espaço e

no tempo; tudo é presente. Mas o campo de visão do homem é limitado. Ele é incapaz de ligar organicamente "as três durações do tempo — o

começo, o fim e o presente". O Gaon de Vilna, Rabi Eliahu, observa o quão paradoxal é o fato de o

presente, o ponto de encontro das duas correntes de passado e futuro, ser para o homem "justamente o momento presente, no qual ele deve distinguir entre o bem e o mal e escolher entre eles".

Enquanto para D'us o presente é onipresença e eternidade, para o homem ele é o instante, o "hoje"; porém, como é decisivo para aquilo que o homem

deve "fazer"!

A antinomia entre a onisciência divina e

a escolha humana é um mistério que a razão humana não pode desvendar.

Como se pode explicar a contradição que a nossa razão observa entre a

Iediá e a Bechirá, o "Conhecimento" de D'us e a "Livre Escolha" do homem; entre a presciência e a onisciência de D'us e o "poder de escolha" do homem; entre o que é chamado de Providência Divina e a liberdade

humana? Esta aparente contradição foi apresentada sucintamente pelos Sábios de

Israel, que afirmam, nas mesmas frases, que "tudo é previsto" por D'us e, no entanto, "é concedida permissão" ao homem para agir com liberdade; que "tudo está aberto" diante de D'us e, no entanto, "o que o homem faz,

ele o faz de acordo com sua própria inteligência"; que "tudo está nas mãos de D'us, exceto o temor aos Céus".

Além disto, embora tal contradição seja considerada pelos Sábios um axioma de sua fé em D'us, esta antinomia entre Iediá e Bechirá permanece inexplicável, um mistério não acessível à razão humana, um fato sobre o

qual os filósofos e os místicos judeus estão plenamente de acordo. Essa contradição na aparência insolúvel é uma daquelas coisas que, nas

palavras de Maimônides, "colocam a mente humana diante de portas cerradas". Maimônides, o racionalista, como os místicos, convence-nos de que o

homem não é capaz de compreender, ou de captar, o Conhecimento de D'us.

O Conhecimento Dele é diferente do nosso conhecimento. O Seu Conhecimento e Ele são um; o nosso tem de ser relativo a alguma coisa que se encontra fora dele mesmo.

A Inteligência e a Vontade de D'us não se distinguem Dele próprio; nossa inteligência e nossa vontade (a primeira condicionada por nossa capacidade

de aplicá-la e a segunda por nossa capacidade de satisfazê-la) têm por objeto algo que está fora de nós, do que elas em geral são dependentes. Não obstante, nossa inteligência e nossa vontade devem ser ancoradas e

satisfeitas na Inteligência e na Vontade de D'us. Iediá e Bechirá, tanto isoladamente como em sua relação mútua, devem

portanto ser vistas como um mistério.

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"Elas fazem parte dos fundamentos da Torá", escreveu Rabi Tzvi Elimelech

de Dinow, "apesar de estarem aparentemente em oposição. Nossa fé deveria nos capacitar a conhecer a verdade dessas duas noções

contraditórias, pois a razão humana não pode entendê-las. Elas estão unificadas no poder de Seu Santo Nome, abençoado seja Ele. Somente Ele, seu Gerador, é capaz de justificá-las, e somente Ele sabe como essas duas

realidades coexistem, pois só Ele sabe como todas as coisas subsistem."

Nossos pensamentos são deficientes, "diferentemente dos Seus Pensamentos", que são perfeitos (conforme Isaías 55:8). Ao tratar desta difícil questão, o Zohar busca apoio num versículo de

Eclesiastes (3:11), que na sua opinião resume as idéias apresentadas sobre esse assunto: "Tudo Ele fez bem a seu tempo; também colocou o mundo

(pôs a idéia de eternidade) no coração do homem; ainda assim, o homem não pode compreender a obra que D'us fez do começo ao fim". Houve, porém, aqueles que D'us, em Sua bondade, julgou dignos de

"compreender a Sua obra do começo ao fim". Os Sábios de Israel declaram que o "Santo, abençoado seja Ele, mostrou a

Adão e a Moisés todas as gerações subseqüentes e aqueles que as guiariam"; além disto, Ele mostrou a Moisés "tudo que foi e que será".

A razão humana comum é incapaz de entender como a Iediá e a Bechirá podem ser reconciliadas. As duas idéias não podem nem mesmo ser comparadas.

Em sua essência, a Iediá é totalmente inacessível à razão humana; em sua profundidade, a Bechirá é apenas em parte acessível à razão humana.

Rabi Isaac Luria, o Ari ha-Kadosh, afirma que a razão humana é completamente impotente para perceber a Iediá, que precedeu até mesmo a criação deste mundo.

A nossa razão é em si mesma mais uma criação de D'us colocada neste mundo, sendo portanto incapaz de saber "o que está acima e abaixo deste

mundo, o que havia antes de sua criação e o que haverá depois que ele deixar de existir". Nossa razão foi criada, assim como o espaço e o tempo, no âmbito dos

quais opera a razão. Como eles, ela é restrita, e só pode atuar dentro deles.

Quanto à relação que une a Iediá, que existia anteriormente à Criação, e a Bechirá, que é deste mundo — como pode nossa razão apreender essa relação, se ela não pode determinar nem mesmo sua própria dimensão ou

sua própria manifestação, a que denominamos "livre-arbítrio"? Afora sua condição de criatura, a razão está presa à matéria que constitui

nosso corpo e, sobretudo, depende dela. Ela não pode se desvincular a fim de funcionar com total liberdade; não pode livrar-se da matéria opaca do nosso corpo, que obscurece sua visão e

falseia seu julgamento.

A criação divina continua na procriação humana. A "circuncisão da carne" e a "circuncisão do coração".

De acordo com o Sefer letzirá, há uma afinidade, à primeira vista surpreendente, entre "duas alianças" que D'us estabeleceu com os judeus:

o Berit ha-Maor, a "Aliança da Carne", e o Berit ha-Lashon, a "Aliança da Língua".

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A Aliança da Carne é inscrita no corpo do judeu pela milá, a "circuncisão";

ela é inscrita naquela parte do corpo em que o homem transmite vida. É por isso que o berit é chamado de iessod, "fundamento".

Como "símbolo da Aliança" entre D'us e o povo de Israel, a circuncisão exige do judeu que ele "guarde a Aliança", que ele "cuide da sagrada aliança" — shemirat ha-berit — sobretudo durante o próprio ato da

procriação. A transmissão de vida tem por objetivo principal a avodá, o "serviço" a

D'us, e na verdade, para que D'us possa ser servido na terra para sempre, a terra deve ser povoada por seres humanos que proclamarão a Soberania do Criador.

Se o homem "trair" ou "negar" esta "Sagrada Aliança", sua procriação será considerada "estéril", como a terra onde, quando D'us não é adorado, se

cultiva em vão. A criação divina continua na procriação humana, sempre com o mesmo objetivo, fazer com que o Criador e Sua Vontade sejam reconhecidos, como

está expresso na Torá e nas Mitzvot. É por isto que o Talmud e o Zohar declaram ambos que "se a Mitzvá da milá

— circuncisão — não tivesse sido prevista desde antes da criação do mundo, os céus e a terra não poderiam ter continuado a existir".

Abraão, que foi o primeiro a compreender a criação do mundo, iniciando o processo para sua conclusão, foi também o primeiro a receber a ordem divina da circuncisão.

Este mandamento que ele recebeu foi precedido pelo convite que D'us lhe fez para "andar em Sua presença" (Gênesis 17:1).

Abraão foi assim o primeiro a "proclamar" D'us ao mundo. Seus descendentes, os filhos de Israel, que cumprem com alegria a Mitzvá sacrifical da circuncisão, são igualmente convidados a "santificar o Nome"

de D'us no mundo, a torná-Lo amado pelo amor que dedicam a D'us, o qual deve ser provado por sua conduta aqui embaixo.

Sua vida neste mundo será um exemplo para outros na medida em que eles cumpram com alegria todas as Mitzvot da Torá, assim como a Mitzvá fundamental da milá.

De fato, o Talmud e o Zohar declaram que a Mitzvá da milá é tão importante que é equivalente a todas as Mitzvot da Torá.

"O berit milá é ele próprio chamado, concisamente, de `Torá'." O mundo que D'us criou, Ele "o criou para Sua Glória" (conforme Isaías 43:7), para que a Sua "Glória pudesse preencher o mundo" (conforme

Isaías 6:3); para que os homens pudessem entoar Seus louvores aqui; para que "Israel pudesse cantar para a Glória de D'us aqui" (conforme Salmos

66:2). É com este fim em vista que os filhos de Israel nascem, e é para glorificar D'us que a procriação humana flui da criação divina e não deve ser

dissociada dela. É por isto que "o Santo, abençoado seja Ele" declara que Ele é "um sócio do

pai e da mãe" que geram a criança. A criança está destinada a "honrar D'us, seu pai e sua mãe"; ao mesmo tempo, pai, mãe e filho são todos "obrigados a colaborar na glorificação do

seu Criador". Além disto, o filho está destinado a continuar e a expandir a avodá, o

"serviço" a D'us.

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Agora, o judeu deve servir a D'us com todo o seu ser, em sua unidade

psicossomática, ou seja, com um "corpo santo", em sua totalidade, e uma alma reta, um "espírito santo".

Para realizar a avodá, certas virtudes são necessárias, e a milá é a condição indispensável para a aquisição dessas virtudes. A milá é um ato que contribui para a higiene corporal; o objetivo da

"circuncisão da carne" é proteger a saúde e ao mesmo tempo "enfraquecer a paixão do homem"; mas a milá é também um ato que conduz à higiene

espiritual. A "circuncisão do coração" (conforme Deuteronômio 10:16) aprofundará a devoção do homem a D'us.

Por intermédio da milá, o pai faz com que o excesso supérfluo de carne seja "extirpado" de seu filho.

Ao mesmo tempo, ela é uma espécie de operação moral, pois ele quebra a "casca" que poderia bloquear o acesso à futura intimidade espiritual de seu filho, que está destinado a executar a "circuncisão de seu próprio coração",

"a purificação de seu próprio coração", assim "abrindo seu coração" para D'us, para os seus semelhantes, e para o mundo como um todo.

Com a milá, é removida uma parte "excedente" do corpo humano que na realidade constitui uma "falta".

Este "excedente" foi desejado pelo Criador para que, com sua remoção, o homem pudesse ter o mérito de "fazer a si mesmo", de "reparar" ou concluir a si mesmo, tornando-se assim aquilo que D'us exigiu de Abraão

antes de mandá-lo circuncidar-se, a saber, ‘tamini’,"perfeito" , inteiro. A palavra ‘tamim’ está no plural, pois a "integridade" que a milá confere ao

judeu é tanto física como espiritual.

O casal celebra em condição de igualdade dentro

do seu santuário, dentro do seu lar familiar.

É ordenado ao judeu que esteja puro quando "se santifica durante seu serviço conjugal", unindo-se intimamente com sua esposa com "afeição" e "respeito".

Se estiverem de fato conscientes da responsabilidade que recai sobre eles em sua vida marital, ambos os cônjuges merecem o título que o Zohar lhes

confere quando os chama de Cohanim, "sacerdotes", que oficiam em condição de igualdade em seu santuário, seu lar familiar. Tal "sacerdócio" foi concebido pelo Ramban, que, como outros cabalistas,

compôs uma oração para o casal recitar antes de se unir com pureza de intenção e de pensamento.

Esta terá uma influência benéfica sobre os filhos que eles gerarem; eles estarão aptos a se tornarem verdadeiros ‘ovdei ha-Shem’, fiéis "servos do Nome", talvez até mesmo talmidei chachamim, "discípulos dos sábios", que

consagram sua vida ao estudo da Torá; e possivelmente ainda mais, a se tornarem verdadeiros Tzadikim, pessoas "retas", que por sua retidão

"asseguram a existência do mundo". A prece do Ramban, assim como outras similares, contém alguns hinos comoventes à Glória de D'us, o Criador, a Vida da Vida, o Rei da Paz; mas

também contém poemas sublimes dedicados à beleza da vida conjugal, ao amor e à paz entre marido e mulher.

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É uma verdadeira celebração do amor humano, que provém do amor divino

e a ele retorna, uma celebração envolta por um sopro do Cântico dos Cânticos.

Assim predisposta por um desejo comum de "sagração", a união dos cônjuges tem o valor de um ato de santidade.

A mulher "santifica-se" por meio da imersão na água da Mikvá.

A água é um símbolo de vida, de renovação. A milá, um ato ritual com duplo significado para o homem judeu — material

na "circuncisão da carne" e espiritual na "circuncisão do coração" — corresponde, no caso das mulheres judias, ao ato ritual da imersão na

Mikvá, o banho ritual, também duplamente significativo, por ser um ato de "purificação" tanto física e como espiritual. A mulher "santifica-se" com a imersão "purificadora" na água da Mikvá, o

banho ritual. Ela em geral o faz após o período menstrual e após o parto.

Assim, ela se "purifica" e se "santifica" na água, que é o elemento primordial da criação de D'us: "No princípio" o mundo era apenas "água na

água", "e o sopro de D'us movia-se sobre a superfície das águas" (Gênesis 1:2). A água é um símbolo de vida; é um pré-requisito da vida.

A Mikvá representa as águas originais. É por isso que um pouco de água da fonte é introduzida no fundo da

banheira da Mikvá. Pois a água da Mikvá não pode ser apenas água "tirada de um poço" pelo homem, ou seja, água artificial.

A água da fonte mantém sua propriedade original de pureza e a transmite à água da maior parte da Mikvá.

Assim, uma mulher que imerge "todo o seu corpo uma vez" na água da Mikvá fica submersa na "água viva" original da criação [O valor numérico da palavra hebraica Mikvá é 151, e se lhe adicionarmos 7, que representa os

sete dias da Criação, o resultado é 158, o valor numérico das palavras hebraicas Maim Chaim, "águas vivas"] "como se estivesse vivendo o

princípio da Criação", quando tudo era "água na água"; "como se tivesse voltado à sua origem"; "como se tivesse nascido naquele mesmo instante"; "como se tivesse se ligado naquele instante à Fonte da Vida, ao Próprio

Criador". Os estados de "pureza" e "impureza" pertencem ao universo moral dos

seres humanos. A água simboliza a "benevolência" e o "amor" do Criador, que "edificou o mundo sobre a bondade" (Salmos 89:3).

Ela é um indício da graça divina, que — assim como a Torá — "desce aqui para baixo" e "purifica", como faz a água pura.

A mulher judia recebe das águas purificadoras um sinal de "alegria", de "salvação", "a promessa de renovação mensal". Este sinal, "uma fonte de vida nova", ela leva ao seu marido, "como um

jovem noiva ao seu esposo". [Como o calendário feminino está ligado ao ciclo mensal, ao "tempo lunar" — sendo a lua, similarmente, o símbolo da

renovação do povo de Israel —diz a tradição que a mulher judia deve

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guardar o primeiro dia do novo mês, Rosh Chodesh, de uma maneira quase

festiva.] A imersão na água da Mikvá não deve ser considerada uma espécie de

prática mágica pela qual a pessoa poderia se livrar de um estado de "impureza".

A impureza não provém de um mundo supranatural. Os estados de "pureza" e "impureza"

pertencem ao universo moral dos seres humanos. O estado fisiológico temporário de "impureza" de uma mulher é resultado

de uma função orgânica natural. Contudo, este estado periódico, por sua própria natureza, exerce uma

influência perturbadora sobre o ser psicossomático da mulher. O término deste estado, portanto, é marcado por um ato tanto material como espiritual, que ela executa sobre si mesma e dentro de si mesma, a

saber, a imersão no banho da Mikvá. A água da Mikvá exerce uma influência vivificante e renovadora sobre ela,

mas somente se ela imergir com o intuito de demonstrar e realizar a purificação tanto de seu corpo quanto de sua alma.

Com esta imersão, ela se torna purificada tanto no plano físico quanto no espiritual. Maimônides chamou a atenção para essa dupla função da Mikvá numa

meditação que incluiu em sua obra de codificação, a Mishnê Torá. Ele escreveu: "Embora nada esteja mudado em seu corpo, ela está pura,

ela que deseja purificar sua alma das impurezas psíquicas e espirituais, tais como os maus pensamentos, decidindo em seu coração afastar-se delas por meio da imersão de sua alma nas águas do conhecimento, ‘mei ha-daat’.

Sobre ela, D'us disse pela boca do profeta Ezequiel: 'Eu derramarei sobre vós água limpa, e sereis purificados de tudo que vos avilta; purificar-vos-ei

da mácula de todos os vossos ídolos' (36:25)".

Águas originais e águas messiânicas.

Os mestres da Cabalá continuaram e ampliaram esta meditação com a qual

o ilustre codificador e filósofo concluiu suas Hilchot Mikvaot, suas "Leis das Mikvaot". Eles viam claramente expressa nelas a concepção da Torá das leis sobre

"imersão". [A quantidade de água da fonte necessária para uma Mikvá é 40 seá (uma seá equivale a 7,3 litros). O número 40 é uma lembrança, entre

outras coisas, dos quarenta dias e noites que Moisés passou no Monte Sinai para receber as segundas Tábuas da Lei, que continham o Decálogo; pelo número de suas letras, o Decálogo simboliza a totalidade das Mitzvot da

Torá.] Os Sábios de Israel afirmam que a Torá é uma "Torá de Vida"; ela mostra

ao homem (considerado em sua unidade psicossomática) o caminho que ele deve seguir durante sua vida: "A Torá é comparada à água".

O homem deve imergir no estudo da Torá da mesma forma que o faria nas águas vivificantes da Mikvá.

Por meio das Mitzvot, a Torá elucida a obra do Criador.

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Ele criou o homem, o milagre supremo, e, como observou o ReMá, Ele foi

‘mafli laassot’, "fez maravilhas", ao unir o corpo e a alma numa unidade misteriosa que chamamos de vida, a qual somos obrigados a preservar e

transmitir em sua pureza. O homem é convidado a ligar esta vida ao "começo do Tempo", da Criação, quando o mundo era "água na água" e "o espírito do Messias movia-se

sobre as águas", e a conduzi-la até o "fim do tempo", os dias messiânicos, quando "a terra estará cheia do conhecimento de D'us, como as águas

cobrem o mar" (Isaías 11:9). Ao cumprir as Mitzvot com uma intenção pura, o Homem, Israel, também será considerado digno de reunir o tempo original com a era messiânica,

uma era de "restauração" e "perfeição". Esta unificação das eras é o objetivo predeterminado da criação do mundo e

da história da humanidade. Portanto, o desejo do Criador no despertar da criação era que o homem se esforçasse para cumprir essa tarefa de unificação e fosse por fim bem-

sucedido nela. No caminho que leva àqueles tempos em que a vida será vivida com uma

pureza "tal como a da água", a transmissão da vida deve continuar por meio da ‘taharat ha-mishpachá’, a "pureza da família".

Cada cônjuge deve arcar com sua responsabilidade no casamento e compartilhá-la com o parceiro. Não é, portanto, surpreendente o fato de a Mikvá ocupar posição tão

importante na vida de constante "purificação" e "santificação" do Tzadik, o "homem justo", que é ‘iessod olam’ (Provérbios 10:25), "o alicerce sobre o

qual o mundo está baseado", assim como da vida do chassid, o "homem devoto", aquele que constantemente dá provas de seu "amor", seu chessed, a "D'us e aos homens".

Para o Tzadik e o chassid, as águas da Mikvá constituem um ambiente natural, apropriado para a Devekut, a devoção ao Criador.

A "Aliança da Carne" e a "Aliança da Língua":

santidade do corpo e santidade do espírito.

De acordo com o Sefer letzirá, como dissemos, D'us estabeleceu duas alianças com os judeus, o Berit ha-Maor, a "Aliança da Carne", e o Berit ha-

Lashon, a "Aliança da Língua". As duas estão intimamente ligadas e revelam a criação de D'us, ao mesmo tempo dual e única: uma fusão de natureza e espírito.

Essas alianças refletem-se na estrutura dual e única do homem — um ser individual, feito de um corpo e de uma alma que permeiam um ao outro.

Em diferentes graus, o espírito reside em todas as coisas, e toda matéria sustenta o espírito em diferentes graus. É a "palavra" que liga o mundo material ao mundo espiritual.

Em D'us, a palavra já é, em si mesma, um ato concreto. "Pela Palavra do Senhor foram feitos os céus [...j" (Salmos 33:6), "pois Ele

mandou, e foram criados [...]" (Salmos 148:5). Também entre os homens a palavra tem uma conotação ao mesmo tempo espiritual e concreta.

A "palavra" procura ser cumprida num ato físico: "Aquilo que sair dos teus lábios, tu observarás e farás..." (Deuteronômio 23:24).

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O davar, a "palavra" abstrata, deve ser transformado num davar, um "ato

físico". O vínculo interno entre a Palavra divina que criou o mundo material e a

Palavra divina que criou o mundo espiritual, que não são nada mais que uma mesma Palavra, é esclarecido pela Tradição, que diz: "O mundo foi criado por Dez Enunciados" de D'us, e "a Torá foi revelada no Sinai por Dez

Enunciados" de D'us. Essas duas revelações divinas complementam-se e estão incorporadas uma

na outra; elas se influenciam e se identificam entre si em seu Autor comum. Sendo o número dez um símbolo de santidade, esses Dez Enunciados, os primeiros e os últimos, unem-se num único Enunciado sagrado.

Eles se manifestam na natureza e podem ser ouvidos na Torá incitando o homem a um esforço para emular D'us, o único que é santo: "Sede santos,

porque Eu sou santo, Eu, o Senhor vosso D'us" (Levítico 19:2). Sua santidade absoluta, muito acima de nós, inspira e favorece a santidade dentro de nós.

No homem, essa santidade envolve tanto a iluminação espiritual do corpo como a consumação física do espírito.

Portanto, a santidade do corpo é sustentada pela do espírito, e a santidade do espírito é intensificada e fortalecida pela do corpo.

Esta é a base para o forte vínculo que une as duas alianças que D'us fez com o judeu: a "Aliança da Carne" e a "Aliança da Língua". A primeira é inscrita naquela parte do corpo humano a partir da qual a vida

física é transmitida; a segunda relaciona-se àquela parte do corpo pela qual a vida espiritual é comunicada.

A meta comum das duas alianças é unir os seres humanos. Esta união deve ocorrer na presença de D'us, o Senhor, que está "perto de todos os que O invocam verdadeiramente" (Salmos 145:18), com

sinceridade, dentro de uma aura de santidade que é desejada pelo Santo, que faz do homem um participante de Sua santidade quando ele a busca

com diligência e a recebe com pureza. Quando o homem negligencia a busca dessa "santidade", desse estado de "pureza", mantendo-se afastado dela, ou até mesmo rejeitando-a por

completo, então a "impureza" o invade. O judeu, parceiro de D'us nessa dupla aliança, é incitado a atender a uma

dupla exigência, expressa com clareza na palavra shemirá, "vigilância". Ele deve "guardar a aliança" — a primeira exigência, expressa nas palavras ‘shemirat ha-berit’ — penetrando no significado mais profundo da

circuncisão; e deve "cuidar de sua língua" — a segunda exigência, chamada de ‘shemirat ha-lashon’ — sondando o espírito essencial dessa expressão.

O judeu deve estar consciente das graves conseqüências da rejeição de qualquer uma dessas alianças. A rejeição da "Aliança da Carne" pode ter conseqüências "irreparáveis" para

os descendentes do judeu; a rejeição da "Aliança da Língua" pode ter conseqüências "fatais" para as relações entre os seres humanos.

Mitzvá e averá.

Tudo depende da "direção" que o homem

imprime a seus atos e palavras.

Por meio do uso "ponderado" e prudente de sua língua e de seu corpo, o homem pode ser elevado a grandes alturas de virtude.

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Por outro lado, seu uso irresponsável, irrefletido ou descomedido pode

arrastá-lo à desgraça e ao vício. Tudo depende da "direção" que ele impõe aos seus atos e palavras; se ele

os examina e controla, "orientando-os" para o bem revelado na Torá, está cumprindo a Vontade de D'us, cumprindo com isto uma Mitzvá, que "acha graça [...] aos olhos de D'us e dos homens" (Provérbios 3:4).

Mas se, arrastado por seus atos e palavras, tendo perdido todo controle sobre eles, fizer com que "errem o alvo" indicado na Torá, ele estará

"transgredindo" a Vontade de D'us, cometendo assim uma averá. Não tendo conseguido dar a palavras e atos sua verdadeira importância, seu significado profundo, ele se tornou "desorientado", fracassou em sua

tarefa como um "servo de D'us", cometeu um chet, um "pecado", para com D'us e uma "falta" para com o homem por não ter conseguido alcançar o

verdadeiro objetivo.

Confiança no homem e dúvidas do homem.

É verdade que no domínio do pensamento, no qual o homem aplica sua

inteligência, assim como no domínio da ação, no qual exerce sua vontade, ele não é de fato "livre" no exercício do livre-arbítrio.

Em todos os momentos, ele é rigorosamente condicionado, sobretudo por fatores biológicos; nem seus pensamentos nem seus atos jamais serão completamente puros ou perfeitos.

Apesar disso, os Sábios de Israel sempre depositaram confiança no homem, embora ao mesmo tempo lhe recomendem que "não confie em si mesmo

até o dia de sua morte". Eles acreditam na capacidade do homem de conservar sua inteligência honesta e sua vontade inabalável, ainda que os "homens retos" duvidem

dessa capacidade que possuem e até mesmo a temam, pois, dizem para si mesmos, "talvez" eles não se mostrem dignos dela; "talvez" não a usem

com eficácia. Porém, a Cabalá considera o homem capaz de elevar-se ao nível da sabedoria: ele pode sempre refletir e escolher, isto é, pode comparar os

fatos conhecidos, avaliar as situações que tem diante de si e, por fim, superando sua indecisão, optar e agir de acordo com sua escolha.

Para o homem da Cabalá, o homem de Sabedoria, isto significa agir em conformidade com as exigências da Torá e com as orientações proporcionadas pelas Mitzvot.

Mas é claro que o homem não escolhe de uma vez por todas, sendo atormentado por contradições que o puxam incessantemente para todas as

"direções". Esta é uma das características, na verdade uma das contradições de sua vida, da própria vida.

O homem, sendo unificad em sua estrutura,

deve reconciliar as contradições que o animam. O homem visivelmente encarna no grau mais elevado, e no nível da

consciência, o princípio gravado pelo Criador no âmago de Sua Criação, a saber, o princípio da contradição entre os elementos fundamentais nos

quais se baseia a natureza.

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Este princípio é um sinal da complementaridade dos elementos da Criação,

que resulta de sua unidade original e conduz a sua unidade viva. Assim, fogo e água, ‘esh’ e ‘maim’, combinam-se para formar shamaim, os

"céus"; de forma semelhante, o dia e a noite compõem o tempo, e o céu e a terra formam o nosso mundo. Estes são todos elementos e manifestações aparentemente opostos, mas,

na realidade, eles se combinam para tornar mais perceptíveis sua unidade original e unidade final.

As contradições que animam o homem são mais aparentes nele do que em todas as outras criaturas vivas, pois só ele se defronta com problemas de moralidade, e ele é único ser superior capaz de atos de ordem moral.

Essas confrontações o obrigam a favorecer um dos diversos elementos opostos que estão presentes em seu interior.

Aqueles que inspiram o homem mostram sua unidade intrínseca. De acordo com o desígnio de D'us, eles se destinam acima de tudo a desenvolver no homem o exercício do livre-arbítrio e a lançar luz sobre sua

unidade original e final — em virtude da inteligência e boa vontade do homem e graças à consciência de sua vocação no universo.

Esta unidade, inscrita na Criação desde o começo, deve ser revelada quando a Criação estiver concluída.

A unidade foi rompida, de forma aparente e temporária, para que o homem possa restabelecê-la em todo o seu esplendor. É com este objetivo em vista que o homem, em sua estrutura integral, tem

de reconciliar os dois elementos opostos dentro dele, que costumam ser chamados de "corpo" e "alma" (e, na sua vida psicossomática, os dois

componentes mutuamente hostis da própria alma: a "alma vegetativa" e a "alma espiritual"). O homem deve auxiliar estes dois elementos a se interpenetrarem e

servirem mutuamente, revelando assim sua unidade ativa e criativa. Ele é exortado a transmitir ao corpo a sensibilidade espiritual da alma, e à

alma a força física do corpo. (Da mesma forma, ele tem de transmitir à alma espiritual o entusiasmo febril da alma vegetativa, e à última a serenidade da alma espiritual.)

Este estado de harmonia só será plenamente atingido nos tempos messiânicos.

Não obstante, o homem deve se esforçar para estabelecer esta harmonia como se ela pudesse ser alcançada durante sua vida. Assim, dia após dia ele lutará, primeiro para reconciliar os "inimigos" que se

defrontam em seu interior, e depois para levá-los a ver suas respectivas forças, unindo intimamente os fatores espirituais e materiais que

personificam. A partir de então, essas duas entidades não mais estarão separadas uma da outra por suas diferenças, mas trabalharão em conjunto.

Estarão lutando para alcançar a unidade, como Ele desejava em Seu projeto para elas: servi-Lo juntas em paz e harmonia, servir a Ele, o seu Criador,

"cujo Nome é Paz". Assim, desde o começo, o Criador colocou o homem num estado de tensão e dilema.

Lançou-o de propósito numa situação instável e incerta a fim de oferecer-lhe a chance, ou melhor, o privilégio, de introduzir nela uma estabilidade

viva.

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Assim, o homem terá a alegria e a honra de vencer este estado de

instabilidade, mas sem eliminá-lo. Seu sucesso resultará do exercício constante de seu livre-arbítrio, auxiliado

por sua inteligência e energia, e apoiado pelo Criador, a quem o homem reza para que lhe conceda a ajuda que ele necessita para prosseguir nesta estrada difícil.

De fato, "O pecado — o mau impulso que leva ao pecado — está esperando à porta do homem, tentando possuí-lo, mas o homem deve conseguir

dominá-lo..." (conforme Gênesis 4:7).

A vida do homem é uma prova.

O Criador fortalece o poder do ietzer ha-rá, aquela "criatura" espiritual no

homem que é capaz de despertar e intensificar suas inclinações para o mal, para as sombras, implícita em "tudo que é contrário àquilo que o Próprio D'us criou".

Foi o Criador que deu ao Ietzer a habilidade necessária para voltar a atacar o homem "todos os dias", para "visitá-lo" (uma visita que o letzer, como

convidado, pode prolongar até "tornar-se um membro da casa", se for bem recebido e bem-vindo).

Por meio de Seu "enviado", este Ietzer provocativo e irritante, o Criador submete o homem, Sua criatura privilegiada, a repetidos testes, fazendo de sua vida uma "prova".

É este o destino reservado para Seu povo escolhido, do qual Ele Se orgulha. Ele o testa constantemente, de modo que toda a sua vida torna-se uma

"prova", um nissaion (como a de Abraão, como indivíduo, e como a de Israel, coletivamente). Na prova, Seus eleitos ficam mais fortes, distinguindo-se por sua força de

caráter, de maneira que D'us os apresenta aos homens e às nações como um exemplo de tenacidade, perseverança e lealdade à Sua Lei.

Assim, o Ietzer ataca de preferência homens "grandiosos". Ele "cresce proporcionalmente à sua "grandiosidade"; provoca-os com uma insistência peculiar.

Assedia a "cidadela" deles com violência adicional, já que esta oferece maior resistência do que as "casas" dos outros homens, que logo são

destruídas sob seus ataques. O Ietzer é "enviado" pelo Criador a fim de despertar o homem tanto quando ele está mergulhado num êxtase voluptuoso como quando se afunda numa

indolência sonolenta. De fato, D'us ama aqueles que, como Israel, "lutam e vencem" (Gênesis

32:29). Ele preferiria não ver os "perversos" se submeterem ao ietzer ha-rá sem lutar.

Também não gosta de ver aqueles que, cansados de lutar com o Ietzer, se fecham completamente para ele, trancando o lado esquerdo de seu coração

para evitar que ele entre, repelindo assim seu ataque. Exaustos, eles afundam na apatia e tornam-se indiferentes às exigências "legítimas" de seus instintos.

Abandonam-se ao tédio dos "hábitos" repetitivos e insípidos e toleram uma existência invariavelmente monótona.

Rabi Menachem Mendel de Kotzk (século XIX), interpretando um versículo do Livro dos Juízes, afirma que D'us ama aqueles homens "justos" que se

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mantêm prontos a todo instante, postados "em seus portões" para de novo

travar batalha contra o Ietzer e, em vez de se entregarem a um "processo de envelhecimento" inativo e estéril, conservam seu "frescor juvenil".

Na verdade, "os justos não têm descanso neste mundo, nem no mundo vindouro; eles passam de um sucesso a outro", pois o sucesso nunca é completo, absoluto e definitivo, nem mesmo quando "no mundo vindouro,

os justos estiverem sentados e saboreando o esplendor da Shechiná", da Presença Divina.

No entanto, o austero Rabi de Kotzk, como outros Tzadikim, "homens justos", não desprezavam os benefícios de uma retirada. Pelo contrário, em certo período de suas vidas, eles apreciaram

particularmente a hitbodedut, uma "solidão" absoluta com D'us. Mantinham-se isolados, livres de toda tentação, baixando os olhos, procurando proteger "seus corações e seus olhos" (conforme Números 15:39) dos "muitos olhos" do ietzer ha-rá, que seguem o homem ao menor movimento.

Não obstante, eles reconheciam e admiravam a coragem daqueles Tzadikim que, voluntária e abertamente, enfrentam sem temor o "teste" e ousam

"provocar o ietzer ha-rá em sua residência", confrontá-lo e subjugá-lo.

O ascetismo é considerado um estilo de vida moderado. O homem transforma o que é físico e material — a obra de D'us —

em algo que se torna espiritual, no reflexo de D'us.

O Rabi de Kotzk e, pouco antes dele, o Gaon de Vilna (século XVIII)

preferiram não enfrentar o ietzer ha-rã, mas manter-se afastados das "futilidades deste mundo", dos apetites insaciáveis ("o homem deixa este mundo sem ter satisfeito metade de suas paixões!"), e dos tormentos que

eles trazem consigo ("o homem nasce para se aborrecer") (Jó 5:7). No entanto, usando de uma cautela tão extrema, eles não estavam

tentando garantir uma vida tranqüila para si mesmos. Pelo contrário, seus anos de contemplação e meditação e, sobretudo, de estudo profundo da Torá — estudo que os ajudava a penetrar os seus

mistérios, a observar com escrúpulo as Mitzvot e a compreender seu significado interior — foram anos que se passaram numa calma externa,

acompanhada de uma grande tensão interna e marcada por ardente intensidade espiritual. A Cabalá recomenda constantemente que D'us seja servido "com temor e

com amor" (conforme Deuteronômio 10:12); isto requer uma concentração de todas as forças do espírito, que não admite descanso.

A história judaica oferece inúmeros exemplos de "homens santos", tais como Rabi Iehudá ha-Nassi ("nosso santo mestre") (século II), Rabi Shimeon bar lochai (século II), Rabi lehuda he-Chassid ("o devoto") (século

XIII), Rabi Isaac Luria ("o santo Ari") (século XVI), Rabi Isaías Horowitz ("o santo Shelá") (século XVII), Rabi Chaim ben Atar ("o santo Or ha-Chaim")

(século XVIII), e muitos outros Tzadikim, "homens justos", pertencentes à escola chassídica de Rabi Israel Baal Shem Tov (século XVIII), que era ele mesmo inflexivelmente contrário a um ascetismo total e excessivo, o qual é

aliás desaprovado pela Torá. Na verdade, na perspectiva tanto da Torá escrita quanto da oral, o

ascetismo é concebido como um estilo de vida comedido e moderado que transforma os prazeres físicos e materiais num meio de "santificação".

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Assim, aquilo que é físico e material — a obra de D'us — é metamorfoseado

pelo homem naquilo que é espiritual — o reflexo de D'us. "Nada que D'us criou é em vão ou inútil."

Cada uma de Suas criações visíveis e cada uma de suas manifestações contém em si a espiritualidade que lhe dá vida e reflete suas "raízes" nas alturas, nos mundos superiores.

Uma "partícula", um grão, está escondido nas profundezas da criação de D'us, e é ordenado ao homem que o descubra e revele, e então o

desenvolva e o conduza ao seu objetivo, que é participar de um completo "serviço a D'us" material e espiritual. Para que o amor humano sobreviva, ele deve conduzir ao amor a D'us.

Portanto, as paixões que animam o homem contêm em seu âmago uma espiritualidade que espera ser descoberta por ele.

É essa espiritualidade, auxiliada pelo "recipiente" físico e material que a "envolve" e expressa, que o homem deve orientar para o amor a D'us, seu Autor.

Em outras palavras, as paixões humanas, que estão sendo momentaneamente realizadas no amor humano, devem ser conduzidas à

sua fonte em D'us, que é Amor, e cuja Vontade é que o homem participe deste mistério do amor.

Pois, se a paixão só se realiza na satisfação própria, no amor conforme o homem o entende, sem estar ligada ao amor a D'us, ela nada mais será do que um "mau amor", um "amor perdido", um "amor superficial", e não um

"amor duradouro", que leva ao amor a D'us. Todo desejo que nasce dentro de si deve ser considerado pelo homem à luz

deste anseio de cumprir a Vontade de D'us conforme expressa na Torá e nas Mitzvot. Nachmânides ensina que "todo amor despertado em nós deve ser dirigido

para o sujeito ou o objeto de uma Mitzvá" prescrita pela Torá. Também o Baal Shem Tov ensinou que, para o amor humano poder ter

estabilidade e valor, ele deve conduzir ao amor a D'us. O homem adquire, inevitavelmente, um conhecimento da alegria pura e benéfica tal como lhe é oferecida por D'us — que, por tê-lo feito, o conhece

e ama. Em conseqüência, o homem consegue transformar o que poderia ser uma

‘negá’, uma perigosa "ferida" resultante do mau uso do prazer, naquilo que deveria ser o objetivo da satisfação, a saber, ôneg, prazer no grau mais elevado de deleite, de êxtase, que o Criador deseja para o homem.

Essas duas palavras, ôneg e negá, são formadas pelas mesmas letras hebraicas.

Contudo, seu rearranjo e transformação dependem do mérito e das aspirações de cada indivíduo. Pois embora "Ele tenha criado o mundo para fazer bem a Suas criaturas",

"para dar-lhes alegria", ao mesmo tempo Ele encarrega o homem da tarefa de transmutar qualquer negá em ôneg permanente.

Compreendido e realizado desta maneira, o ôneg não é o "prazer" momentâneo que "voa embora como um sonho" (Jó 20:8), passa como uma sombra ou "se extingue" como uma chama_

Ele é luminoso e brilhante, refletindo o ôneg que envolve e preenche os mundos superiores.

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É um prazer duradouro numa alegria sem fim, pois esta alegria é uma

simchá shel Mitzvá, a "alegria de uma Mitzvá", a alegria que o judeu crente sente e experimenta toda vez que cumpre uma Mitzvá.

Assim, um ato físico, e sobretudo o "ato de amor" físico e "vital", realizado "com santidade", como ordenado por D'us, é chamado apenas de "Mitzvá". Do mesmo modo, o ato de Tzedaká, de "caridade e justiça", praticado por

amor ao semelhante à luz do amor de D'us, é chamado apenas de "Mitzvá". Ora, "uma Mitzvá dá origem a outra Mitzvá" (Avot 4:2) e assim por diante,

até que ela atinge e alimenta sua "raiz" nos mundos superiores; do alto, ela "dará brilho" e será uma fonte de bênçãos contínuas para aquele que a cumpre.

A alegria gerada pelo cumprimento

de uma Mitzvá é sempre nova. A "alegria diante de D'us", à medida

que se intensifica, torna-se "alegria em D'us".

"Alegrar-se diante de D'us" (Deuteronômio 12:18) não tem nada em

comum com os prazeres excitantes despertados pelos sentidos, pois estes são instantâneos mas fugazes, há muito desejados mas logo esgotados.

Tampouco tem a "alegria diante de D'us" (conforme Deuteronômio 12:18; 16:11) algo em comum com a "saciedade" proporcionada por tais prazeres; eles prazeres provocam tédio à medida que se multiplicam; seguem-se,

repetem-se e parecem-se uns com os outros, perdendo pelo caminho a novidade e o frescor devido aos efeitos do hábito, e por fim geram fastio.

Eclesiastes (2:2) pergunta sobre este tipo de prazer: "Que bem ele faz?". "Viver com alegria diante de D'us" é o reflexo de uma "nostalgia" de D'us, sentido até mesmo enquanto se reage a um prazer físico ou material.

Ela é desenvolvida num passado que se estende até um presente ansiosamente esperado, floresce no presente, e prossegue no futuro graças

a um desejo crescente e renovado, amadurecendo na "sede de D'us, do D'us vivo" (Salmos 42:3). Os Sábios de Israel dizem a respeito de tal alegria que é uma simchá shel

Mitzvá, uma alegria obtida por meio do cumprimento de uma Mitzvá. A "alegria diante de D'us" é sustentada pelo Ein-Sof, o "Infinito", que em

Sua bondade "todo dia renova as Obras Primordiais" no mundo criado por Ele. Esta alegria é alimentada por Aquele que todos os dias irradia da Torá que

Ele revelou. Assim, esta alegria é constante e sempre nova.

De fato, escreve o Gaon de Vilna, simchá, "alegria", é uma realidade continuamente renovada. À medida que se desenvolve, ela se transforma de uma alegria manifestada

"diante de D'us", sustentada e alimentada pelo Ein-Sof, numa alegria sentida "em D'us".

"Israel alegra-se Naquele que o fez" [Be-Ossav, literalmente "naqueles que o fizeram"; "aqueles" refere-se ao "duplo coração" do homem — levavchá (Deuteronômio 6:5), escrito com duplo Bet — no qual estão contidos os

bons e os maus impulsos, que devem ambos ser utilizados no serviço a D'us.] (Salmos 149:2) e "o Senhor alegra-se em Suas obras" (Salmos

104:31). Assim, a alegria torna-se seu ponto de encontro.

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Israel torna-se uma "morada" para a Shechiná, para a Presença Divina, e a

Shechiná torna-se uma "habitação" para Israel. Esta alegria desperta em Israel seu amor inato e "oculto" a D'us e

transforma-o num amor verdadeiro e ativo. Em D'us, a alegria está intimamente ligada a um amor verdadeiro e ativo por Israel, reconfirmando o amor por Ele prometido quando o escolheu para

ser o Seu povo. Esses dois amores convergentes, o humano e o divino, um ascendente e o

outro descendente, tentam abraçar-se em perfeita harmonia. Anseiam por se tornar um. A "Congregação de Israel" pode agora anunciar o Ichud ha-Shem, a

"unidade do Nome" de D'us, e pode efetuar um duplo Ichud, a união de D'us com Israel que, por assim dizer, "O torna D'us", e a união de Israel

com D'us, que "faz dele o Seu povo". O amor de D'us desce agora para confirmar a Israel que Ele o ama "com um amor eterno" (Jeremias 31:2) e que Ele "escolheu" o Seu povo "com amor"

(conforme Deuteronômio 7:7-8). De baixo, o amor de Israel a D'us responde: "E amarás o Senhor teu D'us

com toda a tua alma" (Deuteronômio 6:5) (a palavra "e" mostra que esta é a resposta que Israel está dando ao amor de D'us).

A reza ilumina toda ação cotidiana.

O amor de Israel a D'us se expressa acima de tudo pela reza; este é o primeiro "serviço" a D'us, pois é o "serviço do coração", um coração que

sente, compreende, deseja e pensa. Israel prepara-se com alegria para realizar este serviço de oração, reza com alegria e aceita alegremente as conseqüências deste serviço.

A própria preparação para a reza é em si mesma uma reza, e o tempo que se segue à oração é, mais uma vez, uma reza; assim, a "totalidade do dia"

é permeada pela oração. A reza torna-se uma realidade concreta e permanente, pois ela é a base e a fonte de todas as ações cotidianas; ilumina-as e lhes dá seu real valor, seu

verdadeiro sentido. Aquele que reza com sinceridade encontra-se portanto sempre em estado

de oração; ele fica absorto e é arrebatado por seu poder intrínseco. A verdadeira alegria experimentada antes, durante e depois da reza provém de uma humildade que é "alegre mas trêmula" (conforme Salmos 2:11) e

conduz à absoluta paz mental. Àquele que reza com sinceridade nada falta.

Ele "se regozija com seu quinhão" e saboreia o privilégio de "estar em pé diante de D'us". E se ele pede a D'us para satisfazer seus desejos espirituais ou até mesmo

materiais, o faz para demonstrar que não esqueceu que "tudo o que há no céu e na terra é Teu" (I Crônicas 29:11), que toda a existência depende

apenas Dele. Ele o faz para ser capaz de usar, a serviço de D'us, as gentilezas que Ele lhe fez com tanta generosidade.

De fato, a alegria gerada pela purificação espiritual e física, pela preparação para a prece, não poderia existir sem a humildade, pois aquele que reza diz

a si mesmo: "Quem sou eu, pobre, insignificante, miserável e efêmera criatura que sou, para ousar dirigir-me ao Senhor meu Criador? Por isso,

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com a prece real de David (Salmos 51:17) eu Lhe peço, acima de tudo:

'Abre os meus lábios para que a minha boca possa proclamar o Teu louvor'".

Quando seus lábios tiverem sido abertos, quando tiverem sido autorizados a rezar, então sua "trêmula" humildade lhe permitirá regozijar-se consigo mesmo como ele é. Sua humildade lhe possibilitará compreender na

presença de quem ele se encontra em pé rezando. Ela lhe dará a alegria de saber-se rico na "dádiva da oração", graças à qual

ele pode desafogar sua alma diante Dele, a Fonte da Vida, e assim manter sua alma eternamente viva. Além disto, saber que, juntamente com a dádiva da oração, recebeu não só

a permissão, mas também a ordem, a Mitzvá, de se dirigir a D'us por meio da oração, é o ápice da sua alegria.

O valor de toda Mitzvá depende da Kavaná,

da "devoção" pura que a acompanha.

O caráter reflexivo e afetivo da Kavaná. Toda Mitzvá incute sua "vitalidade" naquele que a cumpre.

A humildade e a alegria contribuem para a criação da Kavaná, a devoção

pura e desinteressada que se encontra em um judeu quando ele cumpre a Mitzvá da tefilá, "oração", e que deve necessariamente acompanhar toda reza.

O valor e a qualidade de qualquer Mitzvá depende da Kavaná que a permeia.

Mesmo se a Mitzvá for de natureza física e material, ainda assim ela necessitará de Kavaná para ser plenamente cumprida. O maassê, "o ato de fazer" uma Mitzvá, constitui seu "corpo", e a Kavaná

que lhe está associada é sua neshamá, sua "alma". Privada da Kavaná, a execução puramente mecânica de uma Mitzvá é como

um corpo sem alma, diz o Ari ha-Kadosh em seus ensinamentos. A Mitzvá só é completa, "viva", quando inclui tanto a Kavaná quanto o maassê. Quando um homem "justo", um Tzadik, executa uma Mitzvá, ele consegue — graças à Kavaná — atingir o elemento espiritual oculto do objeto

necessário para o cumprimento dessa Mitzvá. Ele pode elevar esse objeto à sua raiz no "mundo acima", pois tudo o que nos parece material é espiritual em sua essência.

A Kavaná transforma então o ato físico da Mitzvá numa realidade espiritual. Além disto, sua raiz espiritual é alimentada e fortalecida no "mundo acima",

assim como, inversamente, ela pode ser enfraquecida pela devoção imperfeita. A Kavaná daquele que executa uma Mitzvá física aqui embaixo "marca" a

sua raiz com "sinais" indeléveis, que são uma "garantia" da pureza de sua intenção.

Esses sinais testemunharão a Kavaná quando sua alma tiver retornado à origem, e seu corpo, tendo concluído sua missão na terra, tiver sido enterrado.

Quanto à tefilá, "reza", que é uma Mitzvá espiritual expressa em "pensamento" e "palavra", sua Kavaná subjacente é de suprema

importância, sobretudo no que se refere a certas orações essenciais.

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É indispensável que a Kavaná oriente a recitação do Shemá (Deuteronômio

6:4-9), principalmente a do primeiro versículo: "Ouve, Ó Israel: o Senhor nosso D'us; o Senhor é Um".

Repetido sem Kavaná, o Shemá não tem valor, é destituído de significado e vida. Para aquele que o declama, assim como para os que o ouvem, a recitação

do Shemá (sobretudo a do versículo inicial) é um ato de "concentração" absoluta e profunda.

Tanto para os presentes como para os ausentes, ela é um ato de externalização que abrange e se estende a tudo e a todos. O judeu crente recita este primeiro versículo de olhos fechados, descendo

às profundezas de sua alma. Em seguida ele recita o resto do Shemá com os olhos bem abertos, como se

estivesse reunindo em seu olhar todo o povo de Israel e até mesmo todo o vasto mundo, em todas as suas dimensões. Ele exorta o mundo inteiro a proclamar a Unidade de D'us, e então o conduz

aos mundos superiores, ordenando-lhe que louve o Criador com um "hino" à Sua Glória, em harmonia com todos os mundos.

Assim o universo é elevado ao seu Criador. Portanto, àquele que assim recita o Shemá aplica-se aquilo que o Rei David

disse de si mesmo: "Quanto a mim, sou todo oração" (Salmos 109:4); ele próprio se transformou em Mitzvá. De fato, toda Mitzvá incute sua "vitalidade" naquele que a cumpre. Devido a

isto, o homem vive uma vida plena: ele "vive nela". A Torá diz: "Guardai Minhas leis e Meus mandamentos: aquele que os

pratica viverá por eles [literalmente, "neles"]: Eu sou o Senhor" (Levítico 18:5). Quando a Kavaná permeia o corpo da Mitzvá, esta se torna ela mesma uma

Kavaná. Como resultado, ela adquire o valor de um ato concreto, que orienta todo o

ser de um judeu crente em direção a D'us. Assume a característica de hitbonenut e reguesh, um ato que é ao mesmo tempo reflexivo, contemplativo e intuitivo, emotivo.

Um ato desta natureza espiritualiza o corpo, aproximando-o o máximo possível de seu Criador, a quem chamamos de o Espírito, o Ser, mas que na

verdade é infinitamente mais do que isso: Ele é Um, sem nenhuma relação com qualquer número; Ele é Único, sem que haja nada que possa ser comparado a Ele; Ele é Tudo, sem ser composto.

Quando um judeu recita o Shemá, graças à sua Kavaná ele assimila todo o seu ser ao seu D'us, que deseja que o homem também se torne uma

entidade integral. O judeu que reza desta maneira adquire a certeza de que seus pensamentos mais íntimos, protegidos de todas as contingências deste

mundo e restituídos à pureza original de sua essência na "esfera do pensamento", são agradáveis e aceitáveis para D'us.

De fato, a Kavaná é uma "concentração" de pensamento que o judeu obtém quando seu desejo de adorar e servir a D'us e de agir corretamente torna-

se inabalável, quando ele mesmo supera todas as hesitações provocadas por circunstâncias externas e fraquezas internas.

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Assim, seu espírito fica protegido de toda machashavá zará, de todo

"pensamento estranho" capaz de perturbar a pureza de seu próprio pensamento, o qual luta para se unir ao próprio Pensamento divino. continua