a rotina dos monges do silêncio - jornal o estado de s. paulo

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A24 Metrópole DOMINGO, 5 DE ABRIL DE 2015 O ESTADO DE S. PAULO O monge Francisco José Dietzler rompeu nove me- ses de namoro e entrou no mosteiro trapista em 1951, seis anos após o término da 2.ª Guerra Mundial, quando serviu na Europa como tripulante de um bombardei- ro B-17, a Fortaleza Voadora, entre março de 1943 e outubro de 1945. Era artilheiro e operador de rádio de uma unidade baseada na Ingla- terra que cumpriu 29 missões no Su- doeste da Alemanha, onde atacou as cidades de Colônia, Nuremberg e Mu- nique para destruir fábricas de armas e de aviões. Na trigésima missão, foi atingido por caças nazistas. “Meu avião pegou fogo, eu pulei de paraquedas e fui capturado com o pul- mão direito perfurado e um braço fe- rido no oeste da Alemanha”, recorda padre Francisco, agora com 91 anos (vai fazer 92 em 10 de maio ), no Para- ná, onde vive desde 1977. “Sou agrade- cido aos alemães por não me terem matado, como podiam ter feito, em vez de me levar para o hospital e me curar”, disse o monge. Em quatro me- ses, ele passou por quatro hospitais e em seguida foi internado em um cam- po de prisioneiros de guerra, onde o tratamento era menos severo do que nos campos de prisionei- ros políticos. Foi liberta- do em 29 de abril de 1945, dez dias antes da rendição da Alemanha. Era sargento, mas preferiu não seguir a carreira militar. Ao dar baixa na Força Aérea dos Estados Unidos, come- çou a refletir no sentido da vi- da. “Falei com a namorada que minha vocação não era o matrimônio, quando cheguei à conclusão de que devia ser sa- cerdote e religioso”, lembra o monge. “A guerra mexe com a gente e desperta vocações, porque é uma experiência em que se está dia- riamente perto da morte”, reflete. Ca- da vez que decolava para bom- bardear a Alemanha, não sabia se ia voltar. Padre Francisco trabalha na cozinha, ajuda na hospe- daria, presta atendimen- to espiritual às visitas, dá aulas de história da Igreja e de inter- pretação da Bíblia aos estudantes do mosteiro e, em meio a tudo isso, medita e reza. “Estou aqui fa- zendo penitên- cia e pedindo perdão pelos bom- bardeios que mataram alemães inocentes”, confessa o monge tra- pista, resumindo uma rotina de 64 anos de clausura. Ao longo desse tempo, viajou al- gumas vezes aos Estados Unidos para visitar o mosteiro que trocou pela América Latina e rever dois ir- mãos ainda vivos – um de 95 anos e outro de 87 anos de idade. Corres- ponde-se com a família, escreve e telefona para dar notícias. Antes de chegar ao Mosteiro de Nossa Se- nhora do Mundo Novo, em 1982, padre Francisco morou por cinco anos no vizinho município da La- pa, onde ele e seus companheiros se instalaram para, depois, com- prar as terras de Campo do Tenen- te. Vinha da Argentina, a convite dos superiores, após ter passado pelo Chile. / J.M.M. NA WEB Igreja Católica e vida monástica PERFIL A ROTINA DOS ‘MONGES DO SILÊNCIO’ NO BRASIL www.estadao.com.br/e/monasq FOTOS: HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO Reportagem Especial Artilheiro da 2ª Guerra reza há 64 anos pelos mortos Entre trapistas do Paraná, solidão é regra e pouco se fala no trabalho comunitário Fora do mundo. Não leem jornal nem veem TV Francisco José Dietzler, monge da Ordem Cisterciense de Estrita Observância Mosteiro Nossa Senhora do Novo Mundo, em Campo do Tenente. Abriga 29 religiosos, com média de idade de 38 anos Rezas. Eles se reúnem na capela oito vezes por dia José Maria Mayrink F iéis à regra de São Ben- to, o fundador da vida monástica no século 6.º, os monges do Mos- teiro Trapista Nossa Senhora do Novo Mun- do, em Campo do Tenente, a 100 quilômetros de Curitiba, seguem o lema “Ora et labora (Ora e traba- lha)”, das 3 horas às 19h30. São reli- giosos de vida contemplativa da Or- dem Cisterciense de Estrita Obser- vância, uma das comunidades mais rigorosas da Igreja Católica, ao lado de denominações tradicionais da mesma origem – os cartuxos e os camaldulenses, também de origem beneditina. São 29 monges, entre os quais três americanos, dois angolanos e um chileno. O abade, d. Bernardo Bonowitz, que dirige o mosteiro desde 1996, quando foi eleito prior, nasceu em Nova York de família ju- daica, de ascendência bielo-russa e polonesa. Converteu-se ao catoli- cismo em 1968, aos 19 anos de ida- de. Formado em Letras Clássicas pelo Columbia College, foi jesuíta durante nove anos e ordenado sa- cerdote antes de se tornar trapista. Os outros dois americanos – os pa- dres Francisco Dietzler e Felix Do- nahue – são da equipe pioneira dos cinco fundadores da comunidade paranaense – a única existente no Brasil. Nos Estados Unidos, padre Felix es- tudou sob a direção de Thomas Mer- ton, místico e escritor de projeção mundial, que atraiu centenas de jo- vens para a Ordem Trapista com seu livro A Montanha dos Sete Patamares. Felix foi prior do mosteiro antes de d. Bernardo. Aos 82 anos de idade, sofre de varizes e se sente “um pouco apo- sentado”. Ajuda na cozinha, na padaria e na produção de mel. A idade média dos monges é de 38 anos, uma das mais baixas em todo o mundo. Quase todos os religiosos de Campo do Tenente têm curso supe- rior. Padre Gabriel Augusto Vecchi, paulista de São Caetano, de 36 anos, estava no 4.º ano de Química na Univer- sidade de São Paulo (USP), em São Car- los, quando decidiu entrar para o mos- teiro. Agora, é mestre de noviços e prior. Pelo seu cargo, tem acesso à in- ternet, instrumento que só utiliza para receber e responder e-mails. Rotina. Os trapistas não leem jornal, não ouvem rádio, não veem televisão. Afastados do mundo, têm raras notí- cias do que se passa fora de seus mu- ros. Como abade, d. Bernardo pode sair do mosteiro para pregar retiros es- pirituais e escreve livros sobre a voca- ção dos monges. Na comunidade, pre- side os atos litúrgicos e as reuniões pa- ra recitação das horas canônicas, que começam com a Vigília, às 3 horas. Os trapistas se reúnem para rezar na capela oito vezes por dia. Além do ofí- cio, assistem à missa e fazem orações individuais. Sua vida é a busca de um contato íntimo e contínuo com Deus. Solidão e silêncio são rotina diária, companheiras inseparáveis na vida co- munitária. Embora vivam juntos no mosteiro, são homens solitários por vocação. Não conversam durante o tra- balho, a não ser o imprescindível sobre a tarefa executada. Nunca um bate-pa- po. Comunicam-se, de preferência, por sinais, embora sem mais o rigor de antigamente, quando não se falava na- da. Os monges podem conversar com os hóspedes, fora dos limites da clausu- ra. Visitam a família a cada cinco anos e podem receber os parentes, por cinco dias, a cada dois anos. O irmão hospedeiro, padre Estêvão Pinto, faz todos os contatos necessá- rios, da chegada dos visitantes até a despedida. A hospedaria, uma casa 200 metros afastada da portaria e da capela, tem 18 vagas em celas ou quar- tos bem despojados. Anexos, cozinha e sala de refeições para o café e o jantar, que os hóspedes mesmos preparam, porque o mosteiro só serve almoço. O horário rígido não permite pensão completa, pois os monges rezam ao amanhecer e vão dormir às 19h30. Nos intervalos das orações, fazem todo o serviço da propriedade, de 330 hecta- res. O mosteiro só tem três funcioná- rios para ajudar no cultivo de soja, fei- jão e milho. Em Alemanha, Holanda, Bélgica e Estados Unidos, eles produ- zem cerveja. No Brasil, não. Refeição. No almoço, os hóspedes usam um refeitório anexo ao dos mon- ges, sem vê-los, ouvindo pelo alto-fa- lante a leitura de um livro durante a refeição. Os monges lavam a louça e passam pratos, copos, panelas e talhe- res para os visitantes enxugarem. Tu- do em silêncio. O cardápio é simples, como se todo dia fosse dia de penitência. Os trapis- tas jamais comem carne. Peixe só uma vez por mês e ovos, duas vezes por se- mana. Apesar do sacrifício, parecem bem dispostos e saudáveis, pois uma nutricionista (de fora do mosteiro) controla os ingredientes. Beterraba com requeijão e berinjela frita com ovos e trigo constavam do menu incrementado no dia 12 de mar- ço, quando um grupo de oblatas (lei- gos que seguem a espiritualidade tra- pista) visitava o mosteiro. Mal se nota- va a mistura, mas o gosto era saboroso. Os monges consomem também carne de soja. A produção agrícola garante a autossuficiência, com sobra para so- correr outras obras religiosas. A co- munidade ajuda também os pobres de Campo do Tenente, onde uma família amiga se encarrega de distri- buir dinheiro e alimentos. Pássaros. O silêncio é impressio- nante. Só se ouve o canto de pássa- ros, raramente voz humana. Ao lon- ge, o barulho da rodovia e, mais ra- ramente, a buzina de um trem de carga cortando a madrugada. Obla- tas – são apenas 13, homens e mu- lheres – reúnem-se no mosteiro quatro vezes por ano. Moram em cidades vizinhas, como a assistente social Meri do Rocio Prohmann, ou vêm de longe, como o funcionário municipal Aparecido Ney de Almei- da, que madrugou em São José dos Campos, pegou um avião em Gua- rulhos para Curitiba e chegou de táxi ao mosteiro. Os monges não têm atividades pastorais fora da clausura, mas ou- vem confissões e dão assistência es- piritual a quem os procura. Apenas sete deles são padres – sempre sele- cionados pelo abade para serem or- denados, porque a vocação é essen- cialmente monástica. Os candidatos se apresentam pa- ra viver seu ideal, à procura de Deus, na solidão e na convivência com os irmãos. Além dos votos tradicionais comuns aos religiosos – obediência, pobreza e castidade –, eles profes- sam o voto de estabilidade, compro- metendo-se a viver no mosteiro até a morte. Entram como estagiários, passam a postulantes, fazem o novi- ciado e, depois de oito ou nove anos, são admitidos em caráter definiti- vo. Pelo menos 50% dos noviços per- manecem – um índice bastante bom, segundo o abade d. Bernardo. Fundada em 1098 por 21 monges no Vale de Cister, na França, a Or- dem Cisterciense ficou conhecida como Ordem Trapista no século 17, após uma reforma no mosteiro de La Trappe, que enfatizou o silêncio, a solidão e o trabalho manual como valores do monaquismo. Ao lado da Ordem Cisterciense de Estrita Ob- servância existe a Ordem Cister- ciense de Observância Comum, à qual pertence o cardeal d. Orani João Tempesta, arcebispo do Rio. Vídeo. Veja imagens da rotina monástica ‘Meu avião pegou fogo, pulei de paraquedas e fui capturado com o pulmão direito perfurado e um braço ferido no oeste da Alemanha’ Vocação sem internet “Atualmente, temos mais monges aqui, porque as vocações aumentaram – começamos com três noviços e agora eles são oito” Padre Felix Donahue “Confiro as manchetes do dia no computador e transmito o essencial à comunidade” Dom Bernardo Bonowitz No cinema ‘Homens e Deuses’, de Xavier Beauvois, conta a história de sete monges massacrados por fundamentalistas muçulmanos, em 1996, na Argélia.

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A24 Metrópole DOMINGO, 5 DE ABRIL DE 2015 O ESTADO DE S. PAULO

Omonge Francisco JoséDietzler rompeu nove me-ses de namoro e entrou no

mosteiro trapista em 1951, seisanos após o término da 2.ª GuerraMundial, quando serviu na Europacomo tripulante de um bombardei-ro B-17, a Fortaleza Voadora, entremarço de 1943 e outubro de 1945.Era artilheiro e operador de rádiode uma unidade baseada na Ingla-

terra que cumpriu 29 missões no Su-doeste da Alemanha, onde atacou ascidades de Colônia, Nuremberg e Mu-nique para destruir fábricas de armase de aviões. Na trigésima missão, foiatingido por caças nazistas.

“Meu avião pegou fogo, eu pulei deparaquedas e fui capturado com o pul-mão direito perfurado e um braço fe-rido no oeste da Alemanha”, recordapadre Francisco, agora com 91 anos(vai fazer 92 em 10 de maio ), no Para-ná, onde vive desde 1977. “Sou agrade-cido aos alemães por não me teremmatado, como podiam ter feito, emvez de me levar para o hospital e mecurar”, disse o monge. Em quatro me-ses, ele passou por quatro hospitais eem seguida foi internado em um cam-

po de prisioneiros de guerra, onde otratamento era menos severo do quenos campos de prisionei-ros políticos. Foi liberta-do em 29 de abril de1945, dez dias antes darendição da Alemanha.

Era sargento, maspreferiu não seguir acarreira militar. Ao darbaixa na Força Aéreados Estados Unidos, come-çou a refletir no sentido da vi-da. “Falei com a namoradaque minha vocação não era omatrimônio, quando cheguei àconclusão de que devia ser sa-cerdote e religioso”, lembra omonge. “A guerra mexe com a

gente e desperta vocações, porque éuma experiência em que se está dia-riamente perto da morte”, reflete. Ca-

da vez que decolava para bom-bardear a Alemanha, não sabiase ia voltar.

Padre Francisco trabalhana cozinha, ajuda na hospe-

daria, presta atendimen-to espiritual às visitas,

dá aulas de históriada Igreja e de inter-

pretação da Bíbliaaos estudantes do

mosteiro e, emmeio a tudo isso,medita e reza.

“Estou aqui fa-zendo penitên-

cia e pedindo perdão pelos bom-bardeios que mataram alemãesinocentes”, confessa o monge tra-pista, resumindo uma rotina de64 anos de clausura.

Ao longo desse tempo, viajou al-gumas vezes aos Estados Unidospara visitar o mosteiro que trocoupela América Latina e rever dois ir-mãos ainda vivos – um de 95 anos eoutro de 87 anos de idade. Corres-ponde-se com a família, escreve etelefona para dar notícias. Antesde chegar ao Mosteiro de Nossa Se-nhora do Mundo Novo, em 1982,padre Francisco morou por cincoanos no vizinho município da La-pa, onde ele e seus companheirosse instalaram para, depois, com-prar as terras de Campo do Tenen-te. Vinha da Argentina, a convitedos superiores, após ter passadopelo Chile. / J.M.M.

NA WEB

Igreja Católica e vida monástica

PERFIL

A ROTINA DOS ‘MONGESDO SILÊNCIO’ NO BRASIL

www.estadao.com.br/e/monasq

FOTOS: HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO

Reportagem Especial ✽

Artilheiro da 2ª Guerra reza há 64 anos pelos mortos

Entre trapistas do Paraná, solidão é regra e pouco se fala no trabalho comunitário

Fora do mundo. Não leem jornal nem veem TV

Francisco José Dietzler, monge da Ordem Cisterciense de Estrita Observância

Mosteiro Nossa Senhora do Novo Mundo, em Campo do Tenente. Abriga 29 religiosos, com média de idade de 38 anos

Rezas. Eles se reúnem na capela oito vezes por dia

José Maria Mayrink

F iéis à regra de São Ben-to, o fundador da vidamonástica no século6.º, os monges do Mos-teiro Trapista NossaSenhora do Novo Mun-

do, em Campo do Tenente, a 100quilômetros de Curitiba, seguem olema “Ora et labora (Ora e traba-lha)”, das 3 horas às 19h30. São reli-giosos de vida contemplativa da Or-dem Cisterciense de Estrita Obser-vância, uma das comunidades maisrigorosas da Igreja Católica, ao ladode denominações tradicionais damesma origem – os cartuxos e oscamaldulenses, também de origembeneditina.

São 29 monges, entre os quaistrês americanos, dois angolanos eum chileno. O abade, d. BernardoBonowitz, que dirige o mosteirodesde 1996, quando foi eleito prior,nasceu em Nova York de família ju-daica, de ascendência bielo-russa epolonesa. Converteu-se ao catoli-cismo em 1968, aos 19 anos de ida-de. Formado em Letras Clássicaspelo Columbia College, foi jesuítadurante nove anos e ordenado sa-cerdote antes de se tornar trapista.Os outros dois americanos – os pa-dres Francisco Dietzler e Felix Do-nahue – são da equipe pioneira doscinco fundadores da comunidadeparanaense – a única existente noBrasil.

Nos Estados Unidos, padre Felix es-tudou sob a direção de Thomas Mer-ton, místico e escritor de projeçãomundial, que atraiu centenas de jo-vens para a Ordem Trapista com seulivro A Montanha dos Sete Patamares.Felix foi prior do mosteiro antes de d.Bernardo. Aos 82 anos de idade, sofrede varizes e se sente “um pouco apo-sentado”. Ajuda na cozinha, na padariae na produção de mel.

A idade média dos monges é de 38anos, uma das mais baixas em todo omundo. Quase todos os religiosos deCampo do Tenente têm curso supe-rior. Padre Gabriel Augusto Vecchi,paulista de São Caetano, de 36 anos,estava no 4.º ano de Química na Univer-sidade de São Paulo (USP), em São Car-los, quando decidiu entrar para o mos-teiro. Agora, é mestre de noviços eprior. Pelo seu cargo, tem acesso à in-ternet, instrumento que só utiliza parareceber e responder e-mails.

Rotina. Os trapistas não leem jornal,não ouvem rádio, não veem televisão.Afastados do mundo, têm raras notí-cias do que se passa fora de seus mu-ros. Como abade, d. Bernardo podesair do mosteiro para pregar retiros es-pirituais e escreve livros sobre a voca-ção dos monges. Na comunidade, pre-side os atos litúrgicos e as reuniões pa-ra recitação das horas canônicas, quecomeçam com a Vigília, às 3 horas.

Os trapistas se reúnem para rezar nacapela oito vezes por dia. Além do ofí-cio, assistem à missa e fazem orações

individuais. Sua vida é a busca de umcontato íntimo e contínuo com Deus.

Solidão e silêncio são rotina diária,companheiras inseparáveis na vida co-munitária. Embora vivam juntos nomosteiro, são homens solitários porvocação. Não conversam durante o tra-balho, a não ser o imprescindível sobrea tarefa executada. Nunca um bate-pa-po. Comunicam-se, de preferência,por sinais, embora sem mais o rigor deantigamente, quando não se falava na-da. Os monges podem conversar comos hóspedes, fora dos limites da clausu-ra. Visitam a família a cada cinco anos epodem receber os parentes, por cincodias, a cada dois anos.

O irmão hospedeiro, padre EstêvãoPinto, faz todos os contatos necessá-rios, da chegada dos visitantes até adespedida. A hospedaria, uma casa200 metros afastada da portaria e dacapela, tem 18 vagas em celas ou quar-tos bem despojados. Anexos, cozinhae sala de refeições para o café e o jantar,

que os hóspedes mesmos preparam,porque o mosteiro só serve almoço. Ohorário rígido não permite pensãocompleta, pois os monges rezam aoamanhecer e vão dormir às 19h30. Nosintervalos das orações, fazem todo oserviço da propriedade, de 330 hecta-res. O mosteiro só tem três funcioná-rios para ajudar no cultivo de soja, fei-jão e milho. Em Alemanha, Holanda,Bélgica e Estados Unidos, eles produ-zem cerveja. No Brasil, não.

Refeição. No almoço, os hóspedesusam um refeitório anexo ao dos mon-ges, sem vê-los, ouvindo pelo alto-fa-lante a leitura de um livro durante arefeição. Os monges lavam a louça epassam pratos, copos, panelas e talhe-res para os visitantes enxugarem. Tu-do em silêncio.

O cardápio é simples, como se tododia fosse dia de penitência. Os trapis-tas jamais comem carne. Peixe só umavez por mês e ovos, duas vezes por se-mana. Apesar do sacrifício, parecembem dispostos e saudáveis, pois umanutricionista (de fora do mosteiro)controla os ingredientes.

Beterraba com requeijão e berinjelafrita com ovos e trigo constavam domenu incrementado no dia 12 de mar-ço, quando um grupo de oblatas (lei-gos que seguem a espiritualidade tra-pista) visitava o mosteiro. Mal se nota-va a mistura, mas o gosto era saboroso.Os monges consomem também carnede soja. A produção agrícola garante aautossuficiência, com sobra para so-

correr outras obras religiosas. A co-munidade ajuda também os pobresde Campo do Tenente, onde umafamília amiga se encarrega de distri-buir dinheiro e alimentos.

Pássaros. O silêncio é impressio-nante. Só se ouve o canto de pássa-ros, raramente voz humana. Ao lon-ge, o barulho da rodovia e, mais ra-ramente, a buzina de um trem decarga cortando a madrugada. Obla-tas – são apenas 13, homens e mu-lheres – reúnem-se no mosteiroquatro vezes por ano. Moram emcidades vizinhas, como a assistentesocial Meri do Rocio Prohmann, ouvêm de longe, como o funcionáriomunicipal Aparecido Ney de Almei-da, que madrugou em São José dosCampos, pegou um avião em Gua-rulhos para Curitiba e chegou detáxi ao mosteiro.

Os monges não têm atividadespastorais fora da clausura, mas ou-vem confissões e dão assistência es-piritual a quem os procura. Apenassete deles são padres – sempre sele-cionados pelo abade para serem or-denados, porque a vocação é essen-cialmente monástica.

Os candidatos se apresentam pa-ra viver seu ideal, à procura de Deus,na solidão e na convivência com osirmãos. Além dos votos tradicionaiscomuns aos religiosos – obediência,pobreza e castidade –, eles profes-sam o voto de estabilidade, compro-metendo-se a viver no mosteiro atéa morte. Entram como estagiários,passam a postulantes, fazem o novi-ciado e, depois de oito ou nove anos,são admitidos em caráter definiti-vo. Pelo menos 50% dos noviços per-manecem – um índice bastantebom, segundo o abade d. Bernardo.

Fundada em 1098 por 21 mongesno Vale de Cister, na França, a Or-dem Cisterciense ficou conhecidacomo Ordem Trapista no século 17,após uma reforma no mosteiro deLa Trappe, que enfatizou o silêncio,a solidão e o trabalho manual comovalores do monaquismo. Ao lado daOrdem Cisterciense de Estrita Ob-servância existe a Ordem Cister-ciense de Observância Comum, àqual pertence o cardeal d. OraniJoão Tempesta, arcebispo do Rio.

Vídeo. Vejaimagens darotina monástica

‘Meu avião pegou fogo, puleide paraquedas e fuicapturado com o pulmãodireito perfurado e um braçoferido no oeste da Alemanha’

● Vocação sem internet“Atualmente, temos mais mongesaqui, porque as vocaçõesaumentaram – começamos comtrês noviços e agora eles são oito”Padre Felix Donahue

“Confiro as manchetes do dia nocomputador e transmito oessencial à comunidade”Dom Bernardo Bonowitz

● No cinema‘Homens e Deuses’, de Xavier Beauvois, conta ahistória de sete monges massacrados porfundamentalistas muçulmanos, em 1996, na Argélia.