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BCH_PERIODiCOS A REVOLUÇÃO DOS QUADRINHOS: ALTERNATIVA PEDAGÓGICA PARA A CONTEMPORANEIDADE THE REVOLUT/ON /N COM/CS: ALTERNA TIVE TO CONTEMPORARY PEDAGOG/CAL Cláudia Sales Alcântara Mestranda do curso de Educação Brasileira da FACED da Universidade Fe- deral do Ceará - UFC. [email protected] Ceraldo Magela Oliveira-Silva Orientador Educacional da Secretaria Municipal de Eduação da Prefeitura Municipal de Fortaleza - SME/[email protected] Resumo Atualmente as histórias em quadrinhos são muito mais aceitas como produ- ção artística e cultural por parcelas cada vez maiores da sociedade. Esse trabalho as trata como uma ferramenta didático-pedagógica muito eficaz, possuindo a capacidade, através do seu currículo cultural, de divertir, trans- mitir uma forma de ser, sentir, viver e se comportar no mundo, além de poderem ser utilizadas de maneira interdisciplinar nos diversos conteúdos escolares e por isso a apropriação desta pelo professor, o aluno e a escola é de fundamental importância nesta era de globalização. Como referencial teórico será utilizada a idéia de cultura defendida pelos Estudos Culturais britânicos, da Universidade de Birmingham, que se preocuparam com pro- dutos da cultura popular e dos mass media que expressam os sentidos que vêm adquirindo a cultura contemporânea. Nosso desejo é que cada vez mais os quadrinhos possam adentrar as portas dos colégios e dos diversos ambientes escolares com muito mais facilidade do que antes, estando cien- te, contudo, que existe ainda pela frente um longo caminho a ser percorri- do. Palavras-chaves: histórias em quadrinhos, cultura, didática, currículo. 85 2, nO 60, ano 32·2010

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BCH_PERIODiCOS

A REVOLUÇÃO DOS QUADRINHOS:ALTERNATIVA PEDAGÓGICA PARA A CONTEMPORANEIDADE

THE REVOLUT/ON /N COM/CS:ALTERNA TIVE TO CONTEMPORARY PEDAGOG/CAL

Cláudia Sales AlcântaraMestranda do curso de Educação Brasileira da FACEDda Universidade Fe-deral do Ceará - UFC. [email protected]

Ceraldo Magela Oliveira-SilvaOrientador Educacional da Secretaria Municipal de Eduação da PrefeituraMunicipal de Fortaleza - SME/[email protected]

ResumoAtualmente as histórias em quadrinhos são muito mais aceitas como produ-ção artística e cultural por parcelas cada vez maiores da sociedade. Essetrabalho as trata como uma ferramenta didático-pedagógica muito eficaz,possuindo a capacidade, atravésdo seu currículo cultural, de divertir, trans-mitir uma forma de ser, sentir, viver e se comportar no mundo, além depoderem ser utilizadas de maneira interdisciplinar nos diversos conteúdosescolares e por isso a apropriação desta pelo professor, o aluno e a escola éde fundamental importância nesta era de globalização. Como referencialteórico será utilizada a idéia de cultura defendida pelos EstudosCulturaisbritânicos, da Universidade de Birmingham, que se preocuparam com pro-dutos da cultura popular e dos mass media que expressam os sentidos quevêm adquirindo a cultura contemporânea. Nosso desejo é que cada vezmais os quadrinhos possam adentrar as portas dos colégios e dos diversosambientes escolares com muito mais facilidade do que antes, estando cien-te, contudo, que existe ainda pela frente um longo caminho a ser percorri-do.Palavras-chaves: histórias em quadrinhos, cultura, didática, currículo.

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AbstroctCurrently the stories in comics are much more accepted as artistic and cul-tural production by increasing portions of society. This treats the work as ateaching tool-pedagogical very effective, possessingthe ability, through itscurriculum cultural, fun, forward a way of being, feel, live and to behave inthe world, and can be used in a manner interdisciplinary various contentschool and 50 the ownership of the teacher, the student and the school is offundamental importance in this ageof globalization. As theoretical referencewill be used for cultivating the idea advocated by the British Cultural Studies,University of Birmingham, who have been concerned with products of po-pular culture and mass media that express the meanings that are buyingcontemporary culture. Our wish is that more and more comics can enter thedoors of colleges and the various school environments with more easethanbefore and are aware, however, that there is still a long way ahead to betravelled.Key-words: comics, culture, didactics, curriculum.

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A revoluçõo dos quadrinhos: olternativo pedagógico paro a contemporoneidade

Durante muito tempo, as Histórias em Quadrinhos foram tidas ehavidas como uma subliteratura prejudicial ao desenvolvimento intelec-tual das crianças. Sociólogos apontavam-nas como uma das principaiscausas da delinquência juvenil. Aos poucos, porém, foi se verificando afragilidade dos argumentos daqueles que investiam contra os quadrinhose, hoje, podemos observar que são muitos os pólos, quer educacionais oujornalísticos, quer comunicacionais ou artísticos, que se voltam para asraízes metalingüísticas, políticas, sociais ou econômicas dos quadrinhos,testando as vertentes criadoras que os formam e os projetam no espaço-tempo gráfico das revistas e jornais.

Além da importância ideológica e social, os quadrinhos registramuma problematicidade expressional de profundo significado estético, tor-nando-se a literatura por excelência do século xx e XXI; ou um novo tipode literatura, a literatura gráfico-visual.

Contudo, pouco importa saber se os quadrinhos são ou não umaarte, mesmo porque, hoje, o que realmente seria arte? O que importa é oseu poder de comunicação ideológica e a sua capacidade de revitalizarformas expressionais.

Vejamos alguns números:• Peanuts: 700 jornais e 90 milhões de leitores diários nos EUA;• Tintin: 15 milhões de álbuns vendidos na Europa;• Astérix, o legionário: tiragem de 1.500.000 exemplares;• Popeye: 600 jornais em 25 países;

• Walt Disney, no Brasil: 1.360.000 exemplares mensais.Alguns fatos ainda servem para comprovar a sua influência:

• A Apollo 8 e seu módulo lunar foram cognominados, respec-tivamente, de Charlie Brown e Snoopy, os dois célebres per-sonagens de Charles Schulz - Peanuts;

• Em 1942, Goebbels declarou: "Superman é judeu". Na Itália,Flash Gordon foi proibido por Mussolini;

• No Texas, foi erguida uma estátua em homenagem a Popeye;• Durante a II Guerra Mundial, Tarzan, Mandrake, Fantasma,

Flash Gordon, Capitão América, Super-Homem e até o Prín-cipe Valente, para satisfação das forças militares americanas,combateram, direta ou simbolicamente, os nazistas e japo-neses;

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• Artistas e teóricos consagrados internacionalmente se confes-sam estudiosos ou admiradores dos quadrinhos: Picasso, AlainResnais, Umberto Eco, Edgar Morin, Frederico Fellini, etc.

• Só os comics americanos, desde Yellow Kid, em 1896, já pro-duziram cerca de 12 milhões de imagens;

• AI Capp: sugerido para o Prêmio Nobel de Literatura, por lohnSteinbeck.

Por esse motivo, tratamos das histórias em quadrinhos nesse artigocomo uma ferramenta didático-pedagógica muito eficaz, nessa era daimagem, nesse contexto globalizador, mostrando que o seu currículo cul-tural é perfeito para permitir a reflexão sobre valores, atitudes e riquezahistórico-cultural, promovendo a valorização de nossa gente, além depoderem ser aproveitadas nas aulas de língua portuguesa, história, geo-grafia, matemática, ciências, arte, de maneira interdisciplinar, fazendocom que o aprendizado se torne, ao mesmo tempo, mais reflexivo eprazeroso.

88 As histórias em quadrinhos

Vivemos atualmente o que poderíamos chamar cultura da imagem.Depois da reprodução da imagem, a nossa sociedade imprimiu mais agi-lidade, uma aceleração temporal, já que a sua decodificação acontece deforma mais rápida que a decodificação da escrita. As imagens há muitotempo já eram muito utilizadas como recurso de transmissão de informa-ções nos períodos históricos em que a maioria da população era analfa-beta; a grande questão na atualidade está exatamente no que diz respeitoa sua reprodutibilidade. Antes, a imagem dependia de um único suportepara existir, contudo, hoje a imagem pode se reproduzir em uma infinida-de de suportes, que se dá pelas mídias, os meios de comunicação demassa.'

Entre os diversos meios, ou mídias que as imagens possuem comosuporte, encontramos as histórias em quadrinhos. As histórias em quadri-nhos são enredos narrados, quadro a quadro, por meio de imagens e tex-tos que utilizam o discurso direto, característico da língua falada. A cons-trução da história em quadrinhos possui em seu texto escrito, característi-cas próximas a uma conversação face a face, além de apresentar elemen-tos visuais (imagens) complementadores à compreensão, tornando-a bas-tante prazerosa, pois a sua leitura causa no leitor um determinado fascí-

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nio devido à combinação de todos esses elementos. Assim, as históriasem quadrinhos são mais do que simples mediadoras de informação; elaspossuem a capacidade de facilitar o aprendizado e a apreensão de con-ceitos mais complicados.

De acordo com Álvaro de Moya:8CH-PER.ODICOS

A seriação de quadrinhos, que se assemelha a uma lenta projeçãocinematográfica - ou a cenas fixas, de uma singela peça de teatro-,pode considerar-se, na medida solicitada pela mente infantil, ade-quada ilustração do texto; na realidade, assume o caráter de ver-dadeiro relato visual ou imagístico, que sugestivamente se integracom as rápidas conotações do texto escrito, numa perfeita identifi-cação e entrosamento das duas formas de linguagem: a palavra e odesenho. (1993, p.150).

De acordo com Eguti (2001), as histórias em quadrinhos têm comoobjetivo principal a narração de fatos procurando reproduzir uma con-versação natural, na qual os personagens interagem face a face, expres-sando-se por palavras e expressões faciais e corporais. A combinação de 89todos esses elementos é responsável pela transmissão do contextoenunciativo ao leitor. Assim como na literatura, o contexto é obtido pormeio de descrições detalhadas através da palavra escrita, nas histórias emquadrinhos esse contexto é fruto da dicotomia verbal e não verbal, naqual tanto as imagens quanto as palavras são imprescindíveis para a com-preensão da história.

Historicamente, os quadrinhos têm sido tratados pela sociedadecomo uma subliteratura e, ainda mais, como uma mídia nociva ao desen-volvimento psicológico e cognitivo de quem as consome. Essa visão de-corre de argumentos infundados sobre a influência dos quadrinhos tantona delinqüência juvenil, como no desinteresse das crianças e jovens pelaleitura de livros formais, era o que defendia, por exemplo, o psiquiatranorte-americano Frederick Wertham,? Contudo, num país onde a educa-ção permanece como uma das áreas mais fragilizadas, com investimen-tos insuficientes e professores buscando alternativas para despertar o inte-resse dos alunos, a utilização das histórias em quadrinhos é opção efici-ente, de baixo custo, pois são um veículo de comunicação mais versátilem temas e tratamentos gráficos do que "os textos chamados escolares".'São constituidoras de identidades culturais, na medida em que sãoconsumidas por crianças e adultos.

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Clóudio Soles Alcôntoro I Geroldo Mogelo Oliveiro-Silvo

Algumas editoras de livros paradidáticos já perceberam a eficáciadas histórias em quadrinhos como recurso que proporciona uma aprendi-zagem prazerosa e dinâmica. É o caso das editoras Moderna, Saraiva eÁtica, que estão publicando as histórias da Turma do Xaxado (que em2003 recebeu apoio institucional da UNESC04), do autor baiano AntônioLuiz Ramos Cedraz, pois perceberam que o perfil de suas histórias é per-feito para permitir a reflexão sobre valores, atitudes e riqueza histórico-cultural, promovendo a valorização de nossa gente, e estando de acordocom o que prevê o código de ética dos quadrinhos." que entre outros, tema preocupação da utilização das HQS6 para fins educativos, "um instru-mento de educação, formação moral, propaganda dos bons sentimentose exaltação das virtudes sociais e individuais".(2004, p.14).

O primordial é perceber a importância e a riqueza das histórias emquadrinhos, percebendo o caráter lúdico dessas publicações, suas históri-as recheadas de aventuras e situações cômicas, a contextualização histó-rica, a linguagem, a geografia, a fauna e a flora dos locais referidos e atémesmo os hábitos e costumes que podem ser facilmente apreendidos peloaluno.

90As histórias em quadrinhos como recurso pedagógico

A comunicação tem favorecido o relacionamento econômico, odiálogo político e possui ~um papel cultural importante. A revolução nascomunicações representa um avanço para a integração mundial.

Esse contexto de mudanças e globalização tem buscado respostasem novos modelos curriculares que ofereçam algumas respostas a umcomplexo panorama cultural, evidenciando novas exigências de qualifi-cação que apontam, inclusive, para a avaliação do desempenho do pro-fessor. Assim, são colocadas algumas exigências ao educador. O mesmodeve ser capaz de:

"(...) motivar os sujeitos cognoscentes; desenvolver autonomia nosalunos; envolvê-Ios em processos multidisciplinares: promover oengajamento cognitivo; apresentar postura de comunicador; em-pregar harmoniosamente as novas mídias no processo peda-gógico; diversificar fontes de informações (jornais, TV, revis-tas, livros didáticos, internet, etc.): atribuir coerência e contextoaos conhecimentos propostos aos alunos; mostrar-se dinâmico, en-

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tusiasmado, engajado; desenvolver a criatividade dos alunos; sercriativo; dominar o conteúdo programático, percebendo-o maisaberto e não hermético; criar e contextualizar conhecimentos jun-tamente com os alunos" (VIDAL, MAlA E SANTOS, 2002, p. 20,grifo nosso).

Neste sentido, é necessária a preparação de um contexto escolarque utilize esses novos recursos como instrumentos de melhoria do pro-cesso ensino-aprendizagem, remetendo-nos para a compreensão do im-pacto destes novos recursos na formação do aluno.

Deve-se também perceber que o currículo possui neste contextouma compreensão ilimitada que transcende o âmbito escolar, a educa-ção formal, pois a formação do ser humano não acontece somente naescola. Faz-se necessária uma nova definição e compreensão de currícu-lo que abrace um conjunto de informações, valores e saberes, por inter-médio de produtos culturais? que atravessam o cotidiano dos indivíduos einterferem em suas formas de aprender, de ver, de pensar, de sentir - a istochamamos de currículo cultural.

Essa perspectiva de currículo cultural possui como fundamento a 91idéia de cultura defendida pelos Estudos Culturais britânicos, da Univer-sidade de Birmingham. Estes estudos preocuparam-se com produtos dacultura popular e dos mass media que expressam os sentidos que vêmadquirindo a cultura contemporânea. Utiliza-se da fenomenologia,etnometodologia e interacionismo simbólico, e do ponto de vistametodológico preferem a pesquisa qualitativa. "Numa definição sintética,poder-se-ia dizer que os Estudos Culturais estão preocupados com ques-tões que se situam na conexão entre cultura, significação, identidade epoder". (SILVA, 2002, p.134).

É exatamente pelo seu compromisso com a sociedade, a história, acultura e a política que este campo tem contribuído de maneira significa-tiva para os estudos em educação, mostrando que vários produtos e prá-ticas culturais possuem valor pedagógico, não ficando esta restrita aoâmbito escolar. Como diz Steinberg (1997), "lugares pedagógicos são aque-les onde o poder se organiza e se exercita, tais como bibliotecas, TV,filmes, jornais, revistas, brinquedos, anúncios, videogames, livros, espor-tes, ete." (p.l 2).

O que distingue os Estudos Culturais de disciplinas acadêmicastradicionais é seu envolvimento explicitamente político. As análi-

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ses feitas nos EstudosCulturais não pretendem nunca ser neutrasou imparciais. Na crítica que fazem das relações de poder numasituação cultural ou social determinada, os Estudos Culturais to-mam claramente o partido dos grupos em desvantagem nessasre-lações. Os EstudosCulturais pretendem que suas análises funcio-nem como uma intervenção na vida política e social. (SILVA, 2002,p. 134).

Dessa forma, a proposta de currículo aqui empregada compreendetodo o conhecimento na medida em que este se compõe num sistema designificado, cultural e vinculado a questões de poder, abrindo preceden-tes para a compreensão de que instâncias como museus, cinema, televi-são, histórias em quadrinhos, músicas, shows, entre outros, sejam consi-derados como instâncias culturais capazes de formar identidade e subje-tividade.

A maioria dos estudos realizados no campo educacional esteve pormuito tempo voltado para a instituição escolar como espaço privilegiadode operacionalização da pedagogia e do currículo. Hoje, entretanto, tor-na-se imprescindível voltar à atenção para outros espaços que estão fun-cionando como produtores de conhecimentos e saberes, e a mídia é ape-nas um desses exemplos.

A mídia (a televisão, O jornal, a história em quadrinhos, o vídeo, orádio, o som, o retroprojetor, o computador, a internet, etc.) possui a ca-pacidade, através do seu currículo cultural, de além de divertir, transmitiruma forma de ser, sentir, viver e se comportar no mundo. A apropriaçãodela pelo professor, o aluno e a escola é fundamental nesta era deglobalização. Contudo, a questão é: "como se apropriar dessas novasmídias?" Antes de se desenvolver qualquer recurso didático é necessárioum processo de sensibilização e aceitação do professor. Para que ele nãorecue ou rejeite uma nova possibilidade, ele precisa vê-Ia como aliada.Algo que vai ajudar-lhe em sua prática.

Em seu livro Ciberespaço, Pierre Lévy faz o seguinte pedido:

L .. ) peço apenasque permaneçamos abertos, benevolentes, recep-tivos em relação à novidade. Que tentemos compreendê-Ia, pois averdadeira questão não é ser contra ou a favor, mas sim reconhe-cer as mudanças qualitativas na ecologia dos signos, o ambienteinédito que resulta da extensão das novas redes de comunicaçãopara a vida social e cultural (1999, p_12).

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Neste contexto, as histórias em quadrinhos representam hoje ummeio de comunicação de massa de grande penetração popular. Elas trans-mitem ao leitor (aluno) conceitos, modos de vida, visões de mundo einformações científicas. Trazem temáticas que têm condições de seremcompreendidas por qualquer estudante, sem a necessidade de um conhe-cimento anterior específico ou familiaridade com o tema. As estratégiasde divulgação que elas usam apresentam grande potencial por uma sériede razões, entre elas: o preço (as histórias em quadrinhos é uma mídiaacessível do ponto de vista econômico. É possível produzir-se uma histó-ria em quadrinho utilizando-se apenas papel, lápis, nanquim e uma má-quina xerográfica); a popularidade do meio (cada revista é lida em médiapor três indivíduos); a sua linguagem, cujos signos são facilmentedecodificáveis por diversos tipos de pessoas de diferentes culturas; o fatodos quadrinhos estarem já associados ao divertimento, o que diminui aaversão que o leitor normal costuma ter a estratégias de divulgação.

Gilberto Freyre acreditava que as histórias em quadrinhos poderi-am ser usadas para fins educativos, valendo-se da aceitação infanto-juve-nil por aquele tipo de material para a difusão de fatos e figuras nacionais,em contraposição à entrada em publicações em quadrinhos em jornais 93brasileiros de motivos, símbolos e personagens americanos. A visão críti-ca sobre as histórias em quadrinhos renderam-lhe seis artigos nos quaisdiscutia o assunto, na revista O Cruzeiro, entre 1948 e 1951.8 Esses arti-gos foram escritos no momento em que se fazia verdadeira campanhacontrária às histórias em quadrinhos. Em seu mandato de Deputado Fe-deral, apresentou projeto em 1948 para que se publicasse edição em qua-drinhos sobre a Constituição de 19469 (1981, p. 350). Freyre, ao longo desua trajetória, inovou em sua forma de análise do social, sobretudo pelapercepção da mídia como novo fenômeno cultural, que deveria ser com-preendido sem preconceituosos pontos de vista, mas de forma a seremutilizados, por exemplo, para fins educativos. Como ele afirmava:

A verdade é que, em si mesmas, as histórias em quadrinhos sãouma forma nova de expressão contra a qual seria tão quixotesconos levantarmos, como contra o rádio, o cinema falado ou a tele-visão. Como o rádio, o cinema falado e a televisão, as histórias emquadrinhos concorrem para o desprestígio da leitura dos longostextos para favorecer as suas dramatizações sintéticas, breves, in-cisivas. Mas o que se deve ver aí é uma tendência da época: umaépoca caracterizada pela ascensão social de massas sôfregas, an-tes de síntese e de resumos dramáticos de fatos da atualidade e do

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passado, que de demorados contatos com o livro, com a revista,com o jornal, com o teatro, com o cinema ou com o próprio rádio(1981, p. 5).

A LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e o PCN (ParâmetrosCurriculares Nacionais) já prevêem a utilização das histórias em quadri-nhos como recurso didático-pedagógico. Nas histórias em quadrinhos, ascrianças conseguem deduzir o significado da história, que não são capa-zes ainda de ler diretamente, observando a imagem. Vejamos o que afir-ma o PCN para o Ensino Fundamental referente a seleção de material:

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Todo material é fonte de informação mas, nenhum deve ser utiliza-do com exclusividade. É importante haver diversidade de materi-ais para que os conteúdos possam ser tratados da maneira maisampla possível.

O livro didático é um material de forte influência na prática deensino brasileira. É preciso que os professores estejam atentos àqualidade, à coerência e a eventuais restrições que apresentemem relação aos objetivos educacionais propostos. Além disso, éimportante considerar que o livro didático não deve ser o únicomaterial a ser utilizado, pois a variedade de fontes de informaçãoé que contribuirá para o aluno ter uma visão ampla do conheci-mento.

Materiais de uso social frequente são ótimos recursos de trabalho,pois os alunos aprendem sobre algo que tem função social real ese mantêm atualizados sobre o que acontece no mundo, estabele-cendo o vínculo necessário entre o que é aprendido na escola e oconhecimento extra-escolar. A utilização de materiais diversifica-dos como jornais, revistas, folhetos, propagandas, computadores,calculadoras, filmes, faz o aluno sentir-se inserido no mundo à suavolta. (disponível em: http://www.zinder.com.br/legislacao/pcn-fund.htm#3-0rg) .

É preciso que os educadores estejam abertos a estas novidades. Faz-se necessário resgatar a identidade do professor como um profissionalreflexivo, capaz de fazer, de compreender e de transformar a sua prática,no sentido de buscar e estar aberto para novas compreensões, sem pre-conceitos, sabendo incorporar e transcender os conhecimentos que sur-gem da racional idade técnica - como no pedido de Levy, e no entendi-mento de Gilberto Freyre. Uma abertura para a aceitação não pelo sim-

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pies consentimento, mas pela concordância coerente, refletida, pratica-da. Dessa forma, serão capazes não só de utilizarem as historias em qua-drinhos como recurso didático, mas de todas as novas mídias e tecnologiasde comunicação.

Conclusão

Nossa tentativa foi apresentar as histórias em quadrinhos como umaprodução artística e cultural de grande influência na sociedade. Produ-ção essa que permite a reflexão sobre valores, atitudes e riqueza históri-co-cultural, que promove a valorização de nossa gente e que contribui demodo interdisciplinar para uma compreensão reflexiva e mais prazerosados conteúdos escolares, fazendo que os preconceitos ainda existentes eresistentes possam cada vez mais ser superados.

Sabemos, contudo, que ainda existe um grande caminho a ser per-corrido até que os quadrinhos representem de fato um material expressi-vo nos diversos ambientes educacionais. Contudo, da mesma forma comovários preconceitos foram questionados e muitos outros superados, é que 95esperamos que cada vez mais os quadrinhos possam adentrar às portasdos colégios e dos diversos ambientes escolares com muito mais facilida-de do que antes, sendo recebidos por profissionais preparados - professo-res, diretores, orientadores pedagógicos, coordenadores - e dispostos aagregar-Ihes valor por meio do trabalho docente.

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Notas

Podemos citar como veículos de comunicação de massa a televisão, orádio, a internet, os jornais, as revistas - onde estão incluídas as histó-rias em quadrinhos - entre outros. Contudo, este conceito não se referediretamente aos veículos (televisão, jornais, rádio ...), mas, sim, ao uso

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A revolução dos quadrinhos: alternativa pedagógica para a cantemparoneidade

dessas tecnologias por parte da classe dominante. Todos eles têm comoprincipal função informar, educar e entreter de diferentes formas, comconteúdos selecionados e desenvolvidos para seus determinados pú-blicos.

2 O psiquiatra Frederick Wertham publica em 1954 o livro A Seduçãodos Inocentes, onde afirmava que os quadrinhos eram responsáveis pelainversão de valores e pela corrupção e delinquência juvenil. O trechomais conhecido e citado do livro fala justamente da relação entre BruceWayne e Dick Grayson, apontada errônea e preconceituosamente porWertham como uma relação entre dois homossexuais que moram numamansão suntuosa com lindas flores em vasos enormes.

3 Chamo de textos escolares aqueles que só circulam na escola, como olivro didático, por exemplo.

4 Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultu-ra. Desde sua criação em 1945, a UNESCO trabalha para aprimorar aeducação mundial por meio de acompanhamento técnico, estabele-cendo parâmetros e normas, criando projetos inovadores, desenvol-vendo capacidades e redes de comunicação atuando como umcatalisador na proposta e disseminação de soluções inovadoras para 97os desafios encontrados.

No Brasil, este código de ética foi elaborado por um grupo de editoresde revistas em quadrinhos, Editora Gráfica O Cruzeiro, EBAL, RGE eEditora Abril.

6 Histórias em quadrinhos.

7 Podemos chamar de produtos culturais os produtos gerados das capa-cidades intelectiva e manual humana e que possibilitaram a sobrevi-vência. Os produtos culturais são aqueles gerados dos mecanismosnos mais variados processos produtivos e aqueles gerados da dimen-são social presente nas relações humanas. Nesse sentido, torna-se entecultural o museu, o quadro de famoso e do não famoso pintor; sãoexpressões culturais os óculos que se usam no cotidiano, a caneta, aferramenta de trabalho, o computador, uma peça teatral, um trator, um'software', as técnicas educativas de organização social, o processo deprodução de conhecimento, as mídias e a tecnologia. Todos estes en-tes são frutos do processo produtivo e resultante da dimensão manuale da dimensão intelectiva da espécie humana.

8 "Histórias para meninos" (13 novo 1948); "Outra vez as histórias emquadrinhos" (5 fev. 1949); "Histórias em quadrinhos" (24 jun. 1950); "A

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Cláudio Soles Alcântora / Geraldo Mogelo Oliveira-Silvo

propósito de histórias em quadrinhos" (30 jun. 1950); "Ainda as histó-rias em quadrinhos" (8 jul. 1950); e "Histórias em quadrinhos, nacio-nalismo e internacionalismo" (9 jun. 1951). Os três artigos de 1950encontram-se reunidos em: Reino encantado das histórias em quadri-nhos. Rio de Janeiro: Brasil-América, s.d, p. 5-7.

9 O total dos artigos foi reproduzido em: FREYRE, Gilberto. Pessoas, coi-sas e animais. 1ª série: ensaios, conferências e artigos/ reunidos e apre-sentados por: Edson Nery da Fonseca. 2a ed. Porto Alegre-Rio de Ja-neiro: Globo, 1981. p. 344-355.

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Enviada para publicação: 20.03.2010Aceito para publicação: 25.05.2010

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