a restuaração da narrativa - luis alberto de abreu

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14/08/2015 Versão para Impressão http://www.sesipr.org.br/nucleodedramaturgia//print.htm 1/8 A Restauração da Narrativa, por Luis Alberto de Abreu 1 48 Curtir ABSTRACT O texto lança alguns elementos de raciocínio sobre o processo histórico de distanciamento dos valores públicos e privados e de como isso afetou profundamente não só a geometria da cena como alterou e limitou as funções de seus criadores e a relação espetáculo/público. E propõe um reequilibrio dos elementos épicos e narrativos, fundamentais na arte teatral, como uma das formas de busca da restauração da unidade entre espetáculo e público. Sempre admirei o surpreendente processo que leva um paleontólogo a refazer, a partir de um fragmento de osso, não só toda a ossatura de um animal préhistórico como seu aspecto, hábitos, costumes, o meio em que viveu e uma multidão de informações sobre aquele espécime. Guardadas as devidas proporções é como um fascinante jogo de investigação policial onde um pequeno e significativo detalhe se compõe com inúmeros outros, formando uma geometria que nos dá o rosto do criminoso, o aspecto de um animal ou o retrato de uma sociedade. Penso que foi por causa desse fascínio que me habituei a querer ler sinais e me tornei dramaturgo. Dramaturgia não é mais do que ler sinais por trás de uma ação ou de uma expressão humana. Em Medéia, Eurípedes nos revela um universo profundamente humano a partir de um crime bárbaro. O mesmo faz Ibsen que, a partir de uma pequena nota de página policial constrói Casa de Bonecas, um texto fundamental na moderna história da dramaturgia. Foi a capacidade de ler sinais, imagino, que levou Mikhail Bakhtin, a escrever "Cultura popular na Idade Média e no Renascimento", um livro que considero fundamental para qualquer dramaturgo ou estudioso ligado a teatro ou não[1] . Nele, o filólogo russo, a partir de um sinal (o riso) discute, entre outras coisas, todo o processo que levou a sociedade a transitar de uma forte noção de corpo social presente na Idade Média à afirmação de corpo individual como noção predominante no período do Romantismo. No bojo dessa transformação (e isso já é dedução minha), valores, procedimentos, ações, imagens, histórias coletivas perdem a importância em relação a valores, procedimentos, ações, imagens e histórias individuais. Foi também a tentativa de ler sinais que me levou a prestar atenção na organização urbana das cidades coloniais brasileiras e no que elas têm em comum tanto com o estudo de Bakhtin quanto com a questão proposta no título dessa reflexão: a restauração da narrativa. Nas cidades coloniais brasileiras as moradias eram construídas segundo um padrão determinado. Suas portas abertas durante o dia e apenas cerradas à noite, suas janelas sem trancas, davam acesso direto à rua ou à praça e viceversa, sem espaços intermediários entre o domínio público e o privado. Portas e janelas, mais do que instrumentos de iluminação, arejamento ou segurança tinham o valor simbólico de proporcionar o acesso fácil, livre de embaraços ao espaço íntimo e privado da casa. O portal da casa permitia o fluxo constante de informações, a relação estreita entre o mundo público e o privado. As moradias atuais são construídas de acordo com um padrão diferente. Entre a soleira da casa e a rua, estabeleceramse quintais, calçadas, muros, portões, grades, lanças, cacos de vidro, interfones. As explicações para essas diferenças na maneira das pessoas se relacionarem com o espaço urbano, com certeza, vão além de razões de segurança. A relação íntima entre os espaços físicos público e privado, sugerida pela urbanização "caótica" daquelas cidades (ruas de traçado tortuoso em razão da distribuição

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A Restuaração Da Narrativa - Luis Alberto de Abreu

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14/08/2015 VersoparaImpressohttp://www.sesipr.org.br/nucleodedramaturgia//print.htm 1/8ARestauraodaNarrativa,porLuisAlbertodeAbreu148 CurtirABSTRACTO texto lana alguns elementos de raciocnio sobre o processo histrico de distanciamento dosvalores pblicos e privados e de como isso afetou profundamente no s a geometria da cenacomoalterouelimitouasfunesdeseuscriadoresearelaoespetculo/pblico.Epropeumreequilibrio dos elementos picos e narrativos, fundamentais na arte teatral, como uma dasformasdebuscadarestauraodaunidadeentreespetculoepblico.Sempreadmireiosurpreendenteprocessoquelevaumpaleontlogoarefazer,apartirdeumfragmentodeosso,nostodaaossaturadeumanimalprhistricocomoseuaspecto,hbitos,costumes,omeioemqueviveueumamultidodeinformaessobreaqueleespcime.Guardadasasdevidasproporescomoumfascinantejogodeinvestigaopolicialondeumpequenoesignificativodetalhesecompecominmerosoutros,formandoumageometriaquenosdorostodocriminoso,oaspectodeumanimalouoretratodeumasociedade.Pensoquefoiporcausadessefascnioquemehabitueiaquererlersinaisemetorneidramaturgo.Dramaturgianomaisdoquelersinaisportrsdeumaaooudeumaexpressohumana.EmMedia,Eurpedesnosrevelaumuniversoprofundamentehumanoapartirdeumcrimebrbaro.OmesmofazIbsenque,apartirdeumapequenanotadepginapolicialconstriCasadeBonecas,umtextofundamentalnamodernahistriadadramaturgia.Foiacapacidadedelersinais,imagino,quelevouMikhailBakhtin,aescrever"CulturapopularnaIdadeMdiaenoRenascimento",umlivroqueconsiderofundamentalparaqualquerdramaturgoouestudiosoligadoateatroouno[1].Nele,ofillogorusso,apartirdeumsinal(oriso)discute,entreoutrascoisas,todooprocessoquelevouasociedadeatransitardeumafortenoodecorposocialpresentenaIdadeMdiaafirmaodecorpoindividualcomonoopredominantenoperododoRomantismo.Nobojodessatransformao(eissojdeduominha),valores,procedimentos,aes,imagens,histriascoletivasperdemaimportnciaemrelaoavalores,procedimentos,aes,imagensehistriasindividuais.FoitambmatentativadelersinaisquemelevouaprestaratenonaorganizaourbanadascidadescoloniaisbrasileirasenoqueelastmemcomumtantocomoestudodeBakhtinquantocomaquestopropostanottulodessareflexo:arestauraodanarrativa.Nascidadescoloniaisbrasileirasasmoradiaseramconstrudassegundoumpadrodeterminado.Suasportasabertasduranteodiaeapenascerradasnoite,suasjanelassemtrancas,davamacessodiretoruaoupraaeviceversa,semespaosintermediriosentreodomniopblicoeoprivado.Portasejanelas,maisdoqueinstrumentosdeiluminao,arejamentoouseguranatinhamovalorsimblicodeproporcionaroacessofcil,livredeembaraosaoespaontimoeprivadodacasa.Oportaldacasapermitiaofluxoconstantedeinformaes,arelaoestreitaentreomundopblicoeoprivado.Asmoradiasatuaissoconstrudasdeacordocomumpadrodiferente.Entreasoleiradacasaearua,estabeleceramse quintais, caladas, muros, portes, grades, lanas, cacos de vidro, interfones. Asexplicaes para essas diferenas na maneira das pessoas se relacionarem com o espao urbano, comcerteza, vo alm de razes de segurana. A relao ntima entre os espaos fsicos pblico e privado,sugeridapelaurbanizao"catica"daquelascidades(ruasdetraadotortuosoemrazodadistribuio14/08/2015 VersoparaImpressohttp://www.sesipr.org.br/nucleodedramaturgia//print.htm 2/8dascasas,moradias desalinhadas que avanavam sobre a via pblica, ruas sem sada que terminavamabruptamentenumaportaderesidncia)indicaqueamesmaindefiniodefronteirasseestabelecianosmaisvariadosnveisdasrelaeshumanas.E,emespecial,nacultura.Nointeriordeumanoofortede"corposocial"estabeleceseumimaginriocomumdemitos,crenas,histrias,memria,etc.dointeriordesse imaginrio comum, pblico e permevel, que ao mesmo tempo em que invade a memria e osvaloresdoindivduo,abrigaeagregasuascontribuies,queaspessoasextraamomaterialparasuasexpresses simblicas ritos, mitos, arte. foi de dentro de um imaginrio e de experincias tornadascomuns que floresceu a narrativa como transmissora de conhecimento e, mais importante, deexperincias individuais para o repertrio coletivo. Qualquer alterao em quaisquer dos planos oconcretoeosimblicoprovocaalteraonaformadeexpressohumana.EsseoraciocniodofilsofoWalterBenjamin,emseuensaioprimoroso"ONarradorConsideraessobreaobradeNikolaiLeskov"[2],ondeanalisaadecadnciadaformanarrativaapartirdasrelaesconcretasdohomemeotrabalho.Adecadnciadanarrativaestintimamenteligadadecadnciadoimaginriocomum.OIMAGINRIONo existe experincia coletiva. Existem acontecimentos, fatos coletivos, como a guerra, peste e morteque em determinado momento podem atingir indivduo ou sociedade como um todo. No entanto, aexperincia de cada um desses acontecimentos s pode ser absorvida individualmente. O que no querdizer que uma experincia no possa ser compartilhada, imaginada, comunicada e sensibilizada. Aocontrrio,defundamentalimportnciaquetodaexperinciahumanasignificativapossasercomunicadatendo em vista a criao de um repertrio comum de experincias, material bsico para odesenvolvimentodeumaconscinciacoletiva.Econscinciacoletivaoqueplasmaosurgimentodeumdestino comum. E destino comum o que orienta e d forma ao que chamamos de comunidade,cidadaniaounao.Essa transmisso de experincias individuais para a esfera coletiva d forma ao que chamamos"imaginrio".Umimaginriorepertriodeimagenscomunsaumaculturae,emdecorrncia,dehistrias,tipos, crenas, conceitos e comportamentos necessariamente uma criao coletiva. Mais, umimaginrio determinado por condies objetivas, sociais, histricas. Ou seja, no h a possibilidade deum indivduo criar uma imagem fora do imaginrio de seu meio. Por exemplo, na Idade Mdia seriapossvelhaverumheregemasnuncaumateudentrodaqueleimaginriototalmentereligioso.Oquenoquer dizer que o imaginrio no seja algo profundamente dinmico. Cabe ao artista, ao homem criador,perceber, nas condies objetivas do processo histrico e social, as possibilidades de surgimento denovasimagensedarluzanovashistrias,idias,crenas,quevointegraroimaginriodesuapoca.Juntandoascoisastodas:ofatodeascasascoloniaisseremvoltadasparaasruasepraasagradativaperda, atravs dos sculos, da noo de corpo social a necessidade de compartilhamento deexperincias (individuais) para a constituio de um imaginrio (coletivo), tudo isso, creio, tem relaodiretacomotipodeartequefazemose,emespecial,comadramaturgia.Antes,porm,necessrioesclarecerqueoprocessodeperdadanoodecorposocialno,porsis,negativa. Ao contrrio, correspondeu abertura do fantstico caminho de fortalecimento da noo deindivduo e decorrentes noes de independncia, liberdade individual, humanismo. O gradativoafastamentodohomemdanaturezaedocorposocial,ohomemquesesabediferenteeisolado,quetemumdestinoprprio,quasedesenraizadodeseumeio,fezderivarahistriadacivilizaoparaoutrorumo.ODavi,deMichelngelo,comseu semblante pensativo e algo aflito, como se carregasse o peso de seuprpriodestino,tidocomoummarconoprocessoquehaveriadecolocarohomemnocentrodaHistriaedacriao.Nadramaturgia,Hamlet,deShakespeare,igualmenteconsideradooprottipodohomemmoderno,umhomememconflito,envolvidocomapesadaheranadeseuspaisequeoscila,indeciso,nabuscaumnovocaminho.Essasduasimagensiluminaramocaminhodaafirmaodoindivduoperanteanaturezaeocorposocial.14/08/2015 VersoparaImpressohttp://www.sesipr.org.br/nucleodedramaturgia//print.htm 3/8A questo que se coloca se no necessrio, hoje, avaliar ambos os caminhos (o pblico e privado,indivduo e corpo social, criao individual e imaginrio) e talvez equilibrar novamente os elementos. Aquestosecolocaporque,nombitodoteatro,foioprogressivoisolamentodoindivduodeseumeioquepossibilitou o fortalecimento e subseqente predominncia de um gnero de invejvel poder dramtico,mas significativamente frgil no que se refere apreenso do mundo real. A predominncia domelodrama, como veremos mais adiante, determinou o afastamento dos contedos narrativos antesfortementepresentesnoteatro.DATRAGDIAAOMELODRAMATalvezaperdadeumimaginrioondeoshomenspossuambravuraherica,coragemehabilidadeparaafrontarosgrandesdesafiosdaexistncia,diminuiuemnsmesmosacapacidadedenosreconhecermoscom tais valores. E se isso verdade, diminuiu bastante em ns esses poderes. Mais precisamentediminuiunossacapacidadedereconheclosemnsprprios.Parecehaverrelaodiretaentreoenfraquecimentoda capacidade de luta, fora moral e grandeza dosobjetivos dos personagens e o progressivo abandono do gnero trgico e a conseqente adoo domelodramacomogneropreferencialnosculopassado.Prefernciaestaquepermaneceatosdiasdehoje. No creio que caiba estabelecer juzo de valor sobre assunto. Os gneros todos, da farsa aomelodrama, passando pelo drama e pela tragdia, so importantssimos enquanto revelam esferas daalmaedosconflitoshumanoscomvigorepropriedadequeostornaminsubstituveis.Seaafirmaodanoodeindivduofoiumbeminestimvelparaoserhumanoomesmosepodedizerdodesenvolvimentoe aperfeioamento de novos gneros como o drama e o melodrama. A questo que se coloca o queperdemosnesseprocesso.Visto sob a tica da mitologia, o melodrama, est relacionado a uma mentalidade adolescente. Nada denegativo nisto se no considerarmos a adolescncia uma experincia humana negativa tanto aadolescnciaquantoomelodramaestorelacionadosaquisiodossentimentosefora.Namitologia,oheri adolescente porta uma pequena faca (no uma espada que smbolo do heriguerreiro adulto) esai pelo mundo. ajudado por um parceiro poderoso e no humano e est sujeito ao acaso e s forasmgicas(natrajetriaadultadramaetragdiaoheridependefundamentalmentedesieseudestinodeterminado pela sua ao). Nas trajetrias mticas relacionadas ao heri adulto no existe o acaso,elemento fundamental no melodrama (doenas repentinas, golpes da sorte so acontecimentos que temforteinterferncianummelodrama).Aocontrriododramaedatragdia,oheridomelodramanecessariamenteumavtima.Despossudodefora,elesucumbeaodoselementosexternos,devilesevils,incapazdesuplantaroslimitesdasleisedamoral.Noinvestecontraenemconsegueselibertardopoderdafamliaoudasociedade.Muitas vezes incapaz de perceber que a origem de seus males social. Em geral, o herimelodramtico no vai alm de seu quintal, no vai alm de relaes familiares e humanas de poucaprofundidade. Digo em geral porque algumas peas desse gnero tratam os sentimentos humanos deforma profunda e verdadeira, tornando, em minha opinio, obras primas, apesar de no descerem svastas complexidades da tragdia ou do drama. Personagens trgicos como Electra e Orestes matamClitemnestra,suameDr.Stockman,personagemdramticode"OInimigodoPovo",deIbsen,abrelutaabertacontraseuprprioirmoecontraasociedadeNora,protagonistadodrama"CasadeBonecas",tambm de Ibsen, abandona marido e famlia. Mas a famlia Tyrone, no primoroso melodrama "LongaJornada Noite Adentro", de Eugene O'Neil, decai e sofre sem identificar a origem de seus males.[3]Encerradosdentrodeseuprpriomundoindividual,osherismelodramticosdesconhecemasforasdaterra,domundoedasruasdosquaiseleseexilou.Enquantoosheristrgicoschegamaomundocomo"herisdecultura",personagensquevotransformaromundo,derrogarvelhasleisetrazernovas,lutardecididamente contra a herana e imagens dos pais e das tradies do cl ou da sociedade, oenfraquecidoherimelodramticosucumbeaummundoquedesconheceealeismoraiseregrassociaisquenoconseguemudar.Omundoalgomisteriosoeassustador,um"sistema"indecifrvel,eopalco14/08/2015 VersoparaImpressohttp://www.sesipr.org.br/nucleodedramaturgia//print.htm 4/8de luta do heri melodramtico no o mundo catico ou a sociedade organizada sobleisopressoraseinjustas. O universo de luta do heri melodramtico o dos seus sentimentos. E esses sentimentos solimitados pelas leis, pelos preceitos religiosos e pelos bons costumes. E, ainda mais, poderamos dizerque, embora os sentimentos sejam o elemento fundamental do melodrama esse gnero sobreviveprincipalmentenodo exerccio dos sentimentos mas de sua negao. Os heris dramticos ou trgicosvivem os sentimentos com toda a intensidade e, muitas vezes, so punidos exatamente por isso, pelodescomedimento,pela falta de medida com que o vivem. Os heris melodramticos "tentam" viver seussentimentossemconseguiralcanlos,sejaporacidente,pelaaodoviloouporfraquezamoral.Aoperderocontatocomapraa,comasruas,comacomunidade,enfim,ohomemperdeseuimaginrio,abandonaafontedesuaculturaediminuemseconsideravelmenteaquantidadeeaqualidadedasexperinciasquepodemsercomunicadas.Seurepertriodeimagens,semoacrscimodasimagensapreendidasnocontatoeconflitocomoutroshomens,reduzsequelasgeradasapenasapartirdesiprprio(ossentimentos)eadvindasnocontatoeconflitocomseureduzidomeiofamiliarecrculosocial(moral).Osprpriossentimentossemosadioconflitocomacomplexidadedomundorealtendemapermanecernasuperfcieouasetornaridealizados.Aoabandonarasruasohomemdiminuisubstancialmentesuacapacidadedeaprender.Osaberdistanciasedosentir. bem caracterstico que nossa poca tenha especial predileo pelo melodrama. um gnero queretratafielmenteaperplexidadedamaioriadenscomummundoquenomaisconhecemos.Ummundocomplexo, vil, catico, violento e inimigo, do qual nos afastamos para o aparente porto seguro de nossacasa e dos nossos sentimentos (desde que no escavemos esses sentimentos at as profundidadesabissaisdosinstintos).Quedistnciaenormedodramaoudatragdiaemqueospersonagensinvestememdireoaomundoparatransformloemalgopossveldeserordenadoehabitado!ACRISEDesdequecomeceiminhacarreiraprofissionalcomodramaturgo,hvinteanos,ouofalaremcrise.Hojeme pergunto se possvel fazer arte em qualquer lugar do mundo sem crise. Isso no quer dizer quetenha me habituado a ela, mas que a considero elemento fundamental do processo criativo, situada nomesmonveldeimportnciadaobservao,dareflexo,daatenooudaintuio.Acrisenorteiaenosfazmaisespertos.interessanteverificarqueoafastamentodantimaconvivnciaentreopblicoeoprivado,oindivduoea cultura, expresso nas moradias das antigas cidades, um smbolo que oculta mudanas muitoexpressivasnasrelaeshumanaseartsticas.Aperdadoimaginriolevouadanosquesomenteagoracomeam a ser percebidos de forma evidente. Por exemplo, a to comentada crise relacionada ao fluxode pblico no teatro, cinema, literatura e outras artes, uma dessas evidncias. Obviamente, a crnicacrise determinada pela falta de interesse do pblico pela produo cultural tem mltiplas e importantesrazes. So levantadas desde razes histricas at a quase nula sensibilidade das instituiesgovernamentaisemincentivaroacessodapopulaoaosbensculturaisopesodamdiaeosinteressesda indstria cultural, entre outras. Todas essas razes possuem slidas justificativas. Mas uma razopoucoaventada,e,talvezamaisimportante,sejaaqueexplicaqueodesinteressedopblicosedeveaofato de que talvez a produo cultural no esteja falando a mesma lngua que ele, nem veiculando asimagens extradas de um imaginrio comum. Talvez a grande aventura da busca da individualidadeiniciadanoRenascimentotenhaseexacerbadodetalformaapontodeesquecermosdaexistnciadeumcorposocial,deumimaginriocultural.Talvezoartistatenharenunciadoaseromeiodeexpressodasvariadas experincias humanas para expressar a si prprio. Talvez o artista tenha aberto mo deexpressaromundoeavidaparaexpressaroprpriomundoeosprpriossentimentos.Etalvezoprpriomundoeosprpriossentimentosnosejamassimtoimportantes.Pelomenosparaopblico.Noquea totalidade da produo cultural atual seja apenas feita de consideraes em torno do umbigo de seusprprios realizadores. Ao contrrio, percebese em grande parte da produo artsticocultural umempenho decisivo em questionar e encontrar formas de comunicao mais eficientes com o pblico. A14/08/2015 VersoparaImpressohttp://www.sesipr.org.br/nucleodedramaturgia//print.htm 5/8pergunta se essas formas eficientes no esto intimamente ligadas recuperao de um imaginriocomum.RESTAURARANARRATIVAOlongoelentoprocessodeafirmaodosvaloresdoindivduoalcanaatosdiasdehoje.Ese,duranteesse processo, houve poca em que tanto os valores coletivos quanto os do indivduo conviveram, hoje,est claro, existe uma sobrevalorizao dos valores individuais em detrimento dos outros. E,paradoxalmente, na poca da chamada cultura de massa que a noo de indivduo se impe demaneiratoavassaladora.Outalvezoprprioconceitode"massa"comoagrupamentoinfinito,amorfoesemiconsciente de seres propicie a sobrevalorizao do indivduo. O apelo da propaganda para que oindivduo se destaque da massa amorfa! Isso s pode ser feito apoiandose e reafirmando em si, adinfinitum,anoodeindivduoemcontraposiomassainforme.Sempretenderaquidiscutiroconceitode massa para mim no mnimo uma impropriedade , o fato que, neste fim de sculo, o podertransformadordaartepareceterseesgotadoeseuscaminhosparecemterconduzidoabecossemsada.Parece que enquanto as populaes aumentam geometricamente dinamizando de maneira aguda asrelaes sociais, inversamente as manifestaes artsticas vem minguar seus pblicos e, como queexcludasdopoderosoprocessoquemovimentaasociedadecontempornea,recolhemseaseusguetoscomsuasdiminutasplatias.Fatocaractersticoe,ameuver,reveladordodistanciamentoentreespetculoepblicoaperdaqueoteatro vem sofrendo, nos ltimos trs sculos de seus contedos narrativos. O que era elementoconstitutivo do espetculo entre os gregos ou mesmo na poca de Shakespeare hoje se limita aresqucios,praticamente.Umaououtrareminiscnciadesteoudaquelepersonagemnosinformamqueanarrativa tambm est presente num espetculo, como um apndice de que, se no estiver inflamado,no se percebe a existncia. O fato que os contedos narrativos numa pea teatral no so apenaselementos estilsticos e sua perda corresponde a um prejuzo to gigantesco que chega quase adescaracterizar a arte teatral. Atualmente tomamos arte dramtica como sinnimo de arte teatralesquecendonos de que a arte da narrativa sempre teve lugar marcante na arte teatral. E, dada aimportnciadaconjugaodessasduasartesnoteatrocreiosertilabrirumparnteseparaadiscussodessetema.O"ONTEM"EO"AQUIEAGORA"Existem, a meu ver, dois elementos fundamentais que estruturam o que se convencionou chamarfenmenoteatral.Enocoincidnciaqueessesmesmoselementosestejamtambmpresentestantonomitoquantonoritoreligioso:oaquieoagora.Teatroumaarteefmeraepresenteeissoquerdizerquesua existncia se d no momento em que o espetculo acontece em sua relao com o pblico.Terminado o espetculo, terminou a arte teatral. Teatro uma arte que s tem existncia em seumomentopresente.Issopareceumaobviedade,massuaprpriaessncia.Teatroaaopresente,aemoopresente,oatoreopblicopresentes.Teatronosimplesmenteumahistriacontada,umaexperincia viva, na definio de Eric Bentley. Sensaes como xtase, gozo, catarse, emoes,alheamento,vivnciaalmdoconcretodaexistncia,soelementosnecessariamentepresentestantonoritoreligiosoquantonomitoounoteatro.Comumagrandediferena:emboraaexperinciaviva,o"aqui,agora" defina o teatro, h outro elemento que o separa tanto da religio quanto do mito e lhe d outrageometria e alcance. Teatro, embora seja um bem do esprito tambm algo profano, concreto, onde oxtasealgocomedido,ondeasalturasdasemoesquepodemnoterlimitesnoritoreligiososocircunscritas ao mundo real. No teatro, o contato com o espiritual no um fim em si, como no ritoreligiosoocontatocomadivindadeoobjetivofinal.Noteatro,enofalamosapenasdoteatrogrego,oxtasenecessitadeumsentido,umlgos,umarazo.Ousoatrefletirqueolgostambmestpresentenas religies, afinal existem a doutrina, os preceitos e se no existissem, existe a organizao, ageometria do rito. Religio e arte, no entanto, abrigando os mesmos elementos possuem objetivosopostos:olgosnareligiovisaaoxtase,aocontatocomodivino,teofania.Naarte,oxtasecdigodeacessoaologos,aoreconhecimentodatrajetriahumana.Teatrotambmumaformadesaber.14/08/2015 VersoparaImpressohttp://www.sesipr.org.br/nucleodedramaturgia//print.htm 6/8Reflito que se a ao teatral no geral e os dilogos, no particular, dizem respeito ao presente, representao, ao "aqui, agora", a narrao diz respeito aos fatos acontecidos, ao ontem, ao passado.Bem, fatos acontecem em determinado lugar e em determinada poca. Por conseqncia, o universopreferencial da narrao o universo histrico, o tempo e os acontecimentos concretos da histria dohomem.E,nessesentido,anarraofuncionacomocdigodeacessoaolgos,ouseja,temopoderdeinserir, com vantagens, na ao teatral o territrio concreto das relaes humanas (sociais, polticas,econmicas e outras) onde se d a trajetria dos personagens. O personagem, assim, atravs danarrao,seinserenoterritrio,notempoenoespaohistricos,e,a,buscaumsentidoprasuaaoeparasuaexistncia.Edesseconflito,dasrelaesentreapersonagemeseuuniversohistricopossvelsurgirolgos,arazoentredoiselementoscontraditrios:personagememeio.Isto posto, uma questo se levanta, bvia: No possvel obterse o logos to somente com a aorepresentada,semainserodanarrativa?Arespostatambmumbvio"sim".Masporque,ento,osgregos e Shakespeare utilizavam tanto a narrativa? No seria porque a narrativa potencializa arepresentao?Eseelatemessapotnciacomoissosednacena?OSISTEMANARRATIVOO teatro desde o seu surgimento tem sido um sistema integrado de elementos picos e dramticos: empocasmaisremotascomfortepredominnciadeelementospicoseempocasmaisrecentescommaisacentuada presena do elemento dramtico. No sculo XIX o equilbrio desses elementos foi fortementealterado. Uma srie bastante grande de fatores contribuiu para isso. E o teatro tornouse um sistemafundamentalmente dramtico. O exlio da narrativa no teatro provocou distores. Uma delas pode serverificada na artificialidade de alguns textos melodramticos, no idealismo extremado, na bonomiainverossmil,no carter maniquesta de seus heris e viles. Os personagens, extrados do contexto dasrelaes humanas reais, tornamse apenas emblemas de virtude ou vcio. Afastados do fazer real, dasrelaeshumanas,anicarealidadequerestaasubjetividadedossentimentos.Oteatrotornasemaise mais "sentir", tornase mais xtase e emoo e menos saber. Nesses textos melodramticos atadmirvel a capacidade tcnica dos seus autores em provocar emoo no pblico com personagensabsolutamente desprovidos de humanidade. Personagens nessas peas so ferramentas hbeis paraextrair emoo das platias, mas muitas vezes no so, absolutamente, personagens pertencentes aomundoreal.Aemoopairaexacerbadanaatmosfera,mascarecedesentido.Talvezsejaporissoque,hoje,noscausarisootomexageradamenteemotivodessesvelhostextos.FoicontraessaemooforadecontextoqueBrechtseinsurgiuecomseuteatropicopropsumnovoreequilbriodoselementospicosedramticospresentesnoteatro.Masoostracismodanarrativanoteatroprovocououtrasmudanas.Oespetculoteatraltomouumanovaconfigurao:deartesonora,cujosentidoprivilegiadodeacessoeraaaudio(emingls,platiaaindaaudience) o espetculo teatral tornouse algo a ser, em primeiro lugar, visto. O pblico tornaseespectador, aquele que v. Isso provocou alteraes profundas na relao do espetculo teatral com opblico.Este passa a assistir o espetculo. Esse "assistir" no desprezvel nem deixa de ser uma boarelao com a platia, mas o fato que fomos levados ao esquecimento de outras relaes. No bojo doassistir, a quarta parede tornase de fato uma instituio e o ato teatral tornase profundamenterepresentado.Oespetculocomea a acontecer fundamentalmente no palco. O assistirrepresentaoaindapreservaaimaginaodopblico,mas,talvez,comomenosintensidade.Nosistemanarrativo,aocontrrio,opblicoointerlocutorprivilegiado,arelao"olhonoolho"entrepersonagensnopalcotransferesepara"olhonoolho"entreator/narrador/personagemepblico.Aponteobstrudapela"quartaparede"novamenteaberta.Osistemanarrativotambmlanamodamaiorcontribuioquepblicopodetrazeraoespetculo:umaimaginaoativa.Atravsdanarrativaopblicotambmconstrutordasimagensdoespetculoeoespetculoteatral,aoinvsdeserumsistemapredominantementesensvel,tornasetambmumsistemafortementeimaginativo[4].14/08/2015 VersoparaImpressohttp://www.sesipr.org.br/nucleodedramaturgia//print.htm 7/8No entanto, a vantagem maior do sistema narrativo que ele no exclui o vigor da representaodramtica. Ao contrrio, a abriga dentro de si, possibilitando inumerveis combinaes entre narrao erepresentao.Olimite,defato,aimaginaodopalcoedaplatia.CONCLUSOEsta , de fato, uma concluso precria. Tanto no que se refere s infinitas possibilidades do sistemanarrativo quanto no que diz respeito a alguns tpicos levantados nesta generalizada reflexo. Cada umdoselementoseafirmaesaquilevantadosexigiriaespaomaior,reflexomaisargutae,seguramente,acontribuiodeoutrosartistasetericosinteressadosnotema.O que podemos concluir dos elementos aqui expostos que a restaurao da narrativa e oaprofundamento da pesquisa cnica em torno de suas caractersticas (atransmisso de experinciashumanas e no de meras informaes apenas uma delas ) pode se juntar a uma srie de iniciativasquevisamarestauraodeumimaginriocomumentrepalcoeplatiae,apartirdisso,construirumnovorelacionamento. Bertolt Brecht com seu teatro pico apenas iniciou um caminho que pretendia um novoequilbrio entre os elementos picos e dramticos existentes no teatro. Peter Weiss, Heiner Mller,BernardMarieKoltseoutrosaprofundaramessecaminho,masapesquisadaspossibilidadesdosistemanarrativo apenas se inicia. Creio firmemente que o sistema narrativo um sistema de ganhos. umsistemacomplementaraosistemadramtico/representativoenoexcluinenhumaconquistadesseltimo.Ao contrrio, provoca, lana desafios a todos os criadores e reintroduz o pblico como elementoconstrutordoespetculoteatral.Semaimaginaodopblicooteatronarrativonoexiste.Ao propor a partilha imaginativa de experincias humanas, o teatro narrativo solicita algo alm da merageometriaesttica.Propeepedearestauraodaantigaunidadeentreopblicoeoprivado,oindivduoe sua comunidade, a fora progressista e de ruptura da imaginao individual e a solidez do imaginriocoletivo.LusAlbertodeAbreudramaturgoeestudiosodedramaturgia.Hmaisdedezanosdesenvolveestudos nessa rea com autores jovens, no Grupo dos Dez (So Paulo) e Grupo ABC deDramatugia(EscolaLivredeTeatrodeSantoAndr).Preparalivrosobrearelaoentreaestruturadramatrgicaeosmitosearqutipos.Escreveu"FoiBom,meuBem?","BellaCiao","LimaBarreto,AoTerceiroDia"e"GuerraSanta",entreoutraspeas.Hseteanosmantm,emSoPaulo,comodiretorEdnaldoFreireaFraternalCompanhiadeArteeMalasArtes,oProjetodeComdiaPopularBrasileira.Atualmente voltado ao teatro narrativo desenvolve pesquisas que tem como base o teatro N,visando criao de uma forma teatral breve e intensa. Entre suas peas criadas dentro dosistemanarrativodestacamse"OLivrodeJ",dirigidaporAntonioArajocomoGrupoTeatrodaVertigem,"Iepe"e"TillEulenspiegel",comaFraternal,dirigidasporEdnaldoFreire.[1]BAKHTIN,Mikhail.CulturapopularnaIdadeMdiaenoRenascimento:ocontextodeRabelais.SoPaulo:Hucitec,1987.[2]BENJAMIN,Walter.Magiaetcnica,arteepoltica:ensaiossobreliteraturaehistriadacultura.Trad.DeSrgioP.Rouanet.SoPaulo:Brasiliense,1994.(Obrasescolhidasv.1)[3]Algunsestudiososconsideram"LongaJornadaNoiteAdentro",deO'Neill,"AMortedoCaixeiroViajante",deArthurMiller,eat"UmBondeChamadoDesejo",deTennesseeWilliams,comodramasquandonotragdias.EricBentley,emseulivro"Aexperinciavivadoteatro",consideraoscomoautoresmelodramticosepartilhodesuaopinio.[4]Umadasmaisbelasemarcantespropostasdessejogopotentedeimaginaoentrepalcoeplatia14/08/2015 VersoparaImpressohttp://www.sesipr.org.br/nucleodedramaturgia//print.htm 8/8Linkdocontedo:http://www.sesipr.org.br/nucleodedramaturgia/FreeComponent9545content77389.shtml http://www.sesipr.org.brfeita no prlogo de Henrique V, de Shakespeare, quando o ator confessase incapaz de representarsozinho a guerra entre Frana e Inglaterra e, humildemente, solicita a imaginao do pblico comoprecondiodaexistnciadoespetculo.