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A reprodução parcial ou total deste livro, por quaisquer meios, é livre e gratuita.

O autor declara que as informações contidas neste livro são corretas e completas tantoquanto é de seu conhecimento, e não se responsabiliza por eventuais imprecisões eomissões, cabendo ao leitor buscar suas próprias fontes e tirar suas próprias conclusões,em qualquer caso de dúvida. Os conceitos e ideias apresentados nesta obra refetem ospontos de vista do autor. As ideias de design aqui apresentadas são sobretudo sugestõespara fns ilustrativos, e não receitas universais ou infalívveis. Nada substitui o bom senso ea experiência própria. O autor exime-se de qualquer responsabilidade sobre os resultadosou consequências da aplicação inadequada das ideias aqui contidas.

Impresso em papel reciclado

©

2018, Cássio P. Octaviani

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Por que este livro?

Tem algo de muito errado neste mundo. A humanidade está com umgrande problema nas mãos. Claro que não é só um problema — problemas hámuitos, tem problema pra todo lado. Mas um em particular, sem dúvida o maiorproblema de todos, é o objeto deste livro: estamos galopando de rédeas soltasrumo à destruição total da vida no Planeta Terra. Sério, sem exagero. A nossacivilização é totalmente insustentável. Com uma combinação fatal desuperpopulação, hiperconsumo, vívcio por crescimento, uso irracional dosrecursos, descaso pela natureza, etc., estamos destruindo as verdadeiras basesque sustentam a vida em geral, inclusive a humana, no nosso planeta.

Sabe, quando você olha para as pessoas individualmente, talvez pareça quenão há nada errado, que estão apenas cuidando de suas vidas — trabalhando,tratando de sobreviver, cuidando de suas casas e suas famívlias, perseguindo seussonhos... Mas, quando você olha para a humanidade como um todo, parece queestamos determinados a destruir até a última mata, a poluir até o último rio eúltimo mar, levar à extinção até a última forma de vida, exceto aquelas que nossão diretamente úteis. Certamente, qualquer ser extraterrestre de inteligênciasuprema que visitasse nosso planeta não teria de nós outra impressão, senão essa.

Agora, é claro que nós, seres humanos, também somos apenas seres vivos,e dependemos dos mesmos recursos que as demais espécies para sobreviver.Assim, ao poluirmos as águas, destruirmos os solos e acabarmos com abiodiversidade, estamos decretando também nossa própria destruição. Mas opior é que a imensa maioria das pessoas nem sequer está ciente deste terrívvelfato! Este assunto é um imenso tabu e jamais é tratado de forma direta, clara.Você pode assistir televisão a vida toda, ouvir rádio, ler todos os jornais erevistas, e jamais vai ouvir alguém falando sobre isso. Tampouco nas escolas, emesmo nas universidades, se fala sobre isso! Embora assuntos ligados àsustentabilidade estejam presentes o tempo todo, são sempre apresentados deforma vaga, oblívqua, evasiva, jamais sequer aranhando a profundidade emagnitude do problema e, especialmente, sua urgência.

Claro que há pessoas que estão cientes da gravidade da nossa atual criseambiental e civilizacional, e suas terrívveis implicações para o futuro dahumanidade e a vida na Terra. Porém, mesmo essas, talvez por inércia, ou pornão conseguirem enxergar uma alternativa viável, continuam na prática secomportando exatamente como todas as demais; ou seja, por estarem presas aosparadigmas vigentes da nossa sociedade atual, a simples consciência não basta

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para fazer com que as pessoas deixem de fazer parte do problema e passem acontribuir com qualquer solução.

Este livro tem, portanto, dois objetivos: em primeiro lugar trazer aoconsciente coletivo a gravidade da atual crise ambiental e as terrívveisimplicações da insustentabilidade de nossa civilização, da forma clara e objetivaque o assunto merece. E em segundo lugar, mas não menos importante, discutirsoluções para esse problema, promover uma pauta de propostas concretas dealternativas a esse caminho de autodestruição que a humanidade vem trilhando.Nesse sentido, será apresentada a proposta da permacultura, que acredito ser omelhor caminho para a preservação da vida na Terra, e a construção de ummundo não apenas sustentável, mas também mais saudável, equilibrado, justo efeliz.

Não tenho aqui a pretensão de responder a todas as perguntas, ou ofereceruma solução simples e defnitiva para todos os problemas. Muito ainda há que seaprender e desenvolver para a construção de um caminho sustentável para ahumanidade, e ainda estamos apenas no começo dessa jornada. O maisimportante neste momento é tentar fazer com que mais pessoas parem parapensar, refitam conscientemente sobre o que vimos fazendo de nossas vidas enossa casa, percebam o lado negro, predatório e destruidor de nossa civilização,e unam-se no desafo de repensar, reinventar nossa sociedade, para que essadeixe de ser uma ameaça ao mundo natural, do qual dependemos. Trata-se deuma tarefa colossal, mas ao mesmo tempo, certamente o desafo que mais vale apena enfrentar, dentre todos os que possam existir. Afnal de contas, está emjogo a continuidade de nossa própria existência, além de todas as outras formasde vida que há no nosso planeta.

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Dedico este livro ao planeta Terra

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Índice

Por que este livro? ................................................................……..................... i

Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional

1. Uma História de Insustentabilidade ….................................................…... 3

2. Retrato do Mundo Hoje …................................................................…........ 7

3. A Crise Ambiental ..................................................................................... 25

4. Projeções para o Futuro .......................................................................... 39

5. Estado de Emergência Planetária .......................................................... 51

Parte II – A Alternativa da Permacultura

6. Tempo de Mudança .....…......................................................................... 55Mas afinal, o que é a PERMACUTTURA?Histórico da permacultura

7. Éticas e Princípios da Permacultura ...................................................... 63Éticas da permaculturaPrincípios da permacultura

8. Água em Permacultura ............................................................................ 98Água na zona ruralÁgua para a casaÁgua nas cidades

9. Permacultura Rural ................................................................................ 127SolosZonas de proximidade e intensidadeParticularidades dos trópicos úmidosParticularidades dos trópicos semiáridosEstabelecendo um projeto de permacultura rural

10. A Habitação Permacultural ................................................................. 202Design da casa permaculturalBioconstrução

11. Saneamento Ecológico ....................................................................... 229Técnicas de saneamento ecológicoSoluções ecológicas para o saneamento urbano

12. Energia ..........................…..................................................................... 26113. Permacultura Urbana .......................................................................... 26714. Estilo de Vida da Permacultura .......................................................... 28515. Comunidades em Permacultura ......................................................... 29316. Aprendizado da Permacultura ............................................................ 30617. Consultoria e Prestação de Serviços em Permacultura .................. 32118. Proposta de uma Transição Global ................................................... 329

19. Conclusão ............................................................................................. 339

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Parte IA Crise Ambiental e

Civilizacional

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 1. Uma História de Insustentabilidade

1UMA HISTÓRIA DEINSUSTENTABILIDADE

Sustentabilidade é uma palavra que está na moda (na verdade, acho que jáaté saiu de moda!). Nos últimos tempos, ela tem sido usada tão abusivamenteque, para muitos, já passou a não signifcar nada em particular. Empresasafrmam em suas propagandas que estão comprometidas com a sustentabilidade;polívticos simplesmente enfam a palavra aleatoriamente em seus discursos, comoalgum tipo de palavra mágica. Livros escolares e programas de televisãoapresentam o assunto de forma tão superfcial, vaga e desconexa que acabamdando a impressão de que não há nada com que se preocupar.

Mas, afnal, o que é a sustentabilidade, e por que isso é importante? Umaconsulta ao dicionário é pouco esclarecedora: “sustentabilidade. sf. Qualidade,característica ou condição de sustentável.” Onde sustentável é algo que podepermanecer ou sustentar-se.

Agora, o que temos a ver com isso? Qual a importância disso para ahumanidade?

A nossa civilização é totalmente insustentável, pois com uma combinaçãofatal de superpopulação, hiperconsumo e uso irracional de recursos, estamosconsumindo vorazmente os recursos naturais necessários à nossa própria vida.

Vivemos em um planeta fnito, de recursos fnitos; por simples lógicamatemática, seu consumo contívnuo levará à sua exaustão. Com o fm dosrecursos que servem de base para a existência de vida, obviamente não poderá

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 1. Uma História de Insustentabilidade

haver vida. Isso signifcará o declívnio da humanidade e, possivelmente, suaextinção, arrastando junto boa parte da vida complexa no planeta. Muitoscientistas acreditam que, mantido o atual ritmo de consumo de recursos edestruição ambiental, isso deverá ocorrer num futuro bem próximo.

Agora, pergunte às pessoas o que elas entendem por sustentabilidade, eprovavelmente ouvirá algo do tipo: “signifca preservar os recursos naturais paragarantir que as próximas gerações tenham uma boa qualidade de vida”. Como sese tratasse de uma questão opcional, quase como um mero capricho estético! Ouseja, infelizmente, a maioria das pessoas têm grande difculdade de compreendera exata dimensão do problema da insustentabilidade humana. Isso porque, paraque haja essa compreensão, é necessária uma análise abrangente, global do queestá acontecendo com a humanidade e o planeta, uma análise em escalas detempo e espaço adequadas — o que raramente é feito. Portanto, nas próximaspáginas vamos tentar fazer, de forma breve, essa análise.

Breve histórico da insustentabilidade humana

Uma rápida análise histórica revela claramente que o começo dainsustentabilidade humana se confunde com o inívcio da própria civilização, e quecada evento marcante de nossa história trouxe consigo um agravamento dessainsustentabilidade, culminando com a atual crise ambiental global.

Nossos ancestrais, há milhões de anos, viviam totalmente sujeitos às forçasda natureza, como qualquer outro ser vivo: fatores climáticos (frio intenso),obstáculos geográfcos (mares, montanhas e desertos), a disponibilidade de águae alimento, predadores e doenças mantinham as primeiras populações dehominívdeos em uma situação de equilívbrio com o meio ambiente, limitando seutamanho e distribuição geográfca. Eis, porém, que no processo de evoluçãonossos antepassados foram adquirindo a notável engenhosidade que nos écaracterívstica, levando ao desenvolvimento das primeiras tecnologias. Issopassou, em grande medida, a defnir o que signifca ser humano — nosdestacamos das outras espécies e literalmente deixamos de viver como os outrosbichos. Por outro lado, foi justamente aív que nossos problemas com asustentabilidade começaram a surgir.

Com o desenvolvimento das primeiras ferramentas há cerca de 2 milhõesde anos, os primeiros hominívdeos começaram a sua escalada rumo ao topo dacadeia alimentar: a caça tornou-se mais fácil, e também a defesa contrapredadores. Por possibilitarem a produção de vestimentas e abrigos, asferramentas também favoreceram a expansão do homem primitivo a outrosambientes, antes inabitáveis.

O domínio do fogo, há mais de 100 mil anos, foi o próximo evento deimportância fundamental para a história da humanidade, permitindo uma

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 1. Uma História de Insustentabilidade

expansão ainda maior para regiões frias, maior proteção contra predadores e umaumento na disponibilidade de alimentos, pela cocção. O fogo também foi muitoutilizado como parte essencial de estratégias de caça, e na modifcação em largaescala do ambiente para facilitar deslocamentos, construir assentamentos, etc.

O homem primitivo permaneceu assim, como caçador-coletor, por dezenasde milhares de anos, até o advento da agricultura, há cerca de 10.000 anos.Embora tenha permanecido com uma população relativamente constante poresse perívodo, o homem caçador-coletor foi capaz de se espalhar por todos oscontinentes e causar a extinção de diversas espécies de grandes mamívferos,através da caça.

O próximo grande passo da espécie humana rumo à insustentabilidade — etalvez o mais notável — foi o desenvolvimento da agricultura, evento que seconfunde com o nascimento da própria civilização, cerca de 10.000 anos atrás.O desmatamento para ampliar terras agrívcolas e a criação de gado passam arepresentar uma pressão sem precedentes no meio ambiente, e inicia-se oprocesso de desertifcação antropogênica (i.e. causada pelo homem) do planeta.De nômades, as sociedades passaram a ser sedentárias, e tecnologias cada vezmais sofsticadas passaram a ser desenvolvidas, tecnologias essas que conferiampoder sem precedentes a seus detentores, possibilitando a ascensão de impérios,que progressivamente conquistaram ou destruívram sociedades mais primitivas,espalhando-se pelo planeta, praticamente extinguindo sociedades tribais eimpondo a civilização como norma.

A Revolução Industrial, no século XVIII, trouxe o desenvolvimentoacelerado de tecnologias industriais, com crescente mecanização e uso decombustívveis fósseis dando uma nova dimensão ao impacto das atividadeshumanas no ambiente: além de uma aceleração sem precedentes na taxa decrescimento populacional, esse perívodo trouxe também, pela primeira vez, apoluição industrial. Inicia-se nesse perívodo o processo do êxodo rural, comconcentração crescente da população mundial em cidades. Houve, portanto, umenorme agravamento do caráter de insustentabilidade das atividades humanas.

O século XX e a Era do Petróleo

O século XX trouxe eventos marcantes que tiveram impactos profundospara a humanidade e o meio ambiente. Na medicina, o crescentedesenvolvimento e aplicação dos conceitos de higiene e saneamento, eposteriormente o desenvolvimento de drogas (especialmente antibióticos) evacinas resultaram em uma redução marcante nas taxas de mortalidade infantil eaumentaram a expectativa de vida mundialmente, contribuindo para o aumentoda taxa de crescimento populacional. A descoberta do petróleo como fontebarata e abundante de energia altamente concentrada permitiu umdesenvolvimento extraordinário nas tecnologias de produção industrial, agrívcola

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 1. Uma História de Insustentabilidade

e transportes, a partir do fnal do século XIX, intensifcando-se vertiginosamenteao longo do século XX. Além disso, o petróleo também passou rapidamente aser usado como matéria prima para a produção de inúmeros produtos, comofertilizantes, plásticos, solventes, detergentes, tecidos, tintas, pesticidas, etc.Surge a agricultura industrial, baseada em fertilizantes quívmicos e agrotóxicos,trazendo gravívssimas consequências para o meio ambiente. A poluição industriale petroquívmica também causam degradação ambiental progressiva. Amecanização atingiu nívveis extremos, aumentando a produção e reduzindo o usoda mão de obra humana — o trabalho passou a ser feito pelas máquinas, usandoa energia oferecida pelo petróleo. Acentuou-se o processo êxodo rural eacumulação urbana, com cidades inchando-se, abrigando milhões de pessoas.Esse perívodo caracteriza-se também por altívssimos nívveis de mobilidade pessoale de produtos, enquanto o imenso poder de realizar trabalho e a fonte versátil denovos materiais que o petróleo representa contribuívram para uma brutalrevolução tecnológica, a produção excessiva de bens industrializados e oconsumismo. O perívodo também é marcado pelo surgimento e ascensão degrandes corporações e empresas multinacionais, e a globalização.

A Era do Petróleo é, portanto, marcada pela industrialização, explosãodemográfca, urbanização, ascensão da sociedade industrial corporativa deconsumo e globalização. Esse perívodo também é igualmente marcado por umextraordinário aumento no consumo de recursos naturais e na geração depoluição ambiental, que continua se intensifcando até os dias de hoje, resultandona atual crise ambiental global.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

2RETRATO DO MUNDO HOJE

Estamos no meio de uma crise ambiental global sem precedentes em suamagnitude, severidade e natureza — uma crise que se agrava a cada dia. Essacrise engloba, principalmente, os seguintes problemas:

• Destruição de ecossistemas terrestres (e.g. desmatamento).

• Destruição de solos, erosão e desertifcação.

• Poluição do ar, efeito estufa, chuva ácida e destruição da camada deozônio.

• Poluição das águas com destruição de ecossistemas marinhos e de águadoce; acidifcação dos oceanos.

• Perturbação do ciclo das águas e deterioração dos recursos hívdricos.

• Extinção de espécies e declívnio da biodiversidade, globalmente.

Todos esses problemas estão intimamente interligados, e a causa central detodos eles é uma só: as atividades humanas. Embora tenham manifestaçõesfívsicas no mundo natural, esses prolemas não podem ser vistos como problemasmeramente fívsicos, a serem resolvidos por “especialistas em problemasambientais”. Eles têm raívzes históricas, econômicas, sociais, polívticas etecnológicas, e estão basicamente atrelados à forma que vivemos e vemos omundo. Além disso, as consequências dessa crise se abaterão sobre nossa própria

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

civilização — colheremos os frutos de nossos atos, de nossas escolhas,conscientes ou não. Portanto, qualquer análise da crise ambiental não pode serdesvinculada de uma análise da sociedade como um todo. Ou seja, ao se avaliaras questões ambientais quanto às suas causas, caracterívsticas e possívveissoluções, há que se analisar em conjunto com as questões sociais que lhesservem de origem.

Sociedade

A Era do Petróleo trouxe uma brutal transformação das relações deconsumo, de poder, e até nas relações interpessoais, que moldaram o mundocomo o conhecemos hoje.

As novas tecnologias dessa era levaram a um aumento brutal da produçãode bens de consumo. Agora, produção incessante requer consumo incessante.Em um mercado regido pela antiga lógica da necessidade, produtos em excessofcariam estagnados nas fábricas ou lojas, restringindo o fuxo de capital e oenriquecimento das grandes empresas. Para remover esse empecilho, o mundodos negócios aprendeu a usar técnicas psicanalívticas para ler os desejosenraizados no subconsciente irracional das pessoas, para fazer seus produtos ediscursos de forma a satisfazê-los. De fato, aprenderam a moldar nossos desejosde acordo com sua própria conveniência, criando e estimulando necessidadesartifciais através de métodos manipulativos de propaganda, Esse foi onascimento do marketing moderno.*

Ao contrário das necessidades, que são fnitas, os desejos sãopotencialmente infnitos. Além disso, enquanto a lógica das necessidades éregida primariamente pela razão, os desejos são regidos por impulsos primitivose irracionais, permitindo que as massas sejam literalmente treinadas paraconsumir incessantemente. Portanto, ao mudar o foco das técnicas de marketing,passando das necessidades para os desejos, as empresas conseguiram remover oempecilho ao escoamento de seus produtos, ao transformar culturas baseadas emnecessidades em culturas baseadas em desejos e imagens, culturas deconsumismo. Isso ocorreu inicialmente nos principais paívses industrializados,logo expandindo-se à maioria dos paívses do mundo no processo colonizador dasempresas multinacionais, e esse foi o ponto chave que permitiu às grandescorporações atingir o grau de expansão e domívnio do cenário mundial queconhecemos hoje.

Também o mundo da polívtica aprendeu a utilizar as mesmas técnicas demarketing para moldar o comportamento das massas. Da mesma forma que asempresas em suas propagandas, também os polívticos, assessorados por seusmarqueteiros, passaram a valer-se de conhecimentos e técnicas psicanalívticas

* Para uma análise detalhada deste assunto, veja a série de documentários “The Centuryof the Self”, da BBC.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

para satisfazer as massas com seus discursos e suas posturas, apelando para osubconsciente irracional (emoções, imagens) muito mais que o racional (fatos eargumentos), e assim alcançar e manter o poder, servindo a seus própriosinteresses, e não os das massas que os elegem, ou o bem comum.

A aplicação disseminada das técnicas de marketing moldaram a sociedadecomo um todo, desde o nívvel individual (comportamento, valores), passandopelo coletivo (comportamento das massas), até a organização social e asestruturas de poder.

Criou-se um elevado grau de alienação das pessoas: o “ser” foi substituívdopelo “ter”; bens materiais passaram a ser endeusados, e as aparências passaram aprevalecer sobre a essência. Para satisfazer seus vívcios de consumo, os indivívduostrabalham cada vez mais, e vivem cada vez menos — a norma passa a ser umavida caracterizada por sobrecarga de trabalho, endividamento, sensação crônicade insatisfação, ansiedade e vazio existencial, desperdívcio e depressão.Paradoxalmente, quanto mais um indivívduo atinge seus objetivos (“sonhos deconsumo” e status social), pior ele se sente, numa sívndrome social que recebeu onome de affluenza.

Movida por suas necessidades crescentes de consumo criadas por essacultura, a sociedade como um todo passou a ser caracterizada por um vívcio pelocrescimento econômico; a competitividade entre as pessoas, o individualismo e aobsessão por status intensifcaram-se. Observa-se um endeusamento de marcas ecriação de “tribos”, que nada mais são que grupos de pessoas que assumemcomportamentos padronizados e estereotipados, de acordo com o nicho deconsumo em que se encontram.

As estruturas de poder da sociedade foram profundamente afetadas pelomarketing e pela ascensão das grandes corporações. Detentoras da supremaciaeconômica e vasto domívnio sobre as massas, as corporações passaram a ser oelemento central, o poder estabelecido.

O próprio Estado é, hoje, penas um vassalo dos interesses das corporações.Ao fnanciarem as campanhas polívticas, as corporações garantem que osgovernos servirão aos seus interesses, seja na criação ou modifcação de leis queexpandam seus mercados, reduzam seus impostos, ou através de facilitações emcontratos, fraudes em licitações, enfm todo tipo de esquemas de corrupção. Damesma forma, grandes bancos fnanciam campanhas ajudando a eleger polívticos,em troca de polívticas econômicas que os favoreçam, garantindo-lhes lucrosexorbitantes, sempre em detrimento da população em geral.

Vive-se, portanto, uma ilusão de democracia, pois aquela ideia que o povoescolhe seus representantes para cuidarem de seus interesses e do bem comumem nada corresponde à realidade. Temos instalada, de fato, uma espécie de“ditadura das corporações”, ou corporocracia, já que o poder polívtico emanadas corporações, e não do povo — esse é mera massa de manobra.

Na corporocracia, polívticas públicas e leis são feitas visando acima de tudo

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

o lucro das corporações detentoras do poder, enquanto se mantém o discurso de“para o bem da nação”, “em prol da população”, etc. Assim, obras deinfraestrutura como estradas, portos e usinas hidrelétricas são feitas para darlucro a empreiteiras e construtoras; cidades são planejadas de modo a fazer docarro uma necessidade, gerando lucro para montadoras de veívculos e indústriapetrolívfera, enquanto ferrovias são desmanteladas, pelos mesmos motivos;subsívdios são dados ao agronegócio para aumentar os lucros das empresas com avenda de agrotóxicos, por exemplo, em detrimento da saúde do povo e do meioambiente. Grandes indústrias de armamentos e petrolívferas, através de seus“fantoches-polívticos-presidentes-de-paívses-de-primeiro-mundo”, criam guerras atodo momento, onde morrem milhares de pessoas, apenas para gerar vultuososlucros com vendas de armas e munições, facilitar o domívnio sobre recursospetrolívferos das regiões atacadas, expandir mercados para seus negócios, etc.Esses grupos poderosos valem-se da mívdia para fazer campanhas permanentesde terrorismo psicológico, fomentando a xenofobia, preconceitos raciais ereligiosos, e empregam rotineiramente a estratégia de forjar atentados para“justifcar” e ganhar apoio da população para tais guerras.

Um elemento-chave na manutenção desse status quo é a desinformação,ou seja, a utilização das técnicas de comunicação e informação de formaenganosa, para dar uma falsa imagem da realidade, mediante a supressão ouocultação de informações, minimização da sua importância ou modifcação doseu sentido, com o objetivo de infuenciar a opinião pública de maneira aproteger interesses privados ocultos.

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Estrutura de poder na sociedade atual — corporocracia

CONTROTAM

DESTROEM

SUSTENTA

GRANDES BANCOSE CORPORAÇÕES

GOVERNOS EGRANDE MÍDIA

POVO EM GERAT

MEIO AMBIENTE

CONTROTAM

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

A grande mídia é uma das principais ferramentas utilizadas pelo sistema*

para a alienação do povo. Rádio, jornais, revistas e televisão despejamcontinuamente rios de besteiras de toda sorte: propagandas comerciais, flmesimbeciloides, programas e reportagens os mais esdrúxulos que, embora rotuladosde “culturais”, na verdade apenas promovem o endeusamento do consumo, dafutilidade e uma infnidade de comportamentos bizarros; futebol, novelas,programas de auditório, fofocas sobre “celebridades” e “reality shows” distraem apopulação para que não pense, e assim não questione o status quo. Desta forma,esses veívculos moldam o comportamento das massas, de forma que sejafavorável aos interesses do sistema, ou seja, das corporações, governos e daprópria mívdia. Esta é a verdadeira essência do que se convencionou chamarentretenimento.

O jornalismo, como é praticado, é um forte instrumento de alienação dasmassas. Embora teoricamente tenha a nobre função de informar as pessoas,servindo como instrumento essencial para o progresso da humanidade,infelizmente, na prática, seu maior objetivo é apenas vender notívcias; ou seja, osjornalistas estão interessados, acima de tudo, em audiência, números. Por isso,noticiários são sensacionalistas — acidentes e crimes violentos “vendem bem”— e focam fortemente em assuntos popularescos e irrelevantes como fofocassobre a vida de “celebridades”, futebol, etc., enquanto os assuntos mais cruciaispara a humanidade, como a crise ambiental que ameaça nossa própriasobrevivência, não são sequer mencionados. Vendem desinformação, rotulada deinformação.

Por sua grande penetração e infuência sobre o consciente e inconscientedas massas e, consequentemente seu comportamento, o jornalismo é tambémsistematicamente “comprado” por grupos poderosos, passando a servir deveívculos de propaganda ideológica velada, defendendo interesses ocultos. Ao serbombardeada com aquela imensa carga de informações inúteis, esdrúxulas etendenciosas, infelizmente a população ainda acredita estar-se tornando maisculta e bem informada, enquanto está, de fato, apenas sendo distraívda emanipulada.

A literatura em geral também é alienante. Visite qualquer livraria e verá,em todas as vitrines, estandes e prateleiras, livros de todos os tamanhos eformatos, com capas reluzentes e acetinadas, e ricamente ilustrados, abordandotodo tipo de assuntos — menos qualquer coisa importante para a humanidade. Omercado de livros ocupa-se primariamente de traduções de “best-sellers”importados, livros que não trazem qualquer informação útil ou relevante; nãofaltam livros sobre contos de fadas, bruxos e monstros, estórias românticaspicantes, mistérios, crimes, detetives… livros de autoajuda, com receitas“infalívveis” sobre como ser feliz, como fcar milionário, como se tornar um

* A expressão “o sistema” é comumente utilizada para referir-se ao modo organizacional eestrutura de poder dominante da sociedade atual, regida pela corporocracia.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

lívder… futebol, horóscopo, livros de piadas, biografas de artistas pop, livros degatinhos fofos, etc. São tantos livros sobre os mesmos assuntos que faz a gente seperguntar: por que alguém ainda se dá ao trabalho de escrever de novo sobre amesma coisa? Atrás dessa aparência de diversidade, o que se tem é uma extremaaridez de conteúdo com real relevância à humanidade. São apenas distrações,passatempos, úteis apenas para manter os leitores anestesiados, imersos em suasfantasias, enquanto são manipulados para continuar servindo obedientemente aosistema.

A educação formal, por sua vez, não visa a formação de indivívduos livres,muito pelo contrário: a individualidade é praticamente abolida e o senso crívtico,suprimido; a criatividade, obliterada por uma carga brutal de informações muitasvezes inúteis e, em alguns casos, simplesmente falsas (por exemplo, a história équase sempre ensinada de forma distorcida e glamourizada de modo a fomentaro patriotismo, que não passa de um tipo de alienação e uma ferramenta útil aosistema).

Conhecimentos e habilidades fundamentais a qualquer ser humano, comosaber produzir e preparar seus próprios alimentos, ou mesmo fazer umamanutenção básica em sua própria casa, simplesmente não fazem parte docurrívculo escolar. Somos forçados a decorar nomes e datas irrelevantes, eaprender operações matemáticas que jamais serão usadas na vida, etc. — masque o ser humano está causando uma tremenda crise ambiental que ameaça avida no planeta, isso jamais é mencionado. Na escola, não se admite qualquercrívtica à sociedade ou nosso modo de vida. O sistema educacional atual éelaborado de forma a garantir que as massas permaneçam alienadas edependentes do sistema; sua função principal é moldar as pessoas em umformato que atenda às necessidades do mercado, produzindo, distribuindo e,principalmente, consumindo bens e serviços, e pagando impostos, sem jamaisameaçar a estrutura do poder estabelecido.

Dizem que estamos na Era da Informação, e realmente, a informação estáaív — informação para todo lado. A internet, por exemplo, é sem dúvida umafonte formidável de informação, com enorme potencial para empoderamento daspessoas. O problema é que, se por um lado ela contém tudo de bom, verdadeiroe importante, por outro lado também contém tudo de mau, falso e irrelevante.Infelizmente, quem não sabe o que procurar (lamentavelmente, a imensa maioriadas pessoas) acaba se metendo numa espiral sem fm, um universo paralelo debizarrices e inutilidades.

Como resultado da verdadeira campanha de desinformação que temosinstalada em múltiplos nívveis na sociedade e o baixo grau de consciência dapopulação, a despeito da disponibilidade e acessibilidade à informação, vivemoshoje de fato em uma verdadeira “Idade das Trevas Moderna”, em que um grauelevadívssimo de alienação pervade a humanidade. Deve-se ressaltar que essaalienação atinge todos os nívveis da sociedade, desde as massas até as elites

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(inclusive a intelectual), e este é um ponto-chave para a perpetuação do sistema.

Estilo de vida

Artifcialização

O estilo de vida do homem moderno é caracterizado por um enorme graude artifcialização. ou seja, um distanciamento do que é natural. A maioria daspessoas no mundo de hoje passam o dia todo, todos os dias, sem jamais tercontato com a terra. Nem sequer veem a terra — apenas cimento, asfalto,plástico... Mesmo as que andam sobre terra, geralmente não a tocam, pois usamcalçados que as isolam do contato com a mesma. As populações urbanas muitasvezes não têm contato algum com plantas, a não ser pelo escasso contato visualcom plantas da arborização urbana, praças e jardins (mesmo esses, raros emmuitas cidades). Não têm contato com a luz natural, tendo pouco tempo ao arlivre e passando o tempo todo iluminadas por luzes artifciais e insalubres. Aliás,a aplicação intensa e onipresente de iluminação artifcial signifca uma rupturado homem com um dos mais básicos ciclos naturais, que é o ciclo claro-escuro,do dia e da noite. Com isso, não é surpresa que tantas pessoas necessitem deremédios para dormir, e despertadores para acordar — o que não é semconsequências para a saúde do corpo e da mente.

Contato com outros elementos da paisagem natural hoje também éradicalmente reduzido e deturpado. Uma vista do campo, forestas, montanhasou mar é quase sempre substituívda por ruas com suas placas de trânsito eoutdoors, edifívcios, viadutos, etc. Rios também não fazem mais parte da vidadas pessoas, já que estão desfgurados, “urbanizados” e, via de regra,transformados em esgotões a céu aberto, ou mesmo canalizados, sepultados.

O próprio ar que respiramos é, muitas vezes, artifcializado, provido poraparelhos de ar condicionado de veívculos e edifívcios — um ar ressecado edesagradável, com o qual tantas pessoas já se acostumaram, mas que continuasendo veívculo de afecções alérgicas e infamatórias a milhões de pessoas.

O contato com animais, para muitas pessoas, reduziu-se a uma relação deservidão sentimental, estranhamente misturada com uma relação dono-objeto,esta última evidenciada pelo ato corriqueiro de compra e venda, o fetichismoracista, insensibilidade quanto às necessidades intrívnsecas de cada espécie, e atémodifcações cirúrgicas para melhor conveniência e conformação com padrõesestéticos desejados pelo humano. Enquanto isso, em relação a outras espéciesanimais como bovinos, suívnos e galinhas, há uma polarização exagerada noposicionamento das pessoas: enquanto uma parte da população está totalmenteinsensívvel ao valor intrívnseco desses seres vivos e seu direito à vida e bem-estar,e os consomem de forma exagerada e insensívvel a ponto de desenvolveremgraves problemas de saúde pela ingestão excessiva de carne e laticívnios, por

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exemplo, outros, de tão desconectados que se tornaram de suas raívzes primitivas,incorrem em um sentimentalismo exagerado e humanização dos animais.

Também as relações inter-humanas e relações de trabalho modernas sãoaltamente artifcializadas. O trabalho que a maioria das pessoas faz diariamentenada tem a ver com o suprimento das necessidades básicas do ser humano. Seantes as tarefas eram diretamente relacionadas à sobrevivência, como caçar,pescar, plantar e colher, construir abrigos e fazer vestimentas, hoje vemo-nosenfados nas mais insignifcantes funções, com o único objetivo de ganhardinheiro para, com esse, suprir nossas necessidades. Essa falta de vívnculo diretoentre a atividade trabalho e o suprimento de necessidades reais torna o trabalhodesmotivante, e a vida sem sentido.

Já as relações inter-humanas têm se tornado cada vez mais relações decompetição ou interesse, e cada vez menos de cooperação voluntária eespontânea. Enquanto isso, os relacionamentos pessoais são gradualmentesubstituívdos por pseudo-relacionamentos virtuais: num mundo regido por ilusõese aparências, cada vez mais pessoas substituem sua vida e relacionamentos reaispor novelas e séries de televisão — muito mais cômodos e práticos, cheios de“aventura e emoções” (ainda que falsas), e isentos de qualquer tipo exposição ouriscos. A maioria das pessoas “conhecem” muito mais celebridades de televisãodo que pessoas reais (da mesma forma que conhecem muito mais logotipos demarcas e empresas do que espécies de animais e plantas). As redes sociais dainternet fzeram com que esse grau de artifcialização de relacionamentosatingisse novos nívveis: pessoas assumem uma verdadeira “segunda identidadevirtual”, puramente baseada em aparências e com pouca relação com arealidade, e muitas vezes com muito mais “amigos” que na vida real (sendo quea maioria desses amigos jamais serão conhecidos verdadeiramente).

Humanos evoluívram como parte integrante da natureza, ao longo demilhões de anos, e esse distanciamento todo do que é natural foi um fenômenoextremamente rápido e recente. Isso dito, não é surpresa que esse estilo de vidaartifcial de hoje em dia crie grave confito com nossa própria essência humanasendo, por si só, fonte de insatisfação, tensão interna, depressão, infelicidade emá saúde.

O estilo de vida moderno é também um estilo de vida de hiperdependência,hiperconsumo, e hiperdesperdívcio.

Hiperdependência signifca que a pessoa depende inteiramente de umasérie de fatores não naturais para sua sobrevivência. O indivívduo moderno,diferentemente dos seus ancestrais primitivos e mesmo dos camponeses deoutrora, não tem a menor condição de suprir nenhuma suas necessidadesdiretamente. Ao invés disso, ele depende completamente do seu emprego parater dinheiro; do carro para ir ao trabalho; depende do dinheiro para comprarcomida e todo o mais, para o que ele depende do supermercado, o qual dependeda agricultura, indústrias, sistemas de transportes, etc. Depende ainda da

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companhia de água, senão morre de sede, etc. Essa dependência total desistemas humanos complexos reduz a resiliência do indivívduo e da sociedadecomo um todo, e de fato tem sido um frequente fator causador do colapso decivilizações passadas.

Hiperconsumo: o estilo de vida contemporâneo é inextricavelmentemarcado por um consumo muito maior de recursos naturais do que o necessárioà vida humana, comparando, por exemplo, com o homem que viveu antes daRevolução Industrial. Água encanada, energia elétrica e combustívveis fósseis,outrora indisponívveis, hoje são usadas indiscriminadamente, a enormes custosambientais; alimentos são consumidos em demasia por mais da metade dapopulação mundial (enquanto outros passam fome, diga-se de passagem),levando a uma pandemia de obesidade; produtos industrializados como roupas,acessórios, utensívlios domésticos, eletroeletrônicos, brinquedos e até veívculosacumulam-se nas casas, abarrotando-as. Nessa cultura do consumismo, tívpica denossa sociedade moderna, as pessoas muitas vezes compram um monte de coisasdas quais não precisam e nem sequer vão usar, apenas por não resistirem aoapelo da propaganda e os desejos por ela criados — são as famosas compras porimpulso. Não raro, isso torna-se um vívcio: a pessoa compra coisasfreneticamente para tentar preencher o vazio existencial de uma vida semsentido, o que normalmente resulta em endividamento e, de fato, umagravamento de seu quadro psicológico.

Já o hiperdesperdício vem de mãos dadas com o hiperconsumo, e tambémcom o conceito subconsciente que os recursos naturais são infnitos.Frequentemente justifcado com base na comodidade, ou em um conceitoprofundamente torpe de custo-benefício, que leva em consideraçãoexclusivamente o custo em termos de dinheiro, e benefívcio como algo que sedeseja egoisticamente, sem qualquer consideração pelos efeitos negativos quepodem ser causados às outras pessoas, às gerações futuras, às outras espécies,enfm à vida na Terra.

O desperdívcio está em todo lugar. Desperdívcio de água, desperdívcio deenergia. Coisas que são jogadas fora sendo que ainda funcionam perfeitamente,ou poderiam ser consertadas.

Dois pontos merecem menção especial quando o assunto é desperdívcio. Oprimeiro é o desperdívcio de comida, que de acordo com a FAO (Organizaçãodas Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) corresponde a cerca de umterço de toda a comida produzida mundialmente — um dado extremamentealarmante. Perdas ocorrem em todas as etapas, desde a produção no campo,passando pelo transporte, entrepostos, varejo (alimentos que vencem nasprateleiras), até casa do consumidor fnal, onde há perdas por compra excessiva edesorganizada, mau armazenamento (alimentos estragando na geladeira),chegando ao hábito horroroso presente na maioria das casas de jogar restos decomida no lixo, seja do prato, seja da panela — por incapacidade de calculardireito a quantidade de alimento a ser preparada, por desleixo ao decidir a

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quantidade de comida a pôr no prato, por preguiça de guardar o resto da comidapara comer na refeição seguinte; por desprezo ou mesmo ignorância sobre ovalor intrívnseco do alimento, que deveria ser sagrado, e também ignorância emrelação aos problemas ambientais associados ao lixo. Isso tudo é muitas vezesagravado por uma cultura imbecil de achar que é normal ou até mesmo “chique”jogar comida fora (“sinal de fartura”). Dessa forma, diariamente umaquantidade de alimentos que seriam capazes de acabar com a fome no mundocom ampla folga são transformados em lixo sem jamais serem consumidos,tampouco devolvidos ao solo.

O fato de tantos alimentos serem desperdiçados também signifca quecomida sufciente poderia ter sido produzida utilizando uma área muito menorde terras, quantidades muito menores de água, energia, fertilizantes, enfm, todosos recursos naturais, ou seja, com custos ambientais bem menores.

O outro ponto de destaque em relação ao hiperdesperdívcio é a estratégia,amplamente utilizada pela indústria, da obsolescência programada, em que osprodutos são literalmente feitos para durarem pouco, forçando os consumidoresa comprarem os mesmos produtos novamente, e de novo, e de novo. Isso podeser conseguido de várias formas diferentes: fazendo produtos com componentesfrágeis que quebram ou se desgastam logo, usando deliberadamente um designindustrial que praticamente impossibilita reparos, não oferecendo peças dereposição ou oferecendo-as a um custo descabidamente alto, fazendo com que oreparo ou substituição fque mais caro que o produto novo, etc. Outro tipo deobsolescência programada é a obsolescência psicológica: variações superfciaisde estilo e grafsmo fazem com que pessoas de cabeça vazia sintam-se mal comseus produtos “antigos”, por não estarem mais na moda, vendo-se “forçadas” acomprar novos, ainda que seus antigos estejam cumprindo suas funçõesperfeitamente.

Infelizmente, ao invés de se revoltarem contra a obsolescência programada,a maioria das pessoas se acostumam com ela e passam a achar normal comprarvárias vezes a mesma coisa. Assim, essa estratégia é central para forjar a atualcultura do consumismo.

Embora a ideia das obsolescência programada seja muito atrativa para ascorporações, indústria e comércio por aumentarem seus lucros, isso tem efeitosnegativos na sociedade, pois gera o endividamento de grande parte da população.Mais devastadores, porém, são os efeitos no meio ambiente, devido àexacerbação do consumo de recursos naturais e da produção de poluiçãoindustrial e lixo.

Vício por crescimento

A humanidade está simplesmente viciada em crescimento. Crescimentopopulacional, crescimento do PIB, crescimento das cidades… As pessoasquerem casas cada vez maiores, carros cada vez maiores; mais casas, mais

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carros, mais dinheiro, mais status, etc.Temos instalada uma cultura dominante de acumulação. Agora, veja o

seguinte: se uma pessoa tem muitos gatos, dizemos que ela tem problemas; seoutro acumula jornais antigos, fazendo pilhas que chegam até o teto, dizemosque é louco. Mas, qualquer um que conseguir acumular uma quantidade obscenade dinheiro, milhares de vezes superior ao necessário para suprir suasnecessidades, esse será considerado um modelo de pessoa! A cultura daacumulação é tão prevalente que as pessoas se sentem moralmente compelidas acrescer economicamente a qualquer custo, sob o risco de parecer um fracassadoperante a famívlia e amigos, colegas etc., caso não consigam. Na nossa sociedademoderna, o conceito de suficiente foi simplesmente riscado do dicionário.

Executivos de empresas e polívticos sobrevivem ou não em seus cargosbaseado em sua habilidade de promover crescimento econômico ano após ano.Isso frequentemente leva a práticas deletérias à sociedade, bem como ao meioambiente.

A busca por um crescimento contívnuo e infnito é o elemento central doparadigma econômico atual. Nesse sistema, acredita-se que o crescimento énecessário à prosperidade e bem estar social. De fato, a economia, comoatualmente organizada, depende de crescimento contívnuo para gerar empregos egarantir a estabilidade fnanceira e social. Porém, isso cria um grave dilema: se ocrescimento é necessário para que haja prosperidade e, ao mesmo tempo, leva àdegradação ambiental e depleção de recursos que impedirá a manutenção dessaprosperidade, o que fazer? O problema é que a hegemonia do modelo econômicobaseado em crescimento infnito impede as pessoas de questionar os conceitosbásicos sobre os quais ele se apoia. O “sacrossanto” crescimento não deve jamaisser questionado. Questione o crescimento, e sua punição será severa e imediata!Você será isolado como um leproso, ridicularizado, sua carreira está encerrada,etc.

Uma das manifestações do vívcio por crescimento é a obsessão pelo PIB(produto interno bruto), frequentemente utilizado por economistas, polívticos,jornalistas etc. como indicador de que “está tudo bem”. “Se o PIB está crescendo,está tudo bem!” assumem. O problema é que o PIB é um indicador grosseiro deprogresso, pois não leva em consideração os custos ambientais e sociais dessecrescimento, e suas implicações para o futuro da sociedade, ou do ambiente doqual ela depende. Ao explorar de forma excessiva e destrutiva os recursosnaturais e ambientais, como desmatar para extração de madeira, ou explorar osolo de forma predatória, ou os recursos minerais, ou abusar de recursoshívdricos, etc., tudo isso leva a uma aumento do PIB, mas leva também àexaustão desses recursos, signifcando que no futuro a sociedade não poderámais contar com eles. Ou seja, você tem uma situação em que a economia estácrescendo, a população está crescendo, e justamente em função disso o ambienteestá sendo degradado e os recursos naturais, depletados. Essa é uma relação

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inextricável e irreversívvel.* Agora, no momento atual, enquanto estamoscrescendo, todo mundo está feliz, e a maioria das pessoas tem a certeza que estátudo bem, estamos indo na direção certa. Mas, até quando vai estar todo mundofeliz? O problema é que enquanto os recursos ainda estiverem disponívveis, aspessoas se recusarão a aceitar o fato lógico que eles estão se extinguindo e umdia fatalmente se tornarão criticamente escassos.

Os economistas, polívticos e pessoas em geral não enxergam a gravidade dasconsequências desse vívcio por crescimento por ignorância a respeito das reaisnecessidades humanas, de como funciona a economia e sua relação com o meioambiente e os recursos naturais. Uma das formas dessa ignorância se manifestaré na forma do chamado otimismo tecnológico, ou seja, a ideia que novastecnologias resolverão todos os problemas, removerão os empecilhos,possibilitando um crescimento infnito. Porém, isso não passa de uma ilusão,uma aposta suicida. De fato, está provado que o desenvolvimento de tecnologiasestá relacionado a um aumento do consumo de recursos, e não o contrário! Porexemplo, novas tecnologias podem aumentar a efciência na extração dopetróleo, dando a impressão que esse recurso foi aumentado. É verdade que,com novas tecnologias, reservas antes inalcançáveis podem passar a serdisponívveis, mas nada pode aumentar a quantidade de petróleo — todo opetróleo que existe foi produzido há milhões de anos, e nenhum está sendoproduzido agora; trata-se de um recurso fnito e não renovável, portanto suaextração contívnua inevitavelmente levará à sua exaustão e, na verdade, qualqueraumento na efciência na extração do petróleo só causará um aumento noconsumo desse recurso. Outro exemplo muito citado é que carros e televisõesmodernas consomem menos combustívvel e energia que modelos antigos. Issopode ser verdade; porém, ao mesmo tempo, hoje são produzidos e consumidosmuitos mais carros e TVs, de forma que o consumo global é muito maior que nopassado.

Energia

Outra caracterívstica perigosívssima de nossa civilização industrial é nossoterrívvel vício por energia. Enquanto todas as outras espécies de animais utilizam-se de apenas do sol e alimentos como fontes de energia, nós, seres humanoscivilizados, em nossas atividades, utilizamos uma quantidade descomunal deenergia, de diversas fontes e formas.

A vida moderna, em todos seus aspectos, requer enormes quantidades deenergia: iluminação, refrigeração, aquecimento, cocção de alimentos, operaçãode eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos, locomoção e transportes, construçãocivil e obras de infraestrutura, serviços públicos em geral, etc. A agriculturamoderna também é grande consumidora de energia, especialmente devido à

* Para uma discussão aprofundada dessa relação, recomendo a leitura de “A lei daentropia e o processo econômico”, de Nicholas Georgescu-Roegen.

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mecanização. Por fm, temos a indústria e o setor tecnológico, peças centrais denossa civilização atual, que são um dos principais consumidores de energia emtodas as suas formas.

O consumo per capita de energia tem aumentado vertiginosamente, sendoum refexo do processo civilizatório. Porém, todas essas necessidades artifciaiscriadas pela civilização vêm a um enorme custo ambiental, na forma de consumode recursos naturais e geração de poluição, redundando na destruição deecossistemas. A principal fonte de energia utilizada por nossa civilizaçãoatualmente são os combustívveis fósseis, tanto para transporte como paraindústrias e mesmo para a geração de energia elétrica, nas usinas termelétricas.Além da poluição do ar causada pela queima desses combustívveis, há ainda odano ambiental causado pela extração desses recursos, incluindo os eventuais(não raros) derramamentos de petróleo que causam enorme estragoprincipalmente a ambientes marinhos.

Outras formas de energia também destroem o meio ambiente. O etanol, porexemplo, é frequentemente visto como uma alternativa sustentável ao petróleo.De fato, pelo menos em relação à liberação de gases do efeito estufa e outrospoluentes atmosféricos, o etanol é bem menos danoso que o petróleo, já que háuma reciclagem do carbono. Porém, seu uso como fonte de energia também trazsérios problemas, entre eles a intensifcação dos problemas ambientais causadospela agricultura industrial (discutidos mais adiante). Outro problema serívssimo éque, ao se investir no etanol como substituto ao petróleo, isso signifca desviar osrecursos agrívcolas para a produção do álcool, em detrimento da produção dealimentos — ou seja, os carros e indústrias passam a competir diretamente comas pessoas por alimentos, podendo levar a um agravamento da situação devulnerabilidade alimentar e fome global, além da intensifcação dodesmatamento para acomodar essa nova demanda agrívcola, caso o etanolpassasse a ser um elemento predominante na matriz energética global.

No Brasil, a principal fonte de energia elétrica são as usinas hidrelétricas.Consideradas por muitos uma “energia limpa”, por supostamente não consumircombustívveis ou poluir a atmosfera, as usinas hidrelétricas são, ainda assim,responsáveis por enorme destruição ambiental, pois inundam vastas áreas, naordem de milhares de quilômetros quadrados, destruindo forestas nativas,alterando o fuxo das águas, descaracterizando e reduzindo enormemente abiodiversidade pela interrupção dos ciclos biológicos de inúmeras espécies defauna e fora locais, etc. Além disso, as usinas hidrelétricas também contribuemsignifcativamente para a poluição da água e geração de gases do efeito estufa: ainundação de áreas forestais leva à morte e consequente decomposição de toda abiomassa presente na área inundada. Essa decomposição consome vorazmente ooxigênio dissolvido na água, levando à hipóxia ou anóxia e acidifcação, matandomilhões de peixes e outras formas de vida. A decomposição de toda essabiomassa libera imensas quantidades de gases como CO2 e metano, isso semcontar que as represas são obras gigantescas, que incluem a utilização de milhões

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de toneladas de cimento e centenas de milhões de litros de óleo diesel paramover as máquinas para sua construção — tudo isso representando a geração dequantidades descomunais de gases do efeito estufa, contribuindo para oaquecimento global. Por fm, é importante ressaltar que a construção dasbarragens também causa sérios problemas sociais como o deslocamento forçado(leia-se expulsão) de ívndios e populações tradicionais, destruindo assim suasculturas.

Uma das principais fontes de eletricidade no mundo atualmente são asusinas nucleares. Essas também são extremamente perigosas pois sua operaçãogera o chamado “lixo atômico”, subprodutos que se mantêm altamenteradioativos por milhares de anos — um problema sem solução. Além disso,usinas nucleares são susceptívveis a acidentes e incidentes de todo tipo, incluindofalhas humanas como ocorrido em Chernobyl em 1986, ou provocadas pordesastres naturais como ocorrido em Fukushima em 2011, e até mesmoprovocados intencionalmente, por exemplo sendo alvos potenciais debombardeios em guerras ou atentados terroristas. Acidentes em usinas nuclearespodem ser catastrófcos, com explosões e vazamento de imensas quantidades dematerial altamente radioativo, podendo causar muitas mortes a curto, médio elongo prazo, além de maciça contaminação ambiental que pode perdurar porséculos.

Fontes de energia alternativas, renováveis, como a solar e eólica, sãoconsideradas muito menos nocivas ao meio ambiente que as fontes mais comunscitadas acima. Embora estejam crescendo em popularidade, em 2015 essasformas de energia renovável juntas ainda representavam apenas cerca de 1,5%da matriz energética global.*

Transporte

Os nívveis de mobilidade, tanto humana como de cargas, que se tem hojesão assombrosos e jamais vistos na história da humanidade, graças ao grandedesenvolvimento e consequente barateamento dos transportes movidos acombustívveis fósseis. Houve de fato uma banalização do transporte. Nos dias dehoje, usando transporte motorizado individual ou coletivo, tornou-seextremamente comum às pessoas percorrer dezenas ou mesmo centenas dequilômetros todos os dias para atividades as mais corriqueiras, como ir aotrabalho ou estudo, fato apenas tornado possívvel pela utilização indiscriminadada energia altamente concentrada presente nos combustívveis, especialmente osderivados do petróleo. O mesmo ocorre com cargas: hoje, a grande maioria dosprodutos consumidos pela população, vendidos no mercado próximo às suascasas, vem de fato de regiões muito distantes, sendo transportados por centenasou milhares de quilômetros, e muitas vezes de outros paívses, literalmente do

* 2017 Key world energy statistics. International Energy Agency. 2017.

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outro lado do mundo. Isso se aplica tanto a alimentos como produtosindustrializados em geral.

Essa banalização do transporte e o vívcio pela locomoção, caracterívsticos danossa Era do Petróleo, representam um gravívssimo problema ambiental, emmúltiplos nívveis. O problema mais óbvio é a poluição do ar pelas emissõesdiretas dos veívculos, pela queima de combustívveis: os transportes motorizadossão a principal fonte de poluição do ar na maioria das grandes cidades domundo, de forma que as metrópoles são permanentemente envoltas em umaenorme massa acinzentada de fumaça. Tal baixa qualidade do ar estádiretamente ligada a inúmeros problemas de saúde das populações urbanas,como doenças respiratórias, cardiovasculares e câncer, além de distúrbiosneurológicos e comportamentais, incluindo a depressão. E o problema só tende ase agravar, pois a frota mundial de veívculos está aumentando sem parar. Um casoextremo a ser citado é a cidade de São Paulo, que já tem uma frota de mais de 8milhões de veívculos, com uma proporção absurda de 2 veívculos para cada 3habitantes, já tendo superado, em ambos os quesitos (número de veívculos eproporção em relação ao número de habitantes), a cidade americana de LosAngeles, historicamente famosa por ser a cidade com maior número de carros domundo. Deve-se ressaltar também que os transportes são um dos principaisgeradores de gases do efeito estufa, mundialmente.

Além da poluição atmosférica, também devem ser levadas em consideraçãotoda a degradação ambiental e poluição associadas com a indústriapetroquívmica, a fabricação de veívculos, além da construção e manutenção detoda a infraestrutura voltada para o transporte motorizado individual, público ede cargas, como rodovias, ruas, viadutos, linhas férreas, portos, aeroportos, etc.

Água

Sem dúvida, o uso mais essencial da água é para a hidratação do corpo.Um ser humano adulto necessita, em média, de aproximadamente 2 litros deágua por dia para manter-se adequadamente hidratado. No entanto, o homemcivilizado utiliza em média 150 a 200 litros de água por dia, para as maisvariadas atividades, como lavar louça, lavar roupa, tomar banho, limpar sua casa,lavar o carro, etc. Ou seja, apenas cerca de 1% do consumo diário de água évoltado para um uso essencial! Uma única descarga de privada consome três aquatro vezes mais água que o necessário para manter um adulto hidratado porum dia inteiro; como cada pessoa dá, em média, umas 10 descargas por dia, issosignifca o sufciente para matar a sede de umas 35 pessoas pelo mesmo perívodo!Crescemos tão acostumados a todo esse desperdívcio que nem sequer nos damosconta do tamanho do absurdo que ele representa.

E o pior é que os 150 a 200 litros de água citados acima referem-se apenasao uso direto de cada pessoa, em sua casa. Se forem incluívdos os gastos commanutenção pública e de ambientes de trabalho, comércio, serviços, indústria,

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irrigação agrívcola etc, o volume de água consumido por habitante atinge valoresmuito mais altos e difívceis de calcular. Essa água toda sendo consumida,obviamente não está deixando de existir, mas sim sendo transformada emesgotos, que poluem ambientes aquáticos como rios, lagos e mares, destruindo eacabando com a vida nesses ecossistemas, e ao mesmo tempo diminuindo aquantidade de água limpa disponívvel, tanto para a natureza como para usohumano.

Alimentação

A artifcialização da vida se manifesta também de forma fagrante noshábitos alimentares do homem moderno, especialmente nos alimentosprocessados e ultraprocessados.

Alimentos ultraprocessados são aqueles produzidos primariamente a partirde substâncias purifcadas (e.g. açúcar refnado) e substâncias artifciais(corantes, aromatizantes, conservantes, etc.). Exemplos de alimentosultraprocessados incluem salgadinhos, doces, refrigerantes, sucos processados ebebidas alcoólicas, pães, bolos e pizzas, biscoitos, bebidas lácteas, chocolates ebombons, massas em geral, margarina, sorvetes e sobremesas prontas, embutidoscomo salame e mortadela, entre uma lista infndável de outros produtos.

Esses alimentos fazem mal à saúde porque eles contém quantidadesexcessivas de açúcar, carboidratos simples, sal e gorduras não saudáveis, além dedezenas de aditivos quívmicos sintéticos. Quando é citado na embalagem quecontém aromatizantes, corantes, edulcorantes e conservantes artifciais, isso geraa impressão errônea que se trata de 4 substâncias (o que já deveria ser motivo demuita preocupação!). Mas na verdade a coisa é muito pior, pois muitas vezescada um desses itens é na verdade uma mistura de inúmeros produtos quívmicosque entram em cada categoria, e simplesmente não são especifcados naembalagem! A longo prazo, esses produtos agem como toxinas no organismo.Por tudo isso, o consumo rotineiro desse tipo de alimento causa uma série deproblemas de saúde, incluindo cáries, distúrbios metabólicos e endócrinos comodiabetes e obesidade, doenças hepáticas, pancreáticas e renais,hipercolesterolemia, distúrbios oxidativos e infamatórios, arteriosclerose,infartos cardívacos, derrames cerebrais, câncer, e doenças degenerativas crônicas,incluindo degeneração cerebral e mal de Alzheimer, etc.

Por outro lado, esses alimentos contém pouca fbra alimentar e quantidadesinsufcientes e desbalanceadas de nutrientes importantívssimos como proteívnas,vitaminas, minerais e ácidos graxos essenciais, levando a problemas digestivos edesnutrição. Embora pareça paradoxal, é comum pessoas que consomemalimentos processados serem obesas e desnutridas ao mesmo tempo!

É estarrecedor notar que muitos dos alimentos ultraprocessados sãocomumente confundidos pela população em geral com alimentos saudáveis — oschamados “iogurtes de frutas”, barras de cereais e cereais matinais, por exemplo

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— quando na verdade são porcarias nocivas à saúde. Isso se deve largamente aardilosas táticas de marketing dos fabricantes, que associam esses produtos àimagem de pessoas jovens, ativas, felizes e saudáveis.

Pior ainda é quando essas propagandas estimulam o consumo por crianças!Por exemplo, pouca gente sabe, mas os chamados “alimentos achocolatados empó” (como Nescau e Toddy, entre outras marcas), são cerca de 90% açúcar, eapenas 10% de outros ingredientes, dos quais o cacau é um componente quaseinsignifcante. Já o conhecido cereal Sucrilhos é 54% açúcar, e cerca de 40%milho.

Além do impacto na saúde, os alimentos ultraprocessados têm tambémmaior impacto no meio ambiente, devido ao processo de fabricação industrial eembalagens excessivas, geralmente feitas com materiais não biodegradáveis(principalmente plástico).

Deve-se ressaltar, porém, que os alimentos processados e ultraprocessadosnão são os únicos problemas da alimentação moderna, já que a imensa maioriados alimentos consumidos hoje pela população, processados ou não, sãoproduzidos pela agricultura industrial. Além da destruição ambiental causada poresse modelo de agricultura (conforme discutiremos a seguir), os alimentos assimproduzidos também são contaminados por resívduos de agrotóxicos e fertilizantesquívmicos, além de hormônios, antibióticos e outras drogas, que estão associadosa inúmeros problemas de saúde, como doenças hepáticas, renais e nervosas,distúrbios hormonais e metabólicos, câncer, etc.

Agricultura

A agricultura é a atividade humana mais destrutiva ao meio ambiente,desde o seu surgimento há dez mil anos e até os dias de hoje.

É bastante disseminada a noção que a agricultura tradicional, nos moldesantigos, isto é, antes do surgimento da agricultura industrial no século XX, eraecológica, inócua ao meio ambiente. Porém, nada poderia estar mais distante daverdade! É necessário ressaltar que a agricultura, desde seu nascimento, semprese caracterizou por ser um sistema antagônico à natureza e altamenteinsustentável. Muito antes da era industrial, desmatamento para conversão deterras ao uso agrívcola, uso indiscriminado do fogo, excessiva pressão de pastejopor rebanhos bovinos e ovinos, etc. já haviam deixado um rastro considerável dedestruição ambiental em vastas regiões do planeta. Meio milênio atrás, a maiorparte dos paívses europeus já tinham perdido quase todas as suas forestas,enquanto áreas desérticas no Norte da África e Oriente Médio haviam sidoconsideravelmente alargadas devido à agricultura e pecuária. Há séculos,espécies vêm sendo extintas e biomas inteiros perdidos por causa da agricultura.

Tradicionalmente, o solo sempre foi utilizado de forma descartável pelaagricultura. Florestas são derrubadas e queimadas para dar lugar a plantações;

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nos primeiros anos de exploração agrívcola, a produtividade é normalmenteótima, pois se está explorando a fertilidade do solo ali construívda pela naturezaao longo de milênios. Porém, com a drástica redução na biomassa ebiodiversidade do solo, e agravado por práticas como queimadas rotineiras,aração e gradagem que destroem a estrutura do solo e expõem suas entranhas àação do sol, chuva e vento, observa-se uma perda progressiva na fertilidade.Após alguns anos ou poucas décadas, a terra que antes produzia de tudo começaa dar sinais de cansaço, passando então a ser usada para plantações cada vezmenos exigentes. Quando nem essas podem ser produzidas, instituem-se aspastagens; enfm, quando já nem capim cresce mais, a terra é abandonada, e oagricultor avança mais uma vez mata a dentro, desmatando e reiniciando maisum ciclo no processo de destruição da natureza pela agricultura.

Agora, os problemas ambientais foram brutalmente intensifcados com osurgimento da agricultura industrial, esta caracterizada por um alto grau demecanização, uso de fertilizantes quívmicos e agrotóxicos, melhoramentogenético de plantas e animais e, mais recentemente, engenharia genética.Apoiada por mecanismos polívtico-econômicos tais como regulamentações legais,subsívdios e incentivos fscais, promoção da abertura de mercados e globalização,etc., a agricultura industrial escalou rapidamente rumo à hegemonia do setoragrívcola mundial, trazendo em seu bojo devastadores efeitos colaterais, tanto aomeio ambiente como à sociedade.

A agricultura moderna é a principal causadora de desmatamento edegradação de solos, a maior consumidora de água e uma das principaisresponsáveis pelas emissões de gases do efeito estufa, mundialmente — daív nãoser nenhum exagero dizer que se trata da atividade humana mais destrutiva aomeio ambiente. Além dos danos já citados, a aplicação contívnua de fertilizantesquívmicos e agrotóxicos ainda envenenam o solo, as águas e também os alimentosque consumimos. Dentre as atividades agrívcolas, a pecuária se destaca por seusefeitos destrutivos no meio ambiente.*

Do ponto de vista social, a agricultura industrial está associada aconcentração fundiária, expulsão do homem do campo (êxodo rural), destruiçãoda estrutura social e perda da identidade cultural rural e intensifcação dasdesigualdades sociais. Embora muito se diga que a agricultura moderna é umafonte de divisas pela exportação de commodities, na verdade esse lucro nãobenefcia a sociedade, pois fca somente nas mãos dos grandes latifundiários,barões do agronegócio, empresas multinacionais e polívticos corruptos. Éimportante ressaltar que as regiões onde domina o agronegócio são as de maisbaixo IDH (ívndice de desenvolvimento humano) do Brasil.

* Steinfeld, H. et al. Tivestock’s long shadow: environmental issues and options. Food andAgriculture Organization of the United Nations. 2006.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

3A CRISE AMBIENTAL

Superpopulação

Estudos antropológicos indicam que a população humana globalanteriormente ao nascimento da civilização era de cerca de 5 a 10 milhões depessoas. Porém, desde o surgimento da agricultura, a população humana passoua crescer e nunca mais parou.

A análise da curva de crescimento populacional no gráfco abaixo permiteidentifcar três perívodos distintos em relação ao crescimento da populaçãohumana. Até cerca de 5000 AC (primeira linha pontilhada), a população érelativamente estável. A partir daív, observa-se um crescimento exponencial dapopulação humana (atribuívvel à agricultura), que passa a dobrar de tamanho acada 900 anos, em média. A Revolução Industrial (fnal do século XVIII e inívciodo XIX, indicada pela segunda linha pontilhada) traz uma aceleração agudadesse crescimento, com a população humana passando a dobrar de tamanho acada 73 anos. Na Era do Petróleo, a população passou a dobrar a cada 45 anos— o perívodo de crescimento populacional mais rápido de toda a história. Em2012, a população humana chegou a 7 bilhões de indivíduos — esse númerorepresenta um aumento de aproximadamente mil vezes na população mundial,em relação ao seu nívvel basal. Em 2017, a população superou os 7,5 bilhões, etodos os dias o número de pessoas que nascem é aproximadamente 2,4 vezesmaior que o número de pessoas que morrem.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

Gráfco: população humana global ao longo da história, emescala aritmética (painel A), e logarítmica (B).

Sustentabilidade requer populações razoavelmente constantes. Isso derivade uma simples lógica matemática: não se pode ter crescimento contínuo em umespaço finito. Eis que a Terra é um espaço fnito, com recursos fnitos. Crescendocontinuamente, exponencialmente, a exaustão dos recursos necessários à vidahumana é consequência inevitável. Cada um dos problemas ambientaisenfrentados pelo mundo hoje é agravado pelo aumento da população. Por issotudo a superpopulação é, sem dúvida, um dos maiores problemas do mundoatualmente.

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Não resta a menor dúvida que o mundo está superpopuloso — as únicaspessoas que não entendem isso são aquelas que não sabem o signifcado dapalavra superpopulação. Superpopulação signifca um aumento da população dedeterminada espécie de ser vivo além da capacidade de suporte de seu ambiente.Hoje, a população humana está aumentada em 1000 vezes em relação a seu nívvelbasal, e em função disso os recursos necessários à nossa vida estão em rápidodeclívnio. Todos os dias há dezenas de milhares de pessoas a mais no planeta — emenos árvores, menos forestas, menos solos, menos água limpa, menos espéciesde animais e plantas. Mas, infelizmente, a maioria das pessoas no mundoparecem não estar sequer cientes desse gravívssimo fato, e o assunto éconsiderado tabu, sendo raramente mencionado na mívdia ou nas escolas. Muitaspessoas ainda se negam a aceitar que a superpopulação seja um problema. Essetipo de ignorância é, muitas vezes, reforçado pela religião. “Crescei e multiplicai-vos, diz na Bívblia. Não fala nada de superpopulação!”

Embora seja um problema extremamente complexo e de difívcil solução, éimprescindívvel trazê-lo à pauta de discussão, levar essa informação às pessoas,trabalhar com a conscientização em larga escala sobre o problema. Esse é oprimeiro passo, e o mais importante — e simplesmente não está sendo feito!Negar o problema ou evitar tocar no assunto é como enfar a cabeça na areia, ecertamente não contribuirá para nenhuma solução.

Desmatamento

Mais da metade das forestas do mundo já foram destruívdas pelo homem,sendo que a maior parte desse desmatamento ocorreu nos últimos 100 anos. E odesmatamento continua em ritmo acelerado. Estima-se que até o fnal desteséculo as forestas tropicais serão totalmente destruívdas, perdidas para sempre.*

As causas para o desmatamento são muitas, e sua importância varioubastante de acordo com o perívodo histórico. Desde o ano 2000, conversão deterras para agricultura industrial de commodities (agronegócio), principalmentevoltada para o mercado externo, tem sido responsável pela metade dodesmatamento ocorrido em regiões tropicais, mas muitas outras causas, comoextração de madeiras, mineração, expansão de cidades, construção de estradas,indústria de papel e celulose etc. continuam sendo importantes, e em regiõesextremamente pobres e de grande instabilidade social forestas inteiras estãosendo rapidamente destruívdas para uso como lenha para cocção de alimentos,por exemplo. Brasil e Indonésia são atualmente os lívderes mundiais emdesmatamento, embora o problema ocorra também em nívveis alarmantes emoutras áreas da América Central e do Sul, África, Sudeste Asiático e Oceania.

* Tewis, S. Will we still have tropical forests in 2100? World Economic Forum: GlobalAgenda/Forests. 2015.

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No Brasil, a maior parte do desmatamento ocorrendo atualmente émotivado pela criação de gado e plantação de soja. O Brasil é hoje o maiorexportador mundial de carne, e boa parte dessa carne vem do desmatamento daAmazônia (cerca de 90% das áreas de desmatamento recente da Amazônia sãoocupadas pela pecuária). Os biomas mais severamente atacados pelodesmatamento no Brasil atualmente são a Amazônia e o Cerrado. Cabe lembrarque a Mata Atlântica, um dos biomas mais ricos e diversos do mundo, já foiquase totalmente destruívda, restando hoje apenas cerca de 7% de sua coberturaoriginal.

A extração ilegal de madeiras, uma das causas de desmatamento na maioriadas forestas tropicais do mundo, é resultado primariamente da enorme demandapor madeiras nos mercados consumidores da Europa, Estados Unidos, Japão eChina (o Japão é o maior consumidor de madeiras tropicais no mundoatualmente, enquanto a China é o maior consumidor de papel). Os maioresexportadores de madeiras tropicais são Brasil, Indonésia e Camarões.

Na África, os principais fatores levando ao desmatamento atualmente são autilização da madeira como lenha para cocção de alimentos e agricultura desubsistência. Exacerbada pela explosão populacional associada a precáriascondições econômicas, o desmatamento já destruiu cerca de 80% das forestasdo Oeste Africano e 90% das de Madagascar. Mineração, extração de madeirase expansão do agronegócio também são causas importantes de desmatamentonaquele continente, sendo operadas por empresas estrangeiras e voltadas paraexportação.

Já no Sudeste Asiático, produção de papel e celulose e plantações de palmapara extração de óleo, todos visando exportação para mercados como Europa,Índia, China, Japão e Estados Unidos, são as principais causas de desmatamentoatualmente.

Esses dados deixam claro como a globalização afeta o desmatamento:paívses economicamente desenvolvidos, mesmo após terem destruívdo suasforestas totalmente (ou quase), continuam sendo os principais causadores dedesmatamento mundialmente. Só que o verdadeiro impacto ambiental do estilode vida da população desses paívses ricos muitas vezes ocorre a milhares dequilômetros de distância, em paívses menos desenvolvidos literalmente do outrolado do planeta, bem longe de suas vistas.

O desmatamento é um verdadeiro atentado contra a vida, uma das maioresmanifestações do ecocívdio cometido pela humanidade. As forestas são osprincipais berços da biodiversidade terrestre, e o desmatamento é causa demilhares de extinções de espécies todos os anos.

Porém, a gravidade do problema do desmatamento vai ainda muito alémdisso, já que as forestas desempenham outras importantívssimas funçõesambientais. Dentre as consequências do desmatamento, podemos citar:

• Perda de solos. A foresta protege o solo, mantendo-o sempre ao abrigo do

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sol e do impacto da chuva, evitando a erosão e o ressecamento. Além disso, há acontívnua reciclagem dos nutrientes do solo na foresta: matéria vegetal e animalmorta deposita-se no solo onde se decompõe, fertilizando-o com nutrientes que,novamente, se transformam em mais matéria viva. Dessa forma, a forestamantém o solo fértil indefnidamente, e de fato constrói sua fertilidade. Aodestruir as forestas, destrói-se também o solo: esse passa a sofrer erosão elixiviação, perdendo seus nutrientes e tornando-se seco, compactado e pobre.Inicia-se assim o processo de desertifcação, consequência fnal dodesmatamento.

• Perturbação do ciclo das águas. As forestas desempenham um papelfundamental na estabilização do ciclo das águas. A foresta favorece a absorçãode água pelo solo, pois os troncos e raívzes das árvores, galhos e folhas caívdasoferecem obstáculos que reduzem o escoamento e fazem com que a água dachuva permaneça mais tempo sobre o solo, possibilitando sua absorção eabastecendo, assim, o lençol freático. Com o desmatamento, reduz-se a absorçãoda água da chuva pelo solo, levando ao abaixamento progressivo do lençolfreático e, consequentemente, o secamento de nascentes e rios.

Pela evapotranspiração, as árvores da foresta mantêm a umidade do ar,mobilizando continuamente a água dos lençóis freáticos, regulando assim aincidência e regularidade das chuvas. A perda das forestas causa uma mudançadrástica no clima, que fca mais quente e seco, com chuvas mais escassas eirregulares.

• Efeito estufa. O desmatamento é o principal responsável pelas emissões degases do efeito estufa no Brasil, e um dos principais mundialmente, contribuindotremendamente para o aumento da temperatura global e mudanças climáticas,levando por exemplo à redução nos volumes e regularidade das chuvas eaumento da ocorrência e intensidade de eventos climáticos extremos (asmudanças climáticas antropogênicas serão discutidas em mais detalhes nopróximo capívtulo).

• Mais desmatamento. A perda das forestas, com a resultantedesestabilização do clima pelos fatores citados acima, levando a verões maisquentes e secos, torna as forestas remanescentes muito mais susceptívveis aincêndios. Tem-se portanto um ciclo vicioso, no qual o desmatamento gera maisdesmatamento.

Além desses gravívssimos problemas ambientais, o desmatamento causaainda terrívveis problemas sociais. A foresta é o meio de sustento de povosindívgenas e comunidades rurais tradicionais e ribeirinhas, entre outras. Adestruição da foresta representa, portanto, a privação de seu modo de vida,ameaçando sua própria sobrevivência, já que as atividades de agriculturaindustrial predatória que se instalam na região desmatada contratam pouquívssimamão de obra. Consequentemente, essas populações veem-se forçadas a migrar

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para as cidades, em situação de extrema precariedade e vulnerabilidade. Parapiorar, essa expulsão das populações tradicionais muitas vezes se dá através deviolentos confitos de terras, promovidos pelos barões do agronegócio e empresasmultinacionais, com a conivência de governos locais corruptos: ameaças,assassinatos, destruição e queima de suas casas, enfm, violação brutal dosdireitos humanos dessas populações vulneráveis, resultando na maioria das vezesem verdadeiro etnocívdio, ou seja a destruição total de suas culturas.

Poluição

Praticamente todas as atividades do homem dito civilizado geram enormesquantidades de resívduos e subprodutos tóxicos que acumulam-se no meioambiente na forma de poluição, trazendo efeitos adversos à saúde e bem-estarhumano, mas principalmente aos ecossistemas.

Poluição do ar

As principais fontes de poluição do ar são as indústrias e setor energético,veívculos automotores e a agricultura.

As indústrias em geral produzem toda sorte de resívduos gasosos, voláteis,aerossóis e matéria particulada que contaminam a atmosfera. Em alguns paívses,o setor energético merece destaque, como é o caso da China, onde a maior causade poluição do ar são as usinas termelétricas a carvão. O setor energético eindustrial juntos são responsáveis por 46% das emissões globais de gases doefeito estufa.

Veículos automotores, especialmente carros, caminhões e ônibus (mastambém incluindo motocicletas, aviões, navios, trens, etc.), que são as principaisfontes de poluição atmosférica na maioria das cidades e uma das principaisfontes globalmente, liberam poluentes como dióxido e monóxido de carbono,dióxido de enxofre, óxidos de nitrogênio, metano, benzeno, metais pesados(especialmente chumbo), matéria particulada, etc.

Já a agricultura emite imensas quantidades de dióxido de carbono,especialmente pelo desmatamento, queimadas e pela degradação do solo (aredução da biomassa do solo é acompanhada da liberação de carbono para aatmosfera na forma de CO2, contribuindo signifcativamente para o efeitoestufa). A aplicação de pesticidas causa poluição transitória do ar, dizimandoinsetos e aves da área, e a adubação quívmica nitrogenada libera óxido nitroso,que destrói a camada de ozônio à mesma maneira do CFC. Já a pecuária,especialmente a bovina, é uma das principais fontes de metano e óxido nitroso,poluentes atmosféricos que estão entre os principais causadores do efeito estufa,e também é uma das principais causas de desmatamento, com consequente

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liberação de CO2. Segundo dados da FAO, a pecuária sozinha é responsável por14,5% das emissões globais de gases do efeito estufa.*

A poluição do ar causa severos danos à saúde humana e redução daqualidade de vida. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a poluiçãodo ar causa a morte de 7 milhões de pessoas ao ano, principalmente por doençascardiovasculares, pulmonares e câncer.** Outros problemas de saúde causadospela poluição são malformações fetais, distúrbios imunológicos e hormonais,desenvolvimento de autismo, transtornos psiquiátricos incluindo a depressão, etc.

No meio ambiente, a poluição atmosférica leva ao fenômeno de chuvaácida, que traz terrívveis consequências aos ecossistemas, especialmente forestas,o solo e ambientes aquáticos. Algumas espécies vegetais não toleram a acidez, eforestas inteiras já foram dizimadas pela chuva ácida, especialmente no LesteEuropeu e Escandinávia, mas também na América do Norte e partes da Ásia.

A chuva ácida também altera drasticamente a quívmica e microbiologia dosolo. Muitos microrganismos benéfcos do solo morrem devido à acidez,reduzindo a capacidade do solo de reter nutrientes. Enquanto isso, a queda nopH aumenta a perda de nutrientes catiônicos, como cálcio, magnésio e potássioentre muitos outros, por lixiviação, e causa ainda a mobilização do alumívnio nosolo, que passa a ser tóxico para as plantas. O resultado geral é umempobrecimento progressivo do solo, o que redunda em mais destruição deforestas, além de prejuívzos para a agricultura.

A chuva ácida também causa impacto nos corpos d'água como rios e lagos,onde a acidez causa redução da biodiversidade, já que inúmeras espécies deinvertebrados e peixes não sobrevivem em pH baixo.

O aumento na concentração de dióxido de carbono na atmosfera tambémcausa a acidifcação dos oceanos, pois esse gás se dissolve na água formando oácido carbônico. Essa acidifcação causa terrívveis efeitos para os ecossistemasmarinhos, pois altera inúmeros processos fsiológicos dos seres aquáticos,deprimindo a taxa metabólica e respostas imunes, impedindo a calcifcação,impedindo o desenvolvimento ou matando inúmeras espécies e desestruturandotoda a cadeia alimentar, assim reduzindo a quantidade, qualidade e diversidadeda vida marinha. A acidifcação dos oceanos é uma das principais causas dadestruição dos corais, juntamente com o aquecimento global e a poluição domar por resívduos fertilizantes agrívcolas.

Outro gravívssimo efeito da poluição atmosférica é o efeito estufa: gasescomo dióxido de carbono e metano, entre outros, lançados ao ar na forma de

* Gerber et al. Tackling climate change through livestock: a global assessment of emissionsand mitigation opportunities. Food and Agriculture Organization of the United Nations.2013.** Burden of disease from the joint efects of household and ambient air pollution for 2012.World Health Organization. 2014.

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poluentes da nossa civilização, acumulam-se e aprisionam a radiação solar naatmosfera, causando o aumento da temperatura (aquecimento global) emudanças climáticas. Esse problema será discutido no próximo capívtulo.

Poluição dos solos é causada principalmente pela atividade industrial,agricultura e descarte de lixo.

Quanto à atividade industrial, prospecção de petróleo, mineração,descargas industriais intencionais e derramamentos acidentais, vazamentos decanos e tanques de armazenamento subterrâneos devido à corrosão, etc. estãoentre as principais fontes de contaminação do solo. Também a poluição do ar,acaba se convertendo em poluição do solo, já que os poluentes se depositam naforma de poeira, ou são trazidos à superfívcie da terra pela chuva. Similarmente,ao penetrar no solo, carreados pela chuva, esses poluentes contaminam tambémos lençóis freáticos, e consequentemente os mananciais de abastecimento deágua. Vê-se portanto que a poluição do ar, da água e dos solos estãointimamente ligadas.

A agricultura polui os solos principalmente com agrotóxicos e fertilizantesquívmicos, além de dejetos animais concentrados nas criações intensivas.

Pesticidas contaminam pesadamente o solo e o ar (pela formação deaerossóis), levando à destruição dos ecossistemas na região, pois quando insetose moluscos são aniquilados, toda a cadeia alimentar é afetada. Pequenosmamívferos, aves, répteis e anfívbios que se alimentam de insetos morrem de fomedevido ao desaparecimento dos mesmos; predadores maiores, como gaviões,corujas e raposas, estarão portanto também condenados.

Fertilizantes químicos também são gravívssimos poluentes ambientais,pois matam os micro e macrorganismos do solo e causam sua acidifcação esalinização progressivas, reduzindo sua biodiversidade e biomassa. Além disso,adubos quívmicos são comumente contaminados com metais pesados e poluentesorgânicos persistentes, que sofrem bioacumulação, ou seja, esses componentestóxicos vão se acumulando nos organismos, causando intoxicação crônica ediversos problemas metabólicos, hormonais, imunológicos, reprodutivos enervosos, eventualmente levando à morte e culminando com a redução daspopulações de animais silvestres. Também causam bioamplificação, que signifcaum aumento da concentração em organismos de camadas mais altas da cadeiaalimentar, ou seja, os predadores, que são particularmente dizimados.

Poluição da água. A humanidade está destruindo sistematicamente avida aquática no planeta, principalmente devido à poluição. Isso acontece a olhosvistos e pode ser constatado por qualquer pessoa, em praticamente qualquerlugar e a qualquer hora. Visite o rio que corta sua cidade, ou mesmo o ribeirãomais próximo de sua casa, e dê uma olhada nele. Você teria coragem de beberaquela água? ou nadar nela? Será que você teria coragem sequer de tocar aquela

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água com suas mãos? Provavelmente, não. Por que? Simplesmente porque opobre rio está tão poluívdo que você tem nojo até de chegar perto dele, ou sentirseu cheiro. Você se arriscaria a tentar pescar nesse rio? O que será que viria noanzol?

Agora, você acredita que esse mesmo rio, até algum tempo atrás, era lindo,lívmpido e cristalino, envolto por uma rica mata ciliar, com água pura e cheio depeixes e inúmeras outras formas de vida? Mas, o que aconteceu para que elefcasse deste jeito, para que ele sofresse essa transformação tão negativa? Aresposta é uma só: a humanidade aconteceu. Somos nós que fazemos isso com orio, e com a água, e com o resto do meio ambiente.

São quatro as principais fontes de contaminação da água: esgotosdomésticos, poluição industrial, poluição agrívcola e lixo.

• Esgotos domésticos. Todos os dias, pelos corriqueiros atos de tomarbanho, lavar louça ou roupa, mas especialmente de ir ao banheiro e dar adescarga, bilhões de pessoas estão poluindo os rios, lagos e mares com seusesgotos. Esgotos domésticos são a principal fonte de poluição de águas namaioria das cidades do mundo. Infelizmente, porém, a imensa maioria daspessoas não se enxergam de modo algum como responsáveis por aquelapoluição. É como se apenas os outros fossem culpados, como se seus própriosesgotos, da privada de suas próprias casas, também não fossem para o mesmorio!

• Poluição industrial. A indústria, incluindo o setor energético, é uma enormefonte de poluição de águas, com contaminantes extremamente nocivos à saúdehumana e ao meio ambiente. Poluentes ambientais de toda sorte, resívduos daatividade industrial e mineração, são comumente descartados em corpos d'água.Além disso, a maioria das indústrias requer enormes quantidades de água parasuas atividades. Essa água passa por vários processos, sendo contaminada comcompostos quívmicos tóxicos e depois lançada em rios, lagos e mares. Ospoluentes mais comuns incluem metais pesados, hidrocarbonetos policívclicos,compostos orgânicos voláteis, poluentes orgânicos persistentes como dioxinas ePCBs, fosfatos, enxofre, resívduos radioativos, solventes como tricloroetileno edetritos orgânicos entre outros. Petróleo e seus derivados são um dos principaispoluentes dos oceanos, devido a derramamentos de navios petroleiros eplataformas, vazamentos em poços de petróleo, além de limpeza clandestina detanques de navios, derramamentos e vazamentos cotidianos por milhões deembarcações ao redor do mundo, efuentes de indústrias, descarte ilegal de óleovelho ao mar, etc., enquanto usinas nucleares vazam material radioativo quecontamina lençóis freáticos, rios, mares e oceanos em várias partes do mundo.

• Poluição agrícola. A agricultura convencional é uma das principais fontesde poluição das águas, globalmente. Agrotóxicos são carregados pela chuva, indoacumular-se nos corpos d'água, onde arrasam praticamente toda e qualquer

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forma de vida, desde moluscos, insetos e outros invertebrados, passando pelospeixes e anfívbios, e até os mamívferos e aves que ali vivem e se alimentam. Amaioria dos pesticidas são poluentes orgânicos persistentes, que acumulam-se nomeio ambiente e especialmente em ambientes aquáticos.

Fertilizantes quívmicos também são gravívssimos poluentes das águas. Aoserem carreados pela chuva para os cursos d'água, alteram as caracterívsticasquívmicas da água causando intoxicação nos organismos aquáticos. Além disso,causam o fenômeno da eutrofização, que é um crescimento explosivo de algasaquáticas devido ao excesso de nutrientes. Com esse crescimento, as algasconsomem excessivamente o oxigênio dissolvido na água e liberam toxinas,causando a morte de peixes e outros organismos aquáticos. Dejetos animaisconcentrados, provenientes principalmente de criações intensivas, tambématingem cursos d'água poluindo-os e causando eutrofzação.

Vale lembrar que os poluentes orgânicos persistentes, metais pesados eoutras substâncias tóxicas presentes nos agrotóxicos e adubos quívmicos tambémcontaminam a água dos mananciais, sofrendo bioacumulação e bioamplifcaçãonesses ecossistemas.

E a destruição não pára por aív: resívduos dos pesticidas e fertilizantes sãolevados pelos rios viajando por longas distâncias até os lagos, mares e oceanos,que sofrem os mesmos efeitos deletérios. Em muitas partes do mundo, incluindoo Golfo do México e o Mar Báltico, a eutrofzação causada por fertilizantesagrívcolas (especialmente adubos fosfatados e nitrogenados) e esgotos domésticoscriou imensas zonas mortas, que são zonas hipóxicas onde não há mais vidamarinha, exceto uma explosão de crescimento de algas, especialmente algasmicroscópicas chamadas cianobactérias, que matam peixes e outras formas devida. Um estudo cientívfco em 2008 identifcou mais de 400 zonas mortas nosoceanos, afetando uma área de mais de 245.000 quilômetros quadrados.* Valelembrar que fertilizantes quívmicos são uma das principais causas da morte decorais e destruição de ecossistemas marinhos ao redor do mundo.

A poluição das águas causa também graves impactos na saúde humana. Éinteressante (na verdade, ultrajante) notar que o rio em que uma cidade despejaseus esgotos é o mesmo rio do qual a próxima cidade capta água paraabastecimento público! Essa contaminação causa alguns dos principaisproblemas de saúde pública no mundo — doenças como diarreias virais,bacterianas e parasitárias, hepatites, cólera, febre tifoide e verminoses, que estãoentre as principais causas de mortalidade em regiões subdesenvolvidas quecarecem de sistemas apropriados de tratamento de água. Vale ressaltar que, noBrasil, apenas um terço da população conta com coleta de esgotos e, do esgotocoletado, mais de 80% são lançados diretamente nos rios e outros mananciais,sem qualquer tratamento.

* Diaz, R. J.; Rosenberg, R. Spreading dead zones and consequences for marineecosystems. Science. 2008.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

Em regiões mais desenvolvidas, o tratamento da água para abastecimentodoméstico reduz drasticamente a incidência dessas doenças. Porém, isso nãosignifca que a poluição não afete a saúde da população! Primeiramente porquemuitos dos poluentes industriais e agrívcolas não são totalmente eliminados daágua, atingindo portanto a população que consome essa água tratada. Alémdisso, para tornar aquela água poluívda “segura” para consumo, após váriosprocedimentos fívsicos e quívmicos de purifcação (peneiramento, decantação,aeração, foculação, sedimentação e fltragem) são adicionados produtosquívmicos, desinfetantes à base de cloro, com o objetivo de eliminar patógenoscomo vívrus, bactérias e parasitas ainda presentes. Porém, esse cloro reage commatéria orgânica presente na água (ácidos húmicos), gerando subprodutostóxicos como o bromofórmio, o trialometano e o dibromoclorometano. Inúmerosestudos toxicológicos e epidemiológicos têm provado que a exposição a essassubstâncias através do consumo de água tratada causa diversos tipos de câncer,especialmente de bexiga e intestino, além de problemas reprodutivos, abortos eanomalias fetais, entre outros.

Lixo

O ato corriqueiro de comprar alimentos no supermercado e produtos emlojas também implica na geração de muito lixo e poluição: sacolas plásticas,usadas indiscriminadamente pela esmagadora maioria dos consumidores;embalagens de alimentos e outros produtos, latas, garrafas de bebidas etc. quesignifcam uma enorme quantidade de lixo, principalmente plástico, mas tambémvidro, papel e metais. Apenas uma pequena parte desses materiais acabam sendoreciclados, enquanto a maior parte é lançada ao ambiente, depositada em lixões,aterros sanitários, ou incinerada, o que também gera poluição.

Os produtos industrializados em geral (roupas, mobívlia, eletrodomésticos,eletrônicos, utensívlios em geral, brinquedos, pneus etc.), após o fnal de sua vidaútil, também são descartados, geralmente se tornando lixo, muitas vezescontendo substâncias tóxicas (como metais pesados, retardantes de chama epoluentes orgânicos persistentes), que se acumulam no ambiente. A cultura doconsumismo e a “cultura do descartável”, tão caracterívsticas dos dias de hoje,agravam muito essa situação, pois levam a uma geração muito maior de lixo,além de contribuívrem para o aumento da poluição industrial e consumo derecursos naturais.

Restos orgânicos como alimentos, cascas etc. são corriqueiramentelançados de forma concentrada ao meio ambiente em lixões e aterros sanitários,e até rios, representando poluição que também prejudica os ecossistemas. Essasituação é ainda agravada pelo escandaloso desperdívcio de alimentos (valendolembrar que cerca de um terço dos alimentos produzidos no mundo sãodesperdiçados).

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

O lixo é um problema ambiental gravívssimo. Sua presença fívsicapraticamente eterna está se alastrando sobre a face da terra na forma de lixões eaterros sanitários, que não param de crescer em número e tamanho. Geralmenteesses são instalados estrategicamente fora da vista da maioria das pessoas, o queevita que elas tenham noção da dimensão do problema.

O lixo também se acumula em rios e outros corpos d'água. Visite qualquerrio dentro de qualquer zona urbana ou próximo a ela, e verá uma imensaquantidade de lixo boiando ali, sendo levada pela corrente, ou enroscado nasmargens, sem contar os lixos mais pesados que acumulam-se no leito do rio. Boaparte desse lixo é atirada propositalmente no rio, devido a essa culturatotalmente inacreditável, disseminada em boa parte da humanidade, de acharque rios e corpos d'água em geral são algum tipo de lixeira! Que jogou ali,pronto, sumiu! Além disso, lixo depositado nas ruas e mesmo em lixões tambémé carregado pelo vento e principalmente pela chuva, indo parar nos rios, lagos e,por fm, nos mares, onde se acumulam (estamos falando de milhões detoneladas). Ali, esse lixo dizima um número incalculável de animais marinhos,como peixes, golfnhos, tartarugas, aves, etc., que acabam se enroscando oucometem o terrívvel erro de ingerir pedaços de plástico e outros materiais, o quecausa obstruções, matando-os.

Além da óbvia contaminação fívsica, os subprodutos da degradação do lixotambém poluem o ar, o solo e as águas. A decomposição anaeróbica do lixo égrande emissora de gases do efeito estufa, como CO2 e metano. Além disso, emmuitos lugares, o lixo é incinerado, contribuindo signifcativamente para apoluição do ar, inclusive com subprodutos da queima incompleta de plástico,como as dioxinas e PCBs, causadores de problemas endócrinos, imunológicos,reprodutivos e câncer.

Nos lixões e aterros sanitários, a decomposição anaeróbia da matériaorgânica do lixo produz o chorume, um lívquido escuro, viscoso, fétido ealtamente poluente, que escorre e contamina o solo. A partir daív, o chorumepercorre dois caminhos: penetrando no solo, atinge os lençóis freáticos poluindo-os, e também é carreado pelas chuvas, indo contaminar diretamente corposd'água como rios e lagos. Além disso, há também a liberação de outrassubstâncias quívmicas tóxicas, metais pesados, poluentes orgânicos persistentes,etc., que se acumulam tanto no solo como nos corpos d'água.

A redução na geração do lixo através de um consumo mais consciente e areciclagem adequada de materiais atenuariam enormemente esses problemas,além de economizar energia e outros recursos naturais (matérias primas); porém,ainda que tenha-se observado alguns avanços no ramo da reciclagem, aquantidade de lixo sendo produzida e lançada ao ambiente só vem aumentandoem todo o mundo, tanto pelo aumento da população como pelo aumento doconsumismo e desperdívcio.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

Extinções em massa

Quando se fala em extinções em massa, as pessoas em geral associam essetermo e episódios extremamente remotos, que ocorreram há milhões de anos,como aquele que levou à extinção dos dinossauros, por exemplo.

Extinção em massa nada mais é do que um perívodo em que a taxa deextinções é substancialmente superior ao normal, o que, em um determinadoperívodo de tempo, causa o desaparecimento de um grande número de espécies egrande redução na biodiversidade da Terra. O que pouca gente está ciente é queneste exato momento nós estamos bem no meio de um período de extinção emmassa! Mas qual seria a causa desse fenômeno? Um meteoro? Uma nova eraglacial? Nada disso — a causa do atual perívodo de extinção em massa somosnós, seres humanos.

Extinções de espécies provocadas pelo homem não são novidade.Migrações do homem primitivo pelo globo há milhares de anos foramacompanhadas de inúmeras extinções de espécies de animais, devidoprincipalmente à caça indiscriminada, conforme já citado. Entre as espécies quedesapareceram para sempre nesse perívodo estão incluívdas dezenas de espécies damegafauna, extintas desde a transição do Pleistoceno para o Holoceno (cerca de11.000 anos atrás), incluindo mamutes, mastodontes e outros parentes doselefantes atuais, diversas espécies de preguiças-gigantes, tatus que pesavam até 2toneladas, espécies de antas, alces, camelívdeos, equívdeos e ursos, tigres dentes-de-sabre, leões e guepardos americanos, entre muitos outros. Na Austrália, achegada do homem há cerca de 45.000 anos levou rapidamente à extinçãoinúmeras espécies de cangurus, muitas delas gigantes, além de aves e répteis; nasilhas do Pacívfco incluindo o Havaív, centenas de espécies de aves foram caçadasaté a extinção pelos primeiros habitantes humanos há milhares de anos, enquantona Nova Zelândia, várias espécies de moa, aves gigantes da famívlia do avestruz edas emas, foram caçadas pelos maoris até a extinção, há cerca de seis séculos.

De lá para cá, com o aumento vertiginoso da população humana e odesenvolvimento de novas tecnologias cada vez mais destrutivas, a situação foipiorando progressivamente para a biodiversidade. Atualmente, espécies estãosendo extintas a uma taxa 1000 vezes superior à natural, por consequência dasatividades humanas; milhões de espécies de animais e plantas estãoiminentemente ameaçados de extinção.*

As extinções antropogênicas (causadas pelo homem) devem-se à caçaabusiva, colheita predatória de espécies vegetais como árvores de madeira nobre;destruição e fragmentação de habitat (e.g. desmatamento), poluição, introduçãode espécies exóticas que, através de predação, competição ou introdução dedoenças levam espécies autóctones à extinção; mudança climática e acidifcação

* Pimm, S. T. et al. The future of biodiversity. Science. 1995.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

dos oceanos, etc.

Quando se fala nos episódios de extinções em massa que ocorreram nopassado, as pessoas tendem a assumir que as espécies desapareceram da noitepara o dia, o que é incorreto — tais eventos geralmente ocorrem ao longo decentenas ou milhares de anos. Porém, mesmo assim, na escala de tempo daevolução da vida no planeta Terra isso ainda representa um perívodo curto e,portanto, um declívnio abrupto da biodiversidade. A maioria das pessoas nãoconseguem perceber que estamos no meio de um episódio de extinção em massaporque ignoram como tais eventos ocorrem, e também porque são incapazes deentender escalas de tempo adequadas. Por exemplo, para as pessoas 1000 anosparecem uma eternidade; no entanto, em termos do planeta Terra, ou da históriada vida, ou da evolução de qualquer espécie, 1000 anos é um tempoextremamente curto (as pessoas em geral têm enorme difculdade decompreender escalas de tempo superiores à da vida humana, como algumasdécadas, um século no máximo). Porém, certamente o maior entrave àcompreensão da gravívssima crise ambiental global e suas possívveis consequênciasé o puro e simples desconhecimento — ignorância mesmo, para ser bem claro— em relação à escala da destruição ambiental global pelo homem e avelocidade com que ela avança, ou sobre a importância dos ecossistemas.

E o problema tende a se agravar, já que que tanto a população humanacomo os nívveis de consumo de recursos e poluição só estão aumentando, diaapós dia. Como essas mudanças são exponenciais, o cenário mais provável é quelogo atingiremos um ponto crítico, em que o dano acumulado causará umagravamento abrupto de todos os problemas que compõem a crise ambiental.levando a um colapso do ambiente natural e da biodiversidade, econsequentemente da civilização e da própria humanidade.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

4PROJEÇÕESPARA O FUTURO

Na sociedade atual, devido à artifcialização da vida e também o alto graude alienação, talvez muitas pessoas acreditem que o homem não precisa danatureza para sobreviver e que, portanto, a preservação do meio ambiente é algoopcional, não prioritário, quase como um mero detalhe estético. Porém, nadapoderia estar mais longe da verdade! Assim como todas as outras espécies deseres vivos, a humanidade depende totalmente do equilívbrio da natureza e dosrecursos naturais para sua sobrevivência a longo prazo. Também nossacivilização é totalmente dependente da abundância de recursos naturais, já quesem eles, qualquer tecnologia e de fato toda a economia e consequentemente aestrutura social como um todo tornam-se inviáveis. Sendo assim, logicamente adestruição do equilívbrio ambiental implicará no colapso da civilização e daprópria humanidade.

Isso não seria algo inédito — nos últimos 10.000 anos o mundo játestemunhou a ascensão e queda de inúmeras civilizações, em diferentes épocase diversas regiões do planeta. Embora diversos fatores possam causar oucontribuir para a desintegração de sociedades e civilizações, a história mostraque, na maioria dos casos, tem-se a repetição de um padrão comum: primeiro,você tem uma fase de ascensão, que é marcada por desenvolvimentotecnológico, crescimento populacional, melhoria das condições de vida e

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

aumento da complexidade das estruturas sociais. Isso causa um aumento dapressão sobre o meio ambiente, com consumo crescente de recursos naturaisessenciais, como água, solos férteis para agricultura, madeira para construção ecombustívveis (energia), etc. Então, você tem uma combinação de aumento dapopulação e depleção de recursos naturais, acompanhada de deterioraçãoambiental. Porém, na euforia do crescimento, poucos se dão conta desse fato —o crescimento contívnuo por longos perívodos leva a um clima de otimismo, e aimpressão que a coisa só vai melhorar, e nada pode dar errado. Então, a partir dedeterminado momento, essa relação predatória do homem em relação à naturezacausa a uma escassez crívtica dos recursos naturais necessários à própriacivilização, inviabilizando seu crescimento e mesmo sua manutenção, levando àdesestruturação econômica, tecnológica, social e administrativa, resultando nadeterioração das condições de vida e culminando num rápido declívnio dapopulação por fome, violência e epidemias.

Claro que é temerário se aventurar em fazer “profecias”, já que éimpossívvel prever com certeza como e quando eventos futuros ocorrerão. Porém,com base no exposto até aqui pode-se, sim, afrmar com segurança que osfatores básicos que levaram à queda de civilizações anteriores já se insinuamclaramente no mundo atual, anunciando a possibilidade de um colapso de nossaprópria civilização em um futuro próximo.*

* Para uma análise aprofundada do tema do colapso de civilizações passadas eimplicações para nossa sociedade atual, recomendo a leitura de “Colapso – como associedades escolhem o fracasso ou o sucesso”, de Jared Diamond, e “The collapse ofcomplex societies”, de Joseph Tainter.

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Ascensão e queda de algumas civilizações passadas

-2000

Império Acádio

Civ. Micênica

Civilização do Vale do

Indo

Império Khmer

Dinastia Han

Dinastia Tang

Anasazi

Império Romano

OcidentalMaias

Rapa Nui

Civilização Cartaginesa

-250

0

-300

0

-1500

-100

0

-500 0

500

1000

1500

2000

Ano

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

Há, porém, um fator inédito muito importante em relação à situação danossa civilização atual. As civilizações passadas eram relativamente pequenas egeografcamente restritas; sendo assim, mesmo com seu colapso, sempre havianovas áreas disponívveis, permitindo a migração ou a ascensão de novascivilizações, etc. Em contraste, hoje temos uma civilização gigantesca e globalda qual nenhuma parte do planeta está a salvo. Ou seja, com seu colapso, nãohaverá para onde ir. Justamente por isso o colapso da atual civilização representaum risco real de destruição total da espécie humana.

Exaustão de recursos naturais

A Terra é um espaço fnito, com recursos fnitos, e por causa das atividadeshumanas todos os dias há menos forestas, menos água limpa, menos solos férteise menos biodiversidade que no dia anterior. Por outro lado, todos os dias há maispessoas, mais carros, mais fábricas... mais rios, lagos e mares poluívdos, maislixo, mais gases do efeito estufa, etc. que no dia anterior. Logicamente, oresultado inevitável desse processo é que chegaremos a um ponto em que oplaneta estará coberto de gente, lixo e poluição, enquanto os recursos maisbásicos necessários à manutenção da vida humana se tornarão tão escassos queisso forçará a uma redução da população.

Para melhor entender essa situação, vamos focar no que está acontecendocom dois dos recursos mais essenciais à vida humana: a água e o solo.

Água

O recurso natural mais essencial à vida é também um dos mais ameaçadospela nossa civilização. Devido a uma combinação de diversos fatores, o risco deuma crise hívdrica global é considerado por muitos uma das principais ameaças àhumanidade num futuro próximo.

A água é ameaçada por:

• Crescimento populacional, associado a um aumento no consumo per capitade água.

• Poluição das águas por esgotos domésticos e industriais, poluição agrívcola,assoreamento de rios devido à erosão do solo, etc., levando a uma reduçãona quantidade de água limpa disponívvel.

• Intensifcação de práticas agrívcolas com uso indiscriminado de irrigação,causando esgotamento de águas superfciais (rios) e subterrâneas (lençóisfreáticos).

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

• Desmatamento e agricultura insustentável, compactação do solo pelo gadoe impermeabilização por cidades e estradas, aumentando o escorrimentosuperfcial de chuva e reduzindo a penetração de água no solo, levando aoabaixamento de lençóis freáticos, secando nascentes e reduzindo a vazão derios.

• Mudança climática, devido ao aquecimento global e desmatamento,levando à redução no volume e regularidade de chuvas, contribuindo paraescassez de água em muitas regiões do mundo, enquanto em outras háeventos climáticos extremos, como tempestades e inundações.

Devido à crescente precariedade dos recursos hívdricos mundialmente, aFAO estima que, em 2025, dois terços da população mundial estarão sujeitos aestresse hívdrico severo.* E o cenário mais provável é um agravamentoprogressivo dessa situação, devido à nossa trajetória de aumento populacional,deterioração ambiental e mudança climática.

Isso gera uma perspectiva sombria: em algum ponto, talvez não muitodistante, a falta de água para irrigação passará a comprometer a agricultura emmuitas regiões do mundo, com risco de uma crise alimentar e,consequentemente, crise humanitária e migratória em escala global. Enquantoisso, a crise no abastecimento urbano colocará grandes centros econômicos emcheque. Devido à sua importância e escassez, a água passará a ser uma questãoestratégica, o que poderá motivar confitos internacionais, incluindo guerras parase apoderar de recursos hívdricos de outros paívses, semelhantemente ao que jáocorre em relação ao petróleo.**

Solo

Solos são a base da vida terrestre, incluindo a humana — 95% dos nossosalimentos vêm do solo.

A porção do solo que é capaz de suportar vida (e, portanto, produziralimentos) é a camada superfcial, geralmente até cerca de 20 centívmetros deprofundidade. Essa é a porção que contém a maior concentração de matériaorgânica, microrganismos e nutrientes.

Solos superfciais formam-se ao longo de milênios e são, por isso, paraefeitos práticos, considerados recursos não renováveis. Acontece que os solossuperfciais estão sendo destruívdos rápida e progressivamente devido à marchado desmatamento e práticas agrívcolas insustentáveis, conforme já descrito.Atualmente, cerca de 80% dos solos agrívcolas ao redor do mundo já estão

* Coping with water scarcity – challenge of the twenty-first century. Food and AgricultureOrganization of the United Nations. 2007.

** Crawford, J. What if the world’s soil runs out? Time/World Economic Forum. 2012.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

moderadamente ou severamente degradados*, e cientistas estimam que dentro de60 anos, a humanidade poderá ter destruívdo praticamente todos os solos férteisdo planeta. Isso signifca que haverá uma redução dramática na capacidade deproduzir alimentos, o que, associado ao crescimento populacional (devemoschegar a 11 bilhões de pessoas ainda este século, segundo projeções da ONU),signifcará uma crise alimentar global generalizada e irreversívvel.

Embora a utilização de fertilizantes quívmicos permita a produção dealimentos em solos degradados, isso não resolverá o problema, podendo apenasmitigar por um certo perívodo a crise alimentar. Isso porque os fertilizantesquívmicos também são recursos finitos, não renováveis, que estão sendo extraívdose utilizados crescentemente pela agricultura industrial, de forma que também umdia fatalmente entrarão em declívnio. Dentre eles, vale destacar o caso do fósforoe nitrogênio. O fósforo é um elemento totalmente essencial à vida, necessário aometabolismo energético celular, à formação das membranas celulares, DNA eoutras moléculas vitais de todo organismo conhecido — e é um macronutrientedo solo (necessário em grandes quantidades para o crescimento vegetal). Noentanto, é um elemento disponívvel em quantidades limitadas na Terra. A fontepredominante de fósforo agrívcola são as rochas fosfáticas, abundantes apenas emalguns poucos paívses, especialmente o Marrocos, com 70% das reservasmundiais. Estima-se que a quantidade disponívvel de rocha fosfática que pode serobtida de forma economicamente viável entrará em declívnio terminal e exaustãoglobalmente dentro de algumas décadas — o chamado pico do fósforo.**

Outro macronutriente do solo, o nitrogênio, também representa um desafo.A adubação nitrogenada na forma de ureia agrívcola representa a maior parte dosfertilizantes consumidos pela agricultura mundialmente. Porém, esse fertilizanteé derivado de combustívveis fósseis (gás natural), um recurso que também estáem declívnio, conforme discutiremos a seguir.

Com a destruição da fertilidade natural dos solos e exaustão dosfertilizantes minerais e quívmicos, e resultante declívnio na capacidade deprodução de alimentos, associada à superpopulação, isso criará uma pressãoesmagadora para a abertura de novas terras agrívcolas — em outras palavras,desmamento. Ou seja, as pessoas verão na exploração da fertilidade do solo dasáreas das poucas forestas virgens remanescentes a única saívda para nãomorrerem de fome. Nesse cenário, as forestas remanescentes do planeta nãoterão a menor chance — estará decretado o fm da biodiversidade terrestre.Agora, tente adivinhar: o que acontecerá quando também esses últimos solosforem destruívdos?

* Gomiero, T. Soil degradation, land scarcity and food security: reviewing a complexchallenge. Sustainability. 2016.** Rhodes, C. J. Peak phosphorus – peak food? The need to close the phosphorus cycle. Science progress. 2013.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

Pico do petróleo e crise energética

A utilização de combustívveis fósseis em larga escala, ou seja, o carvãomineral desde a Revolução Industrial e especialmente o petróleo a partir doséculo XX, possibilitou o desenvolvimento tecnológico mais rápido da históriada humanidade, e também o perívodo de crescimento populacional mais intensojamais visto. A população humana global em 2015 já é seis vezes maior que noinívcio do século XX, e isso tudo graças ao petróleo, com seu imenso potencialenergético, sua praticidade, versatilidade como matéria prima e, muitoimportantemente, sua disponibilidade em grande volume e baixo custo.

Desde 1900, a porcentagem de pessoas vivendo em cidades aumentou de13% para mais de 54%. Isso signifca que hoje temos 4,1 bilhões de pessoasvivendo em cidades, enquanto havia apenas 200 mil há 110 anos atrás — umaumento de mais de 20 vezes em um perívodo extremamente curto. Isso só foipossívvel graças ao petróleo. Todas nossas tecnologias modernas foramdesenvolvidas graças a ele, de forma que nossa civilização se tornou totalmentedependente desse recurso.

Agora, pense no seguinte: nos dias de hoje, um professor dando suas aulas,um arquiteto fazendo projetos, um vendedor trabalhando em uma loja ou umbancário sentado o dia todo, na sombra e com ar condicionado, atendendoclientes (só para citar algumas profssões, mas o mesmo vale para a maioria dasprofssões hoje em dia), ganham o sufciente para comprar comida, roupas, pagaruma casa, ter um carro, etc. Até aív, aparentemente tudo bem, não é? Vamos ver.Agora, compare o esforço que esses profssionais teriam que fazer para plantartoda a comida que comem, transportá-la, benefciá-la... para construir suas casas— não apenas assentar os tijolos, mas fazer os tijolos, transportá-los, minerarpara fazer o cimento, serrar toras de árvores para fazer os caibros de seustelhados... extrair e trabalhar todo o ferro e outros metais, sem contar plásticos,borrachas, vidros, etc. para fazer seus carros... Compare todo esse esforço com oque realmente fazem, no dia a dia dos seus trabalhos.

Já parou para pensar na discrepância entre esses dois “esforços”: o querealmente fazemos e o que seria necessário para fabricar e construir tudo o queconsumimos? O que pode explicar essa discrepância? Muitos dirão: “atecnologia”. E está certo, mas isso é apenas metade da resposta. A outra metadeda resposta é que preocupa: a energia. Isso porque a energia que move toda essatecnologia, e faz todo esse esforço para nós, é proveniente principalmente doscombustívveis fósseis, especialmente o petróleo.

É o petróleo que move os tratores agrívcolas para plantar, e os caminhõespara transportar a comida, e as máquinas pesadas para minerar; petróleo ecarvão mineral para os altos-fornos, para calcinar e fundir, e moldar e fabricar econstruir, e transportar, etc. tudo o que é produzido e consumido pela nossacivilização. Ou seja, são os combustívveis fósseis, através da tecnologia, que

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

fazem praticamente todo o serviço pesado, e por isso as pessoas podem fcarsentadas, fazendo muito pouco esforço fívsico, engordando, e ainda assim teremcasa, carro(s), viagem de avião nas férias, etc.

Aqui é conveniente citar o conceito de “escravos energéticos”, introduzidopor Richard Buckminster Fuller, arquiteto, inventor e flósofo americano. Oconceito é o seguinte: se não fosse pela tecnologia moderna e uso de fontesartifciais de energia, o padrão de vida, comodidade e conforto de qualquerhomem moderno só poderia ser mantido se ele tivesse à sua disposição dezenasou centenas de escravos fazendo para ele todo o serviço pesado (de cultivar osalimentos, transporte, mineração, fabricação de bens, etc.). O escravo energéticoé uma unidade abstrata de energia que representa o trabalho braçal de um serhumano adulto, mas que é na verdade feito pelas máquinas modernas(tecnologia), usando fontes de energia como petróleo, eletricidade, etc. Onúmero de escravos energéticos varia de acordo com a classe social e nívvel deconsumo, mas calcula-se que para que uma pessoa tenha um padrão de vidanormal de classe média, ela deve ter permanentemente à sua disposição cerca de150 escravos energéticos. Agora, não é só o padrão de vida das pessoas quedepende dos escravos energéticos. Na verdade, eles são as verdadeiras bases quesustentam toda a nossa civilização industrial.

Claro que todo esse consumo de energia e outros recursos é um fatorcentral da crise ambiental. Mas o problema não é só esse: combustívveis fósseissão recursos finitos e não renováveis. Todo o petróleo que existe foi produzidomilhões de anos atrás, e tudo o que estamos fazendo é extrair e consumir essepetróleo, a uma taxa exorbitante e cada vez maior. A extração contívnua desserecurso fnito levará inevitavelmente a um desfecho totalmente previsívvel: suaexaustão.

Tecnicamente falando, o que acontecerá não é exatamente o fm dopetróleo, mas sim um declívnio nas reservas convencionais, de óleo de boaqualidade e que pode ser extraívdo de forma economicamente viável, levando ànecessidade de investimentos cada vez maiores para obter um retorno cada vezmenor em termos de energia, já que só sobrarão reservas cada vez mais difívceis(e caras) de acessar, e de qualidade cada vez pior, forçando, a partir de um certoponto, a uma redução na produção anual global (declívnio terminal) associada auma elevação progressiva dos preços. Esse ponto, em que a extração global depetróleo atinge seu máximo, é chamado de pico do petróleo.

É consenso entre cientistas que as reservas de petróleo já estão em umestágio avançado de depleção, e que os efeitos do pico do petróleo poderão sersentidos num futuro muito próximo — antes de 2030 e, provavelmente, antes de2020.*

* Miller, R. G., Sorrell, S. R. The future of oil supply. Philosophical Transactions. Series A,Mathematical, physical, and engineering sciences. 2016.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

A demanda mundial por petróleo tem aumentado continuamente ao longodas décadas, e tende a aumentar ainda mais com o crescimento populacional, odesenvolvimento de novas tecnologias (quase todas dependentes de petróleo) edesenvolvimento econômico de paívses emergentes grandes e altamentepopulosos, como China e Índia. A combinação fatal de aumento na demanda eredução na oferta do petróleo causará um aumento vertiginoso e irreversívvel nopreço do petróleo, até chegar a um ponto em que o volume extraívdo será tãopequeno e o preço tão alto, que o petróleo deixará de ser um recurso viável. Doponto de vista prático, isso é equivalente a dizer que o petróleo “acabou”.

Embora haja uma ênfase no petróleo por sua particular relevância, deve-sedestacar que o mesmo princívpio se aplica igualmente a todos os outroscombustívveis fósseis, como carvão mineral e gás natural (e até mesmocombustívveis nucleares como o urânio 235, enfm, todos os recursos nãorenováveis). Os combustívveis fósseis correspondem a mais de 80% do consumoenergético global. A escassez (e consequente encarecimento) de uma fonte deenergia naturalmente leva à intensifcação do uso das outras fontes. Por isso,acredita-se que as principais fontes energéticas do mundo atual atinjam um picoe declívnio de forma mais ou menos sincronizada, fazendo com que uma criseenergética generalizada seja difívcil de evitar — talvez até fosse possívvel, atravésde um esforço colossal de substituição da matriz energética por formasrenováveis e reformulação geral dos modelos econômicos e sociais, mas issosimplesmente não está sendo feito. Vale lembrar que, embora haja investimentosnessa área, as energias renováveis como solar e eólica ainda correspondem aapenas cerca de 1,5% da matriz energética global.*

Guerras por petróleo já são comuns há décadas — de fato, a maioria dosconfitos armados internacionais envolvendo nações industrializadas desde aSegunda Guerra Mundial foram motivados pelo controle de petróleo e gásnatural.** Se isso já ocorre em tempos de abundância desse recurso, imagine oque poderá ocorrer quando ele começar a fcar criticamente escasso?

A crise energética decorrente do pico do petróleo acarretará uma criseeconômica global sem precedentes, já que o modelo econômico atual e a própriaorganização da sociedade são dependentes de uma abundância absurda deenergia. O mundo como o conhecemos hoje só foi possívvel por causa daabundância de combustívveis fósseis. O fm desses recursos poderá causar ocolapso da nossa atual civilização industrial.

* 2017 Key world energy statistics. International Energy Agency. 2017.

** Klare, M. T. Twenty-first century energy wars: how oil and gas are fuelling globalconflicts. Energy Post. 2014.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

Aquecimento global/mudança climática

O aquecimento global é a elevação nas temperaturas médias do clima daTerra quem vem ocorrendo, predominantemente em decorrência das atividadeshumanas, devido às emissões dos chamados “gases do efeito estufa”, dos quais osprincipais são o dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O).

As emissões antropogênicas (i.e. causadas pelo homem) de gases do efeitoestufa são derivadas principalmente da queima de combustívveis fósseis (carvãomineral, petróleo e gás natural) para a geração de eletricidade, aquecimento,realização de trabalho industrial e transportes (95% da energia utilizada notransporte mundial vem de combustívveis fósseis, especialmente gasolina ediesel), e pelo (mau) uso da terra, incluindo a agricultura, pecuária,desmatamento, queimadas e degradação do solo — todas intimamenterelacionadas.

Emissões globais de gases do efeito estufa por setor econômico.Fonte: IPCC*

Esses gases produzidos pelo homem vêm-se acumulando crescentementena atmosfera desde a Revolução Industrial, e mais agudamente na nossa Era doPetróleo, de forma que suas concentrações são hoje muito superiores aos nívveisnaturais.

* IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change). Climate change 2014: mitigation ofclimate change. Working Group III contribution to the Fifth Assessment Report of theIntergovernmental Panel on Climate Change. 2014.

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Agricultura(25%)

Transportes(14,5%)

Residencial e serviços(18,5%)

Indústria(32%)

Outros

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

Gráfco: concentrações atmosféricas dos principais gases do efeito estufa.Fonte: NOAA – National Oceanic and Atmospheric Administration, EUA.

Os gases do efeito estufa absorvem a radiação indireta, proveniente do sol erefetida pela Terra, e devolvem essa energia na forma de calor causando umaquecimento da atmosfera (e, consequentemente, da crosta terrestre e oceanos).Até recentemente, as consequências do efeito estufa não eram nitidamentereconhecívveis pelas pessoas, mas hoje já está claro, em qualquer parte domundo, que o clima está realmente mudando: o clima em todas as regiões estáfcando mais quente, e em muitos lugares é possívvel perceber uma redução noregime de chuvas. Regiões antes úmidas hoje são secas, e regiões antes secas,hoje são verdadeiramente áridas ou semiáridas, etc.

Desde 1900, a temperatura média da superfívcie terrestre aumentou emcerca de 1 °C, e o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC)prevê em seu relatório de 2013 a possibilidade de um aumento de até 4,8 °C atéo fnal do século XXI.* A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre aMudança do Clima (UNFCCC) concluiu que, para evitar um aquecimentoglobal de consequências desastrosas, é preciso evitar que ocorra um aquecimentoglobal acima de 1,5 ou 2 °C em relação à média histórica de temperatura, e quepara isso é necessária uma redução dramática e imediata na emissão de gases doefeito estufa. Embora praticamente todos os paívses tenham se comprometido em

* Stocker, T. F. et al. Technical summary. In: Climate Change 2013: The physical sciencebasis. Contribution of Working Group I to the Fifth Assessment Report of theIntergovernmental Panel on Climate Change. 2013.

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Dióxido de carbono(CO

2)

Óxido Nitroso(N

2O)

Metano(CH

4)

1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2015 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2015

1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2015

Par

tes

por

bilh

ão (

pp

b)

330

325

320

315

310

305

300

295

Par

tes

por

milh

ão (

pp

m) 400

390

380

370

360

350

340

330

Par

tes

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bilh

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pp

b)

1850

1800

1750

1700

1650

1600

1550

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

acordos internacionais a cumprir essa meta, as emissões de gases do efeito estufacontinuam só aumentando, ano após ano.

Cientistas preveem umavasta gama de efeitosnegativos do aquecimentoglobal no futuro, incluindoa elevação dos nívveis dosoceanos (devido à expansãotérmica e derretimento decalotas polares), mudançasno padrão de chuvas,expansão dos desertos,aumento na frequência eintensidade de eventosclimáticos extremos comoondas de calor, secas,tempestades cominundações, tufões, etc. etambém uma intensifcaçãoda acidifcação dos oceanos

(com morte de corais) e extinções de muitas espécies por alteração dastemperaturas e perda de habitat.

O aquecimento global trará serívssimas conseqüências para a humanidade: aelevação do nívvel dos oceanos forçará ao deslocamento de centenas de milhõesde pessoas que vivem nas zonas costeiras, já que grande parte dessas cidadesfcarão submersas. O aumento da temperatura poderá tornar boa parte da zonatropical simplesmente inabitável. Além disso, devido à perturbação do regime dechuvas e expansão de desertos, vastas regiões enfrentarão crises hívdricas e deabastecimento, levando à fome generalizada em diversas regiões tropicais. Issotudo forçará à migração de bilhões de pessoas que ali vivem, gerando uma crisemigratória global sem precedentes. Esses fatores adicionarão enorme estresse nasrelações polívticas entre paívses, com fortifcação de fronteiras para conter osfuxos migratórios de famintos e sedentos, exacerbando a crise humanitária.

Ligando os pontos

A crise energética causada pelo pico do petróleo poderá trazer o fm denossa civilização industrial, pois todas as tecnologias atuais, dependentes dopetróleo, se tornarão inviáveis. Sem combustívveis, todas as pessoas quedependem de carro ou transporte público para ir ao trabalho serão afetadas, ouseja, não poderão trabalhar. Tampouco terão trabalho, pois sem energia e

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Gráfco: variação da temperatura média global dasuperfície terrestre (terra e oceano) de 1880 a 2017,relativa à média de 1951-1980. Fonte: NASA Goddard Institute for Space Studies, EUA

1880 1900 1920 1940 1960 1980 2000 2020

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-0,4

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

matéria prima muitas indústrias pararão; sem produtos para vender, o comérciotambém vai parar. Com a crise nesses setores, o setor de serviços tambémsofrerá, pois sem emprego as pessoas não terão dinheiro para gastar, gerandouma “bola de neve” de desemprego. Com a paralisação das atividadeseconômicas, não haverá arrecadação pelos governos, e assim os serviços públicoscomo educação, saúde, infraestrutura, saneamento, segurança pública, etc.também serão interrompidos.

Desempregadas e sem renda, as pessoas não terão dinheiro para compraralimentos. A população vivendo em grandes centros urbanos estaráespecialmente vulnerável, pois o transporte dos alimentos a partir das regiõesprodutoras fcará extremamente encarecido ou inviabilizado pela escassez decombustívveis. Pior ainda, tampouco haverá alimentos, pois toda a agriculturafcará inviabilizada, já que a agricultura moderna depende totalmente de tratores,fertilizantes quívmicos e pesticidas, todos dependentes do petróleo, que é ocombustívvel para os tratores e a matéria-prima para os fertilizantes e pesticidas.Com a exaustão desses insumos, cairá por fm a máscara da agriculturaindustrial, mostrando que ela destruiu completamente a fertilidade natural dossolos, tornando-os estéreis, desprovidos de vida e incapazes de produziralimentos.

Isso tudo sem contar a crise hívdrica global! A falta de água e escassez dealimentos levará à fome generalizada, que atingirá primeiramente as classes maisvulneráveis e as regiões mais pobres, avançando inexoravelmente até que todossejam atingidos. E tudo isso será enormemente agravado pelas mudançasclimáticas.

O desespero das pessoas levará à instabilidade e caos social, colapsoeconômico de paívses e esfacelamento de instituições, guerras civis e ascensão deregimes totalitários. Assim como já citado para a água, guerras serão travadas epaívses subjugados e destruívdos em disputas pelos últimos recursos agrívcolascomo solos e nutrientes (pobre Marrocos, com suas reservas de rochasfosfáticas!). Viveremos uma crise humanitária global sem precedentes em quetodos os dias morrerão milhões de pessoas, e a população humana será reduzida,de forma drástica, progressiva e irreversívvel, por fome, sede, violência, guerras eepidemias, em meio às ruívnas da civilização.

Ou seja, temos um cenário de “tempestade perfeita”, em que um conjuntode fatores extremamente sombrios, cada um dos quais isoladamente já seria umagrave ameaça à nossa civilização, vêm se avultando, convergindo para causaruma crise sem precedentes, ainda este século. Mas a coisa pode fcar ainda piordo que o já descrito, pois na iminência do colapso, quando paívses travaremguerras para se apoderar de recursos energéticos, agrívcolas e hívdricos, isso criaráo cenário ideal para uma provável terceira guerra mundial, com um riscosubstancial de aniquilação nuclear global.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 5. Estado de Emergência Planetária

5ESTADO DE EMERGÊNCIAPLANETÁRIA

Diante do exposto até aqui, fca evidente que estamos de fato num estadode emergência planetária, e que a insustentabilidade humana é o maior problemado mundo.

Claro que há muitos outros problemas no mundo atual, como pobreza,fome, violência, desigualdade e injustiça social, corrupção de governos, guerras,doenças como câncer e AIDS, etc., todos também importantes, tristes realidadesque devemos nos empenhar em mudar. Porém, mesmo em conjunto, todos essesproblemas não se comparam, em gravidade, à insustentabilidade. Se todos essesoutros problemas atuais fossem milagrosamente resolvidos, e de repentetivéssemos um mundo sem pobreza ou injustiça social, somente governoshonestos, e mesmo que fossem descobertas curas para todas as doenças, etc.,certamente terívamos um mundo muito mais feliz; porém, mantendo nossosestilos de vida insustentáveis como são, essa felicidade duraria pouco. Com aexaustão dos recursos, tudo isso desmoronaria como um castelo de cartas,descambando para o mesmo cenário apocalívptico descrito acima.

Se quisermos ter uma chance de sobreviver como espécie e deixar ummundo saudável ou pelo menos habitável para as próximas gerações,necessitamos urgentemente de uma mudança radical de paradigma. Apreservação do meio ambiente e dos recursos naturais deverão ser prioridademáxima e a busca da sustentabilidade, o objetivo principal da humanidade. Estaé justamente a proposta da permacultura, apresentada nas páginas seguintes.

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Parte IIA Alternativa daPermacultura

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

6TEMPO DE MUDANÇA

Na Parte I, discutimos brevemente a trajetória da espécie humana em suaescalada rumo à insustentabilidade. Ali, estão condensadas informações de livredomívnio público, informações a que todos têm acesso. De fato, a maior partedessas informações já não são novidade para ninguém — quem nunca ouviufalar de superpopulação, desmatamento, poluição ou efeito estufa?

No entanto, raramente o indivívduo liga os pontos, ou analisa essasinformações de forma integrada e clara, considerando suas origens e evoluçãohistórica, ou seja, o agravamento de nossa insustentabilidade com o passar dotempo, sua extrema exacerbação nos tempos recentes, a magnitude da atual criseambiental e civilizacional e as consequências previsívveis da mesma, tanto para oambiente como para a humanidade. Quando o indivívduo fnalmente faz essaanálise é que se dá conta da gravidade da situação atual, e isso vem como umabomba, um choque.

Mas, como pudemos nos meter nesta situação, chegar a este ponto? Afnal,de quem é a culpa por essa crise que ameaça a humanidade e a vida na Terra?Quando confrontados com essa pergunta, muitos se apressam em “atirar paracima”: “A culpa é dos banqueiros, magnatas donos de grandes corporaçõesmultinacionais, industriais do ramo petrolífero, automobilístico ou redes de fastfood; madeireiros, barões do agronegócio, políticos corruptos, etc.”, dizem.

Tudo bem, está certo. Mas agora, vamos pensar uma coisa: imagine umapessoa, um cidadão comum — pode ser seu vizinho, seu amigo ou irmão, seu

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

pai ou sua mãe, pode até ser você mesmo — que tem um emprego qualquer,numa fábrica, ou loja, um banco... pode ter seu próprio negócio, talvez umaofcina ou restaurante, ou talvez seja professor, ou funcionário público, etc. Ouseja, está envolvido na produção e venda de bens e serviços, seja direta ouindiretamente, ou de alguma forma dando suporte a essas atividades. Essa pessoaganha seu salário, compra coisas para sua casa, comida, roupas para si e suafamívlia... talvez tenha um carro que usa diariamente para ir trabalhar, fazercompras, viajar nas férias com a famívlia, etc. Essa pessoa junta dinheiro paracomprar sua casa própria, garantir a faculdade dos flhos, uma segurança para avelhice, etc. Claro que não há absolutamente nada de errado em nada disso,certo? Trata-se de uma pessoa perfeitamente normal e comum, que muitoprovavelmente ama sua famívlia e preocupa-se com o próximo, procura cumpriras leis, contribuir para a sociedade; que tem necessidades, expectativas, sonhos,etc. — uma pessoa como qualquer outra. Agora, e se eu te disser que sãojustamente todas essas atividades descritas acima (assim como todas as outrasnão citadas, mas que fazem parte do dia a dia de qualquer pessoa normal) queestão destruindo o planeta? Ora, cada vez que você usa um carro (ou mesmotransporte público!), está não apenas poluindo a atmosfera e contribuindo para oefeito estufa, mas também patrocinando toda a destruição ambiental causadapela indústria petrolívfera, infraestrutura viária, etc. Cada vez que compraalimentos, está patrocinando a agricultura industrial e toda a destruiçãoambiental associada. Toda vez que compra alguma coisa, está patrocinando apoluição industrial, a mineração, etc., e toda vez que põe o lixo para a coleta,está entupindo os lixões de materiais que levarão milhares ou milhões de anospara se decompor (claro que a reciclagem melhora bastante isso, mas quantos %do seu lixo é realmente reciclado?). Cada vez que acende uma lâmpada ou liga atelevisão, está patrocinando a destruição das forestas pelas usinas hidrelétricas,ou a liberação de gases do efeito estufa ou produção de lixo nuclear, dependendode onde esteja, e toda vez que dá a descarga no banheiro, está poluindo os riose/ou lençóis freáticos com seus dejetos, e por aív vai.

Podemos estar sempre todos limpinhos, cheirosos e arrumadinhos, emvizinhanças decentes e bonitas (se tivermos sorte), mas é necessário alertar parao fato que cada aspecto de nossa cômoda vida moderna envolve um imensoconsumo de recursos e geração de resívduos, que se traduz em degradaçãoambiental — ainda que longe de nossas vistas. Agora, multiplique isso poralguns bilhões de pessoas, e está explicada a imensa crise ambiental em queestamos metidos!

Ou seja, a natureza não está sendo destruívda apenas pelos ricos epoderosos. Claro que eles são grandes culpados, mas o fato é que a naturezatambém está sendo destruívda por cada homem e mulher, cada pessoa nestemundo que leva uma vida “normal”, nos moldes de nossa sociedade atual,inserida na civilização industrial de consumo. Porém, muitas pessoas não estãopreparadas para aceitar esse fato, inclusive muitos dos fervorosos ativistas de

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

ONGs ambientalistas, que adoram atacar os poderosos, e sentem-se virtuosospor fazê-lo. Isso é compreensívvel, pois é muito mais cômodo apontar para forçasmaiores do que você, coisas que você não pode mudar, do que arregaçar asmangas e mudar o que você pode mudar — a começar por você mesmo. Agora,como você pode criticar grandes indústrias, por exemplo, por seus estragosambientais, se você mesmo está o tempo todo consumindo e utilizando seusprodutos? Não é muita hipocrisia?

É claro que a sociedade deve sempre fazer pressão para que as elites —empresas, governos, grupos e indivívduos poderosos — adotem boas práticasambientais e sociais. Porém, sem uma profunda mudança de hábitos das pessoas,isso jamais fará diferença alguma. Toda demanda tende a gerar uma oferta, e asgrandes indústrias só produzem tanta coisa desnecessária porque as pessoas asconsomem vorazmente — a despeito dos custos ambientais. Por isso, qualquermudança signifcativa só pode partir de baixo, da base da sociedade, ou seja, daspessoas. É inútil esperar que a mudança parta do topo, das elites.

Diante da consciência que com nossos estilos de vida estamos causando acrise planetária, é moralmente injustifcável que continuemos agindo comosempre fzemos. Para sairmos da nossa atual rota de colisão com o ambientenatural e evitarmos a destruição total da humanidade e da vida no planeta, o queé necessário é uma grande mudança de paradigma na nossa sociedade. Énecessário um alvorecer da consciência, que abandonemos essa culturapredominante, baseada no individualismo, focada no benefívcio próprio, nasaparências, no consumo e na acumulação, e adotemos uma cultura em que apreservação e recuperação ambiental sejam prioridade máxima. E cada pessoainteressada nessa mudança deve começar por si mesma.

Porém, romper com o paradigma atual no qual estamos imersos é umenorme desafo. Afnal, cada um de nós foi treinado e condicionado a este atualestilo de vida desde o nascimento; este é o único modo de vida que conhecemos,e tudo está pronto para você continuar como está. Sem dúvida, trata-se de umgrande desafo, mas ao mesmo tempo, não pode haver desafo que valha mais apena encarar. Afnal, é o futuro da humanidade e da vida no planeta Terra queestão em jogo!

Mas, afinal, o que exatamente podemos, devemos fazer? Por onde começar?Diante desse impasse, muitas pessoas veem-se paralisadas. Sem saber o quefazer, a maioria das pessoas prefere simplesmente fngir que não vê e continuarvivendo como de costume. Talvez se agarrem à esperança que tudo vai acabarbem, embora não saibam como — talvez se agarrando à fé religiosa, fé naciência, ou fé em governantes, enfm, alguém ou alguma força superior quevenha nos salvar.

Algumas passam a adotar pequenas atitudes sustentáveis, como apagar asluzes ao sair da sala, fechar a torneira enquanto escovam os dentes, ou separar olixo seco para reciclagem, e tentam cultivar a ilusão que estão fazendo sua parte

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

para salvar o planeta, quando obviamente apenas essas atitudes pontuais nãofarão diferença alguma.

Há também aqueles que, sentindo-se moralmente impedidos de continuarfazendo parte desta tragédia, passam a rejeitar o modo de vida convencional evalores da sociedade; porém, sem conseguirem visualizar uma alternativa viável,passam a viver às margens da sociedade, vivendo “na estrada”, ou em ocupações,praticando freeganismo, etc. — o que também é uma ilusão, pois permanecemtotalmente dependentes da sociedade que reprovam, não representando,portanto, nenhuma solução, nenhum caminho para frente.

Ação positiva para a mudança

Felizmente, algumas pessoas abraçaram esse desafo e puseram-se a pensarde forma racional e positiva, buscando soluções práticas, concretas, quepudessem ser aplicadas por qualquer pessoa, em qualquer lugar, desde o nívvelindividual até o coletivo e em qualquer escala, para que tanto nós como o restodo mundo natural possamos prosperar na Terra. Assim nasceu a permacultura!

Mas afnall, o que é a PERMACULTURA?

A permacultura é um modo de organização consciente das atividadeshumanas, visando o suprimento das nossas necessidades ao mesmo tempo emque se preserva e restaura o meio ambiente e os ecossistemas.

Numa defnição mais ampla, pode-se dizer que ela é um conjunto de trêscoisas:

• Uma ciência multidisciplinar que engloba um conjunto de técnicas,habilidades e conhecimentos aplicados para projetar sistemas produtivos(agrívcolas, de energia, água e outros), habitações, assentamentos humanos,estruturas sociais, etc. de forma que sejam verdadeiramente sustentáveis,baseando-se na observação ativa e aplicação de princívpios da natureza e usocriterioso dos recursos naturais. Agricultura orgânica, agroecologia, designambiental e ecológico, bioarquitetura, saneamento ecológico, energiasrenováveis, sistemas de água de chuva, economia solidária, etc. são elementoscentrais da permacultura.

• Um estilo de vida simples, natural e sustentável, pautado por uma flosofade máximo respeito à natureza e todas as suas criaturas. O estilo de vida dapermacultura é também caracterizado por um foco na cooperação (tanto entre aspessoas como em relação à natureza), e não na competição.

• Um movimento global de pessoas que compartilham dessas ideias, valorese visão, e buscam esse estilo de vida, aprendendo, aplicando e transmitindo os

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conhecimentos, habilidades e técnicas da permacultura, sendo elas mesmas amudança que querem ver no mundo e inspirando outros a se unirem naconstrução de uma sociedade sustentável. Acreditamos que, se abraçada por umnúmero sufciente de pessoas, a permacultura tem o potencial de reverter oprocesso de colisão de nossa civilização com o meio ambiente natural.

A permacultura é abraçada por aqueles que entendem que as coisas simplese naturais são aquelas que preenchem a essência da existência humana —pessoas que sabem dar valor à beleza e o perfume das fores, ao canto dospássaros; que sabem apreciar um céu estrelado ou um nascer do sol, que amam ocontato com a terra e o cheiro dos animais; que gostam de trabalhar, viver ecompartilhar com outras pessoas. A permacultura é um caminho natural paraaqueles que já perceberam que a competição humana exacerbada, bem como aganância por riquezas materiais, bens de consumo e status social, tãocaracterívsticos de nossa triste era, representam um grave equívvoco, sendo de fatovenenos para a alma e fontes permanentes de insatisfação, vazio existencial, ouseja, infelicidade, além de destruívrem o que é realmente belo: a natureza.

Dois enganos comuns das pessoas ao entrar em contato pela primeira vezcom as ideias da permacultura são achar que ela representa uma “volta aopassado”, ou algum tipo de autossacrifívcio.

Não se trata de autossacrifívcio, muito pelo contrário, já que entendemosque um estilo de vida simples, intimamente conectado à natureza e maisautossufciente é muito mais prazeroso, saudável, feliz e repleto de sentido que oestilo de vida totalmente artifcializado, alienado e dependente atualmenteprevalente. É verdade, porém, que se trata de um caminho repleto de desafos,que para ser trilhado requer que saiamos da zona de conforto, o que exige umadose considerável de coragem.

Tampouco representa uma volta ao passado, pois a busca consciente eintencional por um estilo de vida sustentável é na verdade algo incomum, talvezinédito na história humana. É importante, aliás, ter a clareza que a vida nopassado era muito mais dura! Muitas pessoas têm uma visão idealizada,romantizada do passado, e isso é um problema. Na verdade, a precariedade, afome, a doença e a morte estavam sempre ali, a expectativa de vida era muitomais baixa que hoje, e a mortalidade infantil, altívssima, para citar algunsexemplos. Embora tenham sido criados novos problemas (como a servidãocorporativa moderna, isolamento e falta de sentido na vida, etc.), no geral é claroque a modernidade facilitou e melhorou a qualidade de vida do homemtremendamente, e de inúmeras maneiras. O problema é, justamente, queseguindo o curso em que estamos, todos esses avanços serão perdidos, e da piorforma possívvel. Sendo assim, a proposta da permacultura é, justamente, manter eavançar as conquistas na qualidade de vida humana, aliado a uma reversão dopapel da humanidade em relação à natureza — de destruidor para preservador eregenerador do meio ambiente, dos recursos naturais e ecossistemas.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

A permacultura representa, sim, uma volta em alguns aspectos, na medidaem que se busca uma vida mais simples e em contato com a natureza, etc., o quepode ser visto como um resgate da essência humana. Agora, muita gente, quandopensa no futuro, pensa logo em um mundo de altívssima tecnologia e totalurbanização, e artifcialização do ambiente; talvez colônias espaciais, etc., comofrequentemente visto em flmes de fcção cientívfca. Porém, isso mostra a falta devisão dessas pessoas, os otimistas tecnológicos que ainda acreditam na falácia docrescimento infnito, que falham em perceber que, embora esses cenários sejamteoricamente possívveis, eles esbarram na iminente exaustão dos recursosnecessários a esses avanços; ou seja, que o colapso ambiental e civilizacionalacontecerá muito antes que esses cenários possam se tornar realidade.

Portanto, a permacultura signifca a libertação para as pessoas que aabraçam e a possívvel salvação para a vida no planeta Terra, representando,portanto, não uma volta ao passado, mas sim um salto para o futuro — averdadeira evolução que a humanidade tanto necessita.

Uma das coisas mais legais sobre a permacultura é que ela é positiva — elamostra o que você pode fazer, apresenta soluções, caminhos concretos. Issocontrasta com o ambientalismo convencional, que se ocupa primariamente dedizer o que você não pode fazer.

Histórico da permacultura

A origem da permacultura não pode ser dissociada do movimentoambientalista no século XX.

Até a primeira metade do século XX, praticamente não existia qualquerconsciência quanto ao valor intrívnseco da natureza. O mundo selvagem era vistode forma negativa, como uma coisa bestial — algo a ser dominado, explorado,ou mesmo combatido pelo homem.

Isso começou a mudar ao longo do século XX, e especialmente algumtempo após a Segunda Guerra Mundial, quando problemas relativos à destruiçãoambiental e poluição tornaram-se óbvios principalmente em centros urbanos depaívses economicamente desenvolvidos. Em 1962, houve a publicação do livro“Primavera Silenciosa” de Rachel Carson (e, antes dele, o menos conhecido masigualmente importante “Nosso Ambiente Sintético”, de Murray Bookchin), oque deu grande impulso à consciência ambiental, com forte adesão pelomovimento de contracultura que marcou aquela década.

Em 1970, organizou-se o primeiro “Dia da Terra”, nos Estados Unidos, emque 20 milhões de pessoas participaram de manifestações, protestando contraderramamentos de petróleos, usinas nucleares, poluição de rios por esgotos,pesticidas agrívcolas, etc., evento que passou a acontecer anualmente, crescendoano a ano, tornando-se um evento mundial.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

O ambientalismo havia chegado, numa forma que podemos chamar deambientalismo “clássico” ou de oposição, pois as pessoas se manifestavam contracoisas que não gostavam no mundo. Ou seja, todos sabiam o que eles nãoqueriam, mas havia uma carência de propostas de alternativas concretas, desoluções. Isso iria mudar com a permacultura.

A permacultura nasceu da colaboração acadêmica entre Bill Mollison e seuentão aluno David Holmgren no curso de Design Ambiental da Faculdade deEducação Avançada da Tasmânia, trabalhando em um projeto de pesquisa queconsistia do desenvolvimento de sistemas agrívcolas sustentáveis, em oposição aosmétodos destrutivos da agricultura convencional cujos efeitos devastadores jáeram claramente perceptívveis na Tasmânia àquela época.

Mollison havia observado que, na agricultura, o homem estava emconstante guerra contra a natureza — uma guerra na qual não poderia havervencedores. Porém, todos os nossos alimentos, sejam animais, vegetais ououtros, são provenientes da natureza, onde têm existido e produzido, de formasustentável e sem interferência humana, por milhões de anos. Pensando nisso,pôs-se então, juntamente com Holmgren, a elaborar uma metodologia de designde sistemas produtivos baseados nos mesmos princívpios existentes na natureza,com a intenção de criar sistemas altamente estáveis e automantenedores, quebenefciariam tanto ao homem (menos necessidade de trabalho) como a natureza(menos interferência no ambiente, preservação de recursos como solo, água,energia, biodiversidade, biomassa), sendo portanto altamente sustentáveis.

O termo permacultura é uma palavra-valise resultado da fusão deagricultura e permanente. Inicialmente, o signifcado da palavra era exatamenteesse, pois os fundadores da permacultura estavam tratando de criar sistemasagrívcolas sustentáveis, permanentes. Porém, mais tarde a palavra passou a ter seusignifcado expandido para cultura permanente, uma vez que se observou quesuas éticas e princívpios eram aplicáveis não apenas à agricultura, mas a todos osramos da atividade humana, desde o projeto de habitações sustentáveis atéassentamentos humanos e cidades inteiras; desde os hábitos diários atédirecionamentos de vida, polívticas públicas e mesmo dos rumos da sociedade.

Em 1978, foi publicado o primeiro livro sobre permacultura, de autoria deHolmgren e Mollison, intitulado “Permaculture One” (“Permacultura Um”).

Logo após criarem o conceito de permacultura, Mollison passou a sededicar à sua divulgação, escrevendo artigos, dando palestras e entrevistas arádio e jornais, inicialmente na Austrália, e mais tarde em outros paívses. Suasideias, potencializadas por seu forte carisma, tiveram grande impacto, gerandouma verdadeira avalanche de interesse. Nessa época, Mollison desenvolveu seusCursos de Design em Permacultura, conhecidos pela sigla “PDC” (“PermacultureDesign Certificate”, em inglês). A visão de Mollison era “formar um verdadeiroexército de permacultores para saívrem pelo mundo ensinando as ideias deprodução sustentável de alimentos”. Mollison propunha que, ao invés de fcarem

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

esperando que governos e outras instituições façam alguma coisa, as pessoaspreocupadas com o futuro do planeta deveriam tomar a causa em suas mãos —armar-se de conhecimento e fazer elas mesmas o que era necessário.

Enquanto Mollison assumiu o papel de principal disseminador dapermacultura nos anos iniciais, Holmgren permaneceu praticamente anônimopor quase duas décadas, testando e aprimorando os princívpios da permaculturaem sua propriedade no interior da Austrália.

Em 1995, Holmgren publicou seu livro “Melliodora: ten years ofsustainable living” (“Melliodora: dez anos de viver sustentável”). Desde então,emergiu à cena mundial, escrevendo importantes livros e promovendo palestras ecursos de permacultura ao redor do mundo, destacando-se como um dosprincipais intelectuais da atualidade, no ramo da sustentabilidade.

Desde seu nascimento, a permacultura se transformou em um movimentoglobal que não pára de crescer.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

7ÉTICAS E PRINCÍPIOSDA PERMACULTURA

Nossa insustentabilidade resulta do fato de termos sistemas antinaturais querequerem altas quantidades de trabalho e energia para estabelecer e manter, eque utilizam recursos de forma irracional, de um lado consumindo-osexcessivamente e levando à sua depleção, e do outro gerando desperdívcios naforma de resívduos e poluição. Para alcançarmos a sustentabilidade, devemosreverter cada um desses erros; ou seja, precisamos estabelecer sistemas naturais,automantenedores, com baixa necessidade energética, aproveitamento máximode recursos e minimização de desperdívcios, de forma que possamos suprirnossas necessidades não apenas a curto prazo, mas sim indefnidamente.

Isso é muito fácil de se dizer. Porém, como vimos na Parte I, nosso estilode vida e a própria estrutura de nossa civilização são resultado de um longoprocesso histórico, e nossos modos de pensar e agir, tanto no nívvel individualcomo coletivo, são baseados em conceitos, conscientes e subconscientes,extremamente arraigados. Ou seja, nossa civilização é inteiramente alicerçadaem um paradigma de insustentabilidade. Assim sendo, ações e mudançaspontuais nunca serão capazes de reverter o problema da insustentabilidadehumana, ou evitar suas consequências. Para isso é necessária uma ampla eprofunda mudança de paradigma.

Porém, é claro que não se pode simplesmente jogar fora tudo o que somose recomeçar do zero — isso seria impossívvel. O que precisamos é um conjunto

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

de conceitos-chave para nos guiar nessa transição de paradigma. Pensando nissoforam criados os princívpios da permacultura.

Os princívpios da permacultura se dividem em duas categorias: princívpiosflosófcos, normalmente referidos como éticas da permacultura, e princívpiospráticos, muitas vezes referidos como princípios de design ou, simplesmente,princípios.

Éticas da permacultura

A sociedade atual é baseada no individualismo e competição — umasociedade em que a realização pessoal é confundida com acúmulo de riquezasmateriais e status (onde status implica não apenas “estar bem”, mas tambémestar “melhor que os outros”). Assim, pode-se dizer que nossa sociedade éfocada no ego, e não no coletivo, e praticamente não leva em consideração apreservação da natureza — não reconhece devidamente o valor intrívnseco danatureza e da vida, considerando-a secundária aos interesses individualistas jácitados. Esse egocentrismo também se refete na forma como encaramos escalasde tempo, ou seja, o indivívduo quer benefívcio para si, e agora! Qualquerconsequência dos seus atos que escape ao perívodo de vida do próprio indivívduo ésimplesmente desconsiderada; em outras palavras, ninguém deixa de fazer nadaem benefívcio próprio porque isso poderá prejudicar as próximas gerações. Essaconstituição ideológica defeituosa é a base dos maiores problemas atuais dasociedade, e dentre eles o mais grave, a insustentabilidade. Portanto, naconstrução de um mundo melhor, é fundamental iniciar por uma revisão dessabase ideológica.

A flosofa da permacultura parte de uma visão holívstica do ser humano,como parte integral e inseparável tanto da humanidade como da natureza emgeral. Dissolve-se, assim, o antropocentrismo e o egocentrismo tãocaracterívsticos de nossa civilização e sociedade atual: a pessoa humana só passaa ter sentido quando analisada em seu contexto social e ambiental.

As bases flosófcas da permacultura são sumarizadas nas três éticas:

• Cuidar da Terra• Cuidar das pessoas• Partilha justa dos recursos

O cuidar da Terra signifca reconhecer o valor intrívnseco da natureza emseu todo e todas as suas partes: o ar, a água, o solo, e todas as criaturas com asquais compartilhamos o planeta.

A Terra contém em suas variadas paisagens uma imensa diversidade de

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

formas de vida (a maioria delas ainda desconhecidas pelo homem), desdemirívades de seres microscópicos até os grandes e óbvios animais e plantas. Abeleza e exuberância de nosso planeta contrasta enormemente com a esterilidadee aridez ora gélida, ora tórrida de todos os corpos celestes até agora conhecidospela ciência. A vida, sob todos os aspectos, é de fato o fenômeno maisextraordinário, maravilhoso e intrigante que pode existir — um verdadeiromilagre. Cada organismo vivo é o resultado de bilhões de anos de evolução,sendo infnitamente complexo e encerrando infndáveis segredos; cada indivívduoou espécie existe não em isolamento, mas totalmente integrado na malha davida, no delicado equilívbrio dos ecossistemas. Em conjunto, os seres vivosmoldaram as paisagens de nosso planeta — até a própria atmosfera terrestre foidefnida de forma dinâmica e interativa pela atividade dos seres vivos,permitindo que a vida atingisse sua expressão máxima.

É necessário lembrar, porém, que no mundo natural até mesmo umasimples pedra é merecedora de reverência, quando consideramos que se trata deum ser que, embora inerte, existe há milhões ou mesmo bilhões de anos. Todasas coisas que existem no mundo natural são, portanto, dotadas de incalculávelvalor intrívnseco e merecedoras do mais elevado respeito, pela sua própriaexistência, por sua natureza, antiguidade e complexidade, e pelas funções quedesempenham, ainda que nós não as compreendamos, e mesmo que não nospareçam úteis às nossas necessidades.

Apesar da aparente vastidão e antiguidade de nosso planeta e da vida quenele existe, é preciso lembrar que a Terra representa um espaço contido, fnito, eque embora a vida tenha existido aqui por bilhões de anos, ela ainda assim éfrágil e dependente de um delicado equilívbrio.

A ética do cuidar da Terra nos lembra que devemos nos abster de ações quedanifquem, destruam ou prejudiquem o meio ambiente natural, e trabalharativamente em sua preservação e recuperação. Devemos assumir o compromissode preservar o que resta dos ecossistemas naturais a qualquer custo.

O cuidar das pessoas nos lembra que uma sociedade, para ser sustentável,tem que ser antes de tudo justa para com todos, tanto a natureza como os sereshumanos. Esta ética contrapõe-se ao egocentrismo, individualismo ecompetitividade exacerbados da nossa sociedade atual, que resultam em umabrutalização e insensibilização em relação às necessidades e a essência da pessoahumana.

A ética do cuidado das pessoas tem também a vital função de combater amisantropia — sentimento de distanciamento, aversão e desprezo pelahumanidade, comum em pessoas sensívveis às causas ambientais. Napermacultura, visa-se não apenas um mundo sustentável do ponto de vistaambiental, mas um mundo melhor, mais saudável e feliz em todos os sentidos.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

Portanto, a flosofa da permacultura é basicamente uma flosofa de amor. Paraque a permacultura atinja seus objetivos de criar uma cultura permanente queproteja os ecossistemas e favoreça o futuro do planeta, é necessário que ela seespalhe pelo mundo; para isso, é necessário despertar, mobilizar e inspirar omaior número de pessoas a fazerem o bem pelo planeta, o que jamais seconseguirá através do ódio, e sim através da empatia e do amor, disseminandoinformações, ajudando às pessoas e inspirando através do exemplo, formandoassim uma corrente para o bem da vida e do planeta.

Esta ética signifca encarar toda a humanidade como uma irmandade, ecomo parte indissolúvel da natureza, já que estamos todos juntos nesta nossanave, nossa mãe Terra.

A partilha justa signifca reconhecer que vivemos em um planeta fnito,de recursos fnitos, aos quais todos os seres tem igual direito. Ao consumir maisrecursos que os necessários para uma vida digna, o indivívduo está de fatousurpando a parte que cabe aos demais — essa desigualdade representandoinjustiça, e causando um prejuívzo ao conjunto da sociedade e da vida na Terra.Esta ética signifca, portanto, estabelecer voluntariamente limites ao consumodos recursos, dentro de um ideal de vida frugal e partilha de excedentes, deforma alinhada com as duas éticas anteriores.

As éticas da permacultura nos lembram que, em tudo o que fazemos,devemos nos preocupar: como isso afetará as outras pessoas? E como afetará omeio ambiente? Não apenas no curto prazo e no seu entorno imediato, mas nolongo prazo e globalmente. Ou seja, devemos procurar praticar apenas ações quebenefciem não somente a nós, mas que também benefciem ou pelo menos nãoprejudiquem as demais pessoas, tanto do presente como do futuro, e a natureza esuas criaturas.

Princípios da permacultura

Os princívpios de design permacultural são elaborados a partir de uma dosemaciça de lógica e bom senso, conhecimentos cientívfcos e observação atenta dofuncionamento de sistemas na natureza, já que a natureza em si é o arquétipo dasustentabilidade. Eles nos ajudam a planejar, construir e executar estruturas(casas e outros edifívcios, sistemas de água e saneamento), sistemas produtivos(plantações, criações) e paisagens inteiras, de forma que sejam altamenteprodutivos, harmoniosos, resilientes e sustentáveis, através da utilização derecursos da maneira mais efciente possívvel, extraindo o máximo de benefívciofuncional com o mívnimo de desperdívcio ou resívduos, através da perfeitaintegração entre seus componentes.

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Porém, os princívpios não são úteis apenas no projeto de estruturas esistemas, mas também em redesenhar nosso próprio estilo de vida: aplicados naorientação de hábitos do dia a dia e escolhas de vida, os princívpios dapermacultura levam a um estilo de vida altamente sustentável, tanto do ponto devista ambiental como social.

Vale lembrar que, embora tenham caráter de aplicação universal, osprincívpios da permacultura não são fxos, estanques; pelo contrário, estão emconstante evolução, e a forma como são enumerados e descritos varia de acordocom o autor ou permacultor. Isso em nada tira seu mérito, muito pelo contrário,pois deixa claro que não são dogmas (quem gosta de dogmas, que procure umareligião!), e sim conceitos originados de observação cuidadosa, raciocívnio lógicoe experimentação prática, e que estão aív para serem aplicados, testados,adaptados e aperfeiçoados.

São Princípios da Permacultura:

1. Observe e Imite a Natureza A natureza é o padrão universal de perfeição.

2. Valorize a diversidade A diversidade nos proporciona sistemas ricos e resilientes.

3. Promova a integraçãoA integração resulta em sistemas altamente produtivos e automantenedores.

4. Capte, armazene e utilize os recursos disponíveisEntenda os fuxos de matéria e energia, e canalize-os de forma produtiva.

5. Não produza lixo, não polua Abrace o ideal do lixo zero.

6. Princípio da efciência energética A disposição inteligente de elementos poupa tempo, energia e materiais.

7. Dê preferência às espécies nativas, valorize a biodiversidade local Contribua para a restauração do ecossistema nativo de sua própria área.

8. Princípio da máxima biomassa e biodiversidade Uma área deve conter o máximo de biomassa e biodiversidade que ela pode

naturalmente manter.9. Use soluções pequenas e lentas

Acredite no poder transformador de atitudes pequenas e simples.10. Projete dos padrões aos detalhes

O uso de padrões possibilita um alto grau de harmonia, funcionalidade eeficiência energética.

11. Prefra recursos renováveis e utilize-os de forma sustentável Utilize recursos de forma econômica e eficiente, e promova sua regeneração.

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12. Versatilidade e redundância Cada elemento performa múltiplas funções, e cada função importante é

suportada por diversos elementos.13. Use a tecnologia de forma apropriada

Evite a dependência de tecnologias insustentáveis.14. Obtenha um rendimento

Proteger o meio ambiente sem esquecer da provisão das necessidadeshumanas.

15. Pense globalmente, aja localmente (faça sua parte) Faça da permacultura seu estilo de vida, e mude seu papel na história do

mundo.16. Cooperação ao invés de competição

Os interesses máximos da permacultura transcendem os interessesindividuais.

17. Autossufciência e empoderamento local Trabalhar para si e para os seus significa empoderamento, independência,

liberdade e realização.18. Reavalie-se constantemente

… para adaptação e aperfeiçoamento contínuo.

1. Observe e imite a natureza

A natureza é um laboratório gigantesco que de forma aleatória tem testadode tudo por bilhões de anos; tudo o que não deu certo foi sendo eliminado, e só oque deu certo foi mantido, resultando na imensa diversidade e complexidade (ebeleza!) que se tem hoje. Sendo assim, pode-se dizer que a natureza é umaespécie de padrão universal de perfeição. A maioria dos erros da humanidade,que acumulados culminaram na atual crise ambiental que ameaça a vida naTerra, são resultado de uma separação entre o homem e a natureza, noestabelecimento de hábitos, sistemas e metodologias antinaturais. A reversãodesse quadro só pode ser alcançada através de um retorno ao que é natural, epara isso temos que aprender a observar a natureza e aprender com ela.

Uma velha máxima da permacultura diz: “Observação prolongada ecuidadosa, ao invés de ação prolongada e descuidada.” A observação cuidadosa einteração atenta com a natureza serve de fonte infndável de conhecimento einspiração. Mesmo que não consigamos compreender completamente como ascoisas funcionam na natureza, muitas vezes através da observação conseguimosidentifcar padrões de formas, posicionamentos e interações entre elementos efenômenos naturais; ao imitar esses padrões em nossos projetos, muitas vezes

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atingimos um elevado grau de funcionalidade, harmonia e efciência.

Observe e imite a natureza é o princívpio máximo da permacultura, e muitosdos outros princívpios derivam diretamente dele.

2. Valorize a diversidade

Diversidade é chave para a resiliência. Paisagens naturais contêm inúmerasformas de vida, cada uma desempenhando múltiplas funções na manutenção dosecossistemas. Porém, o homem civilizado, com sua obsessão por dominar econtrolar a natureza, desenvolveu uma forte tendência reducionista: quantomenos elementos houver, mais fácil de entender e controlar. Assim, decide ospoucos elementos que quer que fquem, e busca eliminar todos os outros. Dessaforma, o homem está sempre em pé de guerra com a natureza, sempre lutandocontra a vida, com graves consequências para a sustentabilidade.

Ao valorizar a diversidade, estamos de fato imitando a natureza (oPrincívpio n.o 1). A diversidade traz vantagens óbvias. Por exemplo, no caso daagricultura, ao se apostar em uma única espécie cria-se uma situação de grandevulnerabilidade: um ano ruim, com adversidades climáticas, ou o surgimento deuma praga ou doença, etc. podem facilmente dizimar uma plantação, se for umamonocultura. Por outro lado, em um sistema diversifcado, uma policultura, tem-se praticamente a garantia de alguma produção, pois o clima ruim para umaespécie é aceitável para outra, e uma praga que afeta uma espécie de planta éinofensiva para as demais, etc. Além disso, quanto maior a diversidade naprodução, maior será o seu grau de autossufciência.

As monoculturas — que são o oposto da diversidade — são uma dasprincipais causas da insustentabilidade da agricultura industrial. Ao estabeleceruma monocultura para a produção de alimentos, o homem está, na prática,tentando estabelecer um “ecossistema de uma espécie só” — coisa que nãoexiste na natureza! Parece esquecer-se que aquele alimento que se quer produziré uma espécie de ser vivo, e que nenhuma espécie existe isolada das outras, pelocontrário: todas fazem parte e dependem de um ecossistema; precisam dosmicrorganismos do solo que mantém a fertilidade, de insetos e outrosorganismos para a polinização, aeração e descompactação da terra, controle depredadores, etc. Ao optar por monoculturas, o agricultor torna-seautomaticamente dependente de fertilizantes, maquinários e pesticidas, queacabam com a fertilidade, arrasam os ecossistemas e produzem alimentoscontaminados. Além disso, passam a depender de recursos não renováveis (e.g.combustívveis fósseis, fertilizantes minerais e quívmicos) que logo acabarão,criando grave situação de insegurança alimentar a longo prazo.

Na permacultura, procuramos sempre estabelecer sistemas altamentediversifcados, utilizando grande número de espécies e valorizando variedades

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tradicionais e crioulas, espécies nativas e plantas alimentívcias não convencionais.Conseguimos assim estabelecer sistemas ricos e resilientes, produzir grandequantidade de alimentos com riqueza de sabores e alto valor nutritivo, prestandoainda importantívssimos serviços ambientais, preservando essas espécies e abiodiversidade.

3. Promova a integração

Tudo na natureza ocorre de forma integrada — são inúmeros fatores,inúmeras formas de matéria e energia, inúmeras formas de vida, todasinterligadas e dependentes umas das outras.

Diversidade e integração são duas faces da mesma moeda: o equilívbrio danatureza depende da manutenção da diversidade de ambientes, organismos eecossistemas, e de sua integração. Os tipos de conexões ou relacionamentosentre os diferentes elementos de um ecossistema variam enormemente, indo dacooperação (simbiose, mutualismo) até a competição e predação, e daharmoniosa integração entre todos esses fatores resulta a autorregulação eestabilidade dos sistemas naturais. A autorregulação atua em todos os nívveis: noclima, nos ecossistemas, nas populações das diversas espécies, e dentro de cadaorganismo, onde é uma caracterívstica crucial do controle fsiológico(homeostasia). Ecossistemas naturais funcionam por si mesmos, com umaprodução altívssima e incrivelmente diversifcada, por milhões de anos, semqualquer necessidade de interferência externa na forma de trabalho humano ouimportação artifcial de recursos. Essa imensa estabilidade e produtividade éresultado da perfeita integração dos múltiplos elementos, fatores bióticos eabióticos que compõem os ecossistemas e a biosfera.

A torpe óptica reducionista do homem civilizado destrói as bases dessaestabilidade e produtividade ao reduzir drasticamente o número de elementos edispô-los de forma arbitrária e não integrada, na moda totalitária de suas fleiras,canteiros e piquetes, gerando com isso sistemas pobres, inefcientes, frágeis,dependentes de insumos externos e intensas doses de trabalho, enfm, totalmenteinsustentáveis.

Ao projetarmos nossos sistemas permaculturais, devemos ter sempre emmente a busca pela perfeita integração dos elementos, em todos os nívveis, ouseja, entre os elementos de cada sistema, e a integração entre sistemas, conformeocorre na natureza.

A correta integração dos elementos em sistemas produtivos possibilita pelomenos três efeitos vantajosos: concentração, interações positivas eautorregulação.

• Concentração: esse efeito decorre do fato que plantas e animais de espéciesdiferentes e estágios de desenvolvimento diferentes têm necessidades diferentes

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de nutrientes, exposição solar, umidade, temperatura, etc., podendo portantoocupar nichos diferentes dentro do mesmo espaço, permitindo portanto ummelhor aproveitamento do espaço e uma produção total por área maior e maisdiversifcada.

• Interações positivas: a integração perfeita entre os elementos cria umaproximidade funcional. Por exemplo, em uma foresta, o resívduo de uma espécieé imediatamente utilizado como recurso pela outra, e tem-se uma altareciclagem de matéria e energia; as folhas caívdas de uma árvore servem decobertura de solo, benefciando as demais; sombreamento parcial de uma árvorefavorece ervas que não toleram sol pleno; leguminosas fxam nitrogênio do ar nosolo benefciando outras plantas; certas plantas atuam repelindo pragas, ouservindo de isca para as mesmas, assim poupando outras plantas, ou mesmoatraindo insetos que são predadores de pragas, etc.; frutas caívdas de uma árvoreservem de alimento a animais, que por sua vez adubam a terra com seus dejetos,e ainda ajudam na disseminação das sementes, etc. A competição (por espaço,nutrientes, luz) continua existindo, mas é mais que compensada pelos benefívciosmútuos, de forma que o sistema é benefciado no seu conjunto, e a produção éaumentada.

• Autorregulação: diversidade e integração geram sistemas estáveis eautomantenedores, assim como ocorre na natureza, reduzindo a necessidade demanutenção e insumos externos. Isso signifca economia de trabalho, dinheiro etempo, conferindo autonomia e independência, além da preservação do meioambiente no local (na verdade uma melhora progressiva do ambiente) e fora dele(já que o uso contívnuo de insumos externos como adubos causa sua depleção edestruição ambiental em seu local de origem, como desmatamento e poluição,custo ambiental do transporte, etc.).

As interações positivas são a base para o conceito das plantascompanheiras, ou seja, plantas que, quando postas em proximidade, ajudam-semutuamente por terem interações predominantemente benéfcas. Pelo contrário,plantas não companheiras são aquelas que competem entre si, não favorecendoa proximidade, por exemplo por necessitarem dos mesmos recursos, como sol,ou terem as mesmas necessidades nutricionais, ou por liberarem substânciascom efeito inibidor (efeito alelopático), etc. Por isso, devemos sempre prestarmuita atenção a essas interações e aprender a posicionar as diferentes espéciesde forma inteligente, explorando ao máximo as interações positivas para maiorprodutividade.

O princívpio da integração complementa o princívpio da diversidade, pois denada adianta ter um grande número de elementos em um sistema se elesestiverem sempre em pé de guerra uns com os outros. Por isso, pode-se dizerque mais importante que a quantidade de elementos presentes em um sistema é aquantidade e qualidade de relações benéfcas entre esses elementos, contribuindo

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para a produtividade e autorregulação. Por exemplo, uma agroforesta habilidosamente estabelecida, com rica

diversidade em perfeita integração, desempenha todas as funções ambientais deuma foresta natural (proteção do solo, da água, da biodiversidade), ao mesmotempo em que supre as necessidades do homem, como alimentos, fbras,madeiras, pigmentos e remédios, entre outras, de forma natural e estável. Outrossistemas produtivos, como lagoas artifciais, também devem ser projetadas paraserem automantenedoras, estabelecendo-se nelas um ecossistema aquáticocompleto e saudável, com plantas, animais invertebrados, rãs, peixes, patos, etc.Um ecossistema assim mantém a água sempre razoavelmente limpa, livre deinsetos indesejáveis como mosquitos, gera uma produção diversifcada dealimentos, fomenta a fauna local e migratória e cumpre ainda várias outrasfunções, praticamente sem necessidade de interferência humana. Diferentessistemas produtivos (plantações, criações) e não produtivos (construções,estradas), bióticos (animais, plantas, microrganismos) e abióticos (sol, vento,água, topografa), também devem ser integrados em nossos projetos, pois issotraz como resultado alta efciência energética e produtividade.

4. Captel, armazene e utilize os recursos disponíveis

Este princívpio signifca que devemos observar e entender os fuxos deenergia e matéria ao nosso redor e intervir de forma racional e estratégica paracanalizá-los de forma produtiva — enxergar recursos, muitas vezes de formanão convencional, e utilizá-los.

Captar a água da chuva é tão óbvio, mas ao mesmo tempo tãorevolucionário, porque ninguém está fazendo! Esse é um recurso fabuloso,tanto em situações urbanas como rurais, podendo facilmente, na maioria doscasos, suprir totalmente nossas necessidades de água, de forma natural.Infelizmente, a maioria das pessoas ignoram isso — desperdiçam toda a águada chuva, e suprem suas necessidades de formas artifciais, como águasmunicipais, poços e bombeamento de rios, etc., com altos custos energéticos elevando a inúmeros problemas ambientais.

Energia solar pode ser usada para aquecimento de água, através desistemas simples e de baixa tecnologia que podem ser feitos por você mesmo;aquecimento e iluminação de ambientes pode ser feito através do designpassivo para energia solar (dimensionamento e posicionamento adequado dejanelas, estufa acoplada à casa, etc.), além, claro de painéis fotovoltaicos.Energia eólica pode ser vantajosa em muitas situações, e energia hidráulicatambém tem inúmeras aplicações em situações rurais, como bombeamento deágua por rodas d'água ou carneiros hidráulicos, moagem de grãos por moinhosd'água, e às vezes geração de energia elétrica. Energia geotérmica de baixo graupode ser usada para aquecimento de ambientes em locais frios, e refrigeração

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em locais quentes, etc. A forma mais simples, rudimentar porém bastante funcional de captar a

energia solar é na forma de biomassa, por exemplo na forma de lenha para usocomo combustívvel. Também os nutrientes do solo devem ser captados eutilizados, e reciclados, por exemplo através da compostagem, e uso dobanheiro seco.

Muitas vezes, temos a oportunidade de captar recursos valiosos de fora denossa propriedade, que de outro modo seriam desperdiçados. É o caso de restosde podas e aparas de grama, serragem de madeireiras (muito úteis para usocomo cobertura de solo ou na compostagem), cinzas de olarias (úteis nafertilização e neutralização da acidez do solo), materiais de demolição quepodem ser muito úteis em construções, etc.

Outra aplicação deste princívpio é o benefciamento de alimentos para suaconservação. Frutas geralmente são produzidas em grande quantidade por umcurso perívodo, em uma estação bem defnida, e na maioria das vezes o queocorre é um grande desperdívcio nessa época, sendo que no restante do anosimplesmente não se tem a fruta. Felizmente, há todo um conjunto de técnicasque podem ser usadas para conservar essa produção, permitindo seuarmazenamento por todo o ano, evitando o desperdívcio e possibilitando ousufruto máximo desses produtos, além de sua comercialização — porexemplo, desidratação (uvas e bananas passas, etc., podendo ser usadossecadores solares), compotas, polpas congeladas, doces, etc.

5. Não produza lixol, não polua

Não há lixo na natureza — o lixo é uma criação do homem. Na natureza,todas as formas de matéria e energia são permanentemente recicladas. Já ohomem moderno, com seu estilo de vida artifcializado, consome umaquantidade enorme de recursos e os utiliza de forma irresponsável, criandoresívduos que se acumulam na natureza, causando-lhe enormes danos. A maioriadas pessoas não é sensibilizada quanto ao problema do lixo devido ao confortoe comodidade do serviço de coleta urbana, que leva para longe o lixo todos osdias, impedindo as pessoas de terem contato prolongado com seu próprio lixo, esequer ter noção de quanto lixo elas realmente produzem. Agora, faça oseguinte experimento: tente acumular em sua casa todo o lixo que produz emum mês — um mês inteirinho sem colocar lixo para fora nenhuma vez, eentenderá do que eu estou falando! Aproveite, e faça uma visita ao lixão ouaterro sanitário de sua cidade, para ter uma noção melhor do que o lixorepresenta para a natureza.

Outra coisa que muita gente não pensa, mas o simples fato de usar umbanheiro convencional de descarga signifca que cada pessoa está lançandodiariamente seus excrementos, misturados com água, ao meio ambiente, seja

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em fossas sépticas que contaminam os lençóis freáticos, seja em rios, lagos emares, através dos canos de esgoto. Cursos d'água por todo o mundo estãopoluívdos por esgotos domésticos, e apesar disso a imensa maioria das pessoasnão se consideram culpadas dessa situação, embora sejam elas mesmas dando adescarga várias vezes ao dia. Isso mostra claramente como as pessoas têm umaenorme difculdade em assumir a responsabilidade por seus próprios atos.

Para citar um terceiro exemplo de mau uso dos recursos gerando poluição,podemos nos referir ao uso do automóvel como modo de transporte diário. Aspessoas enchem os tanques de seus carros com 50 litros de gasolina, e a únicapreocupação que têm nesse momento é o preço do combustívvel. Raramenterelacionam o problema da poluição do ar nas grandes cidades ou a mudançaclimática global ao seu próprio estilo de vida; porém, para cada tanque de 50litros de combustívvel utilizado, 60.000 litros de gases poluentes são lançados àatmosfera.

Pela primeira ética da permacultura (cuidar da Terra), temos a obrigaçãomoral de evitar produzir qualquer tipo de lixo ou poluição. O ideal do lixo zerodeveria ser abraçado por todas as pessoas conscientes do mundo! Isso pode servisto como utópico ou inviável no atual modelo da sociedade; afnal, estamostão acostumados a nossos estilos de vida desperdiçadores e poluentes, tãoacostumados a “jogar o lixo fora”, que a ideia do lixo zero parece atérevolucionária. Porém, o que temos que entender é que não há fora — o lixocontinua lá, em algum lugar; só foi levado para longe da nossa vista. Vivemosem um sistema fechado, o planeta Terra, que é nossa casa e do qual devemoscuidar. Se com nosso atual estilo de vida é impossívvel viver sem gerar lixo epoluição, então está claro que temos que mudar nosso estilo de vida. E nãoadianta fcar esperando que o governo, a prefeitura ou qualquer autoridadetome providências para resolver este problema — está na hora de assumirmos aresponsabilidade pelo lixo e degradação ambiental que geramos. Cabe a cadaindivívduo dar seus próprios passos rumo à direção certa, para um futurosustentável.

A velha regra dos “3 Rs” — reduzir, reutilizar, reciclar — tão conhecidapor todos, e ainda assim tão pouco praticada, continua sendo a melhor receitapara economizar energia, minimizar a exaustão dos recursos e reduzir aprodução de lixo.

Reduzir signifca evitar o consumismo, ou seja, não comprar ou consumiralgo que seja desnecessário, redundante, supérfuo; sempre que possívvelconsertar o que está quebrado, ao invés de comprar um novo. Signifca tambémevitar embalagens, por exemplo comprando alimentos a granel, ou pacotesgrandes, e evitando embalagens duplas, etc.

Reutilizar signifca evitar a cultura do descartável. Dar preferência autensívlios permanentes, reutilizáveis, ao invés dos descartáveis. Por exemplo,

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dar preferência a produtos em vasilhames retornáveis, utilizar sacolas decompras resistentes e duráveis, ou mesmo reutilizar as sacolinhas comuns desupermercado tantas vezes quanto possívvel, ao invés de jogá-las fora após umúnico uso, e pegar novas toda vez que fzer compras (mesmo as sacolaschamadas de ‘descartáveis’ podem ser reutilizadas dezenas de vezes!).

Por fm, tudo aquilo que não se pode evitar ou reutilizar, deve ser, sempreque possívvel, reciclado. A imensa maioria do lixo produzido diariamente nomundo poderia ser reciclado, embora apenas uma pequena fração efetivamenteo seja. O lixo doméstico consiste basicamente de papel, plástico, metais, vidro eresívduos orgânicos — tudo isso é reciclável. Além de evitar a geração de lixo, areciclagem economiza energia, pois reciclar materiais consome muito menosenergia que fabricar novos a partir de matérias primas brutas. Vá além damaioria, faça um esforço para garantir que seu lixo seja efetivamente reciclado,separando-o corretamente, mantendo-o limpo e, se necessário, levando-odiretamente a um centro de reciclagem. Converse com as pessoas lá, veja o quevocê pode fazer para aumentar a efciência da reciclagem do seu próprio lixo.

Um conceito-chave que tem que ser compreendido é que o lixo na maioriadas vezes nada mais é que um recurso que não está sendo devidamenteaproveitado. Aqui, fca claro que este princívpio está intimamente ligado aoanterior (capte, armazene e utilize os recursos disponívveis).

“Transforme problemas em soluções, resíduos em recursos.”

Devemos procurar usar sempre que possívvel materiais naturais, de baixoimpacto e totalmente recicláveis; usá-los de forma efciente e buscarefetivamente a reciclagem total desses recursos. Devemos projetar nossossistemas de forma que o resívduo de um processo seja utilizado como matériaprima de outro, fazendo com que a matéria e energia sejam permanentementerecicladas. Ou seja, transformar problemas em soluções, resívduos em recursos.Ao se utilizar banheiro seco, além de poupar água ainda gera-se aduboorgânico, evitando o desperdívcio dos nutrientes contidos nos excrementos, quesão retornados de forma segura ao solo e efetivamente reciclados, não havendoa produção de esgotos ou qualquer tipo de poluição. Da mesma maneira, águascinzas (de pias, tanque e banho) devem ser reaproveitadas em sistemas deirrigação, evitando assim a geração de esgotos e economizando água, e aomesmo tempo obtendo uma produção vegetal, seja no jardim, pomar ou horta.Restos de poda e folhas caívdas devem ser utilizadas como cobertura de solo,sendo retornadas ao ciclo da vida; no entanto, ainda é comum as pessoasqueimarem esses materiais, desperdiçando essa matéria orgânica etransformando-a em poluição do ar, além do fato que essa prática é causafrequente de queimadas forestais e incêndios forestais.

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6. Princípio da efciência energética

Com a farta disponibilidade de energia barata na forma de combustívveisfósseis, nos acostumamos a “despejar petróleo” sobre todos os problemas queaparecem — o bom senso foi gradualmente sendo substituívdo por tecnologiassofsticadas, e as pessoas tornaram-se literalmente viciadas em energia.

Acontece que essa energia toda vem a um altívssimo custo ambiental:poluição, desmatamento, lixo atômico e aquecimento global, etc. Embora essesefeitos já sejam evidentes, a real gravidade dessa situação só fcará clara para amaioria das pessoas quando houver o colapso das fontes não renováveis deenergia e a intensifcação terminal da crise ambiental.

Para reduzirmos a pressão que exercemos sobre o meio ambiente, etambém para sobrevivermos ao fm do petróleo, é fundamental desenvolvermosum estilo de vida de baixo consumo energético, utilizando a energia de formaracional e evitando seu desperdívcio ou uso improdutivo. Isso se aplica nãosomente à energia, mas aos recursos em geral.

O uso efciente de um recurso signifca extrair o máximo de benefívcioutilizando a mívnima quantidade do mesmo. Para que tenhamos alta efciênciaenergética em nossos projetos e atividades, devemos ser econômicos em espaçoe projetar nossos sistemas de modo inteligente para que sejam perfeitamenteintegrados, passivos e autorregulados, de forma a economizar recursos comoenergia, materiais e tempo.

No projeto de uma casa, por exemplo, o princívpio da efciência energéticasignifca dispor elementos e utilizar materiais e estratégias que minimizem tantoquanto possívvel as necessidades de gasto de energia e tempo. Deve-se preferircasas pequenas, que atendam às necessidades dos moradores mas nãonecessitem trabalho excessivo para manutenção e limpeza. Deve-se aindautilizar técnicas de design passivo para energia solar, tanto para fns deiluminação como aquecimento — por exemplo, maximizando o aproveitamentode iluminação e ventilação natural pelo dimensionamento e posicionamentoadequado de janelas, utilização adequada de árvores caducifólias ao redor dacasa, que façam sombra no verão e permitam o aquecimento da casa pelo sol noinverno, utilizando na construção da casa materiais que confram confortotérmico, como o cob e hiperadobe, utilizando a energia geotérmica, etc.

Diferentes sistemas, produtivos e não produtivos, devem ser integradosentre si. Por exemplo, a casa dentro de um sívtio deve ser posicionada de formaque efuentes de águas cinzas possam ser utilizadas passivamente, porgravidade, em sistemas de ferti-irrigação de jardins, hortas, pomares etc.,reduzindo a necessidade de irrigação manual, sem porém contaminar fontes deágua potável, como nascentes, córregos ou lagoas. Outro exemplo de integraçãoentre casa e sistema produtivo, especialmente vantajoso em locais de clima frio,é uma estufa acoplada à casa (geralmente à cozinha), que oferece no mívnimoduas vantagens: o aquecimento da casa pela estufa no inverno, e a proximidade

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(e portanto praticidade) da horta, facilitando seu manejo. Demais sistemastambém devem ser projetados para serem passivos, reduzindo a necessidade detrabalho e energia: por exemplo, reservatórios de água da chuva devem serfeitos o mais alto possívvel, para permitir o uso por gravidade, eliminando anecessidade de bombeamento. Caminhos e estradas devem ser planejados paraserem planos ou terem inclinações suaves, tanto quanto possívvel, pois isso reduza tendência à erosão, reduzindo os esforços e gastos com manutenção.

“A disposição inteligente de elementos poupa recursos como tempo, energia e materiais.”

Um dos aspectos mais importantes da permacultura que é decorrente doprincívpio da efciência energética é o uso das zonas de proximidade eintensidade, que serão discutidas em detalhes no capívtulo 9, “PermaculturaRural”. Nesse modo de organização, sistemas produtivos que requerem atençãoconstante são posicionados mais próximos à casa, caminhos mais utilizados elocais de maior permanência, enquanto sistemas mais extensivos e de baixamanutenção são posicionados progressivamente mais afastados. Com isso,consegue-se uma grande economia de tempo e energia com deslocamento etransporte de materiais, além de um maior controle de sistemas mais delicadose intensivos.

7. Dê preferência às espécies nativasl, valorize abiodiversidade local

Durante os últimos séculos de expansão da civilização ocidental, houvesupressão progressiva dos ecossistemas na maior parte do mundo eimplementação de sistemas agrívcolas e urbanos com apenas algumas poucasdezenas de espécies vegetais e animais. Ou seja, se antes a fauna e fora erammuito ricas e diferentes em cada região do mundo, hoje com a onipresenteantropização você vê praticamente sempre as mesmas espécies em qualquerlugar: galinhas, cachorros, gatos, vacas, pardais, ratos... trigo, milho, arroz,mamão, abacate, maçãs… Esse processo se agravou intensamente ao longo doúltimo século, com a agricultura industrial. Como resultado, temos um grandeempobrecimento da biodiversidade, onde milhares de espécies nativas de cadaregião estão sendo extintas, substituívdas por monoculturas de variedadescomerciais altamente homogeneizadas de plantas e animais.

O princívpio da biodiversidade local signifca que devemos:

• Priorizar espécies da fauna e fora nativas do local.• Resgatar variedades tradicionais e crioulas.• Evitar a introdução de novas espécies exóticas.

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Ao priorizar espécies nativas da sua área, tanto para reforestamento comopara produção de alimentos, e mesmo em jardins e arborização urbana, vocêfortalece o ecossistema local como um todo. Isso porque plantas nativas são asmelhores fontes de alimento e abrigo para animais nativos, que por sua vez sãoos melhores polinizadores e disseminadores de sementes de árvores nativas, etc.Assim, mesmo que se reintroduzam um número limitado de espécies nativas dolocal, essas trarão e encorajarão inúmeras outras espécies de animais e plantastambém nativas, muitas vezes sem que você sequer tenha conhecimento.

Aqui é conveniente citarmos as plantas alimentícias não-convencionais, ou“PANCs”.

Das cerca de 12.000 espécies de plantas comestívveis conhecidas, menosde 200 são de fato comumente consumidas por humanos, e apenas três —arroz, milho e trigo — correspondem a 60% de nosso consumo*. E essa situaçãoestá se agravando, com menos espécies ocupando uma fração cada vez maior daalimentação da população mundial, enquanto a maioria dos alimentos cai noesquecimento, devido principalmente ao processo de urbanização, desconexãodo campo e natureza e dominação da agricultura industrial moderna, queocorrem de forma crescente, globalmente.

PANCs são plantas que são alimento para humanos mas não sãocomumente consumidas e, muitas vezes, são desconhecidas da maioria daspessoas. Pesquise e descubra as plantas nativas de sua área que são alimentívciase cultive-as e coma! Assim, estará não apenas contribuindo para o resgate epreservação dessas espécies e a restauração e enriquecimento do seuecossistema local, mas ainda melhorando a qualidade da sua alimentação.Diversidade é chave para a boa nutrição, e as plantas alimentívcias não-convencionais fornecem uma rica variedade de cores, sabores, aromas eformas, e muitas vezes são mais ricas do ponto de vista nutricional, contendomais vitaminas, minerais, enzimas, etc. que os alimentos mais comumenteconsumidos, especialmente as variedades industriais.

Agora, este princívpio não se restringe a espécies nativas. Espécies deanimais e plantas úteis ao homem têm sido domesticadas há milhares de anos, edurante todo esse tempo, nas diferentes regiões do globo, foram surgindomilhares de variedades e raças de animais e plantas úteis, selecionadas de formarústica conforme as condições ambientais e as necessidades de cada povo.Porém, ao longo do último século, essas variedades e raças tradicionais têmsido crescentemente abandonadas e substituívdas por variedades geneticamenteuniformes da agricultura industrial, muitas vezes fruto de hibridização emanipulações genéticas. Com a tendência crescente de se produzir apenasvisando o mercado e focando em um número tão reduzido de espécies evariedades comerciais, estamos de fato virando as costas para um patrimônioalimentívcio gigantesco, que está sendo extinto, já que as espécies e variedades

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tradicionais não estão sendo cultivadas e seus ambientes naturais e culturaisestão sendo destruívdos. Segundo dados da FAO, 75% da diversidade genéticaagrívcola se perdeu ao longo do último século* — e a tendência é isso se agravarcada vez mais. Essa erosão da agrobiodiversidade representa um grave risco àsegurança alimentar global, pois as variedades industriais que passaram adominar são altamente dependentes de insumos insustentáveis (como irrigação,fertilizantes quívmicos, pesticidas e mecanização) que poderão não estardisponívveis no futuro. Por isso, na permacultura devemos também nos dedicarao resgate e preservação das variedades e raças tradicionais e crioulas, ao invésde cultivar variedades industriais. As variedades crioulas são mais rústicas eadaptadas, sendo em geral mais resistentes a doenças e mais fexívveis quanto àscondições de solo e clima, por exemplo, o que favorece seu cultivo natural,ecológico e sustentável. Seu cultivo representa a preservação e resgate de umpatrimônio genético, cultural e alimentar ancestral, e uma medida essencial deproteção da segurança alimentar no futuro.

A introdução de espécies exóticas tem sido praticada extensivamente pelahumanidade. Porém, trata-se de uma prática perigosa que já foi causadora dedesastres ambientais de enormes proporções, levando à extinção de inúmerasespécies de animais e plantas por predação, competição, introdução de pragas edoenças, etc. Agora que temos pleno conhecimento desses graves efeitos, éinjustifcável continuar incorrendo nesses riscos, especialmente neste momentoem que os ecossistemas naturais já estão tão fragilizados, e considerando que játemos tantas opções de espécies nativas e naturalizadas (i.e. introduzidas hámuito tempo) para utilizar em nossos sistemas produtivos.

Em suma, ao seguir o princívpio da valorização da biodiversidade local,cada permacultor estará contribuindo para a restauração do ecossistema nativode sua própria área, protegendo espécies e raças ameaçadas, combatendo ahomogeneização genética global e protegendo a segurança alimentar global.

8. Princípio da máxima biomassa e máxima biodiversidade

A vida ocorre no planeta Terra na forma de ecossistemas, ou seja, umconjunto de inúmeras espécies de seres vivos que vivem de forma integrada emseu ambiente. É essa variedade e integração que garante o equilívbrio e,consequentemente, a estabilidade da vida em qualquer dada área.

Aqui, é importante defnir os conceitos de 'biodiversidade' e 'biomassa'.Biodiversidade é a diversidade de espécies de seres vivos que há em umdeterminado espaço, enquanto biomassa é a quantidade total de matéria contidana forma de seres vivos, nesse espaço.

* What is happening to agrobiodiversity? In: Building on gender, agrobiodiversity and localknowledge – a training manual. FAO. 2004.

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Na natureza, todos os seres vivos presentes em um determinadoecossistema, em sua luta contívnua para sobreviver e se multiplicar, coevoluívramao longo de milhões de anos com as condições do ambiente local, para que avida se expressasse em sua forma máxima possívvel para aquele local. Portanto,se uma área tem condições de abrigar uma foresta, ela naturalmente será cobertade foresta; se só tiver condições de abrigar uma caatinga, ali haverá umacaatinga; se as condições forem muito restritivas, só haverá algum tipo dedeserto, e assim por diante.

Se uma área abrigava originalmente uma foresta, não é justo manter essaforesta suprimida para, em seu lugar, plantar hortaliças ou pastagens, ou mesmogrãos, já que todas essas plantações contém tremendamente menos biomassa ebiodiversidade que uma foresta. A biomassa e biodiversidade são medidas devida, quantitativa e qualitativamente. Portanto, substituir uma foresta porplantações como as supracitadas signifca reduzir e piorar brutalmente a vidanessa área.

“Uma área deve conter o máximo de biomassa e biodiversidade que ela pode naturalmente manter.”

Sendo assim, temos que nos perguntar qual o tipo de ecossistemacaracterívstico de nossa área, para planejar nossos sistemas produtivos de acordo.Em áreas que originalmente abrigavam biomas forestais, devemos instituirsistemas agroforestais que refitam o ecossistema original e incluam ao máximoseus elementos, já que uma agroforesta desempenha todas as funções ambientaisde uma foresta, não apenas abrigando biomassa e biodiversidade (animal,vegetal, microbiológica etc.), mas também protegendo o solo, a água, o clima,etc. Áreas de campos e prados naturais são mais adequadas a pastagens eplantações de grãos.

Claro que, em algumas situações, os interesses humanos entrarão emconfito com este princívpio da biomassa e biodiversidade. Por exemplo, paraconstruir uma casa será necessário suprimir a foresta, e também podemosnecessitar ou desejar plantar hortaliças para nossa alimentação. Nesses casos,cabe o bom senso de manter essa supressão em um mívnimo possívvel para suprirnossas necessidades.

Infelizmente, porém, é extremamente comum ver pessoas suprimindoindiscriminadamente a vida em largas áreas, apenas para satisfazer um senso“estético” culturalmente arraigado. Um grande exemplo disso, extremamentecomum em regiões rurais, é manter a propriedade toda capinada ou roçada, ouseja, suprimir a vida natural sistematicamente e a um alto custo energético,apenas para dizer que está tudo “limpo”. Esse tipo de cultura deve ser abolido,pois é simplesmente contra a vida. Um outro exemplo semelhante, comum emáreas residenciais, são os gramados, que ocupam grandes áreas e consomem

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muitos recursos (água para irrigação, fertilizantes), sem produzir nada. Pense notanto de fores, verduras e arbustos frutívferos poderiam ser plantados ali! E asabelhas, pássaros, etc. que se benefciariam disso, além de nós mesmos,humanos.

Regiões semi-áridas e desérticas têm abrigado populações humanas hámilhares de anos; portanto, é perfeitamente possívvel viver nessas áreas, mas ossistemas produtivos e mesmo o estilo de vida devem ser adequados às condiçõeslocais.

É verdade que em muitas situações é possívvel obter um aumento dabiomassa e biodiversidade de uma área, além do que ocorre naturalmente,através da aplicação habilidosa dos princívpios e técnicas da permacultura.Porém, deve-se fcar muito atento, pois na maioria das vezes, devido ao uso deestratégias inadequadas, uma aparente melhoria da vida em uma área no curtoprazo pode vir a um alto custo ambiental, não sendo sustentável e tendo, nomédio e longo prazo, um efeito global negativo ao meio ambiente. Seguemalguns exemplos:• Em locais de clima semiárido, o uso indiscriminado da irrigação pode

causar sérios problemas, como excessivo uso de energia e custo ambientalassociado, e redução na vazão e mesmo secamento de rios. O uso de águassubterrâneas para irrigação causa abaixamento progressivo do lençol freático,não sendo sustentável a longo prazo. Além disso, via de regra causa a salinizaçãodo solo, tornando-o estéril.

• O uso de fertilizantes quívmicos para melhorar a fertilidade do solo podeaumentar a biomassa no curto prazo, mas seu uso contívnuo é tóxico ao solo,reduzindo sua biodiversidade, não sendo, portanto, sustentável. Ainda,contamina cursos d'água, reduzindo a qualidade da vida nesses ecossistemas, ouseja, tem um efeito global negativo.

• Mesmo com fertilizantes orgânicos (e.g. esterco animal), é preciso tercuidado. Embora criem uma melhora da vida onde são usados, deve-se observarque, na verdade não houve um aumento da fertilidade, mas sim umatransferência da mesma: essa fertilidade que aumentou em sua área talvez tenhapassado a faltar no local de onde o adubo foi retirado. Por isso, deve-se sercrívtico quanto à fonte desse adubo, procurando captá-lo de locais e situaçõesonde ele de outra forma seria desperdiçado, enfm, obtê-lo de formas que nãocausem um dano no local de origem, levando também em consideração o custoenergético relativo ao seu transporte, etc.

Portanto, o único caminho sustentável para se obter um aumento naquantidade e qualidade da vida em uma área é através do uso dos princívpios dapermacultura: utilizando recursos do próprio local, fxando a água, reciclandonutrientes, atentando para a efciência energética, valorizando as espécies locais,

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integrando-as de forma habilidosa para obter o máximo de relações benéfcas,imitando o funcionamento do ecossistema local, etc.

Como veremos nos capívtulos seguintes, a biomassa e biodiversidade do soloe do ecossistema terrestre são as responsáveis pela construção e manutenção dafertilidade do solo, e qualquer redução na biomassa e biodiversidade fatalmenteacarreta redução da fertilidade. Outra importante implicação deste princívpio dizrespeito à fxação de carbono: uma das mais importantes formas de prevenir oureverter o efeito estufa é o sequestro de carbono atmosférico na forma debiomassa. Quanto mais biomassa, maior a quantidade de carbono fxada, ou seja,sendo retirada da atmosfera.

9. Use soluções pequenas e lentas

Quando uma pessoa toma consciência da gravidade da crise ambientalatual e decide entrar para o movimento por um mundo melhor, mais justo, maissustentável, é muito comum sentir-se perdida e intimidada: “tudo está tãoerrado, e eu também tenho feito tudo tão errado... quero mudar isso, fazer aminha parte, mas por onde começar?”

A resposta para essa pergunta é muito simples: comece com o que é maisfácil, com o que está ao seu alcance imediato. Acredite no poder transformadorde um conjunto de atitudes pequenas e simples. Lembre-se do velho ditado:“para fazer uma caminhada de mil quilômetros, o mais importante é dar oprimeiro passo.” Claro que a segunda coisa mais importante é continuarcaminhando!

A primeira coisa a fazer é adotar a permacultura como estilo de vida, o quesignifca aplicar os princívpios da permacultura em seu dia a dia. Usar o mívnimode recursos possívvel: tome um banho mais rápido, use o chuveiro na posição“verão” e abra menos o registro; colete a água do seu banho com uma bacia, euse-a para dar descarga. Você também não precisa dar descarga cada vez que fazum mero xixi! Apenas com medidas simples como essas, é possívvel reduzir oconsumo diário de água a menos da metade. Acenda o mívnimo de lâmpadas ànoite, e apague-as quando não estiver usando. De dia, nunca acenda lâmpadas —abra as janelas! Evite usar o carro, vá de bicicleta. Reduza seu consumo decarne, leite e derivados, busque uma alimentação mais saudável, compre agranel, na feira; evite embalagens, valorize os produtores locais, sempre quepossívvel. Reduza seu consumo comprando menos coisas, e separecriteriosamente seu lixo; descubra formas de garantir que eles sejam reciclados(em alguns locais, com a coleta urbana muito desorganizada, pode ser necessáriolevá-los diretamente a um centro de reciclagem). Faça compostagem em suacasa, plante algumas verduras e ervas, de acordo com o espaço que tiverdisponívvel. Capte água da chuva, das calhas do seu telhado — inicialmente, podeser com bombonas de 200 litros, enquanto elabora planos para uma captação

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mais efciente. Use essa água para regar seu jardim, lavar roupa, o chão, etc. (oestilo de vida da permacultura será o assunto do capívtulo 14)

Claro que apenas medidas desse tipo não serão sufcientes para resolver oproblema da insustentabilidade, mas tudo tem que começar com elas! Isso éessencial para iniciar a jornada da permacultura — é uma transformação queleva tempo, e o importante é começar, e continuar caminhando.

Um erro que muitas pessoas cometem ao fcarem muito empolgadas eansiosas com a permacultura é querer fazer grandes movimentos em um curtoespaço de tempo. Por não terem experiência, acabam gastando muito dinheiro,causando estragos e na maioria das vezes os sistemas não funcionam a contento.Arrumam briga com familiares e vizinhos, etc., e isso tudo muitas vezes faz comque desanimem e desistam, o que é a pior coisa que pode acontecer. Portanto, omelhor é começar pequeno e ir reavaliando-se constantemente (veja o princívpion.o 18), para evoluir gradualmente, alcançando resultados mais profundos.Enquanto você assimila essas atitudes, deve dedicar-se continuamente àelaboração de planos para uma vida realmente sustentável, à luz dapermacultura. Este planejamento é muito importante, e deve ser feito com calmae com a máxima seriedade. Não adianta nada querer fazer uma revolução deforma precipitada, e acabar não sobrevivendo, morrendo na praia.

O mesmo princívpio se aplica quando a pessoa vai desenvolver seu projetode permacultura rural. Um erro muito comum é a pessoa bolar um plano que elaacredita ser ótimo, e chegar fazendo grandes modifcações na paisagem, usandomaquinários, suprimindo vegetação, mexendo na topografa... consumindo ummonte de petróleo, trazendo um monte de recursos de fora, investindo um montede dinheiro, partindo do argumento que os resultados fnais compensarão todoesse estrago (tendo em mente aquela visão de seu projeto num futuro próximo,lindo, exuberante e altamente produtivo). Infelizmente, porém, na maioria dasvezes os resultados fnais fcam muito aquém do esperado — os benefívcios nãose concretizam, e fca apenas o estrago. O fato é que quanto maior a escala denossas ações, maiores os danos e menor nossa capacidade de prevê-los ouconsertá-los, e isso é agravado pela inexperiência. Começando devagar elentamente, com observação e reavaliação constante, podemos evitar esses danose aperfeiçoar gradualmente nossos sistemas, podendo, depois, se necessário,aplicá-los em maior escala, de forma segura.

É preciso sempre lembrar que a natureza também está trabalhando para suaprópria restauração, pois é isso que ela faz. O princívpio das soluções lentas epequenas também inclui o conceito da mínima interferência, ou seja, de deixar anatureza fazer o seu trabalho. Muitas vezes, quando interferimos demais, apesarde nossas boas intenções acabamos atrapalhando-a e comprometendo arecuperação ambiental que ocorreria naturalmente.

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10. Projete dos padrões aos detalhes

A observação cuidadosa da natureza e também de sistemas humanosaltamente harmoniosos e funcionais permite a identifcação de padrões que serepetem — fórmulas consagradas pelo uso. Aprender a reconhecer essespadrões nos dá um bom ponto de partida na elaboração de nossos projetos.

Começar com padrões gerais para depois tratar dos detalhes é aabordagem mais usada por artistas plásticos como desenhistas, pintores eescultores, por arquitetos ao projetarem seus edifívcios, e urbanistas aoplanejarem cidades inteiras, e essa abordagem é a que dá os melhoresresultados, resultando em obras e projetos equilibrados, harmoniosos, bonitos efuncionais. O mesmo ocorre em projetos de permacultura e por isso essaabordagem deve ser também empregada em design permacultural — partir depadrões, acrescentando depois os detalhes, levando em consideração as relaçõesentre os elementos, de forma a atingir um alto grau de integração dos sistemas,o que resulta em harmonia, funcionalidade e efciência energética. Aabordagem oposta, ou seja, tratar de cada elemento de forma individual e iradicionando-os arbitrariamente, é frequentemente utilizada por pessoasinexperientes ou não capacitadas, e via de regra resulta em sistemas instáveis,desarmoniosos e inefcientes.

No design permacultural, já que buscamos uma perfeita integração doselementos, devemos começar por conhecer os elementos. Assim, a elaboraçãode um projeto deve se iniciar com um levantamento detalhado das condições dolocal e da região: aspectos geográfcos (altitude, latitude, tamanho, orientação,topografa, geologia/edafologia, hidrologia, clima), ecológicos (bioma nativo,grau de preservação/antropização), elementos humanos (vizinhança, culturalocal etc.), questões de infraestrutura local (situação urbana ou rural, acesso,disponibilidade de recursos materiais e humanos), etc. Igualmente importantessão os objetivos do projeto, que podem incluir produção de alimentos para fnscomerciais, produção para autossufciência, recuperação ambiental, moradia,educação ambiental, etc.

A partir daív, começamos com um esboço do design. Neste ponto, o quenormalmente se observa é que para cada categoria de projeto (por exemplo,projeto de permacultura rural em pequena propriedade em região tropical, ouentão projeto de permacultura urbana em uma casa com quintal, em regiãotemperada, etc.), os aspectos gerais do design se repetem. Por exemplo, em umprojeto rural, um processo tívpico de elaboração do design geralmente começapelos sistemas de água (área de captação e pontos de armazenamento,favorecendo uso por gravidade), acessos, e posição da casa (altura intermediáriano terreno, para ter abastecimento de água por gravidade e espaço sufcienteabaixo da casa para lidar com efuentes). Em seguida, trata-se dos sistemasprodutivos. Aqui, aplica-se o método de zonas de proximidade e intensidade

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(que em si são um importante aspecto da aplicação de padrões empermacultura, e serão discutidos em detalhes no capívtulo 9, “PermaculturaRural”). Por fm, trata-se dos sistemas produtivos e não produtivos, e seusdetalhes (espécies a serem usadas e sua disposição, instalações e benfeitoriascomo galpões, viveiros, estufas, casas, etc.)

A aplicação deste princívpio — projete dos padrões aos detalhes — se dáem cada um dos nívveis do projeto, e em todas as escalas. Ou seja, aplica-setanto no design de um projeto individual de permacultura, como em umaecovila ou mesmo uma cidade inteira; e também se dá no projeto de umsimples galinheiro, uma horta ou uma lagoa artifcial.

11. Prefra recursos renováveis e utilize-oos de formasustentável

Utilizar recursos não renováveis pode ser vantajoso em certas situações,mas ao criarmos uma dependência desses recursos nos metemos em umaverdadeira arapuca, e o pico do petróleo é, talvez, o melhor exemplo disso.

Porém, não basta usar recursos renováveis — é imprescindívvel que osutilizemos de forma sustentável, ou seja, devemos utilizá-los de formaconsciente e controlada, de fato permitindo que se renovem, pois mesmorecursos renováveis podem se extinguir, e isso de fato ocorre a todo tempo emnosso mundo atual. Muitos dos maiores problemas da humanidade derivamjustamente do uso insustentável de recursos que, em sua natureza, sãorenováveis. Por exemplo, animais, plantas, forestas e água são todos recursosrenováveis; porém, seu uso abusivo, descontrolado e irracional tem levado àextinção de milhares de espécies de animais e plantas, o desaparecimento deforestas e biomas inteiros, e crises hívdricas em diversas partes do mundo.

Assim, além de se priorizarem os recursos renováveis, há que seestabelecer limites quanto ao uso de recursos, dentro de uma taxa que permitasua renovação, e adotar práticas que encorajem sua renovação, evitando seudeclívnio. Por exemplo, a lenha pode ser usada como combustívvel em situaçõesrurais, já que é um recurso renovável produzido naturalmente dentro dapropriedade, podendo ser considerada mais vantajosa que o gás liquefeito depetróleo, que tem que ser comprado, implicando portanto em um gasto dedinheiro e uma dependência de um recurso externo e não renovável. O erro estáem utilizar a lenha a uma taxa superior à de renovação da madeira napropriedade, levando a uma redução progressiva na disponibilidade desserecurso e degradação ambiental. Isso acontece em diversas partes do mundo,onde o corte para lenha é uma importante causa de desmatamento. Um manejoadequado da lenha permite que se colha quantidade sufciente, continuamente, esem jamais entrar em declívnio; isso signifca manter um baixo consumo, e

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promover sua renovação. Para tanto, deve-se utilizar o recurso de formaeconômica e efciente, obtendo o máximo benefívcio com a mívnima quantidadede lenha: otimizar o uso do fogo, utilizar fogões de alta efciência, como orocket stove, priorizar alimentos consumidos crus; utilizar aquecimento solar deágua, e design adequado da casa que permita abolir ou minimizar o uso de lenhapara aquecimento, através de isolamento e vedação adequada, o uso demateriais que promovam conforto térmico, design passivo para energia solar,etc. Do outro lado, para promover sua regeneração, deve-se adotar boaspráticas: não abater as árvores, mas ao invés disso apenas podá-las, permitindosua regeneração, e usar os galhos podados como lenha; plantar e cultivarespécies de árvores bem adaptadas, de crescimento rápido, para suprimentocontívnuo e sustentável de lenha, etc.

Também o uso da água deve obedecer critérios racionais para que esterecurso seja preservado e de fato aumentado. Isso signifca reduzir o consumodoméstico de água, e o consumo de produtos que demandam muita água parasua produção (e.g. carne, leite e derivados); captar, armazenar, utilizar e reciclarao máximo a água de chuva; evitar usar água de corpos d’água naturaissubterrâneos e superfciais, mas, caso seja necessário, usá-la de formacriteriosa; jamais poluir quaisquer corpos d'água, tanto superfciais (nascentes,córregos, rios, lagos e mares) como subterrâneos (lençol freático); proteger asforestas e dedicar-se ao reforestamento de áreas desmatadas, para preservar erecuperar os recursos hívdricos, etc.

O princívpio dos recursos renováveis se aplica também aos sistemasprodutivos, pois devemos sempre focar na reciclagem dos nutrientes do solo,através da adubação orgânica, compostagem, cobertura vegetal morta de solo,etc., ao invés de fertilizantes quívmicos. Também na construção, devemos darpreferência a materiais naturais, renováveis e de preferência do próprio local, etécnicas de bioconstrução.

Este princívpio também nos lembra que devemos preferir sempre quepossívvel formas de energia renováveis e de baixo impacto, como a solar eeólica.

12. Versatilidade e redundância

Na natureza, não há praticamente nada que tenha apenas uma função —todos os elementos desempenham múltiplas funções. Uma árvore, por exemplo,oferece abrigo para inúmeros seres vivos como insetos, aves, morcegos, esquilos,outras plantas (epívftas), etc., fornece alimento para inúmeros animais (seiva,pólen, folhas, frutos, sementes), protege o solo, estabiliza o clima e o ciclo daságuas, fornece madeira, sombra, beleza, etc. Já uma minhoca digere matériaorgânica produzindo húmus, aera o solo e serve de alimento para inúmerasespécies de aves e mamívferos. Também no corpo humano, a maioria dos órgãos

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têm diversas funções, com raras exceções de órgãos extremamenteespecializados, como por exemplo o olho.

A sociedade moderna, com sua mania reducionista, tem grande tendênciaem favorecer a especialização: hoje temos ferramentas e utensívlios cada vez maisespecializados, e pessoas cada vez mais especializadas em suas funções. É fatoque, via de regra, quanto maior o grau de especialização, maior a efciência comque se performam funções especívfcas; porém, ao mesmo tempo, perde-se emfexibilidade: quanto mais especializados os utensívlios ou equipamentos, maiorquantidade de diferentes utensívlios tornam-se necessários para que se possamdesempenhar todas as funções. Da mesma forma, indivívduos altamenteespecializados muitas vezes tornam-se totalmente dependentes de outrosindivívduos para funções básicas à sua própria sobrevivência.

Sistemas naturais funcionam de forma efciente e estável devido àdiversidade, integração e autorregulação. Porém, para que haja integração, épreciso que haja um certo grau de fexibilidade nos elementos do sistema. Issoexplica por que não são comuns elementos altamente especializados na natureza:por sua falta de fexibilidade e alto grau de dependência, tais elementos foramnaturalmente excluívdos no processo natural de seleção.

“Cada elemento performa múltiplas funções;cada função importante é suportada por diversos elementos.”

Por isso, ao projetarmos nossos sistemas, é importante que cada elementodesempenhe diversas funções. Por exemplo, se você só tiver espaço para umaárvore, que seja uma árvore de boa sombra e que produza frutas comestívveis. Aose projetar uma agroforesta, faça-o de forma que ela produzirá diversos produtosúteis, como frutas e outros alimentos, madeiras, fbras, óleos, mel, e ainda sirvadiversas outras funções, como abrigo para fauna, corredor biológico, funcionecomo cerca viva, aumentando a privacidade e reduzindo barulho e poeira daestrada, etc. Ao projetar uma lagoa artifcial, faça-o de forma que sirva a váriasfunções, como reservatório de água para consumo e irrigação, produção deplantas aquáticas, peixes, rãs e pitus, atraia aves e outros animais silvestres, sejabonita e agradável, e ainda dê para dar uns mergulhos! Estradas e caminhospodem ser feitos em nívvel e elevados, servindo para reter água da chuva econtrolar a erosão. Cercas vivas devem incluir várias espécies vegetais, para quealém de servirem como cerca, ainda produzam frutas, folhas comestívveis e lindasfores. Na casa, o fogão a lenha pode servir não apenas para cozinhar, mastambém para aquecer o ambiente (acoplado a um irradiador), e aquecer água(com um sistema de serpentina). Mesmo que você tenha um aquecedor solar deágua (e deve ter mesmo!), isso poderá te salvar em dias frios e chuvosos deinverno.

O outro lado da moeda é que funções essenciais devem ser suportadas por

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diversos elementos, pois isso dá segurança ao sistema, garantindo que, na falhade um elemento, a função continuará sendo desempenhada. Por exemplo, não sepode ter apenas um reservatório de água na propriedade, e sim váriosreservatórios, por segurança. Também, se você utiliza um poço com bombaelétrica, é sempre uma ótima ideia ter também uma bomba manual sempredisponívvel, em caso de falta de energia, etc.

13. Use a tecnologia de forma apropriada

Na sociedade moderna há uma forte tendência à supervalorização datecnologia, enormemente motivada pela indústria e pela mívdia. Criou-se a noçãoque para algo ser bom, tem que ser a última tecnologia, e que sem os últimosavanços tecnológicos não se pode viver; na maioria das vezes as pessoas nemparam para pensar que há apenas alguns anos ou décadas, essas tecnologias nemsequer existiam, e o mundo funcionava, e todo mundo vivia.

As chamadas “soluções tecnológicas” muitas vezes oferecem pouca ounenhuma vantagem sobre métodos tradicionais ou de baixa tecnologia, além denormalmente terem alto custo de aquisição e manutenção, requererem grandequantidade de energia elétrica ou combustívveis, gerarem resívduos, etc. O vívciopor tecnologias avançadas é uma forma de consumismo com alto custo para oambiente, e ao mesmo tempo causa um tipo de dependência psicológicadebilitante, onde o indivívduo sente-se totalmente incapaz de fazer qualquer coisaa não ser que tenha nas suas mãos o que há de mais moderno — por não dispordeste ou aquele aparato tecnológico, muitas vezes o indivívduo até desiste de fazero que queria, por não se sentir “adequadamente equipado”, sendo que a tarefapoderia muito bem ser feita com aquilo que já se tem à mão. Daív nasce adiferença entre os que fazem pouco com muito, ou fazem muito com pouco. Napermacultura, procuramos sempre estar no segundo grupo.

Talvez seja útil citar aqui alguns exemplos de como o princívpio datecnologia adequada é totalmente ignorado por muita gente: como o indivívduoque desce de elevador de seu apartamento e vai de carro até a academia deginástica, onde ele gasta dinheiro para fcar em um local com iluminação eventilação artifcial, usando aparelhos que muitas vezes consomem energiaelétrica... para fazer o exercívcio que ele poderia muito bem ter feito de graça esem nenhum gasto de combustívvel ou energia elétrica, simplesmente usando asescadas de seu prédio e se locomovendo a pé ou de bicicleta. Ou aquelas pessoasque compram avidamente eletrodomésticos e utensívlios para a cozinha —multiprocessadores, centrívfugas, fornos de controle digital, kits disso, kitsdaquilo... — e simplesmente nunca cozinham! Compram comida prontacongelada, e só esquentam no micro-ondas. Malemá cozinham um arroz e feijão,enquanto outras pessoas, sem nunca terem ou sequer conhecerem aqueles

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apetrechos, sempre cozinharam de tudo, sem problema algum. Outro exemplosão os chamados sopradores de folhas: máquinas caras e barulhentas, queconsomem energia elétrica ou gasolina (nesse caso ainda geram fumaçafedorenta e tóxica), que fazem exatamente o mesmo serviço que sempre foi feitode forma totalmente satisfatória por simples vassouras e rastelos! E ainda tem adesvantagem de levantar uma quantidade enorme de poeira, que sempre causamuito incômodo e, não raro, irritação nos olhos e sistema respiratório.

Muitas pessoas erroneamente assumem que novas tecnologias, cada vezmais modernas, resolverão os problemas da humanidade. Porém, muitas vezes,as novas tecnologias trazem soluções para problemas que nunca existiram. Outracoisa que se pode dizer de novas tecnologias é que, para cada problema que elasresolvem, criam dez outros novos problemas. Está claro que com o crescimentoda tecnologia estamos fcando cada vez mais insustentáveis.*

A solução para a maioria dos nossos problemas está na verdade em menostecnologia — tecnologias mais simples, e uma dose maciça de bom senso e ética.

Por exemplo, na construção de uma casa, devemos utilizar técnicas naturais(bioconstrução), muitas vezes ancestrais, que corretamente aplicadas resultamem habitações baratas, de baixo impacto ambiental, alta efciência energética,além de uma autenticidade ívmpar.

Em sistemas produtivos, devemos focar em sistemas de baixa tecnologia,focando na diversidade e integração dos elementos de forma que imitem asrelações naturais, sendo automantenedores, e evitar sistemas automatizados etecnológicos, pois os primeiros contribuem para nossa autossufciência eindependência, enquanto os últimos nos manteriam eternamente dependentes deinsumos externos, tecnológicos, e consequentemente recursos fnanceiros (ooposto da autossufciência), além do fato que esses insumos provavelmentedeixarão de estar disponívveis no futuro.

“Tecnologia não é substituto para bom senso”

Claro que há muitas tecnologias modernas que podem trazer reaisbenefívcios, e essas podem e devem ser utilizadas. Neste contexto,provavelmente o exemplo de maior destaque é a internet — ela é hoje a melhor,mais vasta e mais acessívvel fonte de informação disponívvel à maioria daspessoas, o que sem dúvida é de um potencial maravilhoso, que deve serexplorado ao máximo. Também é útil como forma de conectar pessoas eformação de redes de contatos e trabalho, ou networking, o que ajuda osindivívduos e fortalece movimentos como a permacultura, por exemplo.

* Para uma análise aprofundada deste tema, recomendo a leitura de “Techno-Fix: whytechnology won’t save us or the environment”, de Michael Huesemann e JoyceHuesemann.

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Outro exemplo é o uso de maquinário pesado, como retroescavadeiras ecarregadeiras, em projetos de permacultura, por exemplo na escavação dereservatórios de água, como lagoas artifciais. Criticado por uns e defendido poroutros, aqui na verdade deve prevalecer o bom senso, numa avaliação caso acaso. Sem dúvida é possívvel e preferívvel escavar à mão, desde que se tenhamuitas pessoas para ajudar. Em outros casos, em que mão de obra for escassa oucara, enquanto maquinário seja disponívvel a baixo custo, a mesma lagoa podelevar meses e custar carívssimo para se escavar a mão, ou poucas horas e 50 litrosde óleo diesel para fazer o mesmo serviço com uma máquina — um usoperfeitamente justifcável da tecnologia disponívvel, especialmente considerando obenefívcio ambiental a longo prazo.

Ou seja, o princívpio do uso apropriado da tecnologia não preclui o uso dastecnologias modernas, e sim implica no uso racional e criterioso das mesmas.

14. Obtenha um rendimento

A permacultura visa alcançar dois objetivos: o suprimento dasnecessidades humanas e a preservação e restauração do meio ambiente. Emboradiferentes indivívduos possam focar mais em um ou outro aspecto, ambos sãoigualmente importantes e devem ser sempre considerados em conjunto.

O que acontece muitas vezes, porém, é que as pessoas que se sentematraívdas para a permacultura têm uma história de vida predominantementeurbana, e estão cansadas e desgostosas por seus estilos de vida artifciais eestressantes; amam a natureza e ressentem-se do fato que a humanidade a estádestruindo, e querem “mudar de lado”, passando a defendê-la. Sentem umanecessidade de se reintegrar à natureza, e têm o ideal de produzir alimentos deforma orgânica e saudável, mas não têm uma história no campo e, assim sendo,não estão acostumadas a produzir e depender dessa produção.Consequentemente, muitas vezes, ao iniciarem seus projetos de permacultura,os novatos tendem a focar muito na preservação e recuperação ambiental, edesenvolvimento de um estilo de vida que consideram simples e natural,deixando em segundo plano a produtividade. Cria-se assim um impasse: não fazsentido tentar recuperar uma área degradada, ou plantar uma foresta, se vocênão consegue nem sequer se manter! Pela mais pura lógica, se você nãosobreviver, seu projeto também perecerá.

Então, o que muitas vezes acaba acontecendo é que, sem produçãosufciente para se manterem, essas pessoas acabam exaurindo seus recursosfnanceiros e tendo que abandonar seus projetos, e retornar à vida de antes, ouseja, à mesma realidade da qual queriam se afastar. Fracassam, assim, emdeixar de fazer parte do problema, e passar a fazer parte da solução doproblema da insustentabilidade humana, e fracassam também em alcançar o

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estilo de vida que desejam.

A permacultura parte da premissa que é perfeitamente possívvel ter altaprodutividade sem degradar o meio ambiente. Para cumprir esta promessa,projetos de permacultura devem produzir alimentos e outros produtos emquantidade e qualidade sufciente para suprir as necessidades do permacultor esua famívlia, e ainda prover um excesso de produção que pode e deve sercompartilhado, seja pela troca ou venda, benefciando mais pessoas e também omeio ambiente, tanto diretamente, pela recuperação ambiental, aumento dabiodiversidade e biomassa, proteção do solo, da água etc, como indiretamente,ao oferecer alimentos orgânicos no mercado, “roubando” espaço doagronegócio ecocida. Portanto, ao nos dedicarmos à permacultura, não devemosnunca nos esquecer que devemos buscar essa produtividade, com a máximaseriedade.

15. Pense globalmentel, aja localmente (faça sua parte)

Um dos mais graves vívcios de atitude das pessoas é aquele pensamento:“se todo mundo faz o errado, não adianta nada só eu fazer o que é certo, poisisso fará qualquer diferença”. Claramente, esse tipo de atitude só contribui paraa degradação progressiva, tanto da sociedade como do meio ambiente. Éimperativo que tomemos as rédeas de nossas próprias vidas, e passemos a vivê-las em consonância com nossos próprios princívpios, e não baseado nocomportamento das demais pessoas.

Agir localmente signifca, acima de tudo, fazer da permacultura o seuestilo de vida. É melhorar o meio ambiente ao redor de sua própria casa. Maisdo que partir para o ativismo, ou depositar grandes expectativas em outrosgrupos de pessoas, governos ou corporações, é fazer, concretamente, o que estáao seu alcance, porém partindo de uma compreensão global dos problemasexistentes.

Vejamos alguns exemplos práticos de como adotar este princívpio:

• Considerando que automóveis consomem muitos recursos e poluem omeio ambiente, e não é viável cada pessoa no mundo ter um automóvel,então procurarei me abster de ter ou utilizar um.

• O desmatamento é um gravívssimo problema da atualidade, então nãocomprarei madeiras oriundas do desmatamento, e plantarei eu mesmomuitas árvores.

• A agricultura industrial está destruindo a natureza, então comprareiprodutos orgânicos, ou melhor ainda, produzirei meus próprios alimentosde forma orgânica.

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• A pecuária causa graves problemas ambientais, então limitarei meuconsumo de produtos de origem animal.

• O consumismo está destruindo o planeta, então consumirei apenas oessencial.

• A água está fcando escassa, então captarei água da chuva, economizarei ereciclarei água.

• Esgotos estão matando os rios e mares, então, usarei banheiro seco.

• Temos um problema de superpopulação, então limitarei meu número deflhos a no máximo dois, etc.

O pensamento de “não conseguirei mudar o mundo”, ou “isso não farádiferença nenhuma” é extremamente derrotista e contraproducente. Deve-se terem mente que, ao adotar uma postura de positividade e ação o indivívduo criaum campo de infuência à sua volta, incitando à refexão e infuenciando váriaspessoas a seguirem seu exemplo. E essas, por sua vez, também infuenciarãooutras, e assim por diante. Assim, ao adotar a permacultura como estilo de vida,o indivívduo torna-se um elo de uma corrente que pode, sim, ter um forteimpacto no mundo. Além disso, mesmo que não se consiga mudar a história domundo, certamente é possívvel mudar o seu papel nessa história: deixar de serparte do problema, e passar a ser parte da solução. Essa mudança, por ter umfundo essencialmente moral, representa um resgate da dignidade do indivívduo,o que é extremamente recompensador — você saberá que está fazendo a coisacerta, e isso por si só já fará tudo valer a pena.

16. Cooperação ao invés de competição

Na sociedade moderna, há uma grande ênfase em competição. Na maioriadas profssões, você tem que produzir mais, ou vender mais, ou inovar mais,etc. para sobreviver em seu emprego ou ter uma chance de ascender em suacarreira. Ou seja, há uma pressão constante para que você se destaque, sesobressaia, seja melhor que os outros — o que signifca competição. Essacultura já fcou tão arraigada, que contaminou até mesmo as mais ívntimasrelações familiares: muitas mães têm como principal preocupação que seusflhos se mostrem “avançados para sua idade”, estejam acima da média nisso ounaquilo… muitas vezes o fazem de forma inconsciente; outras vezes, procuramjustifcar esse tipo de atitude com o argumento que querem garantir sucesso deseus rebentos no mercado de trabalho mais à frente — sem perceber que estãode certo modo comprometendo, corrompendo a pureza da primeira infância,que não volta mais. O espívrito de competição se manifesta também nos cívrculossociais, onde as pessoas estão sempre se comparando com outras e buscandoparecer melhores, mais bonitas, ricas e felizes — uma competição largamente

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baseada em aparências falsas, e onde sentimentos inferiores e medívocres comoa inveja têm lugar garantido.

Outro aspecto de nossa sociedade que ilustra essa cultura dacompetitividade é a paixão, fxação, obsessão de algumas pessoas por esportes— não a prática de exercívcios fívsicos, que poucos na verdade fazem, mascompetições desportivas. Claro que é normal e saudável, e mesmo caracterívsticoda natureza humana querer se superar, forçar nossos limites — faz parte dabusca por evolução. Agora, isso no que o esporte se transformou é algo bemdiferente: trata-se uma verdadeira indústria. O conceito de esportista“profssional” é algo muito recente na história; pessoas que não fazem maisnada além de correr, pular e chutar bolas, coisas que em si não têm utilidade,não produzem nada, em nada contribuem para a solução de qualquer dos muitosproblemas do mundo. Do jeito que a coisa virou, nem sequer bom para a saúdedos atletas é — seus corpos são usados de forma abusiva e descartável,utilizando drogas para aumentar a performance, acumulando lesões crônicas,etc. Os que chegam ao topo, os campeões, são vistos pelas massas como heróis.Mas, heróis do que? Com que isso tudo contribui para a sociedade? Afnal, paraque serve tudo isso? Claro, serve para dar destaque aos seus patrocinadores,ajudando-os a vender mais seus produtos, ganhando da concorrência — ou seja,um tipo de competição alimentando outro tipo de competição. Ah sim, tambémserve para manter a massa acéfala distraívda, anestesiada.

Claro que não cabe dizer que a competição em si é algo ruim. Ela existena natureza, onde é importantívssima, sendo a força motriz da evolução emanutenção das espécies, conforme postula a famosa teoria de Charles Darwin.É importante destacar, porém, que também na natureza a competição é apenasparte da estória! De fato, são muitos os tipos de relacionamentos que ocorrementre os seres vivos, podendo eles ser positivos (também chamadosharmônicos), como as colônias, a simbiose e o comensalismo, e negativas (oudesarmônicas) como a competição, a predação e o parasitismo, etc. Tambémnas sociedades humanas, a competição é natural e inevitável, e tem uma funçãopositiva à medida que é um fator de estívmulo para que as pessoas se superem,atingindo o máximo de seu potencial. O problema é a supervalorização eexacerbação da competição na sociedade atual, ou seja, uma falta de equilívbrio.

Aqui, temos que destacar uma diferença da sociedade convencional(paradigma atual) e a proposta da permacultura: de modo geral, na sociedade,quando se fala em superação e evolução, o indivívduo está pensando em suaprópria ascensão na carreira, ou sua ascensão econômica, social, etc., Ou seja,os objetivos dos esforços do indivívduo são focados no ego.

Já na permacultura, os objetivos dos esforços são bens maiores: apreservação da natureza e o futuro da humanidade (que podem ser vistos comouma só coisa). Sendo assim, a motivação para a superação é de naturezatotalmente diferente: não o benefívcio próprio ou interesses egocêntricos, mas

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primariamente uma motivação moral, de valores — pode-se dizer, umverdadeiro espívrito heroico (bem diferente dos jogadores de futebol!). Por isso,permacultores não devem competir entre si, e sim cooperar, pois só assimalcançaremos de forma máxima os objetivos da permacultura.

Exemplos de cooperação comuns na permacultura incluem: a ajuda mútua,como em mutirões e trabalhos conjuntos, voluntariado, economia solidária (trocade saberes, serviços e produtos, incluindo excedentes de produção), liberdade deinformação, etc. Além disso, a própria proposta da permacultura representaessencialmente uma cooperação do homem com a natureza: “Trabalhar com anatureza, e não contra ela”.

17. Autossufciência e empoderamento local

Nossa sociedade atual é marcada pela compartimentalização de tarefas efunções, melhor expressa pelo conceito de profissão. Por esse conceito, cadaindivívduo tem praticamente a obrigação de adquirir uma habilidade especívfca,ou especializar-se em um conjunto restrito de tarefas, que desempenhará todosos dias em seu trabalho — na maioria das vezes na condição de empregado.Argumenta-se que, nessa estrutura, a função desempenhada por cada umcontribui de alguma forma para a construção e manutenção da sociedade.Geralmente, as pessoas são induzidas a escolher uma profssão, dentro de umleque de opções preestabelecidas, quando ainda bem jovens, dentro das opçõese oportunidades que se lhe são disponívveis, e visando acima de tudo ganhardinheiro para suprir suas necessidades, através do consumo de bens e serviços.Enquanto isso, os conhecimentos e habilidades mais essenciais, como produzire preparar seus próprios alimentos, são simplesmente postos de lado, caindo noesquecimento.

O considerado normal no mundo hoje é o indivívduo trabalhar o dia inteirotodos os dias em um emprego, desempenhando tarefas que não tem relaçãodireta alguma com o suprimento de suas necessidades mais primordiais ebásicas como alimentação e habitação, por exemplo. Trabalhar na frente de umcomputador em um escritório, atender clientes, vender produtos, falar aotelefone, dirigir veívculos, apertar botões, dar aulas, etc. são atividadesprofssionais comuns, e todas elas suprem as necessidades básicas do indivívduode forma indireta, através do dinheiro. Isso é o considerado normal hoje em dia.Pode parecer que tudo está bem, à medida que, realmente, dentro desse sistemaas pessoas têm suas necessidades supridas, e o mundo está aív, de pé (ainda).Porém, esse tipo de organização do trabalho traz também pelo menos doissérios problemas:

1. A falta de um sentimento de sentido naquilo que o indivívduo faz, poisdedicar-se a funções muito especívfcas e sem relação direta com o

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suprimento de necessidades básicas geralmente não é motivante, não gerauma sensação de importância, e portanto de preenchimento e satisfação.Daív a maioria das pessoas declararem que não gostam de seu trabalho,caracterizando uma insatisfação crônica que se traduz em uma baixaqualidade de vida e baixa autoestima, chegando até à depressão.

2. Uma situação de total dependência do sistema. Enquanto o sistema estiverfuncionando, e o indivívduo tiver emprego, e houver transporte einfraestruturas em geral, e comida no supermercado, estará “tudo bem”.Porém, quando essas estruturas fnalmente ruívrem, fcará clara a realsituação de fragilidade, de precariedade que essa dependência no sistemarepresenta.

Além disso, vale citar que vivemos em uma sociedade doente einsustentável, portanto praticamente todas as atividades convencionais nomercado de trabalho contribuem também direta ou indiretamente para ainsustentabilidade humana. Isso sem contar o fato que hoje muitas dasatividades e profssões simplesmente carecem de qualquer propósito ousignifcado mais profundo, são completamente supérfuas, fúteis,desnecessárias, e muitas vezes até degradantes. Esses fatores geram um confitopsicológico especialmente insuportável para aqueles que são sensívveis ao graveproblema da crise ambiental, ou que buscam algum sentido na vida.

Trabalhar para si mesmo, para sua famívlia e comunidade, para osuprimento direto das reais necessidades humanas, signifca empoderamentopessoal e coletivo, independência, liberdade e realização. Claro que éimpossívvel a um indivívduo ou pequeno grupo ser totalmente autossufciente, anão ser que se viva como os homens das cavernas. Porém, um certo grau deautossufciência é totalmente possívvel, e cheio de signifcado — viver da terra,produzindo seu próprio alimento; construir e manter sua própria casa, seussistemas energéticos e de água, etc. Trabalhar para si mesmo e para os seus éextremamente prazeroso e gratifcante, por ser provido de sentido direto eimediato, além de apresentar infnitos desafos e oportunidades de aprendizadoe desenvolvimento pessoal.

A autossufciência pode ser vista em vários nívveis, partindo do individual epassando ao coletivo (famívlia, comunidade, região). No nívvel coletivo, cooperecom seus vizinhos (Princívpio n.o 16), faça trabalhos voluntários, troquealimentos e serviços, compre produtos locais, pois com isso você estaráfortalecendo a sua comunidade, criando laços, contribuindo para aautossufciência local e regional.

Deve-se ressaltar que, ao contrário do que alguns possam imaginar, aautossufciência não signifca necessariamente viver em uma “bolha”, isolado dasociedade. É perfeitamente possívvel e de fato muito desejável desempenharfunções também na comunidade maior que nos cerca, seja no exercívcio de uma

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

profssão de forma conciliada, ou através da venda dos seus excedentes dealimentos orgânicos, por exemplo. Tal integração com a sociedade em geral éfundamental para uma convivência harmoniosa, fortalecimento de laços sociaise realização individual, além de auxiliar na expansão do movimento dapermacultura, por alcançar e inspirar mais pessoas.

18. Reavalie-ose constantemente

Uma situação tívpica é a seguinte: o indivívduo está cansado e desiludido comsua vida e os rumos do mundo. Ele conhece a permacultura e tudo ali faz totalsentido para ele, e ele percebe que aquele é o caminho a ser seguido. Passa entãoa estudar sobre o assunto, lê alguns livros, devora artigos, assiste vívdeos, talvezfaça um curso... Então, bola um plano para sua transição, e ele parece infalívvel.Ele já se imagina, daqui a um ano, talvez, em sua nova vida, autossufciente,vivendo em contato e harmonia com a natureza… Só que não é bem assim!Temos que deixar claro uma coisa: o estudo aprofundado da permacultura éabsolutamente essencial ao sucesso de seus projetos, mas nada substitui otrabalho duro e a experiência.

Você vai ver que, no começo, não importa quanto você tenha estudado e sepreparado, as coisas muitas vezes não saem como planejado, e você não terá oprogresso no ritmo rápido que você havia imaginado. Até porque, muitas dasinformações que você encontrará são exageradamente otimistas, representandoum “melhor cenário possívvel”, que não necessariamente se refetirá nas suascondições particulares.

Na permacultura, como em tudo na vida, persistência é a chave para osucesso. Ela é a principal diferença entre os que alcançam seus objetivos, e osque estão sempre morrendo na praia, ou vivem pulando de galho em galho, deum modismo para outro. Mas persistência não signifca continuar tentando tudodo mesmo jeito! Pois, obviamente, não se pode fazer a mesma coisa sempreigual e esperar resultados diferentes. Persistência signifca, portanto, continuartentando tenazmente, mas com reavaliação constante, tentando abordagensdiferentes, buscando corrigir erros, para alcançar cada vez melhores resultados.

Pare, olhe para outro lado, respire fundo. Olhe de novo para o que vemfazendo, veja o passado, o presente, compare suas expectativas com os resultadosque você vem tendo. Estão de acordo? Procure identifcar possívveis razões paraos insucessos, questione. Tente olhar para sua vida e seu projeto de outro ângulo,como se pelos olhos de outra pessoa. Aceite criticamente opiniões externas: ouçaas pessoas, experientes ou não. Muitas vezes, mesmo alguém leigo pode ter umavisão, um conhecimento ou informação, dizer uma simples coisa que pode fazeruma grande diferença, algo que você ainda não tinha pensado, e que era crucial.Tente abordagens diferentes, especialmente para o que não vem dando certo.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

Os Princívpios da Permacultura são baseados em lógica e bom senso,conhecimentos cientívfcos, observação cuidadosa da natureza e décadas deexperiência permacultural. Eles são realmente úteis, fundamentais paraalcançarmos o estilo de vida natural e sustentável que queremos, mas não sãopalavras mágicas que, decoradas ou proferidas, farão o trabalho por você, ougarantirão seu sucesso! Quando as coisas não dão certo, é preciso fazer darcerto, através da reavaliação constante, adaptação e aperfeiçoamento contívnuo.Não é que você vai descobrir que este ou aquele princívpio estava errado — namaioria das vezes você vai perceber que sua interpretação deles, da forma comoeles se traduziam na prática, estava errada. Mas claro que, conforme jámencionado, os Princívpios não são dogmas. Com a experiência, você podeadaptá-los à sua realidade; pode modifcá-los, e criar os seus próprios, etc.Compartilhe com outros. Isso é importante para a evolução e desenvolvimento, eo aperfeiçoamento da permacultura.

Para que a permacultura alcance seus objetivos na larga escala, é necessárioque ela mesma evolua, desenvolva-se, para que alcance cada vez mais pessoas, efuncione para cada vez mais pessoas. Só que ela não vai se desenvolver sozinha.A permacultura é feita por pessoas, então cabe aos permacultoresdesenvolverem-na.

Vale lembrar que a evolução, entendida como transformação ao longo dotempo, não é em si necessariamente boa. Ela pode ser boa (desenvolvimento),ou ruim (degeneração). A evolução positiva só pode ser resultado de um esforçointencional, consciente e contívnuo por parte dos atores envolvidos.

Reavaliação constante também signifca estar atento às mudanças queocorrem no mundo à nossa volta, e usá-las de forma positiva. A mudança é aúnica constante no mundo. Isso se aplica tanto ao ambiente natural como aosocial. As projeções que fazemos, sobre a crise ambiental e civilizacional, porexemplo, têm que ser constantemente revisadas, pois poderão mostrar-seinexatas, tanto para mais como para menos; novos fatores e problemas (etambém soluções) podem surgir, etc., e a forma como conduzimos nossosprojetos, e direcionamos a permacultura, deve acompanhar essa evolução doquadro geral em que estamos inseridos, tanto global como localmente.

Principais referências:

David Holmgren. Permaculture: principles and pathways beyond sustainability. HolmgrenDesign Services. 2002.

Bill Mollison; Reny Mia Slay. Introduction to permaculture. Tagari Publications. 1991.

Sepp Holzer. Sepp Holzer’s permaculture: a practical guide to small-scale, integrativefarming and gardening. Chelsea Green Publishing. 2011.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

8ÁGUA EM PERMACULTURA

A água é um recurso vital e sagrado. No entanto, tem sido extremamentemaltratada pela humanidade. Na permacultura, tratamos da água sempre com amáxima reverência e respeito.

O uso racional da água é vital para a sustentabilidade. Já seu uso irracionale irresponsável cria uma vasta gama de efeitos extremamente negativos ao meioambiente e ao próprio homem, como depleção de recursos hívdricos(abaixamento de lençóis freáticos e secamento de poços, nascentes e rios), altoconsumo energético, degradação do solo (erosão, salinização), poluição edestruição de ecossistemas aquáticos, etc.

O ciclo das águas

É impossívvel fazer um planejamento racional e efciente do uso da águasem compreender como funciona o ciclo das águas no nívvel local.

A situação tívpica é a seguinte: numa foresta, você tem o solopermanentemente protegido por múltiplas camadas de proteção: a copa dasárvores no alto, o sub-bosque numa altura intermediária e, por fm, aserrapilheira, uma camada de matéria orgânica predominantemente vegetal emdiversos estágios de decomposição que recobre o solo. Assim, o solo nunca estáexposto ao sol, permanecendo sempre úmido, possibilitando intensa atividade

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

biológica e reciclagem de nutrientes. Também está protegido do vento e doimpacto das gotas de chuva.

Quando chove, o impacto da chuva é amortecido pelo choque com asdiversas camadas de folhas e galhos das copas das árvores, arbustos, ervas eserrapilheira. Ao chegar ao solo, essa água fui muito lentamente, pois encontrainfndáveis obstáculos à sua passagem: troncos e raívzes de plantas, galhos efolhas caívdos da serrapilheira, etc. Além disso, o solo é extremamente aerado eporoso, devido à contívnua ação de agentes biológicos como minhocas, insetos eoutros animais que escavam túneis, raívzes que apodrecem, etc. Isso tudofavorece a penetração da água no solo; portanto, você tem uma enormeinfltração, e muito pouca água escorrendo pela superfívcie da terra.

Essa água que penetra no solo viaja muito lentamente para baixo; elamantém o solo úmido por longos perívodos, e ao fnal encontrará uma camadamais profunda, rochosa ou de outro modo impermeável, onde se acumula,formando uma zona de saturação, o lençol freático. No lençol freático, a águamigra a uma velocidade extremamente lenta. Onde o plano do lençol freático seencontra com o nívvel do solo, essa água afora na forma de nascentes. Ou seja, aágua das nascentes é água da chuva que caiu meses ou anos atrás, fltrada demodo lento e passivo por grandes extensões de solo, coletadas no lençol freáticoe trazidas à superfívcie da terra. Por isso, as águas de nascente são tão puras e, aomesmo tempo, muitas vezes carregadas de importantes minerais. A água dasnascentes fui, então, formando riachos e córregos, e rios que, enfm, tipicamentea levam até o mar.

Agora, nem toda a água que penetra no solo vai parar nas nascentes. Noperívodo em que está migrando pelas camadas mais superfciais do solo,mantendo pois sua umidade, parte dessa água é absorvida pelas raívzes dasplantas, sendo utilizada pelas mesmas para seu crescimento, produção emanutenção, e também transferida à atmosfera através da evapotranspiração.Nas camadas da foresta entre o nívvel do solo e a copa das árvores, essa águamantém um microclima especialmente úmido. Essa umidade também é liberadapara a troposfera acima, contribuindo signifcativamente para a manutenção daumidade relativa do ar, a formação de nuvens e, fnalmente, chuvas, reiniciandoo ciclo das águas.*

Então, vem o homem e corta as árvores, desmata aquela área para uso naagricultura, pecuária, desenvolvimento urbano, etc. O solo, antes protegido,permeável e cheio de obstáculos, agora está desnudo, ressecado, compactado

* Claro que o ciclo das águas é muito mais complexo que isso, incluindo os oceanos,geleiras, etc. Porém, para maior simplicidade, nos ateremos às partes do ciclo que ocorremno nível local, da propriedade, e sobre as quais nos é possível intervir, tendo portanto maisrelevância prática.

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pela ação de máquinas ou pisoteio pelo gado, ou impermeabilizado por casas eoutros edifívcios, pavimentação, etc. Por isso, quando chove, muito pouca águaconsegue penetrar no solo, enquanto a maior parte escorre pela superfívcie morroa baixo, diretamente em direção ao rio. O lençol freático deixa de ser abastecidoadequadamente, e vai abaixando de nívvel, levando à redução na vazão e, enfm,ao secamento das nascentes. Além disso, a cada chuva, devido às enxurradas quese formam, você tem uma elevação abrupta e destrutiva do nívvel do rio, asenchentes; o solo desprotegido passa a sofrer erosão, com perda da sua camadamais superfcial, rica em matéria orgânica e nutrientes, levando ao seuempobrecimento progressivo, e surgimento de grandes buracos, as voçorocas.Essa terra toda vai se acumular nas partes mais baixas e no leito do rio, causandoassoreamento, prejudicando a qualidade da água, o curso do rio e todo oecossistema aquático.

Quando o solo está protegido pela foresta, devido ao pequeno escorrimentosuperfcial de água, mesmo durante as chuvas o nívvel do rio permanecepraticamente inalterado. Também, em perívodos secos, o rio continua sendoabastecido pela água das nascentes, de modo que sua vazão é mantida. Emcontraste, na área desmatada, nos perívodos secos você tem uma redução daquantidade de água fuindo no rio, já que as nascentes estão com sua vazãoreduzida ou secaram de vez. Em casos extremos, o próprio rio pode secar emperívodos secos, tornando-se intermitente — só tem água quando chove.

Conforme já mencionado, as árvores contribuem para a manutenção daumidade relativa do ar, formação de nuvens e chuva pela evapotranspiração.Além disso, absorvem a energia do sol usando-a na fotossívntese, e fazem sombrano chão, refrescando o clima. Com o desmatamento, você perde essaevapotranspiração, e passa a ter uma incidência do sol sobre o chão, o asfalto econcreto, tudo isso levando a um clima muito mais quente e seco.

Observando esse quadro geral, chegamos à seguinte conclusão: em umasituação natural, de foresta preservada, todos os elementos em conjuntofuncionam como um sistema para retenção, preservação da água no local. Emcontraste, num ambiente ocupado e alterado pela atuação humana, o local setorna um sistema de drenagem da água — um sistema para mandar a água parafora da área o mais rápido possívvel. É importante ressaltar que, quando a água daenxurrada desce rio a baixo, ela já está a caminho do mar e, portanto, na práticavocê já perdeu essa água. No dia seguinte, ela não estará mais ali — terá idoembora sem desempenhar nenhuma de suas vitais funções no ambiente local.Portanto, o desmatamento causa uma diminuição da água no local e na região.

Aív, o homem precisa de água. E onde ele vai buscar? Claro, vai buscaronde é mais óbvio, onde ele sabe que tem água: no lençol freático (furandopoços), nas nascentes, rios e lagos. Assim, os recursos hívdricos sofrem

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

duplamente: não bastasse o homem causar o abaixamento do lençol freático,ainda bombeia sua água, fazendo-o abaixar ainda mais; não bastasse o homemcausar o secamento de nascentes, ainda desvia a água das que restaram para seupróprio uso; não bastasse o homem causar a redução no fuxo dos rios e nívvel delagos, ainda retira sua água para irrigação e abastecimento urbano, etc.

Assim, o homem segue furando poços cada vez mais fundos, em busca daúltima gota de água. Nascentes secando por toda parte, rios desaparecendo.Aquívferos profundos que levaram milhares de anos para se preencherem estãosendo drenados rapidamente, gerando a crise hívdrica global discutida na Parte I.

Efeitos do desmatamento sobre o ciclo das águas e o solo: reduçãoda penetração de água no solo, com abaixamento do lençol freático esecamento de nascentes; erosão do solo e assoreamento do rio; grandeoscilação no nível do rio (baixo em dias secos, enchente quando chove);redução da evapotranspiração, levando a redução do regime de chuvas.

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Com chuva

Com

flor

esta

Sem chuva

Sem

flor

esta

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

Cultivar a água

A aplicação dos princívpios da permacultura ao assunto água permite acriação de um conjunto de princívpios especívfcos em relação ao seu manejo euso. São eles:

1. A chuva é a fonte primordial de água. Capte, armazene e utilize a água da chuva.

2. Armazene a água o mais alto possívvel, faça-a percorrer o maior caminho possívvel na propriedade, desempenhando o maior número de funções benéfcas.

3. Use a água de forma consciente e econômica.

4. Promova a penetração de água no solo e a restauração do ciclo das águas.

5. Jamais polua qualquer corpo d'água.

Conforme já citado, quando usamos a água de forma irracional epredatória, causamos a sua redução progressiva. Por isso, é essencial queutilizemos esse recurso de forma racional e consciente.

A chuva é a fonte primordial de água e, no entanto, é geralmentenegligenciada ou ignorada, o que é um grave erro. A chuva é fonte abundante deágua de boa qualidade, e de fato todas as outras fontes de água doce (nascentes,rios, lagos, poços) são abastecidas pela chuva. A aparente necessidade de lançarmão de outras fontes de água que não a chuva normalmente só ocorre quando oindivívduo não fez seu dever de casa, ou seja, não está captando, armazenando ouutilizando adequadamente a água da chuva. Quando captamos e utilizamos a água da chuva, estamos aumentando suapermanência no local — uma água que seria normalmente perdida, escorridapara fora da propriedade — e fazendo-a desempenhar funções produtivas,enquanto preservamos os outros recursos hívdricos e os ecossistemas aquáticos.Ao reciclarmos a água, damos-lhe múltiplos usos, economizando-a. Porexemplo, a água com sabão da lavagem de roupas pode ser usada para lavar ochão; a água do enxágue pode ser guardada e usada para a lavagem das próximasroupas. A água do banho e da lavagem de louça pode ser coletada em bacias eusada para regar o jardim e horta, etc. O destino fnal da água deve ser sempre osolo, na forma de irrigação e ferti-irrigação, cumprindo assim algumas de suasfunções vitais, mantendo a umidade do solo, fomentando a vida e produção.

Ao favorecermos a penetração da água no solo, estamos garantindo oabastecimento do lençol freático e a permanência das nascentes. Isso pode serconseguido, em primeiro lugar, através da preservação de forestas, mas tambémfazendo reforestamentos e estabelecimento de agroforestas, etc. Além deaumentar a penetração da água no solo, isso ainda contribui com a preservaçãodo clima através do sombreamento e evapotranspiração. Ou seja, ao plantarmosárvores estamos de fato contribuindo para a restauração do ciclo das águas.

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Também nas cidades, diversas estratégias podem ser usadas nesse sentido,conforme será discutido mais adiante.

Isso tudo leva não apenas a uma preservação, mas de fato a um aumento daquantidade e qualidade da água no local. Por isso dizemos que, empermacultura, nós não apenas utilizamos a água — nós cultivamos a água.*

Para que se consiga um uso racional da água, devemos planejarcuidadosamente nossos sistemas, visando o aproveitamento máximo desserecurso, da forma mais efciente possívvel, evitando desperdívcios e gastosdesnecessários de energia. Para isso, é necessário um dimensionamentoadequado dos sistemas; planejá-los de forma que a água fua por gravidade,reduzindo ou abolindo a necessidade de bombeamento e gasto energético e, porfm, uma perfeita integração com os outros sistemas, potencializando osbenefívcios e evitando problemas como erosão, enchentes, etc.

A água é um recurso limitado, e a tendência é a situação piorarprogressivamente, devido às mudanças climáticas. Portanto, ao planejar nossossistemas, é necessário fazê-lo com um olho no futuro, preparando-se para umcenário diferente, mais difívcil que o atual. Isso signifca instituir sistemas decaptação e armazenamento maiores do que seria necessário para suprir nossasnecessidades hoje, e também construir sistemas altamente efcientes eeconômicos em seu uso de água.

Água na Zona Rural

É muito comum a noção que uma propriedade rural só terá valor ouutilidade se nela houver algum curso d'água, como rio, riacho, lago nascente.Porém, essa visão é errônea e na verdade um tanto absurda. São raros os locaisno planeta onde haja uma grande abundância de nascentes e outros cursosd'água, em grande proximidade. Assim sendo, insistir nessa ideia é o mesmo queassumir que praticamente toda a superfívcie terrestre é imprópria para a ocupaçãohumana, ou para a produção de alimentos, etc.

Todos sabemos que água é essencial. O problema é que as pessoas sóconseguem ver a água olhando para baixo, esquecendo-se completamente dafonte primordial de água: a chuva. Para ilustrar, tomemos o exemplo de umterreno com área de um hectare, em um local de ívndice pluviométrico mediano,de 800 mm/ano. Isso signifca que chovem, por ano, oito milhões de litros deágua limpa, de boa qualidade sobre esse terreno. Em muitos casos, cerca demetade dessa água deixa o terreno na forma de escorrimento superfcial, ou seja,

* O conceito de cultivar a água, e água em permacultura em geral, é discutido de formaaprofundada, brilhante e inspiradora no livro “Rainwater harvesting for drylands andbeyond”, de Brad Tancaster.

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é simplesmente perdida, sem cumprir qualquer função, quer para o homem, querpara a natureza.

Assim, fca claro que o ponto crucial na questão do abastecimento de águanão é se há uma nascente ou rio no terreno ou não, e sim a captação earmazenamento de água de chuva. Na imensa maioria dos casos, a água da chuvaseria plenamente sufciente para suprir todas as necessidades de uma propriedaderural, bastando apenas que esse recurso fosse efcientemente captado earmazenado, e utilizado de forma racional.

Há diversas estratégias possívveis para se captar, armazenar e utilizar a águade chuva em situações rurais. As principais técnicas serão abordadas a seguir.

Lagoas artifciais

A principal forma de armazenamento superfcial de água de chuva empropriedades rurais para usos diversos é na forma de lagoas artifciais. A ideia émuito simples: coleta-se a água de escorrimento superfcial (i.e. a água que corresobre a superfívcie do solo durante chuvas fortes) através de drenos escavados nosolo, que a conduzem a um reservatório impermeável escavado na terra.

Lagoas artifciais são extremamente versáteis e incrivelmente úteis. Comelas, pode-se armazenar volumes muito expressivos de água. Elas podem servir ainúmeros propósitos, tais como abastecimento doméstico, irrigação, aquacultura,criação de microclimas, paisagismo, recreação, fomento à vida selvagem, etc.

Escolha do local

A situação da lagoa dentro da propriedade e em relação à topografa dolocal é de vital importância.

Um engano comum, quando se fala de lagoas artifciais, é a pessoaimaginar que a lagoa será abastecida pela água da chuva que cai diretamentesobre a lagoa. Mas não é assim que funciona! Claro que vai chover na lagoa, masdeve-se ressaltar que a chuva que cai sobre lagoa representa uma fração irrisóriada captação de água, sendo que o importante é a captação da água deescorrimento superfcial da área do terreno situada em nívveis superiores ao dalagoa. Essa captação se faz com canais — curvas em desnível que conduzem essaágua até a lagoa. Por esse motivo, a lagoa nunca pode ser construívda no topo doum morro, devendo ser deixada sempre uma área sufciente acima da lagoa parapermitir captação efetiva de água. Essa área de captação deve ser, sempre quepossívvel, forestada.

Porém, é importante ter uma lagoa alta o sufciente para permitir seu usopor gravidade na maior área possívvel, permitindo o abastecimento da(s) casa(s),irrigação e outros usos, sem necessidade de bombeamento. Essa lagoa mais altaconterá água mais limpa, sendo indicada para os usos mais nobres, como

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abastecimento de água para a casa. Claro que você pode ter mais lagoas, tantasquantas quiser ou conseguir construir em seu terreno. As lagoas mais baixastendem a ter mais matéria orgânica e nutrientes, devido a contaminação oriundadas criações de animais e plantações, sendo mais indicadas para produção, tantovegetal como de peixes, rãs, patos, etc. e também para irrigação.

Na escolha do local da construção da lagoa, deve-se levar em consideraçãotambém outros fatores. Um deles é a topografa: locais mais ívngremes sãosempre muito mais complicados de se armazenar água. Locais com menosinclinação são mais fáceis e seguros: com menos interferência na topografa, e aum custo muito menor, você conseguirá construir lagoas muito maiores, commuito mais capacidade, evitando também riscos de rupturas e desmoronamentos.Locais rochosos devem ser sempre que possívvel evitados, por motivos óbvios.Outro fator a ser considerado é o grau de vegetação arbórea do local: deve-se,sempre que possívvel, dar preferência a locais que já tenham clareiras, de formaque você não tenha que cortar árvores para construir a lagoa.

Tamanho da lagoa

A lagoa pode ter praticamente qualquer tamanho, mas tem que comportarum volume sufciente de água para suprir as suas necessidades. Não adianta teruma lagoa muito pequena que a água acabe no meio da estação seca! Tambémtem que ser compatívvel com seu potencial de captação — não adianta ter umalagoa enorme que não enche nunca. Por isso, o tamanho da lagoa tem que serplanejado cuidadosamente. Como ponto de partida, para um projeto em pequenaescala, em um terreno com uma área de 5.000 a 25.000 m2, pode-se pensar emlagoas com cerca de 10 a 25 metros de largura e 1 a 2 metros de profundidade,com uma capacidade para 50 a 500 metros cúbicos, aproximadamente.

Construção da lagoa

Teoricamente, qualquer lagoa pode ser escavada à mão, com enxadões, páse carrinho de mão, etc. Porém, trata-se de um trabalho árduo e demorado. A nãoser que se trate de uma lagoa bem pequena, ou você tenha à sua disposição umbom número de pessoas dispostas e motivadas e não tenha pressa, o maiscomum é escavar com maquinário pesado, como retroescavadeiras, páscarregadeiras ou tratores de esteira.

Em locais bem planos, a escavação de uma lagoa produz grande quantidadede terra, que pode ser usada para aterramentos, construção, fazer barreiras deterra, ou simplesmente fazer um morro ao lado da lagoa, que pode criar umefeito paisagívstico interessante, ou ajudar a criar um microclima, servindo comobarreira contra o vento, aumentando a sombra, retendo calor do sol, etc. Claroque esses efeitos benéfcos dependem de seu posicionamento adequado, o quepor sua vez depende de planejamento cuidadoso. Já em locais de topografa

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inclinada, a escavação da lagoa não gera nenhum excedente de terra. Isso porquea terra escavada deve ser depositada na margem inferior da lagoa e compactada,formando a barragem que dará forma e capacidade à lagoa.

Lagoas de água de chuva devem ser rigorosamente impermeabilizadas, poisqualquer perda por penetração da água ou vazamentos pode signifcar uma lagoavazia no meio da estação seca.

A forma mais simples e garantida de impermeabilizar uma lagoa é com ainstalação de uma lona plástica. Lonas plásticas são 100% impermeáveis, massão fotodegradáveis, o que signifca que, se fcarem expostas à radiação solar,deterioram-se e rompem-se em questão de poucos anos. Porém, se protegidas dosol, podem durar virtualmente para sempre. Por isso, a lona plástica devereceber uma cobertura permanente de terra.

Antes da instalação da lona, o interior da lagoa deve ser adequadamentepreparado. As laterais devem ser feitas em “degraus”, com plataformas planas deno mívnimo 20 cm de largura, e taludes com inclinação máxima de 45° e alturade cerca de 45 cm. Esse formato é importante para permitir que a terrapermaneça sobre a lona, ao invés de escorrer toda para o fundo da lagoa naprimeira chuva forte.

O interior da lagoadeve ser bem compactadocom soquetes ou mesmocom os pés. Quaisquertocos ou pedras devem sercuidadosamente removi-dos, e a superfívcie internadeve fcar bem lisa, paraevitar danos ou ruptura nalona plástica.

Também, antes de se instalar a lona plástica, é necessário preparar o localonde será construívdo o canal de entrada de água. Este é uma depressão na lateralda lagoa em forma de canaleta, com dimensões e capacidade superiores às docanal de captação. Como o próprio nome já diz, é por ele que a água entrará nalagoa. O canal de entrada deve ser escavado cuidadosamente, mantendo-se opadrão de degraus, e suas bordas devem ser elevadas para ajudar a confnar ofuxo de entrada de água dentro do canal, mesmo em dias de chuva muito forte.

Preparado o interior da lagoa, procede-se à instalação da lona plástica. Hátipos de lona especívfcos para impermeabilização de lagoas, muitas vezescomercializados com o nome de “geomanta” que, embora apropriados para essefm, infelizmente costumam ser substancialmente caros. Como alternativa, pode-se usar uma lona plástica de PEAD (polietileno de alta densidade) de 200 μm deespessura, daquelas normalmente usadas para cobrir silos. Essas lonas custam

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Degraus45 cm de altura

Plataformas20 cm de largura(mín.)

Inclinação dos taludes 45° (máx.)

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

uma pequena fração do preço das geomantas e podem ser perfeitamenteefcientes, mas são mais frágeis e, por isso, requerem cuidado redobrado paraevitar rupturas, e proteção contra o sol. Além do custo, têm a vantagem deserem mais fáceis de se obter e instalar, e de representarem um consumoreduzido de plástico.

A lona deve cobrir todo o interior da lagoa, ultrapassando o limite dasmargens e o topo da barragem em cerca de 50 cm. Muitas vezes não é possívvelcobrir toda a lagoa com uma única lona plástica. Pode-se usar fta adesiva tiposilver tape para fazer emendas, bem como reparos. Deve-se cuidar para que alona fque perfeitamente ajustada ao interior da lagoa.

A lona deve ser coberta com uma camada de terra de, no mívnimo, 10 cmde espessura. Deve ser usado solo areno-argiloso, misturado com capim picado,que ajuda a estabilizar a camada de terra, evitando que escorra. Pode sernecessária a correção de acidez e fertilização da terra antes de usar para cobrir alona, pelo menos sua camada mais superfcial, para permitir o crescimento deplantas dentro e fora da água, estabilizando defnitivamente a camada de terraque protege a lona. As plantas aquáticas serão também importantes para acriação e manutenção de um ecossistema aquático equilibrado e saudável,melhorando a qualidade da água, permitindo a produção de peixes, rãs, etc. Issoé vital para evitar a proliferação de mosquitos.

O canal de entrada de água na lagoa é um ponto crívtico. Ele deve serconstruívdo com pedras e argamassa de cimento (ou, alternativamente, manilhas,canaletas de concreto, ferrocimento, etc.), de forma que comporte e conduza deforma segura a água para dentro da lagoa, sem transbordar, evitando assimqualquer erosão dentro da lagoa, com exposição da lona plástica.

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Fluxo daágua

Canal de entrada

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O excesso de água deve deixar a lagoa por um canal de saída ou dreno. Ocanal de saívda é uma parte crucial de todo armazenamento de água de chuva, edeve ser planejado, construívdo e mantido cuidadosamente.

Quando armazenamos água da chuva, nós captamos escorrimentosuperfcial de uma grande área. Em chuvas fortes, isso pode causar aconcentração de grandes volumes de água, excedendo a capacidade dearmazenamento de nosso sistema, o que signifca que ele irá transbordar. Agora,nós nunca podemos deixar que essa água “decida” por onde ela vai correr, poisela sempre decidirá correr pelo caminho mais curto, ou seja, pelas descidas maisívngremes, com imenso potencial de causar danos, especialmente na forma deerosão, além de danifcar instalações, plantações, etc.

Para evitar esse tipo de problemas, devemos conduzir a água excedente deforma suave através do terreno, até onde ela deve ir. Algumas pessoas pensamlogo em usar tubos, mas na maioria dos casos a melhor forma de conduzir essaágua é na superfívcie, através de curvas em desnívvel semelhantes às usadas paracaptação da água. O posicionamento e construção do canal de saívda devem serorientados com uso de um nívvel de mangueira, para garantir que o ponto desaívda da água seja realmente o ponto mais baixo da margem da lagoa, estando nomívnimo uns 50 cm mais baixo que a altura da barragem (ou mais, no caso delagoas grandes). Isso é crucial para evitar que a água transborde por sobre abarragem, o que causaria erosão e danos à barragem, e possivelmente até suaruptura, com graves consequências.

Os canais de saívda são feitos na forma de uma curva em desnívvel com caívdade 1 a 2%, zigue-zagueando pelo terreno, conduzindo a água suavemente até apróxima lagoa do sistema. Por fm, devem conduzir a água até uma “lagoa seca”,não impermeabilizada, onde a água poderá penetrar, indo abastecer o lençolfreático.

Canais de captação

Conforme já citado, a captação é feita através de canais, na forma decurvas em desnívvel que direcionam a água de escorrimento superfcial do solopara dentro do reservatório (lagoa). A construção dos canais é simples:começando do ponto de entrada de água na lagoa, você traça no terreno, usandoum nívvel de cavalete e estacas, uma linha sobre o solo com uma inclinação de 1 a2%, com caívda para a lagoa. A linha formada pela união dos pontos (estacas)marcará o local onde você deve escavar o canal. Você pode ter 2 canais,formando os braços direito e esquerdo da sua captação, que trarão toda a águade escorrimento superfcial da seção do morro acima dos canais, conduzindo-a àlagoa. Os canais podem ser escavados com trator ou à mão, com enxadões.

Muitas vezes, você terá em seu terreno uma grota, uma depressão linear noterreno escavada pela água da chuva onde se concentra o fuxo das enxurradas e,

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portanto, sempre que chove passa por ali um enorme volume de água. Issorepresenta claramente uma ótima oportunidade de captação de água. Porém, nãose deve nunca tentar represar a água na grota em si. Isso porque o local onde seforma a grota é sempre a porção mais ívngreme do terreno, devendo ser evitado,conforme já mencionado. Ao invés disso, você deve construir a lagoa num localde topografa mais amena, e apenas um fosso de captação na grota (ou seja, umapequena escavação e uma parede reforçada com pedras, pneus, sacos de terra,concreto, etc.), conduzindo essa água através de uma curva em desnívvel até alagoa conforme descrito acima.

Escave um pequeno fosso, talvez com 1,5 m de diâmetro por 1 m deprofundidade, ao fnal do canal de captação, logo antes da entrada na lagoa. Essefosso não deve ser impermeabilizado. Ele servirá para reter terra, areia, restosvegetais ou quaisquer materiais carregados com a água, evitando que entrem e seacumulem na lagoa. O fosso deve ser limpo periodicamente, com remoção dosmateriais retidos.

É difívcil determinar previamente com precisão o tamanho ideal dos canaisde captação, mas é bom não exagerar, pois um excesso de água trará problemas,especialmente em dias de chuva forte. O ideal é que a lagoa se encha lentamente,ao longo de várias chuvas, talvez levando alguns meses para o enchimentocompleto. Por isso, é melhor começar com uma captação modesta e observar,durante as chuvas, o fuxo da água, acompanhar o enchimento da lagoa, eampliar os canais, se necessário.

Terminada a construção da lagoa, plante grama ou de preferência váriasespécies herbáceas nativas do local na camada de terra que recobre a lonaplástica — as raívzes das plantas são a forma mais efetiva de fxar a terra no local,

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Canais decaptação

Canal de entrada

Fosso seco

Interior da lagoa

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evitando que escorra com as chuvas. Plante também plantas aquáticas, comoaguapés e taboas, etc., no interior da lagoa, uma vez que esteja cheia. Rãs epererecas virão espontaneamente habitar a lagoa, mas você também podeintroduzir peixes, pitus, etc. (falaremos um pouco sobre aquacultura no capívtulo9, “Permacultura Rural”).

Agora, um detalhe muito importante de segurança: você deve cercar bem asua lagoa, com uma boa cerca de arame ou alambrado. Isso é vital para asegurança das pessoas, pois sempre há riscos de afogamento, e também paraproteção da lagoa em si — você não vai querer um animal grande e pesadocomo uma vaca ou cavalo entrando na sua lagoa, e danifcando a lona plásticacom seus cascos! Mesmo que você não tenha esses animais, é sempre possívvelque alguém esqueça uma porteira aberta, ou os animais do seu vizinhoatravessem a cerca e entrem no seu terreno — esse tipo de ocorrência éextremamente comum na zona rural. Por isso, cerque bem sua lagoa, e vocêviverá muito mais tranquilo.

Por fm, plante árvores em volta da lagoa, para fazer sombra na água,mantendo-a fresca e evitando evaporação excessiva, e dando um efeitopaisagívstico agradável. Em climas frios, plante árvores caducifólias no ladoensolarado, permitindo que o sol aqueça a água no inverno.

Uma lagoa construída próximo à casa ou no caminho para elapode criar um efeito muito agradável

Séries de lagoas

Você pode e deve ter mais de uma lagoa na propriedade. De fato, peloprincívpio da redundância, é sempre melhor ter duas ou mais lagoas menores doque uma única lagoa enorme — assim, se você tiver algum problema com umalagoa, seu suprimento de água estará garantido.

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Começar construindo uma lagoa pequena para depois construir mais lagoastraz ainda várias outras vantagens. Você terá água mais rápido, já que uma lagoamenor é mais rápida de construir e encher. Com essa água, tudo fcará mais fácil:construir, plantar e até construir as demais lagoas. Além disso, é melhor adquirirexperiência construindo lagoas menores — você irá se aperfeiçoando e tudofuirá melhor nas lagoas subsequentes. E o custo também é fracionado, o que éuma grande vantagem. Por fm, você terá os benefívcios da lagoa espalhados peloterreno: a criação de microclimas favoráveis à produção, a possibilidade desistemas independentes de irrigação, e múltiplas oportunidades para dar usosvariados, como sistemas de aquacultura. Você também criará muitos pontos defomento à vida selvagem, fornecendo água, abrigo e alimento para animaissilvestres, aves migratórias, etc.

As diversas lagoas podem ser de formatos e tamanhos variados, de acordocom a topografa e outras qualidades do terreno, como potencial de captação deágua, espaço disponívvel, etc.

A captação de água para essas múltiplas lagoas deve ser feita em série,onde o excesso de água de uma lagoa mais alta fui para a próxima lagoa nosistema (o canal de saívda de uma lagoa é um canal de captação da próxima lagoamais abaixo).

Lagoas em série: o excesso de água de uma lagoa fui para a próximalagoa mais abaixo.

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Direção do escorrimento superficialda água da chuva

Tagoa artificial

Canal decaptação

Canal de saída

Próxima lagoa

Fosso seco

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Cisternas subterrâneas

Outra forma possívvel de se armazenar água da chuva de escorrimentosuperfcial é na forma de cisternas. Elas são econômicas em espaço e podem serespecialmente vantajosas em projetos em pequena escala, onde a área talvez nãoseja sufciente para uma lagoa. Também têm aplicação especial em locais declima muito árido, com estação seca muito prolongada, onde a evaporaçãoexcessiva em uma lagoa poderia te deixar sem água.

Cisternas são reservatórios impermeáveis de água da chuva, normalmentesubterrâneos. Em sua forma mais comum, cisternas são abastecidas por águacoletada de telhados, mas a captação também pode ser feita a partir doescorrimento superfcial do solo, através de curvas em desnívvel, como descritopara as lagoas. O fosso seco continua sendo essencial para evitar o acúmulo desujidades grossas; a partir do fosso, a água entra em um cano que a leva até acisterna. A rota de saívda também deve ser planejada: do cano de escape, a água éconduzida diretamente até a próxima cisterna, ou pelo terreno através de curvasem desnívvel. Em caso de sistemas de captação relativamente pequenos, que nãogerem riscos, o excesso de água pode ser direcionado a uma área vegetada e nãomuito ívngreme, onde possa ser absorvida ou correr sem causar erosão.

Os canos de entrada e saívda de água da cisterna devem ser guarnecidoscom telas fnas, metálicas ou de nylon, para evitar a proliferação de mosquitos etambém a entrada de pequenos animais, que morreriam na cisternacontaminando a água.

Cisternas podem ser construívdas em praticamente qualquer tamanho.Podem ser feitas de alvenaria ou materiais como plástico, fbra de vidro,ferrocimento, etc. Elas podem ser vistas como grandes caixas d’águasubterrâneas, ou piscinas cobertas com laje.

A construção de uma cisterna grande de alvenaria é uma obra séria, erequer mão de obra especializada, com experiência na construção de piscinas ououtros reservatórios profundos. Se não tomadas as devidas medidas durante aconstrução, como alicerce, colunas, reforços metálicos nas paredes,impermeabilização, etc., com a pressão da água e movimentações do solosurgirão rachaduras e vazamentos, problemas que podem ser de difívcil soluçãodepois.

Por serem subterrâneas, as cisternas mantêm a água sempre fresca.Cisternas devem ser protegidas com coberturas rívgidas, preferencialmente deconcreto, como lajes. A água deve ser protegida da incidência de luz solar, paraevitar a proliferação de algas, mas deve haver uma abertura de acesso, com portaou tampa para possibilitar a manutenção e limpeza regular.

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Armazenamento de água no solo

Conforme já foi mencionado, é fundamental que façamos tudo o queestiver ao nosso alcance para restaurar o ciclo das águas. Para isso, talvez o fatormais essencial seja aumentar a penetração de água no solo.

O solo pode ser visto como o maior reservatório de água que se pode ter.Claro que, uma vez na terra, a água não está mais visívvel ou disponívvel paramuitos de nossos usos. Porém, ela está lá, desempenhando suas funções deforma natural, e portanto nos poupando de certos trabalhos. Por exemplo,quando o solo está bastante úmido, por perívodos prolongados, isso diminui nossotrabalho e consumo de água com irrigação. Além disso, sabemos que aorestaurar o ciclo das águas estamos contribuindo ativamente para a manutenção eaumento na quantidade e qualidade de água disponívvel para humanos e todas asformas de vida, local e globalmente.

Há várias estratégias e técnicas que podem e devem ser utilizadas paraaumentar a penetração da água no solo. Todas essas técnicas têm, na verdade,dupla função, pois além de favorecerem a penetração de água também ajudamna prevenção e controle da erosão hívdrica do solo.

Reflorestamento

Certamente, a melhor forma de armazenar água no solo e preservar erestaurar o ciclo das águas é protegendo e aumentando a cobertura vegetalarbórea, ou seja, através da conservação de forestas e reforestamento.

A palavra reforestamento é muito bonita e suscita pensamentos positivos namaioria das pessoas. É comum ver pessoas, muitas vezes tidas como heróispopulares locais, gabando-se de terem plantado milhares de mudas de árvores.Porém, aqui é importante desmistifcar uma coisa: plantar mudas é fácil — odifívcil é cuidar delas e garantir que se transformem em árvores!

Nos extremos, você tem duas situações tívpicas: de um lado, você tem umasituação difívcil, de solo degradado, geralmente aquele local que foi desmatado hábastante tempo e sofreu por décadas ou séculos com a agricultura insustentável;e do outro lado, uma situação fácil, de solo ainda fértil, que foi desmatadorecentemente e ainda não foi completamente massacrado pelo homem.

Na prática, a diferença entre essas situações é a seguinte: no caso maisfácil, tudo que você plantar, cresce. Também, se não plantar nada, cresce domesmo jeito! Pois a natureza tem grande potencial de se regenerar sozinha.Então, basta deixar a área em paz que, naturalmente, daqui a uns 10 ou 20 anos,você terá ali uma jovem foresta. No caso oposto, de uma situação difívcil, anatureza já apanhou tanto do homem que seu potencial de autorregeneração estáseriamente comprometido — a fertilidade foi perdida, e você agora tem um solopobre, sem matéria orgânica ou nutrientes, e ressecado, compactado, lençolfreático esgotado, talvez problemas com salinização, etc. Não que essa área não

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possa se recuperar sozinha, mas isso pode demorar séculos ou milênios. Quandovocê tenta intervir nesse processo, por exemplo plantando mudas para acelerar arecuperação, você vê que é muito difívcil e trabalhoso ter sucesso — suas mudastêm uma grande difculdade de sobreviver e crescer, e se desenvolver, produzir,etc. Claro que isso não signifca que essas áreas devam ser abandonadas, muitopelo contrário, pois é justamente aív que está um dos maiores e mais belosdesafos da permacultura: atuar não apenas na conservação, mas também narecuperação da natureza, e ao mesmo tempo suprir as necessidades humanas.

Técnicas e estratégias para estabelecer forestas e agroforestas serãodiscutidas no capívtulo 9, “Permacultura Rural”.

Bacias em meia-olua

A bacia é uma concavidade escavada/construívda no solo ao redor de umaplanta, com capacidade para reter um certo volume de água. Esta técnica émuito útil, e de fato essencial nas fases iniciais de vida das árvores (mudas),sendo portanto vital para o sucesso em reforestamentos e estabelecimento deagroforestas. A principal fnalidade das bacias é facilitar a rega e favorecer ahidratação das plantas, pois elas retêm a água, possibilitando que penetre no solopróximo à planta, atingindo assim as raívzes com máxima efciência. Emcontraste, se você não faz uma bacia ao redor da planta, quando você regageralmente a maior parte da água escorre para longe da sua planta, sembenefciá-la — você gasta a água e o seu tempo, mas sua planta continua “comsede”. Esse é um erro muito comum.

Agora, quando se faz uma bacia relativamente grande e em formato demeia-lua, com braços de captação, ou seja, pequenas “lombadas” em desnívvelque conduzem a água de escorrimento superfcial para o centro da bacia, elapassa a funcionar também para concentrar ao redor da muda água da chuva. Seusadas em larga escala, ou seja, em grande número, bacias em meia-lua podem

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Sem bacia Com bacia

Água escorre Água fica

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aumentar signifcativamente a penetração de água no solo, evitando que escorrapara fora do terreno, servindo portanto como estratégia de fxação de água nolocal.

As bacias tambémsão muito benéfcas aárvores adultas, podendoser mantidas em pomarese agroforestas maduras.Isso porque elas nãoapenas aumentam ahidratação do solo e dasplantas, mas tambémfavorecem a fxação epenetração de nutrientes,como os provenientes daadubação, evitando quesejam carreados pelachuva e favorecendo suamáxima disponibilidadee utilização pelas plantas.

O tamanho da baciavaria principalmente de acordo com o tamanho da planta. Para mudas deárvores, uma bacia de cerca de 60 cm de largura e 10cm de profundidade, comcapacidade para cerca de 30 litros da água, pode ser sufciente. Para plantasmaiores, aumenta-se também o tamanho da bacia, para comportar até 100 ou150 litros de água. O modo de construção das bacias será descrito no capívtulo 9,“Permacultura Rural”.

Barreiras em curva de nível

Barreiras em curva de nívvel, também chamadas simplesmente de “curvasde nívvel”, são uma técnica muito empregada para aumentar a penetração de águada chuva no solo e prevenção da erosão. Elas podem ser aplicadas em qualquerescala, desde um pequeno jardim no seu quintal até fazendas inteiras.

As curvas de nívvel são barreiras lineares que, como o nome já diz, sãoconstruívdas em nívvel, ou seja, em uma dada barreira, todos os seus pontos estãono mesmo nívvel. Essas barreiras retêm a água de escorrimento superfcial dotrecho do terreno acima, impedindo-a de continuar escorrendo e permitindo queseja absorvida. Elas podem ser construívdas com ferramentas de mão comoenxadões e pás, especialmente em pequena escala, ou com maquinário pesado nocaso de grande escala, mas devem sempre ser planejadas e traçadascuidadosamente, utilizando instrumentos para garantir que sejam feitasrigorosamente em nívvel (nunca “a olho”). Para pequenas escalas, pode-se usar

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um nívvel de cavalete, pêndulo ou mangueira, enquanto em grandes escalasprefere-se o uso de teodolitos.

A barreira em curva de nívvel é composta de duas partes: o corte (canal) e oaterro, sendo que a terra proveniente da escavação do corte é usada para aconstrução do aterro, imediatamente abaixo.

As dimensões das curvas de nívvel variam em função de diversos fatores:

• Escala. Por exemplo, em um jardim, você fará pequenas lombadas de umpalmo de largura e 10 cm de altura, enquanto em uma área grande ascurvas de nívvel poderão ter mais de 1 metro de altura e 3 metros delargura).

• Tipo de solo. Solos argilosos drenam lentamente, e portanto requerembarreiras maiores e mais frequentes, enquanto solos bem drenados(arenosos) podem ter barreiras menores e mais espaçadas.

• Topografa. Quanto mais ívngreme o terreno, maior a altura e maior afrequência das barreiras (ou seja, menor a distância entre elas).

É importante ressaltar que, embora úteis, as curvas de nívvel não substituema cobertura vegetal permanente para a estabilização do solo. Não há motivo parapensar em destruir árvores por causa das curvas de nívvel — você pode construív-las preservando todas as árvores, sem qualquer problema. Já a vegetação rasteiraserá inevitavelmente destruívda no local onde será construívda a barreira, tanto ocanal como o aterro. Porém, com o tempo nova vegetação tende a se desenvolver

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corte aterro

Penetração

Água retida

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sobre as curvas de nívvel, o que é útil para a estabilização do aterro. A vegetaçãoe estrutura do solo no restante do terreno (fora das curvas de nívvel) devem serpreservadas tanto quanto possívvel.

Terraços

Esta é uma técnica milenar, utilizada por povos em diversas regiõesmontanhosas do mundo, especialmente no Sudeste Asiático e também pelosIncas na América do Sul.

A técnica do terraceamento consiste em se construir séries de plataformasem nívvel em um terreno inclinado. As plataformas causam uma redução davelocidade da água de escorrimento superfcial da chuva, favorecendo suapenetração no solo e atuando também na prevenção da erosão.

Esta é uma técnica que tem grande impacto ambiental inicial, por movergrandes quantidades de terra e interferir com a estrutura do solo e a topografa.Por isso, só deve ser utilizada em locais que não tenham uma cobertura vegetalarbórea substancial (árvores isoladas podem ser contornadas, permitindo aconstrução dos terraços). O solo fca muito susceptívvel à erosão no primeiromomento, após a construção dos terraços. Sendo assim, para evitar problemas,devem ser tomadas as medidas adequadas. Deve-se corrigir a acidez e adubar osolo como um todo na área sendo terraceada, tanto os platôs como taludes, nomomento da construção dos terraços, para possibilitar o crescimento vegetalrápido. Uma vez construívdos os terraços, deve-se plantar imediatamente espéciesvegetais rústicas e de rápido crescimento nos taludes para a estabilização dosmesmos, evitando a erosão hívdrica. Nos platôs, pode-se iniciar o cultivoimediatamente.

Assim como citado para as curvas de nívvel, também os terraços têm maiorefetividade quando associados a uma cobertura vegetal permanente, depreferência arbórea. Isso é muito importante, especialmente na estabilização dostaludes.

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Inflitração

Terraços

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Manejo de águas pluviais para controle da erosão

Como temos visto, ao promover a penetração da água no solo estamostambém prevenindo a erosão, e a maneira mais natural e efetiva de conseguirisso é através da manutenção de uma cobertura vegetal permanente no solo.

Porém, há situações em que isso não é possívvel, e o caso mais tívpico são oscaminhos, carreadores e estradas de terra. Nesses locais, a pavimentaçãoutilizando materiais e técnicas permeáveis, que possibilitam a penetração daágua e ao mesmo tempo impedem a erosão, são a solução ideal. Porém, nemsempre são viáveis economicamente.

Estradas de terra são extremamente susceptívveis à erosão, e tanto maisquanto maior for a inclinação do terreno. De fato, algum grau de erosão emestradas de terra é inevitável, e em locais de topografa acidentada, isso causasérios problemas. O problema mais óbvio do ponto de vista do usuário daestrada é que, a cada chuva forte, criam-se fendas que comprometem atrafegabilidade e segurança, enquanto do ponto de vista do gestor da via, oproblema mais óbvio são os custos de manutenção da estrada. Porém, do pontode vista ambiental, o problema são as enormes quantidades de terra que estãosendo carreadas com a chuva e indo parar nas baixadas e rios, causandoassoreamento.

Para minimizar todos esses problemas, devem-se aplicar técnicasadequadas de prevenção de erosão.

Bacias de infltração

As bacias de infltração, também chamadas de bacias de acumulação, sãocovas escavadas ao lado das estradas, a intervalos variáveis conforme anecessidade, para receber e reter a água de escorrimento superfcial da chuva.

Estradas são construívdas em perfl convexo para que a água escorra parasuas laterais. Isso reduz a erosão na área de rodagem da estrada, mas exacerba opotencial de erosão nas laterais onde corre a enxurrada. Para minimizar aerosão, deve-se impedir que essa água ganhe volume e velocidade, o que seconsegue escavando drenos que conduzem essa água para fora da estrada, paradentro das bacias de infltração. As bacias então retêm a água, possibilitando suapenetração no solo.

As bacias de infltração transformam problemas em soluções: a erosão naestrada é reduzida e o assoreamento dos rios prevenido, e você tem um aumentoda penetração da água no lençol freático. A terra (areia e argila) proveniente daerosão acumula-se nas bacias, o que implica na necessidade de manutençãoregular, ou seja, remoção dessa terra. Porém, mesmo isso tem um lado positivo:essa terra pode ser usada para reparar a própria estrada, ou outros fns comoaterramento e bioconstrução.

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Por seu porte, as bacias devem ser vistas como reservatórios temporáriosde água da chuva, e por isso devem contar com uma rota planejada detransbordamento. O melhor é que essa água excedente seja conduzida para longeda estrada, através de drenos em suave desnívvel (com uma caívda de cerca de 2%)até uma área de topografa mais plana e bem vegetada, que possa absorver oulidar com essa água sem sofrer danos. Essa água também pode ser vista comoum recurso, pois ao trazê-la para dentro do seu terreno você tem um aumento daágua disponívvel, que pode ser usada para fns produtivos.

Lombadas

Dentro da propriedade, os caminhos mais ívngremes, que ligam as partesaltas às baixas, também são muito propensos à erosão, tornando-se canais deenxurrada. Portanto, aqui também é necessário tomar medidas de prevenção daerosão. Para isso, deve-se fazer obstáculos à passagem da água na forma delombadas — ao encontrar o obstáculo, a água é forçada a deixar o caminho,passando à área vegetada ao lado, onde será absorvida ou escorrerá sem causarerosão. Essa água desviada do caminho pode ser canalizada para fns produtivos:pode-se, por exemplo, ligar a lombada a um dreno em suave desnívvel, levandoaté a bacia de uma planta, seja uma muda, arbusto ou árvore, plantada próximoao caminho. Assim, vocêprevine a erosão e rega aplanta ao mesmo tempo!

As lombadas sãoconstruívdas a intervalosvariáveis, talvez a cada 5 a10 metros, de acordo como grau de inclinação doterreno e propensão àerosão, devendo otamanho e espaçamentoser ajustado de acordocom a necessidadeobservada.

Água para a casa

Toda casa vem equipada com um ótimo sistema de captação de água dechuva — o telhado. Telhados são sempre ótimas oportunidades de captargrandes volumes de água de boa qualidade, e isso vale tanto para situações ruraiscomo urbanas. Se toda a chuva que cai sobre o telhado de uma casa ao longo do

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ano fosse coletada e armazenada, essa água sozinha seria sufciente para suprirtodas as necessidades da casa e seus moradores, na maioria dos casos. Mesmoque você tenha ótimas lagoas que possam fornecer água para a casa porgravidade, ou que você confe na companhia de abastecimento de água da suacidade, não há desculpa para desperdiçar toda essa água que você ganha depresente, literalmente do céu, todo ano.

Para captar água da chuva do telhado, você vai precisar instalar calhas, quelevarão a uma caixa d'água ou cisterna. Para começar, você pode simplesmentecolocar bombonas plásticas de 200 litros recebendo a água das calhas, ou mesmouma caixa d’água convencional, se tiver espaço na sua casa. Isso pode ser feitosem complicação ou muitos custos, e você fcará surpreso com a facilidade comque esses reservatórios se enchem, e com a qualidade da água — limpinha!Provavelmente fcará perplexo: “como eu pude desperdiçar toda essa água a vidatoda?” Você descobrirá o prazer de usar essa água para molhar suas plantas,lavar suas roupas e outros usos menos exigentes.

Porém, isso é só um começo mesmo, pois esses reservatórios improvisadossão muito pequenos perante o potencial de captação dos seus telhados. O quenormalmente acontece nessa situação é que, durante a estação chuvosa, seusreservatórios se enchem muito rapidamente, a partir do que passam atransbordar a cada chuva, ou seja, você estará perdendo a maior parte da água.Com o fm das chuvas, você rapidamente acaba com aquele volume armazenado,e seus reservatórios passarão todo o perívodo das secas vazios. Isso não é muitoracional ou efciente. Além disso, reservatórios instalados sobre o chão não sãomuito convenientes para uso — você não vai querer fcar tirando a água combaldes a vida toda.

Pelos princívpios da utilização da água, ela deve ser captada e armazenada omais alto possívvel, permitindo seu uso por gravidade. Porém, no caso dacaptação de água da chuva do telhado de uma casa, para uso na própria casa,isso geralmente não dá muito certo, pois os telhados muitas vezes não são altos osufciente, e além disso, fazer um reservatório de grande capacidade a mais dedois metros de altura do solo apresenta inúmeros inconvenientes, comodifculdade de construção, alto custo, o grande espaço que ocupa, impactoestético, etc.; portanto, temos que lançar mão de outras estratégias.

Em situações rurais, muitas vezes você tem um galpão ou garagem em umnívvel acima do da casa — uma estrutura que tem um telhado grande, com boacapacidade de captação de água de chuva, mas que consome pouca água. Nessescasos, você pode armazenar essa água em uma cisterna no local, e usá-la porgravidade para abastecimento da casa abaixo. E a água do telhado da casa, porsua vez, pode ser usada por outra casa mais abaixo, talvez por um vizinho, ouusada para irrigação, etc.

Em situações urbanas, devido principalmente à limitação de espaço,

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

normalmente a melhor estratégia é construir uma cisterna subterrânea, que podeser feita no quintal, ou mesmo debaixo da garagem. Uma cisterna comcapacidade para até uns 25 mil litros pode ser construívda, e permaneceráinvisívvel, e sem ocupar qualquer espaço! Instale uma bomba na cisterna, ligada aum pequeno painel fotovoltaico e acionada por uma boia elétrica, para mandar aágua da cisterna até uma caixa d’água instalada no telhado. A cisterna deve sercoberta com uma laje bem reforçada. Assim, você poderá guardar seu carro, outer o seu jardim em cima da cisterna, sem qualquer problema.

Agora, há uma série de cuidados que devem ser observados para que aágua da chuva possa ser aproveitada sem causar problemas.

A cisterna deve ser bem construívda, como já mencionado, para serimpermeável e resistente, para que suporte a pressão da água sem causarrachaduras e vazamentos. Também deve ser muito bem fechada e protegidacontra a entrada de mosquitos.

A água da chuva pode apresentar variados graus de contaminação porpoeira e poluição do ar, mas principalmente sujidades acumuladas no telhado ecalhas. Por isso, a primeira água deve sempre ser separada, pois é a maiscarregada de contaminantes. Para tanto, deve-se instalar um sistema deseparação da primeira água. Esse sistema deve conter um elemento fltrante paraseparar impurezas grossas, como folhas de árvores, penas e insetos; umreservatório com tampa que vede bem, um respiro para permitir a saívda de ar,uma torneira para retirar aágua, além das tubulações queconectam à calha e à cisterna.

O volume do reservatóriodo sistema de separação daprimeira água deve serproporcional ao tamanho daárea do telhado, sendorecomendada uma relação deum litro para cada metroquadrado de telhado. A águaacumulada no reservatório deveser escoada após a chuva,permitindo o esvaziamento doreservatório, deixando-o prontopara funcionar na próximachuva. Mas isso não signifcaque você tem que desperdiçaressa água! Você também podeusá-la para os mais diversosfns. Após um perívodo longo deestiagem, você perceberá que a

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Calha

Respiro

Cisternasubterrânea

Bomba

para caixad’água

Reservatório

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água da primeira chuva estará realmente suja, e ela só servirá mesmo parairrigação. Mas, na estação chuvosa, com chuvas regulares, mesmo essa primeiraágua será limpa o sufciente para outros usos, como limpeza geral e até lavagemde roupas, bastando o bom senso na avaliação da qualidade da água (aspectolívmpido).

Devido ao fato da água no interior da cisterna ser totalmente protegida daluz solar, ela normalmente não terá a tendência de desenvolver problemas comocrescimento de algas ou mau cheiro. Assim mesmo, como todo reservatório deágua, a cisterna deve ser limpa regularmente.

A água da chuva, desde que adequadamente captada e armazenada, podeser usada para todos os fns domésticos, inclusive para beber e cozinhar. Porém,antes de ser usada para consumo humano, ela deve ser devidamente sanitizada(e.g. fltragem, cloração).*

Água nas cidades

Nas cidades, a perturbação do ciclo das águas pela ação humana ocorrecom a máxima intensidade. Geralmente, mais de 90% da superfívcie do solo noscentros urbanos é impermeabilizada, com casas, edifívcios e pavimentação(asfalto e concreto), e hoje em dia não é difívcil encontrar locais com uma taxa deimpermeabilização próxima de 99%.

Os problemas decorrentes dessa impermeabilização são muitos. Nesse tipode cenário, obviamente pouquívssima água da chuva consegue penetrar no solo.Desse jeito, como o lençol freático vai sobreviver? Dentro das cidades, em locaisonde há nascentes, elas são consideradas um problema (!!), empecilhos aodesenvolvimento urbano, e por isso essas áreas são comumente aterradas,drenadas, etc., enfm, destruívdas. As poucas nascentes que sobrevivem já vêmcom água poluívda, contaminada pesadamente pelos esgotos das milhares defossas sépticas e vazamentos de redes de esgotos, que penetram no solo atéatingirem o lençol freático. Os rios são transformados em canais de enxurrada eesgotos. Por fm, são muitas vezes canalizados, estando portanto mortos esepultados.

A impermeabilização também signifca que praticamente toda a água dachuva escorrerá pela superfívcie, o que em chuvas fortes causa enxurradasviolentas que causam enchentes, danos a propriedades, perdas de vidas etransmissão de doenças de veiculação hívdrica, como leptospirose e cólera, alémdas doenças transmitidas por mosquitos, como a dengue.

Além de todos esses problemas, a impermeabilização das cidades ainda as

* Rahman, S. et al. Sustainability of rainwater harvesting system in terms of water quality.The Scientific World Journal. 2014.

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transforma em verdadeiras panelas de pressão, nas chamadas ilhas de calor. Oconcreto, asfalto e metal da cidade absorvem a radiação solar, devolvendo-a naforma de calor tanto para o ambiente interno como externo. Por isso, atemperatura no centro das cidades pode ser até 10 °C mais alta que na periferia.No verão, isso causa sérios problemas de desconforto térmico e aumento noconsumo de energia com ar condicionado, além de contribuir para oaquecimento global.

Agora, todos esses problemas podem ser resolvidos ou minimizados,através de um planejamento adequado do espaço urbano — um planejamentoque leve em consideração o solo, a água, as árvores e animais, enfm, a natureza,e não apenas o crescimento e o lucro.

Aumento da permeabilidade

Reverter a impermeabilização do solo nas cidades é essencial para apreservação dos recursos hívdricos. Isso pode ser alcançado através da adoção deum conjunto de estratégias:

• Aumento da área de parques, praças e áreas verdes na cidade.Obviamente, quanto maior a área não pavimentada, maior o potencial deabsorção de água da chuva. Nessas áreas, deve-se empregar as mesmas técnicasde retenção de água de chuva apresentadas para a zona rural, como coberturavegetal arbórea permanente, ou seja, reforestamento urbano e, por que não,agroforestas urbanas; curvas de nívvel, bacias de infltração, etc. Todas essastécnicas são compatívveis com um paisagismo urbano belívssimo, harmonioso,servindo de refúgio à vida selvagem e também à população urbana, para práticasde recreação, esporte, relaxamento, etc. Além de preservar a água, o aumento doverde nas cidades ainda as deixa mais bonitas e agradáveis, e ajuda enormementena melhoria da qualidade do ar e redução do calor.

Todos sabemos a diferença entre a sensação de caminhar dentro de umbosque ou em um estacionamento descoberto, ou a diferença entre andardescalço no verão ao meio-dia pisando no asfalto ou em um gramado. As plantasreduzem a temperatura através de diversos mecanismos: fazem sombra, evitandoo aquecimento do solo, pavimento, etc.; absorvem a radiação solar para uso nafotossívntese, e consomem calor no processo de evapotranspiração, causando umaredução da temperatura.

A arborização urbana é ainda uma excelente oportunidade de preservaçãode espécies nativas ameaçadas, que devem ser utilizadas preferencialmente.

• Aumento da permeabilidade dentro de cada lote, pelo aumento de áreasajardinadas nas casas e o resgate das hortas urbanas.

• Pavimentação permeável, pelos chamados pisos drenantes, comoelementos vazado de concreto, ou feitos a partir da reciclagem de pneus, etc.

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Pavimentos permeáveis são totalmente viáveis tanto em áreas privadas como nasvias públicas, podendo ser usados não apenas em passeios e calçadas comotambém na pavimentação das ruas.

• Aplicação de perfl coletor de água na arborização urbana, canteiros,rotatórias etc. O perfl coletor de água signifca fazer as áreas permeáveis evegetadas em um nívvel mais baixo que o da rua, e com aberturasestrategicamente planejadas na sarjeta, permitindo que a água de escorrimentosuperfcial da chuva fua a partir da rua para dentro desses espaços. Isso funcionade forma semelhante às bacias de infltração: a água acumulada nessas estruturasserá absorvida pelo solo, melhorando a hidratação das plantas, contribuindo parao lenços freático, e ao mesmo tempo reduzindo o volume da enxurrada.

Captar e utilizar água da chuva

Os sistemas descritos nas páginas anteriores, em “água para a casa”, sãototalmente aplicáveis em zonas urbanas, assim como na zona rural. E nãosomente para casas, mas também, com as devidas adaptações, a prédios,galpões, escolas, indústrias, etc. Quanto maior o telhado, maior seu potencial decaptação de água.

Estima-se que, em média, cerca de 25% da área das cidades seja ocupadapor telhados (podendo chegar a mais de 1/3 da área, em alguns locais). Se a águada chuva fosse efcientemente coletada e armazenada de todos esses telhados, jáse teria uma redução signifcativa no volume das enxurradas nas vias públicas,galerias de águas pluviais, rios, etc., o sufciente para prevenir muitas enchentes.Além disso, pense em toda a economia de águas municipais! Isso signifcaria nãoapenas grande economia, mas também menos impacto nos mananciais usadospara abastecimento urbano.

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Rua com perfil coletor de água

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Telhados verdes

Telhados verdes são coberturas em casas, prédios e outros edifívcios quecontém uma camada de terra e vegetação. Eles têm uma capacidade signifcativade retenção de água da chuva e devolução para a atmosfera porevapotranspiração. Também ajudam a diminuir a poluição, reduzir as ilhas decalor, favorecem a biodiversidade (especialmente avifauna, abelhas, etc.), alémde deixarem a cidade muito mais bonita. Eles também podem ser usados paraproduzir alimentos (horta sobre o telhado!). Telhados verdes serão abordados emmais detalhe no capívtulo 10, “A Habitação Permacultural”.

Proteção de cursos d’água

Nascentes são valiosívssimas, milagrosas fontes eternas de água pura, edevem ser tratadas com o máximo respeito e reverência, inclusive eespecialmente nas cidades! Qualquer ser extraterrestre de inteligência altamentedesenvolvida fcaria chocado com o descaso, o desprezo com que tratamos asnascentes na zona urbana, aterrando-as, canalizando-as, poluindo-as. Toda áreade nascente deveria ser tombada como patrimônio natural e, no local,estabelecido um parque ou praça, devidamente arborizada para refetir o biomalocal — um verdadeiro santuário da água e da vida selvagem. Essa área depreservação permanente deve ocupar um raio de pelo menos 50 metros ao redorda nascente.*

Não apenas nascentes, mas também outros cursos d’água, como córregos,rios e lagos, devem receber o mesmo tratamento. Séries de praças devem serconstruívdas ao longo do curso dos riachos e córregos, e parques lineares devemser instituívdos ao longo dos rios e ao redor de lagos. Esses parques linearespassarão a funcionar como corredores ecológicos**, permitindo o fuxo de animais(e, com eles, sementes, microrganismos, etc., ou seja, a biodiversidade em geral)entre os parques, praças, rios e lagos em todas as partes da cidade e além,conectando-se também com a zona rural, outras cidades, reservas naturais, etc.,tendo portanto um signifcado profundo de preservação ambiental que vai muitoalém da proteção da água.

Por fm, a pureza dos corpos d’água, subterrâneos e superfciais, deve serrestaurada e mantida a qualquer custo. Esgotos devem ser totalmente segregadosde corpos d’água — coletados em tubulações rigorosamente impermeáveis, semvazamentos, e conduzidos até estações de tratamento. Mesmo após o tratamento,os efuentes resultantes não devem ser lançados a corpos d’água, pois continuam

* Área de preservação permanente (APP) é definida como uma área com a funçãoambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, abiodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar daspopulações humanas.** Corredores ecológicos serão discutidos no capítulo 9, “Permacultura Rural”.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

substancialmente poluentes e, portanto, nocivos aos ecossistemas aquáticos. Aoinvés disso, devem ser bombeados e utilizados de forma segura para irrigação deforestas plantadas, áreas de recuperação ambiental, produção madeireira ouagroforestal (este assunto será discutido no capívtulo 11, “SaneamentoEcológico”).

É preciso parar de achar normal que rios na cidade sejam poluívdos, sujos,fétidos. Eles devem ser lívmpidos e cristalinos, envoltos por matas ciliares; cheiosde vida, peixes, aves aquáticas — locais para se apreciar, nadar, etc.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

9PERMACULTURA RURAL

A missão da permacultura é a provisão das necessidades humanas aliada àpreservação e restauração dos ambientes naturais e ecossistemas. Neste capívtulo,discutiremos técnicas para a provisão de uma das necessidades mais essenciais àvida humana: os alimentos.

Embora a permacultura se aplique a qualquer ambiente, é na zona rural quea ela pode expressar seu potencial ao máximo, no desenvolvimento de um estilode vida saudável, autossufciente e realmente integrado de forma benigna ànatureza. É na zona rural que você terá espaço para captar milhares ou milhõesde litros de água da chuva, fazer reforestamentos em larga escala, recuperarnascentes e produzir toneladas de alimentos, etc. Até mesmo coisas essenciais àpermacultura como saneamento ecológico são muitas vezes inviáveis em umcontexto urbano, por dependerem da adesão de toda a sociedade, enquantosoluções individuais (e.g. banheiro seco) são limitadas pela simples falta deespaço.

Vale lembrar que, em seus primórdios, a permacultura signifcavaagricultura permanente, e a produção de alimentos de forma sustentável eecologicamente equilibrada continua sendo seu principal aspecto, tanto pelo fatode a alimentação ser essencial à vida humana, como por ser a agriculturaconvencional a atividade humana mais impactante ao meio ambiente.

Aqui, a ideia é criar um oásis de fertilidade e abundância, onde alimentos,água e outros recursos indispensáveis (como madeira, fbras, plantas medicinais

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

etc.) sejam produzidos e estejam disponívveis contívnua e permanentemente, tantopara nós, humanos, como para as demais criaturas. Esse ideal pode ser atingidoatravés do uso racional dos recursos e disposição inteligente dos elementos, deacordo com os princívpios da permacultura. Assim, os recursos naturais sãopoupados e de fato aumentados, e alta produtividade vem acompanhada de umamelhora progressiva da qualidade do solo, quantidade e qualidade da água,biomassa e biodiversidade. Sabe aquela imagem do Jardim do Éden, onde vocêestica um braço e colhe uma fruta aqui, estica o outro e colhe outra fruta, dá doispassos e tropeça em algum legume... Pois é de algo mais ou menos assim queestamos falando — de sistemas ricos, harmoniosos e automantenedores que,uma vez estabelecidos, mantêm alta produtividade com muito pouco trabalho.Essa visão contrasta gritantemente com a agricultura convencional, caracterizadapela necessidade contívnua de trabalho intenso, pelos efeitos nocivos ao meioambiente, com redução da qualidade do solo e água, redução da biomassa ebiodiversidade (ou seja, supressão da vida em geral), alto consumo de recursos egeração de poluição, etc. Por isso dizemos que em permacultura nóstrabalhamos com a natureza, e não contra ela.

Quando tratamos de sistemas produtivos em permacultura rural, é comumnos depararmos com a pergunta: “qual a diferença entre agricultura orgânica epermacultura?” A agricultura orgânica pode ser defnida como uma forma deagricultura que não utiliza fertilizantes quívmicos, pesticidas, hormônios e outrosaditivos sintéticos, apoiando-se em técnicas como rotação de culturas, adubaçãoverde, compostagem e controle biológico de pragas para obter produtividade deforma natural, minimizando impactos negativos à saúde humana e ao meioambiente. Ou seja, a agricultura orgânica é uma abordagem conservativa, ética,naturalista à agricultura; já a permacultura é algo muito mais amplo, pois seestende a todas as atividades humanas — habitação, saneamento, manejo deresívduos, estilo de vida, relações sociais, etc.

Pode-se dizer que, no tocante à produção de alimentos, a permaculturaemprega basicamente as mesmas técnicas da agricultura orgânica. Porém,mesmo aív há algumas diferenças. Por exemplo, muitos agricultores orgânicos nãoestão preocupados se utilizam uma fonte de água para irrigação de formasustentável ou não, ou seja, talvez não captem a água da chuva e, ao invés disso,abusem de recursos hívdricos como rios ou águas subterrâneas, ou consumammuita energia para bombeamento, etc., sem ver nisso um problema. Ou talvezimportem recursos, como adubos orgânicos, a longas distâncias e a altos custosenergéticos e ambientais, ou exportem sua produção para regiões distantes, ouempreguem embalagens excessivas, etc. Todas essas práticas são comuns nouniverso da agricultura orgânica em geral, mas são consideradas reprováveis napermacultura.

Por outro lado, há práticas que não são aceitas pela maioria das associaçõescertifcadoras de orgânicos, mas são consideradas importantes na permacultura,como por exemplo o emprego de lodo de esgoto tratado como fertilizante, o que

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

é necessário para fechar o ciclo dos nutrientes, sem o que não pode haversustentabilidade.

Solos

Solos são a principal matriz produtora de alimentos para humanos,portanto é essencial que tenhamos uma boa compreensão do que eles são e comofuncionam.

O solo é uma mistura complexa de elementos: uma matriz mineralpredominante, matéria orgânica, ar, água, microrganismos, etc. Ele representa osubstrato para a vida nos ecossistemas terrestres por fornecerem suporte (umlocal para as raívzes se agarrarem, e as criaturas caminharem, etc.) e nutrientes.Também são importantes reservatórios de água e um componente vital do ciclodas águas, conforme discutido no capívtulo anterior.

Grosseiramente, o solo pode ser dividido em duas camadas: o solosuperfcial e o solo profundo. O solo superfcial é a camada mais externa do solo,normalmente com uma espessura de 5 a 20 cm. Esta é a camada que contém amaior concentração de matéria orgânica, micro e macrorganismos e nutrientes— é a porção do solo que mais fornece condições para o desenvolvimento devida, e portanto a de maior atividade biológica. Dessa forma, é essa a parte maisvital do solo para a produção de alimentos. Devido à imensa variedade deformas de vida que existem de forma inter-relacionada e interdependente, e porsuas caracterívsticas especiais, o solo superfcial deve ser visto como umecossistema à parte, e ainda assim indivisívvel do ecossistema terrestre “visívvel”,acima da linha do solo.

Além de ser a fração do solo mais importante para a produção dealimentos, a camada superfcial é também a mais delicada e susceptívvel àdestruição pela ação do homem, especialmente por práticas agrívcolasinsustentáveis.

Nossa discussão daqui para frente será focada no solo superfcial, ao qualpor simplicidade nos referiremos simplesmente por “solo”.

Como solos são formados

Posto de forma simples, solos formam-se a partir de um material originalrochoso, através da ação combinada de dois processos: intemperismo(desintegração e decomposição através de processos fívsicos, quívmicos ebiológicos) e acumulação biológica de nutrientes.

Nutrientes minerais são substâncias quívmicas necessárias aos processosbiológicos em geral e, portanto, ao crescimento e funcionamento de todas as

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formas de vida. Em geral, são contidos em concentrações pequenas em rochas eoutros materiais inorgânicos, e às vezes altamente concentrados em certos tiposde minérios. Com a desintegração e decomposição das rochas por processosfívsicos e quívmicos, como desgaste, erosão eólica, choque térmico, oxidação,redução, hidrólise, etc., esses nutrientes são liberados, passando a alguma formasolúvel ou de outro modo disponívvel para microrganismos, plantas e animais,que os absorvem e utilizam em seu metabolismo. Desta forma, os nutrientes quepassaram uma eternidade aprisionados em rochas são “liberados” esubsequentemente capturados pela “malha da vida”. A partir daív, esses nutrientespassam a ser permanentemente reciclados na biosfera: animais herbívvoros sealimentam de plantas; carnívvoros se alimentam dos herbívvoros; detritívvoros emicrorganismos se alimentam de excrementos e partes mortas em decomposiçãode outros organismos, devolvendo os nutrientes ao solo, de onde passam a serabsorvidos novamente pelas plantas, reiniciando o ciclo.

Enquanto os elementos necessários (nutrientes) são fxados na malha davida, outras substâncias também originárias do material original rochoso masdesnecessárias ou excessivas para os organismos vivos vão sendo lentamentedispersados para fora dessa zona mais ativa da biosfera terrestre, carreados pelovento, lavados pela chuva, ou lixiviados através do solo, etc. Com esse processoocorrendo de forma contívnua ao longo das eras, as substâncias essenciais(nutrientes) vão sendo acumuladas na biosfera terrestre, permitindo a expressãomáxima da vida no local. É através desse processo que o solo superfcial de umaforesta, por exemplo, acumula enorme fertilidade, que sustenta e é sustentadapela foresta e todos os organismos ali presentes, de forma contívnua, por milhõesou mesmo bilhões de anos.

Como os solos são destruídos pela agricultura

Pelo que discutimos acima, sobre como os solos são formados, deve terfcado clara uma coisa: a fertilidade não está no solo, e sim na biomassa do solo .Claro que a biomassa também faz parte do solo, mas o que isso quer dizer é queos nutrientes não estão simplesmente presentes ali, soltos, de forma solúvel namatriz mineral do solo. Se você separar a biomassa (matéria orgânica) da matrizmineral do solo de uma foresta, os nutrientes estarão na primeira, e não naúltima.

A construção da fertilidade do solo pelo processo de acumulação biológicade nutrientes ocorre de maneira tão mais efciente quanto maior for a densidadee diversidade das formas de vida no local. Isso porque diferentes espécies têmdiferentes necessidades nutricionais e, portanto, diferentes habilidades deabsorção e utilização, resultando em fxação de nutrientes. Deste modo, estandoinúmeras espécies diferentes todas juntas e em alta densidade, todos osnutrientes serão efcientemente fxados e acumulados no ecossistema terrestre.Em outras palavras, a fertilidade do solo depende da manutenção de alta

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atividade biológica, ou seja, de vida no solo e no ecossistema terrestre.

O homem destrói a fertilidade dos solos justamente por interferirnegativamente com todos os fatores essenciais à manutenção da vida efertilidade, especialmente através das práticas agrívcolas.

Cobertura

Ao derrubar forestas e instituir plantações e pastagens, estamos eliminandoa proteção que as árvores e a vegetação perene em geral ofereciam ao solo.Conforme já discutido, na foresta o solo está totalmente protegido da açãodireta do sol, do impacto da chuva, do efeito ressecante e erosivo do vento, etc.,além do fato da foresta favorecer a máxima penetração da água da chuva. Com aretirada da densa e permanente cobertura vegetal da foresta, o solo passa aabsorver bem menos água, e perdê-la bem mais, por escorrimento superfcial eevaporação direta da superfívcie, levando a uma redução dramática no nívvel dehidratação do solo que impacta todas as formas de vida. A ação direta do vento,o impacto das gotas de chuva e especialmente o escorrimento superfcial tambémpassam a causar erosão, processo onde o solo superfcial rico em nutrientes éliteralmente arrancado da área, sobrando apenas o solo mais profundo, estéril.

Estrutura

O solo não é apenas um amontoado de terra e matéria orgânica — pelocontrário, ele tem uma estrutura especívfca, saudável, que possibilita sua máximafertilidade e vida. Essa estrutura inclui principalmente dois fatores: oemaranhado de raívzes de plantas, vivas e mortas, que dão enorme sustentação eestabilidade à terra e às formas de vida ali presentes (agregação), e a adequadaporosidade, que permite a aeração e, portanto, respiração e penetração de águada chuva. Agora, na agricultura convencional, as práticas da aração e gradagemdestroem totalmente essa estrutura. Com isso, expõem-se as verdadeirasentranhas da terra à ação impiedosa do sol, do vento e da chuva, levandoinvariavelmente a uma mortandade em massa dos organismos do solo, com umaredução brutal e quase instantânea da sua biomassa e biodiversidade a cadatratamento, além de um enorme aumento na susceptibilidade à erosão

Outro fator que afeta a estrutura do solo é a compactação, que ocorredevido à aração e gradagem, tráfego de maquinário agrívcola e particularmentepelo pisoteio pelo gado. A compactação reduz a porosidade da interface entre osolo e o ar, reduzindo as trocas gasosas e asfxiando o solo, reduzindo também apenetração de água, comprometendo portanto a hidratação e aumentando atendência a erosão.

Vida

A perda de solo superfcial e, portanto, da fertilidade devida à erosãodispensa maiores explicações. Esse fator isoladamente é um dos principais

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causadores da perda de nutrientes e desertifcação ao redor do mundo. Agora,cada um dos outros eventos que causam morte de macro e microrganismos dosolo também contribui para a perda progressiva da fertilidade. Cada vez quevocê resseca o solo, ou o revolve, ou aplica pesticidas, etc. você tem umamortandade em massa dos organismos do solo — plantas, animais, fungos,microrganismos. Como sabemos, num ecossistema equilibrado e estável, hámuito poucos nutrientes disponívveis de forma solta, solúvel no solo — osnutrientes estão aprisionados dentro dos “corpos” dos organismos ali presentes, ehá uma competição intensa por esses nutrientes. Cada vez que um nutriente éliberado, por exemplo quando uma célula morre e se rompe, há sempre outrosorganismos ali presentes, seja uma bactéria ou fungo, ou a raiz de uma planta,etc. para absorver esse nutriente o mais rápido possívvel antes que outroorganismo o faça. Protegidos dentro da biomassa, os nutrientes do solo estão defato fxados no local — a chuva passa, penetra e segue pura rumo ao lençolfreático, e os nutrientes permanecem ali.

Agora, quando você tem uma abrupta redução na biomassa, commortalidade dos organismos do solo e ruptura de suas células, o que acontece é aliberação repentina dos nutrientes ali presentes, sem que haja organismos vivossufcientes para absorverem esses nutrientes que fcam, portanto, soltos no solode forma solúvel. Ora, o que acontecerá com esses nutrientes? A tendência é elesserem absorvidos novamente com a multiplicação dos organismos do solo, noprocesso de reparação natural, ou na produção agrívcola. Porém, nesse intervalode tempo em que eles estão solúveis, fcam totalmente susceptívveis a seremlavados a cada chuva, perdendo-se por escorrimento superfcial ou por lixiviação,ou seja, penetrando no solo junto com a água da chuva e indo parar no lençolfreático, e depois nos rios através das nascentes, deixando, portanto, o solo e aárea, sendo levados para longe, de forma defnitiva.

E é assim, pela combinação desses fatores, que a agricultura vemdestruindo a fertilidade dos solos e causando a desertifcação do planeta! Agora,todos esses nutrientes vão sendo carregados pelos rios e levados até os mares eoceanos, onde se acumulam, causando também enormes danos aos ecossistemas.A poluição dos ecossistemas aquáticos por nutrientes do solo causa seudesbalanço quívmico e eutrofzação, ou seja, crescimento explosivo de algasaquáticas, que consomem excessivamente o oxigênio dissolvido na água eliberam toxinas, causando a morte de peixes e outros organismos aquáticos,fenômeno que vem causando a erosão da biodiversidade aquática, extinção deinúmeras espécies, colapso de reservas pesqueiras, morte dos corais ao redor domundo, etc. A redução na biomassa do solo também implica na liberação docarbono do solo à atmosfera, sendo a degradação dos solos um das principaisfontes de emissão de gases do efeito estufa na atmosfera, conforme já citado.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Preservação dos solos

Para a sustentabilidade é imprescindívvel que adotemos práticas quepreservem a fertilidade dos solos, e para isso é fundamental que nãocontinuemos cometendo os erros da agricultura convencional descritos acima.Sendo assim, manter a cobertura vegetal permanente, preservar a estrutura dosolo e, assim, sua umidade, biomassa e biodiversidade são os elementos centraisde nossa estratégia de conservação do solo.

As principais técnicas de preservação do solo serão descritas a seguir.

Agroflorestas

Agroforestas podem ser vistas como ecossistemas forestais altamentediversifcados, projetados por humanos em maior ou menor grau, em que alémde elementos (espécies) nativos da área em questão, são incluívdos, emproporções relativamente elevadas, espécies particularmente úteis aos humanos,como alimentos, madeiras, fbras, etc. Elas são sistemas altamente integradosque imitam forestas naturais, cumprindo todas as funções e serviços ecológicosde uma foresta natural, como preservação do solo, do ciclo das águas, do clima eda biodiversidade, enquanto suprindo também as necessidades humanas.

Agroforestas têm enorme potencial para produzir diversos tipos dealimentos para humanos, especialmente frutas, nozes, castanhas, raívzes, produtosanimais, etc. Porém, a maior parte da alimentação humana atualmente consistede grãos, especialmente cereais, realidade que nasceu juntamente com aagricultura, há cerca de 10 mil anos. O problema é que grãos em geral sãoculturas anuais, não perenes, e não são efcientemente produzidos em sistemasagroforestais. Este impasse sugere que a transição para um estilo de vidasustentável deve contemplar uma mudança nos hábitos alimentares, afastando-sedos cereais e aumentando a importância de alimentos de espécies perenes, defácil produção agroforestal. Porém, isso talvez não seja possívvel ou viável emtodas as partes do mundo onde há humanos. Além disso, há que se considerar ofato que mudanças grandes de paradigma, inclusive relacionado a hábitosalimentares, levam tempo e requerem todo um processo de transição. Isso tudosignifca que temos que ter também opções de práticas agrívcolas tão sustentáveisquanto possívvel para a produção de grãos, e também hortaliças. Essas técnicas,amplamente empregadas na agricultura orgânica e também na permacultura,serão descritas a seguir.

Plantio direto

Chama-se de plantio direto a prática de plantio que dispensa orevolvimento sistemático do solo (aração e gradagem) caracterívstico daagricultura convencional. Com isso, evita-se a destruição da estrutura do solo,evitando-se portanto a erosão, perda de matéria orgânica, preservando-se sua

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aeração e capacidade de absorção de água, e sua fertilidade. A supressão vegetalnecessária ao plantio e para minimizar problemas de competição é feita deforma mecânica (corte), acima do nívvel do solo, sem interferir com suaestrutura. A aplicação de adubos também é feita sobre a superfívcie,acompanhada de medidas para evitar perdas por escorrimento, favorecendo suapenetração (por exemplo, construção de curvas de nívvel e aplicação de coberturavegetal morta).

Cobertura vegetal morta

Conforme já discutido, para que haja proteção da fertilidade do solo éimprescindívvel que o mesmo esteja permanentemente protegido da açãoagressiva das intempéries. Em outras palavras, o solo nunca deve permanecer nu.Porém, sempre que trabalhamos a terra, para plantar, por exemplo, algum graude supressão de vegetação é inevitável, até para evitar a competição feroz daservas espontâneas e permitir o crescimento de nossas plantas. Mas isso nãosignifca que tenhamos que deixar o solo descoberto — pelo contrário, devemosdeixá-lo sempre protegido, e nesses casos o fazemos pela aplicação de matériavegetal (entre outras), como cobertura do solo.

Na agricultura convencional, restos culturais e plantas daninhas, apósarrancados, são geralmente desprezados, amontoados em algum canto ou mesmoqueimados, por serem considerados estorvos ao (mau) manejo do solo e dasplantações, à mecanização, etc. Porém, em qualquer agricultura sustentável,esses restos vegetais devem ser aplicados ao solo para lhe servirem de cobertura.Isso traz vários benefívcios:

• Proteção do solo contra as intempéries, prevenindo a erosão e protegendo abiomassa e fertilidade.

• Aumento da absorção e redução da perda de água por evaporação,ajudando a manter o solo mais úmido.

• Inibição da germinação de sementes e crescimento de plantas indesejáveis(“ervas daninhas”) que poderiam comprometer o crescimento e produçãode suas plantas.

• Reciclagem de nutrientes, pois à medida que essa cobertura vegetal sedecompõe, os nutrientes são devolvidos ao solo de forma natural.

Uma coisa legal sobre a cobertura vegetal morta é que ela permite que vocêtransforme um problema em uma solução: o crescimento de plantas espontânease ervas daninhas em geral signifca que você terá trabalho em cortá-las, mastambém signifca um suprimento contívnuo de cobertura vegetal morta de solopara suas plantações.

Aparas de grama, restos de poda, restos culturais (e.g. palha de milho),ervas daninhas, etc. são as principais fontes de cobertura do solo produzidas no

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próprio terreno. Serragem e restos de madeira, provenientes de madeireiras,marcenarias e construções, palha de arroz, etc. também são comumenteempregados.

Além de material vegetal, outros tipos de material podem ser usados paracobertura do solo, cumprindo, se não todas, pelo menos algumas das funçõesacima. Esses materiais incluem pedras, papelão, tecidos (cobertores, estofados eroupas velhas), tapetes e carpetes, lonas e encerados de caminhão, toldos, etc.,couros sintéticos (corino, courvin, napa), restos de plástico de cobertura desilos, sacarias, etc., entulhos de construção, enfm, quaisquer materiais queestejam disponívveis ou possam ser captados em sua área.

Os materiais sintéticos devem ser preferencialmente reciclados, mas emalguns casos, onde não haja possibilidade de reciclagem e materiais maisnaturais não estejam disponívveis em quantidade sufciente, eles também podeme devem ser usados como cobertura de solo, por cumprirem funções benéfcasao solo e plantas. Deve-se, porém, ter o cuidado de não usar produtos contendosubstâncias tóxicas e perigosas, como venenos, solventes, substâncias corrosivase metais pesados, além de objetos cortantes (e.g. cacos de vidro), materiais queofereçam risco de contaminação biológica, etc.

Rotação de culturas

Rotação de culturas signifca a alternação de culturas diferentes em umdado local, ao invés de plantar sempre as mesmas coisas nos mesmos lugares. Ocultivo rotacionado traz duas vantagens principais:

• Preservação da fertilidade. Cada espécie vegetal utiliza com maisintensidade um certo conjunto de nutrientes. Se você ocupa uma certa árearepetidamente com a mesma espécie vegetal (monocultura), acontecemduas coisas: os nutrientes mais intensamente utilizados são depletados porsua extração, e os demais nutrientes vão se perdendo por lixiviação, pornão estarem sendo utilizados e, portanto, retidos na biomassa. Ao alternarculturas diferentes, evitam-se parcialmente esses efeitos. levando a umamaior conservação dos nutrientes no solo.

• Redução na ocorrência de doenças e pragas. Nas monoculturas, a grandedensidade e repetitividade das mesmas espécies criam condições ideaispara a proliferação, propagação e perpetuação de agentes patogênicos(fungos, vívrus, bactérias) e pragas (insetos, moluscos, etc.), que terão umsuprimento farto e contívnuo de seus alvos preferidos. Com a alternação deculturas, quebra-se essa continuidade e, consequentemente, esses ciclos detransmissão, e portanto você terá plantações mais saudáveis.

Plantio consorciado

O plantio consorciado consiste em cultivar duas ou mais espécies juntas, ouseja, em grande proximidade, na mesma área e ao mesmo tempo. Um exemplo

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clássico é o plantio de cereais ou gramívneas junto com leguminosas: porexemplo, milho com feijão-guandu, pastagens com leucena, etc.

Esta técnica pode apresentar várias vantagens, sendo que a mais óbvia éque você terá uma produção diversifcada. Muitas vezes, você terá umavantagem adicional, pelo princívpio das plantas companheiras, levando a umaumento na produção. Por exemplo, uma leguminosa (feijão-guandu)benefciando outra planta por fxar nitrogênio no solo. No caso de uma pastagemconsorciada de gramívnea com leguminosa, além da fxação de nitrogênioaumentar a produtividade geral da pastagem, ela ainda fornece umasuplementação proteica aos animais de pasto.

Outro benefívcio do plantio consorciado é que ele favorece a preservação dafertilidade do solo, de forma semelhante ao que acontece na rotação de culturas:plantas de espécies diferentes utilizam nutrientes de forma diferente, fxandoportanto esses nutrientes no ambiente de formas diferentes. Por isso, duasespécies fxam nutrientes melhor do que apenas uma.

Adubação orgânica

Adubação orgânica signifca adicionar restos orgânicos ao solo para lhefornecer nutrientes. Na verdade, isso signifca fechar o ciclo dos nutrientes — oque veio do solo deve voltar ao solo. Com isso, estamos não apenas adicionandonutrientes, mas o estamos fazendo da forma mais estável possívvel, na forma dematéria orgânica, ou seja, biomassa, encorajando sua atividade biológica, o quegarante que os nutrientes sejam fxados e continuamente reciclados no local, deforma natural.

Os principais adubos orgânicos são resívduos de origem animal,especialmente estrume, mas também outros produtos como penas, cascas deovos, conchas de moluscos, guano, etc., e composto orgânico, proveniente dacompostagem de lixo orgânico. Na verdade, alguns desses adubos, especialmenteestrumes animais, são universalmente utilizados, tanto pela agricultura orgânicacomo pela industrial, já que seu valor como fertilizante é amplamentereconhecido. Isso faz com que eles raramente sejam desperdiçados, e em muitassituações são comercializados, adquirindo o status de commodities.

Os adubos orgânicos incluem ainda os excrementos humanos, seja na formade lodo de esgoto tratado, seja na forma de composto orgânico proveniente debanheiros secos. Esse assunto será discutido em detalhes no capívtulo 11,“Saneamento Ecológico”.

Adubação verde

Chama-se de adubação verde a prática de plantio consorciado de suasplantações com diversas espécies de leguminosas, para que essas enriqueçamnutricionalmente o solo com nitrogênio.

O nitrogênio é um dos principais macronutrientes necessários ao

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desenvolvimento das plantas, e um nutriente limitante em muitos solos ao redordo mundo. Embora seja o elemento mais abundante na atmosfera e no ar querespiramos, as plantas em geral não conseguem absorvê-lo e utilizá-lodiretamente por essa fonte, devendo estar presente em outras formas quívmicasorgânicas e inorgânicas no solo para efetiva utilização pelas plantas comonutriente.

Plantas da famívlia Fabaceae (leguminosas) têm em suas raívzes nóduloscontendo bactérias diazotrófcas (fxadoras de nitrogênio), especialmente dogênero Rhizobium, que são capazes de fxar o nitrogênio atmosféricotransformando-o em formas quívmicas úteis às plantas, como amônia eaminoácidos. A adubação verde consiste de plantarem-se espécies de plantasleguminosas (por exemplo, crotalárias, guandu, mucuna, etc.) com o objetivoespecívfco de aumentar o teor de nitrogênio do solo, benefciando assim asdemais plantas que se deseja produzir. É uma forma natural, sustentável etotalmente ecológica de fornecer nitrogênio às plantas, evitando os custoseconômicos e ambientais da adubação quívmica nitrogenada, a qual é feitanormalmente com ureia agrívcola, produzida a partir de combustívveis fósseis,portanto de fontes insustentáveis, sendo ainda uma das principais causas depoluição agrívcola das águas.

Para se obterem os melhores resultados, a prática mais comum consiste noplantio sistemático das leguminosas que, após atingirem bom desenvolvimento,são ceifadas — suas raívzes se decompõem, liberando o nitrogênio ali acumuladoque benefciará então as demais plantas, enquanto a parte aérea é usada comocobertura vegetal morta. Assim, além de fornecer especifcamente o nitrogênio,a adubação verde também traz todos os outros benefívcios da cobertura vegetalmorta, descritos acima.

Recuperação de solos degradados

Muito dano já foi feito, pois, conforme visto na Parte I, cerca de 80% dossolos agrívcolas do mundo já estão degradados, e a cada dia a situação fca pior.Portanto, faz parte da missão da permacultura atuar na restauração dos solosdegradados, ajudando na recuperação dos ecossistemas e garantindo que haverácomida no futuro.

Para tanto, adotar as práticas descritas acima é imprescindívvel; porém, issosó não será sufciente, pois trata-se de medidas preventivas, sendo necessáriastambém medidas complementares de caráter curativo.

A recuperação da fertilidade do solo e dos ecossistemas em geral ocorrenaturalmente, mas ao longo de enormes perívodos de tempo, que vão de séculos amilênios. Por isso, temos que empregar todas as técnicas disponívveis parafavorecer esse processo, para que ocorra no menor tempo possívvel. Além disso,num cenário de exaustão de nutrientes do solo, quer in situ, quer nas reservas de

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fertilizantes minerais e sintéticos, associado ao aumento da população que seprojeta ainda para este século, faz-se necessário buscar a produção sustentável dealimentos também em solos degradados, de forma que eles produzam, ao mesmotempo que são recuperados.

Sequência natural

Dá se o nome de agricultura de sequência natural a práticas agrívcolas e demanejo do solo, águas e meio ambiente em geral em que se imitam as sequênciasde eventos que ocorrem no processo de regeneração natural de ecossistemas epaisagens, tomando-se medidas para preservar e estimular esses processos paraque a regeneração ocorra no menor tempo possívvel, e que ao mesmo tempo seconsiga extrair a maior produtividade possívvel da área, de forma natural.

A agricultura de sequência natural emprega todas as técnicas e práticasdescritas até agora: fxação da água no terreno e favorecimento de sua penetraçãopara evitar erosão e perda de nutrientes, aumentar a hidratação do solofavorecendo desenvolvimento de biomassa e preenchimento do lençol freático,revertendo ainda problemas como a salinização do solo (que será discutida maisadiante), e demais técnicas de preservação da fertilidade, como plantio direto,cobertura vegetal morta do solo, adubação verde, etc.

Agora, em relação à produção vegetal, as áreas degradadas representam umenorme desafo, pois os nutrientes não estão lá — foram perdidos, destruívdos,removidos por anos de práticas agrívcolas insustentáveis. Muitas vezes, adubosorgânicos não são disponívveis em quantidade sufciente na área, nem podem sertrazidos de fora de forma economicamente viável ou ambientalmenteresponsável. Mesmo a adubação verde nesses casos fca inviabilizada, por doismotivos: primeiro porque as leguminosas fornecem nitrogênio apenas — elasnão produzem outros nutrientes e, portanto, poderiam resolver apenas parte doproblema. Além disso, elas também são plantas, que requerem nutrientes e umambiente propívcio para se desenvolverem. Em um solo severamente degradado,sem nutrientes, ressecado, salinizado, etc., as espécies de leguminosascomumente utilizadas em adubação verde também não crescerão, e portanto elassozinhas não poderão ajudar em nada.

A agricultura de sequência natural parte da observação de como aregeneração ocorre na natureza. Geralmente, mesmo em áreas severamentedegradadas, alguma vegetação ainda consegue sobreviver e se desenvolver. Sãoas espécies pioneiras, que são extremamente rústicas e adaptadas a adversidadescomo falta d’água, insolação intensa, solos pobres e ácidos ou salinos, etc. Seuma área degradada é abandonada, essas espécies são as primeiras a se instalar,e começam o longo trabalho de melhorar as condições do local, fxando osnutrientes do solo, favorecendo a penetração de água, fornecendo sombreamentoparcial, fomentando a fauna, etc., tornando-o mais propívcio para outras espécies

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— as secundárias — que são um pouco mais exigentes e sensívveis, mas uma vezinstaladas passarão também a agir, favorecendo outras espécies, e assimprogressivamente até a restauração da área a um nívvel semelhante ao original.

Na agricultura de sequência natural, procuramos focar sempre nessasespécies que são adaptadas e portanto conseguem sobreviver e produzir no local.As espécies espontâneas são valorizadas e encorajadas, e outras espécies compotencial de serem úteis também são tentativamente introduzidas, visando obtero máximo de cobertura vegetal e atividade biológica possívvel na área, atuando nasua restauração.

Agora, pelos princívpios da permacultura, devemos obter um rendimento.Por isso, sempre que possívvel, temos que introduzir espécies pioneiras queproduzam algo de interesse para nós, humanos, sejam alimentos, fbras,madeiras, etc. que possamos utilizar ou vender para obter alguma renda tão logoquanto possívvel, viabilizando assim nossa própria sobrevivência e o trabalho derestauração da área. Conforme o processo de restauração evolui, podemospassar a utilizar espécies cada vez mais produtivas e exigentes.

Uma questão importante é que, em uma área degradada, os recursos sãopoucos e estão diluívdos, espalhados em uma larga área. Quando não for possívvelaumentar esses recursos rapidamente através de sua importação (discutida aseguir), é imprescindívvel que se concentrem os recursos para que se tenhasucesso. Ou seja, ao invés de plantar coisas espalhadas por todo o terreno, vocêdeve criar focos, núcleos onde os recursos serão concentrados, possibilitando ocrescimento vegetal, a atividade biológica e a produção. O primeiro recurso a serconcentrado é a água, com o uso das técnicas já descritas, como barreiras emcurvas de nívvel ou, principalmente, as bacias em meia-lua. Ao concentrar a águada chuva na bacia, você terá ali uma umidade acima da média no terreno,favorecendo o desenvolvimento vegetal. Além de água, essas estruturasacumularão também matéria orgânica, nutrientes, sementes, detritos que servirãode cobertura de solo, etc., dando as melhores condições possívveis para aprodução.

O melhor é fazer bacias amplas e rasas, com braços de captação longos quecaptem chuva de uma grande seção do relevo e a infltrem em uma área quecomporte não apenas uma, mas algumas árvores — uma pequena moita. Issoporque as plantas, ervas, arbustos e árvores, também se benefciam mutuamenteda proximidade umas com as outras — elas fornecem alguma sombra, evitandoo calor e evapotranspiração excessiva; mais plantas também mantêm o solomelhor coberto, preservando melhor a umidade. Uma moita de plantas forneceuma barreira contra o vento, etc., ou seja, também as plantas, unidas são maisfortes!

A partir do estabelecimento consolidado da vegetação em um certo núcleo,ele passa a ser capaz de se manter e tende a ir naturalmente se expandindo — as

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condições do solo, como fertilidade, estrutura e umidade, vão melhorandogradualmente, e ali forma-se um microclima mais favorável a plantas e animais,etc. À medida que o núcleo se estabelece e cresce, você deve adaptar o sistemade captação de água da chuva, favorecendo essa expansão. Quando tiver certezaque o núcleo está estabelecido frmemente e já não precisa mais de ajuda, refaçaos sistemas de captação de água de chuva, direcionando-a para novos núcleos.No longo prazo, conforme os núcleos crescem e outros são criados, eles tendema se aproximar e se fundir, e você terá enfm uma restauração da área porcompleto.

Importação de recursos

Nos casos de defciência leve a moderada de nutrientes no solo, pode serpossívvel ter uma produção substancial apenas utilizando as estratégias acimadescritas. Porém, em casos de degradação mais severa do solo, essas técnicas,mesmo em conjunto, podem ser insufcientes para se ter qualquer produção emum prazo razoável, inviabilizando seu projeto.

Uma das formas de saber a condição do seu solo é fazendo uma análiselaboratorial para determinar o teor de matéria orgânica, acidez e nívveis dosprincipais nutrientes. Mas você não precisa fazer uma análise de solo de cara. Oproblema de se partir logo de inívcio para uma análise do solo é que, tipicamente,essas análises, sua interpretação e recomendações são feitas ou coordenadas poragrônomos e outros técnicos que estão inseridos no paradigma da agriculturaindustrial. Quando você faz uma análise, quase invariavelmente elesrecomendarão a aplicação em larga escala de adubos quívmicos, pois isso é o queeles fazem. Porém, em muitas situações, isso pode não ser necessário, e vocêpoderia perfeitamente alcançar uma boa produção e recuperação da áreautilizando apenas técnicas naturais e orgânicas. Portanto, o mais indicado éseguir os princívpios da permacultura: usar soluções pequenas e lentas, captar eutilizar recursos naturais disponívveis e, enfm, utilizar tecnologiasapropriadamente, o que pode, sim, em muitos casos, incluir o emprego defertilizantes minerais.

Comece observando o que já está crescendo no seu local, pois isso daráuma indicação da qualidade do solo. Pergunte aos vizinhos, antigos donos oumoradores, pessoas que conheçam bem o terreno e a região, para obterinformações sobre o histórico de produção do terreno: o que era produzido, ecom que difculdade? O que não se conseguia produzir? Essas informações tedarão um bom ponto de partida na tomada de decisões.

Agora, será essencial você fazer seus próprios experimentos. Plante de tudoque você quer, e veja o que acontece. Será que vai crescer bem? Se crescer bem,ótimo. Caso o desempenho de suas plantas esteja abaixo do esperado, você teráque ir tentando coisas diferentes, mudar isso ou aquilo: plantar em locais

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diferentes no terreno, ou em épocas diferentes; plantar na sombra parcial, plantarno sol pleno, regar mais, tentar um tipo diferente de cobertura de solo, focarmais a adubação nesta ou naquela planta, etc. Porém, em alguns casos acabaráchegando à conclusão que não cresce praticamente nada, tipicamente numterreno que já foi muito maltratado, cortado, queimado, arado, etc. por décadas,às vezes séculos. Nesses casos, será necessário trazer recursos como nutrientesde fontes externas.

Você deve lançar mão de todas as fontes de matéria orgânica e outrasfontes de nutrientes disponívveis na sua área: estrumes animais, restos da indústriaalimentívcia e agroindústria (farinha de ossos, cascas de ovo, torta de mamona,etc.), restos de podas e aparas de grama trituradas, serragem de madeireiras emarcenarias, palha de arroz, cinzas de origem vegetal, provenientes de olarias,carvoarias, usinas de álcool, etc., composto municipal (da compostagem do lixoorgânico urbano), lodo de esgoto tratado, etc., quando disponívveis. Porém, essesrecursos devem ser obtidos de forma consciente. O ideal é focar em recursos quede outra forma seriam desperdiçados. Uma boa maneira de saber se eles seriamdesperdiçados é pelo preço: se for de graça, é sinal que não seria utilizado poroutros! Cinzas, serragem e restos de poda são recursos que são na maioria dasvezes obtidos sem custos — se você não os usar, eles serão simplesmentejogados fora e acumulados como resívduos em algum lugar, se tornando umproblema ambiental. Por isso, seu uso traz um benefívcio duplo: baixo custo eefeito ambiental positivo.

Em relação ao estrume, as situações variam bastante. Há locais em que eleé vendido, alcançando altos preços; porém, em outros casos, você pode obtergrandes quantidades de graça, bastando você se oferecer para fazer a limpeza decurrais e estábulos em fazendas de gado, haras, hívpicas, granjas, etc.

Evite trazer materiais de locais longívnquos, evitando assim os custoseconômicos e ambientais relativos ao transporte.

Um recurso vital que geralmente é possívvel você trazer para o seu terrenode graça é a água de enxurrada das estradas locais. Traga-a por curvas emdesnívvel, passando por uma ou mais bacias de infltração para separar osedimento (areia e argila), conduzindo então para dentro do seu terreno.

Tente resolver seu problema de fertilidade apenas com adubos orgânicos.Porém, em alguns casos, dependendo do tipo e grau de degradação do seu solo eda disponibilidade de adubos, pode ser que isso não seja sufciente e você tenhaque utilizar também fertilizantes minerais. Nesses casos, ao fazer suas escolhas,procure sempre fazer uma análise global dos fatores envolvidos — não apenas osrequerimentos do seu solo e a questão de custos, mas também procure escolheropções que tenham o melhor custo/benefívcio ambiental, ou seja, que além deresolverem seu problema ainda tragam o maior benefívcio ambiental com omenor dano associado possívvel.

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Adubos quívmicos se dividem grosseiramente entre minerais e sintéticos. Osminerais são geralmente oriundos de certos tipos de rochas ricas emdeterminados nutrientes, que são trituradas e submetidas a um tratamentoquívmico (por exemplo, digestão por ácido) para liberação desses nutrientes.Exemplos disso são o calcário agrívcola e o superfosfato simples. Já adubossintéticos são, como o próprio nome diz, sintetizados de forma artifcial emindústrias quívmicas. O principal exemplo é a ureia agrívcola, usada como fonte denitrogênio, que é sintetizada a partir do gás natural.

O grande problema dos fertilizantes quívmicos é que, da formaindiscriminada como são usados na agricultura industrial, associados à totaldestruição da vegetação nativa, desnudamento e desestruturação do solo, etc.,eles são rapidamente “lavados” do solo, especialmente por escorrimentosuperfcial mas também por lixiviação, atingindo os cursos d’água onde causamgrande destruição nos ecossistemas, conforme já discutido. Sendo assim, elestêm que ser reaplicados frequentemente, ou seja, são usados de formadescartável, o que agrava ainda mais seus efeitos negativos.

Porém, não tem que ser assim! Quando os utilizamos em permacultura, ofazemos de forma limitada e contida, associado a todas as práticas já descritasde preservação do solo e da vegetação, e em conjunto com suplementação dematéria orgânica. Dessa forma, os nutrientes são efetivamente fixados no localna forma de biomassa, sendo a partir daív permanentemente reciclados. Ou seja,você tem um benefívcio máximo de sua aplicação, associado a uma minimizaçãodos efeitos negativos. Os nutrientes trazidos e assim empregados sãoincorporados de forma estável e permanente no solo e no agroecossistema.

Os adubos quívmicos nitrogenados são os de pior impacto ambiental, e osmais dispensáveis, já que o nitrogênio pode ser efetivamente suplementadoatravés da adubação verde; portanto, esses jamais são usados em permacultura.Já os adubos minerais podem ser utilizados, quando não for possívvel ou viávelalcançar produção apenas com alternativas orgânicas. Há que se ter em menteque os fertilizantes minerais são oriundos de mineração e que sua extração causagrande impacto ambiental no seu local de origem, e além disso são comumentetransportados por longas distâncias, ou seja, são produtos que têm um elevadocusto ambiental. Portanto, devem ser usados de forma criteriosa, e apenas nassituações em que o benefívcio ambiental, na recuperação da sua área, vãocompensar esses custos.

Os nutrientes se dividem grosseiramente em macro e micronutrientes,dependendo de seus requerimentos pelas plantas. Macronutrientes são onitrogênio, sódio, potássio, cálcio, magnésio e enxofre, enquanto micronutrientesincluem boro, cobre, ferro, manganês, zinco, etc. Idealmente, o uso defertilizantes deve ser orientado de acordo com as necessidades do solo, conformeresultado de análise laboratorial, evitando seu uso excessivo ou desbalanceado.

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Particularidades dos trópicos úmidos

Em regiões tropicais úmidas, a abundância de sol, calor e umidade criauma situação ideal para alta produção. Porém, devido à pluviosidade elevada,há a tendência de “lavagem” dos nutrientes (perda por lixiviação) do solo e seuempobrecimento, geralmente levando também à acidifcação do solo, o queprejudica enormemente as plantas, impedindo que se desenvolvam e produzam.

Muitas vezes, um terreno tem uma cobertura vegetal substancial, masquando você tenta plantar coisas ou estabelecer uma agroforesta, por exemplo,toda muda que você planta morre ou, se não morre, tampouco se desenvolve.Você faz uma análise do solo, e ela indica acidez elevada, e que os principaisnutrientes estão muito baixos, talvez 1/10 dos nívveis normais indicados paraprodução agrívcola. Bom, isso explica porque suas plantas não crescem. Mas, porque então há tantas outras plantas no terreno? A explicação é a seguinte: asespécies de plantas variam quanto à sua tolerância à acidez, e exigência emrelação à concentração de nutrientes. Mesmo num solo degradado, ácido epobre, algumas espécies de plantas rústicas, altamente adaptadas a essascondições, ali se desenvolvem formando toda uma comunidade vegetal. É oinívcio do processo de regeneração do solo, que ocorrerá naturalmente, como jádiscutido. Só que nessa fase inicial, somente aquelas espécies altamenteadaptadas e rústicas conseguem sobreviver e se desenvolver — o queinfelizmente não inclui seus abacateiros, mangueiras, mamoeiros e a maioria dasprincipais espécies produtoras de alimentos, madeiras, etc. Daív a necessidade detratamento ou correção do solo, para permitir que se tenha uma produção acurto e médio prazo.

Em regiões úmidas, é comum encontrar solos ácidos e pobres em cálcio,magnésio, potássio, etc. Isso porque os elementos catiônicos tendem a ser maissolúveis, sendo lavados mais facilmente pela chuva, restando os elementosaniônicos, o que leva a uma redução no pH do solo.

A acidez é um sério problema para o solo, o ecossistema e a produção. Elainibe o crescimento das plantas de diversas formas: interfere com a solubilidadee disponibilidade dos nutrientes às plantas, fazendo com que eles não possam serutilizados. Também aumenta a solubilidade de elementos tóxicos, como oalumívnio, que inibe o desenvolvimento das raívzes, impedindo o crescimento daplanta e comprometendo ainda mais a absorção de nutrientes.

A agricultura desencadeia o processo de acidifcação do solo por reduzir abiomassa. Numa situação natural, conforme já discutido, os nutrientes estãopresos dentro da biomassa. Quando os organismos do ecossistema terrestre sãodestruívdos pela agricultura e se decompõem, os nutrientes passam a ser expostos,em forma solúvel no solo, permitindo então a perda dos nutrientes catiônicos porlixiviação. Então, você tem um ciclo vicioso em que a destruição da biomassaleva à perda de nutrientes e acidifcação, o que que por sua vez leva a mais perdade biomassa, e assim por diante.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

A maioria das plantas prefere solos com um pH entre 6 e 7, embora hajavariações importantes em função da espécie e região. Abaixo dessa faixa, você jácomeça a ter uma acidez tóxica para as plantas. Solos ácidos geralmente sãocorrigidos com calcário dolomívtico, composto predominantemente por óxido decálcio e óxido de magnésio, que além de corrigirem a acidez do solo ainda sãofontes de cálcio e magnésio, dois importantes nutrientes, normalmente escassosem solos degradados. Pode-se dizer que, em solos ácidos, a calagem é aadubação mais importante, pois num pH ácido, não adianta nada adicionaroutros nutrientes, já que devido à acidez as plantas continuarão incapazes deutilizá-los. Corrigindo-se a acidez do solo, elimina-se o alumívnio livre, ou seja, oalumívnio continua lá, mas em forma insolúvel, inócua para as plantas. Aquantidade de calcário a ser utilizada deve ser orientada por análise de solo, masvalores comuns giram em torno de 200 g por metro quadrado de solo, ou pormuda plantada.

O calcário agrívcola é oriundo de mineração e portanto traz um grandecusto ambiental embutido. Felizmente, há uma excelente alternativa, disponívvelem muitos locais: cinzas de madeira. Cinzas de madeira são muito ricas emcálcio, predominantemente nas formas de óxido e carbonato, tendo portantoutilidade semelhante à do calcário na correção da acidez do solo. São aindaricas em magnésio e potássio, contém quantidades menores porém importantesde fósforo, e praticamente todos os nutrientes necessários às plantas, comexceção do nitrogênio e enxofre, que são vaporizados na combustão. Não ésurpresa que as cinzas contenham nutrientes de plantas, já que a madeira nadamais é que material vegetal, portanto os nutrientes necessários ao crescimentodas árvores têm que estar lá! Cinzas podem ser obtidas em grande quantidade egeralmente de graça em olarias e cerâmicas, carvoarias, indústrias de gesso,indústrias de papel e celulose, usinas de álcool, etc. Nas cidades, pizzarias deforno a lenha podem ser fontes de cinzas úteis à permacultura urbana. Comoregra geral, você usa uma quantidade de cinzas equivalente ao dobro daquantidade que usaria de calcário, ou seja, cerca de meio quilo por metroquadrado de solo ou por muda de árvore.

Particularidades dos trópicos semiáridos

Regiões áridas e semiáridas têm sido transformadas em grandes centrosprodutores de alimentos e dado lugar ao crescimento de grandes e modernascidades, em muitas partes do mundo. Porém, esse aparente milagre operadopela nossa civilização têm sido conseguido usando estratégias insustentáveis,que incluem o desvio de cursos d’água por centenas de quilômetros e aexploração intensa e irresponsável de aquívferos profundos. Isso traz gravesconsequências ambientais: desviar água signifca que essa água passará a faltarem outro lugar — por exemplo, o Lago Tulare e muitos outros lagos e pântanos

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foram secos e seus ecossistemas totalmente destruívdos quando os cursos d’águaque os alimentavam foram desviados para uso na irrigação agrívcola eabastecimento de cidades no Vale Central da Califórnia, nos Estados Unidos.Além disso, causa enormes perdas de água por evaporação e penetração emfraturas e outros defeitos do sistema de condução. A exploração de aquívferosprofundos, que levam milhares de anos para se preencher, está levando à suarápida exaustão, e o uso dessa água, geralmente com alto teor salino, parairrigação está causando a salinização dos solos, tornando-os estéreis. Numcontexto de mudança climática, antecipa-se que os mananciais e aquedutos queabastecem esses oásis artifciais estarão entre os primeiros a secar, enquanto osaquívferos profundos já dão sinais claros de depleção, podendo suprir água porapenas algumas décadas mais. A consequência inevitável disso é que toda essaágua suprida artifcialmente está com os dias contados, e quando esses recursosfaltarem num futuro próximo, isso trará o colapso de todas essas estruturas —os desertos voltarão a ser desertos, as cidades terão que ser abandonadas, etodos esses “avanços” serão perdidos, restando apenas os danos ambientais.

O principal erro está em trazer esse monte de água de forma artifcial einsustentável, e fcar super empolgado com essa súbita abundância; as pessoasperdem a noção e começam a abusar da água, por exemplo plantando coisasque dependem de irrigação pesada, em um local de clima desértico. Isso logotraz prosperidade econômica e crescimento populacional na área, o que causauma depleção progressiva e cada vez mais rápida desses recursos hívdricos,levando ao seu colapso.

Nada disso signifca que seja impossívvel às pessoas viver e prosperar emambientes áridos. De fato, sociedades têm vivido em desertos por milhares deanos, e ambientes áridos e semiáridos têm sido o berço de inúmerascivilizações. São justamente essas sociedades que nos dão dois tipos deexemplos: aquelas que usaram os recursos hívdricos de forma sustentávelpersistiram e prosperaram por longas eras; em contraste, as que não o fzeramacabaram por perecer, muitas vezes de forma abrupta, com o colapso de seussistemas de abastecimento de água. Esses velhos erros vêm sendo cometidosatualmente em inúmeras partes do mundo, como o já citado Vale Central naCalifórnia, Israel e o Semiárido Nordestino, com consequências nefastasprevisívveis.*

Ambientes áridos e semiáridos são defnidos pela sua escassez de água, e épreciso ter em mente que essa situação tende a piorar progressivamente numcontexto de mudança climática. Portanto, temos que instituir sistemasaltamente efcientes e econômicos no uso da água, a começar pela efetivacaptação, armazenamento e utilização da água da chuva, e escolha de espéciesadequadas ao clima.

* Este assunto é discutido de forma aprofundada e brilhante no livro “Colapso – como associedades escolhem o fracasso ou o sucesso”, de Jared Diamond.

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Também aqui, assim como na zona tropical úmida, você tem uma grandediferença entre terrenos férteis e degradados, e da mesma maneira, os férteisdevem ser preservados, e os degradados, recuperados. O desmatamento é, viade regra, o fator desencadeador do processo de degradação, então a soluçãopassa necessariamente pelo reforestamento ou, de um ponto de vista maisprático, o estabelecimento de agroforestas, para restaurar o equilívbrio da área.

Porém, como fazer para que as suas mudas sobrevivam, e cresçam e setornem árvores em condições tão adversas, de escassez hívdrica e um ambienteparticularmente hostil? Aqui, mais que em qualquer outro lugar, é necessárioempregar uma estratégia de concentração de recursos.

Focos

Conforme já discutimos acima, na agricultura de sequência natural, emuma área difívcil ou severamente degradada não devemos tentar restaurar umagrande extensão de uma vez, mas sim estabelecer núcleos ou focos com váriasplantas dispostas em proximidade, onde concentraremos nossas atenções eesforços, e também os recursos. Isso é particularmente importante no caso declimas áridos e semiáridos. É importante ressaltar que uma árvore sozinha nãoserá capaz de recuperar a pequena área que ocupa; mas, ao se criar um focomais amplo, com uma área maior, talvez de uns 10 metros de diâmetro, essaárea passa a ser gradualmente recuperada. A disposição das plantas emproximidade nos focos ainda é importante para que elas se ajudemmutuamente, aumentando a taxa de sobrevivência das plantas e a velocidade doestabelecimento da vegetação naquele foco.

Água

Como aqui você tem uma estação chuvosa muito curta, com um volumeanual pequeno, e uma estação seca muito prolongada, é imprescindívvel quevocê não meça esforços para captar e armazenar toda a água da chuva que forpossívvel. Isso poderá signifcar um custo substancial, mas valerá muito a pena.Faça sistemas interligados de lagoas artifciais e grandes cisternas. Cisternas sãomais caras e geralmente têm menor capacidade, mas têm a vantagem que vocênão terá perdas de água por evaporação. Um grande volume de água será muitoimportante para manter suas plantas hidratadas e saudáveis através da irrigaçãodurante a estação seca, permitindo um estabelecimento dos núcleos muito maisrapidamente.

Claro que você não contará apenas com a rega para hidratar o seu solo:nos núcleos, você terá que usar a técnica da bacia em meia-lua — isso éessencial. Em um terreno com pouca declividade, você pode fazer o núcleotodo em apenas uma grande bacia, plana e rasa, e dentro dessa grande bacia,cada muda de árvore terá também sua pequena bacia particular, parapossibilitar uma rega efciente na estação seca. Agora, em terrenos maisinclinados, você deverá fazer várias bacias próximas umas das outras,

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acompanhando o declive, ou seja, evitando grandes interferências na topografa.Faça braços de captação de água da chuva longos, para concentrar bastante águanos seus núcleos.

Você não terá que se preocupar com irrigação durante a estação chuvosa.Porém, na longa estação seca, você terá que manter suas plantas regadas paraacelerar seu estabelecimento e o desenvolvimento de cobertura vegetalpermanente. Deve-se focar no uso de espécies arbóreas adaptadas às condiçõesclimáticas locais e resistentes à falta de água, para que elas se desenvolvam omais rápido possívvel, passando a desempenhar o seu papel regenerador doambiente. Para aumentar a efciência no uso da água, você pode usar outrasestratégias como irrigação por gotejamento (nunca por aspersão!), mas o maisvital mesmo é o uso de bacias para reter a água, e farta cobertura de solo paraevitar perdas por evaporação.

Cobertura do solo

É essencial prevenir a perda de umidade por evaporação a partir dasuperfívcie do solo. Agora, aqui, você provavelmente não terá recursos paramanter toda a sua área coberta por matéria vegetal morta, pedras ou outrosmateriais. Portanto, você terá que concentrar esses recursos nas bacias das suasplantas, dentro dos focos.

Para manter o solo coberto, você deverá lançar mão de todos os recursosque tiver disponívveis. Tipicamente, você terá uma escassez de matéria vegetalno seu terreno, então terá que usar outros recursos. Se houver pedras no terreno,essas devem ser ajuntadas e usadas para cobertura do solo nos seus focos, maselas raramente serão sufcientes. Então, geralmente você terá também queimportar recursos. As beiras de estradas geralmente são largamente poupadasda degradação do solo e salinização excessiva, já que ali não é praticadaagricultura ou irrigação, e portanto geralmente têm crescimento vegetalexuberante no perívodo das chuvas, passando a criar problemas de visibilidadena estrada, escondendo a sinalização, curvas, etc. Isso gera a necessidade decorte regular dessa vegetação, o que gera uma grande quantidade de matériavegetal morta, que você pode trazer para o seu terreno, normalmente semproblemas. Outros materiais descartados, como madeiras, papelão, plásticos,entulhos, etc., podem e devem ser empregados para garantir a mais efetivacobertura de solo possívvel, pelo menos até que se tenha uma produção sufcientede matéria vegetal no próprio terreno para usar como cobertura vegetal mortade solo, que é o natural e ideal. Com o estabelecimento dos seus focos, vocêpoderá começar a alargá-los e criar novos, expandindo a recuperação do soloprogressivamente, até cobrir toda a sua área.

Além da estratégia descrita acima, o uso de aditivos condicionadores dosolo pode ser útil ou mesmo necessário para o sucesso das suas árvores e,consequentemente, de seu trabalho de recuperação do solo. Também aqui, aadubação orgânica com esterco animal ou composto orgânico será muito

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benéfca. Porém, diferentemente dos solos ácidos tívpicos de regiões chuvosas,em solos alcalinos e salinizados (tívpicos de climas áridos) em geral não se indicaa aplicação de calcário agrívcola, e sim gesso agrívcola, composto essencialmentede sulfato de cálcio. Além de fornecer cálcio e enxofre, o gesso aumenta acapacidade de troca de cátions, reduzindo a toxicidade do sal e e alcalinidade, eaumentando a efciência de absorção de nutrientes pela planta. O gesso agrívcolaé mais solúvel e penetra mais no solo que o calcário, e por isso se distribui bemno perfl do solo, favorecendo o crescimento das raívzes e a absorção de águapela planta. O gesso e adubo orgânico podem ser misturados à terra depreenchimento das covas, no plantio das mudas. Técnicas de plantio serãodiscutidas em mais detalhes mais adiante, neste capívtulo.

Salinização

Áreas semiáridas e áridas são muitas vezes caracterizadas por uma elevadasalinidade, ou seja, alta concentração de sais no solo e águas subterrâneas. Vocêpode furar um poço e encontrar água, mas essa água muitas vezes será salobra.A diferença é que nas áreas de alta pluviosidade o sal é continuamente “lavado”do solo, sendo levado para fora da área através das nascentes e pelos rios até omar, já que não é um nutriente essencial para as plantas e, portanto, não éespecifcamente retido na malha da vida. Já nas regiões com baixo ívndice dechuvas, esse processo não ocorre com a mesma intensidade, resultando emnívveis mais elevados de sal no ambiente.

O problema da salinidade é muito mais comum em planívcies baixas.Nessas áreas, a topografa plana não favorece a drenagem de água através denascentes e rios, como ocorre nas topografas acidentadas, ou seja, você temuma certa estagnação da água no local. Sendo assim, aquele processo delavagem contívnua dos sais para fora da área não ocorre de forma efciente,resultando em sua acumulação no solo e lençol freático. Além disso,diferentemente das áreas de topografa acidentada, onde o declive favorece oescorrimento superfcial da água da chuva, em locais com topografa plana aágua naturalmente penetra no solo com grande efciência, com ou semvegetação. Portanto, aqui o lençol freático é preenchido, inevitavelmente.Então, nessas áreas tipicamente você tem uma combinação de lençol freáticoalto e salinidade.

O excesso de sal é tóxico às plantas, mas mesmo assim a zona semiáridamuitas vezes consegue desenvolver uma cobertura vegetal substancial. Issoporque a própria vegetação atua na regulação da distribuição dos sais no perfldo solo, impedindo que se concentrem nas camadas mais superfciais onde seencontram a maior parte das raívzes. Agora, as atividades humanas,especialmente o desmatamento e agricultura, causam um aumento progressivoda concentração de sais na camada superfcial do solo, num processo chamadode salinização, que então começa a comprometer a saúde e potencial produtivo

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do solo, tornando-o estéril.

A vegetação atua de diversas formas para evitar a salinização. Ela aumentaa penetração da água e ao mesmo tempo reduz a evaporação a partir dasuperfívcie do solo, por mantê-lo coberto e sombreado. Esses dois fatores juntosfazem com que que haja um fuxo predominante da água para baixo, movidopela penetração e migração da água, e esse fuxo mantém os sais nas camadasmais profundas do solo e lençol freático. Agora, as árvores atuam nadessalinização do solo por outros importantes mecanismos: árvores nativas deambientes secos são caracterizadas por terem raívzes particularmente profundas,especializadas na absorção de água. As árvores perdem umidade porevapotranspiração a partir das folhas. Ou seja, elas “puxam” a umidade dascamadas profundas do solo para lançá-la na atmosfera a partir de suas copas.Com isso, elas intensifcam o fuxo da umidade no solo para baixo, já que aágua entra por cima (penetração na superfívcie) e sai por baixo (absorção pelasraívzes), sendo conduzida internamente pelo xilema das árvores até a copa, ondehaverá a evapotranspiração. Assim, pode-se dizer que as árvores funcionamcomo verdadeiras “bombas dessalinizadoras” do solo. Não que elas removam oueliminem o sal, mas ajudam a mantê-lo nas camadas mais profundas do solo,evitando portanto que se concentre nacamada mais superfcial onde causariamaiores problemas. Por fm, árvores têmuma taxa de evapotranspiração muitomais elevada que vegetações rasteiras.Por isso, são importantes para lançar paraa atmosfera o excesso de umidadecontido no lençol freático. Em áreasbaixas e bacias fechadas que carecem dedrenagem por escoamento, é comum oacúmulo excessivo de água no solo,fazendo com que o lençol freático fquemuito alto, ou seja, com o nívvel desaturação de água muito próximo àsuperfívcie. Trata-se de um paradoxointeressante: o clima é árido ousemiárido, mas você tem o solo cheio deágua! Isso pode parecer ótimo, erealmente seria, se não fosse pelo fatodessa água ser salobra. Um lençol freáticomuito alto faz com que os sais migrempor capilaridade, junto com a água,acumulando-se na superfívcie do solo commuito mais intensidade, causandoproblemas de salinização. As árvores,

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Árvore como “bomba dessalinizadora”O equilíbrio do fluxo da água mantém os

sais distribuídos no perfil do solo

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através da evapotranspiração, consomem esse excesso de água, mantendo onívvel do lençol freático a uma distância segura da superfívcie do solo,prevenindo a salinização.

Agora, a partir do momento que você desmata a área, você perde esseimportantívssimo serviço de dessalinização prestado pelas árvores e pelavegetação em geral, causando uma elevação do nívvel do lençol freático e asubida por capilaridade dos sais para as camadas mais superfciais da terra, atéque literalmente aforem na superfívcie, que em casos mais extremos fca cobertacom uma camada visívvel de sal. Esse processo é ainda agravado de forma agudapela irrigação com águas subterrâneas salobras, prática comum da agriculturaconvencional, em que o sal, junto com a água, é lançado diretamente sobre osolo superfcial — a água então evapora, sobrando só o sal. Devido a esseprocesso, o sal passa a prejudicar asplantas, primeiro as mais sensívveis àsalinidade, que vão morrendo, deixandoapenas as mais resistentes. No fnal, nemmesmo as mais resistentes sobrevivem.Vastas áreas do planeta estão sendodesertifcadas desse modo.

Observe que, nesse tipo de situação, odesmatamento interfere de maneiradiferente, porém ainda assim negativa, nociclo hidrológico e qualidade do solo. Senas topografas acidentadas as árvorescontribuem principalmente porfavorecerem a absorção de água pelo solo epreenchimento do lençol freático, aqui, emcondições naturais, as árvores atuam na remoção por evapotranspiração doexcesso de água, prevenindo a elevação excessiva do nívvel do lençol freático efavorecendo a distribuição dos sais no perfl do solo. Ou seja, a interação entrea topografa, a pluviosidade e cobertura vegetal determina a altura do lençolfreático e a distribuição dos sais no solo através de um equilívbrio de forçasentre a quantidade de água que penetra e a quantidade que sai do solo, seja naforma de nascentes ou por evapotranspiração.

Também neste caso, a restauração da vegetação arbórea é a melhorsolução para restaurar o potencial produtivo da área. Os objetivos são amanutenção do nívvel do lençol freático a uma profundidade segura, restaurar oequilívbrio hidrodinâmico no solo e prevenir a evaporação da superfívcie(usando-se para isso técnicas de cobertura de solo). Inicialmente, deve-seutilizar espécies adaptadas a condições de salinidade e alta umidade do solo, decrescimento rápido e alta taxa de evapotranspiração, para fazer a biodrenagem

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Salinização

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da área. Variedades selecionadas de eucaliptos estão entre as espécies maisempregadas para esse fm. Gramívneas adaptadas a alta salinidade e alcalinidadepodem ser plantadas concomitantemente ao estabelecimento das árvores dabiodrenagem, possibilitando a criação de animais e retorno econômico.Algumas espécies de árvores frutívferas (e.g. goiabeiras) também têm semostrado úteis já em fazes iniciais desse processo de recuperação, porapresentarem boa tolerância às condições de alta salinidade, alcalinidade esaturação do solo. Ou seja, mesmo o plantio para recuperação da área atravésda biodrenagem pode e deve ser feito de forma diversifcada e integrada, naforma de agroforestas. Uma vez conseguida a dessalinização, e feitas asdevidas correções e adubações, terá sido restaurado o potencial produtivo dosolo, possibilitando culturas mais exigentes.

A biodrenagem é a forma mais natural e efciente de resolver problemasde salinidade e encharcamento do solo. Suas principais vantagens em relaçãoaos sistemas de drenagem artifciais (drenos subterrâneos e emissários) são:baixo custo de implantação e manutenção; perenidade do sistema, e suaconsequente valorização ao invés de depreciação ao longo do tempo;inexistência de emissários e de geração de efuentes; contribuição no sequestrode carbono atmosférico na forma de biomassa, ajudando a combater o efeitoestufa; aumento da cobertura vegetal, fomentando a fauna; atua como quebravento em sistemas agroforestais, além de proporcionar renda adicional devido àprodução de madeira, lenha, carvão, frutos, etc.* Os sistemas de biodrenagematuam ainda na restauração do ciclo das águas: a evapotranspiração contribuipara uma melhora no clima, especialmente em locais semiáridos e áridos,contribuindo para um aumento da umidade do ar, redução da amplitude térmica(ou seja, melhora do conforto térmico tanto para humanos como para ossistemas produtivos e ecossistema) e aumento do regime de chuvas — todosimportantívssimos serviços que sistemas artifciais de drenagem não prestam.

Agora, o estabelecimento das mudas para seu sistema de biodrenagemencontrará um importante obstáculo inicial, que é o alto nívvel de salinidade nosolo que pode comprometer o estabelecimento de suas mudas. Para lidar comesse problema, deve-se usar a abordagem de concentração de recursos,especialmente água, adubos e cobertura de solo, conforme descrito acima.Comece fazendo as bacias, em focos, com concentração da água da chuva ecobertura morta de solo, para “lavar” o solo nas covas, por pelo menos umaestação chuvosa, a partir do que você pode passar ao plantio das mudas. Otratamento nas covas de plantio com gesso agrívcola e matéria orgânica (estercoou composto) conforme descrito acima também pode ser útil ou necessário parao estabelecimento das mudas e árvores.

* Gheyi, H. R. et al. (eds.). Manejo da salinidade na agricultura: estudos básicos eaplicados. 2010.

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Zonas de proximidade e intensidade

Ao estabelecer um projeto de permacultura, nossos objetivos sãoestabelecer um assentamento humano altamente sustentável e harmônico, muitoprodutivo e que preserva e recupera a natureza e os ecossistemas, comrecuperação da fertilidade do solo, incremento da biodiversidade local ebiomassa. Devemos fazê-lo com alta efciência no uso de recursos, ou seja, semdesperdívcio e sem gerar resívduos poluentes. Buscamos um alto grau deindependência e autossufciência. Além disso tudo, queremos criar um ambienteque possibilite uma vida humana digna e prazerosa, com abundância e cheia designifcado. Para que tudo isso seja conseguido, é necessário um cuidadosoplanejamento, onde todos os princívpios da permacultura são habilidosamenteempregados.

Uma das técnicas centrais da permacultura que tem uma aplicaçãoparticularmente importante em assentamentos rurais é o planejamento por zonasde proximidade e intensidade, que chamamos abreviadamente de ‘zonas’.

O planejamento por zonas é um modo de organização racional dasatividades no espaço em que elementos e sistemas produtivos que requerematenção constante são posicionados mais próximos à casa, ao longo doscaminhos mais utilizados e em locais de maior permanência do permacultor,enquanto sistemas mais extensivos e de baixa manutenção são posicionadosprogressivamente mais afastados. O planejamento por zonas decorre daaplicação do princívpio da efciência energética. Com ele, consegue-se umagrande economia de tempo e energia com dessocamento e transporte demateriais, além de um maior controle de sistemas mais delicados e intensivos.

Podemos dividir uma propriedade rural em até cinco zonas:

• Zona 0: a casa (habitação permacultural).• Zona 1: o entorno imediato — horta, jardim e caminhos mais utilizados.• Zona 2: pomar e plantações anuais.• Zona 3: agroforesta manejada e criações de animais.• Zona 4: agroforesta extensiva.• Zona 5: preservação permanente (santuário ecológico).

Zona 0

A casa pode ser considerada o epicentro de um projeto permacultural,pois é normalmente o local de maior permanência e intensidade de atividadehumana em qualquer propriedade. Além de sua função primordial (abrigo), elatambém pode ser um ambiente de produção de alimentos, não importando sevocê mora na zona rural ou urbana. A casa é a nossa zona zero.

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Há várias razões para se produzirem alimentos dentro da casa. A grandeproximidade (distância virtualmente zero, daív o nome desta zona) torna omanejo extremamente efciente, quase passivo. Por isso, aqui podemosempregar sistemas altamente intensivos. Além disso, a casa também é um localonde um elemento vital se encontra de modo altamente concentrado: a água,especialmente água fertilizada (águas cinzas), que invariavelmente sãoproduzidas diariamente, fazendo desta uma zona com especial potencialprodutivo. As paredes, varandas e beirais de telhados também oferecemenormes vantagens às plantas, por fornecerem abrigo contra o vento e solexcessivo. As construções também ajudam as plantas por manterem o solo aoseu redor sempre um pouco mais úmido, já que na área que elas ocupam aperda de umidade por evaporação é impedida. Pode-se fazer um paralelo com oque acontece num ambiente natural, onde o local ao redor de uma grande rochaé sempre mais propívcio para o crescimento de plantas, justamente por essesmotivos.

Claro que na zona rural, devido à grande disponibilidade de espaço, omaior potencial para produção de alimentos fca fora da casa, e isso faz comque muitas pessoas achem estranha a ideia de produzir alimentos dentro daprópria casa, na zona rural. Porém, há vários motivos para isso! Por exemplo,pelo simples gosto de ter sempre lindas plantas produzindo alimentos dentro desua própria casa, e nos canteiros de suas janelas, criando um ambiente internobonito, rico e agradável. Isso tem tudo a ver com o estio de vida dapermacultura! Além disso, talvez você ou alguém na casa tenha algumalimitação fívsica que difculte o trabalho ou mesmo o acesso ao exterior da casa eas outras zonas. Pessoas nessas condições podem fazer da zona zero seudomívnio, e se surpreenderão com quanta coisa se pode produzir, tanto emtermos de alimentos como remédios naturais, aromas e beleza, dentro daprópria casa, ao alcance de suas mãos, e com mívnimo esforço.

Ainda assim, é justo reconhecer que o conceito de zona zero é maisessencial no contexto da permacultura urbana, devido à limitação de espaçoexterno caracterívstica de situações urbanas. Por isso, deixaremos para discutir azona zero em mais detalhes no capívtulo 13, “Permacultura Urbana”.

Zona 1

Depois da casa, a zona um é aquela mais próxima de você: aquela parte doseu terreno por onde você passa todos os dias, o tempo todo — a área com aqual você tem máxima intimidade. Ela começa bem na porta da sua casa.

É bom esclarecer que as zonas não são espaços circulares concêntricos, oude outro modo geometricamente regulares ou fsicamente delimitados — pelocontrário, são conceitos bastante abstratos e com formas e tamanhosindefnidos, a não ser pelos critérios já citados, que são a proximidade e

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intensidade da presença humana, que deve se refetir também na intensidade dautilização e cuidado. Assim, não apenas a área ao redor da casa, mas também aolongo dos caminhos mais utilizados, constituem a zona um. Por exemplo, ocaminho de acesso entre a casa e a estrada, ou entre a casa e o galpão deordenha, ou aquela torneira no jardim, podem ser todos tratados como zona um.Por outro lado, talvez haja um ponto atrás da sua casa, bem embaixo daquelajanela, um local onde você raramente vai, embora seja muito próximo. Esselocal não será zona um.

Devido à grande proximidade e sua presença constante, esta zona é idealpara a produção de alimentos que exigem maior atenção e cuidado, e tambémaquelas coisas que necessitamos o tempo todo. Por isso a zona um é o localideal para a sua horta.

Hortaliças exigem cuidados diários, muito frequentes. Elas têm que serregadas todos os dias, às vezes duas vezes por dia, dependendo do sol, calor eumidade do ar. Também têm que ser replantadas a cada ciclo (no caso dasespécies anuais), e receber cuidados de manejo, como controle de espéciesindesejáveis, adubação, cobertura de solo, etc. Além do mais, hortas propiciamcolheitas diárias, para as suas saladas, sopas, temperos, etc.

Por isso tudo, é uma escolha extremamente irracional (e que muitaspessoas fazem o tempo todo) querer fazer uma horta a dezenas ou mesmocentenas de metros de distância da casa! Isso implica em várias coisas: umenorme desperdívcio de tempo e energia para ir e voltar da horta toda vez, elevar e trazer materiais, como composto, palha, sua colheita, etc. Além disso,faz com que sua horta não receba a devida atenção, simplesmente por não estarna sua vista. Num dia muito quente e seco, suas verduras podem murchar esecar antes que você se dê conta; ou então, quando houver um ataque de pragascomo formigas cortadeiras, por exemplo, talvez você só perceba depois que umgrande estrago já foi feito. Outra coisa que geralmente acaba acontecendo éque você muitas vezes simplesmente deixará de saborear uma deliciosa verdurafresquinha, ou de adicionar um tempero ao seu prato, como limão ou salsinhaou alecrim, simplesmente porque a horta está muito longe, e você está compressa, ou com preguiça de ir até lá porque o sol está muito quente, ou estáchovendo, etc. Por isso tudo, fazer a horta bem próximo à casa, na zona um,não apenas aumenta sua produção como ainda facilita e melhora a sua vida.

Outra grande vantagem de se fazer a horta bem próximo à casa é que acasa é um local de consumo contívnuo de água — e produção contívnua de águacinza. Água em abundância é um fator crucial para a produção de hortaliças, e aágua cinza é carregada de matéria orgânica e nutrientes, portanto ela pode edeve ser utilizada na ferti-irrigação da horta na zona um. Isso signifca altaprodutividade aliada a economia de água, sem geração de resívduos.Infelizmente, em muitas propriedades rurais as pessoas consomem enormequantidade de água limpa para a horta, enquanto lançam sua água servida no

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córrego ou ribeirão próximo, ou em um sumidouro, desperdiçando assim a águae os nutrientes e, ao mesmo tempo, causando poluição nos cursos d’água elençol freático — tudo errado! Conforme discutiremos no capívtulo 11(“Saneamento Ecológico”), a água cinza de pias, banho e lavagem de roupa elouça é segura para o solo e ecossistemas terrestres, onde funciona ao mesmotempo como água e adubo, mas essa mesma água cinza é terrivelmente nocivapara os ecossistemas aquáticos, onde representa poluição. Por isso, águas cinzasdevem ser usadas em sistemas de ferti-irrigação superfcial ou subsuperfcial,garantindo máxima produtividade com segurança tanto do ponto de vista desaúde humana como ambiental, sem jamais ser lançada a corpos d'água.

A zona um deve preferencialmente ser mantida livre de árvores grandes,pois além do risco de queda sobre a casa também fazem muita sobra queimpede a produção efciente de hortaliças. Porém, é um ótimo local parapequenas árvores a arbustos, seja por sua beleza (valor ornamental, fores), oupor produzir alimentos. Limoeiros, mamoeiros, macieiras e parreiras, porexemplo, são bem-vindas na zona um. Plante também fores próximas oumisturadas às suas verduras, que darão beleza e ajudarão a confundir e afastaralgumas pragas. Ao longo de seus caminhos diários, plante verduras, cercasvivas e arbustos de espécies comestívveis ou frutívferas, e que deem lindas fores— hibiscos e ora-pro-nobis, por exemplo. Não há nada mais agradável quecolher a verdura do almoço sem sequer ter que sair do caminho, ou chegar emcasa com a sacola cheia de frutas que você colheu enquanto caminhava!

Há uma grande variedade de técnicas que podem ser empregadas em umahorta em pequena escala com alta efciência. Muitas pessoas gostam do sistemade canteiros elevados, que podem ser construívdos com troncos, pedras oublocos, ou mesmo com paredes de cob, e preenchidos com terra adubada paraplantio. Os canteiros devem ser feitos em nívvel, e as paredes do canteiro devemser mais altas que a terra de plantio, pois isso facilita a irrigação, permitindoque a água se espalhe homogeneamente e penetre na terra sem escorrer parafora. Além disso, devem ser sempre cobertos com matéria vegetal morta, quepreserva a umidade do solo, isso tudo resultando em maior efciência no uso deágua.

Outra opção são os canteiros rebaixados — trincheiras rasas, de cerca de10 cm de profundidade e 60 cm de largura, onde são plantadas as verduras. Porserem mais baixas, mantêm-se úmidas por muito mais tempo, enquanto oscaminhos, por serem elevados, estão sempre secos, mesmo após a irrigação ouchuvas.

Porções do terreno relativamente ívngremes devem preferencialmente serdeixadas com uma cobertura vegetal permanente para prevenção da erosão.Porém, mesmo essas áreas podem ser usadas para produção, desde queempregadas técnicas adequadas, como o terraceamento. O terraceamento

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consiste em se construir plataformas em nívvel, que podem ser reforçadas comparedes de pedras, se necessário.

Há várias formas de se utilizar a água cinza para irrigação, que podem seraplicadas isoladamente ou em conjunto. Um sistema simples de ferti-irrigaçãopassiva consiste em se fazer um dreno em desnívvel, com uma caívda de cerca de2%, percorrendo o terreno abaixo da casa em zigue-zague. Você podesimplesmente plantar suas hortaliças em ambas as margens desse dreno — elasse manterão sempre irrigadas e fertilizadas pela água cinza, sem encharcar. Odreno deve ser limpo regularmente para remoção de excesso de matériaorgânica, e esse material pode ser compostado, retornando depois como adubopara a própria horta.

Outra técnica é passar a água cinza por um fltro simples — um tamborcheio de serragem, por exemplo — e depois armazená-la em um tanque parauso em irrigação no momento desejado. O tanque deve ser esvaziado todos osdias (toda a água sendo usada na irrigação) e lavado regularmente, pois oacúmulo prolongado pode causar mau cheiro. A serragem do fltro, quandosaturada de matéria orgânica, deve ser compostada e substituívda por serragemnova. Para evitar a proliferação de moscas, cubra a boca do fltro com uma telade nylon (tipo “sombrite”).

Informações sobre técnicas de produção de hortaliças são facilmenteencontradas em livros de agricultura e horticultura orgânica. Porém, esses livroscostumam ser “contaminados” com o paradigma da agricultura convencional,em que “um canteiro de alface é um canteiro de alface” e “um canteiro detomates é um canteiro de tomates”. Esse tipo de abordagem, emboraconsagrado pela prática, signifca que você terá várias pequenas monoculturas,lado a lado, e que a cada ciclo o canteiro terá que ser totalmente reformado. Em

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Miniterraçospermitem o cultivoem porções íngremes do terreno

Adaptado de: Bill Mollison. Permaculture in humid landscapes. In: Dan Hemenway (ed.). Permaculture design course series (3.a ed.). Yankee Permaculture. 2001.

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permacultura, mesmo nas hortas, é comum aplicarmos uma abordagemsemelhante à agroforesta, em que diversas espécies são plantadas juntas,formando um pequeno porém rico agroecossistema. Isso permite uma maiorperenidade dos seus canteiros, já que os ciclos de crescimento entre diferentesespécies serão dessincronizados. Flores, verduras, legumes e temperos semisturam nos canteiros, formando verdadeiras miniforestas cheias de cores,sabores e aromas! Algumas ervas nativas também podem fazer parte do seujardim-horta agroforestal, que certamente atrairá visitantes como abelhas epássaros, etc. Aqui, pelos princívpios da valorização das espécies nativas emáxima biodiversidade, você deve sempre procurar incluir plantas alimentívciasnão-convencionais (PANCs). Exemplos de PANCs úteis na horta incluem ataioba, ora-pro-nóbis, serralha, beldroega, capuchinha, fsális, entre outros.Procure explorar o conceito de plantas companheiras. Com o tempo e aexperiência, você descobrirá quais espécies funcionam bem juntas e quais não,possibilitando a disposição mais efciente e harmoniosa de espécies, tanto emtermos de espaço como ao longo do ano.

Zona 2

A zona dois é aquela que não está debaixo do seu nariz e ao alcance da suamão o tempo todo — talvez você tenha que desviar do seu caminho algumasdezenas de passos para alcançá-la. Aqui, você terá basicamente o seu pomar,algumas plantações anuais mais exigentes e seus animais. Normalmente, a zonadois também estará próxima o sufciente para permitir o uso de água cinza parairrigação. Claro que o tamanho da zona um e da zona dois, e de fato todas aszonas, vai variar de acordo com as prioridades de cada permacultor, além deoutros fatores, como o tamanho da área total, número de pessoas, objetivoprincipal, etc. Se seu foco for a produção de verduras, talvez não sobre águacinza para o pomar, pois ela será toda usada na zona um.

O pomar, assim como a horta, deve ser feito em uma abordagem de“agroforesta”, ou seja, várias espécies misturadas, de forma integrada,potencializando as interações positivas entre as plantas, aumentando adensidade vegetal, aumentando portanto a biomassa e a biodiversidade.Posicione as espécies de forma que elas não se atrapalhem — não plante umarbusto que precisa de sol, como um pé de acerola, muito próximo e na sombrade uma árvore frondosa, como uma mangueira. Você deve conhecer ascaracterívsticas e necessidades de cada espécie para ser capaz de posicioná-las deforma habilidosa e efciente, levando em consideração também a topografa dolocal, direção do sol, etc. Um pomar assim estabelecido tem alta produtividadedevido ao adensamento, que se traduz em alta efciência no uso do espaço, e porsua diversidade e harmonia é algo lindo de se ver. Também é muito agradávelde se trabalhar, pois sempre haverá uma sombra.

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Há ainda outras vantagens: pela maior densidade vegetal, as própriasárvores e arbustos dão conta de manter o solo bem protegido por uma camadade matéria vegetal morta (folhas caívdas); por haver bastante sombra no nívvel dosolo, quase não há crescimento de plantas indesejáveis uma vez que o pomaresteja estabelecido. E a proximidade faz com que a irrigação seja muito maisfácil e efciente.

Isso tudo contrasta enormemente com os pomares convencionais: chatos emonótonos com suas fleiras e espaçamento uniforme, e geralmente apenas umaou poucas espécies; plantas distantes umas das outras, com aquele grandeespaço no meio, onde se você não cuidar vira um matagal. E cuidar signifcafcar infndáveis horas capinando ou roçando, debaixo do sol quente, ou o que épior, aplicação de herbicidas — um horror!

Você pode irrigar seu pomar com água cinza ou, caso não tenha osufciente, água de sua lagoa artifcial. Nesse caso, pode ser vantajoso fazerirrigação por gotejamento. Para uma rega efciente, mantenha sempre uma boabacia ao redor de cada planta, com capacidade para uns 20 ou 30 litros pelomenos, sempre com uma boa camada de cobertura vegetal morta.

Na fase de estabelecimento do pomar, quando suas plantas ainda foremapenas mudas, você terá muito espaço entre elas, com bastante sol. Aproveitepara plantar verduras e legumes na bacia, ao redor de cada muda, aproveitandoa terra adubada, a irrigação e cobertura de solo, e você terá uma produção decurto prazo, sem qualquer esforço adicional.

A zona dois também é o local indicado para plantações anuais comomilho, abóbora, mandioca, feijão, arroz, etc. Não se esqueça de valorizar asvariedades tradicionais e crioulas mais adaptadas à sua região. No começo, vocêpoderá ter alguma difculdade em encontrar sementes crioulas, masconversando com as pessoas, especialmente moradores locais mais antigos,você conseguirá encontrar pessoas que ainda cultivam essas variedades.Adquira o hábito de cultivá-las, tornando-se não apenas um produtor, mastambém um guardião dessas sementes, desse repositório genético, ajudando apreservá-lo e disseminá-lo, compartilhando-o com outros.

Então, aqui você tem vários cenários possívveis, dependendo de seusinteresses. Se você não tiver interesse na produção de anuais, pode fazer opomar bem adensado, como descrito acima. Mas se quiser também plantarespécies anuais, então vai ter que plantar seu pomar de forma mais espaçada,para dar lugar para as anuais.

Agora, se você quiser uma produção em maior escala das anuais, entãodeve plantar seu pomar em faixas densas, intercaladas por corredores, sempreem nível, amplos o sufciente para você usar um trator, onde você plantará suasanuais. As faixas de pomar servirão para espalhar e infltrar o escorrimento deágua, e prevenir a erosão. Caso sua ideia seja focar mesmo na plantação deanuais nessa área, você pode abrir mão do pomar e deixar nas faixas apenasvegetação nativa.

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Se o terreno for bastante inclinado, você pode empregar a técnica doterraceamento. Nos taludes, você plantará seu pomar, da forma mais densapossívvel, o que contribuirá para a estabilização permanente dos terraços. Naverdade, a inclinação dos taludes favorece o adensamento, pois permite ummelhor “encaixe” das copas das árvores, e isso se reverte em aumento naprodutividade. Nos platôs, você plantará as anuais. Por serem planos, issofacilitará demais seus trabalhos, possibilitando inclusive a tratoragem, além defavorecer a penetração de água no solo e prevenir efetivamente a erosão.

A criação de alguns animais também se dá na zona dois. Suas aves(galinhas, patos, gansos, codornas, etc.) devem fcar aqui. Também outrasespécies animais, especialmente em fases crívticas como fnal de gestação elactação, quando necessitam maior atenção e cuidados, benefciam-se dessaproximidade, devendo ser trazidos à zona dois. Outras fases, como recria eengorda, requerem menos atenção e podem ser feitas de forma mais extensiva,nas zonas 3 e 4. Além da facilidade e efciência de manejo, a proximidade dosanimais do pomar e da zona um também é vantajosa pois o esterco produzidopode ser facilmente trazido para adubação da horta e pomar.

Pequenas propriedades rurais, de talvez até uns 5.000 m2, provavelmentenão terão espaço para acomodar mais do que até uma modesta zona 3, o quenão é necessariamente um problema, já que as zonas 1 e 2 são as de uso maisintensivo e consequentemente as de maior produtividade por área, sendo quedelas provavelmente virá a maior parte dos seus alimentos. Se você tiver umaárea pequena e quiser o máximo de produção possívvel, então você deve focarem produção intensiva, o que signifca expandir as suas zonas 1 e 2, emdetrimento de zonas mais extensivas (zonas 3 em diante).

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“Encaixe” das copas permite maior densidade

Arbustivas e arbóreas pequenas no talude

Anuais no platô

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Zona 3

Aqui vai a sua verdadeira agroforesta! Mas, o que exatamente é umaagroforesta? A melhor forma de entender o que isso signifca é a seguinte: olhepara uma foresta natural, uma área de mata atlântica, por exemplo. Ela está láhá milhares, milhões de anos, se for mata virgem, ou talvez algumas décadas apoucos séculos, se for uma mata secundária. E lá está ela, verde, exuberante,maravilhosa. Quem a adubou? Ninguém. Tem alguém ali, regando? Não. Elanão precisa de nenhuma interferência humana, e ainda assim se mantém comuma altívssima produção de biomassa, eternamente. Em contraste, pomares eplantações em geral requerem cuidados e manutenção constante: adubação,irrigação, controle de pragas, etc.

Mas, como isso é possívvel? A resposta está na máxima biomassa e máximabiodiversidade, e na perfeita integração. Numa foresta, você tem milhares deespécies de vegetais, animais, fungos e microrganismos trabalhando emconjunto. Você tem a reciclagem máxima de nutrientes — o resívduo de um é oalimento do outro, e nada é perdido. A fertilidade do solo é mantida eaumentada, e assim também a água no local. Nos diferentes extratos da foresta,formam-se microclimas ideais para o desenvolvimento de todas as formas devida daquele ecossistema.

O único problema é que em uma foresta natural normalmente tem muitopouca comida para gente. Basta você fcar perdido em uma mata para ver comoé fácil morrer de fome lá dentro! Agora, imagine uma foresta semelhante auma mata natural, mas onde boa parte das árvores sejam frutívferas —abacateiros, mangueiras, goiabeiras, jabuticabeiras, jambeiros, mamoeiros,jaqueiras... ingá, cacau, jenipapo, enfm, tudo que você puder imaginar. E nãoapenas comida, mas também outros materiais úteis para o homem, comomadeiras, fbras, remédios, etc. Problema resolvido! Ou seja, é possívvel aplicara sabedoria da natureza para obter sistemas produtivos altamente efcientes eharmoniosos para suprir nossas necessidades, ao invés dos sistemas artifciais edisfuncionais da agricultura convencional.

Uma coisa que chama a atenção é que enquanto num pomar convencional émantida uma densidade vegetal relativamente baixa, respeitando umespaçamento entre as árvores, em uma foresta natural você observa umaaltívssima densidade de plantas de inúmeras espécies. A justifcativa para oespaçamento das árvores em um pomar é evitar a superlotação e competição pornutrientes e sol, o que comprometeria a produtividade. Mas então, por que issonão é um problema na foresta? Um dos motivos para isso é que, por teremnecessidades diferentes, inclusive em relação a nutrientes mas também emrelação a exposição ao sol, umidade, temperatura, etc., plantas de espéciesdiferentes (e fases de desenvolvimento diferentes) ocupam nichos diferentesdentro do mesmo espaço, podendo, portanto, várias plantas ocupar “o mesmo”espaço (concentração), muitas vezes até mesmo se benefciando dessa

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proximidade e interação com outras plantas. Aqui, vale lembrar o conceito dasplantas companheiras — plantas que, quando postas em proximidade, ajudam-se mutuamente, ou seja, têm uma interação benéfca, seja por forneceremsombreamento parcial, ou por fxarem nitrogênio no solo (caso dasleguminosas), ou por repelirem insetos ou atraívrem predadores de pragas, etc.Esses são mecanismos simples e conhecidos de interações positivas entreplantas, mas pode haver outras formas de interações benéfcas, como porexemplo interações hormonais ou através de substâncias do metabolismosecundário. Essas interações harmônicas são chave para a máxima biomassa ebiodiversidade, e a perfeita integração observada em uma foresta. Portanto,para o estabelecimento de uma agroforesta, é fundamental aplicarmos osprincívpios da permacultura, levando em consideração os tipos de relações entreos diversos elementos, favorecendo as relações benéfcas e evitando as relaçõesnegativas para obter o máximo de integração e autorregulação do sistema comoum todo.

Na zona 3 você terá sua agroforesta manejada — podas, adubação etalvez até irrigação para máxima produtividade. Aqui também fcarão algunsdos seus animais.

Estabelecendo uma agrofloresta

Há muitas formas de se plantar uma agroforesta, e a escolha da técnicaideal dependerá de vários fatores, especialmente o clima (regularidade dechuvas, duração da estação seca), condição do solo (fértil ou degradado), estadode regeneração natural/espontânea da vegetação na área, etc.

No estabelecimento de uma agroforesta ou reforestamento, vocênormalmente tem que lidar com três empecilhos principais: defciências do solo,estresse hívdrico e ataque de pragas.

Solo

Quanto às condições do solo, particularmente em relação à fertilidade,você tem basicamente dois cenários possívveis: área degradada e área fértil(claro que esse são os dois extremos, e seu caso pode estar em qualquer pontointermediário). No caso de solo degradado, maltratado pela agricultura e semfertilidade, ressecado e compactado, com baixívssima matéria orgânica, vocêterá que aplicar todas as técnicas já discutidas, e terá que trabalhar duro paraque suas árvores cresçam. Já no caso de um terreno fértil, é praticamente sóplantar que cresce, mas você terá que controlar a vegetação espontânea para queela não abafe suas mudas. Portanto, procurar um terreno mais fértil pode sermuito tentador. Porém, o ideal é justamente o contrário: focar em terrenosdegradados, de forma que você possa usar a permacultura para recuperá-los,efetivamente prestando uma relevante contribuição para o meio ambiente.

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Existe um nívtido contraste entre as duas situações: uma pessoa trabalhando emum terreno fértil investe boa parte de seu tempo e energias combatendo anatureza, seja a vegetação espontânea que ameaça seus pomares, ou mesmoanimais silvestres que vêm atacar sua produção. Por outro lado, uma pessoatrabalhando em um terreno degradado investe seu tempo, esforço e recursos emrecuperar aquela área, trazendo de volta a vida, aumentando a biomassa e adiversidade. Qual delas está trabalhando para a natureza? Terrenos férteisdevem idealmente ser deixados em paz, para que se regenerem natural eespontaneamente, o que de fato ocorre rapidamente, desde que não hajahumanos atrapalhando.

Estresse hídrico

O estresse hívdrico decorre principalmente de dois fatores: as mudas deárvores são muito sensívveis à falta de umidade e morte por ressecamento, porterem raívzes pequenas que atingem apenas a camada mais superfcial do solo(diferentemente de árvores crescidas, que com suas grandes raívzes conseguembuscar água em nívveis profundos do solo). Além disso, o solo desmatado ecompactado é naturalmente mais ressecado que o solo da foresta, pois você temuma combinação de reduzida penetração de água e exacerbação das perdas deumidade por evaporação, já que o solo está exposto ao sol e vento.

Quando sua foresta ou agroforesta estiver estabelecida, esses problemasestarão naturalmente resolvidos, mas para romper com essa barreira inicial,permitindo que suas mudas sobrevivam e se transformem em árvores, você teráque lançar mão de uma estratégia adequada, com a combinação de quatrotécnicas: plantio na época certa (discutido mais adiante), construção de bacias,uso de cobertura do solo e irrigação.

Pragas

É normalmente aceito o conceito que pragas são animais e plantas, nativosou não, que, por um desequilívbrio ambiental, assumem um comportamentoagressivo ou predatório sobre as nossas plantações. Esse é o caso tívpico dasplantações convencionais ou monoculturas, onde você tem uma absurdaconcentração de plantas da mesma espécie em largas áreas (ou seja, umdesequilívbrio ambiental); obviamente, qualquer inseto que goste de comer essaplanta vai adorar, e se instalar e se reproduzir, e devorar tudo!

Portanto, o primeiro e mais importante passo na prevenção de pragas érestaurar o equilívbrio ambiental, e a única forma de se fazer isso e ao mesmotempo ter uma produção agrívcola é através de policulturas integradas, na formade agroforestas. Assim, aquela planta preferida daquele inseto estará intercaladapor várias outras espécies de plantas que o inseto não gosta e terá que atravessar,e talvez abriguem predadores, etc., ou seja, difcultando a vida do inseto — elecontinuará lá, mas em uma situação de equilívbrio, não sendo tão destrutivo à suaplantação.

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Quando se fala de controle orgânico de pragas agrívcolas, muitas pessoaspensam logo em controle biológico: introduzir um predador “X” para controlaruma praga “Y”. Essa é uma ideia comum na cabeça de estudantes de biologia eagronomia, e mesmo permacultores. Porém, essa ideia é resultado de uma visãoextremamente reducionista e não realista de como as interações funcionam nanatureza, e por isso não funciona na prática, sendo ainda extremamente perigosa,tendo já causado desastres ambientais de sérias proporções.

Um caso tívpico é o do caramujo predador Euglandina rosea, introduzido noHavaív na esperança de que ele controlaria a proliferação do também exóticocaramujo gigante africano (Achatina fulica). No Havaív, assim como em muitosoutros lugares incluindo o Brasil, foi introduzido o caramujo gigante africanoque, ao encontrar condições favoráveis (clima, abundância de alimento, ausênciade predador efetivo, etc.), proliferou-se assustadoramente. Numa tentativa decontrolar o Achatina através do controle biológico, as autoridades havaianas,orientadas por técnicos, introduziram o caramujo predador. Porém, como emtantas outros programas fracassados de controle biológico, o predadorintroduzido simplesmente ignorou a espécie-alvo e, ao invés dela, passou adevorar as espécies de caracóis nativos, causando dezenas de extinções em poucotempo. Situação semelhante ocorreu também nas Ilhas Maurívcio, na PolinésiaFrancesa e outras ilhas e arquipélagos.

O controle biológico existe e acontece, sim, em sua melhor forma, naforma de sistemas bem diversos e integrados, refetindo ecossistemas naturais.“Pragas”, ou seja, animais que comem nossas plantas, sempre existirão ecausarão perdas, mas geralmente serão perdas aceitáveis. Essas perdas podemser reduzidas pela aplicação de diversas técnicas orgânicas, como repelentes evenenos naturais (e.g. plantar tagetes na horta, ou aplicar infusão de folhas defumo, ou polvilhar cinzas, etc. para certas pragas), prevenção do acesso daspragas através de barreiras fívsicas, etc.

Plantio por sementes ou mudas?

Se você fzer uma pesquisa sobre técnicas para plantar uma agroforesta,fcará surpreso com a quantidade de informações diferentes e confitantes queencontrará. Há quem recomende o plantio direto por sementes, enquanto outrosrecomendam o plantio por mudas; mesmo assim, há divergências entre o que émelhor: mudas pequenas em tubetes, ou mudas maiores, em sacos de 600 ml,por exemplo. Também as recomendações em relação ao preparo do solo, ou onúmero e disposição das espécies, varia enormemente entre diferentes autores.A única conclusão que podemos tirar disso é que há várias abordagenspossívveis, e que a melhor abordagem dependerá das suas condições especívfcas,devendo ser determinada, em cada caso particular, baseado em experimentação,ou seja, tentativa e erro com as diversas opções possívveis.

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O plantio direto por sementes teoricamente tem as vantagens de ser maisfácil e barato. Essa estratégia pode funcionar bem em algumas situaçõesparticularmente favoráveis, ou seja, quando o solo ainda não está tão degradadoe você tem uma boa distribuição de chuvas ao longo do ano, e não tem muitosproblemas com pragas em sua área. Porém, muitas vezes essa abordagem nãotraz bons resultados, sendo mais indicado o plantio por mudas. Isso porquequando você planta por sementes, mesmo que tenha uma boa germinação (oque nem sempre é o caso), ao fnal da estação chuvosa suas mudas ainda sãomuito jovens e pequenas, com mívnima reserva de energia e raívzes muitosuperfciais, ou seja, são frágeis demais para sobreviver à primeira estação seca(exceto espécies extremamente rústicas e adaptadas). Outro problema é que asmudinhas jovens são extremamente susceptívveis ao ataque por pragas,especialmente as formigas cortadeiras, as quais discutiremos em mais detalhesa seguir.

Algumas técnicas alternativas têm sido propostas, como as “bolas desementes” (seed balls), em que sementes são envoltas em um substrato nutritivocomposto de terra, fertilizantes e às vezes outros aditivos (como repelentes depredadores, por exemplo), e lançadas com objetivos de reforestamento. A ideiaé aumentar a taxa de germinação e sobrevivência dessas sementes, por fornecercondições mais favoráveis. Essa técnica ganhou muitos fãs, porque um grupopequeno de pessoas pode facilmente em um fnal de semana lançar milhares debolas, e o indivívduo volta para casa com aquela sensação que acabou de salvar omundo. Porém, volte à área dali a alguns anos e procure alguma das árvores quevocê “plantou” naquele dia, e terá uma triste surpresa: elas simplesmente nãoestarão lá. Claro que você pode experimentar, não custa nada, masprovavelmente chegará à conclusão que trata-se de uma grande ilusão.

Embora mais trabalhosa, em minha experiência a abordagem que trazmelhores resultados é o plantio por mudas, e não mudinhas pequenas, mas simmudas grandes, de 50 cm a um metro de altura. Aqui, temos um paradoxo, poiso Princívpio n.o 1 da permacultura nos ensina a imitar a natureza, e na naturezaas árvores se reproduzem lançando sementes. Porém, há que se considerar que ataxa de sobrevivência das sementes na natureza, ou seja, a proporção dassementes produzidas que efetivamente germinam, crescem e atingem a idadeadulta, é muito baixa, e para alimentarmos a população e reconstruirmosecossistemas precisamos de mais que isso, em termos de efciência. Plantar umasemente, ou mesmo uma muda, é muito fácil, mas na maioria dos casos isso sónão é sufciente. É preciso estar lá para defendê-la, cuidar dela para garantir quese torne árvore. É preciso abandonar a ilusão de soluções fáceis. Curar a Terrarequer fxar o homem na terra — é preciso estar na terra, trabalhando com aterra, e pela Terra.

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Coletando sementes

Para estabelecer uma agroforesta, você precisará de muitas sementes e/oumudas. Isso pode representar um custo substancial, mas também pode ter custovirtualmente zero. Para isso, basta você incorporar ao seu estilo de vida o lindohábito de plantar as sementes das frutas que você consome, produzindo suaspróprias mudas! Também para as espécies forestais, você pode coletar suaspróprias sementes e produzir suas próprias mudas. Para isso, você precisa saberquais são as espécies de árvores da sua região, ser capaz de identifcá-las, e sairà caça de sementes. Pode parecer uma tarefa muito difívcil, mas há uma maneirade torná-la bem mais fácil. Siga os seguintes passos:

1. Faça uma boa pesquisa e elabore uma lista de espécies de árvores da suaregião. Você deve consultar a internet, livros especializados (a série“Árvores Brasileiras”, de Harri Lorenzi, é um recurso excelente), eperguntar para moradores antigos da área. Pessoas mais antigas,especialmente as da zona rural, muitas vezes têm um conhecimentoconsiderável sobre a fora e fauna locais.

2. Elabore um calendário com as épocas de foração e frutifcação dasespécies da sua lista.

3. Cultive o hábito de andar sempre prestando atenção nas árvores, focandonaquelas que estão com fores ou frutos. Procure identifcá-las, tomandopor base o mês do ano em que elas estão foridas ou com frutos. Porexemplo, você encontrou uma árvore que está dando sementes, e você estáno mês de outubro. Portanto, para identifcá-la, você não terá queconsultar toda a sua lista de espécies, mas sim apenas aquelas que,conforme seu calendário, frutifcam em outubro. Isso facilitaenormemente a identifcação, e favorece a construção de um bomconhecimento das espécies e seus ciclos — um aprendizado lindo e muitoimportante! Use esse conhecimento para atualizar sua lista de época deforação e frutifcação, pois pode haver variações regionais.

Você não deve sair coletando sementes e plantando-as indistintamente emseu terreno, ou produzindo mudas adoidado. O mais recomendado é vocêestabelecer critérios de seleção das espécies a serem utilizadas, para maximizara efciência do seu trabalho na consecução dos seus objetivos. Trataremosdesses critérios mais adiante. Claro que você também pode reservar parte doseu esforço e tempo para um plantio aleatório, pois o fator acaso muitas vezestraz surpresas maravilhosas.

Produzir suas próprias mudas a partir de sementes das frutas que vocêcomeu, ou sementes que você mesmo coletou em suas expedições a matas oubosques, ou mesmo nas praças, parques e ruas da cidade — isso representamuito mais do que economia de dinheiro. Trata-se de um aprendizadoimportantívssimo, e seu relacionamento com suas plantas terá um signifcadomuito mais profundo.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Produzindo mudas

Produzir mudas é a coisa mais simples do mundo: junte todas as caixinhasde leite e sacos plásticos resistentes, como os de feijão, arroz, açúcar, etc., quetenham capacidade entre 0,5 e 5 kg. Peça para amigos e parentes guardarempara você, também, pois você vai precisar de bastante. Com uma tesoura façadois buracos de cerca de 1 cm no fundo dos sacos, encha-os de terra e plante assementes próximo à superfívcie. Quanto à profundidade de plantio, como regrageral, plante a semente a uma profundidade de aproximadamente 1,5 vezes otamanho da semente (por exemplo, uma semente de 1 cm deve ser plantada acerca de 1,5 cm de profundidade). Mantenha os blocos (ou seja, seus sacos comterra e semente ou muda) em local parcialmente sombreado, e regue conformenecessário, para que permaneçam sempre úmidos, mas não encharcados. Logo,suas sementes germinarão, e você terá suas mudas!

A taxa de germinação e o tempo para que ocorra variam muito entre asespécies e as condições do seu local, mas é preciso ter paciência, pois algumassementes podem levar meses para germinar.

Outra abordagem útil é fazer uma sementeira: um canto no seu jardim, ouuma caixa baixa feita de madeira e cheia de terra, onde você planta todas assementes que quer, e vai regando e esperando germinarem. Então, você as retiracuidadosamente e transplanta para os saquinhos. Esta abordagem é maisindicada para espécies com taxa de germinação baixa, muito lenta oudesconhecida.

Agora, a terra a ser usada para fazer seus blocos ou sementeiras pode serpreparada com solo superfcial do seu terreno, misturada a composto orgânicona proporção de 2:1, ou seja, duas partes de terra para uma de composto.

Mudas requerem atenção diária, especialmente em locais e épocas declima quente e seco, quando elas tem que ser regadas diariamente. Por isso, oviveiro deve ser feito na zona um, bem próximo à casa. Se você ainda mora nacidade, é melhor ter o viveiro lá, no quintal, garagem ou varanda, onde formelhor, desde que receba sol sufciente.

Agora, há uma consideração a ser feita quando você prepara suas própriasmudas. Algumas espécies apresentam grande variabilidade da qualidade dosfrutos, como laranjas e uvas, por exemplo: você planta a semente de uma frutaque gostou, mas a árvore que você obtém pode ter frutos de qualidade muitodiferente. Isso é normalmente evitado pelo cultivo de plantas enxertadas. Atécnica da enxertia consiste de se unir um galho (enxerto) de uma planta notronco de outra planta (o porta-enxerto). Os tecidos do enxerto e porta-enxertofundem-se, e o enxerto passa a crescer usando o porta-enxerto como base,suporte e fonte de nutrição. O galho usado para enxerto é proveniente de umaplanta conhecida, e selecionada devido às qualidades desejáveis de seus frutos,enquanto o porta-enxerto é uma muda compatívvel (geralmente da mesmaespécie ou gênero) que seja de fácil produção e alta rusticidade. A plantaenxertada produzirá frutos semelhantes aos da árvore-mãe do enxerto. As

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mudas enxertadas apresentam ainda a vantagem da precocidade — começam aproduzir muito mais rápido que mudas naturais, produzidas a partir desementes. As desvantagens são seus custos ou o trabalho em prepará-las, e ofato de elas terem uma vida produtiva bem mais curta que a de uma plantanatural, não enxertada.

Outra desvantagem das plantas enxertadas, especialmente as variedadescomerciais, é que elas apresentam uma grande uniformidade genética, enquantomudas naturais têm maior variabilidade, o que confere maior rusticidade epreservação do patrimônio genético.

Agora, você não tem que escolher apenas uma opção! Pode muito bemplantar das duas formas, mudas naturais e enxertadas, reunindo assim todas asvantagens: uma produção mais precoce e uniforme, e também plantas maisduradouras e produção mais variada.

Mudas enxertadas podem ser obtidas em viveiros comerciais. Vocêtambém pode produzi-las você mesmo, devendo primeiro pesquisar as melhorestécnicas para cada espécie de seu interesse. Também terá que encontrar boasplantas doadoras de enxertos (plantas cuja produção tenha qualidadereconhecida), o que nem sempre é fácil.

Há ainda outras formas de propagação de mudas, como a estaquia, ouseja, a propagação por estacas. As diferentes espécies vegetais variam muitoquanto às técnicas mais efcazes de propagação: a maioria se propaga maisfacilmente ou exclusivamente por sementes; há as que podem ser propagadasefcientemente tanto por sementes como estacas (e.g. amoreira), enquantooutras se podem propagar quase exclusivamente por estacas (e.g. ciriguela,fgueira). Dentre as plantas que são mais comumente propagadas por estacaspodemos citar os hibiscos, roseiras, amoreiras, primaveras, fgueiras, etc. Areprodução por estacas traz benefívcios semelhantes aos da enxertia, já que aplanta flha terá as mesmas caracterívsticas da planta mãe, sendo na verdade umclone desta, ou seja, portando exatamente a mesma constituição genética. Vocêtanto pode produzir mudas em viveiros, usando sacos plásticos, como plantar asestacas diretamente no terreno, sendo que as taxas de sucesso variarãoconforme o caso.

Técnicas de plantio

O plantio pode ser feito de inúmeras formas diferentes, desde um plantioà mão, bastante conservativo e econômico porém mais lento, até um preparomecanizado do solo e plantio em larga escala, mais rápido mas também maisimpactante ao ambiente.

Aqui, devemos fazer uma consideração importante: pelos princívpios dapermacultura, devemos preservar ao máximo as caracterívsticas da área em seuatual estágio de regeneração, ou seja, as espécies que já conseguiram ali seinstalar e estão cumprindo seu papel regenerador do ecossistema, a

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biodiversidade e biomassa que já se desenvolveram, a estrutura do solo, etc., eatuar de forma a ajudar nesse processo de regeneração, ao introduzir maisespécies de plantas que crescerão enriquecendo o ambiente, protegendo o solo ea água, trazendo recursos para acelerar essa recuperação, além de alcançar umaprodução que desejamos.

Então, no começo de seu projeto, você tem dois cenários possívveis: se oterreno estava sendo usado até muito recentemente pela agricultura industrial,sendo tratorado continuamente, além de outras práticas destrutivas comoadubação quívmica e aplicação de agrotóxicos, etc., então neste caso não há nadade biomassa e biodiversidade a ser preservado. Neste terreno, você pode fazerum preparo mecanizado do solo, com calagem, adubação e preparo das covas,por exemplo, uma última vez, para o estabelecimento de uma agroforesta, oque pode compensar pela facilidade, agilidade e custo-benefívcio. Ou seja, nestecaso trata-se de uma opção que pode ser considerada uso apropriado detecnologia.

Porém, em outros casos em que a área está abandonada há alguns anos, e anatureza já vem fazendo seu dedicado trabalho de recuperação, pode serconsiderado injustifcável causar destruição em larga escala a esse ecossistemaque está se recuperando, sendo preferívvel uma abordagem conservativa, depreparo por covas e plantio manual.

Algumas pessoas impacientes podem sentir-se tentadas a empregarpreparo do solo e plantio mecanizado mesmo assim, por julgarem que osbenefívcios ambientais a longo prazo compensarão esse impacto negativo inicial.Porém, isso é uma estratégia bastante arriscada. Para explicar isso, vou contaraqui um “causo”:

Certa vez, um conhecido meu, que por sinal é agrônomo, resolveu fazerum reforestamento em um terreno que ganhou de sua famívlia. Ansioso poraplicar os conhecimentos adquiridos na faculdade, e impaciente em ver logosua foresta formada, optou por uma abordagem “industrial” — tratamentomecanizado do terreno e plantio de sementes e mudas compradas de viveiroscertifcados, tudo conforme havia aprendido na faculdade. Ele fez essa escolhaapesar de o terreno já estar abandonado havia algum tempo e, portanto, jáapresentar certo grau de recuperação espontânea, com fora e fauna lentamentese desenvolvendo, que seriam destruívdas no processo. Mas o impacienteagrônomo julgou que os benefívcios a longo prazo compensariam essadestruição, do ponto de vista ambiental.

E pôs-se a tratorar todo o terreno, arar e gradear, e calar e adubar, esemear e plantar mudas. Mas ele não tinha dinheiro sufciente para trabalhartodo o terreno; por isso, resolveu cobrir apenas metade do terreno, deixando aoutra metade para algum momento no futuro.

Eis, porém, que tudo que podia dar errado, deu: veio a chuva forte eerodiu seu solo desprotegido; veio a estiagem, e secou muitas de suas mudas.

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Daív, vieram as formigas, deixadas sem opção de alimento devido à destruiçãoda vegetação na área, e comeram as mudas que restaram.

O rapaz, que tinha gasto todo seu dinheiro, teve que abandonar seu projetoe ir fazer outra coisa. Alguns anos mais tarde, quando segundo seus planos ecálculos iniciais ele já deveria ter ali uma linda foresta, a situação era aseguinte: na metade do terreno que ele não tocou, por falta de dinheiro, haviauma linda capoeira, uma matinha em estágio já bem mais avançado deregeneração, enquanto a metade em que ele trabalhou e gastou seu dinheiroainda estava com um aspecto bem pior do que quando ele começou.

Claro que nem sempre isso irá acontecer, certamente há pessoas quetentam esse tipo de abordagem e têm melhores resultados que os desta históriaque acabei de contar. Mas mesmo assim, trata-se de uma escolha arriscada,tanto para seu bolso como para o ambiente, sendo, portanto, geralmente umamá ideia. Portanto, nesses casos o melhor é usar uma abordagem conservativa,preservando a integridade do solo e a vegetação em seu estágio atual deregeneração, o que nos dá um ponto de vantagem.

Agora, para plantar as sementes e mudas, você tem muitas opções deabordagens possívveis. Vamos discutir algumas delas

• Simplesmente plantar. Isso é o que a maioria das pessoas fazem, quandosão iniciantes e pensam em plantar uma muda ou semente. Abrem um buracono chão, metem a semente ou muda, cobrem com terra, jogam um pouco deágua, e pronto. Se o seu solo for bom e adequado à sua planta, e observados oscuidados posteriores (que discutiremos mais adiante), isso pode dar certo.Porém, em muitos casos isso não funcionará, pois seu solo necessitará de algumtratamento, como correção de acidez e adubação, para poder garantir o sucessode sua planta. De qualquer forma, você sempre terá algumas sementesexcedentes, ou mudas que você não sabe o que fazer com elas. Você deveexperimentar simplesmente plantá-las, e ver o que acontece. Você tem quefazer esse tipo de coisa para conhecer as reais condições do seu terreno, seupotencial, suas necessidades.

• Tratamento por covas. Esta é a técnica mais comumente recomendadapor técnicos para plantio de mudas de árvores em pequena e média escala.Embora idealmente as quantidades dos insumos deva ser orientada por análisede solo, citarei valores médios que comumente são indicados:

1. Primeiramente, capine a área e comece a preparar a bacia, com umdiâmetro de cerca de 70 cm, raspando uma camada de cerca de 5 cm dosolo superfcial com um enxadão. Reserve esse solo, pois será usado noplantio.

2. Com uma cavadeira ou pá, cave um buraco de 50 cm de largura e 30 cmde profundidade (ou mais, dependendo da altura do seu bloco), sendo que

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a terra proveniente dos 20 cm mais superfciais é adicionada àquele solosuperfcial raspado no passo no 1 acima, enquanto os últimos 10 cm dofundo do buraco são usados para elevar a parede da bacia, no lado maisbaixo da mesma (conforme a declividade do terreno).

3. Agora é hora de tratar o solo para plantio. Pegue a terra proveniente dascamadas mais superfciais da bacia e da cova e adicione 100 a 150 g decalcário dolomívtico. Misture bem com uma enxada. Em seguida, adicione200 g de superfosfato simples e 15 litros de esterco bovino de curralcurtido, misturando novamente.

4. Devolva a terra, agora adubada, à cova, compactando-a com os pés paraque não fque excessivamente fofa.

5. Plante sua muda no centro da cova tratada. O ideal é que a parte superiordo bloco da muda fque uns 3 cm acima do nívvel da terra da cova, evitandoo encharcamento do caule quando das chuvas e regas.

6. Por fm, cubra toda a área da cova e bacia com uma camada generosa dematéria vegetal morta (e.g. palha ou serragem), e regue com 20 litros deágua. Uma observação importante é que a terra, logo após preparada, tema capacidade de reter umidade por perívodos mais longos. Portanto, vocêdeve ter o cuidado de não regar excessivamente durante o primeiro mês,evitando o encharcamento e apodrecimento das raívzes da muda. Observe amuda e a umidade da terra do plantio, e regue só quando necessário.Como o plantio deve ser feito no perívodo das chuvas (conformediscutiremos abaixo), na verdade você provavelmente não terá que regaressa muda por meses, até a chegada da estação seca.

• Tratamento por covas simplifcado. Esta é uma técnica que é preferidapor muitos permacultores, por frequentemente dar ótimos resultados além deser mais simples, rápida e natural:

1. O primeiro passo é idêntico ao tratamento por covas descrito acima.

2. Agora, cave uma cova bem menor, uma cova circular com talvez uns 25cm de diâmetro e 25 de profundidade, sufciente para caber o bloco damuda, com uma folga de uns 4 ou 5 cm em cada direção.

3. Encha o buraco (a cova e a bacia) com água (cerca de 20 litros), e molhetambém aquele solo superfcial da escavação da bacia, que você reservou.Espere a água ser toda absorvida, o que pode levar algumas horas.

4. Agora, você pode plantar sua muda. Aplique uma camada do solosuperfcial no fundo da cova, sufciente para que o bloco, uma vez aliposto, atinja a altura desejada de cerca de 3 cm acima do nívvel do solo nointerior da bacia. Retire o saco plástico, deposite o bloco no centro dacova e preencha as laterais com a terra, compactando bem com os dedosou um bastão de madeira (por exemplo, um pedaço de cabo de vassoura).

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Aplique uma fna camada de cinzas de madeira sobre o solo dentro e aoredor da bacia (cerca de 1 litro de cinzas é sufciente) e cubra com umacamada generosa de cobertura vegetal morta. Assim como descrito acima,evite regar excessivamente a muda no primeiro mês após o plantio.

5. Aguarde até que a muda dê sinais claros de que “pegou”, ou seja, comecea crescer. Agora, você deve adicionar os adubos que quiser ou acharnecessários sobre o solo, dentro da bacia. Na maioria das vezes, apenasadubos orgânicos, como cinzas, esterco animal, composto orgânico, urinadiluívda e ferti-irrigação com águas cinzas, são sufcientes para sua mudacrescer feliz e saudável.

6. Observação: em locais onde o solo tem acidez elevada, é recomendáveladicionar um outro passo: após encher a cova de água e esperar a águaabaixar, ou seja, logo antes de plantar a muda, polvilhe cinzas de madeiradentro da cova, especialmente nas laterais, até que fquem cobertas poruma fna camada de cinza (alguma quantidade inevitavelmente cairá nofundo da cova, portanto não é necessário adicionar mais lá). Prossiga como plantio conforme descrito. Isso geralmente é sufciente para neutralizar aacidez do solo ao redor do bloco, garantindo a pega e crescimento damuda, para que então você possa prosseguir com a adubação e demaiscuidados.

Então, você tem várias abordagens possívveis. O ideal é você tentar todaselas, para descobrir qual ou quais são mais úteis ou mais viáveis em suasituação particular. Você provavelmente descobrirá que a técnica ideal dependeda espécie de planta. Talvez algumas espécies aceitem o plantio direto, outras sedeem bem com o tratamento por covas simplifcado, enquanto outras aindanecessitem do tratamento completo. Com a experiência, você descobrirá essascoisas e poderá se ater à técnica mais simples que funciona para cada espécieem sua situação particular.

• Tratamento mecanizado. Caso você opte por fazer um tratamentomecanizado, há uma forma de se fazer isso minimizando os danos causados.Essa forma consiste em se fazer o tratamento em faixas em nível. Ou seja, vocênão irá tratorar o terreno todo, e sim tratar faixas do terreno, seguindo curvasde nívvel, intercaladas com faixas que serão preservadas, mantidas intactas. Essaabordagem apresenta várias vantagens em relação ao tratamento mecanizadoconvencional, no estabelecimento de uma agroforesta: as faixas preservadasatuam como barreiras contra a erosão, espalhando e infltrando o fuxo deescorrimento superfcial da chuva; além disso, a vegetação nessa faixa atuacomo barreira contra o vento e fornece sombreamento parcial, criando ummicroclima mais ameno e um ambiente mais favorável ao desenvolvimento dassuas mudas. Além disso, permanecem como refúgio da fora e fauna da área: ospássaros, insetos e outros animais não serão destruívdos, apenas migrarão para

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esses locais pois são extremamente próximos, e as plantas preservadascontinuarão contribuindo com sementes para a recuperação da área tratorada,além de fornecerem biomassa, através de podas, que pode ser usada comocobertura vegetal morta para suas mudas. Uma vez restabelecido o processo deregeneração na área que você tratou (ou seja, uma vez que o solo estejareestruturado e novamente coberto por uma camada efetiva de vegetação), vocêpode tratar as faixas que haviam sido poupadas no tratamento anterior. Ouentão, para tentar duas abordagens diferentes ao mesmo tempo, você pode fazerum tratamento conservativo (por covas) nas faixas de preservação.

Tratamento mecanizado do terreno, com correção, condicionamento eadubação do solo, deve ser feito sempre sob orientação técnica adequada.

Época de plantio

Sementes resistentes (ortodoxas) podem ser plantadas durante a estaçãoseca para germinarem nas primeiras chuvas, mas sementes mais sensívveis ourecalcitrantes e mudas devem ser plantadas sempre no inívcio da estaçãochuvosa. Agora, para adiantar o serviço, você pode já ir começando a prepararas covas na estação seca, embora o solo duro e ressecado seja bem mais difívcilde trabalhar.

Comece o plantio das suas mudas no começo da estação chuvosa, assimque o chão estiver bem molhado, e dependendo da espécie e do seu clima,talvez você nunca mais tenha que molhar essas mudas: elas darão umaarrancada de desenvolvimento nos meses chuvosos, ganhando porte edesenvolvendo suas raívzes, tornando-se capazes de obter umidade de camadasmais profundas do solo, garantindo sua sobrevivência até a próxima estaçãochuvosa. Normalmente, sofrerão estresse hívdrico em algum grau, masgeralmente não morrerão, e estarão lá, prontas para continuar seudesenvolvimento a partir do inívcio da próxima estação chuvosa. Porém, nemsempre isso funciona: para espécies mais sensívveis, ou em locais com estaçãoseca particularmente longa e severa, pode ser necessário regar as mudas, pelomenos no primeiro ano, para garantir que sobrevivam em boa forma até apróxima estação chuvosa.

Cuidados

Uma ilusão comum na cabeça de muitas pessoas é pensar que se podemudar o mundo apenas plantando algumas sementes, ou que plantar uma mudae plantar uma árvore são a mesma coisa. Pois são coisas bem diferentes —plantar uma árvore signifca plantar a muda e cuidar dela até que se torneárvore. Nesse processo, o plantio da muda é sem dúvida a parte mais rápida efácil.

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Após o plantio, os principais cuidados com as mudas de sua agroforestaserão:

• Manutenção das bacias e cobertura vegetal morta, para que elas continuemrecebendo hidratação adequada.

• Rega, sendo que, conforme já citado, ela pode ser dispensável em algunscasos, e essencial em outros. Agora, há espécies que necessitarão rega noprimeiro, talvez até no segundo ano para se estabelecerem, a partir do quenão necessitarão mais. Porém, talvez haja algumas espécies de árvores quenecessitarão de irrigação por toda a vida, ou seja, mesmo depois decrescidas, não sobreviverão ou serão incapazes de produzir sem irrigação.Isso signifca que essas espécies não são adequadas ao seu ambiente. Podeparecer duro demais, mas o mais recomendado é você desistir delas, efocar nas espécies melhor adaptadas.

• Adubação. A fase mais crívtica, em relação a nutrientes, é a fase de muda,onde a planta tem os maiores desafos de sobreviver e se desenvolver.Uma vez crescidas, as plantas têm uma capacidade muito maior de extrairnutrientes do solo, mesmo que degradado. Porém, adubação continuasendo benéfca para maior produtividade, até que a agroforesta já estejabem estabelecida, a partir do que ela passa a ser autossufciente emnutrientes, pela sua reciclagem natural. Todas as fontes de nutrientesorgânicos de sua propriedade deverão ser utilizadas da forma maisracional possívvel, divididas entre os diferentes sistemas produtivos, nasdiferentes zonas, e a importação de recursos deve ser feita de formacriteriosa, conforme já discutido.

• Podas de formação. Muitas vezes, suas mudas começam a se ramifcardemasiadamente, a uma altura muito baixa, inferior a 1 metro. Nessescasos é conveniente fazer podas, limitando o número de galhos e dando àmuda uma arquitetura desejável. Ao eliminarmos o excesso de galhos, aplanta também direciona mais energia para o crescimento dos brotosvegetativos principais, ganhando altura mais rápido, o que torna mais fácilsua proteção contra as formigas cortadeiras.

• Controle de pragas. Em qualquer lugar que você esteja, se quiser plantaralguma coisa, especialmente em situações rurais, provavelmente teráproblemas com pragas. As pragas variam enormemente de acordo com olocal e a espécie de planta, e também o sistema de manejo, etc. Você deveestar atento ao ataque de pragas, e adotar medidas adequadas de acordocom o caso.

• Roçagem. Em muitos casos, a vegetação espontânea, altamente rústica eadaptada às condições locais, cresce muito mais vigorosamente que suasmudas, e acaba por inibir sua plantação, podendo fazê-lo de diversas

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formas: crescendo por sobre suas plantas, abafando-as e roubando-lhes aluz do sol; liberando substâncias inibidoras que interferem negativamenteno crescimento de suas plantas (efeito alelopático); competindodiretamente por nutrientes, ou seja, consumindo-os mais efcientemente efxando-os em sua própria biomassa, impedindo que suas plantas osutilizem, etc. Por isso, uma parte importante do trabalho de manutençãonas fases iniciais de estabelecimento de sua agroforesta é suprimir —cortar ou arrancar — as plantas espontâneas que estejam ameaçando suasmudas, e usar essa matéria vegetal morta como cobertura de solo.

Quantas e quais espécies usar?

Em relação a agroforestas, uma questão que frequentemente causaconfusão é a respeito da escolha das espécies, e da proporção ideal entreárvores frutívferas e forestais ou nativas. Na verdade, isso não é importante —qualquer proporção serve, desde que os objetivos de suprir as necessidadeshumanas e prestar serviços ambientais sejam cumpridas. Se você tiver poucoespaço, pode plantar só frutívferas, sem problemas. Plante o maior número deespécies possívvel, e você terá sua agroforesta. Agora, se você tiver bastanteespaço, é importante plantar espécies forestais também, especialmente asnativas e ameaçadas, contribuindo também para a restauração do ecossistemalocal e a preservação dessas espécies.

Você pode optar, por exemplo, por fazer uma agroforesta só de frutívferasna zona 3, uma agroforesta mista na zona 4, e plantar só espécies forestais nazona 5. Ou pode fazer as três zonas mistas, variando apenas a intensidade domanejo. Todas essas abordagens são válidas.

Na escolha das espécies frutívferas, um bom ponto de partida é irplantando o que você mais come e mais gosta, e aquelas espécies que se dãobem em sua área, coisa que você pode facilmente se informar com seusvizinhos, moradores mais antigos do local. Agora, é claro que você não deve selimitar a isso. Pelo princívpio da máxima biodiversidade, quanto mais espécies,melhor. Isso não signifca que você deve ser paranoico quanto ao número deespécies, mas apenas buscar incorporar um grande número para ter um sistemabem diversifcado. A biodiversidade natural da sua área pode ser uma boa fontede inspiração para responder a essa pergunta. Áreas com condições maisrestritivas naturalmente têm um número menor de espécies, altamenteadaptadas. Seu sistema deve imitar isso; caso contrário, se tentar incorporar alium número muito maior de espécies, provavelmente vai falhar, ou vaiconseguir a um custo energético, e de trabalho e de importação de recursosdemasiadamente alto, o que pode ser insustentável.

Já no que diz respeito a que espécies utilizar, é conveniente ter uma lista decritérios para guiar suas escolhas, e sua busca por sementes. Tendo em mente os

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objetivos e os princívpios da permacultura, podemos estabelecer os seguintescritérios:

• Utilidade. Claro que todas as plantas têm alguma utilidade, masindubitavelmente algumas têm mais utilidade prática que outras. Aoconsiderar uma espécie a ser incorporada ao seu projeto, pergunte-se: essaplanta vai ser particularmente útil para você? Vai produzir alimentos quevocê possa consumir ou vender? Será uma boa fonte de madeira ou lenha,ou útil para adubação verde? Será particularmente útil ao ecossistemalocal, por exemplo, fomentando a fauna, trazendo pássaros, abelhas etc.?Ou, caso você tenha como foco a produção para venda, terá queconsiderar também, além da adaptabilidade às suas condições locais,questões mercadológicas, etc.

• É espécie nativa? Você não deve ser extremista e excluir todas as espéciesque não forem nativas da sua área, mas é sempre importante valorizar asnativas, ajudando a preservar e restaurar o ecossistema nativo da sua área.

• É espécie ameaçada? Procure incluir o maior número de espéciesameaçadas em se projeto, atuando assim de forma efetiva na preservaçãodessas espécies.

• Rusticidade/adaptabilidade. Principalmente nas fases iniciais dedesenvolvimento de um projeto de permacultura, é importante focar emespécies mais rústicas ou altamente adaptadas às suas condições locais(agricultura de sequência natural), e de preferência de desenvolvimentorápido. Não adianta levar em consideração todos os critérios anteriores,mas acabar escolhendo apenas espécies sensívveis e que difcilmentesobreviverão às suas condições particulares — você pode acabar sedesgastando muito, esgotando seus recursos, e morrer de velho sem verseu projeto avançar! As plantas mais adaptadas cumprirão o papel depioneiras, melhorando as condições para o estabelecimento de espéciescada vez mais sensívveis.

Qualquer espécie que preencher algum desses critérios pode serconsiderada em seu projeto, e quanto mais critérios ela satisfzer, maior suaprioridade. Por outro lado, você não deve desperdiçar seu tempo, energia eoutros recursos com espécies que não preencham esses critérios.

Algumas espécies preenchem vários ou mesmo todos esses critérios, edentre essas, algumas são PANCs. Exemplos de PANCs frutívferas, arbustivas earbóreas, incluem o cambuci, cambucá, grumixama, pitomba, guariroba, araçá,entre outras. Essas espécies devem ser sempre valorizadas, pois além dealimentívcias são também grandes fomentadoras da fauna silvestre.

Agora, é impossívvel saber antecipadamente quais espécies terão sucessoem seu terreno, com as suas condições particulares. É comum as pessoasassumirem que espécies nativas da área terão grande vantagem, mas muitas

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vezes isso não ocorre na prática, e os motivos para essa aparente contradiçãosão geralmente desconhecidos. Muitas vezes, espécies originárias de outrosecossistemas substancialmente longívnquos e diversos têm maior sucesso que asnativas da própria área. Por isso, o ideal é começar de forma bastante ampla,usando a maior variedade possívvel de espécies, e ir vendo quais dão mais certo,para depois focar nessas espécies. As espécies que não derem bom resultado,você pode abandonar, ou insistir de novo mais tarde, tentando abordagensdiferentes, a seu critério. Mas, quanto maior a sua base (número de espéciestentadas), mais opções você terá, e maiores suas chances de sucesso.

Fases de estabelecimento da agrofloresta

Podemos dividir o estabelecimento da agroforesta grosseiramente em trêsfases: a inicial, a de crescimento e a de produção.

A fase inicial é a fase de tratamento do solo e plantio de mudas, conformedescrito acima. Nessa fase, você concentrará seus esforços no plantio emanutenção inicial de suas plantas. Aqui, você terá que decidir que espéciesusará, e como será sua disposição. Alguns técnicos orientam a plantação dasdiferentes espécies na forma de padrões geometricamente regulares, porexemplo, fleiras intercaladas; outros, recomendam a plantação de oligoculturas,ou seja, o emprego de apenas duas ou três espécies consorciadas, e chamamisso de agroforesta. Essas estratégias são, a meu ver, inapropriadas, e mostramclaramente que seus propositores estão ainda em certa medida presos aoparadigma da agricultura convencional.

Claro que cada um terá sua própria abordagem, na escolha de onde plantarsuas mudas. O importante é ter sempre em mente o objetivo fnal, de se ter umaforesta semelhante a uma foresta natural, mas com uma proporção elevada deespécies úteis ao homem. Para isso, é fundamental conhecer as caracterívsticas enecessidades de cada espécie vegetal em relação a umidade, solo, espaço,exposição ao sol e interações com outras plantas e aspectos da topografa. Paraobter esse conhecimento, é preciso estudar sobre cada espécie do seu sistema,mas também observá-las em seu contexto natural e em situações práticas reais.Conversar com pessoas antigas do meio rural sobre este assunto também podeajudar bastante, pois eles têm uma enorme experiência, acumulada ao longo degerações. De posse dessas informações e observações, você deverá ser capaz deolhar para o seu terreno, andar por ele, e visualizar locais que parecemadequados para cada uma das suas espécies. Agindo assim, você terá umresultado fnal que parecerá aleatório aos olhos dos outros, mas que na verdadefoi cuidadosamente arquitetado. Claro que você cometerá erros, mas continuaráaprendendo, pela observação dos seus resultados, por tentativa e erro, e pornovas informações e conhecimentos que adquirir pelo caminho.

Nesta fase de plantio, você pode colocar as plantas relativamentepróximas, num plantio denso, sem pensar tanto em um espaçamento fnal, pois

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sempre haverá algumas perdas, ocorrendo então um certo raleamento.Conforme o seu sistema amadurece e as árvores fcam muito grandes, senecessário você pode fazer um desbaste, eliminando árvores improdutivas oudesnecessárias em função de outras, mais interessantes, julgando caso a caso.

Na fase de crescimento, seu principal trabalho será de cuidado das mudas,conforme descrito acima. A manutenção das bacias, bem como da coberturamorta do solo, e especialmente a proteção contra formigas, são essenciais nessafase, e a irrigação pode ser importante para garantir que suas árvores cresçam eentrem em produção o mais rápido possívvel. Nesta fase, você também poderáter que repor mudas que por algum motivo morreram.

A fase de produção é aquela por que tanto esperamos! Suas árvorescomeçarão a produzir, e você terá seu Jardim do Éden. Agora, você começará ater trabalho com colheita, além é claro de outros trabalhos de manutenção.

Conforme o sistema amadurece (estamos falando de várias décadas), podeocorrer uma queda na produtividade. Algumas árvores podem envelhecer eparar de produzir, enquanto outras podem crescer demasiadamente, inibindoespécies menores, etc. Portanto, para manutenção de uma alta produtividade,pode ser necessário imprimir uma certa taxa de renovação de sua agroforesta,com abate criterioso de algumas árvores e plantio de novas mudas.

Formigas cortadeiras

Quando você for fazer uma agroforesta, você terá que fazer algo arespeito das formigas cortadeiras — saúvas e quenquéns. Acredito que isso valepara qualquer parte do Brasil, e possivelmente qualquer parte da Américatropical, exceto talvez em grandes altitudes.

As formigas cortadeiras formam colônias imensas, com milhões deindivívduos. Seus ninhos são gigantescos, com até 200 m2 de área, e atingindoprofundidades de até 8 metros. Elas têm um apetite insaciável por plantas. Naverdade, elas não comem as plantas, e sim levam para a colônia, onde usam essamatéria vegetal para cultivar um fungo especívfco, do qual se alimentam.

Quando saem para forragear, saem aos milhares. Por onde passam,formam caminhos que são verdadeiras estradas de formigas! Elas escolhemuma planta, e cobrem essa planta de formigas enormes e vorazes. Vão cortandoe carregando os pedaços das folhas, e só param depois de desfolharcompletamente a pobre vívtima. Você chega, e encontra só o talinho, todo roívdo.Seu efeito sobre hortaliças e mudas de árvores é simplesmente devastador. Emum viveiro, podem destruir dezenas de mudas da noite para o dia.

Se você fzer uma pesquisa, encontrará várias propostas de técnicas para ocontrole natural das formigas cortadeiras. Porém, infelizmente, na prática todasdeixam muito a deseja, em termos de efciência. Por isso, ao invés de tentar

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combater as formigas, o melhor é proteger suas mudas e árvores jovens doataque através do uso de barreiras fívsicas que impeçam as formigas deatingirem as folhas.

Uma técnica bastante simples, barata e efetiva para proteger suas mudas éa do cone protetor, também chamado sainha anti-formiga ou técnica do“chapéu chinês”. Trata-se de um cone que pode ser feito recortando-secaixinhas de leite longa vida ou garrafas plásticas e grampeado ao redor docaule da muda; na parte inferior, aplica-se vaselina sólida, que é totalmenteatóxica e atua como um repelente efetivo contra as formigas. Devido aoformato e posição, o repelente fca protegido da chuva, garantindo suapermanência e efcácia por mais tempo. Porém, é necessária atenção, comvistorias regulares para verifcar a necessidade de reaplicação do repelente, ousubstituição do cone devido ao crescimento da planta. É necessário também quese mantenha uma boa camada de cobertura vegetal morta sobre o solo ao redorda planta, pois caso contrário as gotas de chuva, ao atingirem o solo, respingamna parte inferior do cone, retirando o repelente ou impregnando-o com terra,fazendo com que perca a efcácia.

Cone protetor contra formigas cortadeiras

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Recorte

Aplique vaselina

Grampeie Pronto!

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Animais na agrofloresta

Animais desempenham papéis vitais em qualquer foresta, comopolinização, disseminação de sementes, reciclagem de matéria orgânica, etc.Não existem forestas sem animais, por isso é incorreto dizer que os animaisestão na foresta — na verdade, eles são a foresta, são parte integrante einseparável dela. Os animais são a parte móvel da foresta. Por isso, elestambém devem estar presentes em qualquer agroforesta.

Claro que a existência de uma foresta luxuriante com abundância dealimentos, abrigo e água naturalmente atrairá animais de todas as espécieslocais, que visitarão e provavelmente se instalarão ali, sendo portantobenefciados, e assim a agroforesta desempenha um importantívssimo papel depreservação da fauna silvestre local e fomento da biodiversidade. Também aagroforesta é benefciada pelos serviços ambientais prestados pelos animais,especialmente pelo vital serviço de polinização e por trazerem em suas fezessementes de espécies vegetais silvestres que enriquecem ainda mais adiversidade do sistema.

A abundância de alimentos na agroforesta também signifca que vocêpode introduzir animais domésticos de várias espécies como parte do sistemaagroforestal. Esses animais ocuparão nichos diferenciados dentro do sistema, ealém de produzirem alimentos, também atuarão na reciclagem da matériaorgânica pela produção de esterco animal. Galinhas, vacas, cabras, porcos,patos, abelhas... praticamente qualquer espécie de animal doméstico deprodução pode ser incorporado em um sistema agroforestal, sendo que asespécies e raças mais indicadas variam de acordo com cada caso, fazendonecessárias experimentações e ajustes.

Agora, não basta apenas criar animais — na permacultura, devemosbuscar sempre uma criação eficiente de animais. Uma criação efciente é aquelaem que mais recursos são produzidos do que consumidos pelos animais. Aimensa maioria das criações de animais pelo mundo são terrivelmenteinefcientes do ponto de vista de uso dos recursos, pois a quantidade de recursosconsumidos é muito maior que os produzidos. Por exemplo, a quantidade degrãos consumida pelos animais daria para alimentar muito mais gente do que acarne, leite e ovos produzidos, ou seja, os animais criados na verdade estãocompetindo por alimentos com os humanos, e isso é um problema muito sério.Você muitas vezes vai encontrar um pecuarista gabando-se que suas vacasproduzem 30 litros de leite por dia, por exemplo, mas isso não muda o fato queele está de fato importando muito mais recursos (ração, energia) do queexportando na forma de leite, ou seja, sua fazenda é muito mais consumidorade alimentos do que produtora de alimentos. É justamente isso que devemosevitar.

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Na criação efciente, os animais utilizam predominantemente recursos quede outra forma seriam desperdiçados, como capim e outras ervas do sub-bosque, frutas caívdas, folhas de árvores, insetos, vermes, lesmas (para aves,suívnos e peixes), etc., convertendo efcientemente esses recursos em alimentosde alta qualidade para humanos.

Observe que, na criação efciente de animais, eles são parte integrante dosistema agroforestal (por isso também chamado sistema agrossilvipastoril),habitando o espaço entre as árvores. Sendo assim, a criação de animais nãoocupa espaço ela própria — ela ocupa o mesmo espaço da agroforesta,intercalando-se de forma móvel aos elementos vegetais (árvores). Agora, paraque essa criação integrada tenha sucesso, é fundamental que a escala de suacriação de animais seja compatívvel com a capacidade de suporte de suaagroforesta.

Claro que a criação de animais domésticos exige instalações adequadas(abrigo, piquetes, bebedouros), manejo adequado para evitar sofrimento,doenças e também danos ao sistema agrossilvipastoril e ao ambiente. Animaispodem ter um potencial destrutivo considerável, se invadirem uma horta, porexemplo. Já animais grandes como porcos e vacas podem causar problemas deerosão, se não forem manejados adequadamente.

A criação de animais em permacultura é um assunto que ainda necessitaser muito aprimorado e desenvolvido. Por isso mesmo, é difívcil obterinformações detalhadas e especívfcas sobre o assunto, já que praticamente nãohá literatura disponívvel. Sendo assim, neste atual estágio, para projetar eestabelecer os seus sistemas de criação de animais, o melhor que você podefazer é estudar aprofundadamente a literatura especializada na criação dasespécies de seu interesse e fazer as adaptações necessárias à luz dos princívpiosda permacultura, para que suas criações sejam efcientes, produtivas, saudáveise sustentáveis, perfeitamente integradas com os seus demais sistemasprodutivos e o meio ambiente em geral.

Abelhas

Abelhas merecem uma menção especial, pois além de produziremprodutos de alto valor, como mel e cera, ainda prestam um importantívssimoserviço ambiental na forma de polinização. As abelhas produzem seus produtosutilizando apenas recursos que de outra forma jamais seriam aproveitados parauso humano: o néctar e pólen das fores. E o melhor, fazem isso sem consumir asfores, e pelo contrário, ajudando-as, fazendo com que funcionem ainda melhorem sua função reprodutiva. Além do mel e cera, a apicultura pode render aindaoutros produtos úteis a humanos e com bom valor comercial: geleia real, pólen(ambos usados como suplementos nutricionais) e própolis (usado com fnsmedicinais).

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Além das abelhas da espécie Apis mellifera, que são as mais comumentecriadas ao redor do mundo, deve-se olhar também com carinho para a criaçãodas inúmeras espécies de abelhas nativas do continente americano (e tambémÁfrica e Oceania), especialmente as da tribo Meliponini, conhecidasvulgarmente como abelhas sem ferrão, grupo que inclui as jataívs, mandaçaias,uruçus, jandaívras e manduris, entre outras.

Embora a produção de mel seja substancialmente menor que das abelhasdo gênero Apis, a criação dessas espécies de abelhas é revestida de umsignifcado muito especial, pois representa um esforço de preservação dessasespécies tão lindas e tão ameaçadas pela destruição de seu habitat natural epoluição agrívcola por agrotóxicos. A preservação dessas espécies tambémrepresenta a preservação de inúmeras espécies de plantas que são polinizadasefcientemente somente por elas, e portanto de todos os organismos que delasdependem, ou seja, uma enorme parte dos ecossistemas. Além disso, a criaçãode abelhas sem ferrão (ou meliponicultura) tem profundas raívzes históricas eculturais, sendo praticada há milênios pelos maias, por exemplo. Trata-se aindade uma atividade extremamente recompensadora e prazerosa, que felizmenteganha adeptos apaixonados a cada dia. A criação de abelhas sem ferrão éconsiderada simples (o fato de elas não picarem também ajuda bastante) eacessívvel, e pode ser realizada praticamente em qualquer lugar, desde uma matafechada até mesmo na varanda de sua casa, e mesmo nas cidades. E paramelhorar ainda mais, há uma boa fartura de literatura e materiais didáticos etécnicos sobre o assunto disponívveis gratuitamente na internet.

Aquacultura

Em um projeto de permacultura, geralmente você terá grande quantidadede água armazenada na forma de lagoas artifciais. Além da função óbvia desuprimento de água para sua casa e sistemas produtivos entre outros, suas lagoasainda desempenharão outras funções, como encorajar a fauna silvestre local,criar microclimas favoráveis ao ecossistema, paisagismo, etc.

As lagoas têm ainda grande potencial na produção de alimentos, através daaquacultura. Pelos princívpios da permacultura, quanto mais funções umelemento do seu sistema desempenhar, melhor. Por isso, devemos sempreconsiderar a lagoa como local para abastecimento de água e produção aomesmo tempo, ou seja, seu uso na aquacultura.

A aquacultura na permacultura é radicalmente diferente da aquaculturacomercial convencional. Isso porque na aquacultura convencional, de formasemelhante à agricultura e pecuária, você tem sistemas de altívssimo consumo derecursos, como água e rações, além de grande geração de poluição das águaspor nutrientes, hormônios, drogas, etc. com grave impacto ambiental. Emcontraste, na permacultura imitamos os sistemas naturais, ou seja, como a

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produção ocorre em ecossistemas aquáticos, especifcamente lagos e lagoas. Ouseja, a aquacultura na permacultura funciona como uma “agroforesta aquática”.Você terá que ter uma vegetação aquática variada, crescendo naturalmente nasua lagoa, para servir de alimento e abrigo aos peixes, ou seja, criando ali umhabitat adequado. Também pode incluir diversas espécies em uma criaçãointegrada. A escolha dessas espécies deverá ser orientada por técnicos dasdiversas áreas da aquacultura, mas também será necessário fazer experimentospara aprender por tentativa e erro as espécies e combinações que darão certo nasua situação particular.

Você pode criar peixes, rãs, pitus (camarões de água doce), entre outros.Uma vez que suas lagoas estejam estabelecidas e cheias, com vegetação jáinstalada e estabilizada, e depois de passado pelo menos um ou dois anos, paravocê se certifcar que um bom nívvel de água é mantido o ano todo, entre emcontato com empresas e laboratórios especializados em aquacultura(piscicultura, ranicultura, carcinicultura, etc.), bem como departamentos deuniversidades nessas áreas, para obter orientações especívfcas em relação a queespécies usar, e técnicas de criações integradas.

Você terá que fazer análises da água de suas lagoas, o que orientará naescolha das espécies e correções necessárias às condições da lagoa parapropiciar a criação. Explique aos técnicos e fornecedores de alevinos, girinos elarvas os seus objetivos. Muitos não entenderão ou aceitarão, por estarempresos ao paradigma dominante da monocultura. Porém, alguns se interessarãopela ideia, e aceitarão com prazer o desafo de fazer diferente. O conhecimentodas combinações possívveis de espécies e ambientes deverá ser construívdo caso acaso, pois variam enormemente de acordo com as condições do ambiente local.

Você pode focar em animais que vivem naturalmente em águas paradas,já que essencialmente é isso que você terá nas suas lagoas. Ou então, podepensar em sistemas de agitação e aeração da água que tenham alta efciênciaenergética, aumentando suas opções de espécies.

Escolha espécies que possam ser alimentadas com produtos naturalmentedisponívveis no seu terreno: espécies de peixes frugívvoros que possam seralimentados com restos de frutas caívdas, e espécies herbívvoras que sealimentem de plantas aquáticas que crescem na própria lagoa, por exemplo.Você pode usar minhocas ou larvas de mosca soldado negra, criadas em suascomposteiras, para alimentar peixes e rãs. Também pode alimentar seus peixescom larvas de insetos, especialmente moscas, produzidas em larvários.Larvários são equipamentos destinados à produção de larvas, consistindo deuma bandeja de bordas elevadas (15 a 25 cm de altura), uma cobertura e umrecipiente coletor de chorume, no fundo. Na bandeja, depositam-se restosanimais e vegetais (restos de açougue e carcaças de animais mortos, vívsceras,etc., e também restos de frutas, comida estragada e, talvez, estrumes animais).

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Os restos orgânicos atrairão moscas, que ali depositarão seus ovos. Em poucosdias, você terá uma infnidade de larvas, que podem ser lançadas à lagoa paraalimentar os peixes (podendo ser fornecidas também a galinhas e outras aves).Após a colheita das larvas, os restos orgânicos e chorume devem seradicionados à composteira, e o larvário lavado para ser novamente utilizado. Oslarvários devem sempre contar com uma cobertura, para evitar entrada de águada chuva ou calor excessivo e desidratação pela ação do sol. A manutenção deumidade adequada é importante, pois permitirá o desenvolvimento máximo daslarvas que consumirão a matéria orgânica rapidamente. A colheita de larvasnormalmente se dá quatro dias após adição do material orgânico.

Zona 4

A zona quatro já é uma área onde você raramente vai. Ela pode ser umaagroforesta mais extensiva, sem podas, adubação ou irrigação, sendo maisviável portanto para espécies menos exigentes, mais rústicas ou adaptadas, alémé claro das nativas espontâneas. É uma zona ideal também para plantar espéciesmadeireiras para uso no futuro.

Por ser mais distante, menos manejada, o estabelecimento da zona quatrotende a ser mais demorado. Aqui, você pode focar nas técnicas de plantio maissimplifcadas; aplicará as técnicas adequadas de retenção de umidade, ou seja,bacia e cobertura vegetal, somente nas fases iniciais de estabelecimento.

Geralmente, irrigação não é viável na zona quatro. Por isso, deve-seprocurar plantar somente na primeira metade da estação chuvosa. Assim, vocêterá uma boa taxa de germinação de suas sementes, e com sorte a maioria desuas mudas conseguirão se desenvolver e enraizar sufcientemente parasobreviver ao perívodo seco subsequente.

Devido ao fato de ser um sistema bastante extensivo, de baixo manejo,você pode esperar por uma taxa de perdas considerável. Por isso, não tenhamedo de plantar em excesso, especialmente sementes, que têm baixo custo(sempre lembrando que sementes e mudas podem ter custo virtualmente zero,se você coletar suas próprias sementes e produzir suas próprias mudas).

Na fase de estabelecimento de sua agroforesta, que levará alguns anos,você vai ter que fazer manutenção periódica: controle de plantas indesejáveis,especialmente capins, para que não abafem suas mudas; refazer as bacias ereaplicar cobertura vegetal conforme necessário, replantar para substituir asmudas que morreram e, muito importante, proteger suas mudas do ataque deformigas cortadeiras com o cone protetor. Depois que a muda atinge uns 3metros de altura, geralmente já pode ser considerada fora de perigo, e vocêpode concentrar seus esforços somente nas menores.

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Após estabelecida sua agroforesta da zona quatro, você irá lá muitoraramente — somente mesmo para colher as frutas da estação, colher lenha,colher sementes de suas espécies forestais para ajudar na recuperação de outrasáreas (você pode doar e/ou vender sementes e mudas) e, no longo prazo, abateralguma árvore para utilização de sua madeira.

Aliás, por falar em madeira, é importante tocar em um assunto: ahumanidade se meteu em uma grave crise de abastecimento de madeira. Amadeira é um material essencial à humanidade, e após milênios de exploraçãopredatória, conseguimos praticamente acabar com esse recurso, sendo que asárvores de madeira nobre remanescentes devem ser preservadas a todo custo,pois correm sério risco de extinção. Por isso, quando planejamos e plantamosagroforestas, devemos sempre incluir árvores madeireiras de alta qualidade,especialmente as ameaçadas, visando ao mesmo tempo sua preservação e seuuso futuro. É importante não confundir isso com aquele discurso mentiroso dosmadeireiros e grandes desmatadores, empreiteiras e corporações poluentes emgeral, que prometem que “para cada árvore cortada, plantarão cem novasárvores”. Isso não passa de uma jogada de greenwashing*, ou seja, uma mentiracontada por empresas para conseguirem destruir o quanto quiserem, e aindaposar de defensoras da natureza. Agora, vá você lá, peça para eles te mostrarema foresta que estão plantando. Será que existe mesmo? Será que as mudinhasque plantaram realmente compensam pelas árvores destruívdas?

O que devemos fazer é plantar muitas árvores, para que no futuropossamos, nós ou nossos flhos e netos, colher parte dessas árvores, e que nossosdescendentes também plantem, para que os seus flhos e netos também possamconsumir, e que isso se torne uma tradição em que todas as gerações plantemárvores, de modo que sempre haverá madeira de qualidade para ser colhida, eque a quantidade de árvores e madeiras disponívveis só aumente com o passar dotempo — exatamente o oposto do que a humanidade vem fazendo.

Corredores ecológicos

As zonas 3, 4 e 5, por serem mantidas cobertas por agroforestas eforestas, podem ser consideradas áreas de preservação ambiental permanente.

No nosso planejamento por zonas de proximidade e intensidade, essaszonas mais extensivas são, naturalmente, dispostas de forma periférica noterreno, ou seja, mais afastadas da casa e cobrindo a área das margens,estendendo-se até os limites com as propriedades vizinhas, e isso traz um efeitobenéfco de particular importância, pois essas zonas passam a cumprir o papel

* Greenwashing ou “lavagem verde” é uma técnica ardilosa de marketing usada porempresas causadoras de grande impacto ambiental para iludir seus consumidores queseus produtos ou práticas são ecológicas, visando aumentar a aceitabilidade pública e,consequentemente, vender mais.

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de corredores ecológicos.

Os ecossistemas ao redor do mundo estão sofrendo não apenas por suadestruição, mas também por sua fragmentação. Não basta que haja áreas com oambiente preservado, sendo também de vital importância que essas áreas sejamconectadas, e não isoladas. Essa conexão é essencial para que haja o fuxo deanimais e plantas (sementes), microrganismos, etc. de uma área para outra.Quando você tem áreas de natureza preservada mas essas estão isoladas umasdas outras, por exemplo por áreas de pastagens ou estradas largas, ou grandescidades, etc., isso traz vários problemas, pois a maioria dos animais sãoincapazes de atravessar esses obstáculos, fcando presos, “ilhados” em umdesses bolsões de natureza. Animais que necessitam de vastas áreas, comograndes felinos, por exemplo, veem-se extremamente prejudicados nessasituação, pois a “ilha” de natureza onde se encontram talvez não contenharecursos (e.g. presas) sufcientes, mas teriam sua sobrevivência garantida sepudessem transitar entre as áreas preservadas, ou seja, se fossem conectadas.Assim, elas passariam a representar uma grande área que seria, sim, capaz desustentar aquela espécie em questão.

Outra questão vital é a do fuxo genético entre as diferentes áreas. Sabe-seque a diversidade genética é vital para a saúde das populações de animais eplantas. Quando poucos indivívduos são mantidos isolados dos demais da suaespécie, o que acaba ocorrendo é o endocruzamento, o que leva a uma alta taxade homozigose, trazendo efeitos deletérios à saúde, que em casos extremospode levar ao colapso populacional e extinções de espécies. É isso quecomumente ocorre quando você tem áreas naturais isoladas umas das outras,impedindo o fuxo genético entre elas.

Corredores ecológicos, também chamados corredores de biodiversidade,são faixas de vegetação preservada que ligam fragmentos forestais (ou deoutros ecossistemas) remanescentes separados pelas atividades humanas(desmatamento, pastagens, agricultura, cidades, etc.), possibilitando odeslocamento da fauna entre esses fragmentos e, consequentemente, a dispersãode sementes, contribuindo portanto para a preservação da diversidade genéticae do ecossistema como um todo.

Perceba que não estamos falando de aumentar a área de preservação(embora isso também seja muito importante!), mas sim de conectar asdiferentes áreas. Por exemplo, você pode ter 20% de natureza preservada emuma região, e ter uma redução progressiva na saúde genética desse ecossistema,e espécies irem desaparecendo ao longo do tempo, porque essas áreas denatureza preservada estão desconectadas, formando “ilhas”. Se esses mesmos20% fossem conectados através de corredores ecológicos, você teria umaestabilidade muito maior do ecossistema, ou seja, um desempenho bem melhorda função de preservação ambiental.

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“A disposição de áreas de preservação nas margens daspropriedades cria corredores de biodiversidade.”

Isso vale para qualquer região do mundo. Todas as áreas rurais deveriamcontar com áreas de proteção ambiental, conectadas formando corredoresecológicos. Agora, isso é simples de se fazer: basta que todas as propriedadesrurais disponham suas áreas de preservação nas margens do terreno, mantendo avegetação preservada numa faixa ao longo das divisas com outras propriedades.Assim, essas áreas de preservação das diferentes propriedades se fundem,formando uma malha que permite o livre fuxo dos animais e da biodiversidadeem geral. Isso acontece automaticamente na permacultura, pelo planejamentopor zonas.

Zona 5

Este é o seu santuário natural, seu maior tributo à natureza. Aqui, faça umreforestamento com espécies nativas, visando a reconstituição do ecossistemalocal. Plante espécies ameaçadas do bioma da sua região. Também planteespécies frutívferas nativas, para nutrir e encorajar a fauna local.

Quanto ao estabelecimento, é semelhante ao da zona quatro. Apósestabelecida sua zona cinco, esse será um local onde você quase nunca vai —exceto para meditar quietamente, ou verifcar se não há algum problema. Éimportante não perturbar essa área, para não afugentar aquelas espécies muitosensívveis que simplesmente não toleram a presença humana. Não entre lá paraapanhar lenha — deixe-a apodrecer ali mesmo, como sempre foi na natureza.

Pense na sua zona 5 como uma espécie de “mata virgem do futuro”, que,com algum otimismo, daqui a alguns séculos ainda estará lá, com algumas dasárvores que você mesmo plantou ainda vivendo lá, assim como descendentes deoutras árvores que você plantou, e outras que vieram sozinhas, em meio a umecossistema completo e perfeito, servindo de refúgio e expansão de vida naturalpara toda a área ao seu redor.

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Estabelecendo um projeto de permacultura rural

Começar um projeto de permacultura rural é um grande empreendimento,que exige planejamento extenso e cuidadoso, recursos fnanceiros e muitadeterminação e paciência. Viver da terra e em harmonia com a natureza é oestilo de vida mais digno que pode existir; porém, para quem está acostumado aum estilo de vida urbano, isso representa uma mudança radical. Sem dúvida,trata-se de uma mudança que vale a pena, e de fato uma mudança necessária,mas ilude-se quem pensa que é uma mudança fácil.

Muitas pessoas imaginam que a principal barreira a essa mudança de vida éa aquisição de um pedaço de terra onde possam desenvolver seus projetos.Porém, esse é na verdade apenas um de muitos obstáculos nessa corrida. Pode-sedizer que as coisas mais importantes são em primeiro lugar ter conhecimento dapermacultura, e em segundo lugar ter um plano sólido, uma estratégia bembolada para viabilizar a transição, a mudança do estilo de vida que se tem para oque se deseja alcançar. Só então se pode pensar em adquirir o terreno, passandonecessariamente pelo obstáculo fnanceiro. E por último, mas não menosimportante (de fato, absolutamente essencial), é necessário ter a coragem, agarra e a determinação para fazer seu projeto dar certo.

A aquisição de conhecimentos sobre a permacultura será discutida em umcapívtulo especívfco (capívtulo 16, “Aprendizado da Permacultura”).

Estratégia de transição

São muitos os pontos a considerar quando da elaboração do plano detransição para um projeto de permacultura rural. Entre eles, podemos destacar:

• Objetivos• Atividades a serem desenvolvidas• Modelo de assentamento• Escala• Escolha da região• Escolha do terreno• Aquisição do terreno• Estratégia de implementação do projeto em si

Os objetivos especívfcos de um projeto de permacultura podem variarenormemente de pessoa para pessoa. Claro que os objetivos gerais dapermacultura, de prover as necessidades humanas enquanto preservando erestaurando o meio ambiente, devem ocupar uma posição central em qualquerprojeto, mas isso ainda dá margem a uma imensa variação de objetivosespecívfcos.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

O foco pode ser apenas uma moradia ecológica, feita com materiais etécnicas naturais, alta efciência energética, captação de água de chuva etratamento sanitário de efuentes, com um limitado esforço em produção dealimentos; pode ser voltado para produção de alimentos para consumo próprio,em pequena escala, ou uma produção comercial de alimentos e outros produtosorgânicos. Um projeto de permacultura pode visar alcançar um estilo de vidaaltamente natural, integrado aos ciclos da natureza, autossufciente, ou mesmoprimitivo! Pode ainda ser voltado para a pesquisa, promoção e divulgação dapermacultura, ou seja, um centro de permacultura, etc. É bom que essesobjetivos já estejam estipulados desde o inívcio do planejamento do projeto, paramelhor guiar as estratégias e esforços em seu estabelecimento. Mas claro quenada impede uma mudança de foco no decorrer do desenvolvimento do projeto.

Atividades a serem desenvolvidas no projeto. Aqui, as opções sãoinúmeras, sendo limitadas apenas pelas éticas da permacultura (ou seja,atividades que fram essas éticas não devem ser consideradas). Cultivo orgânicode alimentos, sejam hortaliças, grãos, frutas, etc., aliado a atividades depreservação e recuperação ambiental são essenciais a qualquer projeto depermacultura rural. Agora, você tem inúmeras outras opções de atividades quepodem ser desenvolvidas, seja para suprir suas necessidades ou uma satisfaçãopessoal, ou para contribuir para a sociedade e o meio ambiente de diferentesformas, ou com a fnalidade de obter uma renda, etc. Por exemplo, a produçãode outros produtos vegetais úteis, como madeiras, fbras, ervas medicinais;reforestamento e estabelecimento de agroforestas; criação de animais para fnsalimentívcios e/ou conservação de espécies nativas e fomento da fauna;aquacultura, tanto para produtos animais como vegetais; apicultura emeliponicultura; produção de cogumelos comestívveis; reciclagem de materiais,hospedagem, educação ambiental, terapias holívsticas, atividades artívsticas erecreativas, etc. Essas atividades podem ser desenvolvidas de forma individualou coletiva, de modo informal ou através de uma empresa privada, algum tipo deassociação ou mesmo organização não governamental (ONG), etc.

A escolha das atividades a serem desenvolvidas depende essencialmentedos interesses e aptidões do permacultor, mas sempre levando em consideraçãotambém os potenciais do terreno e da região (e.g. demandas do mercado). Épreciso ter uma mente aberta e uma postura fexívvel, pois esses fatoresinfuenciam-se mutuamente, moldando o que será o projeto. Por exemplo, osinteresses do permacultor infuirão na escolha do terreno e da região, de forma apossibilitar suas atividades; porém, o terreno em si também infuirá na decisãode que atividades serão desenvolvidas. Por exemplo, o permacultor poderia nãoestar pensando inicialmente em focar em aquacultura, mas caso o terrenoescolhido seja muito favorável, isso pode e deve despertar tal interesse. Damesma forma, uma demanda regional por turismo rural ou ecoturismo, ou seja,um turismo mesclado com educação ambiental, poderá estimular o permacultora investir nessas atividades. Há que se ter em mente que não existem terrenos

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feitos sob medida, ou seja, na procura de um pedaço de terra, você jamaisencontrará algum que se encaixe perfeitamente nas suas expectativas, e o mesmopode ser dito da região em que se encontra. Então, você terá que escolher entreas opções reais disponívveis. Mas isso deve ser encarado de forma positiva, poistrará desafos interessantes, e oportunidades que você nem tinha imaginado.

Modelo de assentamento. Um projeto de permacultura rural pode serindividual ou coletivo. Projetos individuais têm a vantagem de permitir aopermacultor maior liberdade em todas as escolhas envolvidas na elaboração doprojeto, desde a escolha do local, do terreno, das atividades desenvolvidas, etc.Um assentamento permacultural coletivo é o que chamamos de ecovila. Issooferece a grande vantagem de não se estar sozinho: claro que todos os trabalhostendem a render mais se feitos a muitas mãos; muitas cabeças também pensammelhor que uma, então ao menos teoricamente a participação de várias pessoasajudaria na elaboração de projetos mais efcientes. Além do mais, umassentamento coletivo possibilita um contexto social muito mais favorável,levando a uma qualidade de vida melhor. Porém, a opção de um assentamentocoletivo também traz importantes desafos: formar um grupo é geralmente muitodifívcil, pois embora sempre haja pessoas interessadas em formar uma ecovila,poucos estão de fato preparados para fazer essa mudança em seu estilo de vida,ou dispostos a deixar sua zona de conforto, seus empregos, etc. e se mudar paraa zona rural, trabalhar a terra, etc. Além disso, quando todas as decisões devemser tomadas por consenso, isso implica no tolhimento da liberdade de cada umtentar o que quer, experimentar coisas diferentes, etc., o que costuma levar afrustrações. Do mesmo modo, a obrigação de se fazer o que foi determinado pelamaioria, mesmo que não se concorde com o que foi decidido, é muitas vezesdesmotivante. Outro problema é que, geralmente, há membros que seempenham muito no estabelecimento e manutenção da ecovila, enquanto outrosnão, o que gera confitos e todo tipo de problemas de relacionamento. Ecovilasserão discutidas em maior detalhe no capívtulo 15, “Comunidades emPermacultura”.

Escala. A permacultura é aplicável em qualquer escala, pois os princívpios etécnicas da permacultura funcionam tanto em um pequeno quintal como emcentenas de hectares de terra. Nada impede o estabelecimento de umaagroforesta altamente produtiva e ambientalmente benéfca em uma grandefazenda, por exemplo. Porém, em relação à escala de projetos de permacultura,há alguns pontos que merecem consideração.

Pela terceira ética da permacultura (partilha justa), não devemos possuirmais bens ou utilizar mais recursos que o necessário para a nossa vida. Sendoassim, pode-se dizer que a acumulação de terras fere essa ética, de modo queseria paradoxal pensar em um latifúndio permacultural. Por outro lado, aconversão de terras da agricultura convencional para a permacultura éextremamente benéfca para a natureza, e também para a sociedade, quer pelos

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serviços ambientais prestados, ou pelos alimentos naturais e saudáveisproduzidos, etc.

Porém, outro ponto importante é que a permacultura representa um estilode vida simples e em contato e integração com a natureza e todos os seuselementos — uma vida de intimidade com a terra e todas as coisas que vivemnela. Agora, é impossívvel a qualquer pessoa ter intimidade com uma vasta áreade terra. Um contato próximo, ívntimo com a natureza, no pleno e verdadeirosentido de cuidar da terra limita o tamanho da área que cada um podeefetivamente ocupar, utilizar e cuidar a um pedaço relativamente pequeno.

De qualquer forma, a despeito dessas que são considerações flosófcas,resta o fato que a grande maioria dos projetos de permacultura rural sãodesenvolvidos em áreas pequenas, chácaras de 1000 m2 a até uns 10 hectares.Por esse motivo, focaremos nossa discussão sobre permacultura rural emprojetos de pequena escala.

Escolha da região. Na maioria das vezes, pessoas interessadas em iniciarum projeto de permacultura rural vêm de um contexto urbano, muitas vezes degrandes cidades. Isso implica na necessidade de se mudar para uma outra região,e diversos fatores devem ser considerados na escolha desse novo local.

Se o permacultor já tiver um local conhecido com o qual sente grandeafnidade, isso pode ser um bom ponto de partida. Já conhecer o local e gostardele é uma grande vantagem, pois mudar-se para um local desconhecido trazsempre riscos muito maiores de não adaptação.

Outro fator importante a ser levado em consideração é o contexto humanodo local. Deve-se ter em mente que o estilo de vida da permacultura é muitodiferente do da maioria das pessoas, tanto do meio urbano como rural. Vocêestará buscando recuperação ambiental e reintegração com os ciclos naturais,etc., enquanto a maioria das pessoas, inclusive na zona rural, buscam coisas bemdiferentes. Inserir-se num meio qualquer pode signifcar isolamento e a nãoaceitação do permacultor pela comunidade local, pelas pessoas que já estão lá.Acontece que integração e bom relacionamento com a sociedade maior ao seuredor são essenciais para que um projeto de permacultura atinja o máximo deseu potencial transformador, sendo fundamental também para o bem-estar,felicidade e realização do permacultor, já que nenhum homem é uma ilha, eninguém é feliz isolado. E não se trata apenas de bem-estar — uma situaçãodessas de isolamento e confito com a sociedade ao redor pode representar umempecilho imenso, reduzindo substancialmente as suas chances de sucesso nolocal, ou seja, a sobrevivência do seu projeto. E não espere que você vai sercapaz de mudar a cabeça das outras pessoas. Embora isso não seja impossívvel, éum processo demorado, e em muitos casos simplesmente não acontece; portanto,não se deve jamais contar com isso.

Sendo assim, é muito importante que, ao se escolher o local para umprojeto de permacultura, procure-se um lugar com uma certa pegada alternativa,

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onde estilos de vida não convencionais sejam comuns e bem aceitos, e depreferência onde já haja pessoas desenvolvendo alguma atividade afm, comoagricultura orgânica, biodinâmica ou permacultura mesmo, pedagogiasalternativas, onde haja alguma ONG ambientalista ativa, etc. Trazer um novoprojeto de permacultura a uma região onde já haja iniciativas semelhantesfortalecerá a todos. Deve-se ter em mente que o isolamento enfraquece à mesmamedida que a união fortalece, e estabelecer com sucesso um projeto depermacultura normalmente já é um desafo grande o sufciente — não se deveprocurar por empecilhos extras!

Claro que isso não quer dizer que jamais haverá projetos de permaculturaem novos lugares. Porém, novos projetos de permacultura em locais onde aindanão há uma mentalidade alternativa devem ser iniciados preferencialmente porpessoas já estabelecidas na região, moradores já conhecidos por todos, porexemplo, ou por permacultores experientes, que terão o respaldo de suareputação para conquistar o respeito e até despertar a curiosidade e interesse dacomunidade local.

A escolha da região também deve levar em consideração a estratégia deimplementação (discutida mais adiante) do projeto, ou seja, o plano de transição.Por exemplo, no caso de um profssional de determinada área que planejetrabalhar meio perívodo em sua profssão enquanto investe na construção de seuprojeto, a região escolhida deve possibilitar esse trabalho, ou seja, deve haverdemanda e oportunidade para que esse plano dê certo.

A escolha do terreno é outro ponto crívtico óbvio no estabelecimento deum novo projeto de permacultura rural. Na escolha do terreno, vários são osfatores a serem considerados:

• Tamanho, a ser defnido de acordo com as atividades a serem desenvolvidasno projeto.

• Preço. Tem que ser compatívvel com as condições fnanceiras dopermacultor ou grupo.

• Acesso e distância da cidade. Às vezes, a pessoa encontra um “terreno dossonhos”, com muito verde, natureza, nascentes ou mesmo cachoeiras, etc.,mas... a 30 km da cidade mais próxima, com acesso precário. É receitainfalívvel para o sonho virar pesadelo! Aqui, é preciso ser realista:implementar um projeto de permacultura rural não é brincadeira, e umadistância excessiva da cidade mais próxima pode ser o fator fatal paratornar o sonho inviável. A implementação do projeto invariavelmentelevará anos, e por todo esse perívodo você precisará conciliar a construçãodo projeto com um emprego ou fonte de renda, o que signifcará idas evindas frequentes, provavelmente diárias à cidade, e uma grande distânciasignifcará altos custos de tempo e dinheiro, além de impacto ambiental(poluição do seu veívculo). Mesmo quando o projeto estiver maduro, quanto

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maior a distância, maior a difculdade de vender sua produção, porexemplo. E se o terreno não for servido por transporte escolar? Issosignifcará que jamais poderá haver crianças no projeto — detalhe muitasvezes esquecido na hora da escolha do terreno. Claro que sempre se podecriar uma escola dentro do próprio projeto ou ecovila; porém, isso levaráanos para ser possívvel ou viável, e um projeto iniciado em um terrenomuito remoto provavelmente não durará tanto, ou não atrairá um númerosufciente de pessoas, justamente pela difculdade de se romperem todas asbarreiras adicionais impostas pela distância e isolamento. Muitas vezes, de tão desgostosas com a sociedade e as cidades, osaspirantes a permacultores escolhem deliberadamente um terreno o maisisolado possívvel “da civilização”. Cometem assim um erro fatal, que via deregra leva ao fracasso de sua iniciativa, lançando-as de volta àquela mesmarealidade da qual queriam se distanciar.

• Vizinhança. O mesmo já exposto em relação à escolha da região valetambém para a escolha do terreno em si, em relação ao contexto humanoda vizinhança. A vizinhança imediata é como um “microclima” — serão aspessoas com quem você mais terá contato. É importante evitar terrenoscom vizinhos indesejáveis, como aqueles que praticam uma agriculturapredatória (desmatamento, pesticidas, queimadas), terrenos cortados porrios poluívdos, vizinhanças violentas, com altos ívndices de criminalidade,etc.

• O terreno em si, deve ser um local agradável, atrativo, um local onde opermacultor deseje se instalar. Isso é muito subjetivo, mas muitoimportante. Você deve se sentir bem no local, e enxergar nele o potencialde criar ali o paraívso que deseja. Isso signifca uma afnidade, uma sensaçãode pertencimento — não que o local pertença ao homem, mas sim que ohomem pertença ao local. Esse vívnculo é essencial para a motivação, oamor e o empenho que serão necessários na construção do projeto.

• As condições do terreno. Muitas pessoas, sonhando em viver “em harmoniacom a natureza”, procuram um terreno coberto de matas nativas eecossistemas intactos. Mas isso na verdade é um grande erro, pois assim,normalmente o que essa pessoa estará fazendo na prática é justamente levardegradação e poluição a esse local, onde esses problemas não existiam.Claro que é sempre bom ter um pedaço de mata no seu terreno, para vocêusufruir e, acima de tudo, proteger; porém, é muito importante que oterreno escolhido para um projeto de permacultura rural possa ser de fatoele mesmo benefciado pelo projeto, ou seja, é na verdade preferívvelescolher um terreno degradado, para que o permacultor possa empenhar-sena recuperação do solo, da água e dos ecossistemas nesse pedaço de chão,de forma que seu papel em relação ao mundo natural seja um papelpositivo. Porém, é preciso tomar cuidado com terrenos muito desafadores,

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que trarão difculdades excessivas para a implementação do projeto, poisisso signifcará que serão necessários muito mais tempo e recursos até quese consiga torná-lo habitável e obter algum retorno, o que pode, na prática,inviabilizar o projeto.

É importante ressaltar que os critérios aplicados à escolha de um terrenopara iniciar um projeto de permacultura rural são diferentes dos utilizados poragricultores convencionais. Isso porque os objetivos são radicalmente diferentes:o permacultor busca uma vida natural e sustentável, em harmonia com anatureza, enquanto o agricultor busca apenas sucesso fnanceiro para seuempreendimento rural, ou seja, está preocupado apenas com lucro. Assim,quando você estiver procurando terrenos para iniciar um projeto depermacultura, ouvirá muitas pessoas aconselhando a comprar terrenos comterras férteis e abundância de água. Para o permacultor, esses não são critériosprioritários, já que o permacultor está interessado em construir a fertilidade dosolo e cultivar a água, ao invés de apenas explorá-los.

Aquisição do terreno. Você pode ser a favor ou contra a ideia dapropriedade privada de terra; porém, o fato é que essa é a situação vigente nanossa sociedade, e portanto a realidade a ser encontrada por praticamente todasas pessoas interessadas em iniciar um projeto de permacultura rural. Por maisesdrúxulo que possa ser considerado o conceito de propriedade privada de umpedaço do planeta que existe ali desde sempre sem que isso seja mérito dequalquer pessoa, especialmente nos casos tão comuns em que esse pedaço deterra está abandonado, mantido como propriedade ou posse de alguém apenascomo forma de manutenção e acumulação de riqueza, e mesmo que vocêconsidere que esse sistema tem que ser revisto, é inútil ou pelo menoscontraproducente tentar modifcar isso justo no momento de iniciar um projetode permacultura, quando já se terá que enfrentar inúmeros desafos, sendoportanto um momento delicado. Portanto, é importante ser realista: para seiniciar um projeto de permacultura rural, você precisará de capital para comprarterras (a não ser, claro, que você já possua terra).

Um projeto de permacultura é um projeto de longo prazo: construir afertilidade do solo, plantar água e recuperar ecossistemas, tudo isso leva umcerto tempo para se estabelecer e colher os benefívcios, que serão permanentes.Portanto, geralmente não é recomendável iniciar um projeto de permacultura emterrenos dos outros, alugados ou arrendados, etc. Certamente não érecomendável tentar iniciar o seu projeto de vida nessas condições! Talvez vocêencontre um parente, amigo ou vizinho que tenha terras ociosas e esteja dispostoa emprestá-las para você, ao ouvir suas ideias. Não há nada de errado em aceitar,e começar a fazer algumas coisas nesse terreno, especialmente se você for umpermacultor iniciante e não tiver condições de iniciar um projeto defnitivo, sejapor não ter condições fnanceiras de comprar terras, ou por ainda estar preso a

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situações como estudo, trabalho etc. Esse tipo de oportunidade pode ser útil parapôr em prática os princívpios da permacultura, adquirir experiência, etc. Mas éimportante ter em mente que se trata de um projeto provisório, e não fazergrandes investimentos ou criar expectativas de longo prazo, pois a qualquermomento o dono tomará o terreno de volta e destruirá tudo o que você estavafazendo ali. Isso é muito comum. Portanto, aceite a oportunidade, se quiser, masnão se apegue ao terreno que não é seu! Essa mesma recomendação se aplicatambém a projetos de permacultura urbana, como veremos mais adiante nocapívtulo 13.

Infelizmente, fnanciamentos ou empréstimos geralmente não sãodisponívveis a pessoas interessadas em iniciar projetos de permacultura.Financiamentos para comprar terras agrívcolas em geral são bastante restritos enão acessívveis a pessoas que ainda não tem terras nem são agricultores. Alémdisso, tais fnanciamentos, quando existentes, obrigam o contratante a seguirrecomendações técnicas impostas pelo banco, que na prática impedem aaplicação dos princívpios da permacultura, pois são ditadas pela agriculturaconvencional.

Além do mais, não é uma boa ideia se endividar para iniciar um projeto depermacultura. Não que a permacultura não possa dar lucro, mas por se tratar deum empreendimento de longo prazo e largamente experimental, especialmenteno caso de permacultores iniciantes, não se deve contar com lucros a curto emédio prazo. A pressão de uma dívvida, e especialmente dos juros, podesignifcar um fm triste para um projeto que quer nascer.

Por tudo isso, a forma mais segura e mais indicada de se aquirir terra parainiciar um projeto de permacultura é com recursos próprios. Eu sei que podesoar desanimador, mas caso ainda não se disponha dos recursos, vale a pena sesegurar no emprego por mais um tempo, ou arrumar um emprego caso já nãotenha um, e economizar ao máximo para poder juntar o dinheiro necessário, nomais curto prazo possívvel. Essa “espera” não é necessariamente uma coisa ruim:esse perívodo deve ser utilizado para que o aspirante a permacultor obtenha omáximo de informações possívvel sobre a permacultura, leia livros, veja vívdeos,participe de fóruns... adquira experiência prática realizando trabalhos voluntáriosaos fnais de semana e férias, procure cuidadosamente por um local, conhecendotodas as opções de regiões e terrenos, etc. Enquanto faz isso tudo, o permacultordeverá planejar cuidadosamente seu projeto, agregando os conceitos que sãoaprendidos, e as caracterívsticas dos terrenos visitados, etc. Tudo isso leva tempopara amadurecer! Sendo assim, não há qualquer lugar para imediatismo.Inclusive, caso o aspirante julgue que não tem condições de ter uma rendasufciente para levantar os recursos para aquisição de um terreno, por exemplopor não ter uma profssão, então ele deve focar inicialmente em adquirir umaqualifcação que o habilite a tal. Até porque, como veremos a seguir, anecessidade de recursos fnanceiros não cessa com a compra do terreno! Énecessário ter paciência, o que é muito diferente de acomodação; toda conquista

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requer sacrifívcio. Essa é a receita para se alcançar qualquer coisa, e com umprojeto de permacultura não é diferente.

Estratégia de implementação do projeto.Conforme já citado, a aquisição do terreno é apenas um dos pontos que

necessitará de recursos fnanceiros. Suponha que você ganhe um terreno, degraça, com escritura e tudo. E daív? você acha que simplesmente se mudará parao terreno, e viverá “em harmonia com a natureza”, feliz para sempre? Comendocapim e dormindo ao relento, no sol, no vento e na chuva?

O estabelecimento de um projeto de permacultura inevitavelmente requer,além de preparo (conhecimento teórico e prático da permacultura) e dosesconsideráveis de dedicação e esforço, também recursos fnanceiros e um tempoconsiderável (alguns anos). Portanto, provavelmente o ponto mais importante noestabelecimento de um projeto de permacultura é a sua estratégia deimplementação. É preciso elaborar um plano sólido que viabilize a transição, apassagem da situação em que se está, para a que se deseja alcançar.Essencialmente, é necessário encontrar uma forma de emprego ou renda quepermita sua sobrevivência, morando no local (terreno) ou próximo o sufciente(por exemplo, a cidade mais próxima), e ainda permita tempo livre sufcientepara você poder se dedicar à construção do projeto.

Por exemplo, pode-se pensar em um emprego de meio perívodo, seja nosetor público ou privado, ou mesmo no terceiro setor (ONGs); atuar comoprofssional autônomo em qualquer área; iniciar um empreendimento, na área decomércio ou hospedagem, etc. Uma opção excelente são trabalhos que possamser feitos pela internet, como tradução, edição, design gráfco e web design, etc.,pois permitem que se trabalhe praticamente de qualquer lugar, desde que tenhaeletricidade e acesso à internet, com a vantagem adicional de uma grandefexibilidade de horários. Enfm, as opções são inúmeras, praticamenteilimitadas, dependendo basicamente das aptidões do permacultor, das demandaslocais, mas especialmente da criatividade e capacidade de enxergaroportunidades, fexibilidade e determinação por parte do permacultor. Talvezseja necessário ou vantajoso investir na aquisição de uma nova aptidãoprofssional que seja mais viável como parte da estratégia de transição.

Claro que é chato você ter que se manter preso a um tipo de emprego doqual você quer se ver livre para poder viabilizar sua transição para um estilo devida que você deseja, ou seja, um estilo de vida mais natural, livre eindependente através da permacultura. Assim, o ideal seria ter como fonte derenda um trabalho com permacultura para viabilizar essa transição. Isso épossívvel, como será apresentado no capívtulo 17, “Consultoria e Prestação deServiços em Permacultura”. Porém, isso não é tão simples, pois a demanda poresse tipo de trabalho remunerado nem sempre é sufciente, e o permacultoriniciante via de regra tampouco tem experiência sufciente para prestar esse tipode serviço de forma profssional.

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Na maioria dos casos, especialmente se você vai se mudar para outra áreaou mudar de atividade econômica, é impossívvel ter certeza que seu planofuncionará. Talvez não haja demanda para o produto que você deseja vender ouserviço que pretende prestar, ou talvez os custos e difculdades sejam maioresque o esperado, etc. Por isso, é importante ter não apenas um plano, masconsiderar várias opções, ou seja, uma opção principal ou plano A, e opçõesalternativas, planos B, C, etc., para te dar mais chances de sucesso. É vital quevocê tenha tudo isso pensado, planejado e preparado com antecedência, e nãodeixar para “se virar na hora”, caso seu plano dê errado! Isso é muitoimportante.

Outra coisa que vale menção é que nem sempre você desejará abandonardefnitivamente sua profssão ou ocupação econômica e substituív-la totalmentepela produção de alimentos, por exemplo. Na maioria dos casos, é possívvelconciliar as duas coisas, ou seja, continuar desempenhando uma atividade quegosta e faz bem, paralelamente às atividades permaculturais, mesmo depois queseu projeto estiver pronto e maduro.

Fases da implementação de um projeto de permacultura rural

Pode-se dizer que o primeiro passo para alguém iniciar um projeto depermacultura inicia-se antes mesmo de conhecer a permacultura: trata-se dedesejar intimamente uma mudança para um estilo de vida simples, natural esaudável, longe da artifcialização, competitividade exacerbada e falta de sentidoda vida caracterívsticos do estilo de vida convencional na sociedade atual. Issodepende apenas de cada um (algumas pessoas parecem bem adaptadas a esseestilo de vida moderno convencional, o que é assustador!).

O segundo passo é, sem dúvida, aprender sobre a permacultura, tanto nateoria como na prática, com o máximo de profundidade possívvel. Aqui, não seiluda: não vai ser um curso de duas semanas, ou a leitura de um único livro, queo deixarão preparado para essa mudança! Isso é apenas um começo. Esseassunto será discutido em detalhes no capívtulo 16, “Aprendizado daPermacultura”.

Então, você decide, com conhecimento de causa, que está pronto para selançar ao desafo de abraçar esse estilo de vida, para deixar de ser somente partedo problema da insustentabilidade de nossa civilização e passar a ser parte dasolução, através da permacultura. E você passa a elaborar o seu projeto e umplano para sua transição. Determinará os objetivos, as atividades a seremdesenvolvidas, o modelo de assentamento que você quer; determinará a escala doseu projeto, escolherá a região, procurará por terrenos onde iniciará o projeto deseus sonhos (que poderá ser o projeto de sua vida!) e traçará uma estratégiasólida para a implementação do projeto.

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Na elaboração do seu projeto você vai aplicar todos os princívpios dapermacultura e levará em conta todas as informações e conhecimentos contidosneste livro, bem como em outros materiais que tenha estudado, incluindo outroslivros sobre permacultura e assuntos relacionados, apostilas, vívdeos… discussõesem fóruns, cursos que tenha participado, vivências e trabalhos voluntários emprojetos de permacultura, conversas e exemplos práticos de outros permacultoresque te inspirem, etc. Na verdade, a elaboração de um projeto normalmente seinicia naturalmente no começo da jornada: conforme você começa a aprendersobre a permacultura, ideias vão inevitavelmente se formando em sua cabeça, decomo será seu projeto! Mas, claro que muitas dessas ideias mudarão ao longo docaminho, conforme você adquire mais conhecimentos e passa a ter a capacidadede julgar melhor.

Agora, você já ticou todos os itens nesta lista, e está pronto para dar o“grande salto”. Então, você adquirirá o terreno escolhido, se mudará para olocal, seja o próprio terreno ou local próximo, que permita deslocamento diário,e iniciará sua atividade (ou atividades) econômica de transição.

Neste momento inicial, o mais importante é estabilizar-se fnanceiramente,certifcar-se que sua atividade econômica está funcionando, ou fazer os ajustesnecessários para que ela passe a funcionar, o que signifca garantir uma rendamédia sufciente para sua manutenção, com sobra sufciente para investir no seuprojeto. É essencial que essa estabilidade seja atingida antes de se iniciareminvestimentos signifcativos no projeto em si. Muitas vezes as pessoas, na ânsiade ver o projeto andando logo, não dão a devida atenção a esse ponto. Não raro,têm que abandonar seu projeto logo nos primeiros meses ou anos, porque nãoconseguem sobreviver.

Essa fase de estabilização leva vários meses, ou mesmo alguns anos. Nesseperívodo, paralelamente à sua atividade econômica de transição, você devevivenciar o seu terreno o máximo que puder. Passe todo o seu tempo livre ali,vivenciando o local e os elementos. Observe e absorva-se nesse processo, sinta opassar das horas do dia e da noite, experimente o sol e a chuva, e o orvalho e atéa geada. Acompanhe o passar das estações. Há uma velha regra da permacultura,que manda aguardar um ano, antes de se lançar a fazer grandes investimentosem seu projeto e grandes modifcações no terreno, seja na vegetação outopografa, ou construções, etc. Claro que esse um ano é relativo, pode ser mais,pode ser menos. Mas o aspecto mais importante é que esse perívodo não deve serum perívodo passivo, ou seja, não se trata apenas de esperar. Pelo contrário, deveser ativo, de observação ativa, e também de experimentações. Plante váriascoisas, plante mudas e sementes, veja o que acontece. Faça pequenasconstruções, um pequeno galpão para guardar suas ferramentas e se abrigar dachuva, faça uma pequena lagoa artifcial experimental, para você pegar prática eter alguma água. Tudo isso servirá não apenas de treino e de “aquecimento”(muito importante!), mas também para você amadurecer suas ideias, o que ajuda

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a evitar erros grandes que poderiam ter consequências permanentes.

Agora, você já decidiu onde será construívda sua casa, suas lagoas, seussistemas produtivos em geral. Tem uma ideia de onde serão suas zonas, etc. Mas,por onde começar? Isso realmente vai depender de cada caso. Se você decidiumorar direto no local, então, caso ainda não haja uma casa no terreno, construira casa será prioridade — você pode começar morando em uma barraca, ouconstruir um cômodo simples para ir morando enquanto constrói sua casa. Masisso (começar pela casa) só será viável se você já tiver um suprimento de águafácil (por exemplo, uma nascente ou córrego no local). Caso contrário, você teráque começar pelos sistemas de água de chuva. Você pode começar com umalagoa pequena, que fque pronta rápido e encha rápido, para você ter água logo, oque irá facilitar todo o mais que você vai fazer nessa fase inicial. Essa lagoa podeser temporária ou permanente. Então, pode construir sua casa, e em seguida,passe para a construção de lagoas maiores, que serão permanentes. Em geral,começar pelos sistemas de água traz várias vantagens, pois eles facilitam e guiama implementação de todos os outros sistemas (casa e construções, plantações eoutros sistemas produtivos).

Por último, neste caso (em que você começou pela casa), você deverá focarseus esforços nas plantações. Claro que, nesse momento, você já deverá termuitas mudas, pois as terá cultivado desde o começo (veja o “Estilo de Vida daPermacultura”, no capívtulo 14), e elas já estarão prontas para ir para a terra!

Num cenário diferente, em que você não se mudará de cara para o projeto,mas ao invés disso morará em uma casa na cidade enquanto trabalha naconstrução do mesmo, então a casa será a última a ser construívda. O quedetermina essa escolha, de se mudar para o projeto no começo ou mais tarde, naverdade é a sua estratégia de transição, ou seja, a atividade econômica escolhidapara viabilizar a implementação do seu projeto. Se você é um aposentado, farámais sentido pensar em se mudar logo para o projeto. Também, se você trabalhapela internet, desde que haja conectividade no seu terreno, não fará sentido fcarna cidade, sendo melhor mudar-se o mais rápido possívvel para o projeto,apressando assim a construção da casa. Agora, se você trabalhará na cidade,então talvez faça mais sentido você continuar morando lá enquanto constrói seuprojeto. Comece então pelos seus sistemas de água, e em seguida sistemasprodutivos. Quando sua agroforesta já estiver produzindo, e você sentir quepoderá viver dessa produção, então construa sua casa e mude-se defnitivamentepara o projeto.

Quanto aos sistemas produtivos, é importante dividir os esforços de formaequilibrada entre estabelecer seu pomar e agroforesta, e trabalhar com plantasanuais, ou seja, de ciclo curto, como mandioca, milho, arroz, feijão, hortaliças,etc. Isso signifca buscar um retorno a curto prazo, sem descuidar do médio elongo prazo.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

A importância do planejamento

Uma das principais falhas no estabelecimento de um projeto depermacultura é a falta de planejamento. A falta de seriedade a esse respeito é umdos principais fatores que garantem o fracasso de muitos projetos, antes mesmode começarem.

Um cenário tívpico é o seguinte: a pessoa toma contato com a permaculturae fca toda empolgada com a coisa toda, e decide que irá abraçar esse ideal eesse modo de vida. Porém, não se dá ao trabalho de planejar cuidadosamente,exatamente como viabilizará essa mudança. Para começar (mal), por preguiça ouexcesso de ousadia, não se dá ao trabalho de estudar aprofundadamente apermacultura e obter o máximo de informações e conhecimento possívvel, tantona teoria, estudando, como na prática, através de voluntariado, por exemplo.Então, quando da escolha da terra, não se preocupa em avaliar cuidadosamenteas opções de local, de terreno, pensando em opções de atividades a seremdesenvolvidas, quais serão mais viáveis, considerando o tipo de solo e clima,distâncias, condições de mercado, etc. Não estabelece um cronograma ou umasequência racional de eventos na construção de seu projeto; tampouco sepreocupa em manter uma fonte de renda confável que supra suas necessidades eainda permita tempo livre sufciente para se dedicar ao desenvolvimento dasatividades de construção do projeto; não se preocupa em prever múltiploscenários possívveis, entender as variáveis, elaborar planos alternativos (plano B,C, D…) caso as coisas não saiam conforme previsto. Enfm, muitos achammuito cômodo simplesmente assumir que “o universo conspirará a seu favor”, eatiram-se à permacultura de forma aventureira, sem o devido preparo, fazendoconforme lhes dá na telha. Consequentemente, o indivívduo inicia seu processo detransição de forma desordenada, e logo no inívcio já vai dando tudo errado: asplantas não crescem, falta água, as formigas atacam… a construção demoramuito mais, dá muito mais trabalho e custa muito mais dinheiro do que seesperava; acaba o dinheiro, começam confitos entre as pessoas... enfm, a pessoaquebra a cara e logo vê-se forçada a voltar para o estilo de vida anterior, com orabo entre as pernas, falida e desmoralizada.

Portanto, planejamento é essencial. O problema é que muitas pessoas nãosabem disso, e talvez achem que a permacultura é fácil, o que é uma ilusão.Planejar dá trabalho! Exige um esforço intelectual grande, contívnuo eprolongado, mas é necessário para o sucesso em qualquer empreitada, eespecialmente numa mudança radical de modo de vida, como é o caso dapermacultura.

Trabalho durol, paciêncial, persistência

Conforme já citado, o estabelecimento de um projeto de permaculturainvariavelmente leva anos até que alcance sua maturidade e o auge de sua

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

produção. E não são anos de espera, mas sim anos de trabalho duro, esforçocontívnuo. Portanto, para que você alcance esses resultados, serão necessários,além do planejamento e dedicação, também doses maciças de paciência eperseverança.

Aqui, creio que vale a pena abrir um parênteses para elaborar um poucosobre a diferença entre paciência e acomodação, pois muitas pessoas seconfundem a esse respeito.

Paciência e acomodação são coisas completamente diferentes. Napaciência, o indivívduo está se preparando, está caminhando ou construindo seucaminho para chegar à realidade que deseja, sem imediatismo e sem agir comprecipitação. Já na acomodação, o indivívduo deixa de lutar ou se dedicar àquelefm, e fca apenas esperando que as coisas aconteçam sozinhas;consequentemente, acaba estagnado na realidade atual, sem transitar, semprogredir. Ou seja, paciência é bom e acomodação é ruim. Na verdade,paciência é essencial para qualquer transformação profunda e sólida, real.Pessoas que não entendem a importância disso tendem a agir de forma atirada,precipitada, e achar que isso é atitude. Porém, enganam-se. O indivívduo que agede forma precipitada, no começo vai parecer que está progredindo maisrapidamente — enquanto o amigo ainda está estudando, planejando oulevantando recursos, ele já vendeu seu carro, comprou um terreninho e já estáaté bioconstruindo! Porém, esse é o que morrerá na praia, como discutido acima.O amigo “devagar”, que não teve pressa, se preparou adequadamente e elaborouuma estratégia sólida, teve resiliência para lidar com imprevistos e coisas quederam errado, e tenacidade, frmeza em seguir tentando, reavaliando-se,adaptando-se, aperfeiçoando-se — esse é o que vai ter sucesso em sua mudançade vida, e colherá os frutos de sua paciência e perseverança.

Prepare-ose para tempos difíceis

Quando planejamos nosso projeto de permacultura, é importante não teruma visão estática da realidade do mundo, achando que as coisas continuarãocomo estão hoje. É preciso ter sempre em mente o discutido na Parte I, eplanejar de acordo com os possívveis cenários futuros que se insinuam.Especialmente, é importante levar em consideração os seguintes fatores:

• Mudança climática. Considerando a perspectiva de um clima cada vezmais quente e seco na maioria das regiões do mundo, a prudência manda queprojetemos sistemas de captação e armazenamento de água com capacidade desobra, pois anos secos podem se tornar cada vez mais frequentes e prolongados.Outra implicação importante da mudança climática diz respeito à escolha dasespécies a serem utilizadas em seu projeto. Certifque-se de incluir espéciesrústicas e adaptadas a condições de falta de água, mesmo que você viva em umaárea úmida, pois não se sabe como será o futuro. Pesquise espécies úteis nativasde desertos e regiões semiáridas, como cactos, tamareiras, etc., e inclua-as em

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

seus projetos. Elas poderão ser a sua salvação no futuro, dependendo de comose derem as mudanças no clima.

• Pico do petróleo. Devemos evitar o uso excessivo de tecnologiasdependentes do petróleo hoje por questões de sustentabilidade ambiental, masenquanto esse recurso ainda está ao nosso alcance, quase inevitavelmenteacabamos por usá-lo em diversas situações, pensando no uso apropriado detecnologias disponívveis. Porém, é necessário ter sempre em mente que o fm daera do petróleo deverá trazer grandes mudanças, e devemos estar preparadospara elas. Talvez surjam novas tecnologias que substituam o petróleo, talveznão. Por isso, é vital que ao projetarmos nossos sistemas e fazer planos paranossas vidas no futuro, não contemos com o petróleo, e acima de tudo, nãodependamos dele. Valorize e use todas as estratégias possívveis que nãodependam de mecanização e transporte motorizado.

• Crise econômica e colapso das estruturas sociais. Não quero soarapocalívptico aqui, mas conforme vimos na Parte I, é necessário estar preparadopara o pior. No caso de um colapso da sociedade, quanto menos você dependerda economia, do Estado, das instituições, das tecnologias, etc., melhor. Vocêpode estar super bem em seu emprego, ou sua situação de renda no momento,mas com o colapso econômico, isso poderá simplesmente desaparecer. Por isso,é sempre muito importante visar um alto grau de autossufciência em seuprojeto. Aproveite a situação atual para fazer sua transição de forma sólida esegura, use os recursos sociais disponívveis. Mas procure estabelecer sistemasautomantenedores e estáveis, que não necessitarão da importação de recursos eespecialmente recursos tecnológicos no futuro, pois eles poderão não estar maisdisponívveis.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

10A HABITAÇÃOPERMACULTURAL

Sob muitos aspectos, as casas convencionais modernas podem serconsideradas ótimas — confortáveis, seguras e duráveis, todas virtudesessenciais que as edifcações modernas, desde que adequadamente construívdas,inegavelmente possuem. Porém, elas também têm seus defeitos. Dentre eles,podemos destacar:

• Alto impacto ambiental para sua construção e manutenção. Materiaisconvencionais, como cimento, tijolos e telhas, dependem para suafabricação de alto consumo de energia, mineração com grande impactoambiental, e geram poluição do ar na forma de gases do efeito estufa ematéria particulada, entre outros. Madeiras usadas em construção sãogeralmente provenientes de desmatamento.

• Baixa efciência no uso de recursos. A imensa maioria das casasconvencionais não captam água da chuva e não têm em seu design sistemaspara reutilização de água. Têm baixa efciência energética, levando aconsumo excessivo de energia para iluminação e aquecimento ourefrigeração.

• São poluentes. Utilizam sistemas convencionais de saneamento, ou seja,produzem esgotos que contaminam o meio ambiente (lençóis freáticos e/oucursos d’água).

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

• Improdutividade. As casas atuais são concebidas totalmente dentro de umparadigma de total dependência (ou seja, o oposto de autossufciência). Sãopara morar, e pronto. Áreas ajardinadas são cada vez mais raras, e quandoexistentes, cada vez menores. Por isso, não são particularmente favoráveis àprodução de alimentos.

• Alto preço. As maioria das pessoas comprometem uma grande parte desua vida para conquistarem o chamado sonho da casa própria. Na maioriadas vezes, passam 20 anos ou mais pagando por suas casas, sendo quemuitas, especialmente entre a população de renda mais baixa, passam avida toda sem chegar a conquistar esse sonho.

O desafo da permacultura em relação às habitações é resolver ouminimizar esses defeitos, sem comprometer as conquistas das construçõesmodernas, ou seja, seu conforto, segurança e durabilidade.

Design da casa permacultural

A habitação permacultural tem alta efciência energética. Ela é feita demateriais e técnicas naturais (bioconstrução) que além de terem baixo impactoambiental conferem alto conforto térmico naturalmente, reduzindo oueliminando a necessidade de aquecimento e refrigeração. Também utiliza designpassivo para energia solar e inclui sistemas para captar, armazenar, utilizar ereciclar água da chuva. Além disso, na permacultura a casa não é vista apenascomo um lugar para você se esconder à noite e dormir, e guardar suas coisas,mas sim um lugar para você viver e também produzir alimentos, ao redor e atémesmo dentro da casa.

Por empregarmos sistemas de saneamento ecológico (assunto discutido emdetalhes no capívtulo 11), a casa permacultural não é fonte de poluição ambientalcom esgotos. Por fm, o emprego de materiais e técnicas naturais em suaconstrução favorece que o permacultor construa a própria casa (autoconstrução),o que cria uma conexão, intimidade e familiaridade muito maior com a casa,possibilitando ainda que ela seja construívda a um preço reduzido.*

Tamanho

A casa permacultural não deve ser muito grande. Deve ser grande apenas osufciente. Casas maiores que o necessário ocupam espaço demais — roubando-o das demais criaturas da Terra. Também consomem mais recursos para sua

* O “Manual do Arquiteto Descalço”, de Johan Van Tengen, contém uma grandequantidade de informações, ideias de design e técnicas de construção úteis empermacultura.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

construção e manutenção, mais água, mais energia do que o necessário, etc — eisso é para sempre! Impermeabiliza um pedaço maior do solo. Também, dá maistrabalho para manter limpa, consumindo um recurso valiosívssimo: o tempo denossas vidas! Ainda por cima, uma casa muito grande leva à tendência deacumular coisas inúteis.

Uma casa grande é um sonho de consumo comum nos dias de hoje, umsívmbolo de status, um vívcio caracterívstico de nossa sociedade doente,megalomanívaca. Em resposta a essa tendência, há hoje um movimento pelascasas pequeninas (“tiny house movement”). Alguns entusiastas desse movimentoadvogam casas realmente minúsculas, algo como 20 m2. Mas você não precisaser extremista — basta usar o bom-senso.

Posição

Vários fatores devem ser levados em consideração na escolha do local parase construir uma casa, especialmente em uma situação rural. Dentre eles,podemos destacar questões práticas como a facilidade de acesso e fuxo de águae energia pelo terreno, questões de bem estar, como privacidade e harmoniaestética, e questões éticas em relação ao impacto que essa casa terá sobre o meioambiente e a paisagem.

O posicionamento da casa em uma propriedade rural deve sempre ser feitoaproximadamente à meia altura no terreno — nunca no topo, nem na parte maisbaixa do terreno. Isso possibilita uma área sufciente acima do nívvel da casa paracaptação de água da chuva para uso doméstico e da zona um, conformediscutimos no capívtulo 8 (“Água em Permacultura”), e uma área sufcienteabaixo do nívvel da casa para lidar com os efuentes da casa (águas cinzas),através de ferti-irrigação, evitando que esses efuentes saiam do terreno, podendocontaminar cursos d'água ou incomodar vizinhos, por exemplo (falaremos maissobre as águas cinzas no próximo capívtulo, “Saneamento Ecológico”).

Outro aspecto importante é o posicionamento da casa em relação ao sol.

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Área de captação de água de chuva

Tagoa art.

Casa HortaPomar

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

Posicione a casa de modo a amplifcar os benefívcios da luz solar (veja o item“design passivo para energia solar”, mais adiante).

Um erro comum é construir a casa no meio de uma foresta, ou próximo agrandes árvores, onde incêndios forestais e quedas de árvores podem terconsequências catastrófcas. Construa casas a uma distância segura de forestas eárvores altas.

Impacto paisagístico

Deve-se sempre levar em consideração a vista e o efeito que a casa terá napaisagem. Construa uma casa bonita e que se integre de forma harmoniosa coma paisagem na qual ela está inserida. A falta dessa preocupação é causa frequentede verdadeiros desastres paisagívsticos. Seja responsável pelo seu papel emrelação à paisagem!

Impacto na topografa

Ao projetar e construir uma casa, deve-se ter a preocupação de interferir omívnimo possívvel na topografa do local. Para isso, em um local de topografainclinada, ao invés de se fazer uma grande operação de terraplanagem criandoum platô grande o sufciente para acomodar toda a casa e suas imediações, émais recomendável fazer um recorte mais sutil, em “degraus”, distribuindo oscômodos da casa nesses degraus, ligando-os por pequenos lances de escadas. Omesmo vale para a área externa, onde os “degraus” se estendem em pequenosterraços, onde serão feitos os canteiros para seus jardins e hortas. Com esse tipode técnica, consegue-se uma enorme redução no consumo de energia utilizada naterraplanagem; reduzem-se também os impactos negativos na topografa do local(menos agressão ao ambiente), e tem-se como resultado fnal uma casa graciosae interessante, de aspecto orgânico e harmonioso, integrada de forma charmosa eelegante com a paisagem ao seu redor.

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Escadas

AterroMuro de arrimo

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

Forma

Vivemos em uma era de construções retangulares, ou formadas pelacombinação de diversos retângulos, de tamanhos diferentes. Cada cômodo ésempre um retângulo. Agora, olhe para um prédio, e verá um retângulo; veja deoutro ângulo — outro retângulo. Olhe de cima... retângulo! Porém, muitospermacultores e bioconstrutores têm uma preferência por formatosarredondados.

A tendência a construir formatos retangulares não é uma moda recente.Veja as construções medievais da Europa, as ruívnas do Império Romano e asconstruções da China Antiga (e.g. Cidade Proibida), e verá que mostram quasesempre padrões retangulares. Até mesmo as pirâmides do Egito, Sudão e dosMaias e Astecas têm, em sua base, um quadrado, que nada mais é do que umtipo particular de retângulo!

Por outro lado, praticamente todas as sociedades tribais, primitivas enômades sempre construívram suas habitações em formatos circulares ouarredondados. Veja as ocas tradicionais dos ívndios brasileiros, os tipis dos nativosnorte-americanos, os yurts dos mongóis, os iglus dos esquimós... O mesmo seaplica aos povos tribais da África e Oceania e até mesmo no continente europeu,as habitações da maioria dos povos “bárbaros” eram redondas.

Não é intrigante que os bioconstrutores, mesmo sem sequer pensar nisso,tenham a tendência de rejeitar os formatos quadrados, caracterívsticos dascivilizações megalomanívacas e insustentáveis (das quais a atual é o exemplo maisextremo), em favor de formatos arredondados, tívpicos das construções desociedades mais primitivas, simples e sustentáveis? Coincidência ou não, quemdirá?

A milenar tradição do feng shui (風水 ) pode trazer uma teoria diferentepara favorecer formatos arredondados. Segundo essa “ciência”, formatosangulares causariam a estagnação do qi (氣), levando a ambientes carregados einsalubres, enquanto formas arredondadas favoreceriam o fuxo do qi, tornando oambiente leve…

Mas você não tem que concordar ou se preocupar com nada disso! Agora,tratando de considerações mais práticas: paredes curvas, por seu carátertridimensional, são sempre muito mais fortes estruturalmente do que paredesplanas, “bidimensionais”. Por isso, possibilitam estruturas mais frmes e segurase/ou a economia de material. Por outro lado, é inegavelmente mais fácilacomodar a mobívlia em cômodos retangulares, e também mais fácil colocar umtelhado.

Claro que é perfeitamente possívvel construir casas bonitas, seguras eduráveis, tanto retangulares como arredondadas, ou outros formatos — desdeque respeitadas as leis da fívsica e utilizados materiais e técnicas adequados naconstrução. No fnal das contas, em relação ao formato o que conta é a

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

preferência de cada um, o bom gosto no design e capricho na construção.Uma casa bem caprichada com forma, tamanho e localização ideais,

rodeada de jardins, paisagens naturais e caminhos graciosos e em plenaharmonia — tudo isso depende de fazer as escolhas certas, e saber fazer,resultando em uma casa onde você vai realmente querer viver, um lugar parachamar de lar, e ser feliz.

Efciência energética e design passivo para energia solar

Há todo um conjunto de estratégias de design que podem ser usadas parapotencializar os efeitos positivos da irradiação solar e ao mesmo tempominimizar eventuais efeitos negativos, levando naturalmente a um bom confortotérmico na casa, reduzindo ou eliminando a necessidade de gasto de energia paraaquecimento ou refrigeração.

O item mais básico do design passivo para energia solar é odimensionamento e disposição adequada de janelas favorecendo a iluminação eventilação natural, pois não há nada pior que uma casa sem janelas, comlâmpadas acesas o dia todo! Isso se aplica praticamente a todas as casas, emqualquer parte do mundo.

Em climas frios, há diversas técnicas que podem ser usadas para captar earmazenar a energia do sol, aumentando a temperatura média no interior da casaem vários graus, sem qualquer gasto de energia. Por exemplo:

• Estufa acoplada à casa, no lado do sol predominante do inverno (ou seja, olado voltado para o norte no caso do hemisfério sul, e vice-versa). Umaestufa nada mais é do que um cômodo ou “casinha” fechada, feitainteiramente de vidro em uma armação metálica. Estufas funcionam assim:a radiação solar penetra nelas através do vidro e boa parte fca ali retida naforma de calor, elevando a temperatura interna. Por isso elas são tão usadaspara cultivar vegetais em regiões frias! Ao se fazer uma estufa acoplada àcasa, esse calor pode ser aproveitado para aquecer a casa, bastando paraisso abrir a porta ou janelas que dão acesso à estufa. Janelas grandes oumesmo paredes de vidro voltadas para o lado do sol predominante doinverno também ajudam a captar e reter dentro da casa a energia solar, pelomesmo princívpio.

• Coletor-irradiador de energia solar. Uma estrutura de alta massa térmica ecor escura, por exemplo uma parede de pedra pintada de preto, um pisoescuro, etc., posicionada próximo às janelas mencionadas acima, recebendoo sol durante o dia, capta a radiação solar convertendo-a em calor, que éliberado lentamente para o ar ambiente, aumentando a temperatura localsignifcativamente, mesmo várias horas noite a dentro.

• Isolamento é uma necessidade óbvia em climas frios, para evitar a fuga decalor da casa. Portas e janelas devem ser perfeitamente herméticas, e

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

vidraças devem ser de vidro duplo, para minimizar a transferência de calor.

• Plantar árvores caducifólias (que perdem as folhas no inverno) ao redor dacasa, nas direções do sol predominante, também é uma técnica importante.No verão, essas árvores fornecem sombra, mantendo a casa fresca; e noinverno, perderão as folhas, permitindo a entrada do sol, que aquecerá acasa.

Já em climas quentes, a preocupação é o inverso: evitar o acúmulo de calor.Para isso, são úteis as seguintes técnicas:

• Construir com pé-direito alto garante ambientes internos mais frescos.

• Usar telhado verde (discutido mais adiante).

• Pequenas janelas basculantes, posicionadas bem alto na parede, próximo aoteto, são úteis para deixar o ar quente sair (pois o ar quente é menos densoe, portanto, sobe).

• Plantar árvores de boa sombra ao redor de toda a casa, evitando aincidência de sol nas paredes e no chão, ajuda a refrescar bastante oambiente interno. Varandas amplas também ajudam, pelo mesmo motivo.

Há certas regras gerais que são universais para o conforto térmico. Porexemplo, em relação a quando abrir ou fechar as janelas e portas, vale sempre aseguinte regra: se o ar externo estiver mais agradável que o interno, abra asjanelas; agora, se o ar interno estiver melhor que o externo, feche as janelas. Issovale tanto para o calor como para o frio.

Certos materiais e técnicas de construção também conferem naturalmenteconforto térmico. É o caso de paredes grossas de barro, como nas técnicas docob, hiperadobe e terra pilada, que discutiremos mais adiante. O barro, quandosêco, contem quantidade substancial de ar preso entre as partívculas de areia eargila, fazendo com que seja um mau condutor de calor (ou em outras palavras,um bom isolante térmico). Além disso, as paredes grossas e pesadas têm umamassa térmica considerável. Em conjunto, esses fatores fazem com que as casas

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Verão(sombra)

Inverno(sol = aquecimento)

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construívdas com essas técnicas sejam frescas no verão e quentinhas no inverno,sendo ótimas para todos os climas, sejam tropicais, temperados, áridos, etc.

Explorando a inércia térmica do solo

Durante o dia o sol aquece o solo e, à noite, o solo dissipa essa energiatérmica transferindo-a para a atmosfera, enquanto se esfria. Essa futuaçãocívclica na temperatura do solo é máxima na superfívcie e vai diminuindoexponencialmente em sua amplitude de acordo com a profundidade, devido àgrande inércia térmica do solo. A partir de uma certa profundidade,normalmente cerca de 2 metros abaixo da superfívcie, a temperatura torna-sepraticamente estável, variando senão poucos graus em relação à temperaturamédia anual do local em questão.

Por ser um ambiente protegido, a temperatura do ar dentro da casanormalmente varia menos que a temperatura externa, mas ainda assim futuasubstancialmente ao longo do dia. Agora, a constância da temperatura dos nívveismais profundos (porém acessívveis) do solo cria uma ótima oportunidade, tantopara colher calor (aquecimento em momentos de frio intenso) como paradissipar calor (refrigeração em momentos de calor intenso).

Para isso, diversos mecanismos e estratégias já foram desenvolvidos e estãosendo usados crescentemente ao redor do mundo, especialmente em locais declima frio, incluindo bombas de calor que utilizam água e outros fuidos comocondutores de energia térmica, tubos subterrâneos com ventilação forçada, entreoutros. Porém, modos simples de uso da inércia térmica do solo já vêm sendoutilizados pela humanidade há milhares de anos. Um ótimo exemplo são as

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Externa

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Gráfco: exemplo ilustrativo de variações na temperatura externa, interna (dentro da casa), e a 2 metros de profundidade no solo, ao longo do dia.

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habitações de povos do deserto, escavadas em rochas — todos sabemos que nosdesertos as variações de temperatura ao longo do dia são extremas, fazendomuito frio à noite e muito calor durante o dia. Ao fazerem suas casas escavadasem morros rochosos, povos antigos de desertos em várias partes do mundo naverdade valiam-se da inércia térmica do solo para terem em suas casas umatemperatura estável e agradável o tempo todo.

Outra forma clássica de se benefciar da inércia térmica do solo é na formados tradicionais porões. Um porão é um cômodo situado abaixo de uma casa,sendo parcial ou totalmente subterrâneo. Por serem construívdos 2 a 3 metrosabaixo do nívvel do solo, porões mantêm suas temperaturas praticamenteconstantes e sempre frescas. Tradicionalmente, porões têm sido usados paraguardar alimentos como raívzes, tubérculos, abóboras, etc., permitindo seuarmazenamento por meses a fo, mesmo antes de existir refrigeração elétrica.Também fornecem condições ideais para a produção e armazenamento devinhos, por exemplo.

Para maior efciência, deve-se construir o porão de forma adequada: suasparedes e piso devem ser feitos preferencialmente de pedra para permitir boacondução de calor entre o ar interno e o solo profundo ao redor. Devem contarcom janelas ou escotilhas para permitir alguma iluminação natural e ventilaçãoquando desejado, mas as mesmas devem permitir bom isolamento térmico,usando vidro duplo e permitindo boa vedação. Outro ponto importante é adotarmedidas adequadas de drenagem e impermeabilização do piso e paredes quandoda construção, para evitar problemas de infltração de umidade.

Podemos usar esse mesmo princívpio para benefciar também outroscômodos da casa; para isso, você deve construív-los parcialmente subterrâneos,talvez até construir todo o andar térreo parcialmente enterrado. Isso éparticularmente fácil quando se constrói em uma topografa bastante inclinada,bastando construir a casa em um recorte no terreno que avança morro a dentro,de forma que o muro de arrimo seja a própria parede da casa. Os cômodos queforem construívdos dentro desse recorte, portanto abaixo do nívvel original doterreno, se benefciarão da inércia térmica do solo ao redor, levando a umagrande estabilização de sua temperatura interna. Esses serão os cômodos maisfrescos no verão e os mais quentinhos no inverno, naturalmente e sem qualquergasto de energia. Seja seu quarto, sala ou escritório, nos dias de temperaturaextrema você não vai querer sair de lá!

Aquecimento solar de água

Há uma grande variedade de aquecedores solares de água para residênciasdisponívveis no mercado, mas há também uma variedade maior ainda de sistemassimples e altamente efcientes que podem ser feitos por você mesmo, a umbaixívssimo custo. Por exemplo, um tubo de polietileno de alta densidade(mangueira preta) instalado formando uma espiral sobre o telhado da casa, no

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lado que pega o sol da tarde. A água vem da caixa d’água, passa pela espiralonde é aquecida pelo sol, indo então até o chuveiro e torneiras onde se queiraágua quente. Para maior efciência e durabilidade, instala-se uma caixa baixa,feita de chapa metálica e pintada de preto, cobrindo a espiral e ajustadaperfeitamente às ondulações do telhado. Essa caixa ajudará a aquecer a água e amanterá aquecida por mais tempo noite a dentro. Além disso, evitará adeterioração da mangueira pela radiação solar.

Bioconstrução

Hoje, na construção civil, vivemos na era do concreto. O cimento está emtodo lugar e, na cabeça das pessoas, engenheiros e construtores, é impossívvelconstruir qualquer coisa sem sua utilização. Porém, o cimento que usamos hojesó se popularizou a partir do inívcio do século XX, ou seja, até pouco mais de umséculo atrás a humanidade se virava muito bem sem ele.

Como sabemos, a construção civil é uma indústria de imenso impactoambiental, com toda a mineração, fabricação e transportes envolvidos, além dageração de enorme quantidade de resívduos e entulhos. Por isso, empermacultura, damos preferência a técnicas de construção natural, tambémchamadas de bioconstrução, de baixívssimo impacto ambiental e, portanto, muitomais sustentáveis.

Em bioconstrução, utilizamos materiais naturais (terra, pedra, bambu,palha, etc.), muitas vezes presentes no próprio terreno ou nas imediações. Isso

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Sistema simples de aquecimento solar de água

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signifca que podem ser obtidos a custo reduzido ou virtualmente zero. Tambémsão materiais ecológicos pois não são oriundos de mineração, dispensam aqueima ou calcinação em altos-fornos, ou mesmo combustívvel para transportes alongas distâncias, etc. Muitas vezes também são utilizados resívduos da nossacivilização — materiais como pneus velhos, garrafas usadas, restos daconstrução civil convencional, etc., retirando esses materiais do ambiente,dando-lhes um destino útil.

A bioconstrução utiliza técnicas de construção naturais e fexívveis, quepodem ser realizadas praticamente por qualquer pessoa, dispensandomaquinários ou mão de obra especializada. Isso permite ao permacultorconstruir sua própria casa, dando liberdade no design, um enorme senso derealização e conexão com a casa, além de economia de dinheiro.

A maioria das técnicas utilizadas em bioconstrução são técnicastradicionais, muitas vezes étnicas e até primitivas, usadas pela humanidade háséculos ou milênios. A bioconstrução representa assim um movimento de resgatedesses conhecimentos de diferentes povos de toda parte do mundo. Também sãocomuns a fusão ou mesclagem de diferentes técnicas, adaptações e mesmo odesenvolvimento de técnicas inéditas em bioconstrução.

Outra grande vantagem da bioconstrução é que ela praticamente não geraentulhos, e seus materiais são recicláveis. Tomemos como exemplo uma velhacasa de pau-a-pique com telhado de sapé que se decide demolir. O sapé dotelhado pode ser usado como cobertura morta de solo, ou como material decobertura na composteira; as madeiras ainda boas podem ser reaproveitadas emnovas construções; as defeituosas podem ser usadas como lenha, e as meiopodres como cobertura de solo, ou para fazer composteiras, barreiras contraerosão, etc. Já o barro das paredes e pedras da base podem ser aproveitados parafazer novas bioconstruções. Ou seja, nenhum resívduo é produzido! E, mesmoque você não faça nada, simplesmente deixe a casa desmanchar naturalmentecom o tempo, seus materiais se reintegrarão lentamente com o ambiente, semcausar qualquer impacto negativo.

Resumidamente, os objetivos e vantagens da bioconstrução são:

• Construir com mívnimo impacto ambiental, poupando recursos naturais enão produzindo resívduos.

• Alcançar um resultado estético agradável, de simplicidade e rusticidade, emharmonia com o ambiente natural em volta.

• Favorecer a autoconstrução, ou a possibilidade de construir você mesmo,com mívnima necessidade de insumos externos ou mão de obraespecializada.

• A possibilidade de construir a um custo muito reduzido, ou em situaçõesonde materiais de construção convencionais modernos simplesmente nãoestejam disponívveis.

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• Coerência com o estilo de vida da permacultura, tanto em princívpios comoem estética, reforçando a identidade do movimento da permacultura.

• Resgate de conhecimentos tradicionais e ancestrais, levando a uma conexãocom essas culturas, etc.

As técnicas de bioconstrução e os materiais utilizados são inúmeros, e suaescolha depende de fatores como clima, a disponibilidade de materiais no local,gosto e habilidades do permacultor, cultura e história local, etc. É importanteressaltar que o uso de materiais abundantes no local deve ser priorizado, poisrepresenta economia e redução do impacto ambiental decorrente da importaçãode outros materiais, resultando ainda em uma maior harmonia e identidade como local. A valorização e resgate de técnicas de construção tradicionais da regiãotambém ajuda a reforçar essa identidade.

Embora haja uma variedade imensa de materiais usados em bioconstrução,incluindo pedra, fardos de palha, couro animal (tipi), e até gelo (iglu), merecemdestaque as construções de terra crua. São diversas as técnicas que utilizam aterra crua como seu principal material de construção. Segue uma discussãoresumida sobre as principais dessas técnicas.

Considerações preliminares sobre construção com terra

O barro cru não é tão rívgido como o concreto ou tijolos cerâmicos — o quenão é necessariamente uma desvantagem. Para lidar com isso, normalmentedeve-se fazer paredes mais grossas do que se faria normalmente com técnicas dealvenaria convencional. Assim, o resultado que se tem em bioconstrução sãoparedes mais espessas e porosas. Essas paredes apresentam maior massa térmicae maior isolamento térmico, resultando em melhor conforto térmico — astemperaturas internas são mais estáveis, variando menos em função dasoscilações externas, comparativamente às casas de alvenaria convencional.Também apresentam maior respirabilidade. Isso mesmo, paredes que“respiram”! Por isso, possibilitam mais trocas gasosas, não são propensas àcondensação e não retêm umidade como o concreto. Por tudo isso, essas paredesnão têm a tendência de criar mofo ou ácaros, produzindo ambientes internosmuito mais confortáveis e saudáveis.

Proteção contra umidade

Construções de terra crua necessitam de cuidados redobrados quanto aproteção contra umidade. Isso porque o barro, se molhar demais, perderá suarigidez, podendo comprometer a segurança da construção.

Há uma série de medidas que devem ser tomadas para prevenir problemas

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com excesso de umidade. Uma delas refere-se à escolha do local para aconstrução — deve-se escolher locais altos, ou seja, evitar baixadas e locais queacumulam água da chuva ou canalizam enxurradas. Um detalhe estruturalimportantívssimo para evitar contato com a umidade do solo é fazer sempre umaboa base de pedra sobre a qual serão construívdas as paredes — nunca construirdireto sobre o solo. Deve-se também construir um telhado com um bom beiral,de no mívnimo 80 cm, evitando a incidência excessiva de chuva nas paredes.Convém ainda instalar calhas em todos os telhados (o que será necessáriotambém para a captação de água de chuva) para evitar o respingamentoexcessivo de água da chuva nas paredes, e fazer um revestimentoimpermeabilizante, que pode ser de pedra, ladrilhos ou mesmo um bom rebocona parte inferior das paredes para evitar seu desgaste com a chuva.

Para se conseguir ainda mais proteção contra umidade, é recomendável namaioria das situações fazer um pequeno aterro no local onde será construívda acasa, elevando em alguns centívmetros sua altura.

Fundação

A fundação deve ser feita de algum material muito denso e resistente parasuportar e distribuir o peso da casa, evitando rachaduras. Pedras, quandodisponívveis, são o material mais indicado para a fundação, pois, além depreencherem os requisitos acima, são boas isolantes de umidade, ajudando aproteger as paredes de infltrações por capilaridade. Outra boa opção às vezesdisponívvel é o reaproveitamento de grandes blocos de concreto provenientes dedemolição (colunas e vigas, por exemplo), que podem ser utilizados como sefossem pedras. Ou então, pode-se fazer uma fundação de concreto convencional,mas nesse caso é importante utilizar uma barreira de umidade, caso contrário oconcreto transmitirá umidade às paredes.

A importância do acabamento

Como em qualquer construção, é sempre importante dar um bomacabamento a construções de terra e bioconstruções em geral. Muitas vezes, porgostarem de bioconstrução e quererem mostrar, “ostentar” que suas casas foramfeitas de barro, as pessoas deixam de fazer um acabamento adequado. Isso não éuma boa ideia, pois além de comprometer a estética, a falta de acabamentotambém compromete a durabilidade da construção, além de poder criarproblemas, como fornecer frestas e espaços para a proliferação de criaturasindesejáveis, como escorpiões e barbeiros. Assim como a construção em si,também o acabamento pode e deve ser feito com materiais naturais e de baixoimpacto ambiental.

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Técnicas de Bioconstrução

Cob*

O cob é provavelmente a mais rústica, primitiva, simples e natural técnicade bioconstrução — daív sua beleza! É também uma técnica incrivelmentefexívvel, e ao mesmo tempo robusta e segura, desde que bem feita. A técnica docob consiste essencialmente em se esculpir a sua casa, ou pelo menos suasparedes, com barro, no melhor estilo joão-de-barro!

Uma das vantagens do cob é sua extrema plasticidade, ou seja, a liberdadeque ele oferece de construir em estilos e formatos variados. Você pode construirdesde uma casa “normal”, quadradinha, retinha e lisinha que ninguém suspeitariaser feita de barro (exceto talvez pela espessura das paredes), até habitações comos formatos mais alternativos e não convencionais (desde que respeitados oslimites da fívsica, claro).

Apesar de sua desconcertante simplicidade e primitividade, o cob é umatécnica extremamente segura e durável. Casas de cob podem durar muitosséculos, sem problema algum.

Construindo com cob

O barro

Uma das coisas legais sobre as construções de terra é poder fazer a casausando a terra do próprio local onde ela será construívda. Devem ser usados solosareno-argilosos livres de matéria orgânica (ou seja, excluindo-se a camada desolo superfcial). A proporção ideal de areia:argila é algo em torno de 2:1 (duaspartes de areia para uma de argila). Porém, essa proporção é bastante fexívvel, esolos com teor de argila entre 15 e 50% podem ser usados sem problemas. Naprática, isso signifca que a grande maioria dos solos areno-argilosos sãoadequados para construir com cob (assim como as outras técnicas descritas aseguir).

Deve-se ter o cuidado de obter o barro de forma que não cause impactoambiental ou paisagívstico, por exemplo por implicar em desmatamento, oupropiciar erosão, ou desfgurar a topografa ou a paisagem, etc. A fonte do barrotambém deve ser o mais próxima possívvel do local da construção, diminuindoassim os custos e impactos relativos ao transporte, já que a quantidade dematerial para qualquer construção é substancial. Uma opção inteligente é, aoescavar reservatórios de água, como lagoas, açudes e cisternas, utilizar a terra

* O livro “The Cob Builders Handbook”, de Becky Bee, é leitura obrigatória para quemdeseja se aprofundar nesta técnica de bioconstrução.

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removida para a construção. Outra fonte extremamente inteligente de barro paraconstrução são as bacias de infltração de águas pluviais (aquelas que coletam oescorrimento superfcial de estradas de terra). Com a inevitável erosão daestrada, essas bacias coletam, além da água, terra. Assim, para que continuemfuncionando, essas bacias têm que ser periodicamente “limpas”, o que signifcaum suprimento de barro que pode perfeitamente ser utilizado parabioconstrução.

Preparo do barro

Deve-se preparar um local plano e limpo para misturar e amassar o barro,o mais próximo possívvel do local da construção. Você traz o barro para esselocal, quebra os torrões (se houver) usando uma enxada, adiciona a palha eoutros aditivos (se for o caso) e água, e vai “virando” esse barro com a enxada.Em seguida, deve-se “amassar” bem o barro com os pés — para muitos, esta é aparte mais divertida da construção com barro! Pode-se amassar em grupos, e àsvezes se mistura esta tarefa com música e danças improvisadas, tornando-se umaverdadeira festa!

Misture e amasse o barro, ajustando o teor de água até fcar com umaconsistência relativamente frme, porém plástica. Se estiver muito duro eesfarelando, é indicativo de falta de água; mas, se estiver muito mole,escorrendo, é sinal de excesso de água. Acertar no teor de umidade é muitoimportante, pois uma massa muito seca não dará boa aderência, e a parede fcarámuito porosa e fraca. Por outro lado, excesso de umidade (consistência de lama)fará com que a parede, ao secar, rache excessivamente.

Aditivos

Construções perfeitamente boas podem ser feitas apenas com a terra,conforme descrito acima. Porém, embora não seja estritamente necessário, amaioria dos bioconstrutores do presente e do passado, em todas as épocas eregiões do mundo, têm incluívdo aditivos à massa de barro para melhorar suascaracterívsticas e a qualidade da construção. Os principais aditivos são a palha eestrume bovino fresco.

• Palha. A adição de palha pode aumentar a resistência da construção ereduzir sua tendência a rachaduras. Para isso, pode-se ceivar, roçar oumesmo arrancar capim, deixá-lo secar ao sol por alguns dias, e depois picá-lo em pedaços de 3 a 5 cm, usando para isso um facão afado e um blocode madeira (ou um triturado de capim, claro, se disponívvel). Adicione essapalha à massa de barro; você perceberá que a adição de palha deixa amassa mais seca, fazendo necessária também a adição de mais água paraatingir a consistência ideal para construção. O ideal é usar capins de folhasfnas, e podem ser usados restos de culturas como arroz e trigo. Evite

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capins de folhas largas ou talo muito grosso (capim-elefante, por exemplo).A quantidade a ser usada varia, mas como ponto de partida pode-se usaruma proporção de aproximadamente 1:10, em volume (uma parte de palhapara dez de barro).

• Estrume bovino fresco pode ser adicionado, a uma proporção de 2 a 5%da massa de barro, para aumentar sua resistência mecânica e à erosão.Estrume é um aditivo extremamente tradicional em construções de terra.Acredita-se que o muco e fbras vegetais contidas nas fezes sejam osresponsáveis por melhorar as caracterívsticas do barro. Embora o estrume devaca seja o mais comum, por ser normalmente o mais abundante, vocêpode também usar estrume de outros grandes herbívvoros, o que estiver àsua disposição.

Construindo a parede

Tome porções da massa de barro com ambas as mãos e aplique com umgolpe ágil sobre a base de pedra, formando uma camada de cerca de 10 cm dealtura, e da largura que se pretende dar à parede, por todo o contorno da casa etambém as paredes internas. Estruturas acessórias como sofás, prateleiras,lareiras, etc. também podem ser construívdas de cob concomitantemente, em umaestrutura inteiriça com as paredes! Mas isso não é necessário, você tambémpode deixar para construir essas coisas depois que a casa estiver pronta.

Ao se aplicar cada “mãozada” de barro, deve-se massagear ligeiramente,dando tapas, pancadas e pressionando com os dedos para moldar e obter umamelhor fusão entre os bolos de barro. Terminada a primeira camada, você podeiniciar uma nova camada sobre ela. Você pode fazer até umas 2 ou 3 camadasem um dia. Então, é necessário esperar que o cob seque e endureça o sufcienteantes de aplicar mais camadas — geralmente 2 a 3 dias, dependendo datemperatura e umidade, ocorrência de chuvas, etc. É bom proteger o topo dasparedes de com com uma lona plástica ou fardos de palha, etc. ao fnal do dia detrabalho, em caso de chuvas. No inívcio de um novo dia de trabalho, enquanto seprepara a masseira, deve-se molhar o topo da parede de cob algumas vezes, atéque fque bem úmida para possibilitar melhor adesão com a nova camada debarro.

Os batentes de portas e janelas devem ser instalados preferencialmenteconforme a construção das paredes prossegue. Instalações para fações elétricas etubulações de água também devem ser planejadas com antecedência e feitasconcomitantemente à construção das paredes, para maior praticidade.

A grossura da parede varia bastante, em função principalmente do peso aser suportado, ou seja, a altura da construção, se terá um ou mais andares, pesodo telhado, etc. Normalmente usa-se uma largura de no mívnimo 25 cm paraconstruções bem simples e baixas; 40 cm para uma casa térrea, e mais larga paraconstruções de mais de um andar. Geralmente constroem-se paredes mais

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grossas na base, afnando progressivamente conforme a parede vai subindo,diminuindo cerca de 2 a 3 cm de grossura a cada metro de altura.

Vigas para o telhado repousam diretamente sobre o cob. Caso se julguenecessário, dependendo do tamanho e peso das estruturas do telhado, pode-sefazer as paredes mais grossas nos pontos de sustentação das vigas, formandouma estrutura de reforço (coluna de cob).

Na técnica do cob, as paredes de barro são literalmente esculpidas à mão.

Acabamento

As paredes esculpidas à mão invariavelmente fcam com uma superfívciebastante irregular e rugosa. Algumas pessoas podem gostar desse aspectorústico, mas você pode deixá-las bem mais lisas e regulares desbastando-as comuma lâmina metálica, que pode ser um facão, por exemplo. Aív, ela estará prontapara receber o reboco e pintura.

Existe um princívpio que diz que materiais semelhantes têm afnidade entresi. Por isso, não se deve nunca utilizar massa de cimento para rebocarconstruções de terra. Além de não aderir direito, as diferenças de rigidez erespirabilidade fazem com que rebocos de cimento rachem e descasquem dasbioconstruções em pouco tempo. Por isso, deve-se sempre usar materiaisnaturais também para o acabamento.

O reboco natural pode ser feito com uma massa de barro muitosemelhante à do cob em si, mas com ingredientes mais fnos, peneirados.Inúmeras variações são possívveis, mas uma receita básica para reboco seria umbarro com proporção areia fna:argila de cerca de 2:1, e estrume fresco de vacapeneirado numa proporção de 10 a 20% do total da massa. Além da função

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estética, o reboco reduz a poeira no interior da casa e protege as paredesexternas da erosão. Variações na proporção de areia e argila, na granulometria daareia e aditivos como fbras vegetais e outras, assim como a técnica de aplicaçãocom pincel, mãos, espátulas etc., podem ser usadas para dar texturas diferentesao reboco.

Para pintura, pode-se utilizar a cal para pintura, pois adere muito bem àsparedes de barro e oferece ótima proteção contra as intempéries. Aplique váriasdemãos, formando uma camada grossa de cal.

Outra ótima opção são as tintas de terra. Fazer tinta de terra é muito fácil:basta peneirar bem a terra e adicionar uma mistura de cola branca e água até daruma consistência pastosa fna, e aplicar às paredes com brochas ou rolos, comoqualquer outra tinta. Você pode usar praticamente qualquer tipo de terra, nãoimportando muito o teor de areia e argila, desde que não seja areia pura. Existemterras de inúmeras cores diferentes: amarelas, vermelhas, pretas, brancas,cinzas... além é claro de todos os tons de marrom, o que te dá váriaspossibilidades na confecção da tinta. Você ainda pode adicionar pigmentosnaturais, como urucum, ou corantes artifciais para atingir outras cores etonalidades. A proporção de cola e água é bastante fexívvel, indo de 1:2 até 1:10,de acordo com o tipo de solo e a resistência que se quer dar à tinta.

O acabamento com reboco e tinta de terra descrito acima serve não apenaspara cob, podendo ser usado igualmente para todas as outras técnicas deconstrução com terra.

Adobe

O adobe é uma das mais antigas e largamente distribuívdas técnicas debioconstrução do mundo. Há inúmeras edifcações de adobe com séculos oumilênios de idade, ainda em excelente estado de conservação e ainda em uso! Aprópria palavra adobe tem cerca de 4.000 anos, vindo do egívpcio médio,passando para o árabe, sendo assimilado pelo espanhol quando da invasão mourada penívnsula ibérica, e daív espalhando-se para as demais lívnguas europeias.

A técnica do adobe consiste essencialmente na confecção de blocos outijolos de barro crus, secos à sombra ou ao sol, que são usados na construção,assentados com uma massa de barro fresca.

Fazendo blocos de adobe

Os blocos de adobe podem ser feitos exatamente com a mesma “receita” debarro usada na técnica do cob, inclusive no que se refere aos aditivos. O barro éenformado em formas de madeira, formando os blocos que são então

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desenformados e deixados para secar ao sol.* Os blocos devem ser viradosdiariamente e mantidos protegidos da chuva até a secagem completa, quandoestarão prontos para uso. O tamanho dos blocos pode variar bastante, mas umamedida comum é 10 × 20 × 40 cm.

Assentando os blocos

A massa de barro fresca para assentar os blocos de adobe tem a mesmacomposição do próprio bloco, exceto pelo fato de normalmente não se adicionara palha. Já a técnica de construção das paredes é idêntica à da construção dealvenaria convencional de blocos de concreto ou tijolos cerâmicos e argamassade cimento.

Pau-oa-opique

O pau-a-pique foi, por muitos séculos e até recentemente, a técnica deconstrução mais comum em todo o Brasil rural. Porém, na maioria das vezesessas habitações eram construívdas de forma precária, o que lamentavelmente fezcom que essa técnica fosse comumente associada à imagem de casebres epobreza. Além disso, o pau-a-pique também é frequentemente associado àdoença de Chagas. Isso porque casas mal construívdas, sem acabamento emanutenção adequada criam rachaduras que acabam servindo de abrigo ecriadouro para os barbeiros, insetos transmissores da doença, além de outrascriaturas indesejáveis. Porém, é preciso deixar claro que esses problemas não sãodecorrentes da técnica do pau-a-pique em si, mas de construções feitas de formainadequada em geral.

A técnica do pau-a-pique consiste basicamente em se fazer uma armação

* Muitos bioconstrutores preferem pré-secar os blocos à sombra por alguns dias, antes delevá-los ao sol. Isso pode ser importante para evitar deformações ou rachadurasexcessivas, dependendo das características do barro, tamanho dos blocos, clima local, etc.

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Fazendo blocos de adobe

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de madeira, paus ou bambus semelhante a uma treliça, que serve de estruturainterna sobre a qual se aplica o barro, formando as paredes.

Construindo com pau-oa-opique

Após o preparo do terreno no local da construção (aterramento,terraplanagem, compactação), instalam-se os esteios que darão sustentação àcasa. Esses devem ser troncos de madeira resistente ao apodrecimento. No casode eucalipto, esse deve ser tratado. Pode-se também evitar o apodrecimentopintando a base da tora que fcará enterrada com piche, ou protegendo-a comuma “bota” impermeável feita de saco plástico resistente. Em seguida, constrói-se uma boa base de pedra para as paredes. Nos esteios, prendem-se com pregos,arame ou cipós os paus horizontais da armação. Os paus verticais são presos aoshorizontais, também com arame ou cipó, e repousam sobre a base de pedra.

Agora, é hora de barrear! A massa de barro é idêntica à das outras técnicasdescritas acima, e deve ser aplicada por duas pessoas simultaneamente, uma dolado de dentro e outra do lado de fora da parede. As mãozadas de barro sãoaplicadas em cada posição de forma sincronizada, como um “bofete” (daív essatécnica ser chamada também de “taipa-de-bofete”), de forma que o barropenetre na armação e a preencha sem deixar espaços, aderindo perfeitamente aospaus. E assim vai-se construindo a parede.

O “certo e errado” do pau-oa-opique

Certo Errado

• Base de pedra ou concreto • Paus enfiados na terra,apodrecem precocemente;infiltração de umidade na parede

• Paus ou bambus bem maduros esecos

• Paus e bambus usados aindaverdes, ao secarem perdemaderência com o barro

• Teor adequado de areia, argila eumidade; aditivos (palha e esterco),se necessário ou desejado

• Excesso de argila, excesso deágua (barro muito mole), resultandoem rachaduras ao secar

• Espessura adequada dasparedes, protegendo totalmente ospaus

• Paredes muito finas, pausexpostos

• Acabamento adequado (reboco,pintura); manutenção adequada

• Falta de acabamento emanutenção, frestas abrigampragas; deterioração precoce

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Vantagens e desvantagens do pau-oa-opique

O pau-a-pique é uma técnica de construção mais rápida que as demaisconstruções de barro. Isso se deve ao fato de as paredes serem mais fnas, eportanto necessitarem menos barro. Pelo mesmo motivo, são também mais leves.Por isso, tendem a ser menos resistentes que paredes mais grossas, como as decob, adobe e taipa de pilão. Também oferecem menos isolamento térmico eacústico.

Porém, por serem mais leves, são mais indicadas para pisos superiores desobrados, por exemplo. Também, por serem mais delgadas, são ideais paraparedes e divisórias internas, roubando menos espaço interno dos cômodos.

Taipa de pilão

Nesta técnica, utilizam-se duas pranchas de madeira bem resistentes, quesão presas por suportes externos ou longos parafusos, formando uma fôrmamóvel, desmontável. Coloca-se a terra dentro dessa fôrma, em camadas de 10 a20 cm, e soca-se com um soquete de madeira, compactando bem; a fôrma éentão desmontada e movida mais adiante, repetindo-se o processo,prosseguindo-se assim com a construção da parede.

As paredes devem ser grossas, 40 cm ou mais, dependendo da altura dacasa. A mistura de terra pode ser essencialmente a mesma das outras técnicas deconstrução com terra, com um teor de argila entre 15 e 50%, e areia entre 50 e85%. Porém, para uso na taipa de pilão, a mistura de terra tem que estar umpouco mais seca que nas técnicas descritas anteriormente. Além disso, aditivos

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Esteio

Treliça

Base

Barro

Construindo com pau-a-pique

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como palha e estrume são menos importantes na taipa de pilão, sendogeralmente dispensados.

Terra ensacada

Nesta técnica, muito popular entre bioconstrutores atualmente, sacos sãoenchidos com terra, empilhados e compactados com um soquete de madeira,formando assim as paredes.

A preparação da terra é idêntica à da taipa de pilão. Tratam-se, na verdade,de técnicas muito semelhantes, exceto que na terra ensacada, ao invés de se usaruma fôrma de madeira, a terra é contida pelos sacos.

Os sacos utilizados podem ser de fbras naturais, como a juta e algodão;porém, os mais comumente utilizados são de materiais sintéticos como opolipropileno (sacos de ráfa). Podem ser reaproveitados sacos usados deprodutos como cebolas, laranjas, batatas, farinha, calcário agrívcola, etc. Porém,na prática esses sacos raramente estão disponívveis em quantidade sufciente, epor isso o mais comum é usar sacos novos. A opção mais popular são bobinas demalha tubular de ráfa, com largura entre 30 e 40 cm e comprimento de 500 ou1000 metros. Esse material obviamente tem que ser comprado, e poderepresentar um custo substancial, o que representa uma desvantagem dessatécnica.

Os sacos podem ser divididos grosseiramente em dois tipos: os de malhafechada, como os de farinha de trigo para uso industrial, calcário agrívcola, etc., eos de malha aberta, como os de cebola, batata e laranja. Por algum motivo, aconstrução com sacos de malha fechada foi batizada de superadobe, e a commalha aberta foi chamada de hiperadobe. Os sacos de malha aberta são maisvantajosos para construção, pois permitem boa aderência entre as camadas daparede, e também desta com o reboco, além de geralmente serem mais baratos erepresentarem menor quantidade de plástico.

Utiliza-se um balde sem fundo como funil para encher os sacos de terra.Os sacos (ou a malha tubular) vão sendo enchidos de terra e deitados sobre oalicerce (ou as camadas já construívdas da parede), formando uma nova fada, queem seguida é compactada com o soquete. Antes que o barro seque, deve-secompactar também lateralmente, usando uma marreta de borracha ou madeira.

O acabamento se faz de maneira idêntica à descrita para a técnica do cob.Porém, no caso de se usarem sacos de malha fechada (superadobe), é necessárioqueimar ou pelo menos chamuscar o plástico com um lança-chamas (tipo“vassoura de fogo”) após terminada a construção da parede, para permitir aaderência do reboco à parede de terra.

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Telhado

O telhado é uma parte crívtica de qualquer construção, já que, se não forbem feito, pode levar a goteiras, infltrações e até risco de desabamento. Porisso, mesmo em bioconstruções, muitas pessoas acabam optando por construirtelhados convencionais, como os de telhas de barro ou fbrocimento, pois alémde serem consagrados pelo uso, são familiares a todos, sendo portantogeralmente muito fácil encontrar os materiais necessários e mão de obradevidamente capacitada para sua construção.

Porém, as técnicas de bioconstrução oferecem opções de telhados ecoberturas naturais, efetivas e seguras. Dentre elas, podemos destacar ostelhados de palha, telhados verdes e domos.

Telhados de palha

Palha tem sido usada como material para cobertura de casas há milhares deanos, por povos desde os mais primitivos até os civilizados, em todos oscontinentes. Diversas espécies vegetais fornecem folhas adequadas à confecçãode telhados, incluindo algumas gramívneas como o sapé, santa fé e o trigo;palmeiras (piaçava, carnaúba, coqueiro, etc.), plantas aquáticas como juncos,taboas, etc.

Telhados de palha são bastante charmosos e podem ser bastante efetivos,desde que bem feitos. Com manutenção adequada, que deve ser feita a cada 3 a5 anos em média, podem durar décadas. Além disso, por serem leves e fexívveis,permitem a utilização de materiais alternativos de baixo impacto ambiental paraa estrutura do telhado, como o bambu, por exemplo, desde que devidamentetratado para maior durabilidade.

Um detalhe técnico importantívssimo em telhados de palha diz respeito àcaívda, que deve ser bem ívngreme, com pelo menos 45° (ideal entre 50 e 60°),para permitir que a água da chuva efetivamente escorra. Caso contrário, ou seja,se você não der ao telhado uma caívda adequada, a água penetrará na palha,fazendo com que você tenha problemas com goteiras. Além disso, a umidadeacaba fcando retida na palha, fazendo com que ela apodreça rapidamente.

Fazer um simples telhado de palha não é difívcil; porém, fazer um bomtelhado de palha pode ser bastante complicado, dependendo de mão de obraespecializada e experiente, que nem sempre é fácil de encontrar. Bioconstrutoresamadores e iniciantes, quando se aventuram a fazer telhados de palha,normalmente têm problemas com goteiras. Portanto, se quiser experimentar, éaconselhável usar essa técnica em construções menos crívticas, como galpões,galinheiros, etc., antes de usá-la para cobrir a sua casa.

Outra limitação dos telhados de palha é que na maioria dos locais, não hádisponibilidade de palha adequada à construção de telhados em quantidade

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

sufciente, na prática impedindo que se use essa técnica.Deve-se ter em mente, ainda, que a palha é infamável, devendo-se portanto

ter cuidado redobrado contra incêndios.

Telhado verde

Telhados verdes chamam atenção por seu aspecto inusitado, pitoresco eextraordinariamente natural. Além disso, dão excelente conforto acústico etérmico à casa. E não pára por aív — conforme mencionado no capívtulo 8 (“Águaem Permacultura”), telhados verdes ajudam a reter água da chuva e melhorar aqualidade do ar nas cidades, além de possibilitarem a produção de lindas fores,ervas e até comida. Por isso, não é surpreendente que despertem o interesse detantos bioconstrutores.

Telhados verdes podem ser construívdos de diversas maneiras, com técnicasdiferentes. A técnica mais convencional consiste de uma laje de concreto comdeclividade de pelo menos 2%, fortemente impermeabilizada por manta asfálticaou manta plástica grossa, sobre a qual se adiciona uma camada de argilaexpandida para propiciar drenagem, uma manta permeável e, por cima desta,uma camada de solo onde vão as plantas.

Porém, telhados verdes também podem ser feitos de forma mais simples ebarata, sem a necessidade de se ter uma laje. Em cima de um madeiramentoconvencional de telhado, ao invés das telhas você instala um “telhado” de chapasde compensado de obra tipo “madeirite” (existem hoje no mercado placassemelhantes feitas a partir de caixas de leite longa vida recicladas, que podemser uma excelente alternativa). Sobre as chapas, você prega sarrafos de 5 cm dealtura, em posição horizontal, em linhas espaçadas a cada 60 a 75 cm, por todo otelhado — esses sarrafos criarão barreiras que ajudarão a manter a terra nolugar. Deve-se instalar também uma tábua de madeira na posição vertical, quesuba 10 cm acima do nívvel do compensado ao redor de todo o telhado, paraconter a terra. Por sobre isso tudo, você instala uma camada de carpete deforração (de preferência carpetes velhos, que podem ser obtidos de graça emreformas de prédios), uma lona plástica impermeável e resistente, e mais umacamada de carpete — assim, a lona estará protegida do contato direto com amadeira ou a terra, evitando perfurações ou roturas. Por fm, cubra com umacamada de 10 cm de terra misturada com composto orgânico, e plante placas degrama. Está pronto!

A grama deve ser plantada em dias chuvosos, para que pegue. Uma vez quea grama estiver estabelecida e a terra estabilizada sobre o telhado, você poderáplantar outras coisas, como fores, ervas e hortaliças, etc., diretamente sobre agrama. Agora, se você não quiser plantar grama, pode simplesmente cobrir aterra com uma boa camada de palha (cobertura vegetal morta), que evitará que aterra escorra em dias de chuva. Conforme a palha se degradar, haverá o

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crescimento natural e espontâneo de plantas que, com suas raívzes, estabilizarão aterra permanentemente.

Alguns cuidados são necessários em relação ao telhado verde, e osprincipais pontos são estrutura, impermeabilização e manutenção.

Deve-se ter em mente desde o inívcio que telhados verdes sãosubstancialmente mais pesados que outros tipos de telhados, fcando ainda maispesados em dias de chuva. Por isso, toda a casa, desde a fundação, paredes até aprópria estrutura do telhado, deve ser feita com resistência sufciente paracomportar esse peso.

Além disso, ninguém quer um telhado que vaze! Além do incômodo dasgoteiras, vazamentos também levam ao apodrecimento do madeiramento,trazendo sérios riscos ao telhado e à construção. Por isso, as medidas citadasacima, ou outras equivalentes, devem ser observadas com a máxima seriedade, equaisquer infltrações que venham a ocorrer devem ser prontamente sanadas.

Deve-se ter em mente que telhados verdes são relativamente sazonais: naépoca das secas, as plantas secarão (e o telhado não parecerá tão verde), para napróxima estação chuvosa voltarem a forescer. Lembre-se: todas as lindas fotosque vemos de telhados verdes são tiradas na época das chuvas! Não espere queseu telhado se pareça com aquilo o ano todo. Teoricamente, você poderia manterseu telhado irrigado, mas na prática isso raramente é feito, até mesmo porrepresentar um gasto excessivo e desnecessário de água, que pode anular aomenos em parte os benefívcios ambientais desse tipo de telhado. Então, creio queo melhor mesmo é aceitar a sazonalidade do telhado verde.

Outro ponto que merece atenção é a manutenção, especialmente emrelação ao crescimento de árvores. Deve-se fcar de olho, e cortar árvores queinventem de crescer no telhado, pois elas têm o potencial de perfurar a camadade impermeabilização e literalmente destruir o telhado. Mas não arranque asárvores, pois com isso você arrancará também uma grande porção de terra dotelhado — ao invés disso, é melhor apenas cortá-las rente à camada de solo,deixando suas raívzes lá, que continuarão atuando na fxação do solo, sendoportanto até úteis.

Domos

Domos são cúpulas arredondadas, caracterívsticas de muitas culturas eantigas civilizações. O uso de domos como cobertura para casas é bastante rarono mundo ocidental moderno e, por isso, casas com domos têm um aspectobastante exótico.

Domos podem ser construívdos de adobe, cob ou terra ensacada, e mesmoconstruções de pedra — além de alvenaria convencional, claro. Podem ter umformato hemisférico ou de ogiva (mais “pontudos”), sendo que os mais pontudossão mais fáceis de construir. Também são mais estáveis e resistentes à ação dachuva.

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Coberturas feitas de barro necessitam de impermeabilização, por motivosóbvios. Técnicas tradicionais incluem o uso de estrume bovino fresco, e cal comsumo de cactos. Essas técnicas funcionam muito bem em climas desérticos, ondedomos são tradicionalmente comuns. Porém, em locais mais úmidos, devido àgrande incidência das chuvas, esses revestimentos naturais têm durabilidademuito limitada, necessitando manutenção e reaplicações constantes, o que ostorna inviáveis na prática. Nesses casos, pode-se usar revestimentos cerâmicos(ladrilhos) ou de pedra, assentados com argamassa. Há também no mercadoatualmente uma resina de poliuretano vegetal (“PUV”), produzida a partir damamona, que pode ser usada para impermeabilizar domos de barro, sem anecessidade de usar cimento.

Telhados convencionais

Telhados comuns podem ser feitos com impacto ambiental reduzido,confuindo com a proposta geral da bioconstrução e da permacultura. Podem-seutilizar telhas de segunda mão, provenientes de reformas e demolições. Mesmotelhas de diferentes modelos, formatos e tamanhos podem ser habilmentecombinadas em um telhado, em camadas diferentes, dando um aspecto inusitadoe estiloso! Pode-se ainda utilizar madeiras de demolição, embora suadisponibilidade seja normalmente limitada, e o preço muitas vezes proibitivo.Outra boa opção são as madeiras roliças para a estrutura do telhado, comopontaletes de eucalipto tratado.* Embora eucalipto tenha lá seus problemas, porser geralmente oriundo de monoculturas e tratados com venenos, ainda assim sãoalternativas mais sustentáveis que madeiras convencionais, já que essas são quaseinvariavelmente oriundas de desmatamento de forestas primárias, como a

* Não é recomendado o uso de eucalipto bruto (não tratado) em bioconstrução, a não sertalvez em estruturas acessórias (andaimes, escoras, escadas, etc.) e temporárias (galpãotemporário para ferramentas), pois tem durabilidade natural extremamente baixa.

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Construção com domos. Técnica usada: superadobe

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

amazônica, e transportadas por milhares de quilômetros, devendo portanto serevitadas a todo custo.

Considerações em relação ao custo

Na bioconstrução, damos preferência a materiais presentes no local ouimediações, sempre que possívvel. Assim, o custo com materiais tende a ser bemmais baixo. Porém, o processo é geralmente mais demorado e trabalhoso, poisvocê terá que colher esses materiais e transportá-los por sua conta; terá quefabricar seus próprios blocos (no caso da técnica do adobe), ao invés de comprá-los prontos. Além disso, madeiras brutas e bambus são tortos, e portanto maisdifívceis de trabalhar, ou seja, nada é tão conveniente como comprar materiaistodos retinhos e regulares, e que o caminhão já descarrega prontos no seuterreno no mesmo dia que você comprou, como ocorre no caso das construçõesconvencionais modernas. Por isso, é comum dizer que em bioconstrução omaterial é mais barato, mas o custo com mão de obra é maior, de modo que ocusto fnal da construção pode ser equivalente ou mesmo mais caro queconstruções convencionais equivalentes.

Isso é verdade, especialmente quando se contrata mão de obra paraconstruir. A boa notívcia é que você pode optar por construir você mesmo, e coma ajuda de voluntários, amigos e parentes. Neste caso, a bioconstrução pode, sim,ter um custo bastante reduzido em relação a construções convencionais.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

11SANEAMENTO ECOLÓGICO

Para entendermos o que é saneamento ecológico, é necessário primeirosabermos o que é saneamento.

Saneamento pode ser defnido como o conjunto de infraestrutura e serviçosoperacionais de abastecimento de água, esgotamento sanitário e limpeza urbana,visando a manutenção de condições higiênicas e a prevenção de doenças napopulação. Porém, focaremos esta nossa discussão na questão do esgotamentosanitário.

Importância do saneamento

Fezes são um veívculo potencial para a transmissão de inúmeras e gravesdoenças, incluindo doenças infecciosas bacterianas como a shigelose, cólera efebre tifoide; virais como hepatites, rotavirose e enteroviroses (incluindo apoliomielite), e parasitárias causadas por protozoários, como giardívase, amebívasee criptosporidiose, além de inúmeras verminoses (e.g. ascaridívase). As diarreiascausadas por essas doenças foram uma das principais causas de mortalidade,especialmente mortalidade infantil, por toda a história da humanidade, e aindacontinua sendo até hoje nos paívses menos desenvolvidos social eeconomicamente do mundo, como na maior parte da África subsaariana. Todasessas doenças (além de outras, como a leptospirose e doenças transmitidas por

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mosquitos) só podem ser efetivamente prevenidas através do saneamento. É porisso que nos paívses mais desenvolvidos, a incidência dessas doenças épraticamente zero.

Histórico do saneamento

Na pré-história, obviamente não havia qualquer tipo de saneamento, e orelacionamento do homem com seus excrementos provavelmente se assemelhavaao das demais espécies animais. A rota fecal-oral é uma via de transmissão dedoenças que ocorre em populações de todas as espécies animais, podendo estarassociada a morbidade e mortalidade signifcativas. Porém, em condiçõesnaturais, o impacto dessa via de transmissão na saúde das populações muitasvezes é minimizado pelas densidades populacionais relativamente baixas, oucomportamento migratório, etc. E provavelmente essa também foi a situação daespécie humana ao longo das centenas de milhares de anos em que vagávamospela Terra como caçadores-coletores.

Porém, com o surgimento das primeiras civilizações, as populaçõeshumanas passaram a ser sedentárias e criar adensamentos, como grandesassentamentos e, posteriormente, cidades, que favoreceram enormemente atransmissão de doenças feco-orais.

Na Antiguidade Clássica, a associação entre limpeza e bem-estar e saúdefoi notada, e medidas especívfcas começaram a ser tomadas para a promoção dahigiene pública. Merecem destaque a Civilização do Vale do Indo, Grécia eRoma Antiga, que já contavam com elaboradas redes de esgotos há até 4000anos atrás. Essas tubulações e galerias levavam os esgotos domésticos para foradas cidades, onde eram despejados em corpos d’água — rios, lagos ou mares —enquanto suprimentos de água limpa eram trazidos de áreas remotas, através deaquedutos.

Todavia, com a queda do Império Romano Ocidental, desapareceu tambéma ideia do saneamento em toda a Europa. Por isso, na Idade Média, a normapassou a ser… defecar em qualquer lugar. Defecar nas ruas, ou dentro de casa edepois jogar na rua. Quem morava perto de algum córrego ou rio, claro, nãoperdia a oportunidade de descarregar seus excrementos diretamente ali. Tambémo abastecimento de água passou a ser na base do “cada um por si”, buscando derios poluívdos, ou escavando poços domésticos que se contaminavam facilmente.Isso levou a um recrudescimento das doenças de transmissão fecal-oral e hívdricacomo cólera e febre tifoide, entre outras.

Em muitos lugares onde esgotos eram coletados, descobriu-se o potencialde seu uso como fertilizante agrívcola. Esgotos brutos (não tratados) foramusados na agricultura em grande parte da Ásia por séculos, e o mesmo usotambém foi registrado em locais como Escócia, França, Alemanha e Estados

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Unidos no Perívodo Moderno. Na Ásia, essa prática continuou sendo comum atéa metade do século XX.

Essa situação geral só iria começar a mudar após a Revolução Industrial, eespecialmente durante o século XIX, com as descobertas cientívfcas de LouisPasteur e outros sobre a microbiologia, ou seja, a existência de microrganismoscomo agentes causadores de doenças, e as implicações disso para a higiene esaúde pública.

Ao longo do século XX, sistemas de saneamento passaram a ser instituívdosem cidades por todo o mundo, mas de forma gritantemente desigual, de modoque ainda hoje têm-se exemplos de todos os estágios de saneamento acimacitados, nas diferentes partes do mundo, indo desde a defecação ao ar livre,amplamente praticada na África, Índia, etc., passando por sistemas precários desaneamento como valas e canais de esgoto a céu aberto, fossas negras, coleta edisposição de esgotos brutos em corpos d’água, até estações de tratamento deesgotos, que são a norma em paívses economicamente desenvolvidos. O Brasil éum caso à parte, já que aqui você tem exemplos de todos esses estágios dosaneamento dentro de um mesmo paívs! Muitas vezes, dentro de uma mesmacidade você tem uma área atendida por uma estação de tratamento de esgoto,outras áreas onde há coleta, mas não há tratamento (o esgoto é simplesmentelançado nos rios ou mar), e bairros na periferia onde não há qualquersaneamento, e os esgotos são lançados a canais a céu aberto que correm entre ascasas, com crianças brincando ao redor, expostas a todo tipo de doenças… umaverdadeira tragédia.

Saneamento convencional

O modelo de saneamento convencional na atualidade consiste basicamentede sistemas de captação, tratamento e distribuição de água potável, e sistemas decoleta, tratamento e destinação fnal de esgotos sanitários. Com isso, consegue-sea segregação entre os seres humanos e seus excrementos, cortando assim o ciclode transmissão das doenças de rota fecal-oral.

Porém, esse óbvio benefívcio à saúde pública vem acompanhado de terrívveisefeitos ambientais, dos quais o mais óbvio é a poluição dos rios e mares. Parauma verifcação prática contundente e irrefutável desse fato, basta visitar os riosTietê ou Pinheiros, ou de fato qualquer rio na cidade de São Paulo, ou a LagoaRodrigo de Freitas no Rio de Janeiro, por exemplo, ou mesmo praticamentequalquer rio que corta qualquer cidade do Brasil, ou a água do mar nas grandescidades costeiras.

Claro que pode-se argumentar que esse dano ambiental todo é na verdadefruto não do modelo convencional de saneamento em si, mas sim da falta ouinadequação do tratamento do esgoto nas nossas cidades. Porém, isso é apenasparcialmente verdade, pois mesmo quando há tratamento do esgoto, o efuente

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lançado aos corpos d’água também não é livre de poluentes! Claro que os teoresde matéria orgânica e poluentes em geral são bem menores que no esgoto bruto.Porém, esses efluentes de estações de tratamento de esgoto ainda contêm umacarga bacteriana muito elevada, além de serem contaminados com produtosquívmicos de diversas fontes, inclusive do próprio processo de tratamento.Portanto, embora menos nocivos aos ambientes aquáticos que os esgotos brutos,os esgotos tratados continuam sendo fonte de poluição das águas. Você não iaquerer nadar ali.

Além da poluição ambiental, esse modelo de saneamento também traz doisoutros grandes problemas: o uso excessivo de água e o desperdício dosnutrientes do solo.

A composição básica dos esgotos domésticos é a seguinte:aproximadamente 1% são excrementos humanos, e 99% água, sendo que dessaágua cerca de 30% foi usada para dar descarga na privada (pense nisso: águalimpa, tratada, sendo misturada a fezes e urina), enquanto o restante foi usadopara diversos fns, como banho, lavagem de roupas e louça, limpeza geral, etc.

Agora, com relação aos excrementos, eles são obviamente resultado doprocessamento dos alimentos pelo nosso corpo. Então, o que acontece é oseguinte: os nutrientes do solo são utilizados pelas plantas, e assim sãoproduzidos os alimentos, os quais consumimos e processamos biologicamente, eo resultado disso são os excrementos — fezes e urina. Quando esses excrementossão lançados na forma de esgotos aos rios e mares, isso signifca que osnutrientes neles contidos jamais retornarão ao solo, de onde vieram. Portanto,nesse sistema, você tem uma contívnua transferência dos nutrientes do solo, ondeeles teriam a capacidade de criar vida e produzir alimentos, para os mares, ondese acumulam na forma de poluição. Com isso você tem de um lado oempobrecimento progressivo da fertilidade do solo, com redução na capacidadede produção de alimentos, e a destruição progressiva dos ecossistemas marinhos,também reduzindo a produção de alimentos ali. Agora, projete essa situação parao futuro, num mundo com cada vez mais pessoas, e cada vez menos capacidadepara produzir comida, e você vai entender por que a sustentabilidade éimportante, e por que o modelo de saneamento atual é um grave problema.

Saneamento ecológico

Chamamos de saneamento ecológico a um conjunto de técnicas,infraestruturas e práticas higiênicas que permitem a interrupção do ciclo detransmissão de doenças de transmissão fecal-oral e veiculação hívdrica,cumprindo portanto a missão do saneamento, sem contudo consumir água emdemasia, poluir o ambiente, desperdiçar nutrientes ou causar qualquer outro

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dano aos ecossistemas, sendo portanto sustentáveis.

Há técnicas de saneamento ecológico adequadas a todas as escalas, desde aindividual até grandes sistemas coletivos, para cidades inteiras, por exemplo.Porém, como a implementação de sistemas em larga escala depende daadministração pública, e portanto vontade polívtica, e como aparentemente asociedade em geral está satisfeita com o modelo atual de “jogar a merda toda norio e deixar que a natureza se vire”, na prática os sistemas em pequena escala sãoa única opção viável para a maioria dos permacultores, pelo menos no curto emédio prazo.

Técnicas de saneamento ecológico

Banheiro seco de compostagem*

Pode-se dizer que o banheiro seco de compostagem, também chamadosimplifcadamente apenas de banheiro seco, é o sistema de saneamento maisecológico e sustentável que existe, sendo por isso mesmo o preferido napermacultura. Nesse sistema, os excrementos (fezes e urina) são depositados emum local devidamente contido, sem contaminar o meio ambiente, e cobertoscom uma variedade de materiais naturais, chamados “materiais de cobertura”,formando camadas. Essa mistura é então mantida intocada por perívodos quepodem ser de 6 meses em regiões de clima tropical, a 1 ano em regiões de climatemperado, chegando até a 2 anos nos climas muito frios. Nesse perívodo, que écrívtico, ocorre o fenômeno da compostagem, em que microrganismosnaturalmente presentes nesses materiais se proliferam, digerindo essa matériaorgânica e transformando-a em húmus, um fertilizante agrívcola orgânicoriquívssimo em nutrientes do solo.

Durante o processo de compostagem, a intensa competição microbianaassegura a destruição total de quaisquer patógenos eventualmente presentes nosexcrementos, garantindo a segurança do uso desse húmus na adubação do solopara a produção de alimentos, sem gerar riscos à saúde humana. A elevação datemperatura no processo de compostagem termofívlica** e a presença de amônia,decorrente da degradação da ureia†, também contribuem para a destruição deeventuais patógenos. Além de microrganismos patogênicos, também resívduos de

* O livro “Manual Humanure”, de Joe Jenkins, é a referência mais completa sobre esteassunto, sendo geralmente considerado uma espécie de “bíblia do banheiro seco”.** Germer, J. et al. Temperature and deactivation of microbial faecal indicators during smallscale co-composting of faecal matter. Waste Management. 2010.† Jensen, P. K. et al. Survival of Ascaris eggs and hygienic quality of human excreta inVietnamese composting latrines. Environmental Health. 2009.

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produtos quívmicos e farmacêuticos são degradados pelas condições biológicas equívmicas que ocorrem no processo de compostagem.*

O banheiro seco de compostagem traz enormes vantagens:

• Não utiliza água. Pense só, utilizar um banheiro por toda a sua vida semjamais utilizar um litro de água sequer!

• Não gera esgotos ou qualquer outro tipo de poluição.

• Resulta em fertilizante de alta qualidade, permitindo a devolução dosnutrientes ao solo para a produção de mais alimentos, recuperaçãoambiental, etc. Ou seja, não há desperdívcio de nutrientes, e sim suareciclagem completa.

Tipos de banheiro seco

Existem basicamente dois tipos principais de banheiro seco: o tipo verticale o horizontal. Se você pesquisar, encontrará uma infnidade de variações, einclusive modelos comerciais disponívveis em muitos paívses, sendo que muitossão até bem caros, às vezes dependem de energia elétrica para funcionar, etc.mas que na verdade não oferecem qualquer vantagem efetiva sobre os modelossimples do tipo “faça você mesmo”. Por esse motivo, focaremos nossa discussãosobre banheiro seco nos modelos mais básicos, que também são os maispopulares.

Banheiro seco vertical

O banheiro seco vertical, ou de composteira acoplada, consiste de umaestrutura onde o banheiro propriamente dito é construívdo diretamente acima deuma câmara de compostagem (composteira), que é bem vedada. Não se usa umabacia sanitária comum (daquelas de descarga) — ao invés disso, o vaso sanitárioconsiste basicamente de uma caixa ou bancada que dê altura adequada para queo usuário possa sentar-se, com uma abertura guarnecida de assento e tampa, quepodem ser aproveitados de privadas convencionais. Alternativamente, pode-sefazer a abertura no assoalho do banheiro, caso queira-se uma privada daquelasque se usa agachado (opção tradicional e bastante popular na Ásia, e que muitosafrmam ser mais natural e saudável).

A câmara de compostagem deve ter um tubo para exaustão de gasesgerados no processo da compostagem, e uma abertura independente, com porta,para esvaziamento periódico.

* Kakimoto, T.; Funamizu, N. Factors afecting the degradation of amoxicillin in compostingtoilet. Chemosphere. 2007.

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Ao usar o banheiro, os dejetos caem dentro da composteira. Após cadauso, ao invés de se “dar a descarga”, lança-se uma certa quantidade de materialde cobertura dentro do vaso sanitário, sufciente para cobrir os dejetos. E pronto!o banheiro está pronto para uso novamente.

Por material de cobertura entende-se uma variedade de materiais naturais,como serragem, palha de arroz, folhas mortas de árvores, capim, aparas degrama e outros restos vegetais (e.g. galhos e restos de podas) triturados, etc.Eventualmente outros materiais podem ser adicionados, como cinzas e terra,desde que não constituam uma porção principal do material de cobertura. Outrosmateriais orgânicos, como restos de cozinha, também podem ser adicionados.

A principal e mais óbvia função do material de cobertura é bloquear odoresprovenientes dos dejetos e restos orgânicos durante a compostagem. Outrasfunções incluem: absorver o excesso de umidade do composto, manter a aeraçãoproporcionando a decomposição aeróbica e termofívlica da matéria orgânica,proporcionar um substrato poroso ideal para a atividade microbiana, provernutrientes ao composto pela decomposição do material de cobertura, etc.

Quando a câmara de compostagem se enche, esse banheiro deve serinterditado por todo o perívodo de compostagem (6 meses a um ano, dependendodo clima local). Nesse perívodo, deve-se usar outro banheiro. Por isso, geralmentebanheiros secos verticais são construívdos em módulos duplos: dois banheirosidênticos, lado a lado, com suas respectivas câmaras de compostagem, que sãousadas alternadamente: seis meses uma, seis meses a outra.

Ao fnal do perívodo de compostagem, abre-se a câmara por uma portalateral ou traseira (acesso externo) para remoção do composto, que estará prontopara uso como adubo. O tamanho da câmara de compostagem varia conforme aintensidade de uso, mas em geral tem em torno de 1 a 2 metros cúbicos. Devidoao uso alternado, deve-se necessariamente construir no mívnimo dois banheiros(para uso individual ou uma famívlia pequena). Deve-se construir um númerosufciente de unidades para sempre permitir o descanso por todo o perívodo decompostagem.

A vantagem deste modelo de banheiro seco é sua praticidade de uso, já queé só usar e usar, por seis meses, sem ter que se preocupar com manutenção dacomposteira — esta é feita apenas uma vez ao fnal de cada ciclo.

Porém, esse sistema também tem algumas desvantagens e limitações.Como o material fecal cai lá em baixo, mesmo que você capriche ao jogar omaterial de cobertura, difcilmente “acertará em cheio”. Portanto, a cobertura émenos efciente, comumente gerando algum problema com odores. Esseproblema pode ser amenizado com boa ventilação do banheiro, boa ventilaçãoda composteira (respiro adequado), e adição de mais material de cobertura.Ainda, a unidade toda deve ser bem vedada, tanto o assento como a tampa da

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câmara de compostagem e o respiro (com tela), para evitar o acesso de moscas,evitando sua proliferação na câmara.

Outra desvantagem diz respeito à falta de fexibilidade desse sistema.Digamos que você constrói um banheiro para uma casa de 3 pessoas. Porém, poralgum motivo você recebe um morador extra, ou talvez você tenha uma vidasocial bem ativa, e o banheiro é usado além do esperado. Pode acontecer dacâmara de compostagem se encher antes de ter dado o tempo necessário para acompostagem completa da outra unidade do banheiro, gerando portanto umproblema logívstico!

Uma limitação deste sistema é que geralmente não é possívvel fazer umaadaptação em um banheiro já existente. Às vezes é possívvel projetar e construirum banheiro seco vertical contívguo à casa, especialmente quando a topografa doterreno for favorável, já que o banheiro tem que fcar a uma altura no mívnimocerca de 1,5 m acima do nívvel do solo do lado externo à casa, para permitirespaço vertical para a construção da câmara de compostagem, sendo necessáriotambém uma área de circulação do lado de fora para permitir a retiradaperiódica do composto. Porém, na prática a grande maioria das pessoas queutilizam este sistema optam por construir o banheiro como uma estruturaindependente e externa à casa, o que pode representar um custo substancial,além de requerer um espaço considerável, podendo ainda ser consideradobastante inconveniente (imagine ter que sair da sua casa para ir ao banheiro numdia de chuva!).

Por fm, cabe ressaltar que há muitas pessoas que utilizam esse modelo debanheiro seco, e estão satisfeitas.

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Respiro

Câmara de compostagem

Acesso externo

Porta

Esquema de banheiro seco vertical (módulo duplo, externo)

Assento

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

Banheiro seco horizontal

Já o banheiro seco horizontal, ou de composteira separada, édesconcertantemente simples: consiste basicamente de um balde plástico comtampa e capacidade para 15 a 25 litros, um assento de vaso sanitário comum euma composteira que fca fora da casa. Para se usar o banheiro, basta abrir atampa do balde, instalar o assento de privada e usar como se fosse uma privadacomum. Após o uso, cobre-se com uma camada de material de cobertura. Antesque o balde se encha completamente, esse deve ser esvaziado: leve até acomposteira, deposite lá o conteúdo do balde e cubra o material recém-adicionado com uma nova camada de material de cobertura. O balde deve serlimpo internamente a cada esvaziamento — você pode lavá-lo com água e umaescova comum de vaso sanitário, e jogar a água na composteira, mesmo.Alternativamente, você pode apenas limpar o interior do balde com o própriomaterial de cobertura: ainda ao lado da composteira, adicione uma certaquantidade de serragem dentro do balde e mexa com uma espátula de madeira(feita com uma ripa ou bambu) de uso exclusivo para esse fm. Jogue essaserragem dentro da composteira. Cubra o fundo do balde com uma camada dematerial de cobertura, e ele já estará pronto para ser levado novamente aobanheiro para uso. Ou seja, nem mesmo para limpar o balde é necessário usarqualquer água! Caso deseje, você pode sanitizar o interior do balde aplicandouma fna camada de cinzas, mas isso não é necessário.

Quando a composteira se enche, ela deve ser coberta com uma generosacamada de material de cobertura, ter a data marcada em local visívvel, e deixadaintacta pelo perívodo adequado para compostagem (mívnimo de 6 meses,conforme já discutido), após o que ela pode ser esvaziada; então, o compostoestará pronto para uso como adubo. Durante esse perívodo, usa-se outracomposteira. Deve-se ter um número sufciente de composteiras para semprepermitir o descanso por todo o perívodo de compostagem — isso é vital.

A cobertura fnal de palha ou serragem deve ser relativamente grossa, poisisso ajuda no isolamento térmico do composto, facilitando que esse atinjatemperaturas altas (composto termofívlico).

A maioria das pessoas prefere construir um pequeno gabinete, que pode sermadeira reaproveitada (de pallets usados, por exemplo), e instalar o balde dentrodeste gabinete no banheiro, com o assento de privada sendo fxado ao gabinete.Isso pode dar um aspecto mais “civilizado” do que simplesmente defecar nobalde, mas certamente não é necessário.

Você não precisa esvaziar o balde assim que ele se enche. Pode ter algunsbaldes a postos, para substituir conforme necessário, planejando para esvaziá-losuma vez por semana, por exemplo. Basta deixar os baldes cheios devidamentetampados, e não haverá problema algum — nem cheiro, nem moscas, nada.

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O tamanho dacomposteira podevariar, mas um tamanhode 1 metro cúbico égeralmente adequado.Elas podem serconstruívdas de tábuas dereuso, como tábuas deconstrução ou de pallets.As composteiras devemser bem feitas, para que

resistam por todo o perívodo de enchimento e compostagem (cerca de um ano, aotodo). Como geralmente usamos madeiras reaproveitadas, na maioria das vezesde pinus, que apodrecem facilmente, geralmente as tábuas não podem ser usadasmais do que uma ou duas vezes, tendo que ser substituívdas. Se você usarmadeiras mais resistentes ou tratadas, talvez possam ser usadas por vários anos.

As composteiras devem ser construívdas fora da casa, mas não muito longe,para facilitar o manejo. Convém provê-las com uma cobertura, para evitar oressecamento excessivo na estação seca, e encharcamento na estação chuvosa.

Você pode construir composteiras isoladas, ou um módulo duplo comcompartimento para armazenar serragem no centro (veja ilustração abaixo). Otelhado é provido de calhas e tanque para armazenamento de água de chuva, quepode ser usada na lavagem dos baldes. As composteiras são usadasalternadamente: enquanto você vai enchendo uma, a outra, já cheia, permaneceintocada, repousando por todo o perívodo necessário para a compostagem. Caso acomposteira em uso se encha antes do perívodo mívnimo para abertura da outra,devem ser construívdas composteiras adicionais.

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Modelo de composteira em módulo duplo

Serragem

Banheiro seco horizontal

Adaptado de: Joseph Jenkins. The Humanure Handbook (3.a ed.). 2005.

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Ao contrário do banheiro seco vertical, o sistema horizontal éextremamente fácil de adaptar em sua casa — basta tirar a privada do banheiro ecolocar um balde no lugar, e construir uma composteira no quintal, trazer algunssacos de serragem da madeireira ou marcenaria mais próxima, e pronto, já podecomeçar a usar o seu banheiro seco!

Uma das coisas que fazem este sistema muito interessante e atrativo é o seubaixívssimo custo, já que pode ser feito inteiramente com materiaisreaproveitados. Você não precisa e nem deve comprar um balde novo. Hádiversos produtos que são comercializados em baldes de tamanho adequado (15a 25 litros), como margarina para uso industrial, impermeabilizante paraconcreto, cloro para tratamento de água, graxa, etc. Em geral, são produtos deuso industrial ou para construção, então você vai ter que ir aos lugares certospara obtê-los, como construções em andamento, indústrias, grandes postos deserviços, etc. Muitas vezes, esses baldes podem ser encontrados em depósitos desucatas e materiais recicláveis. Em minha cidade, a opção mais fácil são osbaldes de margarina (15 kg), usados pelas padarias.

Esses baldes costumam ser de excelente qualidade, muito fortes e duráveis,e com tampas realmente herméticas, e em geral podem ser obtidos a custosmuito baixos — com sorte, até de graça! O mesmo pode-se dizer dos demaismateriais necessários ao uso deste modelo de banheiro seco: as madeiras paraconstruir as composteiras podem ser obtidas a custo virtualmente zero, se vocêusar tábuas de construção descartadas, ou madeiras de pallets quebrados, e aserragem também, geralmente, você pode obter de graça (ou quase) emmadeireiras e marcenarias.

QUESTÕES FREQUENTES EM RELAÇÃO AO BANHEIRO SECO

O que fazer com o papel higiênico?

O papel higiênico deve ir para a composteira. Papel higiênico é constituívdode celulose, que nada mais é que matéria vegetal. Ele se decompõe de formaassustadoramente rápida, contribuindo para o teor de matéria orgânica do seucomposto. Ainda presta uma contribuição modesta na absorção de umidade eaeração da pilha de composto. Portanto, papel higiênico deve ser adicionadojunto com as fezes, no banheiro seco. Pode jogar sem medo, não vai entupirnada!

Urina junto ou separado?

Este é um assunto que divide opiniões, mas a verdade é que as duas opçõesexistem e são válidas, cada uma com suas vantagens e desvantagens. Por ser umassunto que merece uma discussão mais detalhada, trataremos dele num tópico àparte, mais adiante.

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Virar ou não virar?

Existe um costume bastante arraigado entre as pessoas que praticam acompostagem, especialmente agricultores orgânicos, de virar (ou seja,remisturar) o composto periodicamente, durante o perívodo da compostagem.Essa prática traria as seguintes vantagens: aerar a massa sendo compostada,favorecendo a decomposição aeróbica; fragmentação e homogeneização docomposto, e também a redistribuição da umidade, permitindo umadecomposição mais completa e rápida, rendendo ainda um produto fnal commelhor aspecto.

Porém, embora tudo isso seja verdade, a prática tem comprovado que aviragem do composto não é necessária — talvez o processo leve um pouco maisde tempo, e você tenha um produto fnal menos homogêneo, mas ainda assimterá o seu composto, bom e seguro.

O processo de viragem traz duas desvantagens. A primeira e mais óbvia é otrabalho que dá virar o composto, especialmente se for um volume grande.Outro problema diz respeito a um risco à saúde: durante o processo dedecomposição, há uma intensa proliferação de fungos no composto, e a viragempõe em suspensão no ar uma grande quantidade de esporos, o que poderepresentar um risco de alergias e mesmo infecções respiratórias.

Considerando tudo isso, e ainda o risco de contaminação ambiental comfezes (ou seja, material fecal antes da completa degradação), conclui-se que nãose deve virar o composto contendo material do banheiro seco. Deixe-o ali,intocado por todo o perívodo de compostagem recomendado, e você terá o seucomposto. Vale ressaltar que os trabalhos cientívfcos que comprovaram a efcáciada compostagem na eliminação de patógenos foram realizados sem viragem docomposto, o que confrma que ela é desnecessária.

Não vai feder?

A resposta curta para essa pergunta é: não. Um banheiro seco não devecheirar mal, tampouco a composteira deve ter qualquer cheiro desagradável.Agora, há apenas dois breves momentos em que você inevitavelmente sentirámaus odores. Um deles, obviamente, na hora de usar o banheiro, especifcamenteno caso da defecação. Não apenas porque isso fede em qualquer banheiro, mashá também outro pequeno fator: em privadas convencionais, as fezes, uma vezliberadas, são imediatamente submersas em água, o que ajuda a minimizar aliberação de odores. No banheiro seco, por outro lado, as fezes cairão… no seco.Portanto, até que você termine o serviço e cubra com o material de cobertura,haverá uma liberação de odores fecais superior ao que ocorreria em um banheiroconvencional. Mas, na verdade, a diferença não é muito grande.

O outro momento em que haverá liberação de odores é na hora de esvaziaro balde na composteira, no caso do banheiro seco horizontal. Esse momentodurará cerca de cinco minutos, entre você esvaziar o balde, limpá-lo e adicionar

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material de cobertura à pilha de composto. Cinco minutos, uma vez por semana— não é pedir muito, é? Certamente um pequeno sacrifívcio que vale a pena,considerando os enormes benefívcios oferecidos pelo banheiro seco. Se, aindaassim, você se deixar desencorajar por isso, ainda tem a opção do banheiro secovertical.

Exceto nos momentos acima citados, um banheiro seco e uma composteirabem manejada não devem jamais emitir qualquer odor. O único motivo paramaus odores é aplicação insufciente ou inadequada de material de cobertura.Alguns materiais de cobertura são menos efcientes em bloquear odores; porexemplo, serragem muito grossa, ou palha. Prefra serragem média, ou umamistura de serragem de diferentes granulometrias, para melhores resultados.Palha, folhas mortas e outros restos vegetais devem ser, preferencialmente,triturados para uso como material de cobertura. Cinzas de fogão e forno a lenha,churrasqueiras, fogueiras, etc., que usualmente contêm algum resto de carvão,também podem ser adicionadas como material de cobertura e são úteis naeliminação de odores.

Uso de aditivos

Muitos manuais de compostagem citam ou recomendam a aplicação decalcário agrívcola às pilhas de composto, para neutralizar acidez, desinfetar ocomposto, fornecer nutrientes (cálcio e magnésio), etc. O mesmo pode-se dizerdas cinzas de madeira, que têm constituição semelhante e os mesmos efeitos.

Você pode aplicar cinzas ou calcário em pequenas quantidades nocomposto, seja no balde, misturado ao material de cobertura, ou sobre a pilha decomposto na composteira, mas isso não é necessário. A adição de grandesquantidades não é recomendada, pois interferirá negativamente na degradaçãomicrobiana da matéria orgânica e desbalanceará demasiadamente a composiçãoquívmica e de nutrientes do composto.

Conforme já citado, a adição de cinzas de fogão a lenha ao composto podeajudar a bloquear odores (embora geralmente não seja necessário).

Problemas com pragas

Esta é uma preocupação que atinge muitas pessoas interessadas emcomeçar a usar um banheiro seco, ou fazer compostagem em geral: “não vaiatrair bichos? moscas? ratos? baratas?”

Trata-se de uma questão pertinente, já que você terá ali concentrada umagrande quantidade e variedade de materiais orgânicos que são sabidamenteatrativos a essas pragas. Porém, o fato é que, assim como em relação aos odores,na prática nada disso deve constituir problema, devido à “magia” do material decobertura. Basta você aplicar material de cobertura adequado, em quantidadesadequadas, e estará livre de odores e pragas.

É conveniente ressaltarmos uma coisa: nem só de microrganismos é feitauma compostagem — macrorganismos, sejam eles fungos, insetos, larvas,

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vermes, anelívdeos, etc., também são parte importante da compostagem. Todossabemos que as minhocas são comuns e benéfcas em qualquer processo decompostagem, não é? Muitas vezes, são adicionadas intencionalmente(vermicompostagem), embora isso não seja necessário. Minhocas nativastambém costumam colonizar pilhas de composto.

Outros animais que costumam aparecer no composto são besouros(depositam seus ovos na matéria orgânica, onde se desenvolvem em larvas quepodem ser até bem grandes!), e larvas de moscas.

Aqui, devemos fazer uma distinção. Existem inúmeras espécies de moscas,e nem todas elas são pragas. Claro que ninguém quer moscas domésticas ouvarejeiras crescendo em sua composteira. Caso isso ocorra, você pode adicionaralguma quantidade de cinzas, fazendo uma camada sobre a composteira, poisisso inibe essas larvas.

Por outro lado, é comum aparecerem em composteiras larvas da moscasoldado negra (Hermetia illucens). Essas moscas não são pragas — não atacamnossa comida, nem transmitem doenças. Nem sequer gostam de chegar perto dehumanos. Suas larvas são extremamente benéfcas na composteira, auxiliando nadecomposição da matéria orgânica. Além disso, elas trazem ainda outras grandesvantagens: inibem totalmente o desenvolvimento de larvas de outras espécies demoscas (essas sim, pragas); foi demonstrado que elas reduzem microrganismospatogênicos (Escherichia coli 0157:H7 e Salmonella enterica) e várias

substâncias tóxicas, e também atuam na reduçãoou eliminação de odores.* Também são ótimasfontes de alimento com alto teor proteico parapeixes, aves, répteis, anfívbios, etc., sendocomumente criadas e comercializadas para essefm.

Larvas da mosca soldado negra são maiscomuns em composteiras mais úmidas e alcalinas,e a adição de cinzas parece favorecê-las (aocontrário do que ocorre com larvas de outrasespécies de moscas).

É realmente seguro?

A compostagem de excrementos humanos e seu uso como fertilizanteagrívcola, embora desconhecidas de muitas pessoas, são práticas estabelecidas econsolidadas mundialmente, e sua segurança e efcácia têm sido comprovadaspor inúmeros trabalhos cientívfcos. Essas práticas são particularmentedisseminadas em paívses asiáticos, sendo inclusive encorajadas por governos. Um

* Newton, G. T. et al. Research Briefs: Black soldier fly prepupae – a compelling alternative tofish meal and fish oil. Annual meeting of the regional research committee, S-1032 “AnimalManure and Waste Utilization, Treatment and Nuisance Avoidance for a SustainableAgriculture”. 2008.

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Tarva, pupa e adulto da mosca soldado negra

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caso exemplar é o Vietnã, onde mais de 90% dos agricultores usam banheiroseco de compostagem e empregam esses nutrientes rotineiramente em suaslavouras, orientados por normas técnicas do governo daquele paívs, as quais sãodevidamente embasadas em pesquisas cientívfcas.*

Claro que essa segurança depende do cumprimento das recomendaçõesdescritas acima, respeitando sobretudo o tempo de compostagem. Também énecessário ressaltar que nada substitui as boas práticas de higiene alimentar,especialmente a prática de lavar bem as frutas e verduras, enfm alimentosconsumidos crus, antes de comê-los.

Pode-ose compostar também fezes de cães e gatos?

Esta é uma dúvida que muitos compostadores têm e, por falta deconhecimento, muitas pessoas acabam incluindo excrementos de animais deestimação em uma lista de itens proibidos da compostagem.

É fato que, assim como as fezes humanas, fezes de cães e gatos tambémtêm o potencial de nos transmitir doenças (zoonoses), especifcamente a larvamigrans visceral, causada pelo Toxocara canis, e a toxoplasmose, causada peloToxoplasma gondii — o primeiro, um verme nematoide que parasita o intestinode cães, e o segundo, um protozoário coccívdeo que tem como hospedeirodefnitivo os gatos. Porém, já foi demonstrado cientifcamente que o processo decompostagem é efcaz na eliminação de ovos e oocistos de vermes e protozoáriosparasitas.** Portanto, para efeitos de compostagem, fezes de cães e gatos podeme devem ser compostadas, da mesma forma e com o mesmo rigor que fezeshumanas, podendo o composto resultante ser usado como fertilizante,igualmente.

Considerações adicionais sobre a compostagem

Todo tipo de material orgânico, ou seja, tudo que veio da terra, deve voltarà terra, e isso pode ser feito de diversas maneiras. Uma delas é a compostagem.Outras são depositar diretamente sobre o solo (e.g. usar restos vegetais comocobertura morta do solo) e enterrar, por exemplo. Você pode escolher. Amaioria das coisas orgânicas pode ir para a composteira, sem qualquer problema.Agora, muitas vezes você verá pessoas dizendo que não se deve adicionar restosde comida como carnes, peixes e laticívnios à composteira, pois isso atrairáanimais como ratos e cães, que causarão problemas. De fato, restos de comida— arroz, feijão, macarrão, carnes, peixes, queijos, pães, bolos, pizzas, etc.,adicionados sistematicamente e em altas quantidades à sua composteira,provavelmente atrairão mesmo não apenas ratos e cães, mas também gatos,

* Jensen, P. K. et al. Hygiene versus fertiliser: the use of human excreta in agriculture – aVietnamese example. International Journal of Hygiene and Environmental Health. 2008.** Amorós, I. et al. Prevalence of Cryptosporidium oocysts and Giardia cysts in raw andtreated sewage sludges. Environmental Technology. 2016.

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urubus, carcarás, corvos, guaxinins, ursos, etc. (dependendo de onde você mora).Mas isso não é um problema da compostagem, e sim um sintoma de umproblema anterior e muito mais grave, que é o seu péssimo hábito de desperdiçarcomida! Alimentos devem ser consumidos, e não jogados fora ou compostados.

Então, por restos de cozinha entendemos apenas cascas e restos nãocomestívveis. Esses devem ir para a composteira, e não se preocupe, poisgeralmente não atrairão visitantes indesejáveis. Agora, algum pequenodesperdívcio de comida que eventualmente, acidentalmente aconteça, porexemplo quando por descuido você deixou estragar alguma coisa, também podeir para a composteira, que não causará problemas. O problema surge, conformejá explicado, do hábito de jogar comida fora, que infelizmente muita gente achanormal.

É importante ressaltar que, para que haja uma compostagem efciente eperfeita, deve haver um equilíbrio nos materiais compostados — devem seradicionados materiais variados e em proporções balanceadas. Quanto maior avariedade de ingredientes, melhor será o seu composto, pois terá todos osnutrientes, o que é importante tanto para a qualidade do composto fnal, emtermos de nutrientes para as plantas, como para o processo de compostagem emsi (os organismos responsáveis pela compostagem também precisam dosnutrientes). Por isso, se você compostar o material do banheiro seco juntamentecom restos da cozinha, aparas de grama e podas, mais outros materiais decobertura (dos quais o mais comum é a serragem), cinzas do fogão a lenha, etc.sua compostagem certamente será um sucesso. Lembrando também que deve-setratar de manter um teor de umidade adequado no material durante acompostagem, ou seja, sempre úmido, mas não encharcado, além de respeitar operívodo mívnimo para que ocorra a compostagem completa, especialmentequando são adicionados excrementos humanos e animais.

Desafos do banheiro seco

Conforme já citado, o banheiro seco é a técnica mais perfeita desaneamento que existe, com total preservação da saúde humana, dos recursosnaturais (e.g. água, nutrientes do solo) e dos ecossistemas. Porém, sua adoçãoem larga escala enfrenta dois problemas culturais: preguiça e fecofobia.

• Preguiça. O fato é que estamos acostumados a dar descarga, e esquecer. Ésem dúvida muito mais cômodo. Porém, esse hábito está causando todos osproblemas que já discutimos. Portanto, temos que mudar. Infelizmente,mudanças no estilo de vida, em práticas arraigadas, são sempre um desafo.

• Fecofobia. A fecofobia pode ser defnida como uma aversão exagerada,um medo irracional das fezes. Criou-se uma cultura em que as pessoas se achamboas demais para lidar com seus próprios excrementos. Até falar em fezes étabu!

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A fecofobia não é uma coisa tão antiga — conforme já mencionado, atémenos de 200 anos atrás, ninguém estava nem aív para fezes e higiene. Foi oconhecimento cientívfco da natureza e forma de transmissão de doenças,passando também pelas polívticas de saneamento, ou seja, de combate àscondições de transmissão de doenças que mudou isso. Então, foi incutido noconsciente e inconsciente coletivo a noção verdadeira que fezes são perigosas,veívculos potenciais de transmissão de doenças graves.

O fato é que as tecnologias de saneamento que surgiram e se estabeleceram(e que temos até hoje) têm dado certo para a saúde pública, mas não para o meioambiente. Felizmente foi criada a tecnologia do banheiro seco de compostagem,que promete conciliar o melhor dos dois mundos. Embora desconcertantementesimples, essa tecnologia é muito recente — a compostagem só foi desenvolvida apartir dos anos 1940, com o surgimento do movimento de agricultura orgânica, ea compostagem de excrementos humanos somente a partir da década de 1970,sendo que o banheiro seco de compostagem só começou a se popularizar com apublicação dos primeiros livros sobre o assunto nos anos 90 — meros 20 anosatrás!

Constipação de fundo moral:

“Quando percebi que estava literalmente cagando em água limpa,tratada, potável, fiquei constipado por anos. Felizmente, conheci a tecnologiado banheiro seco, e agora meus intestinos funcionam regularmente.”

— Brad Lancaster, autor de “RainwaterHarvesting for Drylands and Beyond”

Agora, ninguém quer voltar a uma situação em que cólera, amebívase,giardívase, verminoses, febre tifoide, etc. são parte do dia a dia, matando pessoas,especialmente nossas crianças. Portanto, é importante, sim, combatermos afecofobia através de informação baseada em ciência, e através de nossosexemplos, mostrando que é uma alternativa viável, ética, segura e saudável, tantoem relação à saúde humana como do meio ambiente. Mas, acima de tudo, éimprescindívvel que adotemos o banheiro seco com a máxima seriedade emrelação às boas práticas de compostagem descritas acima, especialmente no quese refere a contenção (evitar contaminação ambiental por excrementos ainda nãototalmente compostados) e tempo de compostagem que, vale sempre lembrar,deve ser de no mívnimo 6 meses em climas tropicais e um ano em climastemperados, para garantir o saneamento total do composto. Caso contrário,corremos o risco de trazer de volta doenças há muito controladas, causandoainda um descrédito em relação a essa tecnologia maravilhosa do banheiro secode compostagem — um retrocesso terrívvel na nossa luta pela sustentabilidade.

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Urina

Conforme já citado, uma questão que frequentemente causa confusãoquando o assunto é banheiro seco diz respeito à urina: ela deve ir junto ouseparada das fezes?

Você descobrirá que há pessoas que recomendam a prática de separar aurina, enquanto outros defendem a ideia que a urina deve ser sempre adicionadajunto com as fezes, no banheiro seco. Para entendermos melhor esse assunto,vamos discutir as vantagens e desvantagens de cada abordagem.

A grande vantagem de adicionar a urina juntamente com as fezes é asuposta praticidade — você usará o banheiro seco da mesma forma que usa aprivada de descarga convencional, ou seja, tanto para defecar como para urinar.Os defensores dessa abordagem afrmam ainda que a urina ajudará a manter aumidade da pilha de composto, além de adicionar importantes nutrientes,especialmente o nitrogênio (nutriente do solo mais abundante na urina), gerandoportanto um composto fnal mais rico em seu valor como fertilizante. Outravantagem é o fato que a ureia presente na urina se converte em amônia,contribuindo para a destruição de patógenos durante a compostagem,aumentando a segurança do composto, conforme já citado.

Porém, adicionar toda a urina junto com as fezes no banheiro seco traztambém importantes desvantagens. Uma delas diz respeito ao volume: a urina éproduzida diariamente em um volume muito maior (10 vezes maior, em média)que o volume de fezes produzido no mesmo perívodo. Por isso, adicionar toda aurina juntamente com as fezes faz com que os baldes (no caso do sistemahorizontal) e as composteiras se encham muito mais rapidamente, o que serefete em uma carga de trabalho muito maior com manutenção do seu sistema,ou seja, você terá que esvaziar os baldes, e manejar composteiras com maisfrequência, o que lhe tomará mais tempo de sua vida. Além disso, mais volumesignifca mais composteiras, ou composteiras maiores, que consequentementeocuparão mais espaço. Você também precisará coletar material de coberturacom mais frequência, pois será usado em maior quantidade, especialmente paraabsorver todo aquele excesso de umidade representado pela urina.

Outra grande desvantagem desse sistema (toda a urina junto com as fezesna composteira) diz respeito à perda de nutrientes, especialmente o nitrogênio.Conforme já mencionado, o nitrogênio está presenta na urinapredominantemente na forma de ureia; porém, durante a compostagem essauréia se converte em amônia, a qual se perde por volatilização — uma perda quepode ser superior a 90% desse que é um dos mais vitais nutrientes para asplantas.*

* Zavala, M. A. et al. Biological activity in the composting reactor of the bio-toilet system.Bioresource Technology. 2005.

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A abordagem alternativa é separar a urina das fezes — as fezes são tratadasconforme descrito acima, enquanto a urina é coletada em um recipiente à parte.Com isso, reduz-se enormemente o volume a ser compostado, reduzindoportanto o trabalho de manutenção do sistema, a necessidade de material decobertura e o espaço ocupado pelas composteiras.

Deve-se ressaltar que quem precisa ser compostado são as fezes, poisconforme discutido acima, elas têm um grande potencial de transmitir doenças.Em contraste, a urina é, em condições normais, praticamente estéril (na verdade,hoje sabe-se que a urina e o sistema urinário não são estéreis, e sim contêm umamicrobiota especívfca que pode desempenhar papéis importantes na manutençãoda saúde*).

A urina é mais rica em nutrientes do solo que as fezes: das nossasexcreções diárias, 90% do nitrogênio, 50 a 65% do fósforo e 50 a 80% dopotássio estão contidos na urina. A fração sólida da urina é composta em médiade 16% de N, 3,7% de P e 3,7% de K.** Essa informação torna óbvio seupotencial como fertilizante.

Separar a urina das fezes signifca que você terá recipientes separados, ouseja, baldes ou galões para urina (modelos de privadas que fazem a separação daurina têm sido criados, mas não são necessários). Isso pode ser visto comomenos prático, mas as vantagens compensam. Agora, aqui temos que deixar umacoisa bem clara. Muitas pessoas, quando se fala em separar a urina, fcamparanoicas por causa daquele xixizinho que normalmente sai na hora do“número dois”. Mas isso é besteira! Não é para se preocupar com isso. Urinaseparada não signifca que qualquer quantidade de urina será prejudicial aoprocesso de compostagem; signifca apenas que não é para usar aquele banheiroou balde para fazer xixi. Então, aquele xixizinho eventual, não precisa sepreocupar, pode fazer sem medo!

Na verdade, uma certa quantidade de urina é sempre benéfca àcompostagem de material do banheiro seco, mesmo quando se opta por umsistema de urina separada, pois, como já discutimos, ela auxilia na manutençãoda umidade na composteira e na destruição de eventuais patógenos.

Então, embora as duas abordagens (urina junto vs. separada) sejam válidase tenham adeptos, creio que o melhor é: separar a maior parte da urina e usardiretamente como fertilizante (conforme discutiremos a seguir), mas adicionartambém um pouco de urina junto com as fezes — aquela da hora do “número

* Whiteside, S. A. et al. The microbiome of the urinary tract – a role beyond infection. Naturereviews. Urology. 2015.** Rose, C. et al. The characterization of feces and urine: a review of the literature to informadvanced treatment technology. Critical Reviews in Environmental Science and Technology.2015.

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dois”, mais umas urinadas ocasionais, quantidade sufciente para manter aumidade da pilha de composto. Assim, você combina todas as vantagens dasduas abordagens.

Utilização da urina como fertilizante*

A urina pode ser usada imediatamente ou após armazenamento porqualquer perívodo de tempo, na forma lívquida, como fertilizante. Seu uso diretopermite a utilização imediata dos nutrientes ali contidos, ao invés de ter queesperar por vários meses pelo processo de compostagem, além de prevenir asperdas de nitrogênio, conforme já discutido. Além disso, o uso lívquido permiteque esses nutrientes atinjam as partes absortivas da planta muito maisrapidamente do que quando se aplica um composto orgânico à superfívcie dosolo. Isso é particularmente útil no caso de tratamento de plantas comdefciências de nutrientes. Você verá que aquelas suas plantas que andam meioamareladas, tristes, voltam a fcar verdinhas e lindas, e retomam o crescimentorapidamente — uma diferença perceptívvel em poucos dias a algumas semanas.

O emprego da urina como fertilizante lívquido pode se dar basicamente deduas formas: pela aplicação no solo ou aplicação foliar. Em ambos os casos énecessário que se dilua a urina, pois da forma como deixa o nosso corpo, ela temuma concentração elevada de sais que pode danifcar a maioria das plantas.

Aplicação no solo

Urina humana diluívda pode ser aplicada no solo como uma forma defertilização ou ferti-irrigação. A diluição mívnima deve ser de 1:10, ou seja, umaparte de urina para dez partes de água. Essas preparações relativamente “fortes”(concentradas) podem ser usadas principalmente na estação chuvosa, com umafrequência de uma a duas vezes por semana, a um volume de 5 a 10 litros pormuda, podendo aumentar proporcionalmente conforme a planta cresce, econforme a necessidade de suplementação. Aplique a preparação de urinadiretamente dentro da bacia, por cima ou debaixo da cobertura vegetal morta. Amesma preparação de urina pode ser usada para fertilização de hortas, podendoser aplicada na razão de 5 a 10 litros por metro quadrado de solo (porém, paraaplicação em hortaliças, é preferívvel a aplicação subsuperfcial, que serádiscutida mais adiante).

Agora, na estação seca, a urina deve ser usada mais diluívda, algo entre 1:40até 1:100. Desta forma, sua aplicação passa a ter uma função dupla: de fornecerumidade e nutrientes ao mesmo tempo, ou seja, ferti-irrigação. Nessa época, éessencial que o solo ao redor das plantas esteja sempre muito bem protegido com

* Este assunto é discutido em profundidade no livro “Liquid gold: the lore and logic of usingurine to grow plants”, de Carol Steinfeld.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

uma generosa camada de matéria vegetal morta, para evitar o excesso de perdade umidade por evaporação. Essas duas medidas (maior diluição e cobertura dosolo) são muito importantes também para prevenir o acúmulo de sais da urina nosolo superfcial, o que poderia causar problemas de toxicidade às plantas.

Adubação foliar

As plantas são capazes de absorver nutrientes não apenas pelas das raívzes,mas também através da superfívcie das folhas (e mesmo do caule). Isso permite asuplementação de nutrientes às plantas por essa via, na chamada adubação foliar.A adubação foliar é uma prática disseminada tanto na agricultura convencionalcomo orgânica, e praticada tanto por agricultores profssionais como amadores.Sua principal vantagem diz respeito à velocidade de absorção, que épraticamente imediata, ao contrário da adubação do solo, já que nesse caso levaum tempo até que os nutrientes se difundam e/ou as raívzes cresçam, permitindoo contato e portanto a utilização pela planta. Outra coisa legal sobre a adubaçãofoliar é que ela também é, ao mesmo tempo, uma adubação do solo, pois oexcesso de adubo foliar inevitavelmente escorre indo parar no solo.

A urina é um excelente adubo foliar, pois contém quantidades balanceadasdos principais nutrientes requeridos pelas plantas, tanto macro comomicronutrientes. A maioria das espécies de plantas podem se benefciar daadubação foliar com urina diluívda a 1:10. Porém, há algumas espécies que têmfolhas particularmente sensívveis a queimaduras pela urina. Isso na verdade não étão comum, e também, mesmo que aconteça, não signifca que sua planta irámorrer — poderá fcar com um aspecto um pouco prejudicado, mas basta parara aplicação que ela se recuperará rapidamente, então você não precisa ter receiode fazer experimentações para saber como a adubação foliar com urinafuncionará com as suas plantas. Claro que você pode pesquisar sobre quaisplantas podem e quais não devem receber adubação foliar com urina, mas asinformações obtidas não necessariamente corresponderão à sua realidade. Voucitar o meu exemplo pessoal: encontrei em um artigo a informação quetomateiros são sensívveis e não devem receber adubação foliar com urina; porém,em minha experiência prática, tomateiros benefciam-se dessa adubação semexibir qualquer efeito negativo. De todas as espécies que tenho testado (dezenasdelas), a única que foi prejudicada foram as jabuticabeiras, que exibemqueimaduras nas folhas após aplicação de urina diluívda a 1:20, que é a diluiçãoque normalmente uso. Porém, se benefciam da aplicação no solo, sem qualquerproblema. Portanto, o mais recomendado é que você faça seus própriosexperimentos, pois essa é a única forma confável de saber como suas plantasreagirão à adubação foliar. Caso alguma espécie de planta apresentequeimaduras pela urina, você pode testar preparações mais diluívdas, ou optarpela aplicação somente no solo.

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Cheiro de urina

Uma preocupação comum e totalmente pertinente em relação ao uso deurina como fertilizante diz respeito ao cheiro. Afnal, ninguém quer seu jardimou horta fedendo!

Infelizmente, existe, sim, a questão do cheiro. Todos sabemos que urinanão é inodora, e sua aplicação no ambiente tende a produzir… cheiro de mijovelho. Esse cheiro pode ser maior ou menor, dependendo de vários fatores.Quanto mais diluívda a urina, menor a tendência a problemas com odores.Também, a aplicação direta no solo tende a feder menos que a aplicação foliar.Se você adicionar a urina cuidadosamente dentro da bacia ao redor de suaplanta, sob uma boa camada de cobertura de solo, o odor será praticamenteimperceptívvel. De qualquer forma, o cheiro de urina tende a desaparecer dentrode algumas horas, então muitas pessoas julgam que este é um inconvenientetolerável. Porém, isso pode não ser aceitável em todas as situações. Nesses casos,é melhor desistir da adubação foliar, e você pode optar pela aplicação na formade ferti-irrigação subsuperfcial (logo chegaremos lá).

Cinzas + urina

Uma combinação que tem ganhado destaque na agricultura orgânica epermacultura é o uso de cinzas de madeira associado à urina na correção efertilização do solo. Conforme já mencionado no capívtulo 9 (“PermaculturaRural”), cinzas de madeira têm grande valor na correção da acidez do solo efornecimento de importantes nutrientes. Sua associação com a urina tem-semostrado muito efetiva no incremento da produção vegetal.* Agora, o ideal évocê usar aquele velho princívpio: “tudo que veio da terra deve voltar à terra”, eaplicar em conjunto seu composto orgânico, estrumes animais, se disponívveis,cinzas e urina — aív sim suas plantas terão uma nutrição completa e perfeita!

Agora, a combinação de cinzas e urina tem ainda outra grande utilidade:aplicadas nas folhas ou no solo tem a propriedade de combater pulgões, larvas,lesmas e caracóis, entre outras pragas e doenças. Você pode usá-las de diversasformas: só urina diluívda; só a cinza, polvilhando; ou as duas em conjunto. Vocêpode molhar as plantas com urina diluívda, e polvilhar com cinzas em seguida,fazendo com que adiram às folhas, ou você pode optar por fazer uma calda decinzas em água ou em urina diluívda, e aplicar sobre as plantas, etc.

A combinação de urina e cinzas atua por diversos mecanismos no combatee prevenção de pragas e doenças: alteram o pH e condições quívmicas em geral nasuperfívcie da planta, tornando-as desfavoráveis ao desenvolvimento da praga; a

* Pradhan, S. K. et al. Stored human urine supplemented with wood ash as fertilizer in tomato(Solanum lycopersicum) cultivation and its impacts on fruit yield and quality. Journal ofAgricultural and Food Chemistry. 2009.

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amônia resultante da degradação da ureia é tóxica para muitas pragas emicrorganismos patogênicos, combatendo-os; os nutrientes concentrados naurina e cinza fortalecem a planta e atuam como fertiprotetores, etc. E, o melhorde tudo: são 100% naturais, seguros e duplamente benéfcos às plantas, poisalém do controle de pragas você estará fazendo uma adubação foliar.

Águas cinzas

Águas cinzas são todas as águas residuais de uma casa que não contêmfezes (ou seja, excluindo-se apenas o esgoto proveniente de vasos sanitários).Portanto, águas cinzas são aquelas originadas no banho, pias, lavagem de roupa elouça, limpeza da casa, etc.

Cada pessoa produz em média cerca de 100 litros de água cinza por dia,correspondendo à maior parte das águas residuais produzidas. Águas cinzas sãomuito diferentes de esgotos, tendo valores de sólidos totais, matéria orgânica ebactérias muito inferiores. Ainda assim, podem ter teores signifcativos dematéria orgânica e nutrientes do solo. Trata-se, portanto, de um recurso valiosoque não deve ser desperdiçado.

O destino fnal mais apropriado das águas cinzas é o solo superfcial, naforma de irrigação. Sua composição é quase totalmente água (> 99,9%); alémdisso, a matéria orgânica e nutrientes ali presentes são benéfcos ao ecossistemado solo e às plantas. Ainda, seu pH geralmente alcalino auxilia na correção daacidez do solo, problema extremamente comum na maior parte do Brasil.Embora exista o risco de contaminação da água cinza com patógenos, seu usoem irrigação não constitui uma via signifcativa de contaminação ambiental outransmissão de doenças, sendo portanto considerada uma prática segura do pontode vista sanitário.*’

**

Uma preocupação frequente que as pessoas têm em relação ao uso de águacinza na irrigação diz respeito à contaminação quívmica pelos diversos produtosusados na higiene pessoal e doméstica. Trata-se de uma preocupação pertinente,especialmente considerando o caráter desconhecido da composição quívmica demuitos produtos de uso doméstico. Porém, pesquisas cientívfcas têm comprovadoque mesmo o uso intenso e prolongado da água cinza para irrigação não causaqualquer problema à saúde e produção das plantas, sendo seguro para o meioambiente.† Sendo assim, a preocupação com contaminação quívmica deve sereverter de forma positiva, ou seja, não desestimulando o reuso de água cinza na

* Busgang, A. et al. Epidemiological study for the assessment of health risks associated withgreywater reuse for irrigation in arid regions. Science of the Total Environment. 2015.** Water Research Australia fact sheet – health risks of greywater use. 2013.

† Alfiya, Y. et al. Potential impacts of on-site greywater reuse in landscape irrigation. WaterScience and Technology. 2012.

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irrigação, mas ao invés disso estimulando o permacultor a optar por produtos dehigiene mais naturais (por exemplo, sabões feitos em casa), evitando o usoexcessivo de produtos quívmicos — ainda mais considerando que a maioria delessão simplesmente desnecessários!

Em contraste, a água cinza quando lançada a corpos d’água naturais causaproblemas ambientais e sanitários. Os danos aos ecossistemas aquáticos se dãoprincipalmente de duas formas: pela alteração da composição quívmica da água, epoluição por nutrientes, que leva à eutrofzação (proliferação explosiva de algas)que consome o oxigênio, matando a maioria das formas de vida por anóxia.Também quando depositadas de forma concentrada no solo profundo, porexemplo em sumidouros, a água cinza penetra profundamente indo contaminar olençol freático com nitratos e nitritos, entre outros poluentes (que no solosuperfcial poderiam ter sido prontamente utilizados pelas plantas, aumentando aprodução vegetal). Além disso, o aumento da carga microbiana pela descarga deáguas cinzas em corpos d’água como rios, lagos e mares pode aumentar o riscode doenças gastroentéricas, respiratórias, oftálmicas e dermatológicas embanhistas e outras pessoas que entrem em contato com essa água.

Águas cinzas podem ser usadas com segurança para irrigação superfcial(métodos para essa aplicação foram discutidos no capívtulo 9, “PermaculturaRural”). Essa forma de aplicação tem como vantagens sua simplicidade,efetividade e facilidade de controle e manutenção. Porém, não é a única opção— outra abordagem possívvel é a irrigação subsuperfcial.

Irrigação subsuperfcial

Aqui, a água cinza será aplicada ao solo superfcial através de tubosperfurados, enterrados a uma profundidade pequena, talvez 10 ou 15 cm abaixodo nívvel do solo, ao longo dos canteiros de sua horta, ou dentro da bacia ao redorde suas árvores. Você pode usar tubos de polietileno de 1,5 ou 2 polegadas, efazer furos de 5 a 8 mm de diâmetro com uma furadeira. Em sua horta, escavetrincheiras rasas, de 15 cm de profundidade, no local onde irá construir seuscanteiros. Umedeça e compacte bem o solo dentro da trincheira, para reduzir apenetração de água. Construa as paredes de seus canteiros, usando blocos, toras,cob, etc. Então, comece a preencher o canteiro com terra preparada para plantio,instalando a mangueira perfurada bem no centro do canteiro, envolta por umacamada de alguns centívmetros de cascalho grosso. Termine de encher o canteirocom terra adubada, e já estará pronto para plantio.

A entrada do tubo pode ser conectada diretamente à sua tubulação deesgotamento das águas cinzas provenientes da casa, ou você pode passar essaágua primeiramente por um fltro de serragem e um tanque de distribuição. Já aextremidade fnal do tubo perfurado deve ser tampada, forçando a saívda da águasomente pelas perfurações, e através do cascalho, passando então à terra.

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É conveniente fazer uma renovação periódica de sua horta, mudando alocalização dos canteiros para evitar a saturação do solo naqueles locais comumidade e matéria orgânica. Essa precaução é sufciente, evitando a necessidadede se impermeabilizar o solo sob o sistema de drenagem de água cinza paraprevenir penetração a camadas profundas. Quando da reforma de seus canteiros,você poderá reaproveitar todos os materiais — blocos, tubos e cascalho — eperceberá que a terra estará riquívssima em matéria orgânica, cheia de minhocas.

Você pode fazer um esquema semelhante, enterrando um tubo perfurado,envolvido por uma camada de cascalho, ao redor de suas árvores ou mudas, masisso não é necessário — basta colocar o tubo perfurado dentro da bacia e cobri-lo com uma camada generosa de matéria vegetal morta. Esses mesmos sistemaspodem ser utilizados para ferti-irrigação subsuperfcial com urina, conformecitado anteriormente.

Soluções ecológicas para o saneamento urbano

Há que se reconhecer que as técnicas de saneamento ecológico descritasacima, embora perfeitamente viáveis para situações rurais, são quase sempreimpraticáveis em um contexto urbano, devido principalmente à limitação deespaço. Isso é especialmente verdadeiro para pessoas que moram emapartamentos, ou casas sem quintal.

A impossibilidade de ter um sistema individual de saneamento ecológico éapenas uma das limitações impostas pela vida urbana, no tocante a um estilo devida sustentável. Outras limitações incluem a impraticabilidade de produziralimentos em quantidade substancial e realizar atividades de recuperaçãoambiental em larga escala (e.g. reforestamentos). Ainda assim, é impossívvelnegligenciar o fato que a maioria das pessoas atualmente vivem em cidades(54% no mundo, e 85% no Brasil, dados de 2016).

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Dissecção de um canteiro com irrigação subsuperficial

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Conforme já citado, os sistemas atuais de saneamento urbano são apenasparcialmente efetivos, já que de fato protegem a saúde humana, mas o fazem àscustas de graves danos ambientais. Porém, é perfeitamente possívvel empregar aséticas e princívpios da permacultura no aperfeiçoamento das técnicas desaneamento urbano, criando metodologias e sistemas mais ecológicos. Alémdisso, qualidade do saneamento depende não somente da infraestrutura, mastambém dos hábitos e atitudes diárias das pessoas. Portanto, nossa discussãoaqui abordará esses dois nívveis: as atitudes individuais e sistemas de saneamentoecológico em escala municipal.

Atitudes individuais para o saneamento ecológico urbano

Economize água

Este é o ponto mais elementar de nossos hábitos diários que deve sermudado, visando a sustentabilidade. A água é um recurso valiosívssimo que estáem declívnio devido a um conjunto de fatores que inclui desperdívcio, destruiçãoambiental (de forestas, mananciais), mudanças climáticas, etc. Águasmunicipais, tratadas e seguras, são muito baratas para o consumidor e isso,embora seja bom por torná-las acessívveis, infelizmente não estimula as pessoas aeconomizarem, o que leva a uma enorme taxa de desperdívcio. Porém, emboranão pese no bolso, essa água vem a enormes custos ambientais, no represamentoe desvio de cursos d’água, custos de tratamento e distribuição, e também nocusto do tratamento dos esgotos, cujo volume gerado é proporcional ao consumode água. O consumo médio de água doméstica é de cerca de 150 litros porpessoa por dia. Porém, é perfeitamente possívvel viver com uma pequena fraçãodesse volume diário, sem prejudicar o conforto ou higiene — apenas cortando osdesperdívcios!

Reduzir o consumo signifca reduzir o volume de esgotos gerados, e quantomenor o volume de esgotos, mais fácil, barato e efciente será o seu tratamento,com benefívcios portanto à economia e ao meio ambiente. Reuse, recicle as suaságuas cinzas: colete água do chuveiro para dar descarga, e diminua o número dedescargas por dia. Reuse sua água cinza também na limpeza da casa e rega desuas plantas, reduzindo ainda mais o volume de esgoto gerado.

Instalações sanitárias domésticas

Um problema muito grave e extremamente comum em todo o mundo sãoinstalações sanitárias que misturam esgotos com água da chuva — os chamadosesgotos combinados (um nome “chique” para instalações inadequadas). Água dechuva e esgotos são duas coisas completamente diferentes, e misturá-las é um

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tremendo absurdo, que causa um grande aumento no volume de esgoto etambém futuações brutais nesse volume (pense num dia de chuva forte), fazendocom que o tratamento se torne muito mais caro, difívcil e inefciente, levando aconsequências nefastas para o ambiente, e não raro também para a saúdepública. Esse problema ocorre em todos os nívveis, desde o individual (instalaçõesdomiciliares) até o coletivo (redes de esgotos municipais). No nívvel individual,cabe a cada um adequar as instalações sanitárias de sua casa para impedir queágua da chuva entre nas tubulações de esgotos.

Evite produtos tóxicos

As prateleiras dos supermercados estão sempre abarrotadas com umainfnidade de produtos para higiene e cuidado pessoal e limpeza doméstica. Issopode dar às pessoas a impressão que esses produtos são úteis, importantes oumesmo necessários à vida contemporânea. Porém, na maioria dos casos, isso nãoé verdade — a maior parte desses produtos poderia simplesmente desaparecer,que o mundo não sentiria a menor falta. São soluções para problemas que nãoexistem, consumidas compulsivamente devido a uma paranoia criada na cabeçadas pessoas pela própria indústria quívmica, através da propaganda. O problema éque esses produtos normalmente contêm substâncias quívmicas sintéticas comefeitos negativos no meio ambiente, como triclosan, surfactantes, etc. Portanto,restrinja seu consumo de produtos de higiene e cuidado pessoal e limpezadoméstica ao básico. Sempre que possívvel, substitua mesmo esses produtosbásicos por alternativas naturais (sabões caseiros, dentifrívcio natural, etc.)

Reduza o consumo de produtos industrializados

A água de uso doméstico representa apenas uma parte do total de água quede fato consumimos, e esgotos que geramos. Não podemos nos esquecer quetodos os produtos industrializados têm um consumo de água embutido, que podeser muito grande, e que os esgotos industriais também são nossaresponsabilidade, à medida que consumimos esses produtos. Portanto, abandonaro consumismo é chave para a melhoria da sustentabilidade também no que dizrespeito ao saneamento.

Saneamento ecológico em escala municipal — tratamentode esgoto e destinação fnal de seus subprodutos

Sistemas de tratamento de esgotos vêm sendo desenvolvidos há cerca deum século, e melhorias nos sistemas de saneamento para alcançar um alto graude sustentabilidade nas cidades devem ser feitas com base nos sistemasexistentes e em operação.

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Um sistema tívpico de tratamento de esgotos se divide em duas fases, alívquida e a sólida, compreendendo resumidamente as seguintes etapas:

Fase líquida:

• Remoção fívsica de detritos (lixo) por gradagem, e de areia porsedimentação.

• Decantação primária, em que o esgoto passa por tanques onde é retido porum perívodo de tempo, permitindo a sedimentação de sólidos, formandoassim o lodo de esgoto primário.

• Aeração em tanques onde o esgoto é retido e agitado por um certo tempo.Isso causa a proliferação de bactérias aeróbicas, que consomem a matériaorgânica do esgoto, transformando-a em biomassa bacteriana.

• Decantação secundária, onde matéria sólida constituívda primariamente debiomassa bacteriana e outros resívduos orgânicos se sedimenta, formando olodo de esgoto secundário, com separação do efuente.

• Destinação do efuente — geralmente lançamento a corpos d’água (rios,lagos, mar), às vezes após tratamento quívmico com cloro.

Fase sólida:

• Digestão: após remoção parcial de umidade (adensamento), o lodo deesgoto total (ou seja, lodo primário e secundário juntos) passa para osdigestores, onde sofre ação de bactérias anaeróbias, com destruição parcialde patógenos e produção de gás metano (que deve ser reaproveitado paraprodução de energia na própria estação de tratamento).

• Prensagem, para remoção de mais umidade.

• Agora, o lodo de esgoto pode seguir um de diversos caminhos:━ Destinação a aterro sanitário.━ Desidratação por calor e incineração para produção de energia

termelétrica.━ Tratamento térmico, quívmico ou compostagem para sua sanitização,

possibilitando seu uso como fertilizante agrívcola.

A análise do processo geral de tratamento de esgotos permite facilmenteidentifcar os pontos principais em que o meio ambiente é agredido, ou seja, adestinação dos produtos fnais das fases lívquida e sólida.

Tratemos primeiro da fase sólida. No Brasil, a maior parte do lodo deesgoto é destinado a aterros sanitários, prática comum também em outros paívses,infelizmente. Essa é a solução tívpica de quem não quer lidar com seus problemase prefere, então, simplesmente escondê-los, tirá-los da vista. É como varrer asujeira para debaixo do tapete.

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Sepultar esse material rico em nutrientes do solo em aterros sanitários éuma afronta, uma indignidade. É de causar assombro pensar que no futuro,populações empobrecidas e desesperadas — nossos descendentes — talveztenham que escavar esses antigos aterros, num tipo miserável de mineração pararecuperar os nutrientes que nós hoje desperdiçamos, para conseguirem produziralguma comida, em uma luta atroz pela sobrevivência.

Em muitos lugares, o lodo de esgoto é totalmente desidratado e então usadocomo combustívvel em usinas termelétricas, para produzir energia. Essa já é umaforma bem mais racional de lidar com esse resívduo, já que há umaproveitamento da energia ali contida, e também de muitos nutrientes, quepermanecem na forma de cinzas, podendo ser usados na agricultura. Porém, essaprática também tem seus problemas, pois gera poluição do ar e agravamento doefeito estufa, além da perda de alguns nutrientes importantes e destruição damatéria orgânica do lodo de esgoto.

O uso do lodo de esgoto tratado, também chamado biossólidos, comofertilizante agrívcola é a forma mais racional e ecológica de destinação desseresívduo. Trata-se da aplicação daquele velho princívpio: “o que veio da terra, deveretornar à terra”. Felizmente, essa prática já é comum em várias partes domundo — mais da metade dos biossólidos produzidos nos Estados Unidos, ecerca de 70% dos produzidos na França e Reino Unido são devolvidos ao solo,seja na agricultura ou em projetos de recuperação ambiental.*

Os biossólidos são riquívssimos em matéria orgânica e contêm quantidadesexpressivas de todos os nutrientes do solo necessários às plantas.Sustentabilidade requer que esse material seja visto como um recurso valioso aser utilizado, e não um inconveniente a ser descartado ou escondido. Para quepossa ser utilizado com segurança, é preciso que se tomem precauçõesadequadas, incluindo a monitoração e controle de contaminantes quívmicos ebiológicos. O controle de contaminantes quívmicos se dá através da açãocombinada de prevenção de contaminação na fonte (por exemplo,regulamentações legais e monitoramento das fontes poluidoras, especialmenteindústrias) e aplicação de técnicas de descontaminação durante o tratamento doesgoto. Já a descontaminação microbiológica pode ser obtida através de diversosmétodos, dentre os quais se destaca a compostagem. A co-compostagemtermofívlica de lodo de esgoto com outros resívduos orgânicos municipais, ou seja,lixo orgânico doméstico e industrial, usando ainda restos de poda trituradoscomo material estruturante (equivalente ao nosso velho conhecido material decobertura) é uma forma reconhecida de produzir composto de excelente

* Tyberatos, G. et al. Sewage biosolids management in EU countries: challenges andprospective. Fresenius Environmental Bulletin. 2011.

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qualidade, com efetiva eliminação de patógenos*’

** e também a neutralização deoutros contaminantes como metais pesados.†

Agora, quanto à fase lívquida, lançá-la a corpos d’água é claramente umadestinação inadequada. Isso porque o efuente de esgoto ainda retém uma cargasubstancial de matéria orgânica, nutrientes e bactérias, inclusive patógenos.‡

Quando, na tentativa de eliminar os patógenos, empregam-se métodos maisagressivos de desinfecção, isso gera outro problema, que é a poluição quívmicadas águas por desinfetantes.

Para que um sistema de saneamento possa ser considerado ecológico, éfundamental que em todas as suas fases ele jamais entre em contato com cursosd’água naturais. Portanto, o destino fnal dos efuentes de esgotos deve ser omesmo que o dos biossólidos: o solo. Isso porque o solo tem as melhorescondições para eliminar os contaminantes do efuente e seus possívveis riscos, e ofaz através de diversos mecanismos: adsorção, degradação microbiana,fotodegradação pela radiação solar, etc. Esse efuente deve ser levado, porgravidade se possívvel, ou bombeado se necessário, a locais onde possa ser usadona irrigação de plantações arbóreas, como pomares, agroforestas, plantações demadeiras e projetos de recuperação ambiental (reforestamentos), etc.

Assim, mantendo toda a cadeia do saneamento segregada dos cursos d’águanaturais e ecossistemas aquáticos, tratando de forma adequada e devolvendo aosolo os produtos das fases lívquida e sólida do tratamento de esgotos de maneira afomentar a produção agrívcola e recuperação ambiental, poder-se-á dizer quetemos um verdadeiro saneamento ecológico em grande escala. Claro que issoenvolve também a expansão e adequação da rede coletora de esgotos, para quesirva toda a cidade, e a resolução de problemas como os já citados esgotoscombinados, e vazamentos nos sistemas coletores, que são causa comum decontaminação ambiental.

O impacto da aplicação dos conceitos e técnicas descritas acima seráprofundo, especialmente se adotadas em conjunto com as medidas descritas nocapívtulo 8 (“Água em Permacultura”), levando a uma grande transformação doambiente urbano. Pense numa cidade com nascentes, riachos, córregos e rioscristalinos, com peixes, aves, todo tipo de fauna, matas ciliares (na forma deparques lineares), etc. Pois é disso que estamos falando.

* Teite, T. A. Compostagem termofílica de lodo de esgoto: higienização e produção debiossólido para uso agrícola. Dissertação (mestrado). Faculdade de Saúde Pública daUniversidade de São Paulo. 2015.** Water Environment Federation. Tand application and composting of biosolids – Q&A/factsheet. 2010.† Smith, S. R. A critical review of the bioavailability and impacts of heavy metals in municipalsolid waste composts compared to sewage sludge. Environment International. 2009.‡ Silva, M. C. de A. et al. Avaliação da qualidade microbiológica de efluentes sanitáriostratados por sistemas de lodos ativados. Revista Caderno Pedagógico, Tajeado. 2017.

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Pesando os riscos

Muitas pessoas, organizações e governos são relutantes em aceitar aaplicação de biossólidos e efuentes de estações de tratamento de esgoto no solo,considerando os potenciais riscos ao meio ambiente e saúde humana associadosaos inúmeros contaminantes biológicos e quívmicos comumente presentes nosesgotos, tais como patógenos, resívduos de produtos farmacêuticos, produtosquívmicos domésticos e poluentes industriais como metais pesados, poluentesorgânicos persistentes, etc.

Sem dúvida, trata-se de uma preocupação pertinente. Porém, será que obanimento da reciclagem dos resívduos de nossas próprias casas, e de nossacivilização em geral, é o melhor caminho?

Em qualquer paívs ou região razoavelmente desenvolvida, háregulamentações legais e mecanismos de controle sufcientes que mantêm osnívveis desses contaminantes presentes nos biossólidos e efuentes dentro delimites aceitáveis, seguros tanto para o meio ambiente como para a saúdehumana, de acordo com instruções técnicas guiadas por pesquisas cientívfcasespecívfcas, sendo que também o modo, a quantidade e frequência de aplicaçãodesses produtos no solo são alvo de regulamentações técnicas, visando garantirtanto a efcácia quanto a segurança dessa aplicação. Já em paívses e regiõesatrasadas econômica e socialmente, esse controle inexiste; porém, tampouco hátratamento de esgoto! Portanto, nesses casos, a erradicação da pobreza seria aprioridade.

Claro que não se pode confar totalmente nas regulamentações, controle epesquisas citadas acima. Mas, por outro lado, histeria em relação aos riscosambientais e sanitários do uso de resívduos como recursos é contraproducente emmúltiplos nívveis. Ao deixar de usar efuentes e biossólidos em um projeto derecuperação ambiental, você perde a chance de recuperar a fertilidade daquelelocal e aumentar a biomassa e biodiversidade, ou seja, você está deixando derecuperar e ao invés disso mantendo degradado justamente o ambiente que vocêtinha intenção de proteger. Da mesma forma, ao deixar de usar esses recursos deforma responsável e segura na agricultura, você força a um aumento no uso defertilizantes quívmicos, que além de também terem suas contaminações quívmicas,ainda são insustentáveis e não renováveis, causando, pois, danos ambientaismuito maiores, além de sua exaustão, comprometendo a segurança alimentar dasgerações futuras.

As preocupações existem e são válidas, mas elas não devem nos levar àvilanização e banimento dos subprodutos do tratamento de esgotos, e sim a boaspráticas que os tornem seguros. Os riscos devem ser cuidadosamentemonitorados. Pesquisas cientívfcas devem investigar as caracterívsticas e riscos decompostos novos e antigos, para orientar medidas de controle e segurançaadequadas (leis, fscalização, etc.), e isso deve ser acompanhado de perto pela

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

sociedade civil, já que o controle de substâncias vai contra interesses de gruposinfuentes, como a indústria quívmica e corporações em geral. Tecnologiasadequadas devem ser aplicadas e desenvolvidas para evitar a poluição na suafonte (por exemplo, recuperação de metais pesados nos esgotos industriaisdentro da própria indústria, permitindo sua reciclagem efetiva e reduzindo seusnívveis no esgoto). Onde não for possívvel um processo não poluidor, a atividadeem questão deve ser banida ou restringida até que se desenvolva um processoecologicamente correto. O mesmo tipo de controle deve ser feito em relação aprodutos de uso doméstico: se contiverem poluentes que sejam motivo depreocupação, eles devem ter seu teor restringido por lei e/ou taxados de formaque eles próprios fnanciem os custos de remoção dos seus resívduos notratamento de esgotos, desencorajando ainda tanto a indústria como osconsumidores, devido à elevação do custo, etc.

Há que se ter a clareza que resívduos de tratamento de esgoto são umarealidade inevitável de nossa civilização, e nós não podemos mandar ospoluentes para o espaço sideral, assim como não podemos trazer do espaçonutrientes do solo para produzir alimentos. Nós vivemos em um sistema fechado— a Terra — e é aqui que temos que resolver nossos problemas. E a melhorsolução para os subprodutos do tratamento de esgotos é, sem dúvida, adevolução ao solo de forma produtiva, fechando o ciclo dos nutrientes.

Comentário fnal sobre o saneamento ecológico

É um verdadeiro escândalo que deveria ser causa de grande indignação eperplexidade geral que nossa sociedade atual, com tamanha modernidade e altastecnologias, ainda adote o “jogar a merda no rio e deixar que a natureza se vire”como estratégia de “saneamento”. A transformação desse quadro, com asubstituição generalizada desse modelo arcaico por sistemas ecológicos esustentáveis é necessária e urgente, e é a missão dos permacultores liderar essaluta, dando o exemplo, empregando as técnicas de saneamento ecológico, etambém através da disseminação de informações, trabalhos de conscientização emobilização pública, pressão polívtica, etc., e até contribuindo com consultoriatécnica para viabilizar essa transformação em grandes escalas.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 12. Energia

12ENERGIA

O vívcio por energia é uma das principais caracterívsticas de nossacivilização. Conforme discutimos na Parte I, a total dependência de enormesquantidades de energias para cada um dos aspectos do estilo de vida modernotraz terrívveis consequências para o meio ambiente e a sustentabilidade. Por isso,na permacultura devemos buscar com máxima seriedade uma redução tanto noconsumo de energia como na dependência de recursos energéticos,especialmente os não renováveis, ou seja, a permacultura deve pôr-se navanguarda de um movimento para um estilo de vida de baixa energia, e depreparação para um cenário futuro de escassez de recursos energéticos.

Muitas pessoas, preocupadas com a crise energética que se insinua nofuturo próximo, bem como as consequências ambientais de curto, médio e longoprazo das tecnologias e fontes de energia dominantes no cenário atual (e.g.mudança climática pelo uso de combustívveis fósseis), focam suas esperanças naadoção de fontes alternativas de energia, de menor impacto ambiental, tais comosolar e eólica, e também no desenvolvimento de novas tecnologias, como ageotérmica, maremotriz, etc., para substituir as matrizes energéticas atuais,como forma de resolver ou minimizar esses problemas. Mas, embora essasabordagens sejam sem dúvida úteis, nada conhecido pela humanidade até hoje,nem mesmo todas as tecnologias alternativas combinadas chegam sequer pertode substituir a utilidade do petróleo, tanto como fonte de energia como matéria-prima para a indústria, para a manutenção dos nossos estilos de vida atuais.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 12. Energia

Dentre seus principais atributos exclusivos, podemos citar a altívssima densidadeenergética, facilidade de armazenamento e transporte, versatilidade (produção dediversos tipos diferentes de combustívveis, com mívnimas perdas de energia, comogasolina, diesel, GLP, etc.; matéria-prima para milhares de produtos essenciaispara o estilo de vida moderno). Portanto, não será possívvel, mesmo com odesenvolvimento de energias renováveis e novas tecnologias, manter o estilo devida atual — isso é uma ilusão. Nossa civilização, como a conhecemos hoje, sópassou a existir por causa do petróleo, e sua manutenção dependeinexoravelmente de um suprimento abundante e contívnuo de petróleo barato —o que sabemos que não vai continuar por muito tempo. A não ser, é claro, quesurja um novo e totalmente revolucionário recurso que seja capaz de subsituir opetróleo, o que teoricamente talvez seja possívvel, mas certamente extremamenteimprovável. Contar com isso é o mesmo que se agarrar à esperança de ummilagre, por pura preguiça de fazer o que realmente deve ser feito, o que está aonosso alcance.

Claro que a adoção de fontes energéticas renováveis e desenvolvimento denovas tecnologias são passos na direção certa. Porém, o que é necessário, acimade tudo, é uma mudança radical da forma como vivemos, ou seja, adotar umestilo de vida de baixa energia, para alcançar alguma sustentabilidade. Para isso,todas as estratégias disponívveis devem ser empregadas: “localização” (emoposição à “globalização”), ou seja, focar na produção e circulação local de bense serviços, reduzindo o gasto de energia para transporte e locomoção; umempenho para a conservação de recursos em geral, através da adoção de umacultura do permanente, em oposição à atual cultura do descartável, ou seja,abandonar o consumismo e eliminar os desperdívcios; “desartifcialização” davida, ou seja, o resgate de um estilo de vida mais simples e natural; autoprodução(autossufciência em vários nívveis), etc.

Além da redução no uso de energia, devemos também tomar todos oscuidados para evitar as perdas de energia, através da aplicação do princívpio daefciência energética (nosso Princívpio n.o 6), e todas as técnicas relacionadas,conforme vimos discutindo.

Outra forma extremamente importante de reduzirmos nosso consumo edependência de recursos energéticos é através da aplicação do princívpio datecnologia apropriada ( Princívpio n.o 13), que nos ajuda a deixar de usar formasmais impactantes e insustentáveis de energia (geralmente associadas a altastecnologias) e usar formas mais naturais, sustentáveis, e por vezes até primitivasde energia. Seguem alguns exemplos:

• Geralmente não se deve usar eletricidade para aquecimento, e sim energiasolar — não painéis fotovoltaicos, mas sim aquecedores solares de água,podendo inclusive ser fabricados por você mesmo, a baixo custo econômicoe ambiental, como já discutimos no capívtulo 10.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 12. Energia

• Em situações rurais, pode-se evitar a dependência do uso de combustívvelfóssil (GLP) para cozinhar, dando-se preferência à lenha, produzida nopróprio local de forma sustentável (plantio com essa fnalidade, podas),como já discutido. Deve-se dar preferência a modelos de fogão de altaefciência (baixo consumo de lenha e baixa produção de fumaça). Tambémpode-se usar o fogão a lenha para aquecer água, através de um sistema deserpentina.

• Evitar o transporte motorizado, usando energia humana (bicicleta), o quesignifca converter “arroz e feijão” em energia cinética e locomoção, semgerar poluentes, e ainda fazendo um bem danado para a saúde.

O uso de tecnologia apropriada requer atenção e bom senso, pois casocontrário corre-se o risco de causar ainda mais impacto ambiental que no usodas fontes convencionais de energia. Por exemplo, o uso de lenha paraaquecimento de casas e cocção de alimentos, embora útil em situações rurais,nas cidades é totalmente desvantajoso, pois o recurso não pode ser produzidolocalmente, tendo que ser importado; você não terá como saber se a origem dalenha é sustentável (provavelmente não será); lenha é volumosa (baixa densidadeenergética), trazendo grandes custos econômicos e ambientais pelo transporte; setodos usassem lenha nas cidades, isso certamente agravaria enormemente oproblema de poluição do ar, devido à alta concentração demográfca, etc.

Eletricidade

Muitas pessoas sonham em viver totalmente desconectadas de serviçospúblicos como abastecimento de água e energia (sistemas “of-grid”). Há váriasrazões para isso: talvez desejem reduzir seu impacto ambiental, ou creiam queeconomizarão dinheiro; em muitos casos, o desejo de se desconectar de serviçospúblicos é refexo de uma rejeição à sociedade em geral, representando umaintenção de afastamento da cultura dominante, etc.

Viver desconectado da rede pública é geralmente viável para água, usandoa água da chuva, como já discutido no capívtulo 8 (“Água em Permacultura”). Jáem relação a energia elétrica, a estória é bem diferente, e a situação deve seranalisada caso a caso. Isso porque, no caso da água, pode-se dizer que aconstrução e operação de sistemas de água de chuva têm impactos negativosmívnimos (pode-se citar o uso de materiais para sua construção como tendoimpacto negativo inicial), facilmente compensados pelos benefívcios ambientaisda fxação da água no local e evitamento do uso de fontes menos sustentáveis deágua. Já no caso da energia elétrica, inevitavelmente há maiores custosambientais envolvidos, já que se requer quantidades expressivas de materiais etecnologias, e geralmente não há impactos positivos ao ambiente. O ambientenão se benefcia de lâmpadas acesas e eletrodomésticos em geral. Esses são

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 12. Energia

apenas para nosso conforto e conveniência. Há, porém, exceções, comomaquinários úteis aos trabalhos que benefciarão a natureza (por exemplo, sevocê usa um triturador elétrico para produzir material de cobertura de qualidadepara sua composteira), podendo, em alguns casos, levar a um efeito globalpositivo, embora isso seja muito difívcil de avaliar com exatidão.

Porém, o fato mais relevante é que, ao contrário do que muitos pensam, ediferentemente dos sistemas de água, sistemas individuais de energia elétrica naverdade tendem a ter tanto custos econômicos como impactos ambientais maiselevados que sistemas coletivos, em larga escala. Isso é um ponto que causaconfusão; a pessoa pensa: “como meu gerador eólico, ou minhas placas solares,ou minha pequena turbina de hidroeletricidade pode causar mais dano aoambiente que uma grande usina?” Para entender isso, temos que olhar para todosos elementos do sistema, e projetar em escalas adequadas. Por exemplo, quandose fala em energia fotovoltaica, pensa-se logo no uso da fonte “infnita” esustentável de energia solar sendo convertida em eletricidade, o que sem dúvidaé ótimo. Porém, raramente as pessoas levam em consideração o custo ambientalda produção dos painéis, que envolvem operações industriais e altívssimastecnologias, mineração de elementos raros, etc. que ocorrem em partes remotasdo globo como China e África, envolvendo custos ambientais e sociaisdesconhecidos por nós (sendo que a maioria das pessoas nem sequer pensanessas consequências). Também de grande importância é a questão das baterias,que são indispensáveis, afnal, sem elas você não poderia acender lâmpadas ànoite, independentemente de quanta energia solar tenha convertido durante odia. Essas baterias não são coisa que você compra uma vez, e usa a vida toda —elas são caras, e contêm substâncias quívmicas tóxicas, sendo que ainda não existetecnologia para sua reciclagem completa, levando a contaminações ambientais.Além disso, as futuações tanto na produção como no consumo de eletricidadeno nívvel individual são bem maiores que no nívvel coletivo, e portanto para quevocê tenha um suprimento garantido, isso requer que você tenha um sistemarelativamente superdimensionado, implicando em impactos proporcionalmentemaiores.

O mesmo se aplica a outras formas de energia renováveis em escalaindividual. Por exemplo, você pode instalar um sistema hidrelétrico se tiver umaqueda d’água no seu terreno, mas isso terá impacto nesse curso d’água. Claroque o impacto por uma usina hidrelétrica é muito maior, mas a responsabilidadepor esse impacto é dividida por milhões de pessoas. Além disso, ao usar umsistema individual, o dano da usina continuará igual, mas a cachoeira próxima àsua casa, não.

Outra forma de olhar para essa situação é a seguinte: se todas as pessoasinventassem de fazer sistemas individuais e independentes de energia, aquantidade de materiais usados, de resívduos gerados e impactos em geral seriam

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 12. Energia

muito maiores do que nos sistemas atuais, centralizados e coletivos.

Coisa semelhante pode-se dizer a respeito da suposta economia dedinheiro. Quando você investe em um sistema individual de energia elétrica comcapacidade para manter o consumo normal de sua casa, o montante é sempremuito substancial. Normalmente, a pessoa faz as contas, e chega à conclusão queo investimento será pago em cerca de 10 anos, por exemplo. Conclui que valeráa pena. Porém, essa decisão é baseada na ilusão que bastará comprar e instalar osistema, uma única vez, e depois disso será só usar, para sempre, energia “degraça”. Só que não é bem assim: daív vem o custo com manutenção, reparos,adequações, substituição de baterias… e o indivívduo refaz as contas, e concluique o investimento só será pago em 20 anos. Só que antes disso, seu sistema jáfcou obsoleto, ou chegou ao fm de sua vida útil, tendo que ser substituívdo! Ouseja, no fnal das contas, geralmente conclui-se que não houve economia alguma.

Outro engano comum é a pessoa achar que vai conseguir construir seupróprio sistema alternativo de eletricidade, utilizando materiais reaproveitados desucatas, como um alternador ou bateria velha de automóvel conseguido em umferro velho qualquer, ou um dívnamo, ou motor elétrico, fazendo adaptações, etc.Invariavelmente, o que se consegue é produzir geringonças totalmentedisfuncionais, francamente inúteis. Você pode até conseguir fazer uma pequenalâmpada acender precariamente, ou algum eletrodoméstico funcionar por algunsminutos, e sentir nisso como uma espécie de vitória; mas entre isso e ter umsistema efetivo, que substitua na prática em qualquer grau a eletricidade da redepara realização de trabalho útil, há uma diferença muito grande.

Portanto, sistemas individuais de energia desconectados da rede pública emgeral são uma ilusão, tanto no que diz respeito à independência, pois sãoprodutos tecnológicos, que não se pode desenvolver, construir e manter semdepender de indústrias, como no que diz respeito à economia de dinheiro ouproteção ao ambiente.

Claro que há casos em que sistemas individuais são os mais atrativos, porexemplo em localidades remotas, não servidas pelos sistemas convencionais, ouquando justamente pela distância e difculdade de acesso a conexão à redepública seja particularmente cara, ou consuma recursos em demasia (e.g. linhasde transmissão excessivamente longas), sendo que uma coisa geralmenteacompanha a outra. Agora, na maioria dos outros casos, geralmente é maisvantajoso usar a energia da rede, ou seja, geralmente não vale a pena, nem doponto de vista econômico, nem do ambiental, deixar de usar uma eletricidadeque já está instalada no seu terreno ou sua casa para passar para um sistemaindividual.

Agora, em todos os casos, seja qual for sua fonte de energia elétrica, umaregra é sempre válida: economizar energia, pois com isso, sim, inevitavelmentevocê estará poupando a natureza (e dinheiro, é claro).

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 12. Energia

Soll, Lual, estrelas

A discussão acima é válida especialmente tendo como referência umconsumo de eletricidade nos nívveis comumente observados, de acordo com oestilo de vida moderno. Porém, essa não é a única opção! Em algumas situações,especialmente situações rurais, pode ser também uma boa ideia deixar de ladototalmente o uso de eletricidade, e viver de forma mais natural, simples e rústica,como o homem viveu por praticamente a totalidade de sua história. Isso pode seruma ótima forma de se reintegrar com os ciclos naturais, e também desenvolverum estilo de vida menos dependente de insumos tecnológicos, resgatando formastradicionais de fazer coisas e resolver problemas, à moda antiga. Ou então, pode-se optar por um consumo extremamente minimalista de eletricidade, e nestecaso, o uso de sistemas individuais, especialmente energia fotovoltaica, podepassar a ser uma opção válida. Essa é uma forma de unir o melhor dos doismundos. Se sua necessidade de eletricidade é muito baixa, como por exemploapenas para poder usar um computador, acender uma lâmpada à noite oucarregar uma lanterna, basta um pequeno sistema de energia solar, e você teráuma ótima relação custo/benefívcio, tanto do ponto de vista econômico comoambiental.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

13PERMACULTURA URBANA

Conforme já citado, é na zona rural que a permacultura pode alcançar aomáximo seu potencial, devido ao espaço que você terá, que lhe possibilitarácaptar e fxar grandes volumes de água, plantar milhares de árvores e recuperarecossistemas em larga escala, produzir alimentos orgânicos em grandequantidade, além de permitir um grau de reintegração e conexão muito maiorcom a terra e os demais elementos, e os ciclos naturais, etc.

No entanto, a maioria das pessoas hoje vivem em cidades. Especialmenteas pessoas interessadas em permacultura, quase sempre vêm de um contextourbano. Não é difívcil de entender o porquê disso, já que são os moradores dacidade quem mais sofrem com o distanciamento do que é natural, e tambémtendem a ter uma consciência mais aguda da gravidade da crise ambiental global.

Para que possam alcançar o objetivo de uma vida mais natural e saudável,em contato e harmonia com a natureza, com uma reintegração com os ciclosnaturais, contribuindo efetivamente na preservação e restauração do meioambiente, produção natural de alimentos, etc., o ideal é, sem dúvida, que essaspessoas mudem-se para a zona rural. Há que se reconhecer que essa mudançanão é simples, como temos visto ao longo dos capívtulos anteriores, exigindogrande preparo, planejamento, seriedade e coragem. Mas o ideal seria que, como avanço e a propagação da permacultura, nós observássemos um verdadeiroêxodo urbano, ou seja, um grande número de pessoas abandonando as cidades eindo fxar-se na terra, para trabalhar ativamente na sua recuperação epreservação.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

Porém, muitos dos apaixonados pela permacultura que vivem hoje emcidades, por uma infnidade de motivos possívveis, talvez não possam ou desejemabandonar a cidade e começar uma nova vida no campo, pelo menos num futuropróximo. Mas ainda assim, desejam fazer tudo que estiver ao seu alcance parater uma vida mais natural e sustentável, dentro de suas possibilidades. E claroque sempre é possívvel fazer alguma coisa. É aív que entra a permacultura urbana.

A incorporação e aplicação das éticas e princívpios da permacultura nasnossas escolhas diárias, desde as atitudes mais corriqueiras do dia a dia até asgrandes opções de vida e planos para o futuro, inevitavelmente levam aodesenvolvimento de um estilo de vida consciente e muito mais sustentável. Esseestilo de vida está ao alcance de todos que despertam para a gravidade domomento atual da humanidade, e uma vez adquirido conhecimento sobre aséticas e princívpios, sendo um elemento central da permacultura. Isso serádiscutido em detalhes no próximo capívtulo (“Estilo de Vida da Permacultura”).Outras questões importantes à permacultura urbana, relativas ao design da casa esistemas de água, já foram discutidos em capívtulos anteriores. No presentecapívtulo, focaremos nossa discussão nos sistemas produtivos aplicáveis àpermacultura urbana.

Recursos

Em situações urbanas, os recursos mais limitantes são espaço e terra. Terrapode ser muito escassa, especialmente em áreas altamente urbanizadas, onde,para todo lado que você olha, só há construções e pavimentação. As poucasáreas com terra são parques, praças e jardins, de onde você não pode tirar terra.Portanto, muitas vezes as pessoas que querem plantar alguma coisa se veemforçadas a comprar terra (!!). Já nas áreas mais periféricas e suburbanas, égeralmente possívvel obter terra de áreas ainda não construívdas, Porém, talvez orecurso mais limitante seja mesmo o espaço. Ele será discutido em detalhes maisadiante.

Por outro lado, a maioria dos outros recursos são mais fáceis e abundantesna zona urbana, por vezes mais fáceis até que na zona rural. Serragem pode serobtida com facilidade em madeireiras e marcenarias; outros materiais decobertura de solo, como folhas caívdas, restos de poda, etc. são encontrados comfacilidade em praças e parques. Muitas vezes, o serviço de manutenção daprefeitura varre ou rastela essas áreas, juntando as folhas e ensacando-as paraenviar para o aterro sanitário (uma prática lamentável). Geralmente, basta vocêpedir, que poderá levar esse material, já ensacado, para sua casa ou outro localonde esteja desenvolvendo suas atividades (compostagem, plantio). Cinzaspodem ser obtidas em pizzarias de forno a lenha, por exemplo.

A compostagem é prática obrigatória a permacultores urbanos. Vocêdeverá compostar todos os seus resívduos orgânicos domésticos, tanto comomodo de destinação ecológica desses resívduos como para obtenção de

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

fertilizante, que será necessário para sua produção de alimentos. Caso possa,queira ou necessite, pode também pedir aos seus vizinhos que separem e doemseus resívduos orgânicos, de forma que você possa contar com uma quantidademaior de composto orgânico para suas atividades. Agora, se você tiver bastanteespaço, uma boa adesão da sua vizinhança e facilidade de obtenção dos demaisrecursos necessários, também pode pensar em fazer compostagem em mais largaescala, para venda do composto orgânico como forma de atividade econômica,além do cunho ambiental. Essa ideia será discutida no capívtulo 17 (“Consultoriae Prestação de Serviços em Permacultura”).

Em geral, água não deverá ser um problema na zona urbana, pois você temuma relação de área de telhado/área de plantio enorme. Deve-se enfatizar quedevemos sempre focar no uso de água de chuva para irrigação (e águas cinzas,também), e evitar o uso de águas tratadas municipais para esse fm, pois issocaracteriza uma prática insustentável.

Espaço

A principal e mais óbvia limitação imposta ao permacultor urbano dizrespeito ao espaço, já que muitas pessoas moram em apartamentos, e mesmo asque moram em casas muitas vezes não têm um quintal onde possam plantarcoisas, ou os têm muito reduzidos. Também os espaços públicos são geralmentealtamente restritos em relação à produção vegetal ou recuperação ambiental, jáque encontram-se predominantemente ocupados por edifcações e pavimentação.Por isso, a permacultura urbana é marcada por uma busca incessante porespaços disponívveis e formas de ocupação altamente racionais e produtivasdesses espaços, muitas vezes requerendo altas doses de criatividade em técnicasde utilização não convencionais.

Vamos explorar esses espaços, começando com o que está mais próximo: ointerior da casa, nossa zona zero.

Zona zero

Conforme já citado no capívtulo 9 (“Permacultura Rural”), o interior dacasa é um espaço com potencial para produção de alimentos. No caso de quemmora em apartamento, muitas vezes esse será o único espaço disponívvel paraplantar qualquer coisa. Por sorte, o interior da casa tem vários fatores quefavorecem a produção vegetal, de forma que uma produção intensiva é possívvel.Esses fatores são a proximidade, que possibilita um alto grau de controle;temperatura e umidade relativamente controladas, já que as futuações são bemmenores que no ambiente externo, minimizando problemas como estressehívdrico e congelamento (em locais onde há geadas), ou seja, para a planta, a casafunciona mais ou menos como se fosse uma estufa. Outra grande vantagem dazona zero é a abundância de água, já que a água captada pelo telhado será

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

armazenada logo ali, do lado de fora; também é no interior da casa que seproduz quase toda a água cinza, que deve ser recolhida e usada para irrigação.Algumas pessoas pensam em elaborar sistemas sofsticados de reciclagem deágua cinza e uso automatizado em irrigação, mas nada disso é necessário —basta colocar uma bacia dentro da pia da cozinha, outra no box do banheiro, ebaldes grandes (60 litros) na lavanderia, coletando a água da máquina de lavar.Lembrando que a água da máquina de lavar e banho pode ser usada tambémpara limpeza da casa e dar descarga no vaso sanitário, além de irrigação.

Claro que todas as plantas necessitam de luz solar, então janelas e o ladointerno de portas de vidro são os locais ideais para se colocarem vasos dentro dacasa.

Os conceitos de design sustentável da casa discutidos no capívtulo 10 (“AHabitação Permacultural”) também devem ser empregados na situação urbana.Para um design passivo para energia solar e alta efciência energética, também nacidade você deverá ter janelas amplas, exceto em locais de clima muito quente eárido, onde janelas menores conferem maior efciência energética e confortotérmico. Janelas amplas oferecem também a vantagem de mais espaço paracultivo de plantas, seja do lado de dentro, no peitoril da janela, ou em foreirassuspensas no lado externo.

Varandas também são locais com alto potencial produtivo, desde quetenham exposição solar sufciente. Varandas que pegam bastante sol tendem a teruma temperatura mais elevada que outros locais, pois acumulam a energia solarenquanto evitam a ação dissipadora do vento. Isso pode aumentar o potencialprodutivo, mas também faz com que seja necessário mais cuidado com o estressehívdrico, ou seja, deve-se manter uma vigilância constante e regas mais frequentespara evitar que a terra dos vasos e foreiras seque. Por outro lado, varandas quefcam voltadas para o lado sombreado (face sul no hemisfério sul, e norte nohemisfério norte), ou estão sempre na sombra de outros edifívcios, terão umpotencial produtivo bem menor, mas ainda assim deve-se tentar plantar diversascoisas, pois muitas vezes o rendimento pode superar suas expectativas.

Estufas acopladas à casa também têm grande aplicação em situaçõesurbanas, em regiões de clima frio. Elas são difívceis de categorizar: são dentro oufora da casa? Zona zero ou zona um? Você decide. Essas estufas são uma ideiamaravilhosa, pois servem não apenas para produzir fores, ervas, hortaliças emudas de árvores, mas também para você ler um livro ou receber visitas parauma gostosa xívcara de chá ou café, aproveitando o calorzinho do sol numa friatarde de inverno.

Zona 1

Passemos agora ao lado externo da casa, ou seja, o quintal, corredores,garagem, jardim da frente, etc.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

Quintal

Suponhamos que você tenha um quintal com tamanho razoável em suacasa, o que infelizmente pode ser considerado um luxo, quase uma extravagânciapara a maioria das pessoas que moram em cidades hoje em dia. Esse quintal temum óbvio potencial para produção de comida, exceto nos casos (infelizmente nãoraros) em que você tem seu quintal na sombra o dia inteiro, devido ao fato de suacasa ser cercada por prédios. Agora, num cenário mais favorável, em que vocêtem um bom quintal em sua casa, e ele recebe uma quantidade razoável de sol,certamente você deverá usar esse quintal para plantar comida e outras coisas,como fores, ervas, temperos, remédios, etc. O quintal será sua zona um, e tudo oque discutimos a respeito disso no capívtulo 9 (“Permacultura Rural”) pode edeve também ser aplicado na zona urbana. Curvas de nívvel, terraços, coberturavegetal morta, irrigação com água cinza… tudo. Também, no seu quintal,arbustos e pequenas árvores frutívferas são muito bem-vindos.

Agora, muitos permacultores costumam discorrer apaixonadamente porideias mirabolantes de design de jardins e hortas urbanas, com termos modernosque soam sofsticados, e podem impressionar amadores e novatos napermacultura. Porém, o fato é que nada disso é essencial ou sequer importante,pois na prática quase sempre não se refete em uma maior produtividade. Comoem praticamente tudo na vida, o importante está na simplicidade. Minhas avós, eacredito que as avós da maioria das pessoas, especialmente as mais antigas ecom raívzes no interior ou no campo, morreriam de rir se vissem as hortasurbanas da maioria dos permacultores atuais, com suas espirais de ervas,mandalas e outras ideias recorrentes nos cívrculos da permacultura. Isso porque ashortas que elas sempre tiveram em seus quintais, nos moldes simples deantigamente, sempre tiveram uma produção muito maior e muito diversifcada, eninguém fcava dando palestras ou cursos, ou se gabando por causa disso! Poreste motivo, costumo dar uma dica que considero muito importante: sempre quepossívvel, procure em sua área pessoas antigas que cultivam hortas e jardins emseus quintais, e procure aprender algo com elas. Converse sobre a terra, asplantas, espécies e variedades, sua utilidade, como cultivar, épocas de plantio,enfm, tudo. Geralmente, elas se sentem valorizadas e contribuem de muito bomgrado, e daív podem nascer relacionamentos bastante enriquecedores. As pessoasantigas, especialmente as do interior, muitas vezes têm um conhecimento práticoprofundo sobre como ter uma zona um linda, rica, altamente produtiva (claroque elas não chamam de zona um!) — um conhecimento tradicional, passado degeração a geração, e que infelizmente está se extinguindo rapidamente, à medidaque as novas gerações se mudam para apartamentos e cidades grandes, ousimplesmente cimentam seus quintais, pois não sabem como cultivar, nem têmtal interesse.

É bom ressaltar que o cultivo não deve se restringir ao quintal dos fundos.Sempre que houver um jardim na frente da casa, esse também deve ser um

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espaço aproveitado para a produção de alimentos. Mas atenção, prepare-se paraser admirado por toda a vizinhança! Esta é uma ótima forma de despertar acuriosidade, fazer com que as pessoas, interessadas, puxem assunto com vocêsobre o cultivo de alimentos, dando ensejo para que você abra-lhes as portaspara o universo da permacultura, o que fatalmente inspirará outros a seguiremseu exemplo e potencialmente transformará a vida de muitas pessoas.

Além do plantio de espécies de porte herbáceo, como fores e hortaliças emgeral, é sempre interessante plantar espécies de porte arbustivo ou pequenasárvores de forma estratégica ao redor da casa. Isso pode trazer inúmerosbenefívcios, incluindo a produção de alimentos, beleza, privacidade, confortosolar (sombra), térmico (frescor) e acústico, etc. Também tendem a atrairpássaros, tornando sua vida muito mais alegre.

Jardins verticais

Há muitas maneiras de se fazer um jardim vertical. Ele pode ser feito emqualquer muro ou parede externa, e às vezes também interna, desde que hajasufciente exposição solar. Você pode fazê-los com potes de qualquer formato,pendurando-os em série com correntes ou cordas; pode fazer suas própriasforeiras de parede usando tábuas de pallets usados, ou mesmo usar garrafasplásticas cortadas, pendurando-as em cascata, umas sobre as outras, suspensaspor cordas ou arame galvanizado. Pode-se construir um muro verde em umaúnica tarde, utilizando blocos de construção, bastando fazer furos no fundo parapermitir que a água escoe, enchê-los de terra e empilhá-los, canto com canto,deixando vãos entre eles onde as plantas crescerão. Em várias situações, vocêtambém pode substituir cortinas por “cortinas de vasos”, pendurados em sériecom correntes ou cordas, etc. As opções de materiais e design são praticamenteilimitadas!

Paredes de corredores, muros e divisórias entre terrenos, as paredesexternas da sua casa, todos são ótimos locais para se fazer um jardim vertical.As vantagens desse tipo de jardim são inúmeras: eles praticamente não ocupamespaço, e transformam os muros e paredes em locais de produção vegetal.Conferem conforto acústico, pois absorvem ruívdos, e também conforto solar etérmico: sabe aquele refexo desagradável do sol em paredes e pisos claros?imagine isso sendo absorvido por plantas, transformado em fotossívntese eprodução! São também muito práticos de regar e econômicos em água: vocêrega as plantas de cima, e o excesso de água vai drenando, e regando as de baixoautomaticamente. Instale reservatórios, que podem ser feitos de chapa metálica(daquelas usadas para fazer calhas) ou travessas de plástico, em baixo do jardimvertical para coletar o excesso de água, e use essa água novamente para regar asplantas no dia seguinte. Assim, você não terá nenhum desperdívcio de água, enenhuma molhaceira no chão.

Voltando um pouco agora à nossa zona zero, também dentro da casa,

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paredes de banheiros, cozinha e sala também podem ser cobertas com vasos,pendurados individualmente ou em “colunas”, sustentados por cordas oucorrentes, além da já citada ideia das “cortinas de vasos”. Claro que, ainda queos jardins verticais não ocupem muito espaço, em locais realmente apertadosisso pode se tornar inviável.

Horta no telhado

No capívtulo 8, “Água em Permacultura”, já falamos sobre o telhado verde,e como essa técnica pode ajudar a resolver ou amenizar muitos dos problemasdas cidades. Os telhados verdes também são uma excelente forma de produzircomida nas cidades! Esta é sem dúvida a forma mais inteligente de usar esseespaço, geralmente abandonado, para um fm extremamente produtivo. E aquivocê difcilmente terá problemas com falta de sol!

Porém, quando a fnalidade é produção, não dá muito certo aquele esquemade telhado verde por cima das telhas, ou chapa de compensado, e sim em cimade lajes. Isso porque para uma produção substancial e perene, você precisará deuma boa quantidade de terra, e uma boa profundidade, o que só é viável sobre aslajes, já que são muito mais fortes e quase planas. Você pode fazer canteiros dehorta diretamente por sobre a laje, mas é recomendável fazê-lo por sobre umacamada de material impermeabilizante (e.g. lona plástica), para garantir que issonão causará infltração de umidade na casa. Ou então, pode fazer canteirossuspensos, ou seja, grandes foreiras, que podem ser feitas de tábuas, ou tonéis oubombonas plásticas cortadas (transversal ou longitudinalmente) e instaladassobre blocos de construção. Desta forma, você pode plantar qualquer tipo defores, ervas, verduras, etc., e até mesmo arbustos e pequenas árvores em grandesvasos. Pode manter árvores frutívferas em tamanho pequeno usando a técnica dobonsai, possibilitando uma produção no seu telhado, assim como em outroslocais onde normalmente não caberia uma árvore.

Mesmo com a horta no telhado, sua laje continuará sendo um local decaptação de água. Você pode usar a estratégia descrita no capívtulo 8, de construirseu reservatório de água de chuva no nívvel do solo ou subterrâneo, e usar umabomba elétrica acionada por um painel solar para mandar essa água para umacaixa instalada sobre a laje, possibilitando o uso na casa e também na sua hortado telhado, para irrigação.

Áreas públicas e outros espaços

Quando você começa a praticar a permacultura urbana, issoinvariavelmente transforma o modo como você olha para as coisas e para oslugares. Você passa a enxergar espaços subaproveitados com potenciais deprodução em todo lado — espaço para aumento da arborização das ruas,também com árvores frutívferas (por que não?), praças, parques e canteirosmaltratados, abandonados... terrenos baldios, gramados inúteis e até aquele

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jardim da frente da casa do seu vizinho, que não produz nada, etc.Inevitavelmente, você passa a “cobiçar” esses espaços, não no sentido depropriedade ou posse, mas no sentido de ter a oportunidade de aplicar osconceitos da permacultura e seus esforços naqueles locais, prestando serviços ànatureza e às pessoas (pela melhoria estética e potencial de inspiração), além, éclaro, de benefciar a si mesmo e a outros, pela produção de alimentos e outrosprodutos úteis. Naturalmente, essa vontade será tão mais forte quanto maior fora restrição de espaço para produção dentro da sua casa ou do seu terreno. Ouseja, se você tem uma casa com um quintal bem grande, talvez isso nem passepela sua cabeça, mas se você morar num apartamento pequeno, com outraspessoas, talvez esses espaços externos e públicos sejam sua única opção de tentarplantar alguma coisa.

Vamos discutir alguns locais e abordagens que podem ser tentadas, paraaumentar o espaço disponívvel para você produzir.

Calçadas

Em muitos locais, o projeto da rua contemplava arborização e paisagismourbano, e por isso, quando da construção da calçada, foi deixado aquele espaçoaberto, com terra, para possibilitar o plantio. Porém, muitas vezes as árvoresnunca chegam a ser plantadas, ou até o são, mas por falta de cuidados morrem enão são substituívdas, de forma que aquele espaço, quadrado ou retangular, passaa abrigar apenas capim e, não raro, lixo. Você pode resolver “fazer justiça comas próprias mãos”, e assumir para si a tarefa de colocar uma árvore ali.Idealmente, você deverá pedir autorização à prefeitura e também contar com apermissão do morador em frente ao local em questão. Em cidades pequenas,será fácil falar com o encarregado da prefeitura, e quase invariavelmente, vocêcontará com uma permissão informal imediata. Já em cidades grandes, vocêgeralmente terá bem mais difculdade de ter acesso à pessoa encarregada docuidado das ruas e arborização pública, e enfrentará mais burocracias, que lhetomarão tempo. Mesmo que consiga falar com a pessoa “certa”, elaprovavelmente nem sequer sabe da existência da sua rua. Por esses e outrosmotivos, talvez faça mais sentido você simplesmente plantar sua árvore e ver oque acontece.

É importante plantar árvores que sejam adequadas à arborização urbana,levando em consideração implicações futuras em relação à fação elétrica acima,e impacto no calçamento e tubulações de água e esgoto abaixo, etc. Muitosmunicívpios contam com manuais de arborização urbana, com recomendaçõesespecívfcas de espécies adequadas àquela área em questão; nesses casos, éconveniente se ater às espécies e recomendações da prefeitura, para evitarproblemas futuros. Nós, permacultores, sempre queremos plantar árvoresfrutívferas, pois achamos maravilhosa a ideia de produzir alimentos na cidade,então você pode tentar fazer isso. Mas, se a prefeitura tiver recomendaçõesexpressas contra árvores frutívferas na arborização urbana, ou se seu vizinho for

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contra a ideia, é melhor não fazer isso. Caso você insista, o que pode acontecer éo seguinte: você vai plantar, e cuidar por anos; enquanto a árvore é jovem, nãoincomodará a prefeitura ou o vizinho. Porém, assim que começar a produzir, elesprovavelmente decidirão cortar a árvore, trazendo-lhe grande decepção,frustração e revolta. Daív, você poderá reclamar, criticar e chorar, mas issoadiantará em nada. Portanto, é melhor evitar esses problemas logo de cara, naescolha da espécie a ser plantada.

Mas não basta plantar uma muda e cuidar dela — você deverá providenciaruma proteção bastante sólida, preferencialmente feita de metal, de formaprofssional em uma serralheria, e pintada, seguindo o padrão do seu municívpio(não vale apenas enfar pedaços de pau ou estacas de bambu!). Embora issoimplique em custo, é essencial para dar visibilidade e respeitabilidade para suaatitude. Caso contrário, infelizmente muitas pessoas falharão em ver a diferençaentre uma muda de árvore plantada e cuidada, e um mato qualquer que alinasceu, sendo comum transeuntes pisarem e quebrarem, ou mesmo o pessoal damanutenção das ruas vir capinar e acabar cortando ou arrancando sua muda,acidental ou intencionalmente.

Sempre que o espaço em questão não for estritamente em frente à suaprópria casa, conversar com o vizinho e contar com seu consentimento ecooperação também é muito importante. Muitas vezes, pessoas simplesmentenão querem uma árvore em frente à sua casa, alegando uma variedade demotivos, um mais esdrúxulo que outro. Exemplos desses motivos alegadosincluem: “faz muita sujeira” (referindo-se às folhas caívdas), “atrai vagabundos emaconheiros” (sem comentários...), ou simplesmente “não gosto”. A verdade é,infelizmente, que muitas pessoas têm preconceito ou simplesmente odeiamárvores. Então, se vem a prefeitura e planta uma árvore em frente às suas casas,talvez aceitem, pois se trata de uma autoridade; mas se for você, apenas umapessoa, talvez não aceitem. Talvez, com uma conversa amigável, elas concordeme cooperem, talvez não. Por isso, é sempre melhor começar conversando com aspessoas. Se elas não se mostrarem receptivas, procure outro local.

Agora, não se trata apenas de árvores: na bacia ao redor da árvore, vocêpode plantar fores, ervas, etc., deixando tudo bem lindo. O mesmo em relação acanteiros e foreiras que às vezes existem em calçadas. Você pode até plantarverduras, mas isso talvez não seja uma boa ideia. Isso porque muitas pessoas nãorespeitam, e suas verduras estarão sujeitas a todo tipo de “ataques”: pessoasjogarão lixo e pisarão em suas verduras; outras, as colherão antes do tempo, nãolhe dando a oportunidade de colher o que você mesmo plantou. Em algunslocais, o próprio poder público (prefeitura) pode destruir sua verdura, porconsiderar que “ali não é lugar”. Plantar verduras na beira da calçada e rua éuma receita já comprovada inúmeras vezes de colher desentendimentos edesilusões. Mas, nada te impede de tentar. Talvez tenha sorte em sua vizinhançaem particular. Agora, uma alternativa muito mais segura é plantar PANCs, poisnão serão reconhecidas como verduras pela imensa maioria das pessoas, a não

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ser pessoas conhecedoras de PANCs que são, geralmente, pessoas com muitomais consciência. Portanto, você terá mais chances de sucesso, e de colher o queplantou, se plantar alimentos não convencionais.

O jardim do seu vizinho

Talvez você tenha vizinhos bem próximos à sua casa que têm uma boa áreade jardim em frente às suas casas, mas que não cuidam, seja porque não sabem,ou porque não ligam, ou não têm tempo, etc., então o jardim está semprehorroroso, parecendo um matagal. Você pode tentar conversar com eles, paraver se deixam você plantar em seus jardins. Você pode fazê-lo basicamente deduas formas: cobrando ou de graça. O primeiro caso confgura-se comoprestação de serviços em permacultura, e será discutido no capívtulo 17. Agora,você pode oferecer para cuidar do jardim do seu vizinho de graça, apenas emtroca de parte da produção que você terá. Assim, todos saem ganhando: seuvizinho não terá mais trabalho de cuidar do jardim, e terá um lindo jardim-hortaem frente à sua casa, ao invés do costumeiro matagal. E ainda ganhará fores,ervas e verduras! E você, terá acesso a um espaço a mais para produção.

Agora, para que você possa convencer qualquer pessoa a te deixar usar oespaço de seu jardim, você deve primeiro mostrar serviço em seu própriojardim. Transforme a área em frente à sua casa (se você tiver uma, claro) em umverdadeiro Jardim do Éden, chamando a atenção e conquistando a admiraçãodos vizinhos, e não terá difculdade em convencer outras pessoas a te deixarfazer o mesmo em suas casas. Claro que você terá que vencer também oempecilho da privacidade — nem todo mundo aceita de primeira ter alguémentrando e saindo de seu jardim ou quintal; isso provavelmente envolverá aindafazer uma cópia da chave do portão para você usar, e esse tipo de questão podedesestimular muitas pessoas. Por outro lado, esse tipo de contato e convivênciapode aproximar as pessoas, resgatando um senso de comunidade que asvizinhanças urbanas vêm perdendo ao longo das últimas décadas, podendoportanto ser muito enriquecedor e positivo para todos envolvidos.

Terrenos baldios

Nem todos os bairros têm terrenos baldios — eles costumam ser raros emregiões centrais da cidade, e comuns em áreas mais periféricas. Se eles existiremem sua área, são geralmente ótimas oportunidades para a permacultura urbana.Seu potencial produtivo é óbvio. Além disso, costumam causar dor de cabeçapara os proprietários, pois eles têm que fcar de olho e cuidar do terreno,mantendo-o roçado (controlando o crescimento de mato) e evitando que setransformem em depósitos clandestinos de lixo e entulho, etc.

Procure saber quem é o proprietário do terreno baldio de seu interesse, eproponha um acordo informal, um comodato: ele te deixa usar o terreno paraplantar, por um perívodo de tempo preestipulado, que pode ser de 6 meses ou um

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ano, de forma que ele não se sinta privado da autonomia e direito sobre seuimóvel. E você se compromete a manter o terreno limpo, livre de mato, lixo ouentulho, e talvez a compartilhar a produção com o proprietário, de forma quetodos saem ganhando! Inclusive a vizinhança, que deixará de ter um terrenoabandonado para ter um lindo jardim-horta que embeleza o local e traz boasinspirações.

Você pode combinar que o proprietário fca livre para colher o que quiserda produção, pois na maioria dos casos, ele colherá nada ou quase nada, mas oacordo que lhe preserva a liberdade para entrar e colher o que é produzido emseu próprio terreno remove qualquer insegurança que ele possa ter em relação àcessão parcial de direitos sobre seu imóvel. Talvez, isso o inspire a tambémparticipar, envolver-se, ajudar com os trabalhos, o que signifcará não apenasajuda para você, mas também um fortalecimento do movimento dapermacultura!

Praticamente todas as técnicas descritas a respeito da zona um no capívtulo9 podem ser aplicadas aqui, igualmente.

Agora, uma coisa muito importante de se pensar é a fonte de água para suaplantação. Terrenos baldios muitas vezes não contam com instalação de águamunicipal, e mesmo que contem, esse não é um uso adequado dessa água. Amelhor opção é você pedir aos moradores vizinhos a permissão para colher aágua da chuva de seus telhados, ligando suas calhas a uma tubulação que tragaessa água até o terreno que você utilizará. Para armazenar essa água, você podecomprar uma caixa d’água plástica ou cisterna de polietileno, de 2.000 a 5.000litros, e instalá-la no terreno, mas isso representará um custo substancial, e não érealmente necessário. Uma opção válida e extremamente barata é você construiruma cisterna temporária subterrânea: escave um buraco quadrado no chão, com2 m de largura por 2 m de comprimento, e 1,25 m de profundidade. Use essaterra para fazer suas curvas de nívvel no terreno. Agora, revista esse buracointernamente com uma lona plástica de polietileno de alta densidade (PEAD) deboa qualidade, sendo que a melhor opção são as lonas dupla face (branca e preta)usadas para cobrir silos. Cubra as bordas da lona, que fcaram para fora doburaco, com uma camada de terra, formando uma borda elevada para suacisterna. Para tampar a cisterna, você pode usar uma tela de sombreamento dePEAD tipo “sombrite”, armada em um quadro de madeira, de forma a impedir oacesso de mosquitos, e para proteção extra, cubra tudo com uma tampa demadeira (podem ser tábuas de construção usadas). Pronto, você tem umacisterna com capacidade para 5.000 litros, discreta (quase invisívvel!), por umafração do custo de uma caixa d’água do mesmo volume. Os únicos materiaisnovos que você precisará comprar são um pedaço de lona plástica de 5 × 5 m,um pedaço de sombrite de 2,5 × 2,5 m, e 8 m de ripas de madeira para a tampa.

Para tirar a água da cisterna, você pode instalar uma bomba do tipo “puxa-empurra”, que você mesmo pode fazer usando tubos e conexões de PVC, a umbaixo custo.

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Caso o terreno não seja murado, você terá que providenciar um muro oucerca para lhe dar privacidade e proteger seu jardim-horta de invasores animaise humanos. Você pode fazer uma bonita cerquinha de madeira, usando palletsusados — na maioria dos casos, isso será sufciente. Caso deseje, pode plantaruma cerca viva, podendo usar hibiscos, por exemplo, que são propagados porestacas e crescem rapidamente. Hibiscos são excelentes pois, além das vantagensjá citadas, não têm espinhos e ainda dão lindas fores! Você deverá manteraparada sua cerca viva, o que lhe dará um bom suprimento de matéria vegetalmorta para cobertura de solo em sua horta. Você pode ainda optar por espéciesde hibisco comestívveis, e plantar mais de uma espécie, dando um aspectoparticularmente lindo à sua cerca viva, e fornecendo fores para suas saladas,conservas e chás.

Parques e praças

Em muitas áreas, as praças e parques públicos existem, mas, devido à faltade adequada manutenção, caem em decadência, o que se torna visívvel pelocrescimento desordenado de vegetação, especialmente capins, acúmulo de lixo edeterioração progressiva de infraestruturas como calçamento, iluminação, cercas,lixeiras, bancos, brinquedos infantis e aparelhos de lazer em geral. Cobrar dasautoridades competentes do poder público providências para a manutençãoadequada desses espaços é geralmente inútil.

Essas áreas também podem ser vistas como locais com potencial produtivoque podem estar disponívveis a quem tiver disposição para trabalhar nelas. Numtrabalho onde se assume combinadamente as responsabilidades de limpeza,paisagismo, talvez alguma manutenção de infraestruturas, associado a trabalhosde cunho mais estritamente ambiental, como fxação de água de chuva, aumentode biomassa e biodiversidade, aliado ainda à produção de alimentos, sem dúvidatodos saem ganhando! Isso de fato acontece em muitos lugares, felizmente.

Do ponto de vista do planejamento da utilização da área, aqui você poderáaplicar os conceitos discutidos no capívtulo 9, referentes às zonas um, dois e três,talvez até a quatro, dependendo do tamanho da área. Ou seja, você poderá tercanteiros de fores e verduras (sendo sempre uma boa ideia focar nas PANCs),agroforestas arbustivas e arbóreas, e também áreas com um reforestamentomais nativo.

Porém, diferentemente dos casos que vimos discutindo até agora, esse nãoé o tipo de trabalho que normalmente possa ser feito por uma pessoaindividualmente. O motivo para isso é que se trata de áreas públicas, destinadasa uso público; portanto, se você pedir autorização às autoridades competentes(na verdade, incompetentes), difcilmente será autorizado a utilizar a área paraum fm diferente daquele a que o local se destina. Mesmo que conseguisse talautorização e fzesse ali um bonito trabalho, muito provavelmente você não teriaum amplo apoio da população local, pois muitos sentiriam que você estáusurpando um espaço que não é seu.

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Agora, nada disso signifca que seja impossívvel ou inviável fazer umtrabalho de recuperação, revitalização dessas áreas, associado à produção dealimentos — signifca apenas que há uma forma correta de se fazer isso, e essaforma é justamente através da comunidade. Ou seja, você terá que iniciar ummovimento, uma organização comunitária (caso ela ainda não exista), paraconquistar a legitimidade para fazer seu projeto nessas áreas. Isso é muito maissimples do que parece, pelo menos neste caso em questão. Basta você seguir osseguintes passos:

✔ Elabore um projeto. Faça uma planta do espaço (praça ou parque) em quevocê deseja atuar, indicando os principais pontos de referência (ruas,infraestruturas, etc.). Use fotos aéreas (e.g. obtidas pelo Google Earth)para elaborar uma planta bem decente.

✔ Sobre o esboço geral da planta do local, indique as atividades e melhoriasque você propõe: terraços, canteiros, mudas de árvores, etc. Você podeprocurar fazer uma representação artívstica de como você espera que esseselementos e sistemas se pareçam, quando estabelecidos e maduros.

✔ Além dos elementos e atividades produtivas, indique também outrasatividades de recuperação a serem feitas, como limpeza e remoção de lixoe entulho, pintura de paredes e cercas, conserto de brinquedos infantis, etc.

✔ Estabeleça um cronograma de atividades.

✔ Anexe fotos atuais do local, enfatizando sua decadência: mato, lixo,entulho, pintura velha, coisas quebradas, etc.

✔ Anexe também folhas de assinaturas, constando nome, endereço eassinatura dos moradores da vizinhança que têm intenção de participar dasatividades, ou pelo menos apoiam a iniciativa.

✔ Agora, visite todas as casas da vizinhança, expondo sua ideia para osmoradores, convidando-os a participar e pedindo seu apoio expresso, naforma de adesão e assinatura da folha de assinaturas.

✔ Isso tudo feito, você está pronto para levar seu projeto à prefeitura. Entreem contato e marque um encontro com a pessoa responsável pelamanutenção da área em questão. De preferência, não vá sozinho aoencontro — leve junto consigo pelo menos dois outros participantes domovimento. Isso aumenta muito as chances de seu projeto ser aceito, e seutrabalho autorizado.

Quando você começa esse tipo de movimento, especialmente se for aprimeira vez que você inicia ou se envolve com uma associação comunitária, écomum fcar superexcitado, com aquela impressão que você está iniciando ummovimento revolucionário que poderá transformar o mundo. E, realmente, podeaté vir a ser; porém, é importante que você modere suas expectativas.Associações comunitárias são feitas de pessoas, e esteja preparado para

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descobrir que nem todo mundo que apoia e parece adorar a ideia num primeiromomento terá a mesma disposição e perseverança que você.

Você deve fazer todo esse procedimento de mobilização da comunidade, erealmente desejar esse trabalho em conjunto. Isso poderá ter um grande efeitotransformador em sua vizinhança, em múltiplos nívveis: na melhoria estética darua, na devolução de uma área de lazer a todos, no resgate do senso decomunidade, aumento e melhoria das relações sociais, inspiração para amudança em toda a vizinhança, envolvendo pessoas de todas as idades, etc.Porém, você deve também estar totalmente preparado para fazer tudo sozinho!Muitas vezes, as pessoas aderem no inívcio, mas desanimam rapidamente, e aadesão às atividades pode cair progressivamente, até que só reste você. Mesmoque isso aconteça, é importante que você não se deixe desanimar. Pelo menos,você fez sua parte, e, além disso, conseguiu o que de inívcio pretendia, que era oacesso, de forma legívtima, àquela área para uso em produção e recuperaçãoambiental. Feito desta forma, você difcilmente perderá esse direito, porque vocêcomeçou do modo correto.

Agora, claro que há casos em que a mobilização conta com uma grandeadesão da comunidade, e se transforma em um movimento que cresce, tomacorpo e seriedade. Quando isso acontece, você, juntamente com os demaismembros, podem optar por formalizar a associação como uma organização não-governamental legalmente instituívda. Isso permitirá à sua associação lançar-se aprojetos mais ambiciosos, e poderá também dar acesso a recursos fnanceirospúblicos e privados. Porém, é preciso ter em mente que esse maior alcance vemacompanhado de uma grande carga de burocracia e novas responsabilidades.Mas você não deve se preocupar com nada disso no começo. O melhor é vocêcomeçar pequeno e simples, focando no que pode ser feito com mívnimosrecursos, e ir se adequando conforme a coisa fui.

Outra coisa muito importante que deve ser dita: quando se trata de atuar narevitalização de uma área, ou qualquer projeto de plantio, seja para produção ourecuperação ambiental ou ambos, o mais fácil é sempre começar — o maisdifívcil, porém essencial, é continuar trabalhando. Isso, na verdade, se aplica aqualquer empreendimento permacultural, seja na zona rural ou urbana, em seupróprio terreno ou de outrem, e também a outras atividades socioambientais emgeral. Conforme já mencionado, a maioria das pessoas que aderem a essasiniciativas o fazem na base do “fogo de palha”, ou seja, com grande empolgaçãono inívcio, mas que não se sustenta ao longo do tempo. É vital que você garantaque esse não será também o seu caso! Repito aqui o que disse no capívtulo 9(“Permacultura Rural”): plantar uma muda é a coisa mais fácil; cuidar dela atéque se torne árvore é que é difívcil! Sei por experiência própria, e também porrelatos de inúmeras pessoas, que se você plantar uma árvore, seja onde for, masespecialmente numa área pública, e simplesmente virar as costas achando que jáfez o seu trabalho, quando você voltar lá, depois de algum tempo, difcilmenteencontrará sua muda, muito menos uma árvore. Ou seja, embora possa te dar

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uma sensação de grande satisfação na hora, aquele sentimento que você é umherói e acabou de salvar o mundo, a verdade é que plantar uma árvore e nãocuidar dela é praticamente o mesmo que não plantar nada. E é preciso cuidar deverdade, o que signifca visitas frequentes, e intervenções frequentes, comocuidar da cerca de proteção da muda, refazer a bacia, aplicar cobertura de solo,adubação, regas, proteção contra pragas, etc. por um perívodo de alguns anos. Aívsim, você poderá dizer que fez alguma coisa.

Recomendação importante: não se apegue ao que não é seu.

Muitas vezes, quando queremos plantar mas não temos espaço, começamosa observar os espaços públicos e privados, como ruas, praças e parques, quintaissubaproveitados dos vizinhos e terrenos baldios, etc. Embora muitas vezes sejapossívvel utilizar esses espaços, conforme discutido acima, você tem que tersempre em mente que as pessoas em geral muitas vezes não compartilham dosseus pontos de vista, até por falta de conhecimento e consciência ambiental. Porisso, o que muitas vezes acontece é que, embora você consiga autorização parauso de espaços que não são de sua propriedade, ao iniciar atividades que não sãocomuns na área, muitas vezes isso gera insatisfação em outras pessoas, o que criatensões que podem lhe causar problemas. Há vários motivos prováveis para isso,incluindo:

• Questões culturais arraigadas, em relação a um senso estético estabelecidoem que a aridez e monotonia são valorizadas sobre a vida e aprodutividade.

• Questões relativas ao ego: a atitude medívocre caracterívstica de pessoasineptas que nada de produtivo fazem, e sentem terrívvel tensão psicológicaao verem outras pessoas fazerem coisas boas e belas, e se sobressaívrem —trocando em miúdos, inveja.

• Medo da perda do controle: se alguém é dono, detém a posse ou de algumaforma um controle sobre uma área qualquer, essa pessoa muitas vezes terámedo que você, ao cuidar daquela área e torná-la produtiva, lhe roube aautoridade ou controle sobre o local, etc.

Por esses e outros motivos, infelizmente é muito comum que, embora vocêtenha obtido consentimento para uso de uma área, a qualquer momento nodesenvolvimento do seu projeto esse consentimento seja retirado, seja porinsatisfação do próprio dono, ou devido a pressões por parte de outros. Sendoassim, você tem que ter sempre em mente que, não importa o quão lindasestejam suas plantas, seus canteiros, enfm, tudo o que você fez e o amor quevocê depositou ali, alguém poderá vir e simplesmente destruir tudo, a qualquermomento, talvez antes mesmo que você consiga colher qualquer coisa.

Isso não deve te desanimar ou impedir de ao menos tentar usar essesespaços com fnalidades produtivas, contanto que você não crie grandes

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

expectativas, não faça planos de longo prazo, e não se apegue àqueles pedaços dechão e aquelas plantas que você plantou, pois, caso o faça, estará plantandodesilusão.

Preocupações quanto a contaminação do solo

A utilização de solos urbanos para produção de alimentos levanta umaquestão importante a respeito da segurança para a saúde humana do consumodos alimentos produzidos no tocante à contaminação quívmica por poluentes dosolo decorrentes da atividade humana, particularmente metais pesados.

Trata-se de uma preocupação pertinente, pois é sabido que os nívveis demetais pesados são comumente aumentados no ar, poeira e solos das cidades. Asfontes principais desses metais são o tráfego de veívculos automotores, devido ametais pesados presentes em combustívveis fósseis, e atividades industriais,presentes e passadas, na área.

Porém, embora haja de fato uma elevação nos nívveis desses elementos nascidades, na grande maioria dos casos eles se mantêm dentro de limitespermitidos para solos agrívcolas, e não representam riscos signifcativos à saúde.*

Mesmo quando presentes em nívveis elevados, o maior risco à saúde humanareside no consumo inadvertido de solo, e não de plantas, já que a absorçãodesses metais pelas plantas é baixo. Portanto, medidas básicas de higienealimentar, ou seja, lavar as frutas e verduras antes de consumir, são normalmentesufcientes para eliminar riscos de contaminação humana.

Ainda assim, é importante adotar outras práticas de descontaminação dosolo, sempre que se pratica a agricultura urbana. Uma prática essencial é acorreção da acidez do solo, ou seja, a elevação do pH para a faixa de 6,5 a 7 pelaadição de calcário ou cinzas, pois isso causa a imobilização dos metais reduzindosua biodisponibilidade para as plantas. Outra prática que pode ser usada comefcácia para remediação com solos contaminados por metais pesados é acompostagem — tanto a adição e incorporação de composto maduro ao solocomo a co-compostagem do solo juntamente com resívduos orgânicos foramdemonstradas como efetivas na imobilização de metais na biomassa do solo,eliminando riscos à saúde.**

Os riscos de contaminação são maiores em locais altamente poluívdos, ouseja, ao lado de vias de tráfego intenso e as proximidades de áreas industriaiscontaminadoras com metais pesados, como indústrias metalúrgicas, fundições,áreas de mineração ou próximas a usinas termelétricas, etc. Nesses casos, érecomendável fazer uma análise do solo para determinação de metais pesados

* Hough, R. T. et al. Assessing potential risk of heavy metal exposure from consumption ofhome-produced vegetables by urban populations. Environmental Health Perspectives.2004.** Barker A. V.; Bryson, G. M. Bioremediation of heavy metals and organic toxicants bycomposting. The Scientific World Journal. 2002.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

antes de começar a plantar, e avaliar opções de remediação em caso de nívveisaumentados. Porém, talvez seja melhor você pensar em se mudar dessa área, jáque essa contaminação traz riscos à sua saúde de outras formas, como pelaingestão, contato com a pele e inalação de ar e poeira com altos nívveis de metaispesados. Esses riscos são substancialmente maiores para crianças.*

Deve-se ressaltar, porém, que não há estudos epidemiológicos indicandoligação da agricultura urbana e consumo de seus produtos com aumento naincidência de quaisquer doenças causadas por metais pesados ou outrospoluentes urbanos.

Atuação na esfera pública

Até aqui, vimos discutindo coisas que você pode fazer sozinho ou numnívvel comunitário, em permacultura urbana — o que você pode fazer com a suacasa para torná-la mais sustentável, ou como produzir alimentos na sua casa esuas imediações. Mas a permacultura urbana certamente não pára por aív!

As cidades são uma realidade concreta e inescapável da nossa civilização. Eem geral elas são extremamente insustentáveis. Agora, há uma porção de coisasque podem ser feitas para tornar as cidades mais sustentáveis e mais produtivas,através da aplicação dos princívpios da permacultura. Cabe, portanto, aopermacultor urbano atuar também nesse nívvel coletivo mais amplo, como umaforça transformadora para melhorar a cidade e a vida das pessoas no tocante àsustentabilidade, qualidade de vida, qualidade ambiental, etc. Isso pode ser feitode diversas maneiras, seja de forma individual e voluntária, ou através deprestação de serviços e consultoria, atuando na conscientização e mobilizaçãosocial, talvez através de organizações não-governamentais; atuando em áreastécnicas dentro da esfera pública, em órgãos do governo, ou junto ao poderlegislativo, etc.

Alguns dos principais problemas das cidades no tocante à sustentabilidadejá foram discutidos, e propostas de soluções apresentadas, nos capívtulosanteriores. Por exemplo, a destruição do ciclo das águas nas cidades e formas derevertê-la, conforme discutimos no capívtulo 8 (“Água em Permacultura”), ou ogravívssimo problema da poluição das águas e desperdívcio de nutrientes pelosesgotos, tratados no capívtulo 11 (“Saneamento Ecológico”). Agora, há aindamuitas outras coisas que podem e devem ser feitas para que as cidades sejammais sustentáveis, e também mais saudáveis, humanas e agradáveis. Porexemplo, aumentar a efciência da reciclagem de resívduos sólidos urbanos, oureduzir a dependência do transporte motorizado individual, melhorando otransporte público e estimulando o uso da bicicleta como meio de locomoção, ou

* Sun, G. et al. Metal exposure and associated health risk to human beings by street dust ina heavily industrialized city of Hunan province, central China. International Journal ofEnvironmental Research and Public Health. 2017.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

ainda estimulando a instalação de sistemas solares fotovoltaicos ligados à rede(“on grid”), avançando assim na transição para uma matriz energética renovável,etc.

Agora, você pode contribuir para que essas e outras propostas se realizem,de diversas maneiras. Você pode levar propostas e cobranças às autoridadescompetentes — prefeitos e vereadores, por exemplo. Claro que tentar fazer issode forma individual será extremamente precário, com baixívssimas (na verdade,nulas) chances de sucesso; porém, se o fzer através de alguma associaçãocomunitária, ou algum outro tipo de mobilização social, como por exemploatravés de petições públicas, suas chances talvez sejam bem melhores. Isso passanecessariamente por um trabalho de divulgação de informações econscientização pública, que é sem dúvida uma atuação importantívssima,imprescindívvel do permacultor.

Outra forma de tentar intervir nas polívticas públicas é tornando-se vocêmesmo uma autoridade pública, seja como um profssional em algum cargopúblico com algum poder de decisão, ou mesmo candidatando-se a um cargoeletivo, levantando a bandeira da sustentabilidade, buscando apoio da populaçãopara esses projetos, de forma que possa, caso eleito, instituir polívticas públicasadequadas contemplando essas soluções para os problemas ambientais da cidade.

Agora, claro que deve-se ter sempre em mente que isso tudo é muito fácilde falar, mas difívcil de conseguir realizar, até porque depende das outraspessoas, que na sua grande maioria não estão sensibilizadas ou sequer cientes daseveridade da crise ambiental atual, e seus papéis nessa história, tendo portantooutras prioridades, muitas vezes bastante individualistas, egoívstas. Ainda assim, énosso dever tentar, pois se nós, permacultores, não o fzermos, quem o fará? Sónão se pode exagerar nas expectativas, e vincular a sua noção de sucesso,realização e felicidade a essas conquistas coletivas. A boa notívcia é que, mesmose nada disso der certo, ou seja, mesmo que você não consiga infuenciar aspolívticas públicas e resolver os grandes problemas de sustentabilidade de suacidade, ou obter avanços signifcativos no curto e médio prazo, ainda há muitascoisas que você pode fazer pela sua comunidade ou vizinhança sozinho, ouatravés de pequenas associações, muitas vezes informais. Além dos exemplos jácitados nas páginas anteriores, você ainda pode fazer trabalhos em escolas, porexemplo, coordenando atividades com os alunos, como horta orgânica ecompostagem, incluindo captação de água dos telhados para irrigação; tambémpode dar palestras sobre meio ambiente e sustentabilidade em escolas, igrejas,associações de bairro, etc. Ou mesmo formar um grupo ou cívrculo depermacultura, ou até um centro de permacultura, desempenhando essas e outrasatividades de forma coletiva, além de divulgar e difundir a permacultura. Issotudo representa um trabalho de base fundamental, pois você estará preparando oterreno para possibilitar uma evolução da sociedade, possibilitando umengajamento e uma adesão às causas da sustentabilidade no futuro.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

14ESTILO DE VIDA DAPERMACULTURA

Conforme já mencionado, a aplicação diligente dos princívpios dapermacultura às nossas escolhas e atitudes diárias invariavelmente faz com quetenhamos um estilo de vida mais natural, saudável e sustentável. A adoção doestilo de vida da permacultura é condição indispensável para alcançarmos asustentabilidade. Se a humanidade como um todo adotasse esse estilo de vida,jamais terívamos nos metido na arapuca em que hoje estamos; do mesmo modo,se todos passarmos a adotar esse estilo de vida, talvez possamos reverter nossocurso de colisão com o ambiente natural. Talvez essa seja nossa única chance desobrevivência, como espécie, a longo prazo, bem como a única chance depreservação da biodiversidade na Terra.

O estilo de vida da permacultura é caracterizado por:

• Vida simples, frugal, e natural, valorizando o essencial enquanto rejeitandoo consumismo e a artifcialização da vida, etc.

• Uma preocupação constante e medidas para evitar o consumodesnecessário ou excessivo de recursos (água, energia, alimentos, materiaisem geral), evitando o desperdívcio e a geração de resívduos (lixo, poluição doar e da água, etc.), fazendo ainda tudo o que estiver a seu alcance para queseus resívduos sejam efetivamente reciclados.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

• Uma busca contívnua pela reintegração com a natureza e seus ciclos.

• Trabalhar com a terra, visando a produção saudável de alimentos erecuperação ambiental.

• Foco nas relações cooperativas, ao invés de competição.

• Proatividade e engajamento, agindo na sociedade maior ao seu redor paraamplifcar o alcance e os efeitos positivos de suas ações e levarconhecimento, consciência e inspiração a mais pessoas, fortalecendo omovimento da permacultura.

A adoção do estilo de vida da permacultura é o ponto mais básico eessencial a qualquer permacultor, seja ele urbano ou rural, que deve ser sempreobservado, com grande seriedade. É também a porta de entrada à prática dapermacultura, pois consiste de hábitos e práticas que estão ao acesso de todosque aprendem os conceitos da permacultura — muito antes que tenhamcondições de produzir grandes quantidades de alimentos ou praticar recuperaçãoambiental em larga escala, etc. — servindo como um ponto de partida para umatransição a um modo de vida realmente sustentável.

Passo a passo

Há uma série de medidas importantívssimas que estão ao alcance depraticamente qualquer pessoa, e a transição para um estilo de vida, e umasociedade sustentável, deve necessariamente começar por esses pontos — nãoadianta nada você querer mudar o mundo, sem primeiro mudar a si mesmo.

Por exemplo, no primeiro dia você já pode começar a separar seu lixo emorgânico, recicláveis e não recicláveis (não é difívcil!). Reduzir seu consumo: nãocompre nada que não seja essencial. Não compre mais um par de sapatos, ouuma bolsa nova (com certeza você não está precisando!). Não compre um novoeletrodoméstico porque o antigo quebrou — leve-o para consertar. Observe se hálâmpadas acesas desnecessariamente, e apague-as. Tome um banho mais curto, efeche a água enquanto se ensaboa. Dê menos descargas durante o dia(certamente não é necessário dar a descarga a cada mero xixi!), etc.

No segundo dia, que tal tirar a poeira e encher o pneu da sua bicicleta... ebotá-la pra funcionar? Deixe o carro em casa, e vá ao supermercado pedalando,ou mesmo a pé — experimente, não vai machucar. Ao comprar alimentos, fujados que tem excesso de embalagem; melhor ainda, dê uma passada numa feiraou mercadão próximo à sua casa e experimente comprar tudo a granel — semembalagens! Arrume umas sacolas de compras de pano (pode ser de plástico,também, ou outros materiais), e leve-as sempre que for fazer compras. Nãopegue sacolinhas de supermercado descartáveis! Negue-se a pegá-las, e nuncaesqueça de levar sua própria sacola reutilizável. Faça disso uma questão dehonra. Mas, caso tenha que pegar (esqueceu a sacola de compras, ou surgiu uma

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

compra emergencial), sem crise: use-a, dobre-a e guarde-a na bolsa ou mochila.Da próxima vez, não pegue outra — reutilize a mesma! e assim por diante,enquanto ela durar. E vai durar muitas vezes, pode ter certeza. Isso também valepara o saco de pão: após comer os pães, não jogue o saquinho fora — leve-o denovo à padaria ou mercado, e ponha os pães novos no mesmo saquinho. Façaisso todos os dias, até que rasgue e não mais seja possívvel. Você se surpreenderácom quantas vezes vai conseguir reusar o saquinho — normalmente, cerca deum mês inteiro. E você fcará pensando: “e eu vim jogando fora todos essessaquinhos perfeitamente bons, esses anos todos!”

Aliás, abandone completamente a cultura do descartável. Ao comprarqualquer coisa, pense e assuma a responsabilidade por todo o impacto ambientalenvolvido, desde a extração das matérias primas, passando pela manufatura,transporte e comercialização, até o destino do bem no fnal de sua vida útil, aenergia que foi gasta, poluição que foi gerada, etc. Pense em tudo isso, e sócompre o que for essencial.

No terceiro dia, não consuma alimentos processados. Faz parte do estilo devida da permacultura procurar ter uma alimentação saudável, baseada emprodutos naturais, locais e, sempre que possívvel, orgânicos; consumir muitasfrutas, verduras, legumes e grãos integrais, e menos carnes, leite e derivados eprodutos refnados, como açúcar e farinha branca, por exemplo. Permacultoresem geral não têm o hábito de consumir alimentos processados eultraprocessados, como biscoitos, salgadinhos, refrigerantes e quaisquer tipos de“fast food”, por saberem que não são bons para a saúde humana ou do planeta.

“Acredite no poder transformador de umconjunto de atitudes pequenas e simples”

Faça de todas essas mudanças hábitos. É justamente aív que está a forçatransformadora dessas pequenas atitudes. Você se sentirá muito bem com seusnovos hábitos. Você provavelmente notará uma reação de confusão eperplexidade de algumas pessoas ao seu redor, ao verem suas atitudes, mas nãodeixe isso te incomodar ou desencorajar! Mais cedo que você imagina, você veráalgumas delas seguindo o seu exemplo, e isso fará você se sentir melhor ainda. Évocê fazendo as pessoas pensarem, ajudando o movimento a crescer.

Aliás, aqui vale um parêntese: não fque se gabando de sua consciência ouseus hábitos sustentáveis; não tente impor isso às outras pessoas ao seu redor,pois essa é uma atitude arrogante, tívpica de pessoas imaturas e inseguras quequerem chamar a atenção e parecer superiores aos demais — é assim que aspessoas lerão seu comportamento, e isso só servirá para fechar portas, ou seja,fazer com que não te levem a sério, o que consequentemente as impedirá de sesentirem inspiradas por seu exemplo, sendo portanto totalmentecontraproducente. Apenas faça a sua parte, e deixe que seu exemplo (e não

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

palavras) faça o resto.

Assimiladas essas mudanças, comece uma composteira em casa e passe acompostar todos os seus próprios restos orgânicos! E que tal plantar algumasverduras e fores no seu quintal, no próximo fm de semana? Ou mesmo naquelecanteirinho esquecido na entrada do prédio, ou em vasos em sua própria janela...

Plante em caixinhas de leite vazias as sementes das frutas que consumir.Acompanhe a germinação e crescimento de suas mudas (seus bebês!), e depoisplante-as em algum lugar. Que tal revitalizar uma praça abandonada no seubairro? Convide amigos, limpe a praça, apare a grama, plante as mudas, ponhauma plaquinha com o nome da espécie. Volte para regar, umas 2 vezes porsemana (esse assunto já foi discutido no capívtulo anterior, “PermaculturaUrbana”).

Outra coisa muito legal de se fazer é estudar sobre as espécies da fora dasua região. Tenha o hábito de prestar atenção nas árvores, inclusive as usadas naarborização urbana e parques da sua cidade, aprendendo a identifcá-las.Pesquise, e organize um calendário da época de foração e frutifcação dasárvores nativas da sua região, isso ajudará muito a reconhecê-las. Coletesementes, produza mudas para usá-las em seus projetos. Participe de grupos decompartilhamento de sementes e mudas, se engaje em projetos dereforestamento, se existentes na sua área, participando com trabalho voluntário etambém contribuindo com suas próprias mudas!

Pense em captar e armazenar água de chuva na sua casa, na medida dopossívvel. Comece pequeno, com uma bombona colocada em baixo da calha, e váplanejando sistemas mais efetivos.

Voltemos agora à questão da separação do lixo na sua casa. Agora, você jáse acostumou a separar os orgânicos (que vão para sua composteira) e os secos,e já viu que não machuca, não é mesmo? Agora, que tal melhorar isso aindamais? Não se limite a separar o lixo seco do orgânico — separe por material:papel, plástico, vidro, metal e, por fm, o que não pode ser reciclado. Aliás,analise bem esses itens (que não podem ser reciclados) — será que não dá parasubstituir, ou mesmo simplesmente deixar de consumi-los?

Com seus novos hábitos, verá que a quantidade de lixo sendo produzida foireduzida dramaticamente. Então, você pode ir mais além, e separar ainda melhorseu lixo: papéis brancos separados do papelão; vidros também, separados porcor; aço separado do alumívnio, etc. Eles serão reciclados separadamente, então,quem melhor para separa que você mesmo, a fonte geradora desses resívduos?

Caso você gaste muito tempo no trânsito indo ao trabalho (ou faculdade,etc.), pense em se mudar para perto do emprego, ou arrumar um emprego pertode onde mora, de forma que possa ir a pé ou de bicicleta, evitando assim o gastoexcessivo de energia e tempo com locomoção, evitando também toda a poluiçãoe outros impactos negativos envolvidos. Não tenha pressa em fazer mudanças,

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

mas vá pensando, avaliando opções. Caso seu emprego ou área de estudo seja emum ramo ou função que seja contra seus princívpios, por exemplo por serintrinsecamente insustentável, considere mudar de ramo. Mas mantenha aprudência, não faça movimentos bruscos; só não se deixe cair em estagnação.Olhe em novas direções.

Há diversas formas de ter a permacultura como seu estilo de vida, mas amelhor forma de começar é assim, com o que é fácil e está imediatamente ao seualcance, e avançando passo a passo. A partir daív, há diversos caminhos possívveis:permacultura rural ou urbana, educação, prestação de serviços e consultoria,projetos ambientais ou socioambientais através de ONGs, etc. Examine asopções, entre em contato com grupos já existentes, converse com as pessoas.Comece a bolar sua própria estratégia para passar da situação em que você estápara a que deseja estar. Esse processo de transição, é normal que leve anos, masé muito melhor do que se atirar em algo precipitadamente, só para depois morrerna praia. Ninguém vira um “herói da sustentabilidade” da noite para o dia! Épreciso jogar fora o imediatismo, domar a ansiedade. Toda transformaçãoprofunda leva tempo. O importante é não confundir paciência com comodismo:a primeira é uma virtude necessária, enquanto a última é um vívcio mortal. Cadapasso pequeno na direção certa é uma vitória. O importante é a direção, e não avelocidade.

Precisamos de mais pessoas que fazem da permacultura seu estilo de vida,que consumam menos e poluam menos, que em suas pequenas atividades do diaa dia preservem e ajudem a recuperar os ecossistemas, e que inspirem outros,fortalecendo assim o movimento — ao invés de um monte de gente apenasfalando de sustentabilidade, sem mudar em nada seus hábitos, como muitasvezes vemos por aív.

Trabalhar a terra

Muitas vezes encontramos pessoas com um discurso super-empolgadosobre a permacultura, e muitas vezes até aderem a muitas das práticas descritasacima, porém sem praticamente nenhum trabalho com a terra, e portantonenhum esforço para alcançar uma produção relevante, ou trabalhos derecuperação ambiental (e.g. reforestamento). Embora possa-se argumentar queisso ainda é bem melhor que nada, deve-se ressaltar que esse tipo de adesão“pela metade” à permacultura jamais será sufciente para resolver nenhum dosgraves problemas que afigem a humanidade. É preciso lembrar que, no inívcio, a permacultura signifcava “agriculturapermanente”, e embora o sentido tenha sido expandido para “culturapermanente”, o trabalho com a terra para produzir alimentos e restaurarecossistemas continua sendo um ponto central, indispensável à permacultura.Sendo assim, o estilo de vida do verdadeiro permacultor é de trabalhar com a

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

terra, mão na terra e pé na terra. E trabalhar pesado, pois só assim se alcançaráqualquer resultado. Caso contrário, não se pode dizer que a pessoa leva apermacultura a sério.

Um pé lál, outro cá

Agora, é claro que não se pode sugerir que todas as pessoas evacuem ascidades e mudem-se para o campo para viverem totalmente autossufcientes.Isso seria não apenas impossívvel ou inviável, como também, sob a maioria dosaspectos, indesejável. Se todos largassem seus empregos urbanos (claro que issojamais aconteceria, mas apenas como suposição), isso signifcaria a perda detodas as tecnologias e um retorno à idade da pedra! Um retorno do qual poucossobreviveriam, diga-se de passagem. Então, não se está sugerindo de formaalguma o abandono da civilização, e sim uma reinvenção da mesma.

O que quero dizer é que todas as profssões (tá legal, nem todas, mas amaioria) continuarão sempre sendo importantes ou necessárias. Portanto, nãofaz parte da proposta da permacultura abandonar essas atividades. O problemaé quando a norma é a pessoa dedicar-se integralmente a um emprego urbanoqualquer, dependendo de seu salário para comprar todas as coisas de queprecisa, para suprir todas as suas necessidades (e também seus excessos esuperfuidades), enquanto a natureza é massacrada sem que ninguém seenxergue como responsável. Ou seja, o que se está propondo é um equilívbrioentre atividades para a provisão direta ou indireta das necessidades humanas deforma sustentável, preservando e restaurando a terra e os ecossistemas, e asatividades convencionais necessárias aos aspectos positivos da vida civilizada.

Conforme discutido no Capívtulo 9 (“Permacultura Rural”), a manutençãode uma profssão convencional é desejável e muitas vezes mesmo necessária nafase de preparação e também por toda fase de estabelecimento de seu projetode permacultura, e sua transição para esse estilo de vida, sendo que, uma vezcompleto seu processo de transição e amadurecido seu projeto, você pode optarpor continuar se dedicando a esse emprego, ofívcio ou atividade, em caráter detempo parcial, conciliando com o trabalho com a terra e outras atividadespermaculturais, ou deixar de vez a vida antiga e dedicar-se inteiramente àpermacultura.

Deve-se ressaltar que algumas profssões e atividades são particularmentecompatívveis com a proposta da permacultura por poderem contribuir para asolução de problemas relativos à atual crise ambiental e civilizacional. Issodepende muito da maneira que você trabalha. Por exemplo, você pode ser umengenheiro que desenvolve tecnologias de reciclagem, ou desenvolver maisprodutos com obsolescência programada, reforçando o consumismo edesperdívcio; você pode ser um professor que traz informações relevantes aosseus alunos e estimula o pensamento crívtico, ou apenas forçá-los a decorar ummonte de informações inúteis ou mesmo falsas para passar nas provas; pode ser

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

um arquiteto dedicado às construções sustentáveis ou envolvido na construçãode arranha-céus luxuosos para corporações bilionárias; pode ser um polívtico ougestor público consciente a respeito de questões ambientais e sociais, ou apenaspraticar demagogia, populismo e atos corruptos para se manter o poder eenriquecer ilicitamente, etc.

Outras profssões talvez não tenham contribuição a dar especifcamenteem relação à crise ambiental (por exemplo, médico, contador, mecânico,dentista, eletricista, bancário, etc.); porém, são úteis à sociedade e podem serúteis também para viabilizar a sua transição para uma vida na permacultura, oque é ótimo. Infelizmente, há também atividades que são inerentemente nocivasao meio ambiente, ou não contribuem de qualquer forma positiva para asociedade, ou são francamente degradantes, etc. Atividades assim, que ferem aséticas da permacultura e a moral em geral, não podem ter qualquer lugar nomovimento da permacultura.

Proatividade e engajamento

Nós, permacultores, não fcamos parados, esperando as coisasacontecerem para só então nos adaptarmos; tampouco fcamos apenasobservando e criticando, e reclamando dos caminhos da humanidade — nósassumimos a responsabilidade de fazer acontecer, de sermos nós mesmos amudança que queremos ver no mundo. Proatividade faz parte do estilo de vidada permacultura.

Agora, como sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só, éimportante que sonhemos juntos, para que esse sonho possa se tornar realidade!Ou seja, temos que nos unir, buscar a cooperação, tanto entre permacultorescomo entre esses e a sociedade em geral.

Você até pode trabalhar sozinho, isoladamente, mas é muito melhor quevocê estabeleça redes de trabalho com outras pessoas que têm interesses afns.Estabeleça contatos com outros permacultores para favorecer um fuxo deideias, informações, intercâmbio de trabalhos, trocas de sementes, etc.

Busque também um engajamento recívproco com a sociedade maior que ocerca; procure participar de associações ou organizações não governamentais,formais ou informais, ou mesmo entidades governamentais, se possívvel, criandoou participando de projetos socioambientais, como educação ambiental,projetos de reforestamento e recuperação de mananciais; fazendo atividadesem escolas e outros espaços comunitários, como hortas orgânicas,compostagem, etc.; organize ou participe de mutirões de revitalização deparques e praças, mobilize a comunidade. Dê palestras, escreva matérias ereportagens para jornais, revistas e rádios locais, fale sobre a crise ambiental e apermacultura, mostrando resultados de seu próprio trabalho, buscando inspirar,engajar a comunidade e contribuir para o fortalecimento do movimento.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

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Recomendação aos jovens: não larguem os estudosl, não desistam dafaculdade!

Muitas pessoas desenvolvem uma consciência aguda da atual criseambiental e civilizacional e tomam contato com a permacultura enquantocursam uma faculdade, ou estão se preparando para tal. Isso pode se dar porvários motivos: nessa época, o jovem já atingiu maturidade suficiente econtato com o mundo para perceber que algo está muito errado, e muitasvezes o próprio curso, ou seja, as coisas que lhe são ensinadas, causamgrande decepção e o ajudam a ver isso. Nesses casos é muito comum apessoa se sentir desestimulada e mesmo arrependida de estar naquelecurso, e ter vontade de abandonar os estudos e aquela carreira, por descobrirque aquela não é a vida que deseja para si.

Porém, embora possa ser realmente desestimulante aprender tantascoisas aparentemente inúteis e formas insustentáveis de se viver a vida efazer as coisas, nada disso significa que você terá que fazer as coisasdaquela maneira. Na verdade é importante, útil aprender essas coisasjustamente para entender mais profundamente como as pessoas em geralfazem, como a sociedade funciona e às vezes até mesmo justamente paraaprender o que não fazer. Mas, no futuro, você provavelmente ficará surpresocom quantas vezes informações aprendidas na faculdade serão úteis em suavida, inclusive em suas atividades permaculturais. Muito provavelmente serátambém muito importante no começo de sua trajetória como permacultor, poraumentar suas chances de emprego e renda que possibilitarão levantarcapital para comprar terra e fazer as benfeitorias em seu próprio projeto depermacultura rural ou urbana (sem dinheiro, tudo fica muito mais difícil, senãoimpossível). Conhecimento e capacitação técnica formal são vitais tambémpara realizar atividades permaculturais em áreas técnicas específicas elegalmente regulamentadas que exigem nível de bacharelado, comoengenharia, arquitetura, biologia ou ecologia, gestão ambiental, etc.

Por isso, faço esta recomendação, e de fato este apelo aos jovens: nãodesistam dos estudos, embora seja uma boa ideia direcioná-los para áreasparticularmente aplicáveis à permacultura. A firmeza em não esmorecerfrente a uma situação transitória desconfortável, porque isso te abrirá portase ampliará suas possibilidades de sucesso, na verdade faz parte daquelepacote essencial de virtudes necessárias à permacultura — seriedade,tenacidade, persistência, etc. Essa atitude de firmeza é essencial não apenaspara o seu sucesso pessoal na permacultura (de fato qualquer coisa na vida),mas também para o sucesso do próprio movimento da permacultura, emcumprir sua nobilíssima missão. Como disse Bill Mollison, “Precisamos deespecialistas de todas as áreas na permacultura.”

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 15. Comunidades em Permacultura

15COMUNIDADES EMPERMACULTURA

As pessoas que abraçam a permacultura o fazem porque desejam alcançarum estilo de vida natural, simples e saudável, em contato e harmonia com anatureza e outros seres humanos, preservando e recuperando ecossistemas.Esses objetivos de vida são radicalmente diferentes, senão mesmo opostos aosda imensa maioria das pessoas, consideradas “normais” pela sociedade em queestão inseridas, que são voltados para para o crescimento material, competição,consumo, manutenção de aparências e muitas vezes hedonismo — objetivosque evidenciam uma visão de mundo marcada pelo individualismo.

Pessoas que compartilham dos objetivos da permacultura existem,espalhadas pelo mundo. Se considerarmos, apenas para efeitos ilustrativos, jánão há dados disponívveis, que somos 0,1% da população mundial, dada umapopulação total de mais de 7 bilhões, isso signifca que somos mais de 7milhões de pessoas que desejamos uma vida em harmonia com a natureza! Oque certamente não é pouco. Agora, o problema é que estamos diluívdos no meiode uma enorme massa de pessoas ignorantes e inconscientes em relação à atualcrise ambiental e civilizacional e suas terrívveis consequências.

E é justamente isso que nos enfraquece — estamos isolados uns dosoutros e cercados de pessoas que não nos entendem, que estão o tempo todotentando nos convencer que somos “malucos”, idealistas, que nossas

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preocupações são infundadas, nossas expectativas não são realistas, que o quequeremos fazer nunca vai dar certo, etc. Podemos muitas vezes passar a vidatoda sem jamais encontrar ou conhecer alguém que compartilhe de nossasideias, valores e visões, o que certamente é extremamente desanimador.

Existe uma enorme pressão por parte das pessoas — familiares, amigos,colegas, patrões, enfm, da sociedade em geral para que você se adeque à norma— a forma como você se veste, o carro que você tem, seus papos, suas ideias,etc., tudo tem que estar dentro de um conjunto de opções pré-defnidas,consideradas “normais”, dentre as quais você tem “liberdade” para escolher. Sepisar fora da linha, te olham torto; e se “pisar muito na bola”, você é perseguido,ou simplesmente excluívdo. Todos que não se adequam às normas implívcitasimpostas pela sociedade sentem o peso dessa pressão. Frente a isso, hábasicamente dois caminhos possívveis: ceder, ou não ceder à pressão, ou, emoutras palavras, o caminho da submissão e o da “rebeldia”.

Muitos acabam cedendo às pressões da sociedade para se conformarem aosseus ditames de normalidade, e por isso acabam padecendo de uma sívndromechamada de normose, caracterizada por depressão, baixa suto-estima, etc.,levando muitas vezes a tendências destrutivas, como a misantropia e mesmotendências suicidas.

Por outro lado, os que não cedem à pressão e se mantém féis às suaspróprias essências muitas vezes acabam se isolando (ou sendo isolados), o quefatalmente resulta em infelicidade crônica, já que ninguém pode ser felizsozinho. Porém, basta você encontrar alguém, ou de preferência um grupo depessoas que compartilham de seus pontos de vista e ideais para que vocêmelhore instantaneamente! Naquele momento, toda a pressão da sociedadetorna-se algo distante, irrelevante, e você se sente imensamente fortalecido,passando a olhar com esperança para a possibilidade de um futuro empolgante, eum caminho excitante para chegar até ele.

Se é o isolamento que nos enfraquece, então somente através da uniãopodemos nos fortalecer. A união possibilita o fuxo de ideias, que leva aoamadurecimento; a troca de experiências, que ensina e encoraja; ocompartilhamento de trabalho, que o torna mais leve e produtivo, e o convívviosaudável e respeitoso, que possibilita uma vida feliz. Daív decorre a importânciado conceito de comunidades em permacultura.

Existem muitas formas de você se inserir em algum tipo de grupo que dealguma forma represente uma comunidade de pessoas; todas essas formas sãoválidas, e se complementam.

Comunidades virtuais

A forma mais fácil e acessívvel são comunidades virtuais, através dainternet. Por exemplo, redes sociais têm inúmeros grupos abertos de

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permacultura, com milhares de membros. Outro exemplo são fóruns depermacultura na internet, sendo que alguns deles são ligados a centros einstitutos de permacultura bastante reconhecidos.

Quando falamos de comunidades virtuais de permacultura, muitos torcemo nariz, julgando que isso não conta, pois não é “real”. E de fato, se a únicapermacultura que você faz é através da internet, isso certamente não farádiferença nenhuma em sua vida, e muito menos no mundo. Assim mesmo, éimportante não subestimar a utilidade dessa ferramenta. Para muitas pessoas,essa será a única forma de romper a barreira inicial de isolamento, e entrar emcontato com outras pessoas envolvidas com a permacultura, especialmente noscasos, infelizmente muitívssimo comuns, em que todas as pessoas do seu convívviosocial, as pessoas ao seu redor, não conhecem ou sequer ouviram falar dapermacultura. Agora, basta entrar em algum grupo ou fórum, e você estaráinstantaneamente em contato com uma infnidade de pessoas que praticam apermacultura em diversas partes do mundo, e poderá também descobrir pessoasna sua região, ou mesmo na sua própria cidade. A partir daív, você pode passarpara encontros fívsicos, reais. Essa ferramenta ainda abre inúmeras outras portas:trocas de ideias, fuxo de informações, inclusive publicações e outros materiaisde estudo, divulgação de eventos como cursos, palestras, mutirões, etc., etambém vivências e oportunidades de voluntariado para aprendizado prático.

Há que se fazer uma ressalva: dos milhares de membros que participamdessas comunidades virtuais, apenas uma minoria efetivamente pratica apermacultura de fato em qualquer grau, enquanto a maioria são apenas pessoasinteressadas ou simpatizantes pela permacultura. É importante ressaltar que omundo não precisa de mais permacultores virtuais, ou qualquer outro tipo de“guerreiros dos teclados”. Ler, publicar e comentar compulsivamente em redessociais é uma forma tívpica dos dias atuais de não fazer nada e sair com aimpressão que faz muito, e é vital que você evite esse vívcio! Mas insisto que osmeios virtuais são ferramentas úteis, desde que usados de forma adequada.

Associações

No capívtulo 13 (“Permacultura Urbana”), discutimos formas de engajar acomunidade local em atividades permaculturais, ou seja, projetos ambientais esocioambientais tais como revitalização de parques e praças, talvez inclusive comprodução de alimentos; hortas em escolas ou em áreas subaproveitadas,atividades de educação ambiental, etc., que podem ser feitas através deassociações informais ou formais (ONGs).

Trabalhos em conjunto, voltados para o bem comum e da natureza,geralmente conquistam a simpatia de todos. Isso faz com que as pessoas refitame passem não só a entender e respeitar, como também admirar seu trabalho, suasmotivações, enfm, seus pontos de vista. Muitas pessoas aderirão às suas causas e

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às suas atividades, inspiradas pelas suas ações, muito mais que pelas suaspalavras

Esses trabalhos de mobilização da sociedade local são muito importantespois aproximam as pessoas, formando um verdadeiro senso de comunidade.

Ecovilas

Quando se fala em comunidades de permacultura, normalmente a ideia quevem à cabeça são grupos de pessoas, permacultores, vivendo em assentamentos,geralmente na zona rural, onde buscam uma vida autossufciente e realmenteintegrada à natureza, pela aplicação maciça dos princívpios e técnicas dapermacultura — ou seja, uma ecovila.

Uma ecovila é uma comunidade intencional de pessoas que buscam umavida simples, natural e saudável, em contato e harmonia com a natureza e outrosseres humanos.

A “cola” da ecovila

Chama-se de “cola” um componente ideológico em comum que serve deelo, de ligação entre os membros de uma comunidade intencional, e que de certaforma a defne. Pode ser uma linha espiritual ou religiosa (e.g. Amish, HareKrishna, Santo Daime, mosteiros de diversas denominações religiosas, etc.),ideológica (e.g. anarquismo, comunalismo, naturismo, liberaçãoanimal/veganismo, etc.), entre outras visões de mundo. A cola das ecovilas é apermacultura. Nada impede que uma comunidade intencional tenha mais deuma cola.

O que tem em uma ecovila?

Uma ecovila é essencialmente uma vila, um assentamento humanocoletivo, e portanto terá pessoas, habitações e sistemas produtivos. Agora,basicamente tudo relacionado à permacultura pode e deve estar presente em umaecovila. Pode-se dizer que quanto mais princívpios da permacultura estiverem emuso, e com maior intensidade e efciência, mais “eco” será a vila. São exemplos:bioconstrução, saneamento ecológico, produção orgânica de alimentos, captaçãoe uso de água de chuva, minimização da geração de lixo e poluição em geral,minimização do consumo de energia através do uso consciente (efciente) epossivelmente uso de fontes alternativas, conservação e recuperação ambiental,como reforestamento, agroforestas e recuperação de nascentes, economiasolidária, etc.

Outras coisas, como atividades comerciais discutidas mais adiante, tambémpodem estar presentes. Dependendo do tamanho e maturidade de uma ecovila,

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ela pode também contar com uma escola própria para servir primariamente àscrianças da própria comunidade. Nessas escolas, normalmente se adotampedagogias alternativas e conteúdos diferenciados, em certo grau, da educaçãoformal convencional, em concordância com as visões de mundo dos membros daecovila.

Do que vive uma ecovila?

A viabilidade econômica é um dos pontos principais para o sucesso dequalquer projeto de ecovila.

Alguns permacultores têm como foco principal a autossufciência, mas nemtodos. Também há os que prefram manter-se integrados à economia demercados, ou seja, produção, venda e consumo de bens e serviços, mas comcompromisso real com a sustentabilidade e preservação da natureza, e ética notrato com as pessoas. O mesmo pode-se dizer das ecovilas.

Mesmo que você tenha como foco a autossufciência, é necessário ter emmente algumas coisas:

• Autossufciência total, à la “Famívlia Robinson”, não é um objetivo realista.Portanto, quando falamos de autossufciência estamos falando em níveis deautossuficiência, ou seja, suprir tanto quanto possível suas própriasnecessidades, portanto dependendo o mínimo possível de bens e serviçosexternos.

• Independentemente do nívvel de autossufciência desejado, levará tempopara alcançá-lo, e estamos falando de vários anos. Portanto, nesse perívodovocê vai necessitar de outras atividades econômicas, fontes de renda, etc.,para garantir sua sobrevivência. Essas atividades podem ser gradativamentereduzidas ou abandonadas, conforme você aumenta seu nívvel deautossufciência.

• Para efeitos práticos, pode ser considerado autossufciente o permacultorque vive exclusivamente de sua produção de alimentos e outros produtos,pelo consumo de sua própria produção e venda ou troca de excedentes, semnecessidade de quaisquer outras atividades remuneradas ou fontes de renda,e consumindo minimamente produtos externos.

Sendo assim, não importa se você ou sua ecovila têm um foco emautossufciência ou não, será sempre necessária uma ou mais fontes de renda,pelo menos na fase de estabelecimento, que poderão ser mantidas, alteradas oudescontinuadas com o desenvolver do projeto, conforme discutimos no capívtulo9 (“Permacultura Rural”, no item “Estabelecendo um projeto de permaculturarural”). As opções de atividades econômicas que podem ser desenvolvidas sãopraticamente ilimitadas, mas podem não ser nada óbvias, e saber escolher (ouinventar) e desenvolvê-las economicamente é questão crucial para a

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sobrevivência da ecovila e seus membros.Claro que as atividades ideais ou viáveis variarão de acordo com uma série

de fatores, como: as potencialidades do terreno, mercados disponívveis, talentos,conhecimentos e interesses dos membros, capital disponívvel, etc. Porém, háalguns ramos de atividade que são notoriamente comuns em ecovilas. Dentreeles, podemos citar: hospedagem ecológica e educação ambiental, eventos comocursos e palestras, terapias holívsticas, artes e ofívcios em geral, além de empregosexternos em ramos convencionais.

É muito importante que a fonte de renda tenha compatibilidade com aspropostas da permacultura, por simples questão de coerência. Por exemplo, nãoadianta nada você morar em uma ecovila e sair todo dia para trabalhar numacorporação ou banco praticando capitalismo predatório, ou com venda deagrotóxicos, desenvolvimento de transgênicos, marketing de alimentos infantisultraprocessados, setor energético promovendo uso de combustívveis fósseis, etc.

Como são organizadas ecovilas?

Embora os detalhes possam variar muito, existem basicamente três formasde organização de ecovilas, em relação à propriedade da terra e tomadas dedecisões: propriedade compartilhada, propriedade centralizada e propriedadeindividual.

Propriedade compartilhada

Neste modelo, que é semelhante a um condomívnio, um grupo de pessoasadquire em conjunto um imóvel para nele estabelecer uma comunidade.Normalmente, as regras são pré-defnidas em um estatuto, que prevê a realizaçãode assembleias para a defnição de pontos mais importantes, e também a formade resolução de confitos, adesão e saívda de membros, etc. Via de regra, decisõesque afetem o conjunto da comunidade são tomadas por consenso entre osmembros, nas assembleias.

Este modelo pode ser descrito como um sistema onde “nada é de ninguéme tudo é de todo mundo”, pelo menos em relação à terra e edifcações, e asdecisões são tomadas pela vontade da maioria. Este modo de organização atraimuitas pessoas adeptas ou simpatizantes do comunalismo.

Vantagens da propriedade compartilhada:

• Muitos identifcam este modelo com um forte senso de vida emcomunidade.

• A compra compartilhada da terra pode tornar o ingresso em uma ecovilamais acessívvel (barato) para cada um dos membros, comparativamente à

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propriedade individual.

Desvantagens da propriedade compartilhada:

• A formação deste tipo de ecovila encontra um obstáculo inicial muitogrande: a difculdade de se formar um grupo e chegar a um acordo paraformar a ecovila, já que há muitos pontos a serem defnidos, como: ondeserá a ecovila? qual será o tamanho do terreno? qual o valor máximo porpessoa? quantas pessoas? quais atividades serão desenvolvidas? etc.

• Tendência de ocorrerem muitos confitos. Decisões por consenso signifcamo cerceamento da liberdade individual, pois muitas vezes a pessoa desejafazer algo, mas é vetado na assembleia, enquanto é obrigada a fazer outrascoisas contra sua vontade, pois assim foi decidido pela maioria, etc.,levando a frustrações que tendem a acumular-se ao longo do tempo,enfraquecendo a comunidade. Além disso, frequentemente ocorrem váriostipos de parasitismo, por exemplo pessoas que nunca aparecem para plantarou cuidar, ou pegar no trabalho pesado, mas estão sempre lá para colher,comer e usufruir; ou ainda, pessoas que trazem visitas indesejáveis, que seinstalam nas áreas de uso comum causando desarmonia no grupo, etc.Esses fatores muitas vezes contribuem para uma certa instabilidade daecovila, causando uma rotatividade elevada de seus membros, e muitasvezes levam a um fm precoce da comunidade.

Propriedade centralizada

O cenário é mais ou menos assim: uma pessoa possui um sívtio ou fazenda,talvez uma herança, e decide ali fazer uma ecovila. Ela elabora um estatuto, comdireitos e obrigações de cada membro, forma de ingresso e saívda, etc., e começaa aceitar membros, mediante algum tipo de seleção, talvez envolvendo umperívodo de experiência, e geralmente também o pagamento de um depósito,chamado de cota, que pode ser retornável ou transferívvel sob determinadascondições previstas no estatuto, etc. Do ponto de vista de funcionamento emgeral, este modelo é basicamente semelhante ao anterior (de propriedadecompartilhada), pelo menos em teoria.

Vantagens da propriedade centralizada:

• É mais fácil de começar, já que depende essencialmente de apenas umapessoa, o membro fundador, proprietário do terreno, pulando portanto doisgrandes obstáculos iniciais do modelo anterior, que são os recursosfnanceiros para aquisição de terra e a difculdade de escolha do local.

• Pode ser mais acessívvel a novos membros, dependendo do valor da cota,que às vezes pode ser até de graça.

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Desvantagens da propriedade centralizada:

• Neste modelo, não existe uma situação de igualdade, pois no fnal dascontas, a despeito de qualquer estatuto, quem manda na terra é o dono daterra. Essa desigualdade é muitas vezes associada metaforicamente a umarelação de casa grande e senzala, ou senhor feudal e vassalos, etc.

• Os demais membros fcam em uma situação de grande fragilidade. Muitasvezes, após construívrem, plantarem, investirem dinheiro, sonhos,expectativas, anos de suas vidas, etc., algo acontece: o dono do terreno poralgum motivo muda de ideia, ou se casa ou morre, e o cônjuge ou herdeirospensam diferentemente, etc. e, de repente, os membros da ecovilasubitamente têm o tapete puxado sob seus pés, e têm muita difculdade defazer valer quaisquer direitos, a despeito de qualquer estatuto, dada aprecariedade de sua situação frente à propriedade legívtima do imóvel (ouseja, escritura registrada), por parte do fundador da ecovila.

Propriedade individual

Neste modelo, a ecovila consiste de uma vizinhança onde cada membro édono do seu próprio terreno e ali desenvolve seus projetos, sobre os quais é oúnico responsável. Os membros ajudam-se mutuamente na medida do possívvel edesejável, considerando sua afnidade de propostas, ideias e trabalhos, auxiliadospela proximidade, e considerando o fortalecimento mútuo e o espívrito decomunidade, abraçado por todos. A adesão de novos membros se dá através dacompra de terrenos vizinhos, resultando no crescimento da área da ecovila poragregação, ou desmembramentos de terrenos que já fazem parte da ecovila.

Vantagens da propriedade individual:

• Preservação da liberdade individual, já que cada membro mantém o direitode desenvolver seus projetos, pôr em prática suas ideias, fazerexperimentos, etc., sem depender da anuência de outros, tampouco sendoobrigado a se submeter a obrigações com as quais não concorde, levandoinclusive à prevenção de confitos.

• Segurança jurívdica, já que cada membro é proprietário legívtimo de seu“pedaço”.

• Tende a atrair pessoas mais maduras, preparadas e responsáveis, levando auma chance maior de sobrevivência a longo prazo da ecovila.

Desantagens da propriedade individual:

• O custo inicial para cada membro pode ser mais alto, pela aquisição daterra, construção de benfeitorias como casa, sistemas produtivos, etc.

• Menor senso de vida comunitária, com maior tendência ao individualismo.

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Considerações gerais sobre ecovilas e vida em comunidade

Viver em uma comunidade baseada na permacultura é uma ideia linda queatrai muitas pessoas. Porém, é preciso ter muito cuidado com expectativas nãorealistas, pois elas costumam resultar em desilusões que podem ferir algumaspessoas a ponto de afastá-las defnitivamente da ideia da vida em ecovila.

A seguir, vamos abordar e procurar desmistifcar algumas das principaisilusões que comumente se criam em torno da ideia de ecovilas e da vida emcomunidade:

• Achar que vai ser fácil. Muitas vezes, ao ter um primeiro contato comlivros e outros materiais de permacultura, tudo parece fazer tanto sentidoque o neófto acaba tendo a impressão que os princívpios da permaculturafuncionarão como palavras mágicas, que possibilitarão a construção decasas lindas e confortáveis, e sistemas altamente produtivos e harmônicos,em pouco tempo e com pouco esforço. Infelizmente, na prática não é bemassim. A construção de uma ecovila requer, além de um bom preparoteórico e prático, enormes doses de esforço por todos os membrosenvolvidos, ou seja trabalho pesado por um longo tempo, e tambémrecursos fnanceiros.

• Ilusão do tapete vermelho. Consiste de achar que encontrará uma ecovilapronta, já formada, com várias famívlias vivendo tranquilamente emharmonia com a natureza, onde você simplesmente chegará, sem qualquerdinheiro sequer para comprar uma cota ou terreno, e será aceito comomembro, e que os moradores farão um mutirão para construir uma casapara você morar, etc. Isso pode ser em sonho, ou um trecho de um flme,mas não tem nada a ver com a vida real.

• Ilusão de controle. Muitas pessoas sentem-se oprimidas pela sociedade,que lhes impõe normas com as quais não concordam, e veem na ideia deuma ecovila uma forma de escapar dessa situação, o que é bom. Muitasvezes, porém, o indivívduo acaba vendo na ecovila uma forma de ele própriose tornar o opressor, impondo aos demais membros suas próprias normas,valores, pontos de vista, etc. Assim, o idealizador da ecovila elabora umestatuto com normas rívgidas e arbitrárias, que defnem seus próprios pontosde vista, e sanções aos que se desviarem dessas normas. Por exemplo,“aqui, todos têm que ser veganos”, ou “ninguém pode ter carro”, ou “todostêm que praticar meditação transcendental”, etc. Não que essas ideias sejammás ou erradas; o problema é que essas imposições e proibições fereminjustifcadamente a individualidade e liberdade dos demais. Isso mostraum tipo de atitude egocêntrica, controladora, e difculdade de lidar comdiferenças por parte dos idealizadores da ecovila, o que certamente não ébom. É preciso ser fel ao objetivo real de qualquer ecovila, que é o estilo

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de vida natural, saudável e sustentável em harmonia com a natureza, ereconhecer que não existe receita universal; estamos todos aprendendo, ecada um passará por um processo diferente para alcançar esse objetivo.

• O mito da divisão diferenciada de funções. É comum ver em grupos quevisam formar uma ecovila a ideia que cada um contribuirá apenas com suasaptidões, e que assim se formará uma comunidade funcional e harmoniosa.Aív, você para para analisar e vê que um membro quer fazer mapa astral etarô; outro, metido a xamã, quer contribuir com terapias holívsticas; outroainda, gosta de cozinhar, e pretende cuidar só dessa parte, enquanto oúltimo será o artista, e contribuirá com sua arte... Então, você pergunta: “equem é que vai fazer o trabalho pesado? Construir, plantar...” e todo mundose esconde! Em outro cenário tívpico, um membro endinheirado resolveentrar com a grana, e portanto não terá que fazer mais nada; outro, que“leu um livro”, quer ser o consultor técnico da ecovila, enquanto outro, quetem bastante disposição mas não tem dinheiro nem leu o livro, e quermuito entrar na ecovila, contribuirá com o trabalho braçal. Depois dealgum tempo, o terceiro membro percebe que está recebendo ordens dosegundo, e trabalhando para o primeiro; construindo para os outros emuma terra que não é e nunca será sua, e resolve ir embora, cuidar da suavida. O segundo e o primeiro então também logo desistem, e a terra fca lá,abandonada, e esse é o fm da ecovila. Conforme já mencionado, a construção, funcionamento e permanência deuma ecovila requerem empenho e dedicação de todos os envolvidos.

• Ecovila de fm de semana. É quando as pessoas trabalham a semana todaem alguma atividade nada sustentável em um grande centro urbano, e nosfnais de semana dirigem 100 ou 200 km até sua “ecovila”, onde fngemviver em harmonia com a natureza por um ou dois dias, e “recarregam suasbaterias” para na segunda-feira estarem de volta aos seus empregos desempre, e o estilo de vida de sempre, sem terem a intenção real demudarem seu estilo de vida permanentemente para algo mais sustentável.Claro que estão enganando a si próprias, e isso não é ecovila, e simmeramente uma casa de campo.

• O erro do isolamento. Algumas pessoas idealizam uma ecovila como uma“bolha”, isolada da sociedade maior que tanto reprovam — o que, muitasvezes, tem a ver com a ilusão de controle já mencionada. Muitas vezes,criam até um isolamento geográfco considerável, formando a ecovila emlocal distante e de difívcil acesso, para reforçar esse distanciamento. Essa éuma abordagem equivocada que acaba de cara com qualquer chance desucesso de uma ecovila, por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar,pelas difculdades óbvias de estabelecimento da ecovila, pois tudo que já édifívcil será ainda mais difívcil, pelas idas e vindas, transporte de materiais,manutenção de uma fonte de renda especialmente na fase de formação, etc.

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Além disso, o que na verdade ocorre é que, quando se busca essa utopia, deuma comunidade “pura”, isso na verdade cria o cenário ideal para a criaçãode uma distopia. Os inevitáveis confitos internos, agravados peloisolamento e as enormes difculdades práticas de sobrevivência podem criarum verdadeiro inferno, que acaba com a dissolução da ecovila, e muitoscorações partidos.Para que uma ecovila seja saudável e duradoura, deve estar sempreintegrada à sociedade maior que a cerca, para que seus membros possamusufruir de seus benefívcios, manter-se em contato com famívlia e amigos, eaté para que a ecovila possa cumprir sua missão de ter um papeltransformador nessa sociedade.

A vida em uma comunidade, uma ecovila, é como a permacultura emgeral: um ideal possívvel e cheio de signifcado, mas também cheio de desafos. Adiscussão acima é extremamente simplifcada — há na verdade uma infnidadede modelos possívveis, formas de concretizar esse sonho, tanto em situaçõesrurais como urbanas. Não existe um modelo ideal; na verdade, o ideal é quetodos os modelos possívveis sejam testados, por quem neles acreditar, para que otempo e a experiência prática diga o que funciona melhor ou pior, nas diferentessituações e para os diferentes tipos de pessoas. O melhor é que todos os modelospossívveis existam, e coexistam, para que se complementem e atendam ao maiornúmero de pessoas possívvel, com suas necessidades e potenciais diferenciados.Só assim as ecovilas poderão forescer e crescer, nem tanto em tamanho mas emnúmero, surgindo como uma opção viável de estilo de vida para cada vez maispessoas, permitindo, quem sabe, em determinado momento, um esvaziamentodos grandes centros urbanos e uma transição em escala global para um modo deorganização social e estilo de vida sustentável, à luz da permacultura.(discutiremos mais sobre isso no capívtulo 18, “Proposta de uma TransiçãoGlobal”).

Trata-se de uma mudança radical de estilo de vida, e uma realidade quetem que ser construívda. Deve-se ter em mente que os resultados fnais (quando sepensa em uma comunidade formada, com casas construívdas e famívlias morando,produzindo alimentos e forestas, uma escola para as crianças dentro da ecovila,etc.) só serão alcançados no longo prazo, e para que se tenha sucesso sãonecessárias não apenas doses maciças de amor, mas também muito preparo,planejamento, seriedade, dedicação, perseverança. Como já citado para projetosde permacultura em geral, deve-se traçar uma sólida estratégia de transição, queconsistirá dos passos a serem tomados no curto e médio prazo, para possibilitaralcançar os objetivos fnais. Tendo dito isso tudo, é preciso ressaltar que, emboranão seja fácil, essa mudança é cheia de sentido, e é uma mudança necessáriapara alcançarmos o ideal de uma sociedade sustentável.

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Economia solidária

Economia solidária é um conjunto de atividades econômicas — deprodução, distribuição e consumo de bens e serviços — organizadas de formalivre e voluntária, independente do sistema fnanceiro monetário. Compreendeuma variedade de práticas econômicas e sociais organizadas sob a forma decooperativas, associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes decooperação, entre outras, que realizam atividades de produção de bens,prestação de serviços, fnanças solidárias, trocas, comércio justo, etc. Trata-sede uma forma de economia centrada na valorização do ser humano e não docapital, caracterizada pela igualdade; uma organização alternativa de trabalho,produção e distribuição de riqueza que integra quem produz, quem vende,quem troca e quem compra. Seus princívpios são autogestão, democracia,solidariedade, cooperação, respeito à natureza e comércio justo. Lembrando,sob vários aspectos, a organização econômica de sociedades primitivas, tribais epré-capitalistas, por ser baseada na troca e compartilhamento direto de trabalho,produção e serviços, a economia solidária é geralmente vista como umaalternativa mais humana ao sistema econômico fnanceiro moderno, com suascaracterívsticas de alienação em seus diversos nívveis, individualismo e em geraldescaso pelas pessoas e natureza.

A economia solidária é baseada num espívrito de coletividade, decomunidade. Por isso, ela é um componente essencial a todas as comunidadespermaculturais.

Dentro do contexto de economia solidária, merece destaque o trabalhovoluntário — aquele em que o indivívduo dedica parte de seu tempo e esforçosem prol de uma causa, geralmente de cunho social ou ambiental, sem umacontrapartida fnanceira, ou seja, sem remuneração. A motivação para engajar-se em trabalho voluntário normalmente vem do desejo de contribuir com causasnas quais se acredita, buscando contribuir para um mundo mais justo esolidário, ou seja, uma motivação moral.

Trabalho voluntário frequentemente se dá em ações de cunho assistenciale humanitário (educação, assistência social e à saúde, apoio a órfãos, idosos,pessoas com defciências, vívtimas de desastres, proteção animal, etc.),ambientais (recuperação ambiental, reforestamento, agricultura orgânica,coleta de lixo, reciclagem, educação ambiental, etc.), e outras, como eventosesportivos, culturais, recreativos, etc. Outra importante fonte de motivação parao trabalho voluntário são os benefívcios pessoais, seja pela aquisição deconhecimentos e experiência, formação de contatos, interação social,fortalecimento do espívrito de equipe, expansão de visão e compreensão domundo, etc.

A maioria dos projetos de permacultura e ecovilas aceitam voluntáriosregularmente para ajudar em trabalhos os mais variados, como construções,

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plantio, colheitas, manutenção em geral etc. Os hospedeiros benefciam-seimensamente, não apenas pelas contribuições com força de trabalho, mastambém, de forma semelhante ao que ocorre com os próprios voluntários, pelocontato com novas ideias, informações, diferentes visões de mundo, etc.

Voluntários são muito necessários em todas as etapas do trabalhopermacultural. Realizar trabalho voluntário em projetos de permacultura aindaé uma das melhores formas de se adquirir experiência prática com as técnicasda permacultura antes de iniciar seu próprio projeto, além de contribuir para oavanço dos projetos existentes e, assim, da própria permacultura. Ao praticar ovoluntariado em ecovilas e projetos de permacultura, estamos formando redesde trabalho e contatos, compartilhando e transmitindo conhecimentos,divulgando a permacultura e inspirando futuros permacultores, dando aoportunidade de uma experiência realmente transformadora. É claro que é umasituação em que todos os lados são benefciados, e o movimento dapermacultura é fortalecido.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

16APRENDIZADO DAPERMACULTURA

Quando a permacultura foi criada nos anos 70 por Bill Mollison e DavidHolmbren, logicamente não havia ainda nenhum livro ou material didático depermacultura propriamente dita. Mas claro que tampouco foi a permaculturacriada “do nada”. O que havia era um grande acervo de conhecimentos einformações registradas na forma de literatura técnica e cientívfca,conhecimentos tradicionais e étnicos, experiência pessoal e visões de mundo doscriadores do movimento, que catalisaram a aglutinação desses elementos nacriação do que passou a ser chamado de permacultura. Talvez a criação dapermacultura não represente a invenção de um estilo de vida sustentável, mas umcaminho viável para pessoas que nasceram e foram criadas em um modeloinsustentável alcançarem um modo de vida sustentável — um caminho, valeressaltar, que ainda está em construção.

Naqueles anos iniciais do movimento da permacultura, a natureza escassa,difusa e incompleta da literatura e recursos didáticos disponívveis sobre osassuntos pertinentes à crise ambiental e o viver sustentável representavam umgrande obstáculo ao seu ensino e disseminação. Foi nesse contexto que nasceramos Cursos de Design em Permacultura, ou “PDC” (do inglês “PermacultureDesign Certificate”) como principal modelo de ensino da permacultura à época, eque existem até os dias de hoje.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

O PDC é um curso em formato desenvolvido e ministrado inicialmente porBill Mollison e, posteriormente, seus discívpulos, e eventualmente centenas oumilhares de professores, conforme a permacultura se disseminou pelo mundo.Trata-se de um curso intensivo e de curta duração, normalmente 72 a 90 horas,cobrindo os principais tópicos pertinentes à permacultura.

Nas primeiras décadas de vida da permacultura (leia-se, na era pré-internet), esse foi um modelo fantástico e, realmente, necessário para adisseminação da permacultura. Numa época em que as informações eramescassas e difívceis de obter, um PDC era realmente uma experiênciaprofundamente transformadora para todos seus participantes, pois erageralmente a primeira vez que eles tinham contato com aquelas informações —tanto as estarrecedoras sobre o caminho sendo trilhado pela humanidade, quantoas alentadoras representadas pelas propostas de soluções da permacultura. Alémdisso, o contato próximo com um grupo de pessoas que compartilham dosmesmos ideais, preocupações em relação ao futuro do mundo (humanidade enatureza) e a intenção de mudança, era certamente uma experiênciaextremamente inspiradora e motivadora aos participantes desses cursos.

Porém, hoje, quatro décadas depois do nascimento da permacultura, arealidade é bem diferente, com uma abundância de informações e recursosdidáticos cobrindo todos os aspectos e elementos essenciais à permacultura, dosmais básicos aos mais avançados, incluindo livros e apostilas, artigos técnicos ecientívfcos, vívdeos, etc. Além disso, com a internet, a maioria desses materiaisestão livremente disponívveis, praticamente a qualquer pessoa interessada, emdiversas lívnguas, havendo apenas dois fatores limitantes: que a pessoa tenhaacesso à internet livre, e que saiba como procurar.

Claro que PDCs continuam existindo, e motivando e inspirando milharesde pessoas todos os anos e, portanto, continuam sendo úteis e importantes.Porém, já não se pode dizer que sejam necessários ao ensino e aprendizado dapermacultura. Deve-se ressaltar que a carga de informação e conhecimentosteóricos que se pode transmitir em um curso de 72 horas é muito limitada e,portanto, esses cursos são necessariamente superfciais. Isso contrasta com aenorme quantidade e profundidade de informações que se pode obter estudandomateriais disponívveis na internet.

Não podemos esquecer também do ensino e aprendizagem da parte práticada permacultura; afnal, de nada vale teoria sem prática, e aqui também asituação é semelhante: enquanto num PDC tívpico a parte prática é limitadívssimaem função até da curta duração do curso, qualquer interessado tem a opção deobter um aprendizado prático muito mais abrangente e profundo através darealização de estágios de trabalho voluntário em projetos de permacultura,conforme discutiremos mais adiante.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

Finalmente, há que se considerar a questão fnanceira: PDCs são cursospagos, e embora geralmente sejam oferecidas bolsas ou formas alternativas depagamento, o custo desses cursos continua sendo um fator restritivo a muitosinteressados, o que contrasta com o caráter gratuito das informações e materiaisdidáticos disponívveis através da internet, e também do aprendizado práticoatravés de trabalho voluntário.

Cursos de Permacultura

Apesar de haver outras alternativas ao ensino e aprendizagem dapermacultura, cursos de permacultura deverão sempre existir, pelos seguintesmotivos:

• Pessoas diferentes aprendem de formas diferentes, e por mecanismosdiferentes, e isso não quer dizer que um seja mais esperto ou inteligenteque outro. Por isso, enquanto algumas pessoas têm facilidade em aprendersozinhas pelo estudo de materiais didáticos, outras necessitam de cursospresenciais e interativos para um aprendizado efciente.

• A imersão no mundo da permacultura, em contato próximo e o espívrito decompartilhamento de ideias para um mundo melhor, numa espécie de“retiro permacultural” que os cursos normalmente representam, é umaexperiência transformadora, fonte de inspiração e motivação para mudançaque não tem paralelo no estudo solitário da permacultura.

• Um curso é um evento social e, como tal, atinge pessoas que talvez não seinteressariam pela leitura de um livro, por exemplo. Muitos podem seinscrever em um curso só porque seus amigos ou namorado(a) irãoparticipar, e acabar sendo completamente arrebatados pelos conceitosapresentados no decorrer do curso — talvez tornando-se ainda maisentusiásticos que aqueles que os convidaram.

• Nenhuma forma de transmissão da permacultura deve ser negligenciada ouabandonada. Quanto mais formatos houver, melhor para sua disseminação.

Tipos de curso de permacultura

Existem inúmeros tipos de cursos de permacultura e assuntos correlatos,indo desde palestras de uma hora de duração até cursos que levam semanas oumesmo meses; de cursos introdutórios até os de especialização, gerais eespecívfcos, etc., e é natural que seja assim, desde que haja público para todosesses tipos de cursos — cursos especívfcos para públicos com interesses enecessidades especívfcas.

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Palestras introdutórias

Este é o tipo de “curso” mais simples, rápido, fácil e barato de organizar e,provavelmente, o mais importante. Praticamente qualquer pessoa que tenha umarazoável noção do que é a permacultura e a venha aplicando em algum grau emsua vida pode falar sobre a permacultura, na forma de uma apresentaçãorelativamente simples, ou seja, uma palestra.

Pode-se dizer que palestras introdutórias são as mais importantes porserem mais acessívveis, tanto para quem ministra quanto para o público em geral.Assim, esse tipo de curso é o que pode atingir o maior número de pessoas,pegando muitas “de surpresa”, e despertando-as para a gravívssima realidade dacrise ambiental, sobre a qual estão completamente inconscientes e atéanestesiadas pela forma distorcida e entorpecente como o assunto é passado pelosistema educacional e pela mívdia. Essas palestras também são vitais para darprojeção, visibilidade ao nome permacultura e sua proposta, despertando ointeresse das pessoas para que possam, a partir daív, pesquisar por si próprias, ouinteressar-se por cursos mais aprofundados, potencialmente iniciando aív umajornada de mudanças positivas em suas vidas.

Palestras geralmente têm duração de 1 a 4 horas, e podem ser feitas emqualquer espaço disponívvel, seja em uma escola ou faculdade, ONGs eassociações em geral, e mesmo em sua própria casa. Apresentações sobre apermacultura também podem servir como trabalhos escolares individuais ou emgrupo, ou serem inseridas em eventos como feiras de ciências, etc.

Devido ao tempo restrito e ao caráter introdutório, o conteúdo deve serselecionado e focado, reduzido aos pontos mais essenciais:

• A crise ambiental global, suas origens e consequências, abordando:- Agricultura industrial- Cidades- Tecnologia, indústria e consumo- Desmatamento- Poluição- Cenários futuros

• A Proposta da Permacultura:- Éticas e princívpios- Produção orgânica e agroforestas- Bioconstrução e saneamento ecológico- Estilo de vida da permacultura- Recuperação ambiental, reforestamento, despoluição de águas, etc.

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Cursos de Introdução à Permacultura

O universo da permacultura abrange uma grande variedade de assuntoscomplexos que se inter-relacionam de forma intricada; portanto, é claro que umasimples palestra não permite mais do que uma “pincelada” geral, que possainformar e despertar o interesse das pessoas para que busquem umaprofundamento maior de outras formas. Daív a utilidade de cursos introdutóriosmais longos e aprofundados, sendo que o preferido continua sendo o modeloPDC, proposto por Bill Mollison (embora o nome PDC seja obsoleto e deva serabandonado, conforme discutiremos mais adiante).

Cursos de introdução à permacultura variam muito quanto aos detalhes,mas não em sua essência. Podem ser ministrados em praticamente qualquerespaço e até na forma de ensino à distância, mas tipicamente são cursospresenciais, realizados em estações e centros de permacultura, associações ecentros comunitários, faculdades ou em propriedades privadas onde se pretendeestabelecer um projeto de permacultura, etc.

Os tópicos tipicamente abrangidos em um curso introdutório depermacultura são:

• Introdução (retrato de nosso tempo e justifcativa para a necessidade demudança):- Crise ambiental global

° Perspectiva histórica ° Realidade atual: ━ Agricultura industrial ━ Cidades ━ Superpopulação ━ Tecnologia, indústria e consumo ━ Desmatamento ━ Poluição ━ Destruição de ecossistemas e extinções em massa

° Cenários futuros: ━ Exaustão de recursos ━ Pico do petróleo ━ Mudança climática

• Permacultura: - Histórico - Éticas - Princívpios - O estilo de vida da permacultura - A habitação permacultural

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° Bioconstrução ° Efciência energética e hívdrica ° Saneamento ecológico

- Ecossistemas° Solos° Florestas° Semiáridos° Desertos

- Água e Energia- Permacultura rural

° Sistemas de água ° Planejamento por zonas ° Agroforestas ° Animais em permacultura ° Aquacultura ° Permacultura nos trópicos úmidos ° Permacultura nos trópicos secos ° Permacultura em climas temperados

- Permacultura urbana - Comunidades em permacultura - Ensino da Permacultura - Consultoria em Permacultura - Proposta de uma transição global - Conclusão

Além das exposições teóricas, os cursos ainda devem incluir:

• Saívdas a campo para demonstração de exemplos negativos, comomonoculturas, erosão, desmatamento, poluição de rios, lixões, etc., bemcomo exemplos positivos, como agroforestas e policulturas,bioconstruções, sistemas de água de chuva, aquaculturas, forestas emdiferentes estágios de regeneração, sistemas de saneamento ecológico, etc.

• Demonstrações e atividades práticas, como técnicas de bioconstrução,plantio de mudas e hortaliças, compostagem, etc.

• Atividades em grupo, com a elaboração de projetos de permacultura.

• Atividades sociais e recreativas de confraternização.

Claro que não há dois cursos de permacultura que sejam idênticos — oexposto acima é apenas uma ideia geral do conteúdo de um curso introdutóriotívpico, mas tópicos podem ser fundidos, expandidos, ter suas ordem alterada e

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novos tópicos podem ser criados, a critério do professor, a estrutura exata docurso variando, inclusive, de acordo com a realidade especívfca do local e dopúblico-alvo do curso.

Cursos de tópicos específcos relacionados à permacultura.

Além dos cursos introdutórios gerais sobre permacultura, há uma variedadecrescente de cursos de tópicos relacionados à permacultura, em que um oualguns dos assuntos e técnicas pertinentes ou úteis à permacultura são objeto deum curso especívfco e mais detalhado. Esses cursos podem atender a um públicocom interesses especívfcos, como por exemplo bioconstrução em geral ou algumatécnica em particular (e.g. cob, cobertura de sapé, estruturas de bambu, etc.), ouentão saneamento ecológico (e.g. banheiro seco), ou ainda agroforestas,captação de água de chuva, etc.

Cursos de tópicos especívfcos podem servir para um aprofundamento emalguma determinada área ou técnica, mesmo para pessoas que já conhecem evêm aplicando a permacultura. Também podem servir de “porta de entrada”para pessoas que têm um interesse prático em particular, e descobrem através docurso um mundo muito maior de possibilidades através da permacultura.

Dois tipos de curso merecem menção especial aqui: cursos de consultoriaem permacultura e cursos de formação de professores.

Cursos de consultoria em permacultura devem ter como público-alvoapenas permacultores experientes que necessitem de ajuda especívfca sobre comoiniciar ou melhorar seu negócio de consultoria, de forma profssional — quandoexiste uma demanda e o permacultor acredita que pode suprir essa demanda,mas encontra difculdades pois não tem familiaridade com a gestão de umnegócio de consultoria. Profssionais da educação técnica e de administração deempresas podem participar na preparação e apresentação do curso, tratando deassuntos gerais relacionados a consultoria. Os tópicos abordados devem incluiranálise de mercados, divulgação do trabalho (marketing), elaboração de projetostécnicos, orçamento, contratação de mão de obra, elaboração de contratos,contabilidade, abertura e gerenciamento de uma empresa de consultoria, etc.

Curso de formação de professores de permacultura. Todos sabemosque “há pessoas que sabem fazer mas não sabem ensinar”, e cursos de formaçãode professores devem ser voltados para esse público especívfco: permacultoresexperientes que têm interesse em ensinar, mas têm difculdade em transmitir seusconhecimentos, ou organizar cursos, etc. Cursos de formação de professores depermacultura devem ser ministrados por professores experientes e consagradostanto na prática permacultural como em seu ensino. Pedagogos e outrosprofssionais da educação, sejam permacultores ou não, podem e devemparticipar na preparação e apresentação do curso, contribuindo para o

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aprimoramento do ensino da permacultura. É preciso ter a clareza que o focodesses cursos jamais deve ser o ensino da permacultura em si — isso já deve serdominado previamente pelos alunos.

Tópicos abordados em cursos de formação de professores incluem: comoorganizar o evento (o local, recursos didáticos, alojamento, alimentação,divulgação, etc.), a estrutura do curso (o conteúdo e sua organização), técnicasdidáticas, atividades complementares, sociais, etc.

É importante frisar que cursos de consultoria e formação de professoresdevem ter como público-alvo exclusivamente permacultores experientes, e nãoiniciantes — e isso inclui aqueles entusiasmados neóftos que participaram decursos e ostentam orgulhosamente seus certifcados, e estão ávidos por mais, masainda não têm experiência prática e muitas vezes nem sequer aplicam apermacultura em suas vidas diárias.

A indústria do certifcado

É comum vermos em anúncios de cursos e vivências de permacultura eassuntos correlatos os organizadores declararem enfaticamente: “comcertificado”. Claro que não há nada errado em se imprimir um certifcadodizendo que a pessoa participou de um evento; porém, o fato de isso seranunciado ostensivamente diz algo sobre as pessoas, tanto os organizadorescomo pelo menos parte do público: que eles estão presos à ilusão do certificado.

Esse negócio de “certifcado” e “currívculo” é trazido desta nossa sociedadebaseada em aparências, imagens, ilusões. Cultivam esse pedaço de papel comose ele dissesse algo real sobre você, ou como se abrisse portas. Porém, é claroque o certifcado não diz absolutamente nada sobre a pessoa — seu caráter, suasmotivações, talentos, competências, enfm, coisa alguma! Tampouco lhe abriráportas; não ajudará no estabelecimento e produtividade de seus sistemas, ou lhegarantirá um emprego. Pelo contrário: nessa indústria do certifcado, muitasvezes a única coisa que esse pedaço de papel lhe dará “direito” será de fazermais cursos: “permacultura avançada”, “educador em permacultura”, etc.,progressivamente mais caros e também, por sua vez, fornecendo maiscertifcados, todos igualmente inúteis.

É lamentável que as pessoas ainda façam questão desses pedaços de papel(certifcados e currívculos), que insistam nessa cultura de imagens, de ilusões,uma cultura do insignificante. Igualmente é reprovável que educadores depermacultura reforcem e utilizem essa ilusória cultura do certifcado para tentarconvencer seus potenciais alunos que o dinheiro pago pelo curso valerá a pena.

Justamente por isso tudo, o nome PDC, que signifca “Certifcado deDesign em Permacultura”, é inadequado e deve ser abandonado — porque

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mantém e reforça essa ilusão do certifcado. Um nome como “Curso deIntrodução à Permacultura” seria muito mais adequado e muito mais honestoaté, pois, dada a dimensão da permacultura, qualquer curso de poucas semanasde duração jamais poderá representar mais do que uma breve introdução, pormais caprichado que seja.

Aprendizado independente da permacultura

Hoje, graças à internet, é muito fácil estudar a permacultura sozinho, ondequer que você esteja. Basta pesquisar, em um bom site de busca, pela palavra“permacultura”, e você terá milhões de resultados, uma amostra do universopermacultural, com uma infnidade de informações úteis. Cheque todos os linksque aparecerem, navegue por eles em busca de informações sobre apermacultura, projetos em andamento, materiais didáticos, etc.

Agora, se você incluir na sua busca a palavra “PDF”, encontrará inúmerosmateriais didáticos, entre livros, apostilas, artigos, etc. Baixe todos os materiaisque aparecerem, e estude-os, procurando focar, é claro, nos de melhor qualidade.Pesquise também sobre a permacultura em sites de vívdeos (e.g. Youtube, Vimeo,etc.), e assista a todos os vívdeos relacionados: vívdeos explicativos sobre apermacultura, apresentação de projetos, entrevistas com permacultores, etc.Participe de fóruns de permacultura na internet. Há discussões interessantes eboas fontes de informação. Aliás, muitos materiais para estudo da permaculturaque não aparecem em resultados de sites de busca podem ser encontradosatravés de fóruns de permacultura.

Dicas para o estudo da permacultura na internet:

• Pesquise em outras línguas. Compreender outras lívnguas, especialmenteo inglês, confere uma grande vantagem no estudo da permacultura, poisinfelizmente alguns dos melhores materiais, como livros, e vívdeos, sãodisponívveis apenas nessa lívngua. Também, os melhores fóruns depermacultura são em inglês.

• Não basta baixar, tem que estudar! Com o desenvolvimento das mívdiasdigitais, as pessoas têm desenvolvido uma espécie de mania de acumularaquivos digitais. Fazendo aqui um paralelo com a música, antigamente,comprar ou ganhar um disco de sua banda favorita era uma grande coisa —as músicas eram ouvidas exaustivamente, o encarte lido e relido, as letrasdecoradas, e construir sua coleção era motivo de orgulho. Em contraste,hoje você pergunta a alguém: “você conhece o Led Zeppelin?”, e a pessoaresponde: “ah sim, tenho toda a discografa deles num pendrive”, mas na

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verdade muitas vezes não sabe sequer citar o nome de uma música, e talvezesteja até confundindo com outra banda! O mesmo vale para livros emformato digital: muitas pessoas têm a mania de acumular arquivos em PDF;não raro, têm centenas de livros armazenados em seu computador, semjamais tê-los lido. Não obstante, continuam a baixar mais arquivos — e anão lê-los. A explicação psicológica para esse fenômeno é simples: baixar um arquivoé simples e rápido, e dá uma sensação de satisfação imediata, e até umasensação de “poder”, pois você pode ler aquilo tudo, e portanto tem opotencial de um grande conhecimento. Por outro lado, ler os livros édemorado e trabalhoso. Numa sociedade crescentemente caracterizada porimediatismo e superfcialidade, a ilusão do “tenho milhares de livros (emPDF), portanto manjo muito do assunto” é sedutora e parece até naturalpara muitas pessoas. Porém, é preciso ter a clareza que é melhor ter apenasum livro e lê-lo, do que ter mil livros e não ler nenhum! Portanto, paraaprender sobre a permacultura (e qualquer assunto), é necessário terdisciplina e seriedade, e realmente ler, reler, estudar, devorar os materiaisdisponívveis!

• Nem tudo o que foi escrito merece ser lido. Claro que, dentro douniverso de materiais que você vai encontrar, alguns serão ótimos; outros,bons, e outros ainda, ruins mesmo. Use o bom senso para fltrar osmateriais que você encontrar. Avalie: faz sentido aquilo que você estálendo? Desconfe de tudo o que parecer muito “milagroso” (bom demaispara ser verdade) ou baseado em pseudociência. Dê prioridade aosmateriais de maior qualidade e reputação, e faça bom uso do seu tempo deestudo.

• Tenha perseverança. A permacultura compreende um mundo novo paraser descoberto, aprendido; um universo de informações, conhecimentos ehabilidades necessárias para se viver em harmonia com a natureza, sendoque nada disso nos foi ensinado na escola ou pela mívdia e a sociedade emgeral — estas só nos ensinam conhecimentos que nos permitam umconvívvio social, ter um emprego, pagar impostos, consumir e poluir.Aprender qualquer profssão, ou mesmo a tocar um instrumento musical,falar uma lívngua estrangeira ou se tornar bom em um esporte ou qualquerarte requer anos de estudos dedicados e prática. É claro que com apermacultura não poderia ser diferente! É preciso jogar fora o imediatismoe a preguiça, e ter a coragem e determinação para se dedicar intensamentee por muito tempo ao estudo teórico e também prático da permacultura,para se atingir o grau necessário de compreensão e habilidade necessáriospara ter sucesso nessa mudança de vida.

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Aprendizado prático da permacultura

A melhor forma de se aprender a fazer uma coisa é fazendo — na verdade,esta é a única forma de se aprender. Você só construirá um sólido conhecimentoprático da permacultura praticando-a intensamente, por anos, ou seja,desenvolvendo seus próprios projetos. Porém, você não deve tentar “reinventar aroda” a cada novo projeto ou atividade que for começar! Deve-se sempreprocurar obter o máximo de conhecimentos teóricos e práticos, absorvendo-osde quem já vem praticando há tempos, e no caso de habilidades manuais econhecimentos práticos, isso signifca ser aprendiz de alguém. Felizmente,muitos permacultores, talvez a maioria deles, aceitam voluntários para ajudar nostrabalhos de construção e manutenção de seus sistemas, em seus projetos depermacultura.

Conforme citado no capívtulo anterior, o trabalho voluntário benefciaambos os lados — tanto o voluntário como o hospedeiro.

O voluntário tem a oportunidade de aprender na prática diversashabilidades necessárias ou úteis para a vida com a natureza, como plantar,colher, manutenção em geral, construção, sistemas de saneamento ecológico,estabelecimento de agroforestas, criação de animais, manejo de resívduos,compostagem, etc. Claro que difcilmente terá tudo isso em apenas um projeto,em um curto perívodo, e por isso é interessante realizar vários estágios detrabalho voluntário em diferentes projetos.

Além desse aprendizado prático, o voluntário pode aprofundar tambémseus conhecimentos teóricos através de discussões produtivas com oshospedeiros e outros voluntários. Além disso, o voluntariado é normalmente umarica experiência cultural, muitas vezes internacional, que pode contribuir muitopara a expansão de visões de mundo de todos os envolvidos. Para muitosvoluntários, as vivências em permacultura são experiências profundamentetransformadoras e motivadoras, que encorajam a trilhar o caminho dapermacultura e iniciar seus próprios projetos.

Para o hospedeiro, a vantagem mais óbvia é a ajuda recebida dosvoluntários nos trabalhos, nas atividades do projeto. Porém, receber voluntáriostambém traz grande aprendizado, com a aquisição de novos conhecimentos etécnicas trazidas pelos voluntários, que muitas vezes têm uma considerávelbagagem de vida. Além disso, também o hospedeiro se benefcia do intercâmbiocultural propiciado pelo voluntariado.

A maioria dos permacultores que aceitam voluntários estão legitimamenteinteressados em contribuir para o avanço da permacultura e ofereceroportunidade a quem deseja praticar, e a presença de pessoas imbuívdas domesmo espívrito de compartilhamento e ajuda mútua torna seu dia a dia muitomais leve e agradável, sendo bastante encorajador.

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Vivência ou voluntariado?

Embora sejam usados muitas vezes como termos equivalentes,normalmente prefere-se reservar o termo vivência para eventos programados emque um determinado conteúdo prático é passado a interessados, em um perívodopreestabelecido de poucos dias. Normalmente é cobrada uma taxa departicipação, e podem ser oferecidos hospedagem e alimentação. É como um“curso prático”, onde o hospedeiro se dispõe a transmitir um conhecimento ouhabilidade que supostamente tem, por exemplo uma determinada técnica debioconstrução, na construção de uma determinada estrutura, por exemplo umacasa, e oferece a oportunidade a pessoas interessadas em aprender essa técnicana prática participando da construção. Nesses casos, em geral o hospedeiro estámais interessado na contrapartida fnanceira do que na ajuda prática oferecidapelos participantes.

Já a palavra voluntariado é usada normalmente para a ajuda com trabalhovoluntário nas atividades que estiverem sendo desenvolvidas naquele momentonaquele determinado projeto, desde as mais rotineiras até as mais excepcionais.Normalmente, nada é cobrado dos voluntários, tampouco se oferece qualquerremuneração pelo seu trabalho; porém, na maioria das vezes, o hospedeirooferece hospedagem e alimentação aos voluntários. Essas condições podemvariar, dependendo das condições particulares de cada caso e acordos préviosentre as partes.

Existem vários websites dedicados a facilitar ou mediar o contato entrehospedeiros e voluntários em potencial, entre eles WWOOF, Workaway, HelpX,etc. Ali, o hospedeiro cria um perfl onde são descritos seu projeto, localização,tipo de trabalho, acomodações, etc., e pessoas interessadas em participar comovoluntários podem contactá-lo para combinar um estágio. Esses sites costumamter regras preestabelecidas; por exemplo, sobre a obrigatoriedade ou não deoferecer hospedagem e alimentação, limitações de carga horária para o trabalhovoluntário, etc.

Outra opção para encontrar locais para fazer voluntariado, ou conseguirvoluntários para os seus projetos através da internet, são grupos especívfcos nasredes sociais e fóruns virtuais de permacultura.

Considerações sobre o custo de cursosl, vivências e materiais de permacultura

É perfeitamente legívtimo que cursos e materiais de permacultura sejamcobrados, afnal, dão trabalho, tomam tempo e custam dinheiro para fazer.Porém, acredito que eles devem ser oferecidos sempre ao menor preço possívvel,por dois motivos:

1. O objetivo principal de quem oferece o curso ou material deve ser adivulgação e fortalecimento da permacultura, e não o lucro. A cobrança

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

pode ser necessária justamente para viabilizar essa atividade, esse serviço,para garantir que continue sendo feito e atingindo cada vez mais pessoas.Agora, restringir o acesso à informação em função do poder econômico éno mívnimo questionável, ainda mais em se tratando de informações que sãopara o bem da humanidade e do planeta. Além disso, o objetivo de lucrotende a corromper e desvirtuar, esvaziar qualquer coisa de sua essência aotransformá-la em mercadoria. Se permitirmos que o ensino dapermacultura se transforme em mera mercadoria, fatalmente ocorrerá omesmo que ocorre no jornalismo, por exemplo, onde o que se transmitenão é necessariamente o que é mais verdadeiro, mas sim aquilo que vendemelhor.

2. Quem oferece cursos de permacultura teoricamente não precisa de muitodinheiro, justamente por ser permacultor. Se alguém se oferece paraensinar a permacultura (e cobrar por isso), subentende-se que se trata deum permacultor experiente e competente, certo? Ora, quanto melhor for opermacultor, menor sua necessidade de dinheiro, pois mais autossufcienteele será, ou maior sua renda pela venda de excedentes de produçãoagrívcola.

É comum encontrar permacultores que alegam depender do ensino dapermacultura como fonte de renda, para sua sobrevivência. Porém, o indivívduoque o faz comete na verdade um tipo de charlatanismo, pois, considerando queuma das principais promessas da permacultura é a produção de alimentos emabundância, permitindo a autossufciência e até alimentar o mundo, ele está defato “ensinando” algo que nunca conseguiu ele próprio fazer. Portanto, desconfede cursos, vivências e materiais de permacultura excessivamente caros. Procureconhecer pessoalmente os méritos e resultados práticos do professor antes decomprar um curso — e não basear-se na imagem que ele conseguiu vender de simesmo. Tenha sempre em mente que a construção de uma imagem glamourosadepende muito mais de habilidade em marketing do que de méritos reais dapessoa associada àquela imagem.

Faculdade de permacultura

Há um debate antigo sobre se deveria ou não haver um curso de graduaçãoem permacultura, em nívvel universitário. A ideia é defendida por muitospermacultores, com base no argumento que a permacultura é uma ciênciaextremamente complexa e ampla, abrangendo elementos dos mais variadoscampos do conhecimento humano, incluindo ciências agrárias (agronomia,zootecnia e engenharia forestal), ecologia, arquitetura, urbanismo e saneamento,ciências sociais (antropologia, sociologia), flosofa, etc. Pode-se dizer que apermacultura é tão ou mais complexa e ampla que qualquer profssão de nívvelsuperior, justifcando, pois, um curso de nívvel superior com carga horária eduração igual ou superior a qualquer curso de graduação existente. Pode-se

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

argumentar, ainda que a permacultura é mais importante que qualquer profssãoconvencional, já que é a única com condições de salvar a humanidade daautodestruição.

Certamente, um curso de 72 ou 90 horas não é sufciente para prepararninguém para coisa alguma. Não se aprende a fazer nada em tão curto tempo!Não se aprende a ser borracheiro ou ajudante de pedreiro, padeiro, cabeleireira,etc. (para efeito de comparação: cursos do SENAI para essas profssões variamde 160 a 400 horas-aula). Seria bom para a permacultura, os permacultores e asociedade ter pessoas bem preparadas para guiar e contribuir na transição a ummodelo sustentável — pessoas que entendem dos problemas atuais e desafos ànossa frente, e sabem o que deve ser feito, e como fazê-lo. Simplesmente não hánenhuma categoria profssional que preencha essas necessidades. A criação deum curso universitário em permacultura, e inclusive cursos de pós-graduação,poderia contribuir muito nesse sentido.

Porém, há também os que condenam a ideia, a começar pelo próprio BillMollison, que temia que, se caívsse nas garras dos que controlam o sistemaeducacional formal, a permacultura seria inevitavelmente destruívda. Apermacultura é uma ferramenta para mudar o mundo, enquanto as universidadese o sistema educacional formal em geral nada mais são que um braço do sistema,sendo portanto um instrumento de manutenção do status quo. A academia nãoaceita nada que desafe o paradigma dominante da sociedade. Por isso, elaprovavelmente jamais aceitará a criação de um curso universitário depermacultura, ou, pior que isso, o criará justamente para desvirtuá-la,precisamente para neutralizá-la como ameaça ao status quo. Confar àsuniversidades a missão de transformar o mundo, com a criação um cursosuperior de permacultura, seria como colocar um lobo para cuidar das ovelhas.

Isso tudo é especialmente válido para as universidades públicas, já que sãocontroladas pelos governos. Agora, claro que nada impede que universidadesprivadas criem um curso de graduação em permacultura, bastando para isso quehaja mercado, ou seja, uma demanda sufciente que o justifque. Porém, épreciso ter cuidado para evitar uma elitização da permacultura, que trairia suaprópria essência, ou sua transformação em mera mercadoria e consequentedeturpação.

Se vai haver faculdade de permacultura ou não, somente o futuro dirá.Porém, independentemente de a criação de uma faculdade de permaculturatornar-se realidade ou não, o mais importante é que cuidemos para não deixarque a permacultura se desvirtue, e que a permacultura sempre possa seraprendida de forma independente e por meios próprios, e que seja acessívvel atodas as pessoas através da liberdade de informação, geração de conteúdo dequalidade, oportunidade de contato e práticas permaculturais, compartilhamentode trabalho e experiências, etc. Idealmente, todos os permacultores devem estarempenhados na disseminação, avanço e universalização da permacultura.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

17CONSULTORIA E PRESTAÇÃO DESERVIÇOS EM PERMACULTURA

A partir do momento que alguém conhece, internaliza, passa a dominar osprincívpios da permacultura e adquire experiência e habilidade sufciente em suaaplicação prática, na elaboração e execução de projetos de permacultura, issoabre a possibilidade de prestação de serviços e consultoria a pessoas, grupos einstituições.

Exemplos de clientes em potencial para um permacultor são:

• Indivívduos não permacultores que desejam um trabalho especívfco, comopor exemplo um jardim, horta ou pomar bonito, produtivo e de baixamanutenção, ou orientação técnica no estabelecimento de uma agroforestaou projeto de reforestamento, a instalação de um sistema de captação deágua de chuva, um banheiro seco, uma composteira, plantio de mudas,alguma bioconstrução, etc.

• Permacultores que desejam ajuda de alguém mais experiente na elaboraçãode um projeto ou serviços especívfcos como os citados acima;

• Produtores rurais que desejam incorporar conceitos da permaculturavisando sistemas produtivos mais naturais, reduzindo ou eliminando o uso

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

de agrotóxicos ou fertilizantes quívmicos, reduzindo o consumo de energia eágua, prevenindo poluição, atuando na recuperação ambiental, etc.

• Grupos ou instituições que desejam incorporar conceitos desustentabilidade em suas instalações ou atividades. Por exemplo, umaincorporadora que planeja construir um condomívnio mais sustentável;empresas que querem reduzir seu impacto ou fazer compensaçãoambiental, ou tornar-se mais sustentáveis, captando água da chuva,melhorando a efciência energética, reduzindo resívduos; governosinteressados na construção ou adequação de praças, parques e campiuniversitários para que tenham alta efciência ecológica, etc.

É perfeitamente possívvel conseguir contratos para serviços de consultoriaem permacultura, desde os mais simples e humildes, até os mais complexos eambiciosos. A chave para conseguir se envolver com projetos cada vez maisvultosos chama-se reputação. Isso não é algo que se pode comprar, ou ganhar depresente. A reputação deve ser construívda passo a passo, ou seja, começandocom projetos pequenos, procurando sempre fazer o melhor possívvel, acumulandoexperiência prática, estudando muito pelo caminho, aprendendo com acertos eerros.

Tornando-ose um prestador de serviços ou consultor

Para se tornar um consultor ou prestador de serviços em permacultura,obviamente o primeiro passo é tornar-se um permacultor. Segue abaixo umasugestão de “passo a passo” geral para você se tornar um consultor empermacultura.

1. Adquira conhecimentos teóricos e práticos da permacultura (consulte oCapívtulo 16, “Aprendizado da Permacultura”).

2. Pratique a permacultura no seu dia a dia, com a incorporação e aplicaçãoprática dos princívpios da permacultura à sua vida diária, conformediscutido no Capívtulo 14, “Estilo de Vida da Permacultura”.

3. Comece pela sua própria casa, e então passe também a aplicar apermacultura em outros espaços disponívveis: praças, terrenos baldios, casasde amigos e parentes, na sua escola, etc. Você pode começar de graça,como trabalho comunitário voluntário, talvez junto com alguma ONG, etc.,ou no caso de terrenos de outras pessoas, repartindo a produção com osdonos, por exemplo. Revitalize voluntariamente, por sua própria conta,alguma praça abandonada (isso tudo foi discutido no capívtulo 13,“Permacultura Urbana”). Ofereça serviços de instalação de sistemassimples de água de chuva (calhas e cisternas), serviços de jardinagem,ensine e convença as pessoas a fazerem compostagem, (que tal construir evender composteiras?). Tire fotos de seus sistemas, faça um portfólio.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

4. Apareça. Comece a falar sobre a permacultura. Dê palestras, escrevaartigos e reportagens para o jornal local, revistas, rádio, etc., escreva umblog, use as redes sociais. Mostre os resultados do seu trabalho.

5. Ao ganhar visibilidade, você passará a ser requisitado como palestrante e,logo, começará a ser procurado para serviços e consultorias. No começopode ser um pouco intimidador, mas não tenha medo! Comece devagar,com trabalhos mais simples e coisas que você já tem prática. Seja honesto:ao aceitar um desafo de um trabalho de natureza ou escala nova para você,deixe o cliente ciente disso. Procure auxívlio e mão de obra especializadosse necessário. Não aceite o trabalho se achar que não tem condições derealizá-lo.

6. Com a prática, você poderá ir aceitando trabalhos cada vez maiores e maiscomplexos. Você pode optar por ser um especialista em determinada(s)área(s), ou ser um generalista e contar com especialistas quando necessário.

Claro que quanto maior o projeto, maiores os custos e maior aresponsabilidade. Ao contrário de serviços pequenos para pessoas fívsicas, para seconseguir contratos com empresas e governos para serviços e projetos grandes énecessário apresentar projetos bem estruturados, de forma profssional, além deter uma empresa formalizada. Importantívssimo também é cumprir orçamentos eprazos. A habilidade com isso virá com a prática, e por isso é importantecomeçar com projetos pequenos e simples, adquirindo a experiência prática eaumentando a complexidade gradualmente. Ou seja, comece pequeno e, comdedicação e seriedade, construa sua experiência e reputação. Agindo assim, océu é o limite; talvez um dia você se veja desenvolvendo projetos depermacultura internacionais com orçamentos milionários, a exemplo depermacultores famosos como Geof Lawton e Sepp Holzer.

Prestação de Serviços

O cenário é simples: alguém está interessado em um determinado serviço,como estabelecer um jardim ou horta permacultural, ou construir uma casa ououtra estrutura com técnicas e materiais naturais, por exemplo. Claro quechamar um jardineiro ou construtor qualquer não vai dar certo; então, a pessoate procura, pois você é o mais indicado para fazer o serviço na área, já que épermacultor. Isso não só é perfeitamente possívvel, como de fato acontece otempo todo, sendo que os serviços mais procurados são os de bioconstrução,fazendo desse um dos ramos mais atrativos para quem quer trabalhar compermacultura, atualmente. Em qualquer caso, você pode optar por fazer oserviço você mesmo, ou apenas elaborar um projeto, com descrições detalhadas,ou ainda acompanhar o trabalho, dando as devidas orientações e supervisão aoutros profssionais, como jardineiros, construtores, etc., que farão o serviço.

Mas há inúmeras outras formas de prestar serviços à sociedade como

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

permacultor. Por exemplo, você pode abrir sua própria empresa em qualquer umdos ramos em que possa contribuir para uma sociedade mais sustentável, comouma empresa de reciclagem de materiais, ou uma operação de compostagem emlarga escala, utilizando os resívduos orgânicos municipais e talvez lodo de esgoto,produzindo e vendendo composto orgânico de alta qualidade; você pode abriruma fora, um viveiro de mudas, contribuindo para pessoas que desejam praticara jardinagem, horticultura, reforestamentos, etc. Como já discutido no capívtulo13, você pode atuar também no setor público ou no terceiro setor (ONGs),atuando para melhorar a gestão dos resívduos sólidos em sua cidade, enfm, asopções são praticamente ilimitadas.

Agora, em muitos casos é útil, importante ou necessário que você tambémtenha uma qualifcação profssional formal para dar condições técnicas,credibilidade e amparo legal para seus serviços permaculturais. Por exemplo, sevocê for um arquiteto ou engenheiro civil, poderá atuar na elaboração deprojetos arquitetônicos e responsabilidade técnica sobre edifcações sustentáveisem qualquer jurisdição; se for um urbanista, pode elaborar projetos deassentamentos sustentáveis, como condomívnios, bairros e cidades planejadas; sefor agrônomo, poderá ser responsável técnico de empresas do ramo de produçãoe benefciamento de alimentos, e se for engenheiro forestal, poderá coordenarprojetos de reforestamento em larga escala para clientes corporativos egovernamentais, etc. Por isso, é essencial que tenhamos na permacultura pessoascom qualifcação formal em todas as áreas relevantes do conhecimento.

Consultoria

A consultoria é um serviço diferenciado onde o permacultor elabora umprojeto técnico detalhado para atender às necessidades do cliente. O serviço deconsultoria pode ir desde um trabalho pontual, como por exemplo o projeto deum sistema de captação de água de chuva, ou um jardim-horta, ou umabioconstrução, etc., até um projeto inteiro de uma fazenda, um módulo deautossufciência rural, um condomívnio ecológico, etc.

Claro que não há receita universal, já que cada projeto é único e podem sercompletamente diferentes, de naturezas diferentes, mas o padrão deprocedimento em sua elaboração costuma ser mais ou menos o mesmo. A seguirdaremos uma visão geral dos principais aspectos de um trabalho de consultoriaem permacultura.

O trabalho de consultoria começa com uma conversa detalhada com ocliente, onde ele explicará o que deseja que seja feito. Na maioria das vezes, elenão estará bem certo — terá apenas uma ideia vaga, e muitas vezes farápropostas que são bastante fantasiosas ou inviáveis; portanto, essa conversa deveser bem interativa: o consultor deve dar orientação, ajudando o cliente a decidiro que exatamente ele deseja, dentro de limites realistas. Não raro, o cliente,embora bem intencionado, terá ideias que prejudicariam o meio ambiente. Nesse

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

caso, o permacultor deve intervir, explicando por que aquilo não é uma boaideia, e propor alternativas. Caso o cliente se mostre intransigente, o consultordeverá recusar o serviço.

Em seguida, o permacultor deverá fazer uma pesquisa aprofundada paraconhecer as condições e recursos disponívveis para o projeto: reconhecimento dapropriedade e da área, utilizando inclusive plantas e cartas topográfcas, quandodisponívveis; caracterívsticas do local, como altitude, clima, pluviosidade, tipo desolo, bioma nativo, etc.; atividades agrívcolas e outras, atuais e recentes;condições ambientais do local, como grau de deterioração ambiental (degradaçãodo solo, erosão, contaminação quívmica, etc.) ou estágio de regeneração atual;recursos disponívveis no local e na região, incluindo materiais disponívveis, mão deobra, condições de mercado, etc. Conhecimentos e aptidões especívfcas docliente também devem ser conhecidas e levadas em consideração na elaboraçãodo projeto.

Então, o permacultor passará à elaboração do projeto em si, e fornecerá aocliente um relatório de recomendações técnicas detalhado, bem como seuorçamento. O relatório muitas vezes inclui um memorial descritivo que pode serfeito a partir de uma imagem aérea obtida através da internet (e.g. Google Earth)sobre a qual é plotada uma planta da propriedade onde são representados oselementos constantes do projeto. Inclui ainda plantas baixas e desenhos técnicosconforme necessário, descrição das técnicas a serem utilizadas, listas de espéciesde plantas recomendadas e informações como quantidade, disposição, técnicasde plantio e manejo, etc. Listas de materiais que serão necessários, e talvez umacotação de preços, também vão aqui.

No relatório, devem ser dadas ainda instruções especívfcas a respeito dasfases de estabelecimento do projeto. Ou seja, não se pode simplesmente dar umapanhado de recomendações, e deixar que o cliente decida por onde vai começar— ele deve ser orientado quanto à sequência mais racional e efciente possívvel(as fases de estabelecimento de um projeto de permacultura rural foramabordadas no capívtulo 9, “Permacultura Rural”).

No próprio relatório você pode recomendar profssionais especívfcos paradesempenhar cada parte do projeto, como arquitetos, bioconstrutores,jardineiros, etc. Por isso, é importante formar uma malha de relações, uma redede trabalho com outros permacultores e profssionais competentes.

Geralmente, o trabalho do consultor não acaba no relatório. O mais comumé continuar prestando serviços ao cliente, seja na execução dos trabalhos ou nacoordenação e supervisão das atividades.

Agora, há uma consideração importante a se fazer em relação a consultoriana elaboração de projetos de permacultura completos, ou seja, módulos deautossufciência ou viver sustentável à luz da permacultura, sejam rurais ouurbanos. Embora esse tipo de consultoria possa parecer bastante atrativo tanto a

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

consultores como a clientes, deve-se ter em mente que isso só faz sentido se ocliente for permacultor. É importante ressaltar que a permacultura é, acima detudo, uma cultura, ou seja, um estilo de vida; portanto, ninguém se tornará umpermacultor somente por contratar um serviço de consultoria. Do que adiantavocê elaborar todo um projeto, implementar um conjunto de sistemas, se apessoa que vai viver e trabalhar ali não tem ideia do que fazer, e provavelmentetenderá a viver exatamente como sempre o fez? Claro que isso não tem comodar certo. Ou seja, o relatório de consultoria servirá como uma orientação, umabase de ideias que, por mais completo que seja, de maneira nenhuma elimina anecessidade de o cliente possuir ou adquirir uma base sólida de conhecimentosde permacultura (o aprendizado da permacultura foi discutido no capívtulo 16).

Cobrando por serviços e consultoria

O preço cobrado por um serviço de consultoria deve ser condizente com adimensão e complexidade do serviço, ou seja, o tempo e esforço necessários àsua execução. Use o bom senso.

Claro que a reputação e experiência do permacultor também tendem ainfuenciar no preço, assim como o poder econômico do cliente, e a lei geral daoferta e procura, etc. Além disso, caso você esteja atuando em uma áreaespecívfca em que possui qualifcação profssional formal, as tabelas dehonorários de sua categoria também devem ser levadas em consideração. Porém,aqui também é necessário fcar atento para evitar que haja uma elitização dapermacultura, já que isso fere seus próprios preceitos éticos. Assim, érecomendável que mesmo permacultores mais requisitados ou altamentequalifcados mantenham sempre em suas agendas algum tempo dedicado a umtipo de “cota social”, oferecendo serviços a preços acessívveis para clientes derecursos limitados, especialmente para serviços com maior potencial detransformação social ou maior benefívcio ambiental.

Preciso de um certifcado para prestar serviços de permacultura?

A resposta curta para essa pergunta é: não. Agora, isso vai deixar muitosprofessores irritados, pois dependem dos cursos (e.g. PDCs) para sobrevivereme, por isso, fazem de tudo para defender a velha cultura do certifcado. Mas nãodeixe ninguém lhe convencer que você precisa de um certifcado para prestarserviços e consultoria em permacultura. O que você precisa é: saber o que estáfazendo, assumir a responsabilidade sobre seu trabalho, e aderir integralmente àséticas e princívpios da permacultura.

Conforme citado no capívtulo anterior, um certifcado não passa de umpedaço de papel que não diz nada sobre você, seu conhecimento oucompetência, etc. Além disso, a ideia que um curso de duas semanas o tornará

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

apto a prestar consultoria é uma falácia total — isso requer anos de estudos eprática, para que possa ser feito com seriedade (a não ser os trabalhos maissimples, que você fará na condição de iniciante, justamente enquanto acumulaexperiência para se lançar a projetos mais ambiciosos, conforme já discutido).

Alguns permacultores argumentam que a obrigatoriedade de um certifcadode curso protegeria a permacultura, impedindo que se distorça, se desvirtue.Embora essa preocupação seja totalmente pertinente, está claro que esse critério(certifcado) é totalmente inefcaz nesse sentido. Profssões formais estabelecidascontam com conselhos de classe legalmente instituívdos, para essa fnalidade.Talvez, criar tal conselho também para a permacultura fosse benéfco nessesentido. Porém, isso estaria inevitavelmente vinculado à criação de um cursoformal (e.g. bacharelado em permacultura), ofcialmente reconhecido, o que,conforme discutimos no capívtulo anterior, não se sabe se ocorrerá.

Por fm, vale lembrar que o próprio Bill Mollison jamais possuiu umcertifcado de curso de permacultura, o mesmo podendo ser dito de DavidHolmgren, Sepp Holzer, Masanobu Fukuoka, entre outros dos mais famososnomes da permacultura.

Nem todos os serviços devem ser aceitos

Já citamos o caso em que um cliente, embora bem intencionado, por faltade conhecimento tem a intenção de fazer coisas que terão um efeito negativosobre o meio ambiente, por exemplo por causar desequilívbrio ecológico, suprimirfora ou fauna nativas, consumir recursos ou gerar resívduos demasiadamente, etc.Agora, há casos bem piores ainda, onde o cliente simplesmente não é bemintencionado. Por exemplo, talvez deseje fazer um empreendimento que causarágrande dano ambiental, visando apenas lucro, e procure sua ajuda na forma deum serviço de consultoria para fazê-lo de forma mascarada, de modo queconsiga autorização das autoridades ambientais, por exemplo. Outro caso tívpico éo chamado greenwashing ou “lavagem verde”, em que uma empresa altamentepoluente e degradante procura fazer algum projeto ecológico, geralmente deorçamento e impacto ambiental positivo irrisórios, com o único objetivo de usarisso como estratégia de marketing para conseguir vender mais, por convencer opúblico que, ao comprar este ou aquele produto, estará contribuindo com o meioambiente. Na verdade, isso só ajuda a empresa a vender mais, e portanto poluirmais, degradar mais o ambiente, de forma que o impacto ambiental global serámuito negativo. Permacultores não devem aceitar esses tipos de serviços deconsultoria, por ferirem as éticas da permacultura. A permacultura foi concebidapara ser parte da solução dos maiores problemas do mundo, e é vital quecuidemos para que ela não seja usada indevidamente como ferramenta para amanutenção ou agravamento desses mesmos problemas.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

Foco em consultoria?

Embora consultorias em permacultura possam dar signifcativascontribuições para a melhoria do mundo, é importante ressaltar que esse nãodeve ser o foco principal da permacultura. Isso porque, de um ponto de vistahumano, o mundo é feito essencialmente de pessoas. Portanto, quando dizemosque o mundo está com sérios problemas por causa da insustentabilidade, issoequivale a dizer que as pessoas estão com problemas e, de fato, são as pessoas,voluntária ou involuntariamente, consciente ou inconscientemente, que estãocausando esses problemas pela forma como vêm vivendo — e são também aspessoas que sofrerão as consequências, quando esta bolha que é nossa civilizaçãoestourar (além de todo o mundo natural, infelizmente).

Portanto, a permacultura tem o potencial de mudar o mundo,principalmente mudando a vida das pessoas — sua forma de ver o mundo e serelacionar com ele, mudando seu estilo de vida para algo realmente sustentável eharmônico (falaremos mais sobre isto no próximo capívtulo, “Proposta de umaTransição Global”).

Isso deve fcar bem claro para todas as pessoas, e especialmente aosprofessores de cursos de permacultura. Um foco excessivo em consultoria temsido um erro comum em cursos de permacultura, desde seu começo. Isso é umproblema porque vende-se uma ilusão a pessoas, num momento em que estãotendo seu primeiro contato com a permacultura, que na semana seguinte serãoconsultores em permacultura formados (com certifcado e tudo, lembra?), e quehaverá demanda para essa consultoria, e farão altos projetos e serão bemremunerados, etc., sendo que isso não corresponde à realidade, não somenteporque o curso não prepara o sufciente, mas também porque a demanda ainda éescassa, especialmente em se tratando de pessoas sem experiência. Além decausar desapontamento e frustração aos alunos com o choque de realidade após aconclusão do curso, essa abordagem pode atrair para a permacultura pessoasmuito interessadas em trabalhar para os outros por dinheiro (mantendo oparadigma da alienação do trabalho e foco em lucro), e pouco interessadas emmudar seu próprio estilo de vida.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 18. Proposta de Uma Transição Global

18PROPOSTA DE UMATRANSIÇÃO GLOBAL

Por ser um sistema que promete suprir as necessidades humanas ao mesmotempo em que conserva os recursos naturais, protege o meio ambiente e ajuda narecuperação de ecossistemas, a permacultura tem o óbvio potencial de mudar omundo e, no melhor dos casos, evitar o colapso da civilização, a ruívna dahumanidade e do ambiente natural no planeta Terra.

Porém, como alcançar este grandioso objetivo? Não parece razoávelassumir que um único indivívduo, seja eu ou você, começando uma horta oucaptando água da chuva dos telhados, ou iniciando um projeto deautossufciência na zona rural, tenha qualquer chance de mudar os rumos domundo, não é mesmo? Claro que isso pode e certamente terá grande efeito navida da pessoa que o fzer, podendo trazer uma grande realização pessoal everdadeiro sentido à vida. Mas, em relação a uma perspectiva global, quaisseriam as chances de a permacultura realmente fazer alguma diferença?

David Holmgren, co-fundador da permacultura, parece ter a resposta paraessa questão. Ele explica:

“...A outra forma de pensar na permacultura é como uma forma de mudaro mundo, porque muitas pessoas motivadas pela permacultura a veem comuma atitude de ‘nós podemos mudar o mundo de uma forma positiva’, aoinvés de viver tentando parar o mundo que nós não queremos. A

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 18. Proposta de Uma Transição Global

permacultura sempre teve uma postura de ‘como podemos criar o mundo quenós queremos’.

“Quando se trata de mudar o modo como a sociedade funciona, a maioriadas pessoas pensam em maneiras de mudar polívticas públicas — comoinfuenciar os cívrculos do poder de forma a mudar o funcionamento dasgrandes estruturas da sociedade. Mas essa é uma maneira velha, ultrapassadade mudar o mundo. A maneira nova, que já está bem comprovada, é mudarvocê mesmo, sua vida, e o que você faz. O que muitos dos estudiosos epessoas que pensam em como podemos fazer para mudar o mundo ainda nãose tocaram é que na verdade, ao mudar você mesmo, isso não representaapenas uma pequena contribuição para uma mudança em maior escala — naverdade, isso talvez seja a coisa mais poderosa que você pode fazer.”

A proposta de Holmgren é equivalente àquela famosa citação, frequente-mente atribuívda a Ghandi: “Seja a mudança que você quer ver no mundo.”

Ele continua:

“E alguns dos motivos para isso: se você tem uma estratégia ou qualquercoisa em permacultura, desde construir sua própria casa até uma agriculturaapoiada pela comunidade, até o simples fato de produzir sua própria comidano seu quintal; quando você faz algo para si mesmo e se benefcia disso, eaquilo refete as éticas e princívpios da permacultura, você está fazendo algopara si mesmo e também reduzindo seu impacto negativo no mundo. Mas,por estar fazendo algo que te traz benefívcios, isso é potencialmente atrativopara outras pessoas que podem pensar: ‘ah, eu vou fazer isso também’...enquanto aquela pessoa amarga que está apenas fazendo algo para tentarcompensar por nossos pecados no mundo não é muito atrativa para muitasoutras pessoas. Você sabe, uma pequena proporção das pessoas sãomotivadas por esse tipo de atitude — a maioria das pessoas quer serbenefciada de alguma forma e, especialmente, querem benefívcios diretos.Então, as estratégias da permacultura são atrativas para os seus adeptos, eoferecem exemplos que outras pessoas podem copiar. E para fazê-lo,geralmente não se necessita de permissão de autoridades, ou bancos paraobter fnanciamentos, etc. E isso é realmente importante, porque muitasdessas mudanças, se feitas por uma parte da população, representam umaameaça real a muitas das estruturas de poder da sociedade, muitos dessessistemas centralizados: as corporações, governos e seus contribuintes...Então, eu entenderia que muitas dessas coisas de autossufciência eempoderamento associadas com a permacultura são realmente subversivas.Portanto, se essas ideias e atitudes realmente ‘pegarem’ de uma forma ampla,elas poderiam não apenas não contar com qualquer apoio, mas de fato sofrertentativas de impedimento.

“Quando se trata de alguma tecnologia muito avançada, ou projetos emlarga escala, é fácil para os detentores do poder dizer: ‘não, você não podefazer isso’. E nós podemos ver a guerra entre energias renováveis versuscombustívveis fósseis. Mas se é algo que você pode fazer em casa, é muito

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 18. Proposta de Uma Transição Global

difívcil impedir. Além disso, essa replicação permite uma evolução muitorápida onde você pega um exemplo de alguma coisa, e você aprimora; então,vem alguém e copia, e modifca e aperfeiçoa, então você tem uma evoluçãoprogressiva. Se nós fzéssemos grandes projetos que são todos motivados porconceitos de sustentabilidade mas representam imensas realocações dosrecursos da sociedade, isso sempre termina em bagunça, porque de algummodo a complexidade dessas coisas... Você pode ter as ideias, mas quandovocê vai realmente pôr em prática, nunca dá tão certo. Então, a replicaçãoem pequena escala, ao invés de projetos grandes, gigantes, além de ser muitomais viável, é um bom processo de aprendizado, e também permite que aspessoas adaptem as soluções a situações diferentes, e isso é muitoimportante, porque cada situação é diferente. E então, quando você conseguemais pessoas fazendo isso, isso lhe dá, se quiser ver dessa maneira, maispoder de barganha; você diz: ‘olha, todos nós aqui estamos fazendo isso...’Você tem uma certa base de poder através da autonomia, e não uma base depoder tentando fazer barulho para fazer as autoridades mudarem as polívticas,porque essa é realmente uma abordagem que não tem força alguma. E nóspodemos ver nos últimos 30 anos como movimentos populares conseguirammudanças em polívticas públicas... mas tem sido cada vez mais difívcilconseguir essas mudanças, e requerido cada vez mais recursos dessesmovimentos. Então, por que nós simplesmente não fazemos algo por nósmesmos e com nossos próprios recursos, e damos um exemplo para osoutros? Esse é verdadeiramente o impulso para uma mudança positivamaior.”*

Em suma, não adianta nada as pessoas fcarem apenas atacando o sistema eelocubrando formas de transformar o mundo, sem que antes tenhamtransformado suas próprias vidas para que sirvam de exemplo. Essa é umapostura tívpica de revolucionários fajutos, uma atitude hipócrita e estéril.

A única forma de a permacultura fazer uma diferença no mundo é atravésde uma revolução pacívfca, que começa silenciosa, por baixo, através de pontosque se espalham, ligam e convergem. Mudar o mundo através da permaculturapode parecer tarefa impossívvel ou inviável; mas mudar seu próprio mundo, seupapel no mondo, sua própria vida à luz da permacultura, isso sim certamente épossívvel, viável e repleto de signifcado, embora não seja simples ou fácil — eessa é a tarefa número um de todos interessados na construção de um mundojusto e sustentável. E, a partir daív, inspirar outros, através do seu exemplo, paraque sigam também o caminho, e que todos juntos trabalhemos noaperfeiçoamento e disseminação da permacultura. E, nesse processo, formarcomunidades, que se integram e fortalecem mutuamente.

Então, este é o caminho para o movimento da permacultura. Não adiantaesperar que a mudança parta de cima, das elites — ela tem que partir de baixo, denós mesmos, de cada uma das pessoas que desejam a mudança, alastrando-se pela

* Em entrevista a Robyn Rosenfeldt, editora da revista “Pip Magazine”. 2014.

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base e infltrando-se para cima, abrangendo enfm toda a sociedade.

“Mudar o mundo começa por mudar a si próprio. Quem nãoconsegue mudar a si próprio, não muda coisa alguma.”

Nada disso, porém, signifca dizer que uma atuação polívtica em outrossentidos, seja no ativismo ou na representação polívtica convencional, sejaminúteis ou devam ser abandonados — muito pelo contrário. Mas signifca, sim,que essas outras formas de atuação, para que sejam efetivas, devem serprecedidas e acompanhadas de exemplos concretos por parte daqueles que asdefendem, pois só assim esses esforços terão qualquer efcácia. Além disso, paraque a via polívtica convencional possa ter uma participação viável numatransformação mais global da sociedade rumo à sustentabilidade, é preciso queantes o movimento da permacultura já tenha crescido e se tornado grandedemais, e forte demais para ser ignorado.

A permacultura pode mesmo alimentar o mundo?

Esta é uma questão que frequentemente gera confusão e preocupação naspessoas. Argumenta-se que a agricultura industrial, através de melhoramentogenético, técnicas modernas de cultivo envolvendo mecanização e irrigação emlarga escala e uso de fertilizantes quívmicos e pesticidas, logrou um grandeaumento na produtividade agrívcola comparativamente a técnicas antigas, maisnaturais e tradicionais, às quais a agricultura orgânica ou a permacultura sãogeralmente associadas.

Isso é verdade, mas apenas parcialmente. Um grave equívvoco que quasesempre se comete é comparar a permacultura com a agricultura convencionallevando em consideração apenas a produção bruta de determinado produto (e.g.milho, leite, abacates ou tilápias) por unidade de área da fazenda produtora. Essetipo de análise é inválida, incorreta, por pelo menos três motivos:

• Na verdade, deve-se levar em conta não apenas a produção bruta doproduto agrívcola, mas sim o conjunto das produções e serviços ambientaisprestados. Como sabemos, a agricultura industrial não presta nenhumserviço ambiental — não fomenta a fauna ou fora, não favorece apenetração de água no solo ou a manutenção do ciclo das águas, nãocontribui para a estabilidade do clima, não protege o solo, etc. Pelocontrário, ela destrói o ciclo das águas, o solo, o clima, a biodiversidade. Jáos sistemas produtivos da permacultura prestam todos aqueles serviçosambientais. Infelizmente, não há remuneração por esses serviços, apesar deserem essenciais para o bem estar humano e a sobrevivência dahumanidade a longo prazo.

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• Outra questão-chave é a diversidade na produção. Enquanto a agriculturaindustrial é baseada em monoculturas, a permacultura aposta empoliculturas integradas. Claro que numa monocultura de milho você teráuma produção muito maior de milho que numa policultura contendo milhoentre outras coisas. Porém, na análise global da produção, a policulturatende a ter uma produção total maior e mais diversifcada.

• Além disso, outro fator vital que praticamente ninguém leva emconsideração é a real relação entre consumo de recursos e produção. Aanálise que geralmente se faz é “quantas toneladas de produto porhectare/ano”, mas aív existe uma falha gravívssima! Isso porque a agriculturaindustrial depende pesadamente da importação de recursos — fertilizantespara a adubação, água para irrigação, rações para os animais, combustívveisfósseis e eletricidade para mover maquinários… Ou seja, esses recursosnão são oriundos de dentro da propriedade em questão — vêm de fora, doslocais onde está ocorrendo a mineração das rochas fosfáticas e calcário, aextração e refno do petróleo, mananciais de onde é extraívda a água,plantações longívnquas onde estão sendo produzidos os ingredientes pararações animais, etc. Como pode-se calcular a produtividade por área semlevar em consideração todas essas áreas externas usadas para alcançar essaprodução? Sem contar também toda a infraestrutura industrial e viárianecessária para produção e transporte desses insumos. Fazendo-se essecálculo adequadamente, ou seja, considerando toda a área efetivamenteusada, dentro e fora da propriedade em questão, para alcançar essaprodução, ver-se-á que a real produtividade por área da agriculturaindustrial é bem menor que normalmente alardeado por seus proponentes!Da mesma forma, os impactos ambientais a distância, sendo computados,darão a real magnitude dos custos ambientais desse modelo produtivo. Emcontraste, na permacultura focamos no uso racional e sustentável dosrecursos locais, ou seja, de dentro do terreno, para produção, preservando ereciclando recursos como água e nutrientes do solo, com importaçãomívnima de recursos.

Deste modo, arrancando o manto falacioso sob o qual a agriculturaindustrial se esconde, desfaz-se o mito que ela é muito mais produtiva, ou que sóela pode alimentar o mundo.

A permacultura pode, sim, alimentar o mundo muito melhor que oagronegócio moderno vem fazendo, não só em quantidade como também emqualidade, com muito mais diversidade e evitando ainda contaminaçõesquívmicas, tanto no ambiente como nos próprios alimentos, por pesticidas, porexemplo. Além disso, promete fazê-lo de forma sustentável, através dapreservação e recuperação dos recursos naturais necessários à produção dealimentos e outros aspectos da vida humana. Já a agricultura industrial, bom,sabemos que ela vem alimentando boa parte do mundo já por várias décadas;

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mas, até quando poderá fazê-lo? Ela é indiscutivelmente insustentável, já quedepende totalmente dos recursos que ela própria está consumindo e destruindo(água, solos, fertilizantes quívmicos, clima, entre outros). Ou seja, ela faz parte deum paradigma doentio, autofágico. Não podemos contar com ela, pois se ofzermos, quando os recursos fatalmente acabarem, morreremos todos de fome.É estarrecedor que a maioria das pessoas, inclusive agrônomos, estejamdesatentos a esse terrívvel fato!

Desafos da permacultura

Pode-se dizer que a permacultura é um movimento extremamenteaudacioso, já que desafa, enfrenta o status quo, oferece a proposta de um modode vida radicalmente diferente, senão mesmo oposto ao estilo de vidaconvencional da sociedade moderna, e abraça ainda a missão de alterar os rumosdo mundo, reverter a nossa atual crise ambiental e civilizacional, evitando asconsequências nefastas claramente previsívveis de nosso atual curso de ação.

Eu não estava lá, no fnal da década de 70 e inívcio da de 80, quando BillMollison começou a ministrar seus cursos de permacultura pelo mundo, mastenho certeza, pelos registros deixados daquela época*, que deve ter sido ummomento extremamente excitante, empolgante para todos os que participaramdesses cursos, os pioneiros do movimento da permacultura — a sensação deestarem participando de um momento histórico, em que um grupo de pessoas,guerreiros da Terra, estavam construindo um modo de vida benéfco, harmônicocom a natureza, em um movimento que cresceria como uma bola de neve,inaugurando um novo capívtulo na história da humanidade.

Porém, nessas quase quatro décadas desde seu surgimento, embora apermacultura tenha efetivamente se espalhado por todo o mundo e conquistadomilhares de adeptos, há que se reconhecer que esse crescimento ainda está muitoabaixo do que seria necessário para efetivamente fazer uma diferença real,prática nos caminhos do mundo. Talvez os pioneiros fcassem decepcionados aosaberem que, hoje, ao invés de em processo de solução, cada um dos aspectos dacrise ambiental está de fato enormemente agravado em relação àquela época,enquanto que as pessoas que participam, ou mesmo conhecem, ou sequerouviram falar da permacultura ainda são senão uma pequena minoria dapopulação global.

Agora, isso não signifca que a permacultura falhou, ou que não hajaesperança. A permacultura continua sendo o melhor caminho para lidar com asituação da humanidade, e desistir de lutar certamente não é uma opção válida,ou mesmo digna. Porém, não podemos fngir que estamos fazendo tudo certo, e

* Um ótimo exemplo de tais registros são as transcrições de um PDC ministrado porMollison em 1981, posteriormente transformadas em uma série de apostilas intitulada“Série Curso de Design em Permacultura”, editada e publicada por Yankee Permaculture.

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que o movimento está indo perfeitamente bem; temos que aplicar o nossoprincívpio n.o 18 (“reavalie-se constantemente”) de forma que possamos sanar asdefciências, corrigir erros, fazer o movimento da permacultura evoluir eavançar, para que possa cumprir a sua missão. E devemos ter nisso um grandesenso de urgência — não há tempo a perder, pois a crise ambiental se agrava acada dia.

Mudança de atitude

É muito comum as pessoas assumirem que a permacultura é um caminhomais fácil que as opções convencionais de trabalho e estilo de vida da sociedademoderna. Isso simplesmente não é verdade, e trata-se de uma ilusão perigosa.

Nada do que fazemos na permacultura, escolhemos por ser mais fácil.Fazemos o que fazemos por uma variedade de motivos: porque é ético,moralmente correto; porque queremos uma vida mais natural e saudável; porquequeremos independência de coisas com que não concordamos no mundo, porquenão queremos compactuar com a destruição da vida no nosso planeta, ou talvezpara termos melhores chances de sobreviver ao colapso do sistema que aív está,etc. Mas não porque é mais fácil.

Algumas coisas são de fato fáceis: separar seu lixo para reciclagem,economizar água e energia, ter hábitos alimentares saudáveis, evitar oconsumismo… Mas isso é só o comecinho. Embora importantes, medidas comoessas, sozinhas, obviamente não vão salvar o mundo. Agora, viver da terra eatuar efetivamente na recuperação de ecossistemas, isso não é fácil. Masfazemos porque tem que ser feito.

Pelo menos parte dessa mentalidade que a permacultura é fácil vem de umvívcio dos próprios cursos e livros de permacultura. Infelizmente, ao vender apermacultura, os professores e autores acabam muitas vezes assumindo umamentalidade de vendedor que, conforme já mencionado, costuma deturpar ascoisas, esvaziando-as de sua essência — o objetivo principal passa a ser osucesso nas vendas. O problema é que coisas fáceis vendem mais, então asmuitas difculdades e agruras do caminho da permacultura acabam sendoomitidos por esses educadores. Ao invés disso, focam em abraços coletivos edanças circulares, etc., o que acaba criando ou reforçando a ilusão dapermacultura fácil, a atitude que tocar violão em volta da fogueira, cantar para aterra ou aplaudir o pôr do sol vai mudar o mundo. Claro que não há nada erradoem fazer essas coisas, mas temos que deixar claro que isso não é a permacultura.

Um resultado negativo disso é que muitas pessoas acabam aderindo àpermacultura de forma despreparada, sem saberem exatamente no que estão semetendo. Iniciam seus projetos sem dar a devida atenção à aquisição deconhecimentos aprofundados, tanto na teoria como na prática, e não dão adevida atenção e seriedade ao adequado planejamento, a elaboração de uma

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estratégia sólida de transição. Muitas vezes, iniciam sua jornada, mas o fazem deforma mole, apática, anêmica — não no discurso, esse sim, sempre empolgado,mas uma empolgação que não se traduz em empenho nos trabalhos, e acima detudo, na tenacidade necessária ao sucesso de qualquer empreendimentopermacultural e, de fato, qualquer coisa na vida.

“Se alguém te disser que a permacultura é fácil, isso só pode significar duas coisas: ou ele não sabe do que está falando, ou ele quer o seu dinheiro.”

Então, temos que mudar essa mentalidade. Romper com o paradigmadominante é totalmente possívvel e repleto de sentido, mas temos que construiresse caminho. Portanto, precisamos de pessoas que entrem na permacultura comuma mentalidade de pioneirismo, e mesmo de heroívsmo; pessoas preparadaspara enfrentar e vencer grandes desafos. Deve-se ter sempre em mente que nãohá conquista sem sacrifívcios.

Avançar a permacultura na prática

Infelizmente, ainda são escassos os exemplos concretos de pessoas quetiveram sucesso em fazer da permacultura o seu modo de viver, ou seja, querealmente alcançaram um estilo de vida sustentável, autossufciente, comabundância, e um papel relevante de recuperação ambiental. A maioria daspessoas que se dizem envolvidas com a permacultura apenas falam sobre oassunto; outras, a praticam em algum grau, mas não se pode dizer que vivam dapermacultura.

Precisamos de mais casos de sucesso, exemplos de vida e sistemasaltamente produtivos, efcientes, resilientes, associados a preservação erecuperação ambiental, exemplos que possam ser replicados, para que possaminspirar e mostrar o caminho a novos permacultores e a sociedade em geral. Paraisso é fundamental assumirmos a mentalidade de seriedade, compromisso etrabalho discutida acima.

“Já é hora da permacultura assumir para si aresponsabilidade da produção de alimentos.”

Temos que encher o campo de pessoas que produzem alimentos erestauram o ambiente através da permacultura. É inútil e esdrúxulo tentarconvencer os agricultores a produzir alimentos deste ou aquele jeito, com nossaspalavras e argumentos, se nós mesmos não produzimos nada. Tampoucodevemos esperar que os agricultores adotem a permacultura, para que nóspossamos consumir (comprar) alimentos ecológicos! Temos, sim, que arregaçaras mangas e assumir nós mesmos a produção de alimentos naturais, saudáveis,

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ecológicos, para nós mesmos e para o mercado, de forma efciente e abundante,através da permacultura, tornando assim o modelo ecocida, hegemônico naatualidade, obsoleto. Assim, os demais agricultores naturalmente aderirão àpermacultura, transformando o movimento em uma bola de neve.

“Viver da terra = viver na terra”

Ainda há pouco, argumentei que a permacultura e agricultura orgânicapodem muito bem alimentar o mundo, no que acredito frmemente. Tratei daquestão da produtividade por área; porém, há uma outra questão muitoimportante, que não pode ser omitida. É inegável que a agricultura industrial temuma produtividade por trabalhador rural, ou seja, por pessoa envolvidadiretamente no trabalho agrívcola, muito maior que a agricultura orgânica, e issose deve majoritariamente à mecanização. Como sabemos, a agricultura industrialdepende de um alto grau de mecanização, que de fato expulsa o homem docampo; em contraste, sistemas agrívcolas naturais e sustentáveis são muito menosfavoráveis à mecanização, exigindo, portanto, a fxação do homem no campo, notrabalho direto com a terra.

Ou seja, não é uma ilusão acreditar que a permacultura ou agriculturaorgânica podem alimentar o mundo, mas é, sim, uma ilusão acreditar que podemfazê-lo com praticamente toda a população mundial morando em cidades.Portanto, para que a humanidade possa alcançar a sustentabilidade através dapermacultura, é indispensável que haja um número sufciente de pessoas vivendono campo, trabalhando com a terra, produzindo alimentos e restaurandoecossistemas. É fundamental que haja uma reversão da crescente tendência àurbanização, e que passemos a um processo de ruralização, e esse fuxo deve serliderado pelos permacultores.

Ganhar visibilidade

Um dos principais obstáculos da permacultura é sua falta de visibilidade,dentro da sociedade. Conforme já mencionado, a imensa maioria das pessoassimplesmente nunca ouviu falar da permacultura; portanto, para elas a via dapermacultura simplesmente não existe. De fato, a maioria não está sequer cienteda grave crise em que estamos metidos, e portanto não tem consciência danecessidade de mudança. Isso se deve, ao menos em grande parte, ao fato de queos grandes cívrculos do poder — corporações, governos, mívdia — não têm omenor interesse em mudar o sistema atual. Essas entidades determinamlargamente o que as pessoas sabem e como elas pensam, já que detêm o controleda educação formal e meios de comunicação em massa.

Agora, claro que não podemos contar com a ajuda do sistema para mudar osistema! Para que a permacultura cumpra sua missão, é fundamental que elaatinja o maior número de pessoas possívvel, e para isso devemos lançar mão de

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 18. Proposta de Uma Transição Global

todos os meios disponívveis. Neste sentido, merecem destaque as mívdiasalternativas, especialmente a internet — websites, blogs, vívdeos, artigos e redessociais, etc., são todas ferramentas válidas e muito úteis na disseminação deinformações sobre a permacultura, seus conceitos, técnicas, projetos emandamento, etc. Sempre que possívvel, devemos lançar mão também de canais damívdia convencional, especialmente rádios, jornais e revistas locais, maiscomumente disponívveis.

Agora, não devemos nunca subestimar o poder da transmissão boca a boca,ou seja, a inspiração das pessoas ao nosso redor, através do nosso exemplo. Estatalvez seja a ferramenta mais importante no fortalecimento e disseminação dapermacultura. E para que isso ocorra efcientemente, é essencial que tenhamosmais e mais casos concretos de aplicação da permacultura às nossas vidas, comodiscutido acima.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 19. Conclusão

19CONCLUSÃO

Nossa civilização industrial está em pleno boom: população crescendo,economia crescendo, expectativa de vida crescendo, em praticamente todos ospaívses, todos os cantos do mundo. Todos os dias há mais gente, mais carros,mais casas, mais aviões, mais navios, mais fábricas, etc. que no dia anterior.

Isso pode levar a pessoa desatenta à conclusão que está tudo bem, queestamos no caminho certo e não há com que se preocupar. Porém, nada poderiaestar mais longe da verdade, pois o preço para esse boom é o declívnio dramático,contívnuo, progressivo dos recursos naturais que são vitais não apenas a essecrescimento, mas também à manutenção da civilização, à vida humana e de fatoa vida complexa em geral na Terra. Essa conta está se avolumando, para um diaser paga, se não por nós mesmos, pelos nossos descendentes. A humanidade nãoescapará das consequências de seus atos.

A maioria das pessoas simplesmente não sabem, não têm conhecimento ouconsciência deste fato, porque esse declívnio de recursos está acontecendo longede suas vistas, ou porque não compreendem a natureza dos recursos naturais, ounão são capazes de entender adequadamente escalas de tempo, etc. E parececlaro que as massas são mantidas nesse estado de inconsciência e ignorância deforma proposital, para conveniência do sistema e seus mestres ocultos,interessados na manutenção do status quo.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 19. Conclusão

Por outro lado, também os despertos, pessoas que compreendem agravidade da situação atual, em sua grande maioria falham em tomar atitudesconcretas para mudar a história, ou pelo menos sua parte nela; talvez por estaremperdidas e não saberem o que fazer, talvez por não terem a fbra necessária parafazer o que tem que ser feito, ou provavelmente uma combinação de ambos.

Porém, não creio que seja produtivo tentar apontar culpados para estasituação. O fato é que a causa real para a encruzilhada em que estamos é apenasuma: a nossa civilização em si. Agora, como demonizá-la, se foi ela mesma quenos possibilitou vencer a mortalidade infantil e passar para trás inúmerasdoenças terrívveis, como a varívola e poliomielite? Que permitiu odesenvolvimento da ciência que nos possibilitou alguma percepção objetiva danatureza, do universo e nosso lugar nele? Que nos possibilitou viajar e conhecero mundo, e viver vidas muito mais confortáveis e seguras que antes, entre outrosincontáveis avanços sem os quais nem sequer conseguimos imaginar comoestariam nossas vidas hoje?

Por essas e outras, certamente não é possívvel ou desejável abandonar acivilização. Porém, se quisermos ter uma chance de sobreviver e dar aos nossosdescendentes condições para uma vida no mívnimo satisfatória, e preservar a vidae beleza em nosso planeta, temos que reinventar a nossa civilização. Ou seja,atitudes pontuais — os bons e velhos “fechar a torneira”, “apagar as lâmpadas”,“jogar o lixo no lixo” — jamais serão sufcientes; é preciso uma reformulaçãototal da forma como vemos e nos relacionamos com o mundo natural e asociedade, uma mudança de nossos objetivos e estilos de vida, com aplicação emmassa dos conceitos para uma vida saudável e sustentável. Esse grande pacote demudanças é justamente o que a permacultura representa, daív sua imensaimportância, e por isso é fundamental que ela seja desenvolvida, propagada,multiplicada, alcançando o maior número possívvel de pessoas, permitindo que seengajem nesse movimento, antes que seja tarde demais. Muitos acreditam que jáé tarde demais, ou que um número sufciente de pessoas jamais abraçarão apermacultura devido a vívcios da própria natureza humana. Eles podem até estarcertos, mas temos que tentar mesmo assim — afnal, o que mais podemos fazer?

Este pequeno livro é apenas um apanhado de informações, ideias econceitos que eu venho adquirindo ao longo de anos de estudos intensos,observação atenta do mundo e experimentação prática. Reitero que não tenhocom ele a pretensão de dar respostas a todas as perguntas. O universo deconhecimentos cientívfcos e tradicionais, informações e técnicas necessárias ouúteis a uma vida sustentável é vasto e não cabe em um livro, ou em uma sópessoa, seja ela quem for. Esse universo está aív para todos nós explorarmos eaprendermos, ao longo de nossas vidas. A mente atenta e interessada nunca párade aprender.

Muitas perguntas permanecem sem resposta, e portanto muito ainda há que

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se desenvolver. Há muitas pessoas pensando realmente em maneiras de sair destaarapuca que criamos e em que nos metemos, e isso em si já é uma ótima notívcia.Então, temos três missões: aplicar o que já se sabe, desenvolver o que ainda nãose sabe, e envolver o maior número de pessoas possívvel, levando conhecimento einspiração para que também abracem o ideal da sustentabilidade humana. Aindaestamos apenas no começo desta jornada, desta luta para inventar um modo devida ao mesmo tempo abundante e confortável, mas também ecologicamentesaudável e sustentável — uma empreitada inédita na história da humanidade.

Reverter nossa trajetória rumo à nossa própria destruição é um imensodesafo, mas certamente não pode haver outro desafo que mais valha a penaabraçarmos. Agora, é preciso fazê-lo com muita coragem; é preciso adotarmosuma mentalidade de pioneirismo e mesmo de heroívsmo frente a este desafo e asdifculdades com que fatalmente esbarraremos no caminho. Só assim teremosalguma chance de sucesso, seja no nívvel individual, coletivo, e quem sabe, global.

Dediquei uma dose considerável de esforço e tempo de minha vida paraescrever este livro, o que fz com grande dedicação e amor, sendo que estevedecidido desde o inívcio que seria posto em domívnio público, para que alcançasseo maior número de pessoas possívvel, tendo como maior objetivo contribuir,também dessa forma, para o progresso do movimento da permacultura. Se estelivro conseguir fazer com que ao menos uma única pessoa decida juntar-se anós, permacultores, abraçando como missão de vida cuidar de verdade do nossolindo planeta, meus esforços terão sido recompensados.

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“Curar a Terra e purificar o espírito humano são o mesmo processo.”— Masanobu Fukuoka