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CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO CAMPUS ENGENHEIRO COELHO A REPRODUÇÃO DA COLOQUIALIDADE NA OBRA “ AS AVENTURAS DE HUCKLEBERRY FINN” DE MARK TWAIN: UM ESTUDO COMPARATIVO DE DUAS TRADUÇÕES ALINE COSTA DE MATOS ENGENHEIRO COELHO 2012

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Page 1: A REPRODUÇÃO DA COLOQUIALIDADE NA … de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo, do curso de Tradutor e Intérprete apresentado e aprovado em 18 de

CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO

CAMPUS ENGENHEIRO COELHO

A REPRODUÇÃO DA COLOQUIALIDADE NA OBRA “AS AVENTURAS DE

HUCKLEBERRY FINN” DE MARK TWAIN: UM ESTUDO COMPARATIVO DE

DUAS TRADUÇÕES

ALINE COSTA DE MATOS

ENGENHEIRO COELHO

2012

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ALINE COSTA DE MATOS

A REPRODUÇÃO DA COLOQUIALIDADE NA OBRA “AS AVENTURAS DE

HUCKLEBERRY FINN” DE MARK TWAIN: UM ESTUDO COMPARATIVO DE

DUAS TRADUÇÕES

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Tradutor e Intérprete,

pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo, campus Engenheiro Coelho, sob orientação da Prof. Ms. Neumar de Lima.

ENGENHEIRO COELHO 2012

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Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Universitário Adventista de São Paulo,

do curso de Tradutor e Intérprete apresentado e aprovado em 18 de novembro de

2012.

_________________________________________________

Orientador: Prof. Ms. Neumar de Lima.

__________________________________________________________

Segunda leitora: Prof.ª Ms. Tania Siqueira

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Dedico este trabalho às pessoas simples e que não se importam em seguir os padrões estipulados pela sociedade;

dedico a pessoas como Huckeberry Finn e Jim, que só querem ser livres.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus que me fortaleceu e conduziu até aqui. Sem sua guia eu talvez nunca tivesse a

oportunidade de me graduar em uma instituição adventista.

Agradeço à minha mãe que sempre me incentivou a estudar, aproveitar as oportunidades que a

vida oferece, e a correr atrás dos meus sonhos, que junto cultivamos. Sofremos junto com a dor

da distância, superamos dificuldades, vencemos nossos medos. Além de super-mãe, é minha

amiga e companheira.

Agradeço ao meu irmão, pois só de lembrá-lo já fico feliz; ele me dá forças para continuar quando

vejo que a distância o tornou um homem sábio e dedicado. Eu o amo profundamente.

Agradeço também ao meu namorado, pelo suporte, companheirismo e amor. Enfrentamos as

mesmas dificuldades juntos, compartilhamos o processo de graduação, entregas de trabalhos,

provas e TCC, e pretendemos ainda juntos superar os desafios que ainda virão.

Agradeço também ao UNASP a oportunidade dada a mim, me concedendo uma bolsa de

estudos. Não posso deixar de citar as bibliotecárias Lia Holdorf, e Kátia Vieira e a professora Ruth

Bartarin, que foram meus chefes do setor onde desenvolvi diversas atividades durante os quatro

anos em que estive na Biblioteca Universitária Enoch de Oliveira, onde aprendi e me desenvolvi

muito, desde o atendimento aos usuários á catalogação de livros. Ali aprendi a ser responsável

pelo ambiente de trabalho, e me desenvolvi em diversas áreas que, sem dúvida, contribuíram

para a minha formação profissional, com o meu crescimento pessoal e com a minha preparação

para ser uma pessoa melhor e independente.

Agradeço aos professores que sempre estimularam o meu crescimento intelectual, me

incentivaram a ser esforçada a sempre buscar o meu melhor e ir além, suportaram as

reclamações a muitas vezes a má vontade. Eles, além de tudo, me ensinaram a amar a língua

inglesa. Nunca me esquecerei das aulas de interpretação na cabine ministrada pelo professor

Milton Torres, que assumiu a coordenação do curso de tradutor e interprete e nos fez distintos e

únicos; nem das aulas de Análise Contrastiva com o professor Neumar de Lima. Suas aulas

faziam valer o curso. Não posso me esquecer das oficinas de tradução com a Professora Dr.ª

Ana Maria de Moura Schäffer, que sempre está disposta a dar seu máximo pelos alunos, tão

preocupada que podemos chamá-la de segunda mãe. Ela é nossa companheira e amiga. As

aulas de Análise dos Erros do Português e Análise Discursiva com os professores Edley Matos e

Joubert C. Peres; as aulas de Literatura Portuguesa e Brasileira com o professor Davi Oliveira e

Literatura Americana e Inglesa com a professora Tania Siqueira; e das aulas de Sociologia e

Ética Cristã com a professora Tânia Torres.

Agradeço ao companheirismo das minhas colegas de quarto e dos muitos amigos que fiz aqui no

Unasp durante estes quatro anos, entre formandos, novatos e desistentes, lá estava eu ajudando

e sendo ajudada. Deus me mandou anjos que se tornaram amigos verdadeiros e que me

ensinaram muitas coisas.

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A sound heart and a deformed

conscience come into collision, and

conscience suffers defeat.

Mark Twain

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RESUMO

A atividade tradutória é uma arte criadora, que não se detém apenas na transmissão de palavras de um idioma para outro. Esta atividade envolve toda uma bagagem cognitiva, conhecimento enciclopédico, conhecimento profundo das línguas de

partida e de chegada, além da utilização de recursos e estratégias tradutórias que o auxiliarão em seu trabalho. A partir de várias definições do papel do tradutor feitas por pesquisadores e teóricos como Arrojo (1993), Betti, (2003) e Venuti (1995), entre

outros, embasaremos a prática tradutória com uma análise comparativa de duas traduções da obra de Mark Twain, “The adventures of Huckleberry Finn”. Muitas vezes, uma tradução é criticada sem se conhecer o contexto em que surgiu. Os

recursos tradutórios variam conforme os propósitos do tradutor, o que varia também nas diferentes formas de se traduzir determinado texto; consequência disso são as várias traduções de um mesmo texto. O tradutor como criador nos leva à

problemática contemplada nesta pesquisa: até que ponto o tradutor difere do sentido original, abarcado por todo contexto cultural e linguístico da produção original. Dentro desse panorama, o objetivo deste trabalho é investigar o estilo dos

tradutores, com foco na coloquialidade e na oralidade presente na obra de Twain. As duas traduções escolhidas para indicar as possíveis estratégias tradutórias adotadas em cada caso foram “As aventuras de Huckleberry Finn” traduzido por Monteiro

Lobato, publicado pela editora Brasiliense em 1994, e outra por Rosaura Einchenbreg, publicado em 2011 pela L&PM.

Palavras-Chave: Prática tradutória; Ato criador; Coloquialidade; Oralidade.

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ABSTRACT

The translation activity is a creative art that is not only restricted to conveying words from one language to another. This activity involves a whole cognitive baggage,

encyclopedic knowledge, deep knowledge of the languages of departure and arrival, as well as the use of resources and translational strategies that will assist the translator in his work. Starting with several definitions of the role of the translator

made by researchers and theorists such as Arrojo (1993), Betti, (2003) and Venuti (1995), among others, we will underpin the translation practice with a comparative analysis of two translations of the work of Mark Twain, "The adventures of

Huckleberry Finn". Many times, a translation is criticized without knowledge of the context in which it was produced. The translation resources differ according to the purposes of the translator, which also differs in the different ways to translate a

certain text, the result being several translations of a same text. The translator as creator leads to our research problem: how far the translator differs from the original sense, embraced with all its cultural and linguistic context of the original production.

Inside this overview, the objective of this study is to investigate the style of translators, focusing on colloquiality and orality present in the work of Twain. The two translations chosen to indicate the possible translation strategies adopted in each

case is, “As aventuras de Huckleberry Finn” translated by Monteiro Lobato, published by Editora Brasiliense in 1994, and the other by Rosaura Einchenbreg, published in 2011 by L&PM.

Keywords: Translation practice; Creative art; Colloquiality; Orality.

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LISTA DE TABELAS

TABELA 1 - ................................................................................................................22 TABELA 2 -. ...............................................................................................................24

TABELA 3 - ................................................................................................................26 TABELA 4 - ................................................................................................................28

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

2 METODOLOGIA ........................................................................................................ 14

3 DESENVOLVIMENTO ............................................................................................... 15

3.1 O Papel do tradutor............................................................................................... 15

3.2 Invisibilidade x Criação ........................................................................................ 16

3.3 Biografia de Mark Twain....................................................................................... 18

3.3.1 Vida x Obra ......................................................................................................... 19

3.4 Análises das comparações.................................................................................. 21

3.4.1 Capitulo 1 ............................................................................................................ 21

3.4.2 Capitulo 8 ............................................................................................................ 23

3.4.3 Capitulo 29 .......................................................................................................... 26

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 29

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 32

ANEXO .......................................................................................................................... 34

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1. INTRODUÇÃO

Este pesquisa se propõe a investigar como a linguagem coloquial - aspecto

marcante na obra – foi reproduzida em duas traduções em língua portuguesa.

Tomando como base a obra “The adventures of Huckleberry Finn”, de Mark Twain,

traduzida para o português do Brasil como: “Aventuras de Huckleberry Finn”,

comparamos como a coloquialidade dessa obra foi reproduzida em duas traduções,

sendo a primeira de Monteiro Lobato (1934) e a segunda de Rosaura Eichenberg

(2011), tradutora da última edição, publicada pela L&PM. O texto original foi

publicado em 1884, e é considerada uma das obras fundadoras da literatura

americana.

O livro apresenta uma narrativa denunciadora do racismo de sua época e,

para tanto, dá aos personagens, e inclusive ao narrador, uma voz até então

incomum na literatura norte-americana; isto é, os dialetos literários representantes

da condição social, étnica e linguística dos personagens.

As traduções desempenham papel fundamental tanto na literatura como nas

mais diversas áreas, pois expandem as fronteiras literárias e políticas. Segundo

Corrêa (1996, p. 23), “a compreensão do texto literário depende, pois, das

circunstâncias específicas de construção do texto a partir do efeito intentado pelo

autor, enquanto possibilidades sígnicas, e da percepção alcançada pelo leitor”. Os

tradutores tentam captar estas intenções do autor e transmiti-las aos leitores. Dessa

forma, enriquecem a cultura de um país e trazem um adiantamento literário,

científico e técnico para os países. Segundo Venuti (1995), a tradução pode

enriquecer a literatura de certo país e ser responsável pelo desenvolvimento de uma

linguagem e literatura domésticas.

Deixaremos claro o papel do tradutor e sua importância como profissional.

Muitos teóricos questionam a invisibilidade do tradutor, ou seja, até onde ele

consegue ser imparcial. Esse ponto nos leva a repensar o tradutor como criador, e,

por fim, nos indagamos onde está o limite para o ato criador de maneira que não

comprometa a fidelidade à intenção comunicativa e literária do autor original,

tampouco a fidelidade aos leitores da língua de chagada. Através de

fundamentações teóricas, usaremos textos que tratam desses assuntos, explanados

pelos teóricos, como Arrojo (1993, 2003), Betty (2003) e Venuti (1995).

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Cremos que diferentes tradutores abordam o texto a ser traduzido com

objetivos diferentes, e isso se reflete no produto final, a obra traduzida. E no caso

desta pesquisa, reflete-se sobre a coloquialidade – nosso foco de estudo.

A estilística da linguagem, e principalmente a linguagem coloquial utilizada

pelos personagens nos diálogos, nos servirão como base de comparação. A fim de

nos familiarizarmos com a obra, trataremos do contexto cultural e das peculiaridades

da época em que a obra foi escrita, para dessa forma tentarmos captar o objetivo do

autor original e como foi a recepção da obra pelo público americano.

Com as comparações dos diálogos dos personagens presentes nas duas

traduções utilizadas, investigaremos até que ponto os tradutores se preocuparam

em reproduzir a língua coloquial do original, e apresentaremos as escolhas de cada

um, ou seja, suas características tradutórias.

A problemática da pesquisa se atém à maneira como o trabalho do tradutor

interfere na estilística textual, e procurará investigar até que ponto o tradutor pode ou

deve refletir o contexto social, cultural e linguístico evidenciado na língua original, e

quais as consequências das escolhas do tradutor.

Trata-se de um trabalho de análise teórico-comparativa cujo objetivo geral é

estabelecer comparações entre duas traduções feitas para a língua portuguesa, com

foco na tradução da coloquialidade presente no original.

Pretende-se, também, alcançar os seguintes objetivos específicos:

1) Apresentar as questões teóricas que envolvem a fidelidade do tradutor na

tradução literária versus o ato criador.

2) Comparar o estilo linguístico do original com o utilizado por dois tradutores

da obra para o português.

3) Investigar o estilo literário dos tradutores no que diz respeito à

coloquialidade, e até que ponto conseguiram transmitir em língua portuguesa os

aspectos coloquiais e a oralidade da obra original.

A motivação maior que inspirou a elaboração do presente trabalho foi a de

investigar as diferenças, mediante comparações, entre duas traduções em língua

portuguesa de uma mesma obra em língua inglesa. Nosso interesse particular na

obra de Mark Twain iniciou-se com a leitura da obra original e com a curiosidade de

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saber como o tradutor brasileiro teria conseguido transpor para o português uma

obra com linguagem tão característica e peculiar, principalmente no nível da

coloquialidade e oralidade – aspectos do original que faz com que a leitura seja

agradável e interessante.

Ao entrar em contato com essas duas traduções tão distintas, e ao ler as

críticas aos autores, fiquei curiosa em esclarecer os seguintes pontos: (1) até que

ponto a tradução de um dos tradutores teria sido muito rebuscada e talvez até infiel

(2) o que teria motivado as escolhas dos tradutores que resultaram em obras iguais

no conteúdo, mas completamente distintas no estilo linguístico e literário, e, por fim,

(3) a possibilidade ou a impossibilidade de refletir na obra traduzida certos aspectos

culturais e linguísticos de uma determinada região. Todos esses aspectos nos

instigaram a fazer uma análise comparativa entre essas duas traduções em língua

portuguesa que têm fundamentalmente forte diferença estilística.

Este trabalho justifica-se pela importância do tema para a área de tradução,

para a sociedade acadêmica, e principalmente, aos tradutores, escritores,

estudantes e/ou interessados. Tem impacto no meio literário, visto que dentro da

literatura, a crítica ao meio sociocultural está geralmente presente de forma

intrínseca ou extrínseca.

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2. METODOLOGIA

A pesquisa foi realizada no UNASP – Campus Engenheiro Coelho. A

metodologia utilizada foi a análise estilística e linguística das duas obras traduzidas

para o português. Como embasamento teórico, revisaremos a opinião de vários

teóricos com relação ao papel do tradutor. Esta revisão se faz necessária para

definirmos o tradutor como um profissional que tem um grande poder em suas mãos,

assim como também um grande desafio. Ainda no decorrer do desenvolvimento da

teoria, investigaremos a tarefa do tradutor em seu processo contínuo de tomadas de

decisões para deixar como legado um trabalho de qualidade e fiel a ambas as partes

envolvidas: autor original e público alvo.

Diferentemente das pesquisas sobre a teoria da tradução dos primeiros

estudiosos, mostraremos que atualmente o tradutor é mais visto como um re-

escritor, um criador. Nessa linha de pensamento, a linha entre a invisibilidade e o ato

criador do tradutor é tênue e quase imperceptível, mas não impossível.

Após definido o papel do tradutor e as teorias atuais sobre a tradução,

apresentamos a biografia do autor, Mark Twain, pois acreditamos que sua vida teve

grande influência em sua obra escrita. Dessa forma, pretendemos situar autor e

obra, contexto histórico, aspectos culturais e público alvo.

Através do corpus que será constituído de diferentes partes do livro, faremos

comparações entre o original em inglês e as duas traduções em português, uma de

Monteiro Lobato e outra de Rosaura Eichenberg, ambas contendo uma estilística

bem distinta. Apontaremos para nosso embasamento teórico para justificar e discutir

as escolhas de cada tradutor ao terem que traduzir regionalismos, gírias, ou seja, a

coloquialidade e a oralidade fortemente presente no texto original.

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3. DESENVOLVIMENTO

3.1. O Papel do tradutor

O papel do tradutor de transpor culturas, e de ser um mediador é fundamental

para um trabalho de qualidade. Traduzir é mais do que conhecer uma língua, ou seu

vocabulário, ou apenas transpor palavras; é preciso saber o que fazer para resolver

os problemas enfrentados. E para conseguir uma boa performance, algumas

habilidades e conhecimentos específicos se fazem necessários.

Um dos conhecimentos mais importantes é o conhecimento do público alvo,

para saber, dentre outros fatores, o nível de linguagem que poderá ser usado, quais

as melhores escolhas lexicais e quais estruturas gramaticais usar, para que o texto

traduzido contenha as modificações necessárias visando à melhor compreensão dos

leitores. Schleiermacher afirma que:

[...] o tradutor deve almejar o objetivo de proporcionar ao seu leitor uma imagem e um prazer tais como a leitura da obra na língua original oferece ao homem formado de tal maneira que gostaríamos de chamar, no melhor sentido da palavra, de admirador e conhecedor. (SCHLEIERMACHER, 2001, p. 49)

Fica claro que o tradutor deve tentar fazer o leitor imaginar a mesma imagem

pretendida pelo autor original e causar nele o mesmo impacto que o texto original

causou. Segundo Aubert (1994), as tentativas de fidelidade do tradutor, como

intermediador, deve ser com relação à imagem que ele faz do autor e do texto

original e com relação à imagem que ele faz do seu leitor. Para tanto, deve utilizar a

imaginação, entrar na pele do autor e tentar dizer o que ele diria se falasse a língua

para a qual a obra está sendo traduzida.

O conhecimento profundo da língua materna e da língua fonte é importante, e

mais do que isso, o conhecimento profundo da cultura de ambas as partes não pode

ser desconsiderado. O leitor de uma obra traduzida geralmente não pode entender o

que vai à mente de outra pessoa que tenha crescido e vivido em um ambiente

diferente do seu, com crenças, valores, e modo de ver o mundo distinto. Segundo o

antropólogo polonês Bronislaw Malinowski, “uma língua será compreendida e fará

sentido, apenas quando se levar em conta o contexto cultural na qual está

enraizada” (KATAN, 2004, p.65). O intercâmbio ou um mergulho cultural pode ser

decisivo na hora da tradução:

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O papel do mediador é interpretar as expressões, as intenções, as percepções e as expectativas de um grupo cultural para outro [...] Para servir como tal elemento de ligação, o mediador deve ser capaz de participar de alguma maneira de ambas as culturas. Assim, o mediador deve ser, em alguma medida, bicultural. (KATAN, 2004, p.17)

Cremos que esse princípio básico do dever do tradutor nos ajuda a perceber

o profissionalismo que se exige dele. Quando o tradutor consegue ser fiel ao leitor,

sem deixar de lado o objetivo original, concluímos que ele realizou fidedignamente

sua tarefa de tradutor.

3.2. Invisibilidade X Criação

Quando falamos sobre invisibilidade, geralmente nos referimos a um tipo de

texto traduzido que mantém invisível; e no nosso caso, é o tradutor que se mantém

invisível. Ao lermos um texto, sentimos que estamos lendo algo que foi produzido

em nossa própria língua nativa. Sempre que pensamos em invisibilidade na

tradução, concluímos que o tradutor fez um ótimo trabalho, já que sua voz não é

percebida. Para alcançar esse objetivo, espera-se que o tradutor se anule ao

máximo, não deixe transparecer suas marcas pessoais, muito menos suas opiniões.

Em outras palavras, o tradutor deve ser neutro.

No entanto, não podemos acreditar que o tradutor consiga se anular por

completo, sendo ele um ser pensante, cheio de ideias e opiniões. Como ser

cognitivo e tendo sua marca pessoal, é difícil imaginar que, no momento da

reconstrução de um texto, ele não fará nenhum tipo de modificações.

Venuti (1995) discute essa questão afirmando que o tradutor não deve ter um

papel invisível. É fundamental que ele faça as alterações necessárias para traduzir o

conteúdo, produzir a mensagem e causar o mesmo impacto do original. Como

mencionamos acima, ao falarmos sobre o papel do tradutor, ao ele ler o texto inicia-

se um processo de decisões interpretativas que envolvem a interpretação do sentido

das palavras para que os leitores possam entender o texto.

Essas considerações nos levam à teoria interpretativa de Seleskovitch (1980,

1984). Essa pesquisadora reafirma o que Venuti (1995) nos apresentou, ao ressaltar

que uma boa tradução vai muito além da mera correspondência estrutural de uma

língua para outra, pois o tradutor deve levar em conta as funções pragmáticas e

comunicativas que exigem processamento cognitivo por parte do tradutor (PAGURA,

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2004, LIMA, 2012). A teoria possui três postulados básicos. São eles: a percepção, a

desverbalização e a reverbalização.

A reverbalização, o último dos postulados, é o mais importante, pois nos fala

sobre a fidelidade e comprometimento do tradutor ao transpor para a língua de

chegada a mensagem original. Lima (2012), com base em Pagura (2004), ressalta

que:

é neste momento que o tradutor revela sua competência profissional e sua fidelidade ao ato da tradução. Essa fidelidade envolve quatro aspectos. Um: o tradutor deve ser fiel ao sentido da mensagem – um sentido que nasceu na mente do escritor antes mesmo de começar a escrever. Buscar esse sentido pré-verbal, ou essa intenção comunicativa, dever ser o supremo alvo do tradutor. Dois: o tradutor deve demonstrar fidelidade aos meios de expressão oferecidos pela língua para a qual está traduzindo, ou seja, a língua de chegada. Três: deve ser fiel aos destinatários da tradução de maneira que possam depreender o mesmo sentido pretendido para os destinatários do texto original. Quatro: precisa ser fiel à finalidade do uso do texto traduzido. (LIMA, 2012, p.4).

Percebemos então que, em vez de tradução literal, temos a produção de

significados, os quais assumem sentidos específicos quando inseridos em

determinado contexto. Tal fato se justifica porque é preciso adaptar a língua à

cultura de chegada. O tradutor deve reproduzir as ideias do original e não as

palavras isoladas.

Arrojo (1993) questiona a possibilidade de que uma tradução seja

inteiramente fiel ao texto original, especialmente devido ao fato de que estamos

lidando com um processo de recriação ou transformação. A autora afirma:

Nossa tradução de qualquer texto [...] será fiel não ao texto “original”, mas àquilo que consideramos ser o texto original, àquilo que consideramos constituí-lo, ou seja, à nossa interpretação do texto de partida, que será, como já sugerimos, sempre produto daquilo que

somos, sentimos e pensamos. (ARROJO, 1993, p. 42).

Agora chegamos a um ponto crucial. Vimos até o momento que o tradutor não

é apenas uma máquina que transporta signos, mas também um decodificador de

mensagens e um criador. Mas vimos também que sua criação será fiel ao que

acredita estar correto e conforme sua concepção do original. Assim, um tradutor

será fiel à sua própria ideia de tradução.

Por fim, apresentaremos não explicações, mas possíveis motivos pelo qual

um texto traduzido é modificado. As diferentes decisões tomadas na desconstrução

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do texto caracterizam a visibilidade do tradutor. Corrêa (1996, p. 2), ao falar sobre a

compreensão do texto literário, nos mostra que “o uso de desvios admissíveis na

tradução pode tornar o texto interessante e mais fiel em relação à língua alvo”.

Segundo Lefevere (1992), os reescritores adaptam e manipulam até certo

ponto os originais com os quais trabalham, produzindo traduções, histórias da

literatura, antologias críticas ou edições, normalmente para adequá-los à corrente,

ou a uma das correntes ideológicas ou poetológicas dominantes de sua época.

As inúmeras divergências estruturais existentes entre a língua do original e a

tradução obrigam o tradutor a ESCOLHER, de cada vez, entre duas ou mais

soluções, e, em sua escolha, ele é inspirado constantemente pela língua para a qual

traduz.

Em suma, cabe ao tradutor encontrar um equilíbrio e harmonia entre sua

invisibilidade e arte de criar. Lima (2012, p. 8,9) parece sintetizar muito bem esse

equilíbrio ao destacar que:

prestar serviço [de tradução] de qualidade [...] não é simplesmente munir-se de dicionários e começar a traduzir mecanicamente. [...] traduzir envolve profundo envolvimento cognitivo da parte do tradutor, fundamentado em sólido conhecimento da língua de partida e chegada [...]. Somente assim o tradutor poderá construir pontes seguras capazes de transpor barreiras linguísticas e culturais; pontes cujo pavimento é a fidelidade. Menos do que isso é trair aqueles que

depositam [no tradutor] [...] confiança implícita.

3.3. Biografia de Mark Twain

Mark Twain é apenas um pseudônimo, o termo se origina da área da

navegação, e significa “duas braçadas”. Seu nome verdadeiro é Samuel Clemens,

nascido em 30 de novembro de 1835, num vilarejo chamado Flórida, em Missouri.

Teve sete irmãos, mas apenas quatro sobreviveram à idade adulta.

Quando tinha quatro anos, sua família mudou-se para Hannibal uma cidade

portuária, à beira do Rio Mississipi, onde viveu até os dezoito anos. Missouri, na

época, era um estado escravagista, e o jovem Twain acabou familiarizando-se com

a escravidão. (WIKIPÉDIA).

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Em sua Biografia, Twain (2000, p.23), nos ajuda a imaginar como sua foi

infância, o constrangimento, as brincadeiras, e a rivalidade entre irmãos. Como ele

mesmo escreve:

A vida de um menino não é comédia o tempo todo, muito do trágico também está presente. Sempre me disseram que eu era um menino enjoado, precário e cansado, com uma infância incerta. Vivia principalmente com medicamentos alopáticos durante os sete anos de minha vida.

Mark Twain reconhece que sua mãe teve dificuldades para criá-lo. Ele teve

que trabalhar cedo, devido à morte de seu pai. Trabalhou como tipógrafo e ajudou

seu irmão com artigos e textos humorísticos. Aos 22 anos, em uma viagem de barco

pelo Mississipi em direção à Nova Orleans, decidiu tornar-se timoneiro de barco a

vapor. Era uma ocupação bem remunerada, mas que exigia amplo conhecimento do

rio e seus diversos portos e paradas. Ele estudou meticulosamente os 3,200 km do

Mississippi por mais de dois anos, até receber sua licença de timoneiro. Trabalhou

no setor naval, servindo como piloto até1861, ano em que a Guerra Civil Americana

estourou, o que restringiu o tráfego pelo rio Mississippi. Então passou a trabalhar no

Territorial Enterprise, como jornalista. (WIKIPÉDIA).

Em 1870, casou-se com Olivia. Uma mulher de família rica, que tinha contato

com abolicionistas, socialistas, ateístas e ativistas dos direitos femininos e de

igualdade social, o que lhe permitiu e deu a oportunidade á Twain de adentrar neste

mundo e fazer vizinhos e amigos de longa data.

Twain morreu em decorrência de um ataque cardíaco em 21 de abril de 1910.

Encontra-se sepultado no Woodlawn Cemetery, no Condado de Chemung, em Nova

Iorque. Permaneceu como uma figura célebre, conhecido por seu costumeiro terno

branco e longo cabelo branco como por sua resistência à injustiça e ao imperialismo.

(Editora LMP).

3.3.1 Vida x Obra

Ao entrarmos em contato com a biografia de Twain, podemos agora fazer

uma ligação com a obra em questão, e dessa forma confirmaremos a teoria de que o

que um autor escreve reflete muito o ambiente em que viveu e seus valores. Fica

evidente que o tempo em que passou no rio Mississipi exerceu impacto em seus

escritos, visto que Huck e Jim viajam em uma balsa por este mesmo rio.

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A principal problemática por traz da obra de “Adventures of Huckleberry Finn”

é a escravidão. Twain em sua autobiografia faz menção a ela algumas vezes:

In my schoolboy days I had no aversion to slavery. I was not aware that there was anything wrong about it. No one arraigned it in my hearing; the local papers said nothing against it; the local pulpit taught us that God approved it, that it was a holy thing and that the doubter need only look in the Bible if he wished to settle his mind – and then the texts were read aloud to us to make the matter sure; if the slaves themselves had an aversion to slavery they were wise and said

nothing.1 (apud RAMOS, 2008, p.27).

Assim como em sua infância, no livro temos relatos de Huckleberry Finn sobre

a escravidão. Algumas vezes ele fica em dúvida quanto a como agir, pois a

sociedade lhe ensinou uma coisa sobre negros escravos e sua experiência de vida

lhe ensinou outras. Com o desenvolver do livro e consequentemente com o

amadurecimento de Huck, vemos que ele decide em que lado ficar. Entre as muitas

conversas com Jim, ele decide fazer o que ele acredita ser correto e justo, mesmo

que vá para o inferno por causa disso. Selecionamos um trecho onde Huckckleberry

sofre com a dúvida entre o certo e o errado:

They went off and I got aboard the raft, feeling bad and low, because I knowed very well I had done wrong, and I see it warn't no use for me to try to learn to do right; a body that don't get STARTED right when he's little ain't got no show—when the pinch comes there ain't nothing to back him up and keep him to his work, and so he gets beat. Then I thought a minute, and says to myself, hold on; s'pose you'd a done right and give Jim up, would you felt better than what you do now? No, says I, I'd feel bad—I'd feel just the same way I do now. Well, then, says I, what's the use you learning to do right when it's troublesome to do right and ain't no trouble to do wrong, and the wages is just the same? I was stuck. I couldn't answer that. So I reckoned I wouldn't bother no more about it, but after this always do whichever come handiest at the time.2 (TWAIN, 1885, p. 84).

1 “Na época em que eu era garoto e frequentava a escola, eu não tinha aversão à escravidão. Eu não

tinha consciência de que havia algo de errado nisso. Eu nunca tinha ouvido que alguém a considerasse errada; os jornais locais não diziam nada sobre ela; o púlpito local ensinava-nos que Deus aprovava, que a escravidão era sagrada e que a pessoa que duvidasse disso teria apenas de ler a Bíblia para ficar com a mente em paz – e, neste caso, os textos eram lidos em voz alta para que todos tivessem clareza sobre o assunto; se os escravos tinha aversão à escravidão, eles eram sábios em não dizer nada”. (apud RAMOS, 2008, p.27). 2 Eles se foram e eu subi na balsa, me sentindo mau e vil, porque sabia muito bem que tinha feito a

coisa errada, e vi que não adiantava tentar aprender a fazer as coisas certas. Aquele que não começa certo, quando é pequeno, não tem chance – quando a coisa aperta, não tem nada pra apoiar o sujeito e manter ele firme no seu caminho, e então ele acaba derrotado. Então pensei um minuto e falei pra mim mesmo, espera – imagina se eu tivesse feito a coisa certa e entregado Jim, eu ia me sentir melhor do que eu tô me sentindo agora? Não, digo, eu ia me sentir mal – ia me sentir igual como tô me sentindo agora. Então, digo eu, de que adianta aprender fazer a coisa certa, quando é complicado fazer a coisa certa e não custa nada fazer a coisa errada, e o resultado é o mesmo?

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Podemos ver que o assunto principal do livro toca em certos pontos que até

hoje são polêmicos em nossa sociedade. Podemos imaginar mais ou menos, então,

como era na época em que ainda existia escravidão, e numa época em que os

abolicionistas ainda eram poucos e lutavam por direitos. Betti nos apresenta Twain

da seguinte forma:

Não há muitos outros escritores na literatura norte-americana a terem alcançado a popularidade de Mark Twain, seja entre a crítica em geral, seja no setor editorial e na indústria cultural. Homem de Múltiplos talentos, Twain foi humorista, ficcionista, jornalista, conferencista, empreendedor comercial, contista e, acima de tudo, crítico das mudanças sociais registradas nos Estados Unidos no período compreendido entre o final da Guerra de Secessão, em 1865, e o início do século XX. (BETTI, 2003, p.39)

As obras dele envolviam criticas a sociedade. Em uma biografia feita pela

Wikispaces, podemos ver que ele fazia do humor um serviço de utilidade pública.

Essa fonte informa ainda que seus textos eram anti-imperialistas e tratavam de

questões como as guerras e atrocidades cometidas pela sociedade.

3.4 Análises das comparações

As características analisadas serão linguísticas e estilísticas, para que

possamos notar claramente a diferença entre original e as versões de Lobato e

Eichenberg. Os capítulos selecionados foram 1, 8, e 29, onde a coloquialidade está

pressente tanto na narração de Huck como nos diálogos entre ele e Jim.

Colocamos o original em inglês no topo da tabela, e logo abaixo, lado a lado,

as duas traduções, T1 e T2, Monteiro Lobato e Rosaura Eichenberg,

respectivamente. Escolhemos deixá-los lado a lodo, pois dessa forma se torna fácil

passar os olhos e compará-los.

Faremos também uma contextualização simples da parte a ser analisada,

uma vez que a história do livro não foi contada em detalhes. A obra de Twain é cheia

de histórias a aventuras em que Huck e seu amigo fugitivo negro, Jim, passam por

poucas e boas sobrevivendo aos perigos, disfarçando-se, escondendo e, por vezes,

roubando comida ou algo para garantir-lhes a sobrevivência. Ambos falam de forma

simples e cheia de regionalismo, o que dá característica muito coloquial à obra,

razão por que decidimos fazer desse aspecto o objetivo de nosso estudo.

Fiquei emperrado. Não consegui responder. Então pensei que não ia mais me incomodar com isso, mas daí por diante fazer sempre o que me parecia mais conveniente na hora. (Twain, 2010, p.106)

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3.4.1 Capítulo 1

Neste primeiro capítulo, Huck conta o que aconteceu no fim do livro “As

aventuras de Tom Sawyer”, após ele e Tom encontrarem o dinheiro que os ladrões

esconderam na caverna. A viúva Douglas leva Huck para sua casa e cuida dele

como se fosse seu filho, mas ele não aguenta ser controlado por muito tempo e

foge, mas logo em seguida Tom o convence a voltar.

Tabela 1

“The widow she cried over me, and called me a poor lost lamb, and she called me

a lot of other names, too, but she never meant no harm by it. She put me in them

new clothes again, and I couldn't do nothing but sweat and sweat, and feel all cramped up. Well, then, the old thing commenced again. The widow rung a bell for supper, and you had to come to time. When you got to the table you couldn't go

right to eating, but you had to wait for the widow to tuck down her head and grumble a little over the victuals, though there warn't really anything the matter with them,—that is, nothing only everything was cooked by itself. In a barrel of odds and

ends it is different; things get mixed up, and the juice kind of swaps around, and the things go better”. (p.4.)

T1 – A viúva Douglas recebeu-me

com lágrimas nos olhos. Chamou-me ovelha desgarrada, pobrezinho e outras coisas comoventes.

Brindou-me depois com roupas novas — e lá tive de suar em bicas dentro dum terno engomado, de

colarinho duro. As refeições eram anunciadas com um toque de campainha, e, quando na mesa, eu

não podia dar início ao bródio antes que ela acabasse de engrolar as palavras da reza — coisa que em

nada melhorava o gosto da comida. (p.4)

T2 – A viúva chorou por mim, me chamou

de pobre cordeiro perdido e também me chamou de uma porção de outros nomes, mas nunca teve a intenção de me ofender

com isso. Ela me meteu de novo naquelas roupas novas, e eu não podia fazer nada, só suar e suar, e me sentir todo apertado.

Bem, então a velha história começou de novo. A viúva tocava um sino para o jantar, e ocê tinha que chegar na hora. Quando

ocê ia pra mesa, não podia começar logo a comer, mas tinha que esperar, mas tinha que esperar a viúva baixar a cabeça e

resmungar um pouco sobre a comida, apesar de não ter realmente nada de errado com ela – isto é, nada só que tudo era

cozido separado. Num barril de restos é diferente, as coisas se misturam e o suco meio que gira com força ali dentro, e a coisa fica mais gostosa. (p.11)

Notamos que Huck descreve como a viúva o educa e ensina a se portar e se

vestir corretamente, ou melhor, como se igualar aos padrões exigentes da

sociedade, o qual não lhe agrada muito, pois ele foge desta pretendida educação.

Por isso seu linguajar demonstra sua vontade de ser livre. Dessa forma, ao analisar

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a história de Huck, justificamos seu modo de falar e de se expressar. Ele não está se

importando tanto com o que as pessoas vão pensar. Ele diz as coisas como elas

vêm em sua mente – dai a forma coloquial e informal.

Uma das marcas usadas por Mark Twain em todo o livro é o uso da oralidade,

Huck conta a história: “Well, then, the old thing commenced again”. O ponto crucial

do nosso trabalho agora é notar como o tradutor transmitiu esta forma simples que

Huck utiliza para contar sua história, em suas traduções. Muitas vezes este recurso

de conversar com o leitor, não pode ser percebido na tradução de Lobato. Ele

simplesmente termina um assunto e começa outro. Mas notamos que Einchenberg

seguiu o texto mais de perto. Queremos dizer com isso que ela traduziu tudo o que

Twain escreveu; nada foi omitido, ao passo que na tradução de Lobato vemos que

algo ficou para traz.

Neste trecho, notamos ainda que Monteiro Lobato reconstrói as descrições

finais da comida, logo após a oração, e não descreve que as coisas foram cozidas

separadamente. No original, Huck compara a comida da viúva com a comida de

barril onde tudo fica misturado, o que em sua opinião seria mais gostoso. Ele

demonstra nas entrelinhas que não gostava muito da comida feita pela viúva, mas

não declara dessa forma. Ainda nos referindo à comida, podemos acrescentar que

‘barrel of odds’ é um bom exemplo de uma palavra que em seu sentido real não

significa nada para os leitores brasileiros, podendo ser traduzido literalmente como

barril de miúdos, e traduzido por Rosaura como ‘num barril de restos’. Os leitores

podem usar sua imaginação e interpretar como um barril mesmo, no sentido literal,

cheio de restos de comida.

Este é um bom exemplo da dificuldade de transmitir e traduzir a cultura de

determinada região. Como definimos no desenvolvimento do nosso trabalho, traduzir

é fazer uma ponte entre duas culturas, culturas essas que carregam um conjunto de

significados, e que se distinguem entre si, pois cada uma possui características

culturais e sociais bem definidas. Nesse sentido, Einchenberg conseguiu transmitir

aos leitores aspectos da vida social pobre de Huck que passaram despercebidos na

tradução de Lobato. Em outras palavras, o garoto não estava acostumado a comer

uma refeição com diferentes entradas, ou pratos separados, mas algum tipo de

“sopão” ou “mexido” com restos de comidas de refeições anteriores.

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3.4.2 Capítulo 8

Este trecho narra à primeira conversa de Huck e Jim. Huck fingiu sua própria

morte, e a cidade inteira o estava procurando. Assim que a morte de Huck foi

anunciada, Jim sabia que podiam culpá-lo; então aproveitou o alvoroço e fugiu

também.

Tabela 2

So I took my gun and slipped off towards where I had run across that camp fire, stopping every minute or two to listen. But I hadn't no luck somehow; I couldn't seem to find the place. But by and by, sure enough, I catched a glimpse of fire

away through the trees. I went for it, cautious and slow. By and by I was close enough to have a look, and there laid a man on the ground. It most give me the fantods. He had a blanket around his head, and his head was nearly in the fire. I

set there behind a clump of bushes in about six foot of him, and kept my eyes on him steady. It was getting gray daylight now. Pretty soon he gapped and stretched himself and hove off the blanket, and it was Miss Watson's Jim! I bet I was glad to

see him. I says: "Hello, Jim!" and skipped out. (p. 39)

T1 – Dirigi-me, então,

cautelosamente, ao lugar onde

havia encontrado a braseiro, e já estava a ponto de abandonar a pesquisa quando divisei uma luz

por entre as árvores. Acheguei-me, pé ante pé, e avistei um homem deitado no chão, rente

ao fogo. Estava envolto num cobertor, com a cabeça muito perto das brasas. Aproximei-me

mais e fiquei à espreita. Imaginem qual não foi a minha surpresa quando vi Jim, o negro

de Miss Watson, levantar-se e espreguiçar-se sonolentamente! Um grito escapou-me:

— Helo, Jim! e saltei à sua frente. (p. 58).

T2 – Então peguei a espingarda e saí de

mansinho pra aquele lugar da fogueira de

acampamento que tinha achado, parando a cada minuto ou dois pra escutar. Mas só que não tive sorte, não conseguia encontrar o

lugar. Mas logo, logo, com toda certeza, vi um vislumbre de fogo, bem longe entre as árvores. Fui pra lá, cuidando e bem de vagar. Em

pouco tempo já tava bem perto pra dar uma olhada e vi que tinha um homem deitado no chão. Quase me deu uns tremeliques. Ele tava

com um cobertor enrolado na cabeça, e a cabeça tava quase na fogueira. Sentei ali atrás de uma moita, quase a dois metros de

distância, e não despregava os olhos dele. Agora já tava cinzento com a luz do dia. Logo depois ele bocejou, espreguiçou, levantou o

cobertor, e era o Jim da Srta. Watson! Fiquei realmente contente de ver Jim. Eu disse: — Alô, Jim! – e pulei aparecendo. p. 53.

Este trecho utiliza de uma narrativa detalhista, como ao conversar com um

amigo. Confirmamos que Huck utiliza uma linguagem simples, de uma pessoa com

pouca instrução escolar.

Observemos como algumas vezes Lobato utiliza a coloquialidade. Ele

escreve: “Aproximei-me mais e fiquei à espreita. Imaginem qual não foi a minha

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surpresa”. Aqui ele utiliza uma expressão comum no português, que exemplifica o

ato criador de Lobato. Da mesma forma, observem como Einchenberg traduz este

mesmo pedaço, “Sentei ali atrás de uma moita, quase a dois metros de distância, e

não despregava os olhos dele”. Vemos a diferença criadora entre eles, mas se

focarmos na expressão, “fiquei à espreita” e “não despregava os olhos”, vemos que

a diferença criadora não é apenas estilística, mas há uma diferença de significados.

Além disso, percebemos claramente que Einchenberg procura refletir mais de perto

a coloquialidade do original.

Algumas palavras coloquiais na língua inglesa, quando traduzidas, não soam

coloquiais no português. Já apresentamos alguns exemplos acima, mas se fizermos

uma comparação com o inglês, como, por exemplo, a dupla negativa muito usada –

exemplo “But I hadn't no luck” - “não tive sorte alguma”. Essa forma coloquial faz

com que o leitor americano consiga ouvir até o sotaque e o jeito que Huck conta a

história. Por isso o tradutor deve ser criativo e ir além da tradução. Dessa forma o

leitor brasileiro poderá sentir o mesmo que sentiram os leitores americanos ao ler

estes ‘erros’ linguísticos.

Convém ressaltar que Lobato não se mostra muito preocupado em refletir

esses aspectos coloquiais da obra. Einchenberg, por outro lado, parece se esforçar

ao máximo em fazê-lo com formas populares do português falado. Percebe-se, no

entanto, que se torna praticamente impossível reproduzir na totalidade a

coloquialidade regional do sul dos Estados Unidos, presente na obra.

Nesse contexto, classificaremos alguns usos da coloquialidade adaptados

para a realidade brasileira feita pelos tradutores. Em primeiro lugar, vejamos

algumas características estilísticas tradutórias de Lobato. Todas revelam o estilo

erudito do tradutor. Ele faz uso de advérbios como cautelosamente, sonolentamente;

conjunções, como porém, portanto; ênclises como brindou-me, acheguei-me.

Expressões incomuns como pé ante pé, e braseiro. Ao mesmo tempo percebemos a

não reprodução fiel da coloquialidade das palavras de Huck na tradução de Lobato;

percebemos também como o tradutor tem poder sobre o texto, efetuando escolhas

tradutórias, incluindo ou excluindo partes.

Lobato exclui uma das partes mais importantes desse excerto. Trata-se do

momento em que ele diz estar feliz ao ver Jim “I bet I was glad to see him”, essa fala

revela que Huck pouco se importava se a pessoa era negra ou não; ele queria uma

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companhia e estava feliz por ter uma, principalmente por ser um conhecido.

Einchenberg, por outro lado, não deixa escapar esse aspecto emotivo essencial na

intenção comunicativa de Twain.

Citaremos de Einchenberg apenas alguns exemplos que revelam a intenção

da tradutora de reproduzir a coloquialidade presente na obra de Mark Twain.

Percebe-se a transformação de “para” em “pra” e “estava” em “tava”. Ela também

usa palavras pouco usadas como “tremeliques”. Daremos mais exemplos do ato

criador dela com relação à coloquialidade no próximo trecho.

3.4.3 Capítulo 29

Huck e Jim estavam discutindo sobre o rei Salomão. Huck lhe diz que

Salomão possuía um harém com mais de mil mulheres, e Jim dá sua opinião.

Tabela 3

Muitas coisas faladas por Jim seguem o mesmo padrão de Huck. Mas a

linguagem de Jim é a que carrega o maior número de regionalismos e jargões

comparado com os outros personagens presentes na obra. Twain nos faz uma nota

explicatória sobre os diferentes dialetos utilizados em sua obra:

EXPLANATORY IN this book a number of dialects are used, to wit: the Missouri negro dialect; the extremest form of the backwoods

"Why, yes, dat's so; I—I'd done forgot it. A harem's a bo'd'n-house, I reck'n. Mos'

likely dey has rackety times in de nussery. En I reck'n de wives quarrels considable; en dat 'crease de racket. Yit dey say Sollermun de wises' man dat ever live'. I doan'

take no stock in dat. Bekase why: would a wise man want to live in de mids' er sich a blim- blammin' all de time? No—'deed he wouldn't. A wise man 'ud take en buil' a bilerfactry; en den he could shet DOWN de biler-factry when he want to res". (p.71).

T1 — Agora sei! Harém é como uma

casa de pensão, segundo minha idéia. Nossa Mãe! Como elas não hão de bater boca e brigar... E ainda

dizem que o Rei Salomão era o mais sábio dos homens! Nessa não vou, não. Onde se viu um homem viver no

meio de tanta barulhada e brigaria? Se ele fosse mesmo sábio como dizem, montava uma boa fábrica de

tecido e punha a mulherada a trabalhar. Isso que seria descanso. (p. 105).

T2 — Ora, sim, é assim... Eu... eu tinha

esquecido. Um harém é uma pensão, acho. Quase certo que eles fazem algazarra no quarto das criança. E acho que as muié

brigam muito e que isso aumenta o barulho. Mas eles diz que Salumão era o hômi mais sábio que já viveu, num acredito não. Por

causa do seguinte: um hômi sábio ia querê vive num vozorio desses o tempo todo? Não... num ia querê mesmo. Um hômi

sábio, ia armá barulho e tumulto, e então ele ia podê acabá com a algazarra quano queria descansá. (p. 92).

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Southwestern dialect; the ordinary “Pike County” dialect; and four modified varieties of this last. The shadings have not been done in a hap-hazard fashion, or by guesswork; but painstakingly, and with the trustworthy guidance and support of personal familiarity with these several forms of speech. I make this explanation for the reason that without it many readers would suppose that all these characters were trying to talk alike and not succeeding. THE AUTHOR.3 (TWAIN, 1885, p.3).

A explicação que apresentamos, feita por Twain, confirma nossa afirmação

sobre a diferença linguística entre Huck e Jim, há uma diferença entre eles,

diferença evidenciada por Einchenberg, da seguinte forma: a falta de ‘r’ no dom dos

verbos, como na palavra ‘chamar’ e ‘chama’, a primeira falada por Huck e a segunda

por Jim, respectivamente. Outra característica fortemente presente é a acentuação

no final da palavra, dando ênfase a linguagem falada, como por exemplo: ‘Qué dizê’,

‘deixá’, assim como muitas outras. Outro exemplo da diferença da fala de Huck e Jim

é como pronunciam Salomão e Salumão. Já na versão de Lobato não percebemos

nenhuma diferença de linguagem que os diferencie.

Devido à fala de Jim estar completamente dialetal no inglês, a tradução para

o português precisa conter um linguajar característico. O tradutor teve um trabalho

imenso ao desvendar algumas vezes o que ele queria dizer, o que demonstra a

necessidade do conhecimento profundo da língua de partida, neste caso de uma

região específica da língua de partida. Einchenberg comenta sobre esta dificuldade:

A reprodução dos dialetos em português foi inevitavelmente apenas uma aproximação. O modo de falar dos negros sobressai na narrativa por ser expresso num inglês muito deturpado, a ponto de dificultar a leitura. Mas como Jim é o segundo personagem em importância, só perdendo para o próprio Huck, suas falas é que deram mais trabalho para que soassem em português com igual estranheza de sons e significados. (Twain, 2010, p.5).

Em nossas análises anteriores, podemos notar como cada tradutor lidou com

os problemas dialetais, culturais e coloquiais. Apresentaremos então uma tabela

resumida da tradução feita por cada um com relação á coloquialidade.

Tabela 4

Inglês Lobato Einchenberg

3 EXPLICAÇÃO - Neste livro são usados vários dialetos, a saber: o dialeto dos negros de Missouri, a forma mais

extrema do dialeto sulista do interior, o dialeto comum de “Pike Country” e quatro variedades modificadas desse

último. As nuances não foram induzidas ao acaso, nem por tentativas a esmo, mas laboriosamente, com essas

várias modalidades de fala. Dou essa explicação porque, sem isso, muitos leitores suporiam que todos esses

personagens estavam tentando falar da mesma maneira, mas sem conseguir. O AUTOR. (Twain, 2010, p.10)

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I couldn't do nothing (tabela 1)

e lá tive de suar bicas eu não podia fazer nada

couldn't go right to eating (tabela 1)

não podia dar início ao bródio

não podia começar logo a comer

So I took (tabela 2) Dirigi-me Então peguei

I catched a glimpse of

fire (tabela 2)

Avistei um homem vi um vislumbre de fogo

dey has rackety times in de nussery (tabela 3)

__ eles fazem algazarra no quarto das criança

I doan' take no stock in dat. (tabela 3)

Nessa não vou, não. num acredito não.

No—'deed he wouldn't. (tabela 3)

__ Não... num ia querê mesmo.

Podemos concluir que Rosaura Eincherbeg fez uso constante de algumas

palavras como “a gente ia”, “ocê”, “sinhô”, “hômi”, “muié” e outras expressões

extremamente coloquiais. Além de seguir o texto de forma estrita, sem cortar nada.

Seu texto é constante e assim como Mark Twain, cheio de traços orais, que

conversam com o leitor de forma simples, coloquial. Mas notamos também que em

algumas partes a linguagem de Jim deixa a desejar quanto ao uso dialetal, como

neste exemplo: ‘fica seno a outra’. Nesse caso, é mais fácil imaginá-lo falando: “fica

seno otra”. Quanto a isso, a autora diz: “O desafio de reproduzir essa linguagem em

português não é pequeno, e acho que consegui apenas me aproximar de sua

eficácia” (Twain, 2010, p.8).

Com relação a Monteiro Lobato, também concluímos que seus diálogos

mesclam o léxico formal, com o informal, mas muitas vezes não podemos afirmar se

a palavra é ou não de fato informal, devido à época em que foi escrito e publicado.

Lobato traduz conforme aquilo que julgava ser tradução. Como autor renomado, e

influenciado por suas características de autor, Lobato faz em sua tradução cortes,

modificações e reescritas, pois cria serem importantes para o andamento da obra e

a acessibilidade por parte do público brasileiro. Apesar de todas essas omissões e

mudanças, ele parece deixar o livro de fácil leitura, transmitir o conteúdo de forma

clara. Contudo, a forma estilística e dialética escolhida e criada por Twain não pode

ser evidenciada em sua tradução.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As comparações feitas nos ajudaram a analisar a escolha dos tradutores em

relação à coloquialidade fortemente presente na obra original. Suas escolhas

refletem na liberdade que têm ao traduzir e até onde se deixam levar pelo ato

criador.

Nesta pesquisa, fizemos três indagações que serviram de inspiração para a

produção e construção deste trabalho, que são as seguintes: Primeiro: será que uma

tradução foi melhor que a outra? Com relação a esse ponto, concluímos que a

tradução de Rosaura Einchenberg apresenta mais proximidade com o original e com

o sentido do original, procurando transferir para o português a coloquialidade e a

oralidade construída por Mark Twain. No entanto, não podemos julgar que a

tradução de Monteiro Lobato tenha sido mal feia ou que tenha qualidade inferior à

outra. Paulo Rónai, explicando sobre o porquê das diferenças nas traduções,

ressalta:

A arte do tradutor consiste justamente em saber quando pode verter e quando deve procurar equivalências. Mas como não há equivalências absolutas, uma palavra, expressão ou frase do original pode ser frequentemente transportada de duas maneiras, ou mais, sem que possa dizer qual das duas é a melhor. Dai não existir uma única tradução ideal de determinado texto. Haverá muitas traduções boas, mas não a tradução boa de um original. (RÓNAI, 1986, p. 23)

A segunda indagação foi: por que há uma distinção tão grande entre as

traduções? Segundo Arrojo (1993, p. 42) seremos fiéis àquilo que “consideramos ser

o texto original, àquilo que consideramos constituí-lo”; e é aí que se encontra a

fidelidade de cada um, e consequentemente a sua liberdade. Parece-nos que para

Monteiro Lobato seu conceito de fidelidade limitava-se a reproduzir adequadamente

o enredo da história e não a linguagem escolhida pelo autor para veicular essa

história.

A terceira indagação referia-se à possibilidade de traduzir os aspectos

culturais e linguísticos de uma determinada região. Nossa pesquisa revelou que

essa possibilidade existe, apesar de ter seus limites. Em harmonia com essa

conclusão, Einchenberg confessa em sua nota que sempre faltará algo na tradução,

e que ela será cheia de aproximações e adaptações, com o objetivo de facilitar o

entendimento de seus leitores.

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Evidenciamos que o tradutor tem liberdade total para interferir na estilística

textual, mas não no conteúdo. O contexto social e cultural da obra original deve ficar

claro, e nada pode ser omitido. Como já explicitamos, haverá adequações apenas

para o maior entendimento do leitor, sem que haja modificações radicais para a

realidade cultural brasileira.

Nesse contexto, a reprodução da coloquialidade deveria ser um dos aspectos

mais importantes na tradução da obra de Mark Twain, visto que a coloquialidade é a

marca mais forte da obra original, bem como os dialetos, pois fazem parte da criação

do autor original, constituindo-se um objetivo importante do autor, como já

mencionamos.

Olhando dessa perspectiva, concluímos que Monteiro Lobato deixa muito a

desejar no que diz respeito a ajudar, por meio da linguagem, o leitor a compreender

todos os aspectos socioculturais que Huck e Jim viviam. Lobato mostra um garoto e

um escravo falando um “português” correto, impecável, mascarando, assim, as

verdadeiras origens dos personagens. Na verdade, Lobato descaracteriza

completamente o escravo Jim, por não usar falas dialetais como faz Twain; e o

mesmo pode ser dito em relação a Huck, que usa algumas vezes uma linguagem

culta, fugindo da coloquialidade e da falta de instrução presente no personagem.

Essa infidelidade se torna mais notória pelo fato de o próprio Twain explicitar ser seu

desejo reproduzir diferentes dialetos em sua obra.

Por outro lado, ficou evidente no trabalho que Eichenberg se preocupou

bastante com a tradução dos dialetos. No entanto, a própria tradutora afirma: “O

desafio de reproduzir essa linguagem em português não é pequeno, e acho que

consegui apenas me aproximar de sua eficácia” (Twain, 2011, p. 8).

Ela também se preocupou com a fidelidade estilística, e ao mesmo tempo deu

vida ao texto utilizando a forma falada comum, normalmente utilizada pelos escravos

dos tempos passados ou por brasileiros com pouca ou nenhuma instrução. Ao

contrário de Monteiro Lobato, procurou com esmero fazer transparecer a

coloquialidade e oralidade presentes no original. Assim, apresenta ao leitor não

apenas a história em si, como o fez Lobato, mas como ela é narrada. A tradutora

justifica sua postura tradutória afirmando que

a maneira de falar de Huck foi a que recebeu mais atenção, porque Huck é o narrador que descortina diante do leitor o mundo ao longo

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do Mississippi. Sem apresentar as deturpações gritantes da fala dos negros, seu linguajar é o de um menino de pouca instrução, cheio de erros gramaticais e expressões populares. Uma linguagem bastante concreta, colorida, viva, de alguém que gosta de inventar e contar histórias. (Twain, 2011, p. 7)

Com essa decisão de ser fiel à intenção comunicativa de Mark Twain, a

tradutora nos apresenta uma obra atual e dá uma cara nova à obra de Twain para os

leitores brasileiros, ajudando-os a compreender o personagem principal dentro do

seu contexto cultural e social.

Numa crítica velada à tradução de Monteiro Lobato, Eichenberg afirma com

convicção:

quando resolvem alterar deliberadamente o linguajar de Huck, “civilizá-lo”, o que me ocorre é que isso seria como outro ataque da sanha assassina das famílias em luta, ou então um novo Rei ou um novo Duque invadindo a balsa para trapacear, roubar e acabar com a

liberdade de Huck e Jim. (Twain, 2011, p.9)

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ANEXOS

ANEXO A – Notas da tradutora

O desafio de traduzir As aventuras de Huckleberry finn, de Mark Twain, não é

pequeno. A narrativa se passa na região do rio Mississipi em meados do século XIX,

e o autor emprega com desenvoltura os termos específicos da vida ao longo do rio,

além de reproduzir, baseado na sua familiaridade com os habitantes das margens,

os dialetos então existentes, conforme alerta em nota no início do livro. A leitura

revela que os vários personagens que Huck encontra na sua viagem são

caracterizados principalmente pela maneira de falar. Assim, à dificuldade da

tradução de termos próprios da vida naquela região numa determinada época,

soma-se o impasse de como reproduzir em português os vários dialetos do original.

Para ilustrar a dificuldade com os termos pertinentes ao rio Mississipi: Huck e

Jim sempre amarram a balsa em towheads quando precisam parar ao longo de seu

percurso. Como o autor explica no texto, towheads é um banco de areia coberto de

densa vegetação, em geral choupos. Mas para que as andanças de Huck e Jim se

tornem claras ao leitor é preciso enfatizar o caráter insular desses bancos de areia,

quase sempre bem afastados da margem.

Outro termo controverso, devido às mudanças de significado ocorridas em

várias épocas, é o modo como todos no livro se referem aos negros. A palavra

nigger incorporou com o passar dos anos uma carga de ódio que não tinha no tempo

de Mark Twain, muito menos no tempo da narrativa. Àquela época, tratava-se

apenas de uma forma comum de se referir aos negros. O próprio Mark Twain não

empregava o termo, considerado de mau gosto pelas pessoas cultas, mas os

personagens das aventuras de Huck são em geral pessoas pobres, sem estudo. No

início do trabalho, traduzi nigger por negro ou preto, porque assim me parecia exigir

o contexto.

A obra-prima de Twain não é um livro racista – a narrativa descreve uma

sociedade escravocrata com todos os seus defeitos, mas o tom predominante é de

respeito e simpatia pelos negros. Quando, com a tradução já em andamento,

encontrei a informação de que a palavra não era ofensiva na época, vi confirmada a

minha opção de tradução, bem como a insensatez de quem quer “limpar” o texto

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mudando o termo (como a editora norte-americana New South que, no início de

2011, anunciou o projeto de publicar uma nova edição de Huck Finn com todas as

ocorrências da palavra nigger substituídas por slave – escravo –, seguindo conselho

de Alan Gribben, estudioso da obra do autor). Isso implicará um duplo erro: alguém

se achar no direito de alterar um clássico introduzindo nas palavras de Huck-Mark

Twain um ódio que elas jamais tiveram. A reprodução dos dialetos em português foi

inevitavelmente apenas uma aproximação. O modo de falar dos negros sobressai na

narrativa por ser expresso num inglês muito deturpado, a ponto de dificultar a leitura.

À exceção de dois figurantes que deixam escapar apenas uma ou duas frases

curtas, o único negro a ter longos diálogos com Huck é seu companheiro Jim. Mas

como Jim é o segundo personagem em importância, só perdendo para o próprio

Huck, suas falas é que deram mais trabalho para que soassem em português com

igual estranheza de sons e significados. O inglês contém resquícios do falar dos

escravos similares aos que são encontráveis em nossa língua; por exemplo, o mars

deles corresponde ao nosso “sinhô” ou “nhô”, porém, as características mais

marcantes do dialeto dos negros são as que desfiguram a pronúncia culta da língua.

E, sem dúvida, a maneira de falar de Huck foi a que recebeu mais atenção,

porque Huck é o narrador que descortina diante do leitor o mundo ao longo do

Mississippi. Sem apresentar as deturpações gritantes da fala dos negros, seu

linguajar é o de um menino de pouca instrução, cheio de erros gramaticais e

expressões populares. Uma linguagem bastante concreta, colorida, viva, de alguém

que gosta de inventar e contar histórias. Só que, diferentemente de Tom Sawyer,

que fantasia ao arquitetar e viver suas aventuras, Huck prima pelos detalhes

objetivos, procurando contar o que realmente tem diante dos olhos. Aliás, o

contraste entre as maneiras de narrar dos dois meninos é uma das facetas

interessantes do livro. O estilo mais realista de Huck é responsável pelos quadros

extremamente vivos da sociedade que ele encontra às margens do rio – um

panorama tão crítico quanto cômico porque expõe sem rodeios todas as muitas

contradições dessa sociedade.

Quando Mark Twain era vivo, o livro foi criticado e censurado por ser

considerado imoral, em parte por causa das várias mentiras que Huck se esmera em

contar para se safar de apuros. Em sua Autobiography of Mark Twain (o primeiro de

três volumes foi publicado pela University of California Press em novembro de 2010

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no centenário da morte do autor), essas críticas são respondidas com a verve

característica do escritor: num diálogo com o funcionário de uma biblioteca da qual

As aventuras de Huckleberry Finn havia sido retirado das estantes, ele desconcerta

o sujeito ao afirmar que a Bíblia também deveria ser proibida por ser muito imoral e

fala de passagens bíblicas que os meninos leem às escondidas, o que o próprio

funcionário decerto fizera quando criança. Diante da negativa veemente de seu

interlocutor, Mark Twain replica que ele está mentindo e que, portanto, deve estar

lendo Huckleberry Finn e seguindo seu péssimo exemplo.

Huck inventa e encena suas mentiras com engenho e arte, e fica até muito

sem graça quando um personagem o acusa de não saber mentir. No fundo, as

mentiras são sua forma de lidar com o mundo dos adultos mantendo-se fiel ao seu

coração, que deseja escapar de quem procura “civilizá-lo”. O que ele busca é ver-se

livre das roupas que apertam e lhe tolhem os movimentos. Como Jim, é liberdade o

que ele quer. Nesse sentido, as críticas à falta de moral no livro surpreendem,

porque a liberdade que Huck vai conquistando pelo rio é para valer. A cada novo

episódio, sozinho e com a valentia de seus poucos anos, ele enfrenta dilemas

morais espinhosos. É o preço a pagar pela vida que deseja levar: ter de decidir

como agir, certo ou errado, para o bem ou para o mal, sem recorrer cegamente a

normas estabelecidas. E arcar com as consequências de seus atos.

Seu linguajar é essencialmente o modo de falar de quem se quer livre. Uma

linguagem capaz de descrever a beleza de um amanhecer no rio, as figuras

estranhas pelo caminho, situações de extrema crueldade e momentos de grande

ternura, com o desassombro de quem vê o mundo de cara lavada, sem cisco nos

olhos. Repito: o desafio de reproduzir essa linguagem em português não é pequeno,

e acho que consegui apenas me aproximar de sua eficácia. E, quando resolvem

alterar deliberadamente o linguajar de Huck, “civilizá-lo”, o que me ocorre é que isso

seria como outro ataque da sanha assassina das famílias em luta, ou então um novo

Rei ou um novo Duque invadindo a balsa para trapacear, roubar e acabar com a

liberdade de Huck e Jim.

Rosaura Eincherberg.