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Jocilei Dalbosco A representação dos contadores de histórias em Sagarana Passo Fundo, janeiro de 2006 UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO Instituto de Filosofia e Ciências Humanas PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO EM LETRAS Campus I – Prédio B3, sala 106 – Bairro São José – Cep. 99001-970 - Passo Fundo/RS Fone (54) 316-8341 – Fax (54) 316-8125 – E-mail: [email protected]

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Jocilei Dalbosco

A representação dos contadores de histórias em Sagarana

Passo Fundo, janeiro de 2006

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – MESTRADO EM LETRAS Campus I – Prédio B3, sala 106 – Bairro São José – Cep. 99001-970 - Passo Fundo/RS

Fone (54) 316-8341 – Fax (54) 316-8125 – E-mail: [email protected]

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Jocilei Dalbosco

A representação dos contadores de histórias em Sagarana Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Passo Fundo, como requisito para obtenção do grau de mestre em Letras, sob a orientação da Prof. Dr. Márcia Helena Saldanha Barbosa.

Passo Fundo 2006

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A familiares e amigos.

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Agradeço, com meus melhores sentimentos, a Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Paulo Ricardo Becker, Jocitacler Bolsoni e Márcia Helena Saldanha Barbosa.

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Tempo bom de verdade, só começou com a

segurança de fechar-me num quarto e fechar a porta. Deitar no chão e imaginar histórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas, uma combinação mais limpa e mais plausível, porque – como muita gente já compreendeu e falou – a vida não passa de histórias mal arranjadas fora de foco.

Deus meu! No sertão, o que pode uma pessoa fazer de seu tempo livre a não ser contar histórias? João Guimarães Rosa

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RESUMO

Este trabalho investiga a representação do contador de histórias em quatro contos de

Sagarana, obra de João Guimarães Rosa publicada em 1946. Para tanto, analisam-se a

caracterização dos personagens-narradores e dos personagens-ouvintes; as técnicas

adotadas pelos contadores de histórias ao estruturarem suas narrativas e os efeitos que

desejam ou podem provocar nos ouvintes com quem interagem e em si mesmos. Além

disso, procede-se a uma comparação entre as estratégias empregadas pelos personagens-

narradores e aquelas utilizadas pelo narrador principal do texto no qual tais personagens se

incluem. A principal constatação a que se chegou, ao final da pesquisa, é a de que o

narrador que se posiciona em primeira pessoa empreende um processo de complexificação

discursiva em seu relato em comparação ao narrador que emprega a terceira pessoa.

Também verificou-se que os narradores caracterizam-se, de um modo geral, pela forma

ingênua com que interagem com seus ouvintes, assegurada por fatores como naturalidade,

intimidade, confiança e cumplicidade. Verificou-se, ainda, que os principais efeitos que os

relatos dos narradores provocam ou tendem a provocar nos seus ouvintes e em si mesmos

são: o efeito terapêutico, que decorre do conforto motivado pela necessidade que se tem de

falar; o efeito catártico, que resulta do alívio experimentado pela identificação com aquilo

que é relatado; o efeito estético, que liberta os indivíduos, momentaneamente, dos

constrangimentos provocados pela rotina cotidiana.

Palavras-chave: João Guimarães Rosa, Sagarana, contação de histórias, posição do

narrador, procedimentos narrativos.

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ABSTRACT

This work investigates the representation of the storyteller in four tales of Sagarana,

by João Guimarães Rosa, published in 1946. For that purpose, the characterisation of

characters-narrators and characters-listeners; the techniques applied by the storytellers

when structuring their narratives and the effects they intend or can have upon the listeners

they interact with and upon themselves were analysed. Furthermore, comparisons between

the strategies applied by the characters-narrators and those applied by the main narrator of

the text in which such characters are included were carried out. By the end of the research,

the main conclusion was that the narrator who is set in first person undertakes a process of

discursive complexification in his report as compared to the narrator who uses third person.

It was noticed that the narrators are characterised, as a whole, by the naive way through

which they interact with their listeners, ensured by factors such as naturalness, intimacy,

trust and complicity. It was also observed that the main effects the narrators reports

provoke or tend to provoke upon their listeners and upon themselves are: the therapeutic

effect, deriving from the comfort motivated by the need to speak; the cathartic effect,

deriving from the relief experienced through the identification with the issue being

reported; the aesthetic effect, which releases individuals, momentarily, from the constraints

brought about by everyday routine.

Key-words: João Guimarães Rosa, Sagarana, storytelling, narrator’s position,

narrative procedures.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 9

1. O ATO DE CONTAR HISTÓRIAS ............................................................................... 13

1.1 O declínio da arte de narrar ............................................................................... 16

1.2 A verdadeira arte de narrar ................................................................................ 19

1.3 Por que se contam histórias ............................................................................... 23

1.4 O efeito estético ................................................................................................. 28

2. O CONTADOR DE HISTÓRIAS EM TERCEIRA PESSOA ....................................... 34

2.1 “Sarapalha” ........................................................................................................ 37

2.2 “O burrinho pedrês” .......................................................................................... 47

2.3 O exterior do contador de histórias ................................................................... 60

3. O CONTADOR DE HISTÓRIAS EM PRIMEIRA PESSOA ....................................... 62

3.1 “Corpo fechado” ............................................................................................... 65

3.2 “São Marcos” .................................................................................................... 76

3.3 O interior do contador de histórias .................................................................... 89

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 92

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 97

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INTRODUÇÃO

A investigação proposta foi motivada pelo interesse particular do pesquisador em

relação à figura do narrador e pelo desejo que possuía de entender como e por que os

contadores de histórias relatam seus casos. Além disso, o pesquisador, ao concordar com a

afirmação de João Adolfo Hansen1, que julga ser “o narrador um sujeito tentando a

determinação do que vive, na medida em que também é narrado”2, concebeu o trabalho a

ser realizado como uma oportunidade de melhor perceber os efeitos que uma história

provoca ou pode provocar tanto naquele que conta quanto naquele que ouve.

Desse modo, o estudo analítico-comparativo investiga como são representados os

contadores de histórias em quatro contos de Sagarana: “Sarapalha”, “O burrinho pedrês”,

“Corpo fechado” e “São Marcos”. O livro em questão, integrado por nove narrativas curtas,

foi publicado em 1946, constituindo-se na primeira obra ficcional de João Guimarães Rosa.

O trabalho será desenvolvido tendo em vista os seguintes objetivos: verificar o modo como

são caracterizados os personagens-narradores e os personagens-ouvintes de histórias nos

textos literários selecionados; analisar as técnicas e os procedimentos por meio dos quais

esses contadores de histórias estruturam suas narrativas, bem como o efeito que desejam ou

que podem provocar nos ouvintes que com eles interagem e em si mesmos; comparar as

estratégias narrativas utilizadas pelos personagens-narradores àquelas empregadas pelo

narrador principal do texto no qual tais personagens estão inseridos; estabelecer um

paralelo entre os textos literários analisados, no que se refere aos aspectos acima

mencionados.

O critério para a seleção do corpus foi a presença marcante de eventos de contação

de histórias nos contos. Priorizaram-se, portanto, narrativas nas quais somam-se ao narrador

1 Professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo e autor de O o: a ficção da literatura em Grande sertão: veredas. São Paulo: Hedra, 2000. 2 HANSEN, João Adolfo. Terceira margem. Revista do instituto de estudos brasileiros. São Paulo, 1996. n.

41, p. 54.

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principal personagens que contam histórias, e, por conseguinte, personagens que ouvem

esses relatos. Além disso, optou-se por um conjunto de contos em que existiam diferentes

tipos de narradores: o onisciente, o testemunha e o protagonista. Ao mesmo tempo,

Guimarães Rosa foi o autor escolhido não só porque é visto como um dos grandes

contadores de histórias da literatura brasileira, mas também porque é um “criador de

realidades”, cuja linguagem é capaz de “expressar o que se passa no subconsciente dos

personagens e de obrigar o destinatário a refletir sobre as palavras lidas e os problemas da

existência humana”.3

Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, no ano de 1908 e morreu no

Rio de Janeiro em 1967; casou-se aos 22 anos e formou-se em medicina um ano depois,

clinicou no interior do Estado e, a seguir, entrou para a carreira diplomática, chegando a

embaixador. Além disso, “foi reconhecido quase unanimemente como um dos maiores

escritores brasileiros, pela originalidade criadora do estilo e da visão do mundo, dentro de

uma tendência gasta, como o regionalismo”.4 A bibliografia do autor compõe-se de

Sagarana (contos), 1946; Corpo de baile (ciclo novelesco), 1956, desdobrado, a partir da

terceira edição, em Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites no

sertão; Grande sertão: veredas (romance), 1956; Primeiras estórias (contos), 1962;

Tutaméia: terceiras estórias (contos), 1967; Estas estórias (contos publicados

postumamente), 1969.5

Os teóricos cujas teses fundamentam o trabalho são Walter Benjamin, Mikhail

Bakhtin, Theodor W. Adorno, Georg Lukács e Wolfgang Iser. O ensaio “O narrador:

considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, de Walter Benjamin, filósofo alemão, que

dedicou seus estudos principalmente aos conceitos de história, de crítica, de política e de

arte, em 1930, contribui com esta pesquisa por oferecer uma teoria sobre a narração. O

ensaio “Epos e romance”, de Mikhail Bakhtin, escrito em 1941, serviu de base teórica para

o trabalho por distinguir as diferentes formas de narrativa, concedendo destaque ao

romance. Os ensaios de Theodor W. Adorno, filósofo e crítico de arte alemão, intitulados

“Sobre a ingenuidade épica” e “Posição do narrador no romance contemporâneo”, escritos

3 D’ONOFRIO, Salvatore. Literatura ocidental: autores e obras fundamentais. São Paulo: Ática, 2002, p. 442. 4 CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira: modernismo. São Paulo: Difel, 1983. v. 3. 5 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 37. ed. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 429.

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em 1960, fornecem embasamento teórico à investigação por conterem reflexões sobre o

narrador. O ensaio “O romantismo da desilusão”, de Georg Lukács, filósofo e crítico

literário húngaro, também constitui-se em base teórica deste trabalho por apresentar idéias

sobre os universos interno e externo do narrador. As obras de Wolfgang Iser, membro da

Escola de Konstanz, Alemanha, que elaborou os postulados da estética do efeito, em 1970,

oferecem fundamentos básicos para a execução da pesquisa pelo fato de apresentarem uma

teoria sobre o efeito estético.

A fim de investigar a representação dos contadores de histórias em Sagarana, o

trabalho será organizado em três capítulos. O primeiro se constituirá numa revisão da

bibliografia teórica e será subdividido em quatro tópicos, todos voltados à reflexão acerca

do ato de contar histórias: O declínio da arte de narrar; A verdadeira arte de narrar; Por que

se contam histórias; O efeito estético. O segundo capítulo será dedicado ao exame do

contador de histórias em terceira pessoa, que está presente em “Sarapalha” e em “O

burrinho pedrês”. O terceiro e último capítulo será destinado à análise do contador de

histórias em primeira pessoa, que se observa em “Corpo fechado” e em “São Marcos”,

narrativas compostas, respectivamente, por um narrador testemunha e por um narrador

protagonista. Por último, na parte reservada às considerações finais, será efetuada uma

comparação entre os contos examinados, com o intuito de evidenciar os resultados da

pesquisa no que se refere à temática proposta e aos objetivos traçados.

Destaca-se, por fim, a relevância desta pesquisa, uma vez que, a despeito da vasta

fortuna crítica do autor em foco6, observou-se uma ausência de trabalhos de fôlego que

aprofundem a investigação sobre a figura do contador de histórias em Sagarana. Cabe

salientar que este estudo foi concluído em 2006, justamente no ano em que se comemoram

os 60 anos de publicação desta que é a primeira obra ficcional de Guimarães Rosa. Além

disso, esse trabalho pode propiciar uma melhor compreensão em relação aos eventos de

6 Outros textos sobre João Guimarães Rosa foram consultados para a elaboração deste trabalho, embora não tenham sido citados: SPERBER, Suzi Frankl. Guimarães Rosa: signo e sentimento. São Paulo: Ática, 1982; ARAUJO, Heloisa Vilhena de. O roteiro de Deus: dois estudos sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Mandarim, 1996; NONADA: Letras em revista. Porto Alegre: EU; Ritter dos Reis, 1997; NUNES, Benedito. De Sagarana a Grande sertão: veredas. In: ___. Crivo de papel. São Paulo: Ática, 1998; BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Memória sertão: cenários, cenas, pessoas e gestos no sertão de João Guimarães Rosa e de Manuelzão. Uberaba: Editora UNIUBE, 1998; HANSEN, João Adolfo. O o: a ficção da literatura em Grande sertão: veredas. São Paulo: Hedra, 2000; LAGES, Susana Kampff. João Guimarães Rosa e a saudade. São Paulo: Ateliê Editorial; FAPESP, 2002; FANTINI, Marli. Guimarães Rosa: Fronteiras, margens e passagens. São Paulo: Ateliê Editorial; Senac São Paulo, 2003.

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contação de histórias, que vêm despertando um interesse crescente, dentro e fora do meio

acadêmico, como forma de aproximar crianças, jovens e adultos da literatura.

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1. O ATO DE CONTAR HISTÓRIAS

Para se considerar o ato de contar histórias como um fato importante nas relações

humanas, e para se afirmar que tal prática é significativa na manutenção dessas relações,

deve-se avaliar o envolvimento entre o contador de histórias e o seu ouvinte, fato que é

destacado por Walter Benjamin (1984), ao analisar as narrativas de Nikolai Leskov. Este é

visto como um narrador autêntico pelo teórico, ao comentar que “a experiência que passa

de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”. Segundo Benjamin,

entre as narrativas existentes, “as melhores são as que menos se distinguem das histórias

orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”, as quais revelam diferentes tipos de

narradores e inúmeras formas de se narrar uma história. O teórico alerta, entretanto, que “a

arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em

extinção”. (1994, p. 198-201)

Sobre essa idéia de decadência da narrativa, Benjamin, inspirado por Villemessant –

fundador do diário parisiense Le Figaro, que costumava comentar que seus leitores se

interessavam mais pelos acontecimentos que estavam próximos a eles do que pelas histórias

que vinham de longe –, afirma que a “cada manhã recebemos notícias de todo mundo, e, no

entanto, somos pobres em histórias surpreendentes”. A razão disso, conforme o teórico, “é

que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações”. Em outras palavras, quase nada

do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Para

Benjamin, “metade da arte narrativa está em evitar informações”. (1994, p. 203)

O filósofo alemão afirma, ainda, que “a narrativa, num certo sentido, é uma forma

artesanal de comunicação; é aquilo que mergulha a coisa na vida do narrador para em

seguida retirá-la dele”. Esse mergulho favorece tanto a emergência de outras “coisas” da

vida do narrador, quanto o surgimento de novas narrativas. Uma narrativa, ao se

transformar em algo comunicável, pode fazer ressurgir fatos esquecidos na memória dos

interlocutores. Assim, a narrativa “não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da

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coisa narrada como uma informação ou um relatório”, mas se interessa em oportunizar que

a memória exerça seu papel: o de fonte de recordações. Prova disso é que os narradores

gostam de começar as suas histórias com uma descrição das circunstâncias em que foram

informados dos fatos que vão contar a seguir (1994, p. 205), o que mostra a relação

mnemônica, entre narrador e ouvinte, na preservação das reminiscências, pois, segundo

Benjamin:

a reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. [...] Ela inclui todas as verdades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros narradores, principalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Scherazade, que imagina uma nova história em cada passagem da história que está contando. Tal é a memória épica e a Musa da narração. (Benjamin, 1994, p. 211)

A memória, musa da narrativa, portanto, é a instância em que se alojam e se fundem

as reminiscências; é o espaço em que todos os narradores buscam o material do qual se

constituem as narrativas; o lugar onde primeiro se forma a rede de narrativas das quais se

servem os narradores. Ressalta-se que, para Benjamin, a narrativa é a experiência que passa

de pessoa a pessoa; é uma forma artesanal de comunicação que considera a tradição oral

dos inúmeros narradores anônimos, e está presente, segundo Barthes, “no mito, na lenda, na

fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na

pantomima, na pintura, nas histórias em quadrinhos, na conversação”. (Barthes, 1971, p.

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Entre os narradores, Benjamin destaca dois grupos arcaicos: os que viajam, trazendo

muitas histórias a contar, e os que permanecem em seu país, ganhando a vida sem sair do

lugar. O filósofo adverte que esses grupos são apenas tipos fundamentais, o primeiro

representado pelo marinheiro comerciante, o segundo pelo camponês sedentário. Porém,

Benjamin situa Leskov tanto no grupo dos viajantes quanto no dos que permanecem em seu

lugar de origem, pois o emprego como agente russo de uma firma inglesa proporcionou que

ele transitasse por toda Rússia, o que contribuiu tanto para suas experiências do mundo

como para seus conhecimentos sobre a condição russa. O contato com as seitas rurais e os

contos lendários de seu país, por exemplo, proporcionou que ele exercesse sua hostilidade

contra a burguesia eclesiástica e contra a burocracia ortodoxa, apesar de pertencer à igreja

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ortodoxa de origem grega e ter um genuíno interesse religioso (1994, p. 199). É por isso,

então, que Leskov pôde escrever suas narrativas.

O camponês sedentário é um artífice; um mestre em seu ofício, que trabalha,

geralmente, junto a um aprendiz. O mestre, conhecedor das histórias e das tradições de seu

país, e o seu aprendiz, muitas vezes um migrante, trabalhavam a matéria em suas oficinas,

do mesmo modo que aperfeiçoavam a arte de narrar, uma vez que, em tal relação,

“associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com o saber

do passado, recolhido pelo trabalho sedentário” (1994, p. 199). É nessa associação, entre o

saber que vem de longe e o conhecimento das histórias e das tradições locais, que Benjamin

reconhece em Leskov um narrador nato, que sabe dar conselhos. O teórico atribui, assim,

uma dimensão utilitária às histórias narradas, da qual se pode depreender a natureza da

verdadeira narrativa:

Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. (Benjamin, 1994, p. 200)

Os conselhos de Leskov, os quais vêm sob a forma de narrativas, são, na sua

maioria, inspiradas nos contos lendários russos, cujos personagens centrais representam o

homem justo, simples e ativo que aceita o mundo sem se prender demasiadamente a ele. As

narrativas de Leskov apresentam a transformação natural desse homem, sem exaltação

mítica e sem exagero no emprego do maravilhoso. E é exatamente na apresentação desse

homem que se revela a dimensão utilitária da narrativa, pois, segundo Benjamin, Leskov

sabe dar conselhos porque os busca “na substância viva da existência” que “tem um nome:

sabedoria”. (1994, p. 200)

Embora o homem de hoje tenha deixado de cultivar o que, a rigor, não pode ser

abreviado, como é o caso das narrativas, e esteja desaparecendo a figura desse indivíduo

justo que preza a sabedoria presente na substância viva de sua existência (1994, p. 206), o

ato de contar histórias, da forma como se apreende nos escritos de Benjamin, ainda deve

fazer parte das relações humanas, para que não se perca a sabedoria existente nas

experiências da vida.

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1.1 O declínio da arte de narrar

Apesar de Benjamin analisar um narrador exemplar como Leskov e ressaltar que a

extensão real do reino narrativo só pode ser compreendida caso se leve em conta a

interpenetração dos dois tipos arcaicos de narradores antes mencionados, o do marinheiro

comerciante e o do camponês sedentário, o próprio teórico adverte que a arte de narrar está

em vias de extinção. Benjamin é quase trágico ao afirmar que o homem está sendo privado

da faculdade de intercambiar experiências, e chega a prognosticar que, se essa privação

continuar aumentando, o intercâmbio de experiências vai desaparecer de todo. (1994, p.

198)

Para se ter uma noção de como as ações da experiência estão empobrecendo, é

preciso lembrar que Benjamin, ainda em 1933, no ensaio “Experiência e pobreza”, já

alertava para o fato de que os combatentes que sobreviveram à primeira guerra mundial

voltavam silenciosos dos campos de batalha e ficavam mais pobres em experiências

comunicáveis, “porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadoras que

a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação,

a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes” (1994, p. 115).

Torna-se oportuno perguntar o que aconteceu com os narradores do grupo dos marinheiros

comerciantes e do grupo dos camponeses sedentários; ou por que o homem deixou de aliar

os saberes que vêm de longe aos saberes do passado. Assim, conforme as respostas a essas

questões, pode-se dizer que, de alguma forma, o homem de hoje, comum, que trabalha,

viaja e ganha a vida honestamente, também é vítima de experiências desmoralizadoras,

como as que os combatentes vivenciaram nos campos de batalha.

Benjamin chama esse empobrecimento de uma nova barbárie, aquilo que surgiu

com o desenvolvimento da técnica, e se difundiu apenas na superfície das relações

humanas, deixando de lado a experiência e a sabedoria. Esse novo momento, angustiante,

na opinião do teórico, conduziu as pessoas sempre a partir para frente, a começar de novo, a

contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a

esquerda (1994, p. 116), pois:

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a angustiante riqueza de idéias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas, com a renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarismo e da gnose, da escolástica e do espiritualismo, é o reverso da miséria. Porque não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim uma galvanização. (Benjamin, 1994, p. 115)

É por esse motivo, então, que as pessoas estão cada vez mais pobres em

experiências comunicáveis, como se estivessem vindo de campos de batalhas, sem

nenhuma vivência digna de ser relatada. Uma crise econômica, política, ecológica, social,

parece ser sempre iminente. Essa nova barbárie está conduzindo os indivíduos a se “libertar

de toda experiência” e a “aspirar um mundo em que possam ostentar toda sua pobreza

interna e externa, para que algo de decente possa resultar disso”. (1994, p. 118)

O mundo dos marinheiros comerciantes e dos camponeses sedentários não é mais o

mesmo. De acordo com Benjamin, os vestígios da sabedoria e da experiência vivida por

esses narradores estão sendo abolidos, para dar espaço a algo sem alma, no qual é difícil

deixar rastros, como as casas de vidro de Scheerbart, que mudaram completamente o

homem, inaugurando o que o romancista chamou de cultura de vidro. Nessa nova cultura,

passou-se a rejeitar a imagem do indivíduo tradicional, solene, nobre, adornado com todas

as oferendas do passado, para dirigir-se ao homem contemporâneo nu, quase destituído de

experiências comunicáveis (1994, p. 116). É por esse motivo, então, que Benjamin

prenuncia a morte da narrativa e aponta as causas pelas quais narradores, como os

marinheiros comerciantes e os camponeses sedentários, deixaram de contar suas histórias,

pois com eles:

desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade de ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve uma história. (Benjamin, 1994, p. 205)

Esses narradores assistiram a substituição do artesanato pela indústria, ou seja,

deixaram de fiar e tecer para integrar-se ao mundo de vidro de Scheerbart, onde nada se

fixa: o mundo duro e liso, frio e sóbrio das fábricas, que não tem nenhuma aura, e, em

geral, é inimigo do mistério e da originalidade. Esse também é o mundo do romance e o da

nova forma de comunicação – o mundo da informação –, surgido no início da era moderna,

com a consolidação da burguesia, a massificação da imprensa e o acirramento do

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capitalismo. O universo do romance e dessa nova forma de comunicação rejeita a

experiência vivida e a sabedoria, e deserda, por sua vez, narradores como os marinheiros

comerciantes e os camponeses sedentários.

O surgimento do romance é apontado por Benjamin como o primeiro indício da

morte da narrativa, pois o romance é o resultado do homem isolado, que deixou de falar

exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos e

nem sabe dá-los. O romance, embora tenha sua origem na Antigüidade, somente adquiriu as

características atuais, tornando-se globalizante, vinculado à atualidade e inacabado, com a

invenção da imprensa, cuja difusão destruiu a tradição oral, porque nem procede dessa

tradição nem a alimenta. (1994, p. 201)

No romance, o romancista segrega-se, pois ao escrevê-lo, afasta-se do mundo e das

pessoas, na tentativa de descrever toda uma vida humana, como aconteceu em Dom

Quixote, em que se “mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade de um

dos mais nobres heróis da literatura são totalmente refratárias ao conselho e não contêm a

menor centelha de sabedoria”, levando o incomensurável a seus últimos limites (1994, p.

201). A riqueza de descrição romanesca denuncia a profunda perplexidade daquele que a

vive e está imerso nessa nova forma de comunicação, onde quase tudo está a serviço da

informação (1994, p. 203). Nada disso, porém, está a serviço da narrativa; pelo contrário,

acaba por extingui-la.

A nova forma de comunicação é o segundo indício apontado por Benjamin sobre a

morte da narrativa, uma vez que a difusão da informação influencia a narrativa no que essa

tem de épico, ou seja, na sabedoria que vem do extraordinário e do miraculoso, do

particular e do surpreendente. No mundo burguês, da imprensa e do capitalismo, “a

informação aspira a uma verificação imediata, além de plausível”, pois “a informação só

tem valor no momento em que é nova” (1994, p. 203-204), segundo o teórico:

já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado. Com efeito o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas. (Benjamin, 1994, p. 206)

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Assim, coloca-se, de um lado, a informação, que só vive o momento e que precisa

entregar-se inteiramente a este, perdendo rapidamente sua atualidade; e, de outro, a

narrativa, que não se entrega, “conserva suas forças, e depois de muito tempo ainda é capaz

de se desenvolver” (1994, p. 204). Aliás, é dessa capacidade de desenvolvimento da

narrativa e das sucessivas camadas de narração que aflora a verdadeira arte de narrar.

1.2 A verdadeira arte de narrar

Entre os escritos de Leskov, Benjamin escolheu, para comentar, as narrativas da

segunda fase do autor, porque, segundo o teórico, esses relatos estão livres de orientações

dogmáticas e doutrinárias, das quais os romances de sua primeira fase estão impregnados.

Benjamin, ao longo das considerações que faz sobre a obra de Nikolai Leskov, contrapõe o

romance à narrativa, apontando as diferenças entre essas duas formas literárias1. Embora a

concepção de Benjamin sobre o romance divirja da visão que Bakhtin possui sobre esse

gênero literário, principalmente no que se refere à função social do romance, destacada por

este último e contestada por aquele, é possível aproximar os dois teóricos. Tanto Benjamin

quanto Bakhtin concordam que o gênero romanesco distingue-se das outras formas de

prosa, como os contos de fadas, as sagas, as lendas, as farsas, as novelas, os poemas épicos.

Segundo Bakhtin (2002), o romance surgiu fora do limite da grande literatura

clássica grega, e levava uma existência não oficial, paralela à literatura harmoniosa dos

grupos sociais predominantes, a qual era, essencialmente, representada pelos poemas épicos

e pelas tragédias. O romance afetou a entidade orgânica dessa literatura, porque, além de

não surgir dela, parodiava-a, ou seja, “revelava o convencionalismo das suas formas e da

linguagem, eliminava alguns gêneros, e integrava outros à sua construção particular,

reinterpretando-os e dando-lhes um outro tom” (2002, p. 399). De acordo com o teórico:

1 Benjamin faz distinção entre o romance e a narrativa (ou conto), apesar de essas duas formas literárias pertencerem ao mesmo gênero, o gênero épico ou narrativo, o qual, segundo Carlos Reis (1997, p. 347), caracteriza-se por concretizar um processo de representação autônomo, conjugando personagens, espaços e ações, em um tempo determinado. Cabe salientar que Sergio Paulo Rouanet, tradutor do texto de Benjamin do alemão para o português, na edição utilizada nesta análise, preferiu empregar a palavra “narrativa” em detrimento à palavra “conto”.

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o romance não entrava nunca nessa entidade [a dos grandes gêneros], ele não participava da harmonia dos gêneros. Naquela época, o romance levava uma existência não oficial, fora do limite da grande literatura. Na entidade orgânica da literatura, organizada organicamente, entravam somente gêneros constituídos, com personagens fixados e definidos. Eles podiam se limitar e se completar mutuamente, conservando a natureza de seu gênero. Eles eram únicos e aparentados entre si por suas profundas particularidades estruturais. (Bakhtin, 2002, p. 398)

Como se pode perceber, o gênero romanesco lutava pela sua supremacia na

literatura, e onde ele dominava, acabava desagregando a harmonia dos velhos gêneros,

como aconteceu com as epopéias da antiguidade clássica. (2002, p. 398)

Embora ignorado pelas grandes poéticas do passado, o romance evoluiu e afetou

toda a literatura. Esse gênero tornou-se supremo na segunda metade do século XVIII,

quando, em maior ou menor grau, “romancizou” a maioria dos outros gêneros, sobretudo os

que herdaram as características da épica, desconstituindo a harmonia das estruturas que os

conservavam como gêneros, como por exemplo, a presença de personagens fixados e bem

definidos nos poemas épicos. Bakhtin explica que, “na presença do romance, como gênero

dominante, as linguagens convencionais dos gêneros estritamente canônicos começaram a

ter uma ressonância diferente, diferente daquela época em que o romance não pertencia a

grande literatura”. (2002, p. 399)

A epopéia representava o passado nacional épico, e servia como suporte da lenda

nacional, coletiva, da qual se destacava o herói perfeito e terminado. O mundo da epopéia

era isolado, distante, tanto do narrador quanto dos seus ouvintes, porque o passado épico se

mantinha e se desvelava somente na forma de uma lenda nacional, não acessível a uma

existência pessoal. O passado épico era dado enquanto lenda, sagrada e peremptória, que

envolvia uma apreciação universal (Bakhtin, 2002, p. 408). Esse mundo, que sustentava a

tradição oral da antiguidade clássica e do qual sobrevinha toda a sabedoria que alimentava a

grande literatura, foi desestruturado pelo romance.

Bakhtin acreditava que, além de o romance não proceder da tradição oral, nem a

alimentar, deixou de lado a apreciação sagrada do mundo épico. O narrador do romance

renunciou à experiência, à sabedoria e ao caráter oral e declamatório do ato de contar

histórias, que possibilitava a interação entre ele e o ouvinte, para se vincular essencialmente

ao livro. O romance, portanto, distingue-se da narrativa, não só porque teve origem e

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evolução distintas da grande literatura, mas porque “só ele está organicamente adaptado às

novas formas de percepção silenciosa, ou seja, à leitura”. (Bakhtin, 2002, p. 397)

No entanto, conforme demonstrou Benjamin, é a essa tradição oral, a do mundo

épico, que os grandes narradores como Leskov se voltam para construírem suas narrativas.

Pode-se inferir, então, que um dos motivos pelos quais Benjamin não considerou os

romances de Leskov, nem os romances em geral, como formas legítimas de contar

histórias, foi porque eles se diferenciaram das narrativas, uma vez que:

a tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamental-mente distinta da que caracteriza o romance. O que caracteriza o romance, de todas as outras formas de prosa – contos de fadas, lendas e mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral e nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes (Benjamin, 1994, p. 201).

Como se pode observar, o gênero romanesco incorporou elementos que o distanciou

da forma artesanal de comunicação, aquela que “imprime na narrativa a marca do

narrador”. (Benjamin, 1994, p. 205)

As verdadeiras narrativas, segundo Benjamin, além de possuírem uma dimensão

utilitária, – que vem do senso prático de quem sabe dar conselhos –, estabelecem uma

“relação ingênua entre o narrador e o ouvinte, dominada pelo interesse de conservar o que

foi narrado” (1994, p. 210). Em outras palavras, para o teórico, as narrativas mais

suscetíveis de serem recontadas são aquelas que estão salvas de grandes análises

psicológicas, pois:

quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais facilmente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá a inclinação de recontá-la um dia. (Benjamin, 1994, p. 204)

Do mesmo modo, Adorno (2003), ao tratar das características da épica, revela

existir uma certa ingenuidade tanto no discurso de quem conta histórias quanto na forma

como esse discurso é empregado, com o intuito de perpetuar eventos passados. Pode-se

inferir sobre isso que a relação ingênua no ato de contar histórias é assegurada pela

naturalidade com que o narrador e o ouvinte se envolvem com aquilo que é narrado. Se essa

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naturalidade assegura tal relação, é porque o narrador opta por contar fatos verossímeis e

livres de maiores elaborações, na tentativa de torná-los eventos particulares. Essa

naturalidade na relação entre os envolvidos em um ato de contação de histórias pode

justificar o fato de os narradores buscarem uma ocorrência de algo particular e digno de

nota (Adorno, 2003, p. 51), que detenha a atenção do ouvinte, para possibilitar que esse

evento se reproduza.

A relação ingênua entre narrador e ouvinte, assegurada pela naturalidade no ato de

contar histórias, permite que a poesia épica, da qual se alimentam as verdadeiras narrativas,

ou a tradição oral do artesão, que alia os saberes que vem de longe aos saberes do passado,

perpetuem “algo digno de ser relatado, algo que não se equipara a todo o resto, algo

inconfundível e que merece ser transmitido em seu próprio nome” (Adorno, 2003, p. 48).

Desse modo, pode-se dizer que não só há uma relação ingênua entre narrador e ouvinte,

mas que as coisas que eles contam também adquirem um caráter ingênuo, ou seja, as coisas

narradas “apegam-se, em sua limitação, ao que aconteceu apenas uma vez [...], pois o

acontecimento singular não é simplesmente uma teimosa resistência a abrangente

universalidade do pensamento, mas também o mais íntimo anseio do pensamento”

(Adorno, 2003, p. 49). Essa relação ingênua entre narrador e ouvinte permite que a

memória exerça seu papel de transmissora de reminiscências de geração em geração, pois,

não se pode esquecer que, para Benjamin, “a memória é a mais épica de todas as faculdades

e somente uma memória abrangente permite à poesia épica apropriar-se do curso das

coisas”. (Benjamin, 1994, p. 210)

Todos esses aspectos permitem afirmar que a verdadeira arte de contar histórias

consiste em uma relação ingênua entre narrador e ouvinte e que essa relação funda-se na

naturalidade com que o narrador transforma uma experiência particular, ou de outrem, em

algo comunicável. A verdadeira arte de contar histórias não nasce apenas do interesse do

homem em conservar o que foi narrado, como referiu Benjamin, mas também da

necessidade que ele possui de compartilhar suas experiências particulares com outras

pessoas, como inferiu Adorno.

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1.3 Por que se contam histórias

Vários são os motivos que impelem um narrador a contar histórias. Benjamin

adverte, porém, que “comum a todos os narradores é a facilidade com que se movem para

cima e para baixo nos degraus de sua existência” (1994, p. 215). Para o teórico, as histórias

são contadas independentemente do papel que desempenham no patrimônio da

humanidade, o que explica a multiplicidade de formas com que esse acervo de experiências

se manifesta em cada indivíduo e a abundância de situações por meio das quais seus efeitos

podem ser sentidos (1994, p. 214). Roland Barthes (1972) corrobora essa idéia quando

afirma que:

a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há, não há em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas, e freqüentemente estas narrativas são apreciadas em comum por todos os homens de cultura diferente, [...] a narrativa está aí, como a vida. (Barthes, 1972, p.19)

De acordo com a variedade de situações que envolve o ato de contar histórias, o

grande número de motivos que podem deflagrar a contação de uma história e as diferentes

formas com que as narrativas aparecem, é possível situar os dois grupos de narradores

analisados por Walter Benjamin, os marinheiros comerciantes e os camponeses sedentários.

Os narradores do primeiro grupo podem contar histórias porque desejam compartilhar suas

descobertas com outras pessoas, ou porque desejam manter viva na memória a lembrança

dos lugares por onde passaram. Já os do segundo grupo podem contar suas histórias porque

conhecem as tradições e os costumes de seu país, e são movidos pelo desejo de conservar o

que foi narrado.

Outro fator que instiga a contação de histórias, segundo Benjamin, está relacionado

com o estado psíquico do narrador, ou seja, a escolha da narrativa a ser relatada,

geralmente, é feita em função do que ele está vivendo. Um narrador, em um ato de

contação de histórias, pode estar demonstrando simpatia, envolvimento, afetividade para

com seu ouvinte; em outro pode estar revelando irritação, medo, valentia; em um terceiro,

saudade, desilusão, desconforto, ingenuidade, sabedoria. Porém comum a todas as histórias

é a intenção do narrador de revelar sua identidade e trabalhar a matéria-prima da

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experiência – a sua e a dos outros – transformando-a num produto sólido, útil e único

(Benjamin, 1994, p. 221), e digna de ser relatada. (Adorno, 2003, p.51)

Esse é o caso do indivíduo que está diante da morte. Segundo Benjamin, “é no

momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida –

e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma

transmissível” (1994, p. 207). A morte iminente desperta no indivíduo inúmeras situações,

pois é nesse momento que passam a desfilar, com mais intensidade em sua memória, as

experiências vividas:

Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens – visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso –, assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos a seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade. (Benjamin, 1994, p. 207)

Dessa forma, infere-se que uma história pode ser contada porque o narrador precisa

manter um certo equilíbrio mental em relação à realidade, compreendendo da melhor forma

possível os inúmeros acontecimentos sucedidos com ele. A história contada, geralmente,

diz respeito ao estado de espírito de quem a conta, revelando que precisa entender algum

assunto que, por algum motivo, ainda não pôde entender. Pode-se dizer, então, que a

escolha do tema, as palavras empregadas e as imagens que compõem uma história estão

intimamente ligadas ao desejo do indivíduo de expressar algo ou à necessidade que possui

de organizar os pensamentos para manter-se equilibrado. Ressalta-se, porém, que é mais

comum localizar narrativas que se relacionam com o primeiro grupo de narradores

mencionados por Benjamin e com os indivíduos que contam histórias em função do seu

estado de espírito, do que encontrar narrativas que tratam apenas das tradições e costumes

locais. As primeiras, por algum motivo, foram perpetuadas pela escrita, enquanto que as

outras, em sua maioria, se perderam no tempo, por serem de caráter oral. Adverte-se, ainda,

que narradores diferentes apresentam motivos semelhantes pelos quais contam suas

histórias.

Independentemente do lugar onde o narrador esteja, da posição que ocupa, das

coisas que conta, ou, ainda, do seu estado de espírito, o ato de contar histórias pressupõe o

ato de ouvir, pois um narrador já deve ter ouvido uma história para poder contar outra, bem

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como um ouvinte deve saber de que se trata de uma história para entendê-la, além de ter

noção de como elas aparecem e como se estruturam. Antes de poder contar uma história,

então, o narrador deve tê-la ouvido de algum outro narrador, pois é especialmente nesse

tipo de relação que o indivíduo começa a estabelecer suas diferenças – ideológicas, sociais,

culturais –, para que, de alguma forma, possa constituir, não só sua identidade, mas também

a do país ou grupo social a que pertence. Kathryn Rosenfield (1996) alude a essa relação

entre o ato de contar histórias e a constituição da identidade, comentando especificamente o

caso do Brasil:

é tipicamente brasileiro o hábito de “puxar conversa”, de parar no meio do trabalho ou no meio do caminho, para “bater papo”, para contar e ouvir histórias. Em intermináveis “conversas fiadas” misturam-se vida privada e pública, curiosidade à toa e interesses, amabilidade espontânea e obrigação social, pois “conversar”, no Brasil, não é apenas um passatempo privado ou um lazer pessoal, mas quase uma secreta confirmação de que o laço social está intacto. (Rosenfield, 1996, p. 10)

Rosenfield, além de mostrar o caso particular do Brasil, aponta para um sujeito que

soube lidar muito bem com os tesouros da cultura popular brasileira e que se consagrou

como um dos maiores contadores de histórias nascidos neste país: João Guimarães Rosa.

Esse escritor, segundo a ensaísta, soube distinguir o rico fundo da cultura popular brasileira,

formado pelos tesouros sonoros e semânticos da dicção sertaneja, dos curiosíssimos

amálgamas da cultura européia com o substrato indígena e o influxo africano, que deixaram

tão profundos traços na formação física e psíquica do homem brasileiro. (Rosenfield, 1996,

p. 27)

Não foi por acaso, então, que Guimarães Rosa, segundo Rosenfield, retratou “as

trilhas camufladas que nos fazem retornar a inquietantes êxtases” (1986, p. 13) e fez

emergir da cultura popular brasileira o hábito de puxar conversa, a informalidade do bater

papo e as intermináveis conversas fiadas. O charme particular das entonações e dos gestos,

as distinções precisas, a sutil impregnação da natureza nas ações, nas atitudes e nos hábitos

sertanejos, tornaram esse contador de histórias um sujeito único, que conseguiu visualizar

os mínimos detalhes da flora e da fauna, de inúmeros personagens, atribuindo-lhes

características de plantas e de animais (1996, p. 18). Guimarães Rosa amava muito seu país

e sua Cordisburgo, cidade onde nasceu, e “sempre viu, bem no centro das mais tenebrosas

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perspectivas que se esboçam nos interstícios de suas histórias, algum detalhe amável, terno,

maravilhoso, ou alegremente irrisório”. (Rosenfield, 1996, p. 26)

É justo, então, afirmar que a maioria das histórias é contada porque os indivíduos

desejam constituir suas identidades, pois, à medida que narram experiências vividas – ou

imaginadas –, mostram suas lembranças, seus sonhos, suas viagens, suas leituras, ou seja,

tudo aquilo que os torna únicos. Cecília de Lara (1996)2 dá uma noção de como as

experiências de Guimarães Rosa, transfiguradas em histórias, contribuíram para que ele se

transformasse em um indivíduo singular:

A própria maneira de ser e de viver, no sertão, encarregou-se de encaminhá-lo para a busca da expressão pela palavra: “Deus meu! No sertão, o que pode uma pessoa fazer de seu tempo livre a não ser contar histórias?” – dirá a G. Lorenz [jornalista]. “Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava tudo o que podia e comecei formar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda”. Os comentários que acompanham o relato dos fatos rememorados criam uma espécie de previsão retrospectiva, fazendo convergir o vivido para a situação presente: a do escritor que nascia para a Literatura. (Lara, 1996, p. 24)

Lara observa que Guimarães Rosa sempre manteve ligação afetiva com sua região e

que sua terra natal não foi esquecida nem no seu discurso de posse na Academia Brasileira

de Letras, que falava de uma Cordisburgo pequeníssima, plantada atrás das montanhas, no

meio de Minas Gerais. A cidade, na lembrança do escritor, era “só quase lugar”; onde “se

descerra a gruta de Maquiné, mil maravilhas, a das Fadas e o próprio campo, com

vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sobre o demais de estrelas,

falava-se: ‘os pastos de Vista Alegre’” (Lara, 1996, p. 20). Lara ressalta, ainda, que as

lembranças, os sonhos e os devaneios da infância de Guimarães Rosa sempre estiveram

presentes em sua obra, e que o escritor realizava técnicas ou processos para voltar à

infância, ou “a ‘outra’ infância”, como o próprio autor preferia chamar àquilo que resultava

do sonho: “Com algum treinamento, qualquer um consegue andar por lá pelo menos umas

duas horas, cada dia. E aí, a cidade vira roça”. (Lara, 1996, p. 19)

Portanto, o imaginário de Guimarães Rosa que, segundo Lara, também era

enriquecido por leituras, por viagens de estudo e por informações de amigos e parentes, não

2 É importante observar que o ano de publicação dos ensaios “João Guimarães Rosa: o contista de Sagarana”, de Kathryn Rosenfield, e “Rosa por Rosa: memória e criação”, de Cecília de Lara, é 1996, data em que se comemorou o cinqüentenário da primeira edição de Sagarana.

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só ligava sua maneira de ser e de viver, no sertão, às suas rememorações da infância, mas

também permitia que o escritor construísse sua identidade, re-inventando as próprias

lembranças. A fantasia se associava às recordações da infância na memória do adulo: “se

por um lado a memória do vivido é reativada pelo ‘sonho’, ou seja, o devaneio, a fantasia,

por outro o conhecimento adquirido em leituras se soma à vivência pessoal, permitindo que

novos detalhes enriqueçam a observação, quando revisita o cenário de sua infância” (Lara,

1996, p. 21). Guimarães Rosa, em entrevista a G. Lorenz, declarou que, em literatura, era

um sujeito visual, e que só sabia descrever aquilo que via e, efetivamente, sonhava depois.

Esse comentário levou Lara a concluir que o escritor:

Chama de “sonho” o processo de recordar o vivido, que implica no trabalho da fantasia sobre a realidade. Logo, Guimarães Rosa reafirma a ação da imaginação, que se alia a outros ingredientes da recordação: o transcurso do tempo. Fala, ainda, de “lembranças e saudades” e diz que escreve sobre o que viu e sonhou “depois”. Reviver o passado é sonhar, portanto, com o vivido. (Lara, 1996, p. 19)

Como se pôde perceber pela análise dos dois grupos de narradores de Benjamin, os

marinheiros comerciantes e os camponeses sedentários, um narrador não conta sua história

somente porque deseja compartilhar suas descobertas com outras pessoas, ou porque almeja

manter vivos na memória os lugares por onde passou; ele também pode contar histórias a

fim de demonstrar que conhece as tradições e os costumes de seu país, movido pelo desejo

de conservar aquilo que foi narrado por outros. Ainda, segundo Benjamin, um narrador

pode narrar histórias, motivado pelo seu estado de espírito, ou seja, ele conta sua história

porque precisa resolver assuntos pendentes, como é o caso do indivíduo que se encontra

diante da morte. Com base no exame da vasta fortuna crítica da obra de Guimarães Rosa,

pode-se dizer que esse escritor envolve-se em um ato de contação de histórias com o intuito

de estabelecer sua identidade e de tornar-se único, pois, segundo João Adolfo Hansen, “o

narrador é sujeito tentando a determinação do que vive, na medida em que também é o

narrado. Seu imaginário detona na fala aquilo que tenta pensar abstratamente, na imagem

da coisa, como memória”. (Hansen, 1996, p. 54)

Tendo em vista a análise do processo de contação de histórias efetuada por Walter

Benjamin e a representação dessa prática por parte de escritores, dentre os quais,

Guimarães Rosa, é possível afirmar que, de um lado, estão as situações que dizem respeito

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à relação entre o contador de histórias e o seu ouvinte – o relato oral e a audição de casos –,

as quais são, na verdade, tentativas de demarcar as diferenças entre aquele que conta e

aquele que ouve; de outro estão as situações que remetem à interação do texto com o leitor

– a narração, por escrito, e a leitura de histórias. A leitura é um ato solitário, que ocorre

quando alguém se relaciona com uma história que já foi escrita, ou seja, quando o relato já

ultrapassou a fase da oralidade e ganhou registro gráfico.

1.4 O efeito estético

Nesta época, em que se tem a sensação de que todas as histórias já foram contadas,

e em que vigoram idéias de teóricos como Walter Benjamin, que já prenunciaram até a

morte da narrativa, é importante que se considere a relação entre o contador de histórias e o

seu ouvinte ou leitor. Por isso, torna-se oportuno investigar a interação entre o texto e o

leitor, pelo ato da leitura, pois, segundo Wolfgang Iser, em O ato da leitura: uma teoria do

efeito estético3, é durante esse processo que o texto ficcional se transforma em objeto

estético e passa à consciência do receptor, provocando o efeito estético.

Segundo Iser (1996), no processo da leitura se realiza a interação central entre a

estrutura da obra e seu receptor. Por isso, o estudo de uma obra literária não pode dedicar-

se apenas à configuração do texto, mas deve aplicar-se, também e, na mesma medida, aos

atos de apreensão. Uma obra literária, então, não é nem a realidade do texto, nem as

disposições caracterizadoras do leitor; “a obra é o ser constituído do texto na consciência do

leitor”. Iser denomina esse ser que se constitui na consciência do leitor de objeto estético.

Por sua vez, o objeto estético resulta das relações internas do texto (Iser, 1996, p. 50-51),

porque, de acordo com o teórico:

já podemos concluir que o objeto estético do texto se constitui através dessas visões diferenciadas, oferecidas pelas perspectivas do texto. O objeto estético emerge da interação dessas “perspectivas internas” do texto; ele é um objeto estético à medida que o leitor tem de produzi-lo por meio da orientação que a constelação dos diversos pontos de vista oferece. (Iser, 1996, p. 180)

3 Esse livro, publicado em 1976, na Alemanha, teve sua edição brasileira dividida em dois volumes. O primeiro, editado em 1996, está dividido em dois capítulos. O segundo volume foi editado em 1999 e contêm os capítulos terceiro e quarto.

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As perspectivas internas do texto são organizadas pelas estratégias narrativas, que

combinam os elementos constitutivos do texto de tal forma que eles possam ser

compreendidos. As estratégias narrativas também são responsáveis pelas diferentes visões

que um leitor pode criar de uma obra literária, porque “o texto representa um sistema

perspectivístico” (Iser, 1996, p. 179), ou seja, apresenta várias perspectivas, como exemplo,

a do narrador, a dos personagens, a do enredo, a do destinatário ou leitor. Essas estratégias,

então, contribuem com a construção do objeto estético, caso se considere que:

o objeto estético se constrói através da rede dessas relações. Ele não é algo dado, mas pode ser constituído por meio da mudança recíproca das posições delas. Se lembrarmos que as posições do texto – as perspectivas do narrador, do herói, dos personagens secundários, da ação e da ficção do leitor – sempre representam algo determinado, sua mudança, produzida na rede das relações recíprocas, significa que o objeto estético do texto transcende tudo que é determinado no texto. (Iser, 1996, p. 183)

A constituição do objeto estético na consciência do leitor, pelas estratégias textuais,

caracteriza o efeito estético, que, embora não se cristalize em algo existente, “pode ser

definido como recusa à categorização ou ainda como situação em que o receptor se afasta

de suas classificações” (Iser, 1996, p. 53). O efeito estético, portanto, é o resultado do

processo de apreensão de uma obra literária por um leitor que desvenda as estratégias

propostas pelo texto. Esse efeito não é conseqüência apenas das estruturas do texto e das

disposições do leitor, ele é o algo que ultrapassa a realidade empírica dessas duas instâncias

para adquirir o caráter de evento. Segundo Iser, isso significa:

que o leitor reage a algo que ele mesmo produzira, e esse modo de reação explica porque somos capazes de experimentar o texto como evento real. Não o compreendemos como objeto dado, nem como estrutura determinada por predicados; é antes de mais nada por nossas reações que o texto se faz presente. Dessa maneira, o sentido da obra ganha o caráter de evento, e, já que produzimos o evento como correlato da consciência do texto, experimentamos o texto como realidade. (Iser, 1999, p. 45-46)

De acordo com o teórico, além de o texto ficcional se constituir na consciência do

leitor como objeto estético, deve-se levar em conta a sua característica de ser parasitário, o

qual dispõe dos procedimentos de uma enunciação performática. O texto literário “deve ter

algumas qualidades dos atos verbais que imita, deles diferindo apenas por seu modo de

aplicação” (Iser, 1996, p. 114). Desse modo, pode-se dizer que o caráter parasitário do

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discurso ficcional, em relação ao uso normal da fala, indica que o texto literário é uma

representação da enunciação verbal e necessita de uma situação contextual para realizar o

ato de comunicação. Ao contrário disso, um ato verbal normal mostra, pelas reações do

receptor, que ele “captou corretamente a intenção do falante, cumprindo os pressupostos

necessários para que o êxito de uma ação verbal se realize” (1996, p. 109), pois:

se o discurso é a representação de uma enunciação verbal, ele é capaz de representar o que a enunciação verbal é, ou seja, produz. Isso significa, de um lado, que o discurso ficcional, por meio de sua organização de símbolos, representa o ato de apreensão da enunciação verbal, e, uma vez que no discurso esse ato não se refere a um dado empírico e identificável, sua estrutura verbal indica como se há de produzir o que é intencionado pelo discurso. De outro, isso significa que o discurso representa um ato ilocucionário da fala que, no entanto, não pode contar com uma situação contextual previamente dada e, por conseguinte, deve trazer consigo todas as indicações que permitam ao receptor da enunciação produzir tal situação contextual. (Iser, 1996, p. 120)

O texto artístico é capaz, então, de representar o uso normal da fala por captar e

ordenar os símbolos de uma ação verbal, e o fato de que o uso do discurso ficcional não se

confunde com o dado de uma ação atual não significa que esse discurso não produza efeitos

(1996, p. 113). Assim, é justo inferir que o discurso do contador de histórias no âmbito

ficcional causa efeitos em seu interlocutor, embora ele esteja apenas simulando um relato

oral. Assim, para se analisar o envolvimento entre o contador de histórias e o seu leitor no

texto ficcional, é preciso entender que, no ato de contação de histórias, formam-se

discursos, e que esses discursos são dotados de procedimentos narrativos, ou estratégias

narrativas que servem para representar o uso normal da fala em um ato real de contação de

histórias. Segundo Iser, “o discurso ficcional, sobretudo da prosa literária, tanto se

assemelha em sua estrutura verbal ao uso normal da fala que muitas vezes é difícil de

distingui-los”. (1996, p. 116)

Entre os efeitos do relacionamento que o leitor estabelece com o texto literário está

a experiência estética, que, segundo Iser, “só funciona se tira proveito das possibilidades de

experimentar noutras condições a experiência cotidiana” (1996, p. 82). O conceito de

experiência estética foi concebido por Hans Robert Jauss (2002) e diz respeito à capacidade

da arte de libertar o ser humano, pelo imaginário, “de tudo o que faz a realidade

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constrangedora de sua vida cotidiana”4 (Jauss, 2002, p. 40). Vale observar a síntese das

idéias de Jauss elaborada por Zilberman (1989), que aponta para os efeitos da experiência

estética sobre o indivíduo:

liberta o ser humano dos constrangimentos e da rotina cotidiana; estabelece uma distância entre ele e a realidade convertida em espetáculo; pode preceder a experiência, implicando então a incorporação de novas normas, fundamentais para a atuação na e compreensão da vida prática; e, enfim é concomitantemente antecipação utópica, quando projeta vivências futuras, e reconhecimento retrospectivo, ao preservar o passado e permitir a descoberta de acontecimentos enterrados. (Zilberman, 1989, p. 54)

Assim se pode explicar como uma obra literária é capaz de influenciar a vida do

indivíduo quando promove a experiência estética. A consciência do leitor começa a se

ocupar do contexto criado pela obra e a produzir novas situações, que não precisam,

necessariamente, ser vivenciadas por ele. O leitor se vê representado na obra de tal forma

que intui circunstâncias até então inimagináveis, de modo a poder resolver conflitos antigos

e preparar-se para enfrentar problemas novos.

A leitura de um texto ficcional pode, então, provocar a experiência estética, que,

além de propiciar a mudança do horizonte de expectativas do leitor, produz neste um novo

contexto: o contexto da obra. Esse contexto, que, segundo Iser, já não conta com as

situações normais de fala, por ser diferente do contexto da realidade cotidiana (1996, p,

120), é capaz, também, de despragmatizar as normas estabelecidas por essa, ou seja:

à medida que o leitor produz esse contexto [o contexto da obra de ficção], ele próprio começa a despragmatizar as normas. Isso significa, contudo, que ele as separa de seu contexto de valor porque agora consegue ver o que elas excluem em face de outras normas; desse modo, ele pode apreender o valor, representado por cada norma, e captar sua função, que cumpria nos sistemas correspondentes. Se isso sucede, então é possível para o leitor transcender o repertório da norma, pois agora ele vê o que este, enquanto função reguladora no contexto sociocultural, era capaz de produzir. (Iser, 1996, p. 189)

De acordo com o teórico, a experiência estética possibilita que se abra a hierarquia

cristalizada dos constituintes psíquicos, produzindo movimentos que são sentidos como

libertação latente, capaz de suspender a exigência do sensor e a validez dos domínios 4 Tradução do espanhol por Terezinha Maria de Melo Barros, em uma tradução não publicada da “Pequena apologia da experiência estética”, de Hans Robert Jauss, apresentada à disciplina de Estética da Recepção, do curso de pós-graduação em lingüística e letras, da PUCRS, Porto Alegre, no ano de 1990.

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estabelecidos, ao menos, durante o processo da leitura (1996, p. 91). O leitor, assim, é

capaz de observar-se a si próprio e de passar a ver o seu entorno de uma forma que não lhe

é familiar, pois “perceber-se a si mesmo no momento da própria participação constitui uma

qualidade central da experiência estética; o leitor se encontra num peculiar estado

intermediário: ele se envolve e se vê sendo envolvido”. (1999, p. 53)

Outro elemento que caracteriza o texto literário, de acordo com Iser, é a sua

capacidade de representar a realidade empírica pela imagem. À medida que o leitor percebe

os signos do texto, ele passa a construir em sua memória as imagens que aqueles

representam, pois “a imagem sempre incorpora a maneira como os objetos do mundo

externo se imprimem na tábua de cera do nosso espírito” (1999, p. 57). Porém, o próprio

teórico adverte que nem o leitor é uma tábua de cera, nem a percepção dos objetos do

mundo externo é imediata, uma vez que a representação só “ganha o seu caráter imagístico

quando o saber que o texto oferece ou estimula no leitor é aproveitado, e isso significa que

o que deve ser representado não é o saber enquanto tal, mas a combinação ainda não-

formulada de dados oferecidos” (1999, p. 58). Pode-se dizer, então, que a imagem é a

categoria básica da representação porque:

ela se refere ao não-dado ou ausente, dando-lhe presença. [...] possibilita também a representação de inovações que se constituem quando o saber previamente estabelecido é desmentido, ou seja, quando determinadas combinações de signos não são familiares. (Iser, 1999, p. 58-59)

Ora, se a experiência estética proporcionada pelas imagens do texto literário é capaz

de causar o efeito estético, libertar o ser humano dos constrangimentos e da rotina

cotidiana, provocar mudanças no horizonte de expectativas, possibilitando tanto que o

receptor re-avalie as normas estabelecidas quanto incorpore outras, então, é possível

afirmar que o relato de uma história ficcional pode tornar o leitor (ou ouvinte) “conscientes

da aquisição de experiências”. Dessa forma, na leitura de textos ficcionais, “inicia-se uma

interação entre a presença do texto e a experiência do leitor relegada ao passado, interação

esta que se manifesta na relação mútua entre reorganizar e dar forma” (1999, p. 53). Assim,

o ato de contação de histórias, realizado por escrito ou oralmente, torna os envolvidos

capazes de observarem-se a si mesmos e possibilita que o passado ressurja em suas

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consciências para ser reorganizado, re-configurando as experiências atuais e futuras dos

indivíduos.

Ressalta-se que a ausência de estudos sobre o efeito estético de textos orais de

natureza artística dificulta uma distinção mais aprofundada entre as experiências do

contador de histórias e do ouvinte – que pressupõem uma relação coletiva, ingênua e

natural –, de um lado, e as experiências do escritor e do leitor, que se prendem a situações

de leitura solitária. Seria necessário, portanto, criar uma teoria específica para investigar os

efeitos que um texto oral artístico pode provocar em um ouvinte, complementando, desse

modo, a teoria do efeito estético de Iser, que aborda, exclusivamente, o texto ficcional

escrito.

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2. O CONTADOR DE HISTÓRIAS EM TERCEIRA PESSOA

Sempre que se conta uma história, há um narrador que se posiciona diante do que é

narrado. Segundo Helena Parente Cunha, quando um narrador coloca-se em frente ao que

narra, ele se põe numa situação de confronto em relação aquilo que conta, caracterizando

um distanciamento entre o sujeito1 (narrador) e o objeto (mundo narrado). Esse

distanciamento “instaura um defrontar-se objetivo”, em que o narrador “se coloca diante do

objeto, segundo determinado ponto de observação, para registrar, apontar, mostrar, enfim,

apresentar esse objeto”. (Cunha, 1979, p. 106-107)

O contador de histórias em terceira pessoa parece estar sempre ocupado em

acrescentar algum detalhe àquilo que está relatando ou ao que pretende relatar. A cada

momento, o narrador pode ser surpreendido por um fato “novo”, suscitado seja pelo ouvinte

ou leitor, seja por uma reminiscência, seja por um acontecimento que presencia ou por um

objeto que lhe desperta a atenção na hora em que está contando a história. O fato é que esse

tipo de contador de histórias, que se concentra no mundo exterior para narrar, está

constantemente em conflito, como se estivesse sempre envolvido, para usar uma expressão

de Georg Lukács, em uma “luta entre dois mundos” (2000, p. 118), pois aquilo que vem de

fora se choca com o que já está no seu interior.

Lukács, ao explicar o “romantismo da desilusão”, tendência que identifica no

romance do século XIX, esclarece que o embate entre exterioridade e interioridade

acontece porque o indivíduo não consegue abarcar todas as coisas exteriores, embora seu

interior seja mais vasto que o mundo exterior (2000, p. 118). Esse paradoxo evidencia a

“inadequação que nasce do fato de a alma ser mais ampla e mais vasta que os destinos que

1 Não se deve confundir o sujeito empírico (autor) com o sujeito que narra, dentro do texto (narrador). Essas duas entidades, segundo Carlos Reis, diferenciam-se, “tanto do ponto de vista ontológico como do ponto de vista funcional”. Enquanto o primeiro “não deixará de ser uma entidade transitória e histórica, capaz até de se distanciar ideológica e esteticamente do texto que escreveu”, o segundo, nunca deixará de ser “uma entidade fictícia a quem cabe anunciar o discurso” (Reis, 1997, p. 353-355).

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a vida lhe é capaz de oferecer” (2000, p. 117) e aponta para a amplidão da subjetividade,

que, segundo o teórico, pode estender-se até a subjetividade lírica, pois:

também a subjetividade lírica conquista para seus símbolos o mundo externo; ainda que seja autocriado, ele é o único possível, e ela, como interioridade, jamais se opõe de maneira polêmico-repreensiva ao mundo exterior que lhe é designado, jamais se refugia em si mesma para esquecê-lo, mas antes, conquistando arbitrariamente, colhe os fragmentos desse caos atomizado e os funde – fazendo esquecer todas as origens – no recém-surgido cosmos lírico da pura interioridade. (Lukács, 2000, p. 120)

De acordo com Lukács, o maior responsável pela desintegração da realidade em

fragmentos absolutamente heterogêneos entre si e pela discrepância entre interioridade e

exterioridade é o tempo, pois, “nele, escritor e personagem podem mover-se livremente em

qualquer direção” (2000, p. 128). O contador de histórias, independentemente daquilo que

narra, deve, então, estabelecer simultaneamente o tempo em que os fatos ocorrem –

presente, passado ou futuro – e o tempo de duração dos mesmos – dias, meses e anos –,

uma vez que, segundo o teórico, tudo o que ocorre é fragmentário e está sempre irradiado

pela esperança e pela recordação. O tempo, portanto, da mesma forma que é culpado pela

fragmentação da realidade é a dimensão que:

ordena o caos aleatório dos homens e lhe empresta a aparência de uma organicidade que floresce por si; sem outro sentido senão o evidente, personagens emergem e, sem evidenciarem nenhum sentido, submergem novamente, travam relações com os demais e rompem a seguir. (Lukács, 2000, p. 132)

A posição adotada pelo indivíduo que se coloca, objetivamente, diante daquilo que

conta permite classificá-lo como um narrador em terceira pessoa. Segundo Salvatore

D’Onofrio, esse tipo de narrador é um observador imparcial que olha o mundo circundante.

Ao fazer isso, tal narrador traz o mundo passado, maravilhoso e imutável, para diante dos

olhos de quem se envolve com sua história, e mostra a vida presente como transparência

luminosa, em que predomina o espírito objetivo (D’Onofrio, 2002, p. 12). Adorno vai nessa

mesma direção, ao afirmar que esses narradores “tratavam de apresentar seu conteúdo de

maneira a provocar a sugestão do real”, em decorrência da objetividade que desejavam

imprimir em suas obras. Eles lidavam com um realismo que era imanente, utilizando

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técnicas de ilusão que lhes proporcionavam erguer uma cortina e fazer o leitor participar do

que acontecia, como se estivesse presente ali, em carne e osso. (Adorno, 2003, p. 55-60)

Em textos ficcionais, segundo Carlos Reis, o narrador é uma entidade fictícia e

irrefutável (1997, p. 354-369), que pode posicionar-se em terceira pessoa para contar

histórias e que sempre se dirige a um narratário2, um sujeito não explicitamente

mencionado na superfície do texto (Reis, 1997, p. 356), também fictício, e, por isso,

previsto e controlado pelo autor. Em outras palavras, aquele que relata uma história em

terceira pessoa exerce uma situação de polaridade e de alteridade, uma vez que se coloca na

posição de quem fala a um outro – o narratário. Essa situação narrativa estrutura-se,

segundo o teórico, sob uma:

polaridade entre narrador e universo diegético, acentuando-se entre ambos uma alteridade em principio irredutível; por força dessa polaridade, o narrador heterodiegético tende a adotar uma atitude demiúrgica em relação à história que conta, surgindo dotado de uma autoridade que normalmente não é posta em causa; predominantemente, o narrador heterodiegético exprime-se em terceira pessoa, traduzindo esse registro à alteridade mencionada. (Reis, 1997, p. 370)

O narrador heterodiegético ou em terceira pessoa, portanto, relata uma história, ou

diegese, colocando-se em uma situação externa ao mundo narrado, ou seja, ele não atua

como personagem (Reis, 1997, p. 370), e conduz a narrativa de forma onipotente e de

acordo com sua vontade.

Já em um processo real de contação de histórias, há que se observar a presença do

ouvinte, aquele que se dispõe a receber o que é narrado, e que, sobretudo, interfere naquilo

que o narrador conta, relativizando a autoridade de quem narra. O ouvinte adquire

importância nesse processo, à medida que impõe sua vontade na história e impulsiona, de

alguma forma, o narrador a contá-la, transformando-se, muitas vezes, no motivo central da

narração. Quando isso ocorre, para utilizar uma expressão de Walter Benjamin, o narrador

“incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (Benjamin, 1994, p. 201).

Ao se observar as peculiaridades do narratário e as do leitor real, portanto, pode-se inferir

2 Em textos ficcionais, segundo Carlos Reis, o narratário, também é uma entidade fictícia, como o narrador. Pode-se evidenciá-lo quando o narrador “convoca expressamente a atenção de um destinatário intratextual”. Porém, segundo o teórico, a definição do narratário solicita a prévia distinção relativa ao leitor real, que, de alguma forma, deve ser, por exemplo, “atento aos dramas sociais que se vão esboçando”, e ser “razoavelmente conhecedor dos contornos de uma crise econômica em desenvolvimento”, capaz de distinguir significados da realidade empírica. (Reis, 1997, p. 356-357)

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que o contador de histórias que vier a utilizar o discurso normal da fala, em uma situação

real de contação de histórias, pode posicionar-se em terceira pessoa para fazer seu relato a

um ouvinte, de forma semelhante àquela que, em textos ficcionais, o narrador inventado por

um autor assume diante do mundo narrado, dirigindo-se a um narratário.

Ressalta-se que tanto o narrador ficcional quanto o contador de histórias real podem

posicionar-se em terceira pessoa e que ambos imprimem, em seus relatos, um processo de

exteriorização, o qual, segundo Reis, procura descrever e caracterizar um universo

autônomo, que depende da uma tendência objetiva e de uma dinâmica de sucessividade,

estando integrado por personagens, tempo, espaços e ações (Reis, 1997, p. 347). Esse é o

procedimento que se encontra em “Sarapalha” e em “O burrinho pedrês”, contos de João

Guimarães Rosa, inseridos em Sagarana.

2.1 “Sarapalha”

O narrador de “Sarapalha” (1984, p. 132-154) conta a história de dois compadres, o

Primo Ribeiro e o Primo Argemiro, que conversavam sobre acontecimentos do passado e

sobre a sua condição de enfermos, enquanto eram assaltados por delírios e por tremores,

causados pelas complicações da malária. Eles moravam juntos e, naquela manhã, estavam

sentados lado a lado em um “casco de cocho emborcado” (1984, p. 135), em frente à casa

da fazenda, perto do vau da Sarapalha, trecho alagado pelo rio Pará, afluente do rio São

Francisco, no interior de Minas Gerais. Não se sabia se tremiam e se deliravam mais por

causa da doença ou porque lembravam e comentavam acontecimentos marcantes de seus

passados. O estado em que se encontravam, ao mesmo tempo, aumentava o grau de

intimidade entre os dois e contribuía para o surgimento de tais eventos. Entre os episódios

do passado, relembrados pelos companheiros, surgiu a história da fuga de Luísa, ex-esposa

de Primo Ribeiro, fato que, até então, nunca tinha sido abordado por eles, porque causava

comoção em ambos. Enquanto Primo Ribeiro lamentava a perda de Luísa, Primo Argemiro

tinha de esconder seu amor por ela. A eclosão do evento na memória e na fala dos dois foi

tão decisiva que acabou dissolvendo a relação de amizade entre os companheiros, ou seja,

Primo Ribeiro não suportou a confissão do amor de Primo Argemiro por sua ex-esposa.

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No início do conto, o narrador principal mostra uma fazenda quase abandonada,

onde havia apenas os dois compadres sentados no cocho, uma negra velha que só capinava

e cozinhava, um cão sarnento e o escasso milharal arruinado por bandos de pássaros

famintos. A fazenda, de propriedade do Primo Ribeiro, ficava a três quilômetros de Tapera

de Arraial, vilarejo também afetado pela chegada da malária, do qual restavam somente as

casas, a capela e o cemitério. A desolação da fazenda e do vilarejo era tão grande que até as

cobras tinham-se ido embora. Restava apenas o mato invadindo os caminhos.

Além da narração do incidente entre os dois compadres, feita pelo narrador principal

do conto, e do episódio da fuga de Luísa, contado por Primo Ribeiro, há outras histórias

inseridas em “Sarapalha”. Uma delas é narrada por Primo Argemiro e diz respeito a uma

moça que fugiu com um homem muito bonito, sem saber que se tratava do próprio capeta.

As outras, também contadas por Primo Argemiro, constituem-se no relato da lembrança da

chegada à fazenda do boiadeiro com quem Luísa fugiu e na confissão do amor que um dos

companheiros nutria pela esposa do outro. Há, ainda, a história relativa à advertência feita

pelo doutor aos moradores de Tapera do Arraial, que deviam deixar o lugar por causa da

malária, caso este contado parte por Primo Argemiro e parte por Primo Ribeiro; o episódio

em que Primo Argemiro, como forma de expressar um desejo de animar seu parceiro,

projeta uma cena futura – a de que, uma vez curados da doença, poderiam, ele e o primo,

plantar uma roça em cima do morro; a história referente aos sonhos e delírios de Primo

Ribeiro, no momento em que teve sua morte anunciada por pássaros e via sua ex-esposa

perambulando entre mulheres vestidas de azul.

Observa-se que os narradores de “Sarapalha” – tanto o principal quanto Primo

Ribeiro e Primo Argemiro – na maioria dos eventos de contação de histórias, assumem uma

posição externa às histórias que contam, ou seja, não participam das ações que narram. As

exceções ocorrem quando os protagonistas relatam lembranças ou falam de desejos e de

sonhos, momentos em que se colocam como personagens dos relatos. O narrador principal

é onisciente e observa tudo o que acontece. Primo Ribeiro e Primo Argemiro são

personagens que assumem a posição de narrador em determinados momentos do relato.

Após mostrar a fazenda onde estavam os dois compadres, o narrador principal dá

continuidade à história e conta que era pela manhã e o sol ainda não esquentava. No

momento em questão, Primo Ribeiro, enrolado em um cobertor, advertiu o companheiro

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sobre o zumbido dos mosquitos em seus ouvidos e sobre o frio que sentia nas costas,

prevendo que a morte viria logo. Sentados lado a lado, comparavam o tamanho de seus

baços. Esse órgão, segundo o narrador principal, sendo afetado pela doença, aumentava

consideravelmente. A comparação é feita com o intuito de verificar qual dos dois estava

sendo mais castigado pela moléstia. Porém, os comentários sobre as sensações provocadas

pela doença eram intercalados por longos momentos de silêncio, durante os quais os dois

observavam as poucas galinhas ciscarem o chão e o cão, pestilento, sacudir as orelhas, além

de especularem sobre as condições do tempo:

– Será que chove, primo? – Capaz. – Ind’hoje? Será? – ’Manhã. – Chuva brava, de panca? – Às vez... – Da banda de riba? – De trás. (1984, p. 138)

Assim, nos intervalos de “mais da metade de uma hora” (1984, p.138) que faziam

entre as falas, olhando ora a cerração que se desprendia do rio e o vôo da garça em direção

à mata, ora a ação dos pássaros no milharal, os dois compadres permaneciam imóveis,

sentados no cocho, todas as manhãs – desde que a chegada da malária havia modificado o

lugar –, até o sol esquentar. Porém, naquele dia, Primo Argemiro estava com medo do

silêncio, pois Primo Ribeiro, “desfiando a beirada do cobertor, com muita nervosia de

unhas” (1984, p.138), quando falava, só lembrava da morte:

quando for a minha hora, você não deixe me levar p’ro arraial... Quero ir mas é p’ro cemitério do povoado... Está desdeixado, mas ainda é chão de Deus... Você chama o padre, bem em-antes... E aquelas coisinhas que estão numa capanga bordada, enroladas em papel-de-venda e tudo passado com cadarço, no fundo da canastra... se rato não roeu... você enterra junto comigo... Agora eu não quero mexer lá... Depois tem tempo... Você promete? (1984, p. 139)

Primo Argemiro, catando pulgas invisíveis nas pernas das calças, sem olhar para o

outro, tinha de puxar alguma conversa, não só porque o Primo Ribeiro falava de morte, e

isso não lhe agradava, mas porque tinha muitas coisas a imaginar e outras a esconder.

Então, desatava a falar, desfiando histórias. Primo Argemiro lembrava o companheiro da

ocasião em que o doutor, há um ano, tinha advertido a população sobre os perigos da

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doença, explicando “que era o mosquito que punha um bichinho amaldiçoado no sangue da

gente...” (1984, p. 140), e aconselhara que todos deixassem o lugar, antes que morressem,

pois “o mosquito torna a picar...” (1984, p. 141). Primo Argemiro contava, ainda, coisas

aparentemente banais ao primo, como da vez em que perguntou se o outro gostava de morar

naquele lugar, enredando-o em histórias de desejos:

Olha, Primo, se a gente um dia puder sarar, eu ainda hei de plantar uma roça, no lançante que trepa para o espigão. Deve ser bom a gente poder capinar lá em riba, de manhã cedinho... Tem uma noruega, lá atrás, cheia de samambaia e parasita roxa. Eu havia de fazer uma roça de três quartas, mas com uns cinco camaradas no eito, todo mundo cantando e puxando o cacumbu!... (1984, p. 139)

Primo Ribeiro, colocado na condição de ouvinte, pediu ao outro que fosse devagar

com as palavras, pois desconfiava que o primo falava “de carreira” (1984, p. 140) só para

não deixá-lo falar, logo naquele dia em que havia sonhado com a ex-esposa e que se sentia

cansado de sofrer calado. Observa-se que o relato aparentemente banal dos desejos de

Primo Argemiro não é realizado apenas para distrair a atenção de Primo Ribeiro sobre os

acontecimentos, mas para revelar a esperança, o instinto de sobrevivência e a necessidade

de projetar um futuro a fim de se manter vivo. Primo Ribeiro não conseguia desviar o

pensamento do sonho que teve. As imagens da ex-mulher, “bonita como no dia do

casamento...” (1984, p. 141), e a notícia de que ia morrer, informada por um bando de

garrixas, aves avermelhadas, de asas e cauda listadas de preto, não lhe saiam da cabeça.

Primo Argemiro, mais uma vez, tentou desviar Primo Ribeiro dessas idéias, aludindo,

novamente, à história de advertência do doutor sobre os perigos da malária, mas o

compadre tinha resolvido “deixar a cabeça solta” (1984, p. 141), e só pensava na esposa

fugida.

Somente um ano e meio após a fuga, Primo Ribeiro tinha resolvido comentar o

incidente e revelar que havia cansado de chorar escondido. Dizia que agora não se

importava em contar, e até acreditava que falar sobre aquilo lhe faria bem. Achava que a

sua hora de partir estava próxima e já se sentia um indivíduo privilegiado, uma vez que a

morte santifica tudo o que o narrador pode contar, como se sua história de vida fosse ao

encontro de uma “história natural”, para utilizar uma expressão de Walter Benjamin. Na

situação em que Primo Ribeiro se encontrava, era-lhe permitido dizer que estava cansado

de sofrer calado, pois não tinha mais medo de ficar em posição de quem “fica frouxo e

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arreia”. Era o seu estado de moribundo, então, que lhe conferia o estatuto de contador de

histórias, circunstância em que podia dizer, por exemplo: “o sofrimento era só meu” (1984,

p. 142). Assim, antevendo a chegada da morte e confiando no amigo, que durante anos se

mostrava um companheiro leal e dedicado, decidira contar:

Na hora, quando a Maria Preta me deu o recado dela se despedindo, mandando dizer que ia acompanhar o outro porque gostava era dele e não gostava mais de mim, eu fiquei meio doido... Mas não quis ir atrás, não... Tive vergonha dos outros... Todo-o-mundo já sabia... E, ela, eu tinha obrigação de matar também, e sabia que coragem p’ra isso havia de faltar... Também, nesse tempo, a gente já estava amaleitado, pois não estava?... Foi bom a sezão ter vindo, Primo Argemiro, p’ra isso aqui virar um ermo e a gente poder ficar mais sozinho... Ai, Primo, mas eu não sei o que é que eu tenho hoje, que não acerto o jeito de tirar a idéia dela... Ô mundo!... (1984, p. 143)

Logo depois de Primo Ribeiro contar sua história, a sombra de um cedro veio tapar

o sol, ainda, incipiente. Primo Ribeiro enrolou-se mais no cobertor, deitou-se no cocho e

advertiu o compadre de que ia delirar, já sentindo os músculos do corpo a tremer

molemente, e os dentes a golpear desencontrados. Ao Primo Argemiro, com os braços

envolvendo os joelhos, sem poder conversar com o amigo, muito menos auxiliá-lo, só

restavam os pensamentos; passara, então, a imaginar histórias. Porém, dessa vez, obteve

ajuda do narrador principal. Talvez seus pensamentos ainda não estivessem organizados a

ponto de se transformarem em uma história comunicável. Segundo Reis, o narrador

principal pode exercer esse papel porque sua presença é irrefutável, ou seja, incontestável, e

varia em função das situações narrativas (Reis, 1997, p. 369). No caso específico, o

narrador principal introjetou-se na consciência de Primo Argemiro, à medida que fez uso do

discurso indireto livre. Primo Argemiro passou, então, a lembrar das histórias do tempo em

que veio morar com o Primo Ribeiro e conheceu Luísa, a ex-esposa do companheiro,

revelando sentir ciúme do primo e um certo arrependimento por não haver declarado seu

amor a ela:

Bem que havia de ser razoável ter podido ao menos dizer à prima que ela era o seu amor... Porque, assim, tinha fugido sem saber... sem desconfiar de nada... [...] Se ele, Primo Argemiro, tivesse tido coragem... Se tivesse sido mais esperto... Talvez ela gostasse... Podia ter fugido com ele... [...] Nem é bom pensar nisso... Amanhã ele vai ao capoeirão, tirar mel de irussu para o Primo Ribeiro... Deus que livre a gente desses maus pensamentos!... Primo Ribeiro vai ficar satisfeito: ele gosta de mel do mato, com farinha... Primo Ribeiro vai ter uma alegriazinha... (1984, p. 145-146)

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Primo Argemiro, sentindo os estremecimentos do companheiro, e envolvido em

suas idéias, deu-se conta de que não podia delirar, pois, se isso acontecesse, poderia revelar

seu segredo, mas deixou escapar um pensamento em voz alta – “P’ra que é que há-de haver

mulher no mundo, meu Deus?!...” (1984, p. 146) –, o que despertou Primo Ribeiro. Esse

levantou o corpo do cocho e permaneceu sentado, com os olhos meio avermelhados,

mostrando os sinais do delírio que o afligia:

Passam umas mulheres vestidas de cor de água, sem olhos na cara, para não terem de olhar a gente... Só ela é que não passa, Primo Argemiro!... E eu já estou cansado de procurar no meio das outras... Não vem!... Foi, rio a baixo, com o outro... Foram p’ro’s infernos!... [...] Espera, Primo, elas estão passando... Vão umas atrás das outras... Cada qual mais bonita... mas eu não quero nenhuma... quero só ela... Luísa... (1984, p. 147)

Entre os acessos de delírios, Primo Ribeiro lembrou-se de uma história conhecida de

ambos e pediu ao outro que contasse mais uma vez. Primo Ribeiro parecia intuir os efeitos

terapêuticos da repetição daquela história sobre ele. Primo Argemiro, por outro lado,

resistiu à insistência do companheiro em contar a história, frisando que o primo já “sabia as

palavras todas de cabeça” (1984, p. 147). Assim, demonstrava, talvez, que não tinha noção

dos benefícios daquele relato sobre seu ouvinte ou que os efeitos de sua narração sobre si

mesmo não eram benéficos. Porém, não teve outra alternativa senão a de contá-la

novamente, assumindo a postura de narrador. Observa-se que ele não participa das ações

relatadas, colocando-se em uma posição externa ao mundo narrado, tal como ocorre com o

narrador principal do conto e, ao provocar a sugestão do real, propicia a identificação de

Primo Ribeiro com a história, o que, talvez, justifique a insistência deste em ouvi-la

novamente. A história contada pelo Primo Argemiro revela, ainda, outra semelhança com a

história contada pelo narrador de “Sarapalha”: ambas constituem-se no relato da fuga de

uma mulher.

A história de Primo Argemiro mostrava um moço bonito que apareceu em um dia

de festa, vestido com roupas domingueiras e com a viola enfeitada de fitas, e convenceu

uma moça a fugir com ele, tal como acontecera, na história principal, com o boiadeiro que

surgira na fazenda e persuadira Luísa a abandonar o marido. Na história de Primo

Argemiro, a jovem, que não sabia que o moço era o capeta, juntou seus pertences em uma

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trouxa e foi com ele em uma canoa, descendo o rio. Quando os dois estavam fugindo na

canoa, o moço pegou a viola e começou a cantar: “– Eu vou rolando rio-abaixo, Sinhá... Eu

vou rolando rio-abaixo, Sinhá...” (1984, p. 148). Primo Argemiro, depois de entoar a

canção por duas vezes a pedido do primo, continuou contando a história:

Aí a canoinha sumiu na volta do rio... E ninguém não pôde saber p’ra onde foi que eles foram, nem se a moça, quando viu que o moço-bonito era o diabo, se ela pegou a chorar... ou se morreu de medo... ou se fez o sinal-da-cruz... ou se abraçou com ele assim mesmo, porque já tinha criado amor... E, cá de riba, o povo escutou a voz dele, lá longe, muito lá longe... (1984, p. 148)

Como um ouvinte atento, Primo Ribeiro intervinha constantemente na história,

incentivando que o outro a contasse, de modo a demonstrar que sentia seus efeitos e que se

comprazia com o relato. As intervenções de Primo Ribeiro eram, nitidamente, as de um

sujeito que estava se identificando com o que vinha sendo relatado, porque o conteúdo da

trama, sem dúvida, dizia respeito às experiências que vivenciara. É importante observar que

os dois compadres mantinham uma relação ingênua, ou seja, além de confiarem um no

outro, possuíam alto grau de intimidade. Essa era a condição que garantia a naturalidade

com que se envolviam, pois o surgimento dos fatos singulares e particulares em suas vidas

e as interrupções no ato de contação de histórias são típicos de quem mantém esse tipo de

relacionamento. A natureza da interlocução que se estabelece entre ambos é evidenciada

enquanto Primo Argemiro contava o episódio da moça que fugiu com o diabo e enquanto

Primo Ribeiro, mesmo delirando, interrompia a contação, associando, certamente, a moça e

o diabo do relato de seu companheiro, respectivamente, à esposa e ao boiadeiro que

participarem de sua própria história. Além disso, as interrupções demonstravam que o

ouvinte queria que o narrador fosse até o final do relato, pois Primo Ribeiro pedia que o

outro contasse o resto da história, não se importando com o fato de que se tratava de uma

passagem triste, conforme o locutor lhe advertia. Depois disso, o narrador principal retoma

a narração, a fim de prosseguir seu relato.

Primo Argemiro, comovido com os efeitos que a história provocara no amigo, temia

ser o próximo a delirar e revelar, sem querer, seu mistério. Por isso, tomou coragem e

decidiu contá-lo, lamentando a falta de oportunidade de dividir com alguém o segredo que

o atormentava: “E ele, que nem tem com quem desabafar, não tem a quem contar o seu

sofrimento!...” (1984, p. 149). Parece que Primo Argemiro, ao lamentar essa ausência de

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oportunidades de partilhar seus pensamentos, tem noção dos efeitos causados, naquele que

conta uma história, pelo próprio ato de narrar. Caso não a contasse, além de estar sendo

injusto com o amigo que o tratava como um irmão, poderia estar perdendo os benefícios

desse ato. Então, Primo Argemiro, coberto de coragem e consciente de sua necessidade de

falar, decidiu confessar-se ao Primo Ribeiro:

Primo Ribeiro... eu nunca tive coragem p’ra lhe contar uma coisa... Vou lhe contar uma coisa... O senhor me perdoa?!... [...] Eu... eu também gostei dela, Primo... Mas respeitei sempre... respeitei o senhor... sua casa... Nós somos parentes... Espera, Primo! Não foi culpa minha, foi má-sorte minha... (1984, p. 150)

Ao ouvir isso, Primo Ribeiro levantou-se do cocho, cambaleando, com os olhos

arregalados; quase não acreditava no que o outro dizia, mas tinha a certeza de que fora

traído. Então, depois de recusar a ajuda do compadre para ficar em pé, bradou: “Fui picado

de cobra... Fui picado de cobra... Ô mundo!” (1984, p. 151). Talvez essa traição tenha-se

somado, no espírito de Primo Ribeiro, àquela que sofrera no passado, pois fica evidente que

o sentimento de traição despertado pela confissão de Primo Argemiro fez surgir, com força,

a história da fuga da esposa. Primo Ribeiro não hesitou, então, em expulsar o compadre de

sua fazenda. A cada tentativa de reconciliação por parte de Primo Argemiro, o outro era

mais enfático: “Fui picado de cobra... Some daqui, homem!... Vai p’r’as suas terras... Vai

p’ra bem longe de mim!... Mas vai logo de uma vez!”. (1984, p. 151)

Apesar da sua insistência em permanecer perto do amigo, Primo Argemiro, em pé

desde que tinha alcançado a última caneca de água ao companheiro, não teve escolha a não

ser reunir suas forças e se dirigir à porteira da estância. O narrador de “Sarapalha” concede,

naquele momento particular, parte considerável de um parágrafo à descrição do

desolamento do cão, que já não sabia mais a quem pertencia e a quem devia fidelidade:

O perdigueiro de focinho grosso vem correndo também. Vem, mas diz que não vem: vira a cabeça, olha para o primo Ribeiro, que lá está sentado ainda, curvado para o chão. O cachorro está desatinado. Pára. Vai, volta, olha, desolha... Não entende. Mas sabe que está acontecendo alguma coisa. Latindo, choramingando, chorando, quase uivando. Porque tem ordem de ser sempre fiel, e não sabe mais, não se recorda mais qual dos dois homens será seu dono verdadeiro. (1984, p. 152)

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O narrador principal mostra, assim, que a questão da fidelidade pode ser complexa,

como se Luísa – a exemplo do que ocorrera com o cão – também pertencesse a Primo

Argemiro e não apenas a Primo Ribeiro, e ambos pudessem sentir-se traídos com a fuga da

mulher.

Logo depois de ser expulso, Primo Argemiro seguiu em direção à estrada, rumo à

beira do rio, sem destino certo e sem poder avançar muito, pois começou a sentir as pernas

tremerem: era a sua vez de delirar. Primo Argemiro sabia que agora podia fraquejar, porque

estava só e não tinha mais segredos a ocultar. Um frio correu-lhe pelas costas; ainda

lembrou da primeira vez em que viu Luísa, sentindo a cabeça rodar, e, diante dos olhos, via

“coisinhas querendo dançar” (1984, p. 153). Curvou-se sobre os joelhos, e admirou o lugar

transformado pela chegada do delírio, “bonito p’r’a gente deitar no chão e se acabar!...”

(1984, p. 154). O narrador principal detém-se, mais uma vez, para mostrar a nova

configuração que o lugar assumiu aos olhos de Primo Argemiro, escolhendo palavras e

cores próprias para descrever a situação delirante do desafortunado. O mato apareceu “todo

enfeitado, tremendo também com a sezão” (1984, p. 154), possivelmente como Primo

Argemiro nunca tinha visto antes, evidenciando a identificação entre o ser humano e a

natureza:

Estremecem, amarelas, as folhas da aroeira. Há um frêmito nos caules rosados da erva-de-sapo. A erva-de-anum crispa as folhas, longas como folhas de mangueira. Trepidam, sacudindo as suas estrelinhas alaranjadas, os ramos da vassourinha. Tirita a mamona de folhas peludas, como um corselete de um cassununga, brilhando em verde-azul. A pitangueira se abala, do jarrete à grimpa. E o açoita-cavalos derruba frutinhas fendilhadas, entrando em convulsões. (1984, p. 154)

A análise permite perceber a relação existente entre a história contada pelo narrador

principal e as histórias contadas pelos próprios personagens – os dois mineiros atacados

pela malária, no vau da Sarapalha –, por intermédio do diálogo que travam na maior parte

da narrativa. Observa-se que os relatos relacionam-se à medida que se instaura o modo

dramático, e os personagens-narradores contam histórias que interceptam a contação da

história principal, promovendo, em longos trechos, um quase desaparecimento do narrador

onisciente. Tanto a história da fuga de Luísa, contada por Primo Ribeiro, quanto a história

da jovem que foge com o moço bonito, contada por Primo Argemiro, possuem a mesma

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temática abordada pela história principal: a traição. É interessante verificar, ainda, que o

quarteto utilizado pelo autor como epígrafe do conto em questão, está intimamente ligado à

temática das histórias, além de ter sido retirado, ironicamente, do “trecho mais alegre, da

cantiga mais alegre, de um capiau beira-rio”. Tem-se a impressão de que, enquanto o

primeiro verso – “Canta, canta, passarinho, ai, ai, ai...” – anuncia a contação das histórias

dos personagens-narradores, o segundo – “Não cantes fora de hora, ai, ai, ai...” – alerta

para o perigo de alguns relatos, ou seja, para o risco de contar determinadas passagens da

vida. Da mesma forma, o terceiro e o último versos – “A barra do dia aí vem, ai, ai, ai...” e

“Coitado de quem namora!...” – parecem prever o infortúnio dos dois compadres.

As características de Primo Ribeiro e de Primo Argemiro, os personagens-

narradores de “Sarapalha”, sugerem que um evento de contação de histórias pode provocar

diferentes tipos de sensações nos envolvidos, tais como o efeito terapêutico e o efeito

catártico. Ressalta-se que esses efeitos se confundem e se completam, pois há constante

inversão de papéis entre os indivíduos: ora um é narrador e outro é ouvinte, e vice-versa.

No narrador, o efeito parece ser mais terapêutico do que catártico, uma vez que aquele que

conta uma história é movido pela necessidade de falar, seja por alívio ou por simples

regozijo, seja pela precisão de reavaliar vivências do passado, sobretudo porque está na

iminência da morte. No ouvinte, o efeito parece ser mais catártico do que terapêutico, como

acontece quando o indivíduo se identifica com o que é narrado, sentindo as reações da

identificação catártica que, segundo Jauss, “liberta o espectador das complicações afetivas

de sua vida real e o coloca no lugar do herói que sofre ou se encontra em situação difícil

para provocar, pela emoção trágica ou pela distensão do riso, sua libertação interior”.3

(Jauss, 2002, p. 84)

A análise das técnicas narrativas empregadas pelos narradores, tanto pelo narrador

onisciente de “Sarapalha” quanto pelos primos Ribeiro e Argemiro, indica que eles contam

suas histórias como quem fala a um ouvinte – embora essa situação só se efetive no caso

dos dois personagens –, ou seja, todos recorrem a estratégias próprias da oralidade para

desfiar seu relato. A história da jovem que foge com o moço bonito, especialmente,

assemelha-se à narrativa principal, não só por abordar a mesma temática e por apresentar

narrador em terceira pessoa, mas porque imita as estratégias normais da fala, ou seja,

3 Idem à nota 4 do capítulo anterior.

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procura reproduzir a oralidade típica de uma enunciação verbal. Isso se evidencia,

sobretudo, no emprego das reticências para simular as pausas típicas do discurso oral e no

uso da linguagem coloquial para atribuir verossimilhança às personagens. O narrador de

“Sarapalha”, além disso, conduz o seu suposto ouvinte e, conseqüentemente, o leitor, a

recriar as imagens necessárias de devastação, de apatia, de desolamento, dos dois

compadres, para que possa imaginar a situação de ambos; da mesma forma age Primo

Argemiro, que organiza uma seqüência de imagens para que seu ouvinte, Primo Ribeiro,

possa visualizar o que aconteceu à moça que fugiu com o diabo.

A comparação entre as estratégias narrativas utilizadas pelos personagens-

narradores e aquelas empregadas pelo narrador principal do texto mostra, também, que o

final dado às histórias também é semelhante. No que se refere à primeira, ninguém foi

informado sobre o que aconteceu à moça depois que a canoa em que ela estava dobrou a

curva do rio; no que diz respeito à segunda, não há como saber o que aconteceu aos primos

após o desentendimento, a não ser que um ficou sentado no cocho e outro delirando à beira

da estrada. Desse modo, tanto a história principal quanto os relatos secundários podem ser

considerados narrativas abertas.

2.2 “O burrinho pedrês”

A história do burrinho Sete-de-Ouros contada pelo narrador principal transcorreu

em apenas um dia da vida do personagem, das seis da manhã à meia-noite, intervalo

durante o qual um grupo de boiadeiros conduziu uma boiada da Fazenda da Tampa até a

estação de trem do vilarejo de Arraial, tendo como obstáculo o córrego da Fome, um

afluente do Rio das Velhas. Esse dia seria normal caso a tropa de vaqueiros voltasse ilesa à

fazenda. Todavia, o grupo, que na ida atravessara o rio sem problemas, foi surpreendido na

volta por uma enchente. A tragédia aniquilou oito boiadeiros e aconteceu porque o grupo

confiou na experiência do burrinho que lhe serviu de guia: como este resolveu atravessar o

rio, os boiadeiros também decidiram fazer a travessia.

O narrador principal de “O burrinho pedrês” (1984, p. 17-79) conta que Sete-de-

Ouros era um burrinho “miúdo e resignado” e havia tido vários donos e diversos nomes, até

se tornar animal de estimação do Major Saulo, proprietário da Fazenda da Tampa. No dia

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em que ocorreu o episódio fatídico, a existência de Sete-de-Ouros já tomara outro rumo: ele

passara de corajoso, valente, audacioso, como era visto na juventude, a acomodado e

tranqüilo, encontrando-se, então, em idade avançada. Segundo o narrador principal do

conto, um dia é tempo suficiente para se conhecer a “estória” do burrinho Sete-de-Ouros,

porque:

a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas – seis da manhã à meia-noite – nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes cheias, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais. (1984, p. 18)

O animal permanecia confortável, sonolento e sempre meio perpendicular ao cocho,

num dos currais da fazenda, uma área de três mil alqueires de terra, localizada no vale do

Rio das Velhas, centro de Minas Gerais. Sete-de-Ouros demonstrava ser bem tratado. Isso

era evidenciado pelo seu comportamento conformado e pela ausência de carrapichos e de

carrapatos em sua pelagem pedrês, salpicada de preto e de branco. O burrinho tinha, ainda,

uma marca de ferro no quarto esquerdo dianteiro, uma espécie de coração, já meio apagada,

outra evidência de sua senilidade e uma lembrança de quando os ciganos o raptaram.

À medida que o narrador principal conta a história da vida do burrinho, ele lembra

de histórias contadas por outros narradores. Assim, os personagens ganham voz e narram

suas histórias: Major Saulo e os boiadeiros – Raymundão, Sinoca, Leofredo, Silvino,

Sebastião, Benevides, Juca Bandeira, Badu, Francolim, Tote, Zé Grande e João Manico –

conversam sobre si próprios, trocam impressões acerca da boiada, falam das condições do

tempo e contam casos. Entre as histórias desfiadas pelos vaqueiros, destacam-se: o evento

da morte de Josias, relatado por Tote ao companheiro Zé Grande; os quatro episódios

narrados por Raymundão, o primeiro – sobre o resgate da vaquinha da filha do Major

Saulo, momento em que este pôde comprovar a valentia do boi Calundu, capaz de proteger

uma manada de vacas do ataque de uma onça – contado a Juca, e os outros três – um sobre

o dia em que se tornou vaqueiro, outro acerca da morte de Vadico provocada por Calundu e

o último relativo a um fato estranho, acontecido durante o velório de Seu Leôncio

Madurera – relatados ao Major Saulo; a passagem do pretinho que, a pedido de Major

Saulo, tinha de ser entregue no Curvelo, por João Manico, contada por este último ao

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grupo. Observa-se, também, que a tropa de vaqueiros, especialmente Francolim, o braço-

direito de Major Saulo, envolve-se com o caso da tentativa de assassinato de Badu, por

parte de Silvino, intriga que corre paralela à história do burrinho.

No dia da viagem, no curral, perto da casa-grande, o cavalo preto de Benevides

desalojou o burrinho de seu lugar na coxia, enquanto o matungo de Zé Grande espancava o

tabique da coberta; o amarilho de Silvino saracoteava empinando; o poldro pampa de Badu

relinchava escandalosamente. O burrinho não aprovava tais atitudes e afastou-se do

conflito, até encostar-se nos pilares da varanda, cometendo o primeiro engano do dia, pois o

Major Saulo estava ali e o viu. Esse equívoco, segundo o narrador principal, “decide o

destino e ajeita caminho à grandeza dos homens e dos burros, porque quem é visto é

lembrado” (1984, p. 23). Antes disso, porém, o Major Saulo tinha sido avisado de que

alguns cavalos haviam fugido na noite anterior e pedira a Francolim que inventariasse as

montarias restantes. O secretário concluíra que faltava uma. Major Saulo, ao ver o burrinho,

ordenou que Francolim o aprontasse, também, para a viagem, atitude que o vaqueiro, a

princípio, não levou muito a sério. Assim, começaram os diálogos entre os boiadeiros.

Francolim disse que o burro estava velho e quase cego, mas o Major desconsiderou

o comentário de seu interlocutor e reiterou a ordem, justificando que eram apenas quatro

léguas e que o João Manico, por ser o de menos peso, poderia montar o animal. Em

seguida, o Major, na frente da casa-grande, demonstrando contentamento, consultou o

relógio da sala pela porta da varanda, e constatou que ainda era cedo. Pensou que seria bom

que chovesse naquele momento, para que a chuva não viesse atrapalhar os vaqueiros na

hora da partida. Nisso, apareceu Maria Camélia com o café. Serviu-os e voltou à cozinha,

onde estavam as outras negras, para contar a novidade. Todas acharam muita graça em

saber que o burrinho seria montado por João Manico, o mais velho e cauteloso vaqueiro do

grupo. Na frente da casa-grande, os boiadeiros começaram os preparativos para a saída.

Leofredo cantava, enquanto montavam.

Era início da estação das cheias, época do êxodo dos rebanhos para corte, e havia

expectativa de chuva. Um cão latia para os cavalos, que rodopiavam com seus cavaleiros;

as vacas fugiam com seus bezerrinhos. Juca advertiu os companheiros de que Badu não

estava entre eles, mas Francolim solucionou o mistério, dizendo que o malandro tinha ido

despedir-se da namorada. Major Saulo ressaltava a gordura e a qualidade da boiada a

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Francolim. Este, por sua vez, contou ao Major que Silvino estava com ódio de Badu e

pretendia matá-lo, ainda naquele dia. Acrescentou que a causa da encrenca era o desgosto

de Silvino por ter perdido a moça para Badu. Francolim afirmou que estava disposto a

prender Silvino, se essa fosse a vontade do patrão, porém Major Saulo não deu muita

importância ao caso, preferindo assistir à cena de Badu a montar o poldro.

Depois, Francolim, Major Saulo e Zé Grande rumaram em direção ao esteio, onde

estava João Manico tratando de encilhar Sete-de-Ouros. Major Saulo, no meio do alvoroço

dos vaqueiros, perguntou a João Manico se ele tinha consciência do valor de um burro. O

vaqueiro, demonstrando sabedoria, respondeu que burro servia somente para marchas de

estrada, mas não para tocar boiada. João Manico disse, ainda, que o burro era um bicho

medonho e que nunca se amansava totalmente; só se acostumava com as imposições.

Os trovões revolviam a boiada. Os vaqueiros tinham medo de que o gado rebentasse

as cercas dos currais. Zé Grande analisou a boiada, acompanhado de Tote. Este último

chamou a atenção de Zé Grande para uma vaca que empurrava outros animais, querendo

ficar sozinha. Zé Grande comentou que aquela vaca parecia muito com a que havia matado

Josias. Tote, motivado por essa comparação, lembrou do episódio em que ele e Josias

tinham sido atacados pela vaca Fumaça, e passou a contar a história a Zé Grande,

advertindo, desde o início, que a culpa pela morte de seu parceiro não tinha sido dele:

Já jurei que não foi culpa minha, e não foi mesmo. A vaca Fumaça estava com a cria no meio do curral, [...] Josias falou comigo: “Vamos dar uma topada, para ver se ela tem mesmo coragem conversada.” [...] Mal a gente tinha botado os pés no chão, e ela riscou o ar, [...] Escolheu quem, e guampou o Josias na barriga. [...] Eu corri. Não tinha mesmo de correr?! [...] Josias foi o mais desfeliz, porque foi jogado para tudo quanto era lado, com a monstra sapateando em cima dele e chifrando. [...] Culpa tive eu?... Má-sorte do companheiro. Era dia dele, o meu não era!... (1984, p. 32-33)

Zé Grande ouviu a história atento e interferiu três vezes. A primeira para comentar

que, realmente, não havia precisão de instigar animais em tal estado; outra quando

perguntou o que tinha acontecido com a vara, instrumento que devia estar sempre na mão

de bom vaqueiro; a última para interromper o contador da história, advertindo que parasse

de contar coisas tristes, porque o Major não gostava disso.

Logo a seguir, o Major disse que era hora de partir. Iam à frente Zé Grande, tocando

o berrante, e Sebastião, aboiando; à direita, Leofredo, Tote, Sinoca e Benevides; à

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esquerda, Badu, Juca Bandeira, Silvino e Raymundão; mais atrás, o Major Saulo,

regozijando-se da boiada, e João Manico, queixando-se do burrinho miserável. Entre um

trompear e outro do berrante, ouviam os gritos fortes de aboio, entremeados de canções: “O

Curvelo vale um conto, / Cordisburgo um conto e cem. / Mas as Lages não têm preço, /

Porque lá mora o meu bem... Um boi preto, um boi pintado, / cada um tem sua cor. / Cada

coração tem um jeito / de mostrar o seu amor”. (1984, p. 36-37)

Pouco a pouco, a boiada acalmou-se, e os vaqueiros puderam descobrir o rosto e

acomodar-se nas celas. De repente, um boi investiu contra Raymundão, fazendo-lhe

lembrar da história do boi Calundu. Então, Raymundão pediu a Juca Bandeira que

emparelhasse com ele – estava tudo tranqüilo e podiam conversar sossegados –, pois sentiu

necessidade de dividir com o amigo a história lembrada. O episódio acontecera no dia em

que resgatara a vaca da filha do Major Saulo, que havia parido perto da lagoa e teve a cria

comida por um jacaré. Raymundão afirmou que, antes daquele dia, nunca tinha visto uma

lua tão brilhante e que, além disso, ainda não havia presenciado um boi proteger uma

manada de vacas do ataque de uma onça:

Eu tinha ido lá, buscar uma vaca fronteira, da filha de seu Major. A vaquinha tinha parido na beirada da lagoa, e jacaré comeu a cria. [...] De noite, saiu uma lua rodoleira, que alumiava até passeio de pulga no chão. [...] minha cachorra Zeferina estava estranhando, [...] as vacas, desinquietas, estavam se ajuntando, se amontoando num bolo, [...] aí eu ouvi um miado longe, e me lembrei daquela onça preta que estava salteando estrago no gado de seu Quilitano, [...] então, o Calundu, que era garrote delas, ainda parecia ser mais graúdo do que era mesmo, rodeando as vacas, meio dando as costas para a manada, assim de cabeça em pé! [...] O Calundu ia ficando cada vez mais enjerizado e mais maludo, [...] nunca eu não tinha visto o zebu tão grandalhão assim! [...] E o Calundu cavacava o chão e bufava, com uma raiva tão medonha, [...] Cruz! E até a lua começou a alumiar o Calundu mais do que as outras coisas, por respeito. [...] Pois, nesse dia, a cangussu [...] correu para longe, sem um miado, e foi-s’embora. Onça esperta! (1984, p. 40-43)

A história teve várias interferências, uma porque a chuva começou a engrossar e os

vaqueiros voltaram a cantar: “Chove, chuva, chorevá, / Santa Clara a clarear / Santa justa

há-de justar / Santo Antônio manda o sol / P’ra enxugar o meu lençol...” (1984, p. 41); as

outras interrupções foram causadas pelo interesse do ouvinte nas passagens da história.

Juca Bandeira perguntou, por exemplo, por que a cadela chamava-se Zeferina, tendo como

resposta que esse era o nome da ex-esposa de Raymundão, que se tinha ido embora. Outras

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interferências vieram no sentido de incentivar a contação da história: “E daí?”; “Mas, e o

zebu?”; “E depois?” (1984, p. 42). A última interferência do ouvinte foi quando

Raymundão exagerou um pouco no caso da lua iluminando Calundu: “Eu estou quase não

acreditando mais, Raymundão...” (1984, p.43). A contação da história terminou porque a

tropa de bois e de boiadeiros estava chegando no córrego.

Os vaqueiros pararam para ver a bravura das águas e constataram que devia estar

chovendo muito na cabeceira do rio. Francolim chegou a galope, com um recado do Major

Saulo dizendo que esperassem um pouco e que não espremessem o gado na travessia.

Francolim aproveitou a espera para contar aos vaqueiros que já tinha passado por situação

pior na travessia do Jequitinhonha, mas o patrão chegou logo, chamando por Sebastião e

impedindo o outro boiadeiro de continuar a história.

A travessia foi tranqüila. João Manico comentou com o patrão que não precisava ter

vindo, pois estava se sentindo dispensável, e completou o comentário dizendo que, se o

burrinho tivesse morrido há três dias, não faria falta nenhuma. Major Saulo riu da

casmurrice do vaqueiro e perguntou se ele achava mesmo que burro era burro. João Manico

respondeu: “Seô Major meu compadre, isso até é que eu não acho, não. Sei que eles são

ladinos demais...” (1984, p. 46). O narrador principal retomou a atenção no burrinho, que

andava indiferente, para mostrar que burro que se preza não corre desembestado, como um

cavalo qualquer, a não ser em casos extremos. Era um animal que estava sempre do mesmo

jeito, impassível, com as pestanas no meio dos olhos:

Só um remanso, pouso de pausa, com as pestanas meando os olhos, o mundo de fora feito um sossego, coado na quase-sombra, e, de dentro, funda certeza viva, subida de raiz; com as orelhas – espelhos da alma – tremulando, tais ponteiros de quadrante, aos episódios da estrada, pela ponte nebulosa por onde os burrinhos sabem ir, qual a qual, sem conversa, sem perguntas, cada um no seu lugar, de vagar, por todos os séculos e seculórios, mansamente amém. (1984, p. 46)

Major Saulo e João Manico seguiam conversando e olhando a boiada. O primeiro

contou ao segundo que pouco sabia ler e escrever e que nunca estivera na escola, mas que

aprendera muito das coisas da vida e das pessoas, lidando com o gado. João Manico disse

que também mal sabia “pôr algum bilhete no papel” (1984, p. 47). Voltaram a conversar

sobre a boiada, que vinha concluindo a travessia. De repente, Francolim apareceu para

contar o que havia acontecido a Badu: Silvino tinha instigado um touro bravo contra ele,

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com a intenção de que o animal o matasse. O Major chamou Raymundão e perguntou-lhe o

que achava dessa história. Raymundão disse que não achava nada de mais, mas que, para

ele, aquilo ainda estava no começo. Os dois, então, seguiram emparelhados.

O Major, que valorizava os vaqueiros e gostava de ouvir suas histórias, perguntou se

Raymundão ainda lembrava da primeira vez que enfrentara boi bravo. Raymundão

respondeu afirmativamente e passou a contar a história do dia em que seu pai atiçou um boi

contra ele:

Meu pai, que era vaqueiro mestre, achou que era o dia de experimentar minha força. [...] Só, na horinha em que o bicho partiu em mim, eu achei que ele era grande demais, e pensei que, de em-antes, eu nunca tinha visto um boi grande assim, [...] quando dei fé, a festa tinha acabado, e meu pai estava dando um cigarro, que ele mesmo tinha enrolado para mim, o primeiro que eu pitei na frente dele... E foi falando: – “Meu filho, tu nasceu para vaqueiro, agora eu sei”... (1984, p. 52-53)

O Major, depois de ouvir essa história, perguntou a Raymundão o que ele tinha

conversado com Juca Bandeira e Badu, ainda do outro lado do rio. O vaqueiro disse que era

conversa sem importância sobre o Calundu e perguntou ao Major se ele sabia que esse boi

terrível tinha matado Vadico, o filho do Borges. O Major demonstrou interesse pelo caso,

perguntando se o boiadeiro tinha trabalhado lá e dando início, assim, à terceira história de

Raymundão:

Ah, nunca imaginei que ainda ia ver o menino morrer daquele jeito. [...] Seu Vadico gostava muito do Calundu, e o zebu também gostava dele, [...] Doideira, eu sempre achei. Zebu é bicho mau, que a gente nunca sabe o que é que eles vão cismar de fazer. [...] Seu Vadico foi fazer festa nele, dando sal para ele lamber na mão. [...] Pois eu juro, seô Major, que aquilo foi de supetão... Eu vi o Calundu baixar a cabeça, [...] E, aí, de testada e de queixo, ele deu com o menino no chão, [...] foi uma chifrada só, [...] o sangue subiu atrás, num repuxo desta altura. [...] o Velho Valô Venâncio, vaqueiro cego que não trabalhava mais, explicou para a gente que era um espírito mau que tinha se entrado no corpo do boi. [...] De manhã cedo, no outro dia, ele estava murcho, morto, no meio do curral. (1984, p. 55-57)

A história era interrompida por Major Saulo, a fim de mostrar que se interessava

pelo que ouvia e, também, para incentivar o desfecho da mesma. Numa das interferências, o

Major comentou, referindo-se à presença de um espírito mau no corpo do boi e àquilo que

as pessoas não conseguem definir: “Às vezes vêem coisas dessas, que a gente não sabe,

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Raymundão” (1984, p. 57). Nisso, Raymundão emendou outra história, que ouvira do pai,

sobre um fato curioso, ocorrido no velório do seu Leôncio Madurera:

Sei de um caso que se passou, há muitos anos, contado por meu pai, que quando moço foi campeiro de um tal Leôncio Madurera, [...] era um homem herodes, que vendia o gado e depois mandava cercar os boiadeiros na estrada. [...] Pois meu pai contava que, quando ele morreu, [...] as vacas de leite começaram a berrar feio, [...] o garrote preto urrava: – Madurera!... Madurera!... [...] – Foi p’r’os infernos!... Foi p’r’os infernos!... [...] Tiveram de soltar tudo e exortar para o pasto, porque eles não queriam sair de de-perto da casa. E meu pai contou que, de longe, a gente ainda escutava a maldição deles, que subiam a caminho do morro, sem parar de berrar. (1984, p. 57)

O evento de contação de histórias dissipou-se porque viram o Arraial, com a

igrejinha, as casas da Rua-de-Baixo e da Rua-de-Cima, e a fumaça da locomotiva. O

amontoado de bois e vaqueiros cruzou as ruas do vilarejo e logo estava toda a boiada

acomodada nos vagões do trem. Os boiadeiros saíram para comer e, principalmente, para

beber. As montarias ficaram na cobertura de um curral para descansar. Sete-de-Ouros

alojou-se num canto, sério, cumpridor do seu dever.

Mais tarde, os homens voltaram, pegaram suas montarias e saíram, deixando para

trás Badu, muito bêbado, e o mísero Sete-de-Ouros, fato que levou o narrador principal a

comentar: “Era uma vez, era uma vez, no umbigo do mundo, um burrinho pedrês” (1984, p.

60). Badu insistiu na procura do poldro pampa, mas o cavalo já havia sido montado por

João Manico, que chegara primeiro. Então, Badu montou o burrinho. Sete-de-Ouros

enrugou a pele do pescoço e amoleceu as orelhas: não queria saber de complicações. O

animal concordou com a montaria do vaqueiro, não por causa das chilenas que esse

possuía, mas porque pressentia que estava indo-se em direção ao caminho de casa, uma

promessa de repouso e solidão.

Na volta, já escurecia, e os vaqueiros emparelharam-se, a fim de ir conversando.

Leofredo cantava, e Sinoca dizia que mal podia esperar pelo momento de ver o tempo dos

embarques se acabar, porque sabia que todo aquele gado ia morrer e não gostava disso.

Tote, irmão de Silvino, aconselhou-o a desistir daquela “loucura” que pretendia fazer,

referindo-se ao enfrentamento dele com Badu. Sebastião aproximou-se de João Manico e

insistiu em uma história já contada pelo companheiro em outra ocasião, embora todos a

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conhecessem. Era o episódio do pretinho que João Manico teve de entregar no Curvelo, a

pedido de um compadre do Major Saulo. O grupo reuniu-se mais, e a história iniciou:

Só conto porque é o meu compadre Sebastião quem está pedindo, [...] Se duvidar, para mais de vinte anos. Não tinha trem de ferro no Arraial... Ainda nem tinha casa-de-fazenda na Tampa. [...] Foi que a gente tinha ido por longe, [...]. Pegamos uma boiada de carepas: só bicho mazelento e feioso: bom quase que nenhum, [...]. Mas, o pior, Deus que me livre dele, foi o menino... o pretinho [...]. Um negrinho, assinzinho, regulando por uns sete anos, um toquinho de gente preta... O fazendeiro que vendeu o gado pediu a seu Saulinho para trazer, para entregar a um irmão, no Curvelo, [...]. O pretinho vinha comigo na garupa, dando soluços grandes, e molhando minhas costas de tanta lágrima, [...]. E foi aí [...] que o pretinho começou a cantar, [...] logo que ele principiou a toada, eu vi que o gado ia ficando desinquieto [...]. Aí, então, comecei a me alembrar de uma porção de coisas, do lugar onde eu nasci [...]. Mas – Virgem Santa Mãe de Deus! – acordei, de madrugada, foi com os gritos do patrão. Que é do gado?! [...] Tinham espandongado por ali a fora. [...] Um prejuizão! [...] E o pretinho, esse ninguém não viu, nem teve notícia dele mais! (1984, p. 65-71)

A história foi a mais longa e sofreu várias interrupções – pois os ouvintes eram

muitos –, a maioria das quais serviu de incentivo ao narrador para continuar seu relato:

“Onde é que você campeava, então?”; “Que pretinho, Manico?”; “E o menino preto?”;

“Mas, como foi?”; “E o negrinho?”; “Mas, conta o resto...”. As interrupções que não

tinham como objetivo estimular o narrador eram motivadas pelo envolvimento dos ouvintes

com o que era narrado: “E ir buscar coisa ruim assim, tão longe!”; “Assim é que eu gosto!,

dá respeito”; “Que inferno!”; “É isso mesmo...”. Ressalta-se que o uso do ponto de

interrogação nas interferências feitas pelos ouvintes no curso da história e o emprego do

ponto de exclamação e das reticências, nas mesmas circunstâncias, são procedimentos

narrativos por meio dos quais o autor cria efeitos de realidade. Tais estratégias conferem

verossimilhança à narrativa, como se narrador e personagens estivessem participando, de

fato, de um ato de contação de histórias.

Terminada a história de João Manico, Zé Grande estranhou o chão encharcado e

perguntou se estavam no caminho certo. Logo os boiadeiros ouviram o barulho da

enchente. Chegaram na encosta do rio e decidiram esperar o burrinho, pois não tinham

certeza se deveriam fazer a travessia. Silvino opinou dizendo que o burrinho era quem ia

decidir: “se ele entrar n’água os cavalos acompanham, e nós podemos seguir sem susto.

Burro não se mete em lugar de onde não pode sair!” (1984, p. 73). Alguém pediu para

prestarem atenção no canto do pássaro que parecia dizer: “João, corta pau! João, corta

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pau!” (1984, p. 72). Segundo João Manico, o pio do pássaro era indício de mau agouro e,

por isso, resolveu respeitá-lo, contendo o poldro pampa:

Eu não entro! A modo e coisa que esse passarinho ou veio ficar aqui para dar aviso para mim, que também sou João, ou então ele está mas é agourando... Para mim, de noite, tudo que há, agoura. [...] Não vou e não vou, de jeito nenhum! Para esse poldro me tanger dentro d’água no meio do córrego?... O burrinho é beócio... E não vou mesmo! Não sei nadar... (1984, p. 74-75)

Juca Bandeira alegou que também ia permanecer em terra, pois estava resfriado e

não podia molhar o corpo. Sete-de-Ouros chegou com Badu, bêbado, abraçado em seu

pescoço. O burrinho “chafurdou, espadanou a água, e foi” (1984, p. 74). Todos os

vaqueiros se lançaram atrás do burrinho, menos João Manico, que respeitou o agouro da

ave, dizendo que, além de tudo, não sabia nadar, e Juca, que afirmava não sentir-se bem.

Este último sugeriu a Manico que esperassem o dia clarear para procurar um lugar alto,

apropriado à travessia.

Sete-de-Ouros metia peito; dava as braçadas devagar, mas precisas. Parou para

deixar passar um pedaço de pau. Não tinha pressa, pois no fim de tudo sabia que teria o

pátio, com os cochos cheios de milho, e muita sombra, capim e sossego. Atrás dele, de

súbito, “o córrego crispou uma sístole violenta” (1984, p. 76), e ninguém mais pôde

encontrar o caminho; só se via homens e cavalgaduras se debatendo. O narrador principal

ressaltou que, no momento em que contava a história, ainda se ouvia falar da grande

enchente do córrego da Fome, que resultara na morte de oito boiadeiros. O burrinho pedrês,

sem susto, deixara-se levar pela água, para saber onde subir a encosta, e trouxera Badu no

lombo, agarrado à crina, e Francolim, pendurado à cauda:

E aquele um aconteceu ser Francolim Ferreira, e a coisa movente era o rabo do burrinho pedrês. E Sete-de-Ouros, sem susto a mais, sem hora marcada, soube que ali era o ponto de se entregar, confiado, ao querer da correnteza. Pouco fazia que esta o levasse de viagem, muito para baixo da travessia. Deixou-se tomando tragos de ar. Não resistia. Badu resmungava más palavras, sem saber que Francolim se vinha agüentando atrás, firme na cauda do burro. (1984, p. 79)

Assim que sentiu não haver mais água debaixo dos cascos, o burrinho parou. Deu

um coice em Francolim e esperou que Badu resolvesse descer. O vaqueiro desceu,

bradando nomes feios, para, logo depois, começar a cantar uma cantiga de negros do tempo

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da escravidão e para acomodar-se em uma cama de madeira, ali mesmo no paiol. Alguém

que despertou com a algazarra veio desarrear o burrinho. Folgado, Sete-de-Ouros foi para a

cobertura do curral. Farejou o cocho, achou milho e comeu. Depois, saracoteou, dançando

de patas no ar e esfregando as costas no chão, e procurou um lugar para dormir entre a vaca

mocha e a vaca malhada, que ruminavam, tranqüilamente, na escuridão.

A análise das estratégias narrativas empregadas por João Guimarães Rosa na

construção do conto revela que a voz do narrador principal de “O burrinho pedrês” é

entrecortada pela voz dos personagens-narradores. Ao mesmo tempo que o narrador

principal relata um episódio da vida do burrinho e as peripécias do grupo de boiadeiros

naquele dia fatídico, ele dá voz aos próprios boiadeiros, permitindo que estes desfiem suas

histórias e que, assim, transformem-se em narradores. Ressalta-se que as histórias contadas

pelos personagens-narradores assemelham-se àquela relatada pelo narrador principal,

porque todas podem ser agrupadas sob um mesmo eixo temático: o cotidiano dos

boiadeiros com as lides do gado na fazenda. Tal semelhança temática é reforçada na

medida em que a maioria das histórias dos personagens-narradores, a exemplo do que

acontece com a história principal, relatam eventos relacionados à morte. A predileção pelo

tema da morte é evidenciada tanto nas histórias de Tote e Raymundão – relativas ao

desaparecimento de Josias, de Vadico, da cria da vaquinha da filha do Major, de Calundu e

de Leôncio Madurera –, quanto naquelas contadas pelo narrador principal, de que é um

exemplo o próprio afogamento dos boiadeiros.

Um indício da semelhança temática que irá aproximar as tramas pode ser

encontrado logo após a introdução da história de “O burrinho pedrês”, quando o narrador

principal conta que a vaca Açucena havia dado à luz. Nesse momento, ele afirma que é

prudente desviar de animal em tal estado, pois “é crível que o homem mais virtuoso do

mundo possa ser atirado a seis metros de distância, [...] com alças do intestino penduradas e

muito sangue de pulmão à vista” (1984, p. 22). Parece que, nessa passagem, o narrador

principal é solidário a Tote, pois aceita antecipadamente e de modo indireto as explicações

que seriam dadas pelo vaqueiro no sentido de desobrigar-se da morte de Josias.

Vale ressaltar, ainda, que os dois quartetos que servem de epígrafe a esse conto

também assemelham-se às histórias contadas, no que se refere à temática. Enquanto a

primeira quadra de desafio – “Lá em cima daquela serra, / passa boi, passa boiada, / passa

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gente ruim e boa, / passa a minha namorada” – parece aludir tão-somente às agruras dos

boiadeiros no dia-a-dia, com as lides do gado, a segunda quadra – “‘For a walk and back

again’, said / the fox. ‘Will you come with me? / I’ll take you on my back. For a / walk and

back again’”4 – retirada de uma “estória” de Grey Fox5 para meninos, refere-se,

diretamente, à história do burrinho Sete-de-Ouros, que se transformou num carrasco para

oito boiadeiros, convertendo-se em herói somente para dois integrantes do grupo.

Também vale destacar certa semelhança entre o narrador principal e um dos

personagens que se transformam em narrador. Tem-se a impressão de que Raymundão

desata a contar histórias com a mesma disposição que o narrador principal do conto, apesar

de não receber qualquer tratamento especial por parte deste último, ao contrário do que

acontece com João Manico, que é apresentado como um sujeito sensato, esperto, cauteloso,

além de bom contador de histórias. Talvez, ao relatar as quatro histórias, Raymundão

procure entender acontecimentos que lhe soam contraditórios. Primeiro, ele conta uma

história em que o Calundu figura como herói, e, logo a seguir, narra outra em que o próprio

boi é a causa da morte de Vadico. Depois, deixa transparecer que não entendia bem o que o

pai representava para si, pois em um momento conta que o velho atiçara um boi contra ele,

a fim de testar a força do filho, e, em outro, demonstra afinidade com a figura paterna, que,

além disso, contava-lhe histórias, como a da maldição dos bois sobre o seu Leôncio

Madurera.

De certa forma, pode-se dizer que o narrador principal também conta sua história a

fim de investigar acontecimentos contraditórios ou porque precisa entender algo que ainda

não compreendera, como por exemplo: o que teria levado o grupo de boiadeiros a confiar

no burro?; por que a viagem do gado não fora transferida devido ao mau tempo e pela falta

de montarias?; seria o acaso, o destino ou uma decisão pensada (quem sabe uma vingança

contra a rejeição que sofrera ou contra o fato de ser arrancado de seu sossego), o fator que

levara oito homens à morte pela atitude do burrinho?; qual a relação da “estória” de um

burrinho com a “história” de um homem grande? Possivelmente, a busca de respostas a

4 ‘Para caminhar e voltar novamente’, disse / a raposa. ‘Queres vir comigo? / Eu colocar-te-ei em minhas costas. Para / caminhar e voltar novamente’. (tradução nossa) 5 Literalmente, Raposa Cinzenta; provavelmente uma criação do autor, visto que não foi encontrada nenhuma referência a qualquer escritor da língua inglesa com essa denominação.

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essas perguntas leve o narrador principal a tentar compreender os inúmeros sinais inscritos

na história ou a aceitar o mistério presente nos episódios.

É interessante ressaltar, ainda, que uma das tramas se aproxima da história principal

não exatamente pela temática: o episódio do menino preto, relatado por João Manico, o

qual não trata da morte. As duas histórias, a principal e aquela lembrada por esse

personagen, revelam a sabedoria dos narradores, a característica principal de quem sabe

contar histórias. A astúcia do narrador principal pode ser observada, no decorrer da

narração, pelo modo como utiliza os provérbios, embora a maioria deles seja atribuída a

Major Saulo: “quem vai na frente bebe a água limpa!”; “joá com flor formosa não garante

terra boa!”; “não é nas pintas da vaca que se mede o leite e a espuma!”; “suspiro de vaca

não arranca estaca!”; “para bezerro mal desmamado, cauda de vaca é maminha”; “galinha,

tem de muita cor, mas todo ovo é branco”. A sabedoria de João Manico, por sua vez, pode

ser notada, ao longo do relato, sobretudo, pela decisão que tomara, de orientar-se pelo pio

do pássaro e não pelo burrinho, respeitando, assim, sua intuição e os ensinamentos

advindos da cultura popular. Tendo em vista essa semelhança entre o narrador de “O

burrinho pedrês” e João Manico, pode-se inferir que esse personagem-narrador é o alter-

ego do autor, ou seja, é nele que João Guimarães Rosa deposita suas experiências, ao

menos as que deixa transparecer, por meio do discurso do narrador principal, na construção

da história do burrinho pedrês.

Cabe, ainda, ressaltar que a principal diferença entre a história principal e as

histórias dos personagens-narradores é que a primeira é contada por um narrador em

terceira pessoa ou heterodiegético, enquanto que as outras são relatadas por narradores

posicionados em primeira pessoa ou homodiegéticos. É interessante observar que esses

personagens-narradores contam suas histórias, à medida que dialogam, promovendo a

instauração do modo dramático em várias passagens do conto. Essa diferença entre

narrador principal e personagem-narrador permite que se observem os processos de

exteriorização e de interiorização empreendidos no ato de contação de histórias.

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2.3 O exterior do contador de histórias

Mediante a análise dos narradores de “Sarapalha” e de “O burrinho pedrês”, pode

ser percebido o enfrentamento entre idéia e realidade. João Guimarães Rosa, nas duas

narrativas, tendo-se decidido pelo ponto de vista externo para contar a história principal,

recorre a descrições minuciosas do universo exterior, no qual deseja inserir seu leitor, como

se estivesse a demonstrar, ao mesmo tempo, que entende do assunto de que trata e que se

envolve com a matéria narrada. Ao que parece, por meio de tais descrições, o autor deseja

revelar um pouco da sua interioridade e mostrar a capacidade que possui de observar a

realidade, antes de dar início à história propriamente dita. Isso se observa em “Sarapalha”,

no parágrafo dedicado à catalogação das plantas que estavam invadindo os caminhos após o

abandono do vilarejo por parte dos moradores, em virtude da malária:

Aí a beldroega, em carreirinha [...] apontou caules ruivos no baixo das cercas das hortas [...], o cabeça-de-boi e o capim-mulambo, já dono da rua, tangeram-na de volta [...] porque no quintal os joás estavam brigando com o espinho-agulha e com o gervão em flor. E, atrás da maria-preta e da vassourinha, vinha urgente, do campo, o amor-de-negro, com os tridentes das folhas, e fileiras completas, colunas espertas, do rijo assa-peixe. [...] A gameleira, fazedora de raízes, brotou com o raizame nas paredes desbarrancadas. (Rosa, 1984, p. 134)

O mesmo procedimento pode ser identificado em “O burrinho pedrês”, no trecho

destinado à exibição dos diferentes tipos de bois que integravam a boiada tangida pelos

boiadeiros, da Fazenda da Tampa para o Arraial:

Sós e seus de pelagem, com as cores mais achadas e impossíveis: pretos, fuscos, retintos, gateados, baios, vermelhos, rosilhos, barrosos, alaranjados; castanho tirando a rubros, pitangas com longes pretos; betados, listados, versicolores; turinos, marchetados com polinésias bizarras; tartarugas variegados; araçás estranhos, com estrias concêntricas no pelame – curvas e zebruras pardo-sujas em fundo verdacento, como cortes de ágata acebolada, grandes nós de madeira lavrada, ou faces talhadas em granito impuro. (Rosa, 1984, p. 19)

As descrições de Guimarães Rosa promovem o encontro entre essas duas

dimensões: a interioridade e a exterioridade. Ao contar suas histórias – sejam elas reais ou

imaginárias –, o escritor não só ultrapassa a impossibilidade de abranger a totalidade do

mundo exterior e a vastidão de seu universo interior, mas também mostra as formas de que

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lança mão para reordenar os acontecimentos, ao transportá-los do mundo exterior para o

universo interior do indivíduo.

Em “Sarapalha” e em “O burrinho pedrês”, Guimarães Rosa, então, supera o “caos

aleatório” da vida provocado pelo tempo, limitando e localizando, no tempo e no espaço, os

eventos que quer apresentar – como acontece ao contador que deseja introduzir o ouvinte

no universo de sua história – ou sugerindo possíveis nexos entre os acontecimentos. Nos

dois contos, os fatos ocorrem em um tempo passado e indeterminado; duram apenas um dia

da vida dos personagens, ao contrário do que poderia ocorrer, caso o escritor quisesse

abarcar a totalidade dessas existências, e não advertisse, em um dos contos, que a “estória”

de um burrinho, como a história de um homem grande, “é bem dada no resumo de um só

dia de sua vida”. Na impossibilidade de abarcar tal totalidade, ele opta pela exemplaridade,

ou seja, apresenta aquele dia como um dia exemplar. Assim parece buscar – aproveitando

as palavras de Adorno –, algo único e digno de ser relatado.

No primeiro conto, a exemplaridade pode ser observada pela descrição dos dois

homens, Primo Ribeiro e Primo Argemiro, “sentados, juntinhos, num casco de cocho

emborcado, cabisbaixos, quentando-se ao sol”, cujo efeito assemelha-se ao “Era uma vez,

era outra vez, no umbigo do mundo, um burrinho pedrês”, do segundo conto. Tais

afirmações explicitam que os limites estabelecidos quanto ao tempo e ao espaço em que se

situam os personagens tornam-se rarefeitos, dando lugar a um tempo e a um espaço

míticos: o dia primordial, que encontra sua realização no umbigo do mundo – equivalente

ao casco de cocho emborcado –, representado pelo vale do Rio das Velhas ou pelo território

próximo ao vau da Sarapalha.

O contador de histórias em terceira pessoa, de uma forma ou de outra, precisa

diminuir o conflito entre interioridade e mundo exterior, pois a polaridade entre esses dois

âmbitos mostra-se mais acentuada no narrador onisciente do que no narrador em primeira

pessoa. Segundo Lukács, essa dualidade pode ser superada pelo sujeito, se ele vislumbrar a

unidade orgânica de toda sua vida como fruto do crescimento de seu presente vivo, a partir

do fluxo vital passado, condensado na recordação. Esse parece ser o caso das histórias de

Guimarães Rosa, que recorrem à exemplaridade, concentrando num dia da existência das

personagens o significado de toda sua vida.

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3. O CONTADOR DE HISTÓRIAS EM PRIMEIRA PESSOA

Os contadores de histórias posicionados em primeira pessoa parecem estar sempre

falando de si próprios, do que foram, do que são ou daquilo que gostariam de ser.

Concentram-se no interior de si mesmos e se dispõem a revelar suas experiências e sua

subjetividade para contar histórias. Ao relatar acontecimentos ocorridos com outras

pessoas, esse tipo de narrador diz ter visto, ouvido ou presenciado os fatos, a fim de marcar

a sua participação na história. Esses indivíduos desejam mostrar a matéria de que são feitos,

ou seja, sua interioridade. As histórias que eles contam são “metonímias” de suas próprias

vidas (Reis, 1997, p. 350). Cada história não é senão uma parte sua; uma síntese de sua

vida, de seu estado de alma, de suas lembranças, de suas frustrações e de seus medos; uma

sugestão, um desejo.

Ao contrário do que ocorre em histórias narradas por um narrador em terceira

pessoa, em que predomina a polaridade e o enfrentamento entre sujeito e objeto, nas

histórias relatadas por um contador posicionado em primeira pessoa, tende a diminuir o

distanciamento e o conflito entre essas entidades. Segundo Reis, em histórias narradas em

primeira pessoa – narrativas homodiegéticas –, o narrador conta suas próprias experiências

como protagonista ou como personagem testemunha da história. Contudo, esclarece que,

até mesmo nas situações em que o narrador é o próprio protagonista, há certo

distanciamento entre ambos, pois:

o narrador quase sempre nos fala da personagem que foi, procurando vê-la (ou ver-se) como um outro, com quem chega a imaginar diálogos. Assim se confirma o princípio da exteriorização que verdadeiramente só se anula quando o sujeito da narração se centra, de forma insistente e sistemática (não apenas de forma pontual), sobre o seu universo interior. Tende-se, nesse caso, para a interiorização própria do modo lírico e a narrativa chega a fazer-se precisamente narrativa lírica. (Reis, 1997, p. 348)

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Observa-se que Reis considera várias formas de posicionamento do narrador, tanto

nas histórias narradas em terceira pessoa, quanto naquelas narradas em primeira pessoa.

Essa gama de possibilidades nos tipos de posicionamento significa que é a presença do

narrador que revela o grau de objetividade ou de subjetividade da narração, o qual é

regulado pelas intrusões da referida entidade; em outras palavras, é a instância do narrador

que qualifica e quantifica as variáveis, de acordo com as situações narrativas. Reis lembra

que uma narrativa, “apesar de muitas vezes procurar cultivar um certo pendor objetivo, [...]

não escapa a incursões subjetivas mais ou menos flagrantes”. Enquanto um narrador em

terceira pessoa, cujo grau de intrusão é limitado, reserva maior atenção a elementos

observáveis fora de si, como as perspectivas narrativas do personagem, do espaço ou da

ação, o narrador em primeira pessoa concentra-se mais em seu próprio interior, pois, “tendo

atravessado experiências e aventuras várias, relata, a partir de uma posição usualmente

amadurecida, o devir de sua existência”. (Reis, 1997, p. 69-71)

Adorno, ao analisar a posição do narrador no romance contemporâneo, ainda na

década de 60, já alertava sobre a diminuição da polaridade sujeito-objeto. Segundo o

teórico, o narrador do romance tradicional perdeu a onisciência e teve sua identidade

desintegrada em “decorrência do subjetivismo, que não tolera mais nenhuma matéria sem

transformá-la” (2003, p. 55). O narrador deixou de apresentar ao leitor o mundo em que

esse devia participar do que acontecia como se aí estivesse presente, para, “ora deixá-lo do

lado de fora, ora guiá-lo pelo comentário até o palco, os bastidores e a casa de máquinas”,

abalando o que havia de fundamental na relação entre narrador e leitor: a forma que

garantia a distância estética. (Adorno, 2003, p. 61)

Ainda de acordo com Adorno, a nova posição do narrador inaugura um mundo

desencantado, estranho e enigmático, que vai contra a mentira da representação, instaurada

pelas técnicas de ilusão do romance tradicional, e ataca o componente fundamental desse

tipo de representação: a distância estética. O encolhimento da distância estética existente

entre sujeito-objeto e a desintegração do narrador onisciente parecem:

fundar um espaço interior que lhe poupa [ao narrador] o passo em falso no mundo estranho, um passo que se manifestaria na falsidade do tom que age como se a estranheza do mundo lhe fosse familiar. Imperceptivelmente, o mundo é puxado para esse interior – atribuiu-se à técnica o nome de monologue intérieur – e qualquer coisa que se desenvolve no exterior é apresentada como [...] um pedaço de mundo interior, um momento de fluxo de consciência,

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protegido da refutação pela ordem espaciotemporal objetiva. (Adorno, 2003, p. 59)

Segundo Adorno, pode-se dizer que esse tipo de narrador inaugura um espaço

interior para, de alguma forma, compreender, organizar, assimilar o mundo estranho que o

cerca. Em outras palavras, o narrador em primeira pessoa interioriza o universo exterior

para poder explicá-lo, pois:

quando se declara livre das convenções da representação do objeto, reconhece ao mesmo tempo a própria impotência, a supremacia do mundo das coisas, que reaparece em meio ao monólogo. É assim que se prepara uma segunda linguagem, destilada de várias maneiras do refugo da primeira, uma linguagem de coisa, deterioradamente associativa, como a que entremeia o monólogo não apenas do romancista, mas também dos inúmeros alienados da linguagem primeira, que constituem a massa. (Adorno, 2003, p. 62)

O contador de histórias em primeira pessoa não se contenta apenas em relatar o

mundo exterior, em registrar, apontar, mostrar, apresentar o objeto, em somente decifrar os

enigmas da vida exterior; ele “converte-se no esforço de captar a essência, que por sua vez

aparece como algo assustador e duplamente estranho no contexto do estranhamento

imposto pelas convenções sociais” (Adorno, 2003, p. 58).

Georg Lukcás vai nessa mesma direção, ao afirmar que a problemática decisiva

entre romance tradicional e romance moderno foi instaurada por parte deste último,

mediante “a perda do simbolismo épico” do narrador, que foi substituído pelo cosmos lírico

de sua interioridade (2000, p. 118). O teórico observa que esse narrador, ao interiorizar-se,

não apenas mostra seu psicologismo, mas expressa seu julgamento sobre a realidade, uma

vez que “a elevação da interioridade a um mundo totalmente independente não é mero fato

psicológico, mas um juízo de valor decisivo sobre a realidade: essa auto-suficiência da

subjetividade é o seu mais desesperado gesto de defesa, a renúncia de toda a luta por sua

realização no mundo exterior”. (Lukács, 2000, p. 119)

Pode-se inferir que, ao esforçar-se para captar a essência das coisas, ao elevar sua

interioridade a um mundo totalmente independente e ao buscar a auto-suficiência de sua

subjetividade, o narrador em primeira pessoa complexifica-se. Em outras palavras, esse tipo

de narrador realiza um processo de complexificação em relação ao narrador em terceira

pessoa. O contador de histórias em primeira pessoa ou homodiegético pode aparecer como

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personagem secundário ou mera testemunha, quando presencia e relata algum

acontecimento, o que não desqualifica sua condição de contador de histórias, como se

verifica em “Corpo fechado”. Pode, também, surgir como protagonista, quando manifesta

participação efetiva nos fatos relatados, muitas vezes “encenando uma narração executada

sobre a irrupção espontânea de reflexões cujo teor desordenado e caótico é devido

justamente ao imediatismo de tal narração”, que se configura como o monólogo interior

(Reis, 1997, p. 368), procedimento encontrado em “São Marcos”.

3.1 “Corpo fechado”

O narrador testemunha de “Corpo fechado” (1984, p. 271-300) parece contar a um

suposto ouvinte, um episódio ocorrido com Manuel Fulô, sujeito pequeno, com “cara de

bobo de fazenda” (1984, p. 277), que põe fim à época de valentia nas cidades do interior de

Minas Gerais, ao matar o último dos valentões, munido apenas de uma faca pequena. O

narrador que testemunha o acontecimento é um doutor, provavelmente, oriundo da cidade

grande, que se transferira para Laginha, um arraial típico do interior, a fim de exercer a

profissão de médico. Percebe-se que, além de mostrar o entrecruzamento de culturas – a do

doutor e a do capiau –, o relato do narrador revela a relação entre a ciência e a magia, uma

vez que, nesse conto, essas duas formas de significar o mundo são valorizadas.

O fato abordado torna-se curioso não só porque Manuel Fulô conseguiu desbancar o

valentão com a ajuda de um feiticeiro, mas também porque isso aconteceu diante dos olhos

do doutor. O narrador conta que chegara a Laginha em tempos calamitosos e que, logo que

conheceu Manuel Fulô, foi “tomando de tudo a devida nota” (1984, p. 276). O forasteiro e

Manuel Fulô tornaram-se amigos, principalmente, depois que Beija-Flor, a mula do capiau,

aprendeu o caminho da casa do médico. Manuel Fulô ia à residência do doutor diariamente,

e os dois ficavam conversando. Em uma dessas visitas, o doutor perguntou a Manuel Fulô

se ele havia conhecido o José Boi, um dos valentões que diziam haver caído de um

barranco de vinte metros e ter quebrado o pescoço. Nessa ocasião, observa-se que o doutor-

narrador tornou-se um ouvinte de Manuel Fulô. O matuto respondeu que sim e disse, ainda,

que também havia conhecido o Desidério, o valentão que tinha ficado no lugar de José Boi.

Manuel Fulô afirmou que esse, além de bruto, era coiceiro, e concluiu o pequeno relato,

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contando que o valentão acabou morto na cadeia, lugar onde os soldados “abotoaram” o

desalmado (1984, p. 272). A seguir, o doutor-ouvinte lembrou-se de outro sujeito, o

Adejalma, mas Manuel Fulô disse que, antes desse, havia o Miligido, o qual era “valentão

valente, mesmo”, mas que não matara muita gente porque todos fugiam dele. Por fim,

afirmou que Miligido, ao contrário do outro, devia estar vivo ainda, perto dos setenta anos,

já sem aquela valentia toda (1984, p. 273). Logo após, Manuel Fulô voltou a falar do

Adejalma e resolveu prolongar a história:

Lhe conto, seu doutor. Foi na venda: eu estava comprando cadarço de roupa, coisa de paz... O homem já veio chegando enjoado com cara de herege... [...], virou p’ro Pércio, que era caixeiro nesse tempo, e perguntou: “O senhor tem aí dessa raça de faca que entra na barriga e murguêia?” E olhou pra mim, outra vez, p’ra ver se eu estava com receio... [...]. Eu ia serrar de cima, mas nem não tive tempo, porque nessa horinha vinha entrando um tropeiro de Soledade, que era homem duro, e pensou que a ofensa era p’ra ele... E aquilo foi o tropeiro dando um murro no balcão e tossindo, e perguntando também p’ra o Pércio: “Por falar nisso, o senhor não tem também dessa raça de bala que bate na testa e chatêia?!” Pois o Adejalma se riu de medo, e disse que estava era brincando... (1984, p. 272)

Depois de ouvir essa história, o doutor lembrou que o valentão, no momento, era o

Targino. O capiau disse que nem era bom falar nesse “flagelo”, que não respeitava nem a

honra das famílias (1984, p. 273). O doutor perguntou se ele tinha raiva desse também, e

Manuel Fulô garantiu que não era raiva o que sentia; era “gastura”, porque esse era mais

maligno do que todos os outros valentões juntos. O capiau lembrou, ainda, de mais alguns

valentões, apontando para outras histórias, possíveis de serem contadas, e preferiu deixar

Targino de lado, advertindo que, um dia, “esse sujeitinho ainda vai ter de dançar de ceroula,

seu doutor! Isso é terra de gente brava...”. (1984, p. 274)

Aos poucos, o doutor foi conhecendo melhor Manuel Fulô e descobriu que ele era

de uma “apócrifa e abundante” família Veiga, e não filho natural de um dos maiores

negociantes do arraial – Nhô Peixoto –, como afirmava o matuto. O capiau, segundo o

doutor, além de ser meio bobo – do tipo de sujeito que quase toda fazenda possui –, era

meio surdo e gago. O médico descobriu, também, que, por trás daquele indivíduo miúdo,

escondia-se um sujeito que morria de amores por sua mula, a Beija-Flor, e que tinha três

desejos: o primeiro era possuir uma sela mexicana para o animal, igual a do Seu Antonico

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das Águas, o feiticeiro do arraial; o segundo era ser boticário; o terceiro, era chefe de trem-

de-ferro.

É interessante notar que o doutor-narrador interrompe a narração das conversas que

tivera com o capiau para dizer que, somente naquele instante, a história de Manuel Fulô ia

começar de fato, pois tinha sido naquele meio-dia de calor e sonolência que ouvira uma voz

feminina chamar-lhe do lado de fora de sua casa:

Era uma rapariguinha risonha e redonda, peituda como uma perdiz. Bonita mesmo e diversa, com uma pele muito clara e os olhos cor de chuchu. Pasmou parada, e virou pitanga, pois não contava decerto encontrar gente de cidade e gravata. [...] Então ela me disse que ia casar, e que por isso estava percorrendo o arraial, pedindo “adjutório”. Dei com prazer o “adjutório”, mas perguntei quem era o noivo. Era o Manuel! (1984, p. 280).

Porém a narração da história de Manuel Fulô – que deveria começar pelo momento

em que o forasteiro conhecera Maria das Dores, a noiva do capiau –, não evoluiu. Observa-

se que o doutor-narrador preferiu contar sobre o momento em que Manuel Fulô convidou-o

para beber cerveja, ainda naquele mesmo dia. O doutor já conhecia o matuto a ponto de

saber que ele gostava de exibir a sua amizade com o médico e, por isso, sugeriu que fossem

à venda. Lá chegando, ambos sentaram-se nas cadeiras dobradiças do armazém e deram

início a nova sessão de conversas. Foi, então, que o doutor ficou sabendo que a sela

mexicana, desejada pelo capiau, era para a mula Beija-Flor, que, por ter o corpo

desproporcional aos pés, maxilares que não se encontravam e fama de esperta, era parecida

com seu dono. Ressalta-se que, nessa conversa, o doutor soube, também, que Manuel Fulô

já havia desistido de ser boticário, ou chefe de trem-de-ferro, e que queria casar.

Em um instante em que se fez silêncio entre ambos, o doutor aconselhou Manuel

Fulô a parar de beber e, logo depois, notando o abatimento do amigo, perguntou se ele não

gostava da moça. Manuel disse que já estavam “criando amor” (1984, p. 282), mas o que

queria mesmo era a sela mexicana, aquela do seu Antonico das Águas, com os arreios e os

bordados no couro dos estribos, para Beija-Flor. O capiau afirmou que era por isso que

estava daquele jeito: com raiva, e não bêbado. Manuel Fulô passou a elogiar a mula e a

dizer que quem entendia de montaria naquele arraial era ele, pois só ele havia passado dois

anos junto a um grupo de ciganos, “acompanhando aquele povo p’ra baixo e p’ra riba”

(1984, p. 282). O doutor perguntou, então, se Manuel Fulô tinha vivido com os ciganos,

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demonstrando interesse pela história, e o capiau, instigado pelo médico, passou a contar o

episódio:

Foi por causa que eu estava sem gosto p’ra caçar serviço bruto, naquele tempo... Garrei a maginar: o que eu nasci mesmo p’ra fazer é negócio de negociar com animal. [...] Pois então eu quis viajar no meio da ciganada, por amor de aprender as mamparras lá deles. [...] E tomei assunto, ligeiro, de um ror de coisas na língua disgramada que eles falam... [...]. E, ao depois, trabalhavam com animais, p’ra botar eles bonitos, [...]. Eles gostavam muito de mim, porque pensavam que eu era bobo de deveras... [...]. Já entendia de tudo quanto era manha de lidar com cavalo. [...] Então, não tinha mais ninguém p’ra poder comigo, [...]. Quando eu larguei a ciganagem, vim p’raqui p’r’o arraial, negociar por conta própria, [...]. Calcule o senhor que, de vez em quando, eu pegava a pensar e tinha uma raiva danada dos ciganos terem me abusado, achando que eu era coió... [...]. Então eu arresolvi amostrar p’ra eles o quê que é gente que tem sangue de Peixoto! [...], daí cacei dois sujeitinhos ordinários de cavalos, que eram mesmo o restolho da porcaria maior de tudo quanto é cavalo ruim que não presta. [...] Então eu pus um perto do outro, e dei risada: pois há-de ser mesmo com estes mais mambembes que vou tochar uma certa naquela cambada. [...] Nem comia nem dormia direito, só inventando outras papiatas p’ra compor a minha junta de mulas-sem-cabeças de tirar vingança de cigano... [...]. Eu sabia que na Semana-Santa os tais tinham de vir no arraial. E vieram mesmo. Mas aí Ventarola e Furta-Moça já estavam no ponto. [...] E Bartolameu junto com seu Pachencho mais com o Cuntrino, futricaram, um tempo todo, falando depressa na língua atrapalhada lá deles. [...] Foi só a gente fechar o negócio, e eu peguei a dar viva, gritando que tinha embrulhado os ciganos, [...]. Até hoje eu ainda gosto mais de me alembrar disso do que de comer doce!... (1985, p. 282-290)

O forasteiro, que demonstrava ser um ouvinte atento e instruído, talvez concebesse a

dupla de cavalos ordinários, apresentados aos ciganos por Manuel Fulô, como um

verdadeiro “presente de grego”1, e imaginasse a reação dos ciganos quando descobriram

que haviam sido enganados. O médico interrompeu o contador de histórias inúmeras vezes,

porém tais interrupções ocorreram porque o doutor demonstrava seu envolvimento com

aquilo que era narrado. Observa-se que o doutor quis saber, por exemplo, se Manuel Fulô

tinha presenciado muitos roubos de cavalo; comentou que devia haver muita moça bonita

entre os ciganos e, também, que o capiau devia estar ganhando muito dinheiro lesando os

outros. Depois perguntou se o matuto levara uma vida boa junto com os ciganos, indagou

sobre o motivo pelo qual o capiau tinha abandonado o negócio com animais e sobre a

reação dos ciganos quando constataram que haviam sido ludibriados.

1 Observa-se aqui uma semelhança – o disfarce – entre os cavalos vendidos por Manuel Fulô aos ciganos e o cavalo de madeira, ofertado pelos gregos aos troianos na Ilíada de Homero.

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A seguir, o doutor, percebendo que a longa história ia terminar, ao mesmo tempo

que ofereceu mais cerveja a Manuel Fulô, reparou que o capiau ainda estava alterado. Por

fim, recomendou que o amigo bebesse mais devagar. Manuel Fulô repetiu que estava com

raiva, não só porque ninguém mais queria fazer negócio com ele – diziam que enganava até

os ciganos –, mas também porque não era dono de uma sela mexicana. O matuto passou a

lamentar o fato de Antonico das Águas ter a sela que ele desejava para a Beija-Flor e disse,

com ódio, que, além de possuir tal objeto, o curandeiro fazia-lhe, constantemente, propostas

de compra da mulinha. Manuel Fulô aproveitou a menção ao feiticeiro para advertir o

médico de que aquele sujeito devia ter relação com o “diabo”, pois só sabia fazer feitiço e,

o que era pior, estava desestimulando as pessoas de consultar o médico. O capiau alertou o

amigo para o fato de que o outro poderia vir a tirar-lhe o lugar, afirmando que era provável

que o feiticeiro já tivesse feito alguma macumba contra o médico. Torna-se importante

observar que o doutor, tranqüilo, disse que feitiço não “pegava” nele.

Manuel Fulô insistiu no perigo que Antonico das Águas representava para o médico.

Na verdade, o matuto temia pelo risco que ele próprio corria, de perder a Beija-Flor para o

feiticeiro, pois ainda não entendia como um sujeito poderia ser proprietário de uma sela

mexicana, sem possuir uma montaria. O capiau aceitou a assertiva do doutor, de que devia

parar de beber e continuou contando histórias. Passou a desfiar mais “astúcias”, “trapaças”,

“manhas”, “tretas”, sempre pronto a introduzir um fato novo em sua conversa: “Só queria

lhe explicar ainda, seu doutor, que eu...” (1984, p. 292). Porém o doutor, embora atento

àquilo que o outro dizia – como bom ouvinte que era –, não pôde deixar de perceber a

entrada de Targino na venda. Ressalta-se que o narrador, nesse momento, interrompe

novamente o relato e afirma, pela segunda vez, que somente naquele momento a história de

Manuel Fulô estava começando:

E Manuel Fulô desceu cachoeira, narrando alicantinas, praga e ponto e ponto e praga, até que... Até que assomou à porta da venda – feio como um defunto vivo, gasturento como faca em nervo, esfriante como um sapo – Sua Excelência o Valentão dos Valentões, o Targino e Tal. E foi então que de fato a história começou. (1984, p. 292-293)

Targino, seguro de si, pela autoridade que sua figura representava para os demais,

foi direto a Manuel Fulô e disse-lhe que tinha “um particular” para tratar com ele. O

valentão foi sucinto: “Escuta Mané Fulô: a coisa é que eu gostei da das Dor, e venho

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visitar sua noiva amanhã... Já mandei recado, avisando a ela... É um dia só, depois vocês

podem casar. Se você ficar quieto, não te faço nada... Se não...” (1984, p. 293). Targino,

depois de apontar o indicador direito para o matuto, imitando um tiro, e de deixar clara sua

intenção de passar uma noite com a noiva de Manuel Fulô, girou o corpo e foi-se embora.

Sem demora, um grupo de pessoas juntou-se para lamentar o infortúnio do pobre capiau. O

médico, talvez para retribuir a preocupação do amigo, que o alertara sobre a possibilidade

de perder a clientela para o feiticeiro, resolveu livrá-lo de tal exposição e levá-lo a sua casa.

Lá chegando, o doutor lançou mão de todos os recursos que a ciência lhe oferecia e tentou

reanimar Manuel Fulô da bebedeira. Afirmou: “Não fazer nada seria uma infâmia... Temos

de defender a das Dor!” (1984, p. 294). Porém, é interessante notar que o médico não teve

outra alternativa senão a de deixar o capiau dormir aquela noite inteira, porque não obteve

sucesso nas tentativas de reanimar o matuto.

Pela manhã, o doutor acordou cedo e foi à procura de ajuda. Conversou, na rua,

com Vicente Sorrente, o sapateiro, e comentou com este sobre o assunto; foi à casa do

Coronel Melguério; entrou até na igreja, em busca do Vigário, mas nenhum deles quis

intrometer-se entre Targino e Manuel Fulô. O médico voltou para casa e ficou contando

com a sorte, sem saber o que fazer com toda aquela gente reunida dentro e fora da sala.

Salienta-se que, nesse instante, pela terceira vez, o doutor-narrador interrompe a narrativa e

afirma que, “de fato, cartas dadas, a história começa mesmo é aqui”, referindo-se à entrada

repentina de Antonico das Águas em sua residência:

Era uma vez um pedreiro Antonico das Pedras ou Antonico das Águas, que tinha alma de pajé; e tinha também uma sela mexicana, encostada por falta de animal, e cobiçava ainda a Beija-Fulô, a qual, mesmo sendo nhata, custara um conto e trezentos, na baixa, e era o grande amor do meu amigo Manuel Fulô. Pois o Antônio curandeiro-feiticeiro, apesar de meu concorrente, lá me entrou de repente em casa, exigindo o Manuel Fulô a um canto – para assunto secretíssimo. (1984, p. 297)

Nem o doutor, nem ninguém pôde ouvir o que Antonico das Águas dizia a Manuel

Fulô; somente começaram a entender o que se passava quando o feiticeiro abriu a porta do

quarto, requisitando agulha-e-linha, um prato fundo, cachaça e uma lata com brasas. O

matuto apareceu, também, na porta do quarto e disse que podiam entregar a Beija-Flor ao

seu Antonico, porque, a partir de então, a mula era do feitideiro. Depois encerraram-se

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novamente no quarto. Passado algum tempo, a porta se abriu e Manuel Fulô saiu

transformado, “teso” e “sorumbático”, rumo à rua, onde já haviam anunciado a presença de

Targino. O feiticeiro saiu do quarto no mesmo instante e tranqüilizou as pessoas a seu

redor: “Fechei o corpo dele. Não careçam de ter medo, que para arma de fogo eu garanto!”.

(1984, p. 298)

As pessoas que estavam dentro da casa, inclusive o doutor, correram até as janelas

para presenciar o enfrentamento, que, na opinião dos parentes Veigas, que estavam

presentes, acabaria na morte do “pobre do Manuelzinho”. Targino e Manuel Fulô estavam

distantes dez metros um do outro, quando o valentão puxou o revólver e o capiau retirou da

cintura uma faquinha, tão pequena que parecia um canivete. Essas foram as últimas ações

vistas pelo doutor, antes de retirar o rosto da janela, para ficar apenas escutando os

estampidos dos cinco tiros que se seguiram. Quando o médico tornou a olhar, viu, surpreso,

Manuel Fulô – intocado pelas balas –, esfaquear, na altura do peito, o valentão, que, depois

de ser atingido, permanecia paralisado e ainda em pé, provavelmente, também, sob os

efeitos da magia de Antonico das Águas. Logo o grandalhão caiu, com um olhar de temor.

Manuel Fulô, a despeito da presença dos Veigas, perguntou ao “0diabo morto”, sabendo

que não obteria resposta, se agora ele conhecia “o que é raça de Peixoto!”. (1984, p. 299)

Assim findou a época dos espanta-praças e concluiu-se a história de Manuel Fulô,

porque, além de o capiau ser apenas “um valentão manso e decorativo”, preocupado

somente com a “mantença da tradição”, veio logo para o arraial um destacamento policial

(1984, p. 300). O doutor-narrador que testemunhou o caso de Manuel Fulô conta que o

matuto comemorou um mês inteiro, para depois casar-se, e que, quando conseguia burlar a

vigilância de Maria das Dores, via-se montado na mulinha Beija-Flor, que lhe era

emprestada por seu Antonico das Pedras-Águas.

A análise das estratégias utilizadas por João Guimarães Rosa na construção de

“Corpo fechado” revela a presença de um narrador testemunha, o doutor, que conta a

história de Manuel Fulô ao leitor, e de um personagem-narrador, o próprio capiau, que não

só narra ao doutor episódios de seu envolvimento com um grupo de ciganos, como também

introduz o forasteiro no mundo do interior mineiro, ao relatar as histórias dos valentões. Os

dois narradores contam suas histórias posicionados em primeira pessoa, porém nenhum

deles realiza o que se chama de monólogo interior, que, segundo Reis, se caracteriza por

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um momento de fluxo de consciência desencadeado pela irrupção espontânea de reflexões

marcadas pelo imediatismo da narração em relação aos fatos expostos (Reis, 1997, p. 368).

Ressalta-se que a ausência do monólogo interior não desqualifica nem as narrativas, nem os

seus respectivos narradores. O que se quer mostrar são as diferenças possíveis de serem

identificadas entre os narradores em primeira pessoa.

Observa-se que o doutor conta ao seu suposto ouvinte fatos que, de forma geral, não

aconteceram consigo, ou seja, ele situa-se como testemunha dos acontecimentos. Assim,

empreende um processo de exteriorização para contar a história, na medida em que esta

ocorre com outro personagem que não ele, e localiza as ações num tempo passado, o que

impossibilita o surgimento do monólogo interior. Nota-se que o personagem-narrador

Manuel Fulô conta ao doutor a história do seu envolvimento com os ciganos posicionado

como protagonista e, por isso, realiza um processo de interiorização. Porém, o personagem-

narrador, também, situa suas ações em um tempo passado e concentra-se no mundo exterior

para relatar os fatos, desvelando as condições de vida e a cultura dos ciganos. Desse modo,

pode-se dizer que nem o discurso do doutor, nem o de Manuel Fulô caracterizam o

monólogo interior.

Sobre a temática abordada nas narrações, ressaltam-se três aspectos: a aproximação

entre o mundo erudito e o universo popular; o confronto entre aparência e caráter; e a

relação entre ciência e magia. Quanto ao primeiro aspecto, é importante ressaltar que a

história de Manuel Fulô é contada por um narrador que possui alto nível de instrução, um

médico, provavelmente vindo da cidade grande, que detém elevado grau de conhecimento e

domínio da linguagem-padrão, além de haver adquirido o sotaque e o vocabulário regional

do interior mineiro, ao entrar em contato com os habitantes de Laginha, como se pode

observar na maioria das passagens em que sua voz aparece:

Pois bem, Manuel Fulô dera para visitar-me, mais que diariamente. E, como a Beija-Fulô depressa aprendia as coisas, assustei-me bastante, numa tarde em que ela veio escoucear minha porta, com seu proprietário escornado em cima do arreio, na mais concreta abstração. [...] Então, eu esvaziei um jarro d’água na cabeça do cavaleiro, e depois perguntei onde ele queria ir. Perene e solene, respondeu: – Eu?!... Eu: Tões, Militões, Canindés, Maquinés! Loucura, porque nem nunca que ele havia de chegar à fazenda do Tão, nem do Militão, pior ainda no Canindé, nem nunca que nunca no Maquiné. (1984, p. 280)

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O domínio da linguagem-padrão por parte do doutor fica bastante evidente na

habilidade com que ele emprega os verbos, os advérbios, as conjunções e os pronomes no

trecho acima, e também na circunstância em que conta ao leitor o episódio sobre uns

subvalentões da região de Laginha, os filhos do Quintiliano. Parece que aí o narrador deseja

deixar clara a intimidade que possui com a língua portuguesa. Trata-se da história de

Manuel Baptista, mestre-escola do arraial, que, por ter conhecimento da língua-pátria,

provocou nos subvalentões a suspeita de que havia escrito um “pasquim” que satirizava os

pretendentes a valentões:

Vissem lá se ele era homem para andar pregando em árvore bobagem sem assinatura! E com tantos erros! Ele entendia de gramática, e seus pasquins, muito bem caprichados, sempre numa meia folha de papel almaço, só eram lidos por pessoas capazes de apreciá-los, e, mesmo assim, tendo cada um de solicitar a sua vez, com muito empenho! (1984, p. 276)

Já a história contada por Manuel Fulô ao doutor, sobre o seu envolvimento com os

ciganos, revela um narrador que emprega a linguagem coloquial, mas não exatamente da

mesma forma que esta aparece no dia-a-dia dos sertanejos. Tanto na fala do doutor como na

voz do capiau, destaca-se a transfiguração da linguagem regional, operada pelo escritor.

Vale ressaltar que João Guimarães Rosa, segundo Antonio Candido (1987, p. 207),

promoveu “uma explosão transfiguradora” na linguagem gasta do regionalismo tradicional

e instaurou “a modernidade da escrita dentro da maior fidelidade à tradição da língua e à

matriz da região”, como se pode observar no trecho a seguir:

Preferi fôssemos para a venda, porque sabia que Manuel Fulô gostava de exibir nossa amizade. E, mal nos sentamos nas cadeiras dobradiças, fui perguntando:

– Me conta, Manuel, você gosta mesmo dela? – Amo! Isso, lá, amo mesmo, seu doutor... – Faz bem, Manuel, faz bem... Então, nos desolhamos, e pegamos a pensar, cada um para o seu lado, até

que Manuel suspirou e explicou: – É o jeito. Eu só queria treis coisas só: ter uma sela mexicana, p’ra arrear

a Beija-Fulô... E ser boticário ou chefe de trem-de-ferro, fardado de boné! Mas isso mesmo é que ainda é mais impossível... A pois, estando vendo que não arranjo nem trem-de-ferro, nem farmácia, nem a sela, me caso... Me caso! seu doutor... (1984, p. 281-282)

Quanto ao segundo aspecto – aparência versus caráter –, as duas histórias tratam de

atitudes que convertem um indivíduo comum num sujeito esperto, astuto ou ladino.

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Observa-se que, enquanto o doutor narra a astúcia de Manuel Fulô para desbancar o

valentão Targino, o próprio capiau conta como utilizou a inteligência para enganar o grupo

de ciganos. Convém salientar que o caráter de Manuel Fulô contrapõe-se à imagem de

bobo, estúpido e ingênuo, que o doutor formara a seu respeito no instante em que o

conhecera, e que os ciganos tinham do capiau, tanto que confiaram na fama de tolo e na

aparência infantil do matuto.

Quanto ao último elemento mencionado – a relação entre a ciência e a magia –,

observa-se, no conto, uma perfeita co-existência entre essas duas formas distintas de

explicar a natureza humana e o universo. Nota-se, por exemplo, que o doutor fica apenas

surpreso, e não contrariado, com a entrada do curandeiro em sua casa, fato que evidencia

não só o respeito que tinha pelo trabalho do outro, mas também um certo conhecimento do

que estava para acontecer. A relação pacífica entre magia e ciência é explicitada pelo fato

de que o doutor sabia que estava lidando com uma manifestação da cultura popular e não

tentou impedir o “fechamento do corpo” do capiau. É importante salientar que não são

apenas a história principal e as histórias contadas pelos personagens-narradores que

estabelecem uma semelhança temática entre si. A epígrafe do conto – “A barata diz que tem

/ sete saias de filó... / É mentira da barata: / ela tem é uma só” – uma quadrilha retirada de

uma cantiga de roda, também, parece referir-se à fama dos valentões ou à imagem de

esperteza atribuída aos ciganos, ambas desfeitas por Manuel Fulô e, simultaneamente, à

passagem em que o capiau transveste a dupla de cavalos mazelentos para enganar os

ciganos.

Percebe-se que, tanto a história contada pelo doutor ao leitor, quanto a relatada por

Manuel Fulô ao médico, confirmam a co-existência entre ciência e magia no interior de

Minas Gerais, porém de uma forma peculiar. Nota-se que há uma troca de papéis entre os

dois personagens, ou seja, enquanto o doutor conta ao leitor uma história de magia – a

passagem em que testemunhou o “fechamento do corpo” de Manuel Fulô pelo feiticeiro –,

o capiau parece referir-se ao emprego de métodos científicos, ao narrar ao médico os

acontecimentos relativos à transformação dos cavalos velhos em verdadeiras montarias,

prática que aprendera com os ciganos:

Foi uma campanha! Levei quase treis meses. Mas caprichei, porque eu estava todo determinado p’ra etcétera... E como eu sou mesmo opiniúdo, e quando

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entesto de fazer alguma coisa faço mesmo, [...] Passei banha de jibóia no aleijão da perna do Furta-Moça, trabalhei de dentista, p’r’amór de retocar os dentes dos dois... Pelejei, pelejei!... Pintando de preto, só um pouco, ao redor dos olhos, [...] limpei as orelhas, tosei direito, escovei, lavei, pus bom freio, fantasiei a visagem deles... Fiz tudo!... (1984, p. 286-287)

A análise das estratégias narrativas de “Corpo fechado” ainda permite afirmar que o

conto chama atenção para um fato: as tramas são construções dos próprios narradores e,

assim, várias são as maneiras de se começar a contação de uma mesma história, ou seja,

qualquer narrador possui livre arbítrio e escolhe o momento em que deve começar seu

relato, a fim de prender a atenção do ouvinte. As diversas formas de se iniciar uma história

podem ser percebidas, em “Corpo fechado”, nas três investidas realizadas pelo doutor para

dar início à história de Manuel Fulô: a primeira quando o médico conheceu Maria das

Dores; a segunda ao ver o valentão Targino entrar na venda e se dirigir ao matuto; a terceira

no momento em que teve sua casa invadida por Antonico das Águas, que fora até lá para

“fechar o corpo” do capiau. Outra estratégia narrativa que merece destaque é o final

semelhante dado às histórias, pois tanto a trama exposta pelo doutor, que testemunhou um

sujeito “pingadinho” derrotar um valentão, quanto a apresentada por Manuel Fulô, que

enganou um grupo de ciganos, historicamente experimentados na arte do logro, comprovam

que a esperteza, a astúcia, a inteligência de um indivíduo não pode ser medida por sua

aparência.

Vale perguntar o que sustentava a relação entre o doutor e o capiau?; quais seriam

os motivos que levaram o médico a contar a história do matuto ao leitor?; por que o capiau

contou ao forasteiro, precisamente, o seu envolvimento com os ciganos?; que sensações o

doutor experimentou ao contar a história de Manuel Fulô e ao ouvir do capiau o episódio

sobre os ciganos?; que efeitos o capiau sentiu ao relatar sua aventura com o grupo de

ciganos?

A relação entre o doutor e o capiau pode ter sido mantida pelo fato de os

personagens pertencerem a mundos distintos, tanto no que se refere ao espaço físico como

ao universo cultural de onde provinham, o que representava um atrativo e uma

possibilidade de troca e de aprendizado para ambos. Enquanto o primeiro era instruído,

demonstrava conhecimento da língua-padrão e maior domínio sobre suas emoções, o

segundo era instintivo e espontâneo. O médico, talvez, tenha contado a história do matuto

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não só porque desejava entender o universo daquela figura, mas também porque precisava

compreender ou, simplesmente, assimilar algo que não era capaz de explicar por meio da

razão: o “fechamento do corpo” do capiau, como resultado da magia, e a aquisição, por

parte de Manuel Fulô, da força e da coragem necessárias para enfrentar o valentão. Já o

matuto pode ter relatado ao médico o episódio do seu contato com os ciganos, porque

queria comprovar sua esperteza e livrar-se da fama que possuía, de ser ingênuo, bobo e

infantil.

Caso se aceite a hipótese de que o doutor tenha contado sua história porque queria

compreender ou elaborar internamente o mistério que envolvia o “fechamento do corpo” do

capiau, pode-se afirmar que ele buscava beneficiar-se dos efeitos da experiência estética

propiciada pelo seu próprio relato. A atenção do médico feito narrador voltava-se para algo

que o libertava dos constrangimentos e da rotina impostos pelo seu cotidiano, e, à medida

que submergia num outro universo – o do capiau –, o doutor não só desvencilhava-se do

pragmatismo das normas que regiam o seu mundo, mas também estabelecia uma distância

entre si e a “realidade” que vivenciara, o que lhe permitia compreender ou assimilar os

fatos narrados. Da mesma forma, o capiau também poderia estar sentindo os efeitos de uma

experiência estética, pois, enquanto rememorava o seu envolvimento com os ciganos,

demonstrava sua sagacidade e desfazia-se da fama de ingênuo, que o perseguia numa terra

habitada por vários valentões.

Por fim, os dois contadores de histórias poderiam estar motivados pela necessidade

de comunicar experiências e, talvez, intuíssem que, de alguma forma, aquilo que contavam

tinha significado não somente para si próprios. Tal interpretação é autorizada pela

afirmação de Nelly Novaes Coelho: “o impulso de contar estórias deve ter nascido no

homem, no momento em que ele sentiu a necessidade de comunicar aos outros certa

experiência sua, que poderia ter significado a todos”. (Coelho, 1985, p. 5)

3.2 “São Marcos”

A história contada em “São Marcos” (1984, p. 241-268) é a de um indivíduo que

perdeu, momentaneamente, a visão durante um passeio a uma mata, em Calango-Frito,

interior de Minas Gerais. O narrador é o próprio protagonista, João, que também respondia

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pelo nome de José. Ele não acreditava em feiticeiros e, por isso, não fazia questão de

demonstrar simpatia com quem lidava com “o contra-senso” (1984, p. 241). João/José é um

sujeito que não anuncia seu nome, nem deixa clara a sua origem; somente se percebe que

era sofisticado e possuía uma posição social privilegiada, ao constatar-se que usava paletó e

chapéu, era dono de um relógio de pulso e fumava cigarros industrializados. Nota-se,

também, que o forasteiro era instruído, porque conhecia o nome científico das diversas

espécies animais e vegetais que encontrava na mata e utilizava a linguagem-padrão.

João/José perdeu a visão porque insultara João Mangolô, o feiticeiro mais respeitado de

Calango-Frito. A falta de controle do protagonista sobre seus instintos e o desprezo que

manifestava pelo feiticeiro foram os motivos que levaram este último a dirigir, contra

João/José, o feitiço que o tornou cego.

Enquanto conta as aventuras que vivenciara em Calango-Frito, o narrador-

protagonista reproduz histórias secundárias, narradas por outros personagens, ou seja,

surgem na sua memória e afloram em seu relato episódios antes contados por personagens-

narradores. Esse é o caso de Sá Nhá Rita Preta, a criada de João/José, que narra o episódio

por ela presenciado – provavelmente antes da chegada do protagonista – em que a

lavadeira, outra criada da casa, fora acometida por uma dor inexplicável no pé, e, também,

o caso de Aurísio Manquitola, que conta a história de Tião Tranjão, sujeito “meio leso”,

que adquirira força para fugir da cadeia e coragem para se vingar da esposa e do amante,

pelo fato de ter recitado uma reza “sesga, milagrosa e proibida” – a oração de São Marcos.

João/José debochava das pessoas que faziam uso da magia, como Nhá Tolentina,

que, em seu entendimento, estava enriquecendo com o preparo de sapos com a boca

costurada e batizados em pias de igreja para serem escondidos no telhado de algum sujeito.

O protagonista achava esse tipo de atitude uma “barbaridade”. Em Calango-Frito, conforme

seu depoimento, até os meninos de dez anos faziam feitiços. Um desses garotos era

Deolindinho, que quase provocara a morte de um professor malvado, ao colocar um feitiço

debaixo da cama do mestre. O que espantava João/José era a originalidade com a qual

aquilo havia sido feito: cada um dos colegas do menino fechara os olhos e apanhara uma

folha de bambu; depois disso, eles urinaram dentro da lata onde haviam colocado as folhas

e a esconderam debaixo da cama do professor. O protagonista comenta que a tragédia só

não foi completa porque, em virtude do mau-cheiro, o preparo fora descoberto a tempo.

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João/José não escondia de ninguém sua repulsa aos feiticeiros e não faltava quem o

advertisse do perigo que corria. Ele próprio admitia que “zombava já por prática” e, nos

momentos em que expressava sua antipatia pelos feiticeiros, ouvia as recomendações de Sá

Nhá Rita Preta: “– Se o senhor não acredita, é rei no seu; mas, abusar, não deve-de!” (1984,

p. 242). Assim, as histórias secundárias que se reproduzem na memória do narrador têm

como mote os conselhos de Sá Nhá Rita Preta, que vinham acompanhadas de exemplos de

pessoas que tinham praticado alguma “desfeita” a um feiticeiro, como havia acontecido

com a lavadeira:

e a lavadeira então veio entrando, para ajuntar a roupa suja. De repente, deu um grito horrendo e caiu sentada no chão, garrada com as duas mãos no pé (lá dela!)... A gente acudiu, mas não viu nada: não era topada, [...] nem bicho-de-pé apostemado, nem mijacão, nem coisa de se ver... Não tinha cissura nenhuma, mas a mulher não parava de gritar, e... qu’é de remédio?! Nem angu quente, nem fomentação, nem bálsamo, [...] nem alcanfor!... Aí ela se alembrou da desfeita que tinha feito para a Cesária velha, e mandou um portador às pressas, para pedir perdão. Pois foi o tempo do embaixador chegar lá, para a dor sarar, assim de vôo... Porque a Cesária tornou a tirar fora a agulha do pé da calunga de cera, que tinha feito, aos pouquinhos, em sete voltas de meia-noite: “Estou fazendo fulana!... Estou fazendo fulana!...”, e depois, com a agulha: “Estou espetando fulana!... Estou espetando fulana!... (1984, p. 243)

Desde que chegara a Calango-Frito, João/José ia passear, todos os domingos, no

mato das Três Águas, e Sá Nhá Rita Preta, assim que percebera a aversão do moço pelos

feiticeiros, passara a alertá-lo sobre o risco a que ficava exposto nessas caminhadas. Na

manhã do domingo fatídico em que o protagonista perderia a visão, enquanto costurava

uma das mangas do paletó do patrão – que já estava de chapéu posto e pronto para

empreender seu passeio –, a preta-velha disse: “Coso a roupa e não coso o corpo” (1984, p.

243). O aviso de Sá Nhá Rita Preta era claro: ela não garantia proteção ao patrão; apenas

costurava sua roupa. A criada recomendou-lhe, em tal ocasião, que ele não “enjerizasse”,

especialmente, o Mangolô, o feiticeiro mais respeitado da região.

Eram sete horas da manhã, o dia estava claro e a manhã “espaçosa”. O aventureiro

ia sozinho e levava somente uma pequena bagagem, boa provisão de alimento, o binóculo e

a espingarda, por uma razão específica:

eu não podia deixar o povo saber que eu entrava no mato, e lá passava o dia inteiro, só para ver uma mudinha de cambuí a medrar da terra de dentro de um buraco no tronco de um camboatã; para assistir à carga frontal das formigas-

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cabaças [...]; para namorar o namoro dos guaxes, pousados nos ramos compridos da aroeira; para saber ao certo se o meu xará joão-de-barro fecharia mesmo a sua olaria, guardando o descanso domingueiro; para apostar sozinho, no concurso de salto-à-vara entre os gafanhotos verdes e os gafanhotos cinzentos [...]; e para rir-me, à glória das aranhas-d’água, que vão corre-correndo, pernilongando sobre a casca de água do poço, pensando que aquilo é chão mesmo para se andar em cima. (1984, p. 244)

O viajante dispensava companhias e costumava dizer que nem os cães eram seus

sócios nos passeios. Em sua opinião, esses animais só estorvavam; andavam por onde

queriam e, além disso, viam a sua frente apenas o que lhes interessava: o paqueiro, as

pacas; o veadeiro, os veados; o perdigueiro, as perdizes. Assim, não demorara a convencer-

se da inutilidade dos cães: “uma vez, no começo, trouxe comigo um desses ativistas

orelhudos, de nariz destamanho. Não dei nem tiro, e ele estranhava, subindo para mim

longos olhares de censura. Desprezou-me, sei; e eu me vexei e quase cedi. Nunca mais!”

(1984, p. 244). O protagonista parecia preferir a solidão em suas viagens, em primeiro

lugar, porque não queria despertar a curiosidade das pessoas, que poderiam não entender

suas excentricidades de observador atento da natureza; em segundo lugar, porque a

presença de um cão seria capaz de desviá-lo do caminho.

No domingo em questão, o aventureiro caminhava tranqüilo pela estrada, quando

levou um choque ao ouvir alguém gritar atrás de si: “– ’Güenta o relance, Izé!...”. João/José

acreditava estar sozinho, e, por isso, o grito o fez estremecer e voltar-se para olhar:

porque, nesta estória, eu também me chamarei José. Mas não era comigo. Era com outro Zé, Zé-Prequeté, que, trinta metros adiante, se equilibrava em cima dos saltos arqueados de um pangaré neurastênico. Justo no momento, o cavalicoque cobreou com o lombo, e, com um jeito de rins e depois um desjeito, deu com o meu homônimo no chão. (1984, p. 245)

Logo após esse incidente, ao qual não atribuiu maior importância, tomou uma trilha

afluente. O caminho era de chão batido e muito limpo, apesar de estreito. Alguns passos

adiante, o aventureiro avistou a cafua de João Mangolô, o “preto; pixaim alto, branco

amarelado; banguela; horrendo” (1984, p. 245). O feiticeiro, que estava perto da cerca,

sorriu para o passante, sem imaginar a antipatia do sujeito por ele. João/José, sem pensar,

disse: “– Pensei que você era uma cabiúna de queimada... [...] Com um balaio de rama de

mocó, por cima!” (1984, p. 246). Depois, perguntou ao outro se ele sabia quais eram os três

mandamentos do negro e, ignorando os muxoxos de Mangolô, foi logo dizendo: “todo

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negro é cachaceiro”; “todo negro é vagabundo”; “todo negro é feiticeiro”. João Mangolô

passou do riso à expressão de ódio, resmungou e entrou na casa, batendo com a porta.

João/José, ainda insultando o feiticeiro, seguiu seu caminho; passou perto do chiqueiro,

para, no final do feijoal, pegar a trilha que se bifurcava à direita, onde se abriam os gravatás

enfeitados de flores azuis. (1984, p. 245-246)

Assim que apanhou a trilha, o caminhante escutou um barulho de alpercatas. Era

Aurísio Manquitola, um “mameluco brancarano, cambota, anoso, asmático como um fole

velho”, que fazia o caminho contrário ao do moço. Num tom de zombaria, João/José

perguntou a Aurísio Manquitola se ele estava vindo da cafua do Mangolô. O mameluco

respondeu, de modo particular, que não: “– Tesconjuro!”. Depois, completou a resposta e

informou que vinha da missa, para deixar claro que não gostava de “urubu”, referindo-se ao

macumbeiro. O moço indagou, ainda, se o outro tinha medo do feiticeiro. A resposta de

Aurísio Manquitola foi, novamente, negativa e peculiar: “– Há-de-o!” (1984, p. 246). O

velhote disse que não era medo; apenas não gostava de abusar, pois “não paga a pena”.

Posteriormente, contou que, quando jovem, gostava de lidar com feitiços; revelou que já

havia ido até a cemitério, mas garantiu que, no momento, procurava sossego e, para

comprovar isso, ofereceu uma laranja-da-china a João/José, cortando a tampa da fruta com

uma foice.

O moço, ao notar a foice do velho, ainda em tom de galhofa, comentou que o

instrumento devia ter serventia para tudo, menos para tirar bichos-de-pé. O outro disse que

foice era uma arma poderosa, à qual não se comparavam nem a arma de fogo, nem a faca:

“Para foice não tem nem reza, moço...”. João/José, ouvindo a referência à reza, perguntou

se, para foice, não havia nem as “sete ave-marias retornadas”, nem “São Marcos”, e

começou, logo, a recitar esta última: “Em nome de São Marcos e de São Manços, e do Anjo

Mau, seu e meu companheiro...”. O mameluco pulou para a beira da estrada; disse-lhe que

isso era “reza brava” e quis saber se o moço não tinha noção do poder das palavras dessa

oração, advertindo-lhe: “o senhor não sabe com o que é que está bulindo!... É melhor

esquecer as palavras...” (1984, p. 247). Nesse instante, Aurísio Manquitola passou a contar

a João/José a história de Tião Tranjão, perguntando-lhe se ele conhecia esse capiau e um tal

de Gestal da Gaita.

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Aurísio Manquitola revelou ao forasteiro que Gestal da Gaita sabia a oração de São

Marcos e era um bom sujeito, porque se compadecia de Tião Tranjão, um indivíduo “meio

leso”, que, além de ter sido traído pela mulher e pelo melhor amigo, o Cypriano, levava a

culpa de haver batido em Felipe Turco com um pedaço de pau. Depois, Aurísio Manquitola

contou que, um dia, Gestal da Gaita resolveu ensinar a reza a Tião Tranjão, para que esse

tivesse alguma “valença nos apertos” (1984, p. 249). Logo após aprender a oração, o capiau

foi preso por causa da suposta paulada no turco, mas não ficou por muito tempo na cadeia.

Aurísio Manquitola parecia não ter dúvida quanto ao método utilizado pelo matuto para

fugir da prisão:

Ele deve de ter rezado a reza à meia-noite, da feição que o diabo pede, o senhor não acha? Pois, do contrário, me conte: quem foi que deu fuga ao preso, das grades, e carregou o cujo de volta para casa – quatro léguas –, que, de-madrugadinha, estava ele chegando lá, e depois na casa do outro, e entrando guerreiro e fazendo o pau desdar, na mulher, no carapina, nos trastes, nas panelas, em tudo quanto há?! [...] E: olhe aqui: quando ele tinha chegado, caçou uma alavanca para abrir a porta, com cautela de economia, por não estragar... pois, no fim da festa, acabou desmanchando a casa quase toda. [...] Foi precisão de umas dez pessoas, para sujeitar o Tião, e se a gente não tonteasse o pobre... (1984, p. 251)

Aurísio Manquitola encerrou a história da fuga de Tião Tranjão da cadeia e

despediu-se: “Bem, seu moço, se o senhor vai tomar dessa banda de lá, nós temos de se

desapartar, que o meu rumo é este aqui. Bom, até outro dia. Deus adiante, paz na guia!”

(1984, p. 251). João/José seguiu o caminho que descia, entrando na capoeira baixa e saindo

do capoeirão alto. Logo depois, avistou o bambuzal – cuja beleza comparou a de um mar

suspenso, ondulado e parado –, que lhe fez lembrar-se de uma história acontecida assim que

chegara a Calango-Frito: o episódio do duelo verbal que travara com Quem-Será. É

interessante imaginar o estado contemplativo de João/José diante dos bambus. Enquanto ele

recorda a história, pode-se ter uma noção do que se passa no seu interior durante o relato e

da sensação que experimentara ao vivenciar os fatos, além de perceber o lirismo que

sobressai do episódio narrado. Como se também estivesse suspenso tal qual o mar e o

bambuzal e como se pudesse ignorar a natureza a sua volta, pôs-se a rememorar a história:

Foi quase logo que eu cheguei ao Calango-Frito, [...] os grandes colmos jaldes, envernizados, lisíssimos, pediam autógrafo; e alguém já gravara, a canivete ou ponta de faca, letras enormes, enchendo um entrenó: Teus olho tão singular /

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Dessas trancinhas tão pretas / Qero morer eim teus braço / Ai formosa marieta. E eu, que [...] tinha um lápis na algibeira, escrevi também, logo abaixo: Sargon / Assarhaddon / Assurbanipal / Teglattphalasar, Salmanassar / Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor / Belsazar / Sanekherib. E era para mim um poema esse rol de reis leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e só representados na poesia. [...] quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo – Ó colossalidade! – na direção da altura? E não é sem assim que as palavras tem canto e plumagem. [...] No domingo seguinte, quando retornei ao bambuzal, vi [...] sob o meu poema dos velhos reis de alabastro: Língua de turco rabatacho dos infernos. Mas também aceitara o floral desafio, já usando certeza e lápis: Na viola do urubu / o sapo chegou no céu. / Quando pego na viola / o céu fica sendo meu. [...] “Quem-Será” ficou sendo meu melhor amigo, aqui no Calango-Frito. Mas não tive dúvida, o mato era um menino dador de brinquedos, e fiz: Tempo de festa no céu / Deus pintou o surucuá: / com tinta azul e vermelha, / verde, cinzenta e lilá. / Porta do céu não se fecha: / surucuá fugiu pra cá. E mais, por haver lugar: Tem o teu e tem o meu / tem canhota e tem direita, / tem a terra e tem o céu – / escolha deve ser feita! [...] Isso me perturbou; escrevi: Ou a perfeição, ou a pândega! No domingo imediato, encontrei: Chegando na encruzilhada / eu tive de resolver: / para a esquerda fui, contigo. / Coração soube escolher! [...] O tema se esgotara, com derrota minha e triunfo de “Quem-Será”. Me vinguei, lapisando outra qualquer quadra, começo de outro assunto. E nesse caminho estamos. (1984, p. 252-255)

Posteriormente, João/José apanhou outra vez a estrada-mestra para continuar sua

caminhada em direção à mata das Três Águas, avistada do alto de uma encosta. O viajante,

recobrando a atenção em si e na trilha que seguia, antes perdida nas lembranças de fatos do

passado, aparentava ter deixado para trás suas perturbações. Não apenas esses fatos, mas

também os acontecimentos recentes e os personagens com quem se envolvera – as

advertências de Sá Nhá Rita Preta, a história de Aurísio Manquitola, o seu enfrentamento

com João Mangolô, bem como o duelo verbal que travara com Quem-Será no bambuzal –,

pareciam distantes. O protagonista dava indícios de que estava consciente de seus atos e

concentrado na paisagem que apreendia por meio dos sentidos, “porque não é a esmo que

se vem fazer uma visita: aqui, onde cada lugar tem indicação e nome, conforme o tempo

que faz e o estado de alma do crente” (1984, p. 257). João/José, mesmo afirmando passar

por aquele lugar todos os domingos, manifestava um inegável encantamento com o que

estava diante de seus olhos:

Pelas frinchas, entre frestões e franças, descortino, lá em baixo, as águas das Três Águas. Três? Muitas mais! A lagoa grande, oval, tira de seu pólo dois córregos, enquanto entremete o fino da cauda na floresta. Mas, ao redor, há o brejo, imensa esponja onde tudo se confunde: trabéculas de canais, pontilhados de poços, e uma finlândia de lagoazinhas sem tampa. (1984, p. 256)

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A seguir, o aventureiro desceu a encosta e, demonstrando ser um conhecedor do

local e das espécies vegetais e animais ali encontradas, escolheu uma das entradas do mato,

a das duas árvores, as sentinelas, já identificadas em outros passeios e pelas quais sentia-se

observado: “um cangalheiro, de copa trapezoidal, retaca; e uma cajazeira que oscila os

brônquios verdes no alto das forquilhas superpostas” (1984, p. 256). João/José visitou,

primeiro, as Rendas da Yara, para escutar de perto os rumores do riacho, e decidiu meditar

sobre as belezas da castidade, sobre a precariedade dos gozos da matéria, mas não podia

demorar-se muito naquele local, porque a frieza do recanto era intensa. O viajante deixou o

lugar para retroceder às três clareiras, com suas respectivas árvores tutelares, em busca de

aconchego e de proteção, porém ainda não havia chegado a seu destino: “vou indo, vou

indo, porque tenho pressa, mas ainda hei de mandar levantar aqui uma estatueta e um altar a

Pan”. (1884, p. 257) Parece que o protagonista, ao se referir a Pan, que é, ao mesmo tempo,

o deus dos bosques, segundo a mitologia grega, e o radical grego para “tudo”, alude ao

desejo que sente de meditar, analisar, avaliar, observar e escutar não só os elementos da

natureza, mas tudo o que possui “indicação e nome”, inclusive os elementos que compõem

“o estado de alma do crente”.

Algum tempo depois, João/José atingiu, enfim, o “sancto-dos-sanctos” das Três

Águas, a clareira onde se encontrava a grande suinã, uma coraleira, eritrina, grossa e com

poucos espinhos, entre o começo do mato e um dos braços da lagoa. Nesse lugar, o seu

sentimento de proteção tornava-se completo, pois a lagoa parecia “uma palma de mão, lisa

e maternal”, e a coraleira era farta, além de bela, calma e bondosa, “com ninhos e cores,

açúcares e flores, e cantos e amores – e é uma deusa, portanto”. O viajante tirou o paletó e

recostou-se na coraleira: “– Uf! Aqui, posso descansar” (1984, p. 258). Então, passou a

observar a movimentação intensa dos insetos e das aves ao redor, como se essas criaturas

fossem elementos de sua interioridade: lembranças, aspirações, sentimentos, sensações,

medos, sonhos, desejos. Seus pensamentos parecem transitar do consciente para o

inconsciente e vice-versa, da mesma forma que, na natureza, as abelhas e as vespas

esvoaçam; as narcejas vêm e vão, os paturis anunciam sua chegada e as formigas pretas

ferroam:

todos aqui são bons ou maus, mas tão estáveis e não-humanos, [...] toda raça de abelhas e vespas, esvoaçando, [...] formigas, muitas formigas marinhando tronco

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acima, [...] o pato bravo, que deve ter vindo de longe, [...] o marrequinho de gravata é muito gentil, [...] os frangos-d’água eu sei de onde vêm, [...] as narcejas há tempo que vieram, e se foram, [...] os paturis estão para chegar, [...] e aquele? Ah, é o joão-grande. Não o tinha visto, contemplativo, ao modo em que eu aqui estou, [...] as saúvas, que vão sob as folhas secas, [...] as formigas pretas caçadoras amarimbondadas, que dão ferroadas de doer três gritos. (1984, p. 258-260)

O tempo fora passando; a paz imperava, e chegou um momento em que João/José,

sonolento, encostou-se na coraleira e acomodou-se para dormir. Durante o estágio de semi-

consciência que antecede o sono, ainda surgiu em seu pensamento “uma borboleta de

páginas ilustradas, oscilando no vôo puladinho e entrecortado das borboletas; mas sumiu,

logo, na orla das tarumãs prosternantes” (1984, p. 260). Foi nesse instante que,

repentinamente, João/José perdeu a visão. Ele não conseguiu comparar aquela experiência a

qualquer outra sensação, de fato, conhecida, a não ser às impressões de estar “preso no

compacto de uma montanha”, de ser atacado por uma “muralha de fuligem”, ou de

ingressar no “último salão de gruta, com os archotes mortos” (1984, p. 261). O viajante

exasperava-se: “Estaria eu... Cego?... Assim de súbito, sem dor, sem causa, sem prévios

sinais?...”. João/José tateava o chão ao redor, esperançoso de que a escuridão durasse

apenas alguns segundos, mas logo concluiu que estava, mesmo, cego; compreendeu que a

tragédia era um fato, e que, ironicamente, no meio de tantos olhos – os de todas as espécies

da natureza, algumas das quais pareciam observá-lo, e/ou os dos demais seres humanos que

habitam o universo –, somente os dele haviam cegado: “pois, só para mim as coisas

estavam pretas. Horror!...”. (1984, p. 262)

A movimentação da mata parecia haver crescido, na mesma medida em que

aumentavam as perturbações mentais do desafortunado. Os trilos dos pássaros que se

debulham, as pombas cinzentas que soluçam, o araçari que ensaia e reensaia seu discurso,

as formigas aturdidas pelo “rataplã” do pica-pau-chanchã, sugerem que o estado de espírito

– o sofrimento, o desespero, o atordoamento – e as atitudes do protagonista – o tatear, o

alvoroço, o bramido –, assemelham-se à movimentação dos elementos da natureza:

a debulha de trilos dos pássaros; o patativo, contando clássico na borda da mata; mais longe, as pombas cinzentas, guaiando soluços; e, aqui ao lado, um araçari, que não musica: ensaia e reensaia discursos irônicos, que vai taquigrafando com esmero, de ponta de bico na casca da árvore, o pica-pau-chanchã. E esse eu estava adivinhando: rubro-verde, vertical, topetudo, grimpando pelo tronco da imbaúba, escorando-se na ponta do rabo também. Taquigrafa, sim, mas, para

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tempo não perder, vai comendo outrossim as formigas tarus, que saem dos entrenós da imbaúba, aturdidas pelo rataplã. (1984, p. 261-262)

O desespero de João/José crescia a cada instante. Então, ele, sem saber o que fazer,

apelou à Santa Luzia, a santa protetora dos olhos das pessoas, em uma quase-oração: “Santa

Luzia passou por aqui, com seu cavalinho comendo capim!...”. Não obteve graça alguma;

apenas sentiu seu estado de perturbação aumentar: “Maldita hora! Mais momento, eu vou

chorar, me arrepelando, gritando e rolando no chão” (1984, p. 262). Logo a seguir, porém,

decidiu acalmar-se e esperar um pouco, sem nervosismo, porque, além de saber que para

tudo havia solução, entendia que lidava com suas próprias dificuldades: “São meros mansos

fantasmas, agora; são meus”. Então, o protagonista tirou o relógio; acendeu um cigarro, que

não teve o mesmo gosto dos outros, e, engatinhando, voltou a tatear o chão, agora para

retornar ao local onde antes encontrara a proteção da grande suinã-coraleira-eritrina.

João/José mal chegou à árvore e ouviu, vindo não sabia de onde, provavelmente de

seu próprio interior, um aconselhamento de resistência, já conhecido dele: “– ’Güenta o

relance, Izé!”. E, sem ao menos pensar, prorrompeu em um grito: “– E agüento mesmo!...”

(1984, p. 263). Essa exclamação, dita em voz alta e em tom combativo, devolveu ao

desesperado a força de que necessitava, investindo-lhe de nova coragem. Nesse momento,

começaram a desfilar em sua memória acontecimentos do passado, em especial o episódio

do duelo verbal que travara com Quem-Será no bambuzal.

É importante observar que, num instante, o viajante se assombrava, pois sentia que

algum “botão” ou “rodel” havia se mexido em sua cabeça, e tentava andar, guiando-se

pela audição: “não devo, não posso ficar parado aqui. Tenho, já, já, de correr, de me atirar

pelo mato, seja como for”. Logo em seguida, tentava acalmar-se: “Eu conheço o meu mato,

não conheço? Seus pontos, seus troncos, cantos e recantos, e suas benditas árvores todas –

como as palmas das minhas mãos”. Entretanto, entre devaneios, evasões e lembranças,

João/José perdeu, novamente, o amparo da suinã e, mais uma vez, o desespero tomou conta

de si: “E agora? Como chego á estrada?”. Então, a lembrança de Quem-Será surgiu em sua

mente com mais intensidade, na forma dos dois últimos versos do poema com o qual seu

adversário o havia derrotado no embate final : “para a esquerda fui, contigo. / Coração

soube escolher” (1984, p. 265). João/José, instantaneamente, decidiu substituir a visão pelo

instinto, que tanto admirava nas criaturas da mata:

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Sim. Mas, e as aves, e os grilos? Os pombos de arribada, transpondo regiões estranhas, e os patos-do-mato, de lagoa em lagoa, e os machos e fêmeas de uma porção de amorosos, solitários bichinhos, todos se orientando tão bem, sem mapas, quando estão em ceca e precisam ir a meca?... O instinto. Posso experimentar. Posso. Vou experimentar. Ir. Sem tomar direção, sem saber do caminho. Pé por pé, pé por si. Deixarei que o caminho me escolha. Vamos! (1984, p. 265).

O aventureiro andava devagar e passou a experimentar sensações adversas, como a

mão de um homem tocar em seu rosto ou puxá-lo pelo ombro: “vem alguém atrás de mim?

Paro. Não é ninguém”. Eram apenas os “cipós espinhentos, cipós cortinas, cipós cobras,

cipós chicotes, cipós braços humanos, cipós serpentinas – uma cordoalha que não se acaba

mais”. Depois, João/José começou a sentir o cheiro do charco, de húmus e água podre, e

teve a sensação de que seus pés afundaram na lama. O desafortunado percebeu, então, que

o instinto não soubera conduzi-lo: “o instinto soube guiar-me apenas na direção pior – para

os fundões da lama, cheia de paludes de águas tapadas e de alçapões de barro comedor de

pesos?!...”. O cansaço atingira João/José física e mentalmente, como se pode observar na

repetição e no baralhamento de um de seus pensamentos: “Pé por pé, pé por si... Pèporpé,

pèporsi... Pepp or pepp, epp or see... Pêpe orpèpe, heppe Orcy...” (1984, p. 266). Então, o

desespero do protagonista fê-lo gritar alto novamente: “Deus de todos! Oh... Diabos e

diabos... Oh...”. A pronúncia dessas palavras reproduziu, na mente de João/José, pela

terceira vez, o brado companheiro: “ – ’Güenta o relance, Izé”. Aliada a esse grito, chegou-

lhe a lembrança de Aurísio Manquitola e do episódio contado por este: a história sobre o

poder da oração de São Marcos.

Nesse momento, João/José, mais desesperado do que nunca, passou a bramir a

oração de São Marcos. Logo sentiu-se mudado, possuído de grande força, e viu surgir

dentro de si uma vontade inexplicável de derrubar, de esmagar e de destruir. O poder das

palavras da oração surpreendeu tanto o protagonista que ele chegou a pensar que havia se

transformado em uma grande fera. Ainda sem conseguir enxergar, correu e, sem saber

explicar como, chegou até a estrada. Em seguida, ouviu grunhidos de porcos: era o

chiqueiro de João Mangolô. Embora não entendesse direito de onde lhe vinha aquela

certeza, João/José compreendeu que o mal que o atingira originara-se da casa de Mangolô e

se dirigiu, furioso, para lá. Assim que chegou, ouviu o feiticeiro gemer e choramingar a um

canto, e partiu para cima do indivíduo. O protagonista já estava estrangulando o feiticeiro,

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quando voltou a enxergar, e, nesse momento, afrouxou as mãos do pescoço do homem.

Rapidamente, João/José viu João Mangolô tentar esconder, debaixo de um jirau, a bruxa de

pano e a faixa de tecido preta, que cobria os olhos do boneco. O protagonista exigiu

explicações sobre os acontecimentos, e o outro respondeu-lhe que amarrara a tira nas vistas

do boneco apenas para que ele não precisasse incomodar-se com a feiúra da própria

fisionomia de feiticeiro. João/José notou uma “ruindade mansa” nos olhos do feiticeiro e

decidiu entrar em acordo com ele: “você viu que não arranja nada contra mim, porque eu

tenho anjo bom, santo bom, e reza-brava... Em todo caso, mais serve não termos briga...”.

(1984, p. 268)

Após selar o acordo de paz com Mangolô, João/José estendeu-lhe uma nota de dez

mil-réis e saiu da casa do macumbeiro. O protagonista trazia as roupas em trapos, sangue e

esfoladuras por todo corpo, aspecto que espantava, sobretudo, as mulheres presentes no

local. Provavelmente, o aventureiro, que, em outros tempos, não acreditava em feitiçaria,

passou a acreditar, especialmente depois de ver o boneco com os olhos vendados e de

constatar o poder da oração de São Marcos. Percebe-se que a reconquista do sentido que

perdera fez com que ele passasse a valorizar mais a visão, de modo que a natureza,

contemplada após o episódio, ganhara novas cores, e a vida adquirira novo significado:

Na baixada, mato e campo eram concolores. No alto da colina, onde a luz andava à roda, debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um boi branco, de cauda branca. E, ao longe, nas prateleiras dos morros cavalgavam-se três qualidades de azul. (1984, p. 268)

A análise dos procedimentos narrativos empregados em “São Marcos” revela a

presença de um narrador-protagonista que empreende um processo de interiorização para

contar sua história e que se transforma, em determinadas passagens, em personagem-

ouvinte, ao escutar casos relatados por alguns personagens-narradores. A passagem de

João/José da posição de narrador-protagonista para o lugar de personagem-ouvinte ocorre

no momento em que recorda as histórias de advertência de Sá Nhá Rita Preta e de Aurísio

Manquitola quanto ao poder dos feiticeiros. Esses dois personagens são caracterizados

como indivíduos que viviam no local, acreditavam em feiticeiros e utilizavam a linguagem

coloquial típica da região. Observa-se que João/José narra suas próprias aventuras

posicionado em primeira pessoa e que os personagens-narradores relatam histórias que

aconteceram com outros, empregando, portanto, a terceira pessoa do verbo. Ressalta-se,

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ainda, que João/José conta ao leitor outras histórias, além da principal, como é o caso do

episódio em que os meninos quase mataram um professor por causa de um feitiço; da

passagem que explica sua aversão à companhia dos cães e do trecho em que lembra o duelo

verbal que travara com Quem-Será no bambuzal.

A maioria das histórias está centrada numa mesma temática: o universo da magia e

dos feiticeiros. Até mesmo a quadra que serve de epígrafe ao conto – “Eu vi um homem lá

na grimpa do coqueiro, ai-ai, / não era homem, era um coco bem maduro, oi-oi. / Não era

coco, era a creca de um macaco, ai-ai, / não era a creca, era o macaco todo inteiro, oi-oi”

–, está vinculada à feitiçaria, visto que o próprio autor afirma serem os versos parte de uma

cantiga de espantar males. Além disso, o eu que toma a palavra na cantiga não tem certeza

daquilo que enxerga, da mesma forma que o protagonista de “São Marcos” não consegue

enxergar o universo mágico dos feiticeiros. Não é por acaso, então, que João/José

rememora as histórias de Sá Nhá Rita Preta e de Aurísio Manquitola, pois, enquanto ele

conta ao leitor a história principal – o episódio em que sofrera a perda momentânea da

visão, em uma de suas visitas à mata das Três Águas, por ter insultado João Mangolô –,

lembra as histórias narradas pelos dois personagens antes mencionados sobre alguns

sujeitos que haviam passado por sérias dificuldades, exatamente, por terem afrontado um

feiticeiro.

A história que foge à temática da feitiçaria é aquela que se refere ao duelo verbal em

que o protagonista enfrentara Quem-Será. João/José parece contar essa história para

demonstrar que compreendia o poder e o significado das palavras, ou seja, para atestar que

entendia que “as palavras têm canto e plumagem”. No entanto, a força das palavras

contidas nas histórias de advertência que ouvira não tivera sobre ele qualquer efeito; não

fora suficiente para que desistisse de insultar os feiticeiros. Observa-se que o protagonista,

ao mesmo tempo em que ignorava as palavras de advertência de Sá Nhá Rita Preta e de

Aurísio Manquitola, não tinha, nem mesmo, noção do poder exercido pela oração de São

Marcos ou pelos atos do feiticeiro. Além disso, desconhecia o efeito que suas próprias

palavras poderiam provocar em João Mangolô, ignorância que o levou a insultar o

feiticeiro, quando passava diante da casa em que este morava. É importante salientar que,

somente depois da vivência dos fatos, ele passou a valorizar as histórias que ouvira e, por

isso, decidiu recontá-las, reproduzi-las.

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A comparação entre as estratégias narrativas adotadas no relato da história principal,

contada por João/José, e aquelas utilizadas no relato das histórias secundárias, de autoria de

Sá Nhá Rita Preta e de Aurísio Manquitola, demonstra, ainda, que o final dos enredos é

semelhante. Até mesmo a história do enfrentamento verbal entre João/José e Quem-Será no

bambuzal, contada pelo próprio protagonista, encerra-se da mesma maneira. Em todos esses

relatos, o desfecho não revela o destino dos personagens de forma clara. A preocupação dos

diferentes narradores está em mostrar o caráter de cada personagem, da imprudência de

João/José à prudência de Sá Nhá Rita Preta e de Aurísio Manquitola, e, mais do que tudo, a

exemplaridade de cada história.

3.3 O interior do contador de histórias

Como se afirmou anteriormente, os narradores em primeira pessoa podem assumir o

lugar de testemunhas ou de protagonistas. O primeiro caso pode ser observado em “Corpo

fechado”, a narrativa de João Guimarães Rosa em que o doutor, um forasteiro, é quem

conta a história de Manuel Fulô, da qual fora testemunha. Os narradores que se comportam

como o doutor em “Corpo fechado” apenas contam fatos ocorridos com outras pessoas,

embora se posicionem em primeira pessoa para relatá-los. Eles realizam um processo de

interiorização para contar sua história, porém não atingem o que se chama de monólogo

interior. Esses narradores, além de ambientarem as ações de suas histórias em um tempo

passado, concentram-se, sobretudo, no universo exterior de outro personagem, condições

que não contribuem para o surgimento do monólogo interior.

O segundo caso observa-se em “São Marcos”, a narrativa roseana cujo narrador

protagonista revive o desespero de ter perdido a visão, embrenhado em uma mata. Esse

narrador, ao relatar a história que protagoniza, em algumas passagens, mergulha no

monólogo interior, pois é possível afirmar, recorrendo às palavras de Reis (1997, p. 357),

que João/José “assume-se como destinatário imediato de reflexões e evocações enunciadas

na privacidade de sua corrente de consciência”, como se pode verificar no trecho abaixo:

Vamos ver o faz-não-faz. Estou aqui num lugar onde ninguém mais costuma vir. Se tento regressar tacteando e tropeçando, posso cair fácil no brejo e atolar-me até dois ou cinco palmos para cima do couro-cabeludo; posso pisar perto de uma

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jararacussu matadora; posso entranhar-me demais pelo esconso, e ficar perdido de todo. Onças de-verdade não há por aqui; mas um maracajá faminto, ou uma maracajá mãe, notando-me assim mal-seguro, não darão dois prazos para me extinguir. Mau! Só agora é que vejo o ruim de se estar no mato sem cachorro. (Rosa, 1984, p. 263)

Os narradores que se concentram no seu mundo interior para contar sua própria

história parecem estar sempre em ebulição, pois encenam, de acordo com Reis (1997, p.

358), o “diálogo [...] de um eu com suas próprias dúvidas, tensões, angústias e íntimas

vivências”. Observa-se que o narrador de “São Marcos”, além de empreender um diálogo

consigo mesmo, transfigura os elementos externos, como por exemplo, as espécies animais

e vegetais, em elementos internos – lembranças, sentimentos, sensações, medos, sonhos,

desejos, aspirações. Assim, o narrador traz o universo externo para o interior de si próprio.

Pode-se afirmar que o fato de o protagonista de “São Marcos” ser um grande explorador

das espécies animais e vegetais da região, ou do mundo exterior, transforma-o,

progressivamente, em um investigador de sua interioridade. Para o personagem, o mergulho

na mata é, também, um mergulho no interior de si mesmo. Ele fica, momentaneamente,

cego para o que está fora de si, e isso permite que, depois de recuperar a visão, esse exterior

surja, para ele, renovado. Em outras palavras, quanto maior sua percepção, seu

conhecimento e sua astúcia, maior a sua capacidade de autoconhecer-se.

O contador de histórias em primeira pessoa que interioriza o mundo externo para

relatar suas aventuras é, portanto, um narrador complexo. Ele complexifica-se à medida que

retira subsídios do universo exterior para compreender, ordenar, explicar sua interioridade,

como se observa no enfrentamento das dúvidas, angústias, tensões e vivências íntimas por

parte do protagonista de “São Marcos”. Tal aprendizado ocorre, por exemplo, quando o

protagonista entende que estar “num lugar onde ninguém mais costuma vir” pode ser uma

referência ao seu interior, onde ninguém pode, efetivamente, penetrar; quando ele detecta

perigos de morte e consegue evitá-los, pois nota que tanto pode “cair fácil no brejo e atolar-

se”, como pode “pisar perto de uma jararacussu matadora”; quando compreende que a

busca incessante pelo oculto, pelo secreto, pelo misterioso pode levá-lo à loucura e entende

que pode “entranhar-se demais pelo esconso, e ficar perdido de todo”; quando percebe que

os ditos populares têm fundamento não apenas nas ocasiões em que são tomados como

metáforas, mas também em seu sentido literal, como é o caso da expressão “o ruim de se

estar no mato sem cachorro”.

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O narrador que realiza o processo de complexificação para contar sua história

consegue avaliar o mundo externo, além de tornar-se capaz de elaborar suas vivências

íntimas com base no universo externo a si, tal como aconteceu com o protagonista de “São

Marcos”, que pôde explicar seus medos – da morte, da loucura e da solidão –, por meio de

elementos da natureza. Tal situação remete à afirmação de Mikhail Bakhtin, (2004, p. 22),

que, ao analisar as manifestações da linguagem tomando como fundamento as teorias

psicanalíticas de Freud, concluiu que “o pensamento é um espelho duplo, e [...] nunca

reflete apenas o ser de um objeto que procura conhecer; com este, ele reflete também o ser

do sujeito cognoscente”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo acerca da representação dos contadores de histórias em “Sarapalha”, em

“O burrinho pedrês”, em “Corpo fechado” e em “São Marcos”, quatro dos nove contos que

compõem Sagarana, foi realizado por meio da análise da caracterização dos personagens-

narradores e dos personagens-ouvintes; das técnicas narrativas utilizadas pelos contadores

de histórias – os personagens-narradores e o narrador principal – para estruturarem suas

narrativas e dos efeitos que esses narradores desejam ou podem provocar nos ouvintes com

quem interagem e em si mesmos.

Constatou-se, ao final da investigação, que são várias as formas de narrar uma

história, inúmeros os modos pelos quais os narradores estruturam suas narrativas, diversos

os motivos que impelem os seres reais e fictícios a contarem sua história e múltiplos os

efeitos que podem ser sentidos pelos envolvidos em um ato de contação de histórias.

Descobriu-se que os narradores não contam suas histórias apenas porque desejam expor sua

interioridade ou sua capacidade de observar o universo externo, mas também porque

buscam entender o mundo que os cerca, compreender a si próprios e compartilhar suas

experiências com os outros. Comprovou-se que, além de se estabelecer uma relação

ingênua entre o narrador e seu ouvinte, naturalmente assegurada por fatores como

confiança, intimidade e cumplicidade, os próprios conteúdos de suas narrações demonstram

possuir um caráter ingênuo, ou seja, aquilo que é contado torna-se único, particular e

valioso para aquele que conta.

Verificou-se que tanto o contador quanto o ouvinte beneficiam-se da prática de

contar histórias: o contador é motivado pela necessidade de falar e sente-se confortado pelo

efeito terapêutico que o ato produz; o ouvinte, por sua vez, pode se identificar com a

história e experimentar o alívio que o efeito catártico provoca. Ao mesmo tempo, ambos

sentem-se renovados pelo efeito estético, que os liberta, momentaneamente, dos

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constrangimentos e da rotina cotidiana. Evidenciou-se, ainda, que, enquanto algumas

histórias provocam efeitos instantâneos e efetivos nos interlocutores, outras podem passar

despercebidas aos ouvintes no momento em que são contadas e surtirem efeitos apenas

posteriormente. Constatou-se não só que um narrador pode assumir vários pontos de vista

para relatar sua história, mas também que há uma complexificação no discurso daquele que

se posiciona em primeira pessoa e que realiza um processo de interiorização para contar

suas histórias, em comparação ao que enuncia seu discurso empregando a terceira pessoa e

que procede à exteriorização para relatar suas aventuras.

Verificou-se, simultaneamente, que o contador de casos pode se comprazer em

mostrar que a história é uma construção sua, que ele possui livre arbítrio e que escolhe o

momento em que deve começar ou reiniciar a contação da mesma, sobretudo a fim de

prender a atenção do ouvinte. Descobriu-se, também, que, nos eventos de contação de

histórias representados em Sagarana, os narradores reproduzem narrativas relatadas por

outros narradores e que, não raro, essas narrativas giram em torno do mesmo eixo temático

que a história do narrador principal, dialogando com esta. Percebeu-se, por fim, que o final

dado às historias relatadas pelos personagens e pelo narrador principal, em geral, é

semelhante, e que os contadores preocupam-se mais com a exemplaridade de suas

narrativas e com o efeito ou aprendizado que daí advêm do que, propriamente, com o

destino dos personagens.

Em “Sarapalha”, foram destacados três contadores de histórias. Um deles é o

narrador principal, posicionado em terceira pessoa, que conta ao leitor a história dos dois

primos atacados pela malária, que acabaram rompendo a relação de amizade que os unia

por amarem a mesma mulher. Os outros dois são os próprios personagens da história,

Primo Ribeiro e Primo Argemiro, que se alternam, constantemente, na condição de

narrador e de ouvinte. Na posição de narrador, Primo Ribeiro narrava a Primo Argemiro o

episódio da fuga da ex-esposa Luísa e sentia os benefícios do efeito terapêutico de seu

relato; na condição de ouvinte, Primo Ribeiro ouvia de Primo Argemiro a história de uma

moça que fugiu com um homem muito bonito e vivenciava o efeito catártico, por ver-se

representado na história. Primo Argemiro fez, ainda, uma série de relatos secundários ao

Primo Ribeiro, a maioria dos quais desencadeados pelo primeiro com o intuito de envolver

o segundo em um emaranhado de histórias e de, assim, esconder deste o segredo que o

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atormentava: seu amor pela ex-esposa do primo. A última dessas histórias, por sua vez, foi

uma busca por redenção, a derradeira atitude de Primo Argemiro para aliviar seu

sentimento de traição diante do primo, mesmo que a revelação de seu segredo

comprometesse a relação entre ambos.

Em “O burrinho pedrês”, foram evidenciados quatro contadores. Um é o narrador

principal, também posicionado em terceira pessoa, que relata ao leitor a desventura de uma

tropa de boiadeiros, por ter confiado num burro ao fazer a travessia de um rio, em um ano

de enchente. Os outros narradores são Tote, Raymundão e João Manico, três personagens

que contam histórias secundárias enquanto conduzem o gado. Observou-se que todas as

histórias secundárias são típicas de boiadeiros e que se aproximam, em sua maioria, da

história principal, pelo fato de abordarem a temática da morte.

Em “Corpo fechado”, destacaram-se dois contadores de histórias, um narrador

testemunha, que conta ao leitor a história do “fechamento do corpo” de Manuel Fulô, e um

narrador protagonista, o próprio capiau, que relatou ao doutor o seu envolvimento com um

grupo de ciganos. Os dois posicionam-se em primeira pessoa para contar suas histórias,

porém concentram-se no mundo exterior para fazê-lo e remetem as ações de suas histórias a

um tempo passado. Observou-se que o narrador principal, o doutor, provavelmente vindo

da cidade grande, relatou sua história porque buscava entender o processo mágico que

proporcionou o fechamento do corpo do capiau; e que o matuto contou sua história ao

forasteiro porque queria libertar-se da fama de bobo, de infantil e de ingênuo. Talvez nesse

conto, mais do que em todos os outros, o narrador faça questão de evidenciar que a história

é uma construção sua e que ele é o “protagonista” da aventura da linguagem que se

processa durante o relato.

Em “São Marcos”, por fim, foram destacados três contadores, João/José, Sá Nhá

Rita Preta e Aurísio Manquitola. O primeiro é o narrador-protagonista, que, além de narrar

a história da perda momentânea da visão, vivenciada por ele em uma de suas visitas à mata

das Três Águas, relata o episódio do duelo verbal que travara com “Quem-Será” no

bambuzal. Os outros dois são personagens-narradores que contam histórias de advertência a

João/José pelo fato de o protagonista não esconder sua antipatia em relação aos

macumbeiros e descrer do poder da magia. Observou-se que João/José não só conta

histórias a fim de demonstrar sua interioridade, ou sua capacidade de apreciar e apreender o

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mundo externo, mas também porque precisa entender o motivo pelo qual perdeu a visão.

Em “São Marcos”, constatou-se, ainda, que algumas histórias não causam efeitos

instantâneos em seus ouvintes. Tal é o caso das histórias de advertência, contadas por Sá

Nhá Rita Preta e por Aurísio Manquitola a João/José, que não alcançaram um grau de

eficácia capaz de deter o protagonista em suas provocações aos feiticeiros, embora, mais

tarde, tenham sido, justamente, essas histórias que levaram o personagem principal a

lembrar-se da oração de São Marcos.

A comparação entre as estratégias narrativas utilizadas pelos narradores principais e

aquelas empregadas pelos personagens-narradores identificados nos quatro contos permitiu

descobrir que os narradores principais de “Sarapalha” e de “O burrinho pedrês”, bem como

o doutor de “Corpo fechado” e o protagonista de “São Marcos”, são indivíduos que

possuem erudição e que absorvem a sabedoria inscrita na cultura popular, além de

mesclarem a linguagem-padrão ao modo de falar dos sertanejos, que é submetido, nas

narrativas, a um processo de recriação. Por outro lado, os personagens-narradores – Primo

Ribeiro, Primo Argemiro, Tote, Raymundão, João Manico, Manuel Fulô, Sá Nhá Rita Preta

e Aurísio Manquitola – são sujeitos que vivem o dia-a-dia do sertão, que compartilham as

crenças do lugar e que utilizam a linguagem coloquial, também transfigurada pelo autor,

que acaba abolindo, em sua obra, as fronteiras entre prosa e poesia. Ao relatar suas

histórias, esses contadores mostram o mundo a que pertencem; revelam suas vivências, suas

particularidades, sua individualidade, enfim, divulgam aquilo que os torna únicos e que

marca sua identidade, e também experiências e aprendizados que adquirem um caráter

exemplar.

Por fim, a análise das estratégias narrativas adotadas nos quatro textos selecionados

e a investigação acerca da exterioridade e da interioridade dos contadores de histórias

revelaram que o narrador posicionado em primeira pessoa realiza um processo de

complexificação em relação ao narrador que se coloca em terceira pessoa. A comparação

entre as diferentes posições assumidas, sobretudo, pelos narradores principais de

“Sarapalha”, de “O burrinho pedrês”, de “Corpo fechado” e de “São Marcos” mostrou que

o narrador complexifica-se à medida que o grau de exposição de sua interioridade aumenta,

pois, além de o seu discurso voltar-se para o mundo exterior, passa a abarcar o interior do

próprio indivíduo. A complexidade do relato do narrador cresce à medida que decresce sua

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onisciência. Assim, enquanto os narradores principais de “Sarapalha” e de “O burrinho

pedrês” são oniscientes e concentram-se, principalmente, no mundo exterior para narrar

suas histórias, revelando, apenas, um pouco de sua interioridade; o doutor-narrador de

“Corpo fechado”, embora sirva apenas de testemunha para as aventuras de outro

personagem, envolve-se em maior grau nas ações e, ao vivenciá-las em posição secundária,

expõe suas reações diante dos fatos, mostrando distintos aspectos de sua interioridade. Já

João/José, em “São Marcos”, além de ser o protagonista de seu próprio relato, interioriza o

mundo exterior para contar suas aventuras, além de reviver, com significativa intensidade,

as angústias sentidas no momento em que perdeu a visão, atingindo o monólogo interior e

alcançando o ponto máximo de complexificação do narrador.

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