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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS XIV LICENCIATURA EM HISTÓRIA A representação sócio-cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do município de São Domingos na década de 1990. Campo de sisal, Fazenda Riacho do Cedro no município de São Domingos BA. Iracema Lopes Alves Conceição do Coité 2010

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Page 1: A representação sócio cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do município de são domingos na década de 1990

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV

LICENCIATURA EM HISTÓRIA

A representação sócio-cultural do cotidiano dos sisaleiros nas

manifestações culturais do município de São Domingos na década

de 1990.

Campo de sisal, Fazenda Riacho do Cedro no município de São Domingos – BA.

Iracema Lopes Alves

Conceição do Coité

2010

Page 2: A representação sócio cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do município de são domingos na década de 1990

2

Iracema Lopes Alves

A representação sócio-cultural do cotidiano dos sisaleiros nas

manifestações culturais do município de São Domingos na década

de 1990.

Monografia apresentada a Universidade

do Estado da Bahia – Campus XIV como

requisito parcial para obtenção do título

de graduado em Licenciatura em História

sob a orientação do professor Aldo José

Morais Silva.

Conceição do Coité

2010

Page 3: A representação sócio cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do município de são domingos na década de 1990

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AGRADECIMENTOS

À minha família que contribui decisivamente na minha formação acadêmica e pelo

aprendizado que me ensinaram e que levo pra toda a vida.

Ao meu noivo Edigenildo que esteve ao meu lado em todas as etapas da pesquisa de

campo, e pela força e incentivo dado nos momentos mais difíceis na realização do trabalho.

Aos meus colegas da turma de Licenciatura em História de 2006.1 do campus XIV da

UNEB que contribuíram significativamente nessa longa jornada de estudos e aprendizados,

pela qual passamos nesse período em que estivemos juntos. Em especial, a Vera Lúcia, Iara e

Milene parceiras de todas as horas que iniciaram comigo o projeto de pesquisa, o qual

originou o presente estudo.

Agradeço também a todos os professores que ao longo desses anos nos proporcionaram

aprendizados que serão levados por toda a vida. Em especial, a Aldo José Moraes pela

orientação e pela força dada para que esse trabalho viesse a ser concebido.

Ainda sou grata a Milena e muitas outras pessoas que me estimularam, apoiaram e

encorajaram na realização desse trabalho.

Por fim, agradeço a todas as pessoas que mediante seus depoimentos proporcionaram a

concretização desse trabalho com suas histórias de vida, compartilhadas e revividas nos

momentos da pesquisa.

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4

Eu sou da região esquecida

Onde homens de fibra sobrevivem da fibra

Onde o signo de libra a balança não pesa

Onde o arco-íris é do povo que reza

A semente e a terra com rara harmonia

O calor e seu uso uma arma letal

O falo: divisor de fronteiras da ação

Velhas de anágua e meninas de minissaia

Garotos de boné e homem de chapéu de palha

As tradições curvam-se agora mais que nunca

Mais o suor ainda é o mesmo

(...)

Moséis Neto, Poema “O sisaleiro”.

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5

RESUMO

Este estudo busca entender como a rotina de trabalho de sisaleiros se expressa em suas

manifestações culturais no município de São Domingos, cujas transformações e adaptações

foram mais acentuadas na década de 1990. Período este, que ocorreu várias mudanças na

sisalicultura e consequentemente causou um impacto nos costumes e modo de vida de muitos

trabalhadores e trabalhadoras rurais que sobreviviam dessa atividade econômica. Inicialmente,

exponho a chegada do agave no país até a sua introdução no semi-árido baiano. Após a

contextualização desse vegetal na região, abordo os diversos sentidos que foram atribuídos ao

termo sertão, bem como a construção de uma imaginada comunidade do sisal e a importância

que as canções populares possuem na vida dos sertanejos/nordestinos. E, finalizo o trabalho

com a análise de músicas, das manifestações em estudo, presentes tanto no local de trabalho

como nos ambientes de festas e lazer dos sisaleiros e sisaleiras são-dominguenses.

Palavras-chave: manifestações culturais – trabalho – sisal – São Domingos.

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6

ABSTRACT

This study search to understand as the routine of sisaleiros work it is expressed in your

cultural manifestation in the municipal district of São Domingos, whose transformations and

adaptations were more accentuated in the decade of 1990. Period this, that happened several

changes in the sisalicultura end consequently it caused an impact in the habits and way of

many workers that survived of that economical activity. Initially, I expose the arrival of the

agave in the country until your introduction in the semi-arid baiano. After a contextualização

on the plant of the area, I approach the several senses that were attributed to the term interior,

as well as an imagined community‟s of the sisal construction and the importance that the

popular songs possess in the life of the setanejos/nordetinos. I conclude the work with it

analyzes of music, of the manifestations in study, presents so much in the work places as in

the atmospheres of parties and leisure of the sisaleiros and sisaleiras sãodomiguense.

Key words: cultural manifestations – work – sisal – São Domingos.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................9

CAPÍTULO I – Panorama Socioeconômico da Sisalicultura

no Nordeste Baiano ................................................................................................14

1.1 Histórico sobre a cultura do sisal ......................................................................... 14

1.1 As relações sociais de produção no coração da sisalândia ........................................17

1.2 As influências do capital externo na economia sisaleira .......................................... 23

1.3 Fibras de agave: cordas do progresso ................................................................... 25

CAPÍTULO II – Manifestações artísticas e musicais ................................................ 28

no sertão nordestino.

1.1 Cultura popular nos sertões do Brasil .................................................................... 28

1.3 O sertão como lugar ........................................................................................... 33

1.4 As canções musicais na vida do sertanejo .............................................................. 37

1.5 Cultura e identidade regional no semi-árido baiano ................................................. 38

CAPÍTULO III – Sisal e Sociedade Rural:

Manifestações Culturais no Território do Sisal ........................................................ 45

1.1 A música popular no cotidiano do sisaleiro ........................................................... 45

1.2 Grupos de Reisados no município de São Domingos .............................................. 54

1.3 Cantadeiras de roda ...........................................................................................63

1.4 Entre rezas e brincadeiras ................................................................................... 69

1.5 Perdas ou permanências? ................................................................................... 72

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 77

REFERÊNCIAS ....................................................................................................80

FONTES .............................................................................................................. 84

ANEXOS .............................................................................................................. 85

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INTRODUÇÃO

O agave no Nordeste Baiano tornou-se símbolo de sobrevivência para muitas famílias

que não possuíam alternativa de emprego. A partir da década de 1940 com sua exuberância na

paisagem local, atraia muitos olhares e expectativas de dias melhores para a população de um

modo geral, pois o “verde do agave” seduzia, quebrando a rotina da paisagem local marcada

por vegetais acinzentados e retorcidos. Todavia, a sisalicultura não trouxe somente esperança

e prosperidade para a região, também se mostrou agressiva nas condições de trabalho e

alterou profundamente o cotidiano de trabalhadores e trabalhadoras rurais.

Dessa forma, o propósito desse estudo consiste em compreender como a rotina de

trabalho dos sisaleiros se expressa em suas manifestações culturais no município de São

Domingos. Como teria originado essas manifestações no ambiente de trabalho? Por que os

lavradores tentavam veemente transmitir seus costumes nessas expressões culturais? Como

essas manifestações resistiram e/ou transformaram-se ao longo do tempo nos campos do

município? Enfim, como essas canções populares retratam os costumes de trabalhadores

rurais das comunidades em estudo?

Para estudar os significados que os sisaleiros e sisaleiras atribuíram ás manifestações e às

experiências no trabalho com o agave, utilizei fontes impressas e orais. Com relação aos

documentos escritos consultei o jornal “Folha do sisal”, editado pela APAEB, a revista

“Territórios rurais” e as Atas do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da Agricultura Familiar

de São Domingos (SINTRAF). Assim, no primeiro momento procurei informações e dados

sobre as condições e relações de trabalho da sisalicultura no município.

No que diz respeito às fontes orais, busquei conversar com pessoas que possuíam uma

experiência de muito tempo nos campos de sisal e que tivessem vivido na época do auge das

manifestações culturais no setor rural de São Domingos. Pois, este fator era primordial para

realização do estudo da temática referente à década de 1990.

Usei principalmente os registros orais porque os considero fundamentais para a

elaboração do discurso historiográfico. Heródoto, considerado o pai da história, já reconhecia

a importância de ouvir as pessoas que vivenciaram os fatos narrados. Contudo, este

procedimento gerou críticas mesmo entre historiadores gregos e, no mundo moderno, os

positivistas denunciavam a subjetividade na construção do conhecimento.

Essa discussão - objetividade/subjetividade – ainda permanece nos debates acadêmicos.

Para Nunes “a pretensa vontade de traduzir o passado para o presente, realimentada no mundo

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moderno pelo mito da razão e da comprovação, possibilitou que as fontes orais fossem

desqualificadas enquanto documentos”. Ela ainda comenta que “delimitaram-se as fronteiras e

se estabeleceram as dicotomias: objetividade/subjetividade, verdade/mentira,

ficção/realidade”.1

Diante disso, foi a partir dos Annales que a noção tradicional de documento passou a ser

questionada, apontando para a inexistência de hierarquias entre as fontes, sejam escritas ou

orais, o que permitiu que a história oral readquirisse o status de documento no discurso

historiográfico.

Além do interesse pessoal por este tema, percebe-se ainda a sua importância para a

historiografia local, pois existem poucos textos sobre este assunto no referido município e

região. Tais trabalhos, comumente, foram produzidos por economistas como Humberto

Miranda do Nascimento, cuja sua preocupação foi a de estudar a formação e atuação da

Associação de Pequenos Agricultores do Município de Valente (APAEB) e muito

particularmente as estratégias de convivência com o semi-árido baiano. 2

Outra obra de grande significância para compreensão da agaveicultura no Nordeste

Baiano é o livro “O sisal baiano: entre a Natureza e Sociedade: uma visão multidisciplinar”,

organizado pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, e o livro de José Filho Ramos,

“Sisal: sua história entre nós”, imprescindíveis para a realização de estudos sobre o sisal na

Bahia. Embora algumas dessas obras busquem um diálogo com a história social, nota-se que,

de um modo geral, estas abordagens enfatizam mais os aspectos produtivos, não priorizando

itens relacionados à cultura dos trabalhadores, ás suas experiências cotidianas, enfim, as

expressões culturais nesses ambientes. “Uma história de baixo para cima”, como escreveu

Eric Hobsbawm. 3 Ressaltando os costumes de sujeitos ocultos, cujas histórias não aparecem

apenas como fragmentos de vidas em si mesmas, mas em uma trama ampla: as histórias dos

homens e mulheres interligados às cordas do agave e ao grande emaranhado de costumes

expressos diariamente e perpetuados por gerações.

Assim, realizo os estudos presentes neste trabalho dentro de uma perspectiva cultural da

história social. Desse modo, em uma área muito ampla fazem-se necessário expor alguns

teóricos que auxiliaram no desenvolvimento dessa investigação. Peter Burke, ao falar sobre

1 NUNES, Mariângela de Vasconcelos. Entre o capa verde e a redenção: A cultura do trabalho com o agave no

Cariris Velhos (1937-1966, Paraíba). Universidade de Brasília – UNB. Programa de Pós-Graduação em História,

Brasília, 2006, p. 27. 2 NASCIMENTO, Humberto Miranda do. Conviver o sertão: origem e evolução do capital em Valente/BA.. São

Paulo: Annablume, 2003, p.35. 3 HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo; Companhia das Letras, 1998, p.216.

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cultura, resume que esta por sua vez só pode ser definida em termos da nossa própria cultura.4

O fato é que o conceito de cultura vem mudando ao longo do tempo. Para os historiadores, o

termo cultura, no século XIX, estava ligado à arte, à literatura, às idéias e aos sentimentos.

Tratava-se de uma definição extremamente elitista desta categoria. Portanto, a idéia de cultura

era extremamente restrita e baseada na noção de alta cultura, assim, sendo desprezada a

cultura dos grupos subalternos.

No entanto, Nunes comenta que “esta corrente sofreu severas críticas, pois ela não só

ignorava a produção cultural dos segmentos sócio-economicamente mais frágeis como

também não dialogava com a cena econômica-política-social na qual estava inserida a

cultura”. 5 O historiador Edward Thompson, no século passado, apresentou outro conceito de

cultura, no qual a definiu como um conjunto de ações que constituem o cotidiano, as

experiências dos sujeitos, ressaltando o seu papel na história, as suas vivências. 6

Nas últimas décadas do século XX, uma nova dimensão de história cultural foi

consolidada ficando conhecido como “nova história cultural”, cujo objetivo é compreender o

sentido que os homens, em diferentes momentos atribuíram, ao mundo, como disse o

historiador Roger Chartier: “A História Cultural, tal como a entendemos, tem como principal

objeto identificar no mundo como, em diferentes lugares e momentos, uma determinada

realidade social é construída, pensada, dada a ler”.7 Esta vertente se aproxima da antropologia.

Tal aliança baseou-se na incorporação, por parte dos historiadores, da dimensão simbólica.

Assim como os antropólogos, os historiadores começaram a se referir à cultura no plural,

atacando a noção de hierarquização cultural. Ademais, o contato com aqueles possibilitou

uma redefinição do significado de cultura, que passou a ser entendida de uma forma mais

ampla, como disse Peter Burke:

Em outras palavras, estendeu-se o sentido do termo para abranger uma variedade

muito ampla de atitudes do que antes não apenas a arte mas a cultura material, não

apenas a escrita, mas a oral, não apenas o drama mas o ritual, não apenas a filosofia

mas as mentalidades das pessoas comuns. 8

4 BURKE, Peter. Variedades da história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p.13.

5 NUNES, op. cit.,2006, p. 18.

6 THOMPSON apud NUNES, ibdem, p.18.

7 CHARTIER, Roger. A história cultural, entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro:

Betrand, 1982. 8 BURKE,. op. cit., 2000, p.13.

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Graças a este diálogo, os historiadores também aprenderam a valorizar o uso da memória

como interpretação do passado. O recurso da memória ainda nos permite ultrapassar as

fronteiras do individual, adentrando assim em um território amplo, como destacou Maurice

Halbawachs:

É necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou noções comuns

que se encontrem tanto no nosso espírito como nos dos outros, porque elas passam

incessantemente destes para aqueles e reciprocamente, o que só é possível se

fizerem e continuarem a fazer parte de uma mesma sociedade. Somente assim,

podemos compreender que uma lembrança passa a ser, ao mesmo tempo,

reconhecida e reconstruída. 9

Nesta compreensão, foi possível, a partir das memórias individuais, entender como os

trabalhadores rurais se organizavam cotidianamente, como e quando realizavam as

manifestações culturais na comunidade, como viviam suas frustrações, alegrias, enfim, se

integravam às rodas da história.

Sendo assim, proponho analisar a representação das experiências sociais dos sisaleiros

através das suas manifestações culturais do município de São Domingos na década de 1990.

Este trabalho consta três capítulos.

No primeiro, estudei a vida dos trabalhadores rurais no referido município, com a

introdução do sisal na região, mostrando como viviam os lavradores, como organizavam seu

trabalho e seu cotidiano, fornecendo assim, paisagens históricas da região sisaleira e da cidade

em estudo, que serviram para iluminar a compreensão dos capítulos seguintes.

No segundo capítulo, trato do significado que ao longo do tempo foi sendo atribuído ao

termo sertão. E mais especificamente aos significados e olhares que se direcionavam para o

sertão nordestino. Além disso, abordo a imagem que foi construída por muito tempo a

respeito do semi-árido baiano e, após o desenvolvimento da agaveicultura e a conseqüente

construção de uma imaginada comunidade do sisal. Exponho, também, brevemente a

significância que as canções musicais possuem na vida do sertanejo.

Já no terceiro capítulo, trabalhei com as manifestações culturais presentes na vida dos

sisaleiros e sisaleiras no Território do Sisal e, especialmente, em São Domingos. Nessa etapa,

pode-se entender o cotidiano dessas pessoas que expressam nas “rezas e brincadeiras”, os

costumes e o cotidiano de trabalho como forma de resistência à situação que lhes era imposta.

9 HALBAWACHS apud NUNES, op. cit., 2006, p.20.

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12

Delimitei como marco temporal a década de 1990 em virtude das bruscas mudanças que

ocorreram no manejo com o sisal, bem como as constantes flutuações de preço no mercado

interno e externo. Todavia, o que mais pesou nessa escolha foram as intensas transformações

ocorridas nas manifestações, na área rural, nesse período em relação às décadas anteriores.

Portanto, como afirma Ecléa Bosi: “feliz o pesquisador que se pode amparar em

testemunhos vivos e reconstituir comportamentos e sensibilidades de uma época!”. 10

Sendo

assim, o conhecimento pautado na oralidade nos proporciona hoje ter acesso às lembranças

destes indivíduos que em suas narrativas nos ensinam sobre os festejos que envolvem:

músicas, danças, trabalho, alegria, distração... Enfim, são costumes herdados de longas

gerações e/ou reelaborados dentro de um novo contexto histórico.

10

BOSI, Ecléa. O Tempo vivo da Memória; ensaios de psicologia social. 2º ed. São Paulo: Ateliê editorial, 2004,

p.16-17.

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CAPÍTULO I – PANORAMA SOCIOECONÔMICO DA

SISALICULTURA NO NORDESTE BAIANO.

O sisal representa um recurso perfeitamente

adaptado às condições climáticas do semi-árido e de

difícil substituição, já que a cultura se constitui na

maior fonte de produção e de subsistência da região.

Maria Auxiliadora da Silva

Neste capítulo encontra-se um panorama geral da introdução da sisalicultura no Brasil e

na Bahia. Logo após, trato das relações de trabalho e as condições de vida dos sisaleiros, bem

como as crises cíclicas do agave e sua expansão na área de estudo, principalmente na década

de 1990. Posteriormente, retrato algumas possibilidades de convivência com o semi-árido e

transformações socioprodutivas na região sisaleira.

1.1 Histórico sobre a cultura do sisal

O sisal (Agave Sisalana) 11

é uma planta originária de península de Yucatan, no México.

As várias espécies dessa planta foram usadas pelos índios em fabricação de objetos

domésticos e de bebidas alcoólicas, tais como a tequila, o pulque e o mexical. Dessa forma,

esse vegetal caracteriza-se como resistente à seca, e por isso que no Nordeste encontrou lugar

propicio para a sua implantação. Por ter sido bem adaptada à região semi-árida era

considerada como uma planta nativa.

Benedita Pereira Andrade 12

, em trabalho de síntese sobre a implantação do sisal na

Bahia informa que as primeiras mudas foram trazidas da Flórida (EUA) pelo industrial

Horácio Urpia Junior no começo do século, precisamente em 1903. Nesse mesmo ano,

algumas mudas foram levadas para a Bahia principalmente por sua beleza e sua utilidade para

fazer cercas que impedia o gado de alcançar as plantações. Das mudas que chegaram ao

território baiano, algumas foram enviadas para a Paraíba em 1911, e foi nesse estado que, a

11

O agave (que vem do grego agavos = magnífico admirável) é um gênero de plantas de consistência herbácea e

escapo floral saliente, que dá origem a várias espécies fibrosas, entre elas o sisal, que é uma fibra dura foliar.

Alias, há somente o conhecimento de duas espécies de Agave com valor comercial: a sisalana e a foucroydes.

Quando menciono à denominação genérica “sisal”, estarei falando da espécie sisalana. 12

ANDRADE, Benedita Pereira. Sisal e Sociedade Rural: o caso de Valente e Santa Luz - Bahia. In: LAJES,

Creuza Santos; ARGOLO João Almarque; SILVA, Maria Auxiliadora (org.). O sisal baiano: entre natureza e

sociedade: uma visão interdisciplinar. Salvador: UFBA _ Instituto de Geociência, 2002, p. 71-74.

.

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14

partir de 1937, o sisal passou a ser cultivado com finalidade econômica, enquanto na Bahia,

isso ocorreu em 1939/1940, trinta e seis anos após a iniciativa pioneira de Horácio Urpia.

No nordeste baiano, o sisal obteve maior produtividade em virtude do clima e solo

favorável ao cultivo, distribuindo-se especialmente por 20 municípios que posteriormente

passam a integrar o Território do Sisal. Voltado, sobretudo para a exportação, após passar por

um beneficiamento, o sisal, pouco a pouco, tornou-se a atividade econômica da região.

“Disseminaram-se assim as primeiras sementeiras do „Agave Sisalana‟ sem que Pacífico e os

demais roceiros conhecessem as legítimas riquezas da variedade botânica que aparecia nos

sertões”. 13

Esse vegetal começa a ser cultivado em Valente na década de 1920, sendo este município

pertencente, na época, a cidade de Conceição do Coité. O Sr. Pacifico José dos Santos foi o

pioneiro na plantação de agave na região, mas, inicialmente a sua utilidade era apenas como

adorno ou com finalidade de servir de cerca para separar as propriedade e guardar os

animais.14

A partir disso, ocorre uma progressiva ampliação desse plantio na região e,

consequentemente o beneficiamento da fibra do sisal para a fabricação de diversos produtos,

sendo estes exportados até mesmo para fora do país. Diante da falta de emprego que atingia

grande parte da população, fazia-se necessário o cultivo de uma lavoura permanente e que

resistisse às inclemências das secas.

No final da década de 1930 e início de 1940 houve por parte do governo estímulos

iniciais para o cultivo do sisal, o qual se espalhou pelas terras semi-áridas do país. O

Ministério da Agricultura e do governo do Estado ofereciam prêmios para os maiores

plantadores e beneficiadores, essas atitudes contribuíram significativamente para o aumento

das áreas plantadas. “Em poucos anos, as plantações chegaram até perto do rancho.

Expulsando a hortinha, as galinhas e a mandioca”. 15

No entanto, com esses estímulos iniciais a produção ficou nas mãos de pequenos e médios

produtores, e o governo ausentou-se do apoio esperado para a experimentação e pesquisa com

a planta. Além disso, concessão de créditos para a lavoura era praticamente inexistente.

Nenhuma tecnologia foi oferecida aos agricultores para compensar o seu esforço. Para extrair

a fibra, o sertanejo recorreu a sua capacidade criativa: inventou o farracho, instrumento

rústico, rudimentar, que faz lembrar o tempo da pedra lascada, mas que serviu para os

13

RAMOS, José Filho. Sisal: sua história entre nós. Salvador: S.A. Artes Gráficas, 1965, p. 11. 14

GALVÃO, Almiro. Valente, estrela do Semi-Árido. Valente, abril, 2004, p. 15-16. 15

LIMA, Jorge Pinto. Correio Rural. São Paulo, 1952, p. 50.

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15

primeiros desfibramentos, até que foi substituída pelas máquinas atuais, apelidadas de

paraibanas, dada sua origem, as quais têm decepado dedos e mãos dos operadores, gerando a

triste multidão dos mutilados do sisal. Quanto à intervenção governamental Nonato Marques

comenta:

Tudo foi feito na base da improvisação, enquanto o Governo modorrava na sua

inércia, à espera dos tributos arrancados de um produto embebido do suor de

milhares de nordestinos espoliados pela especulação violenta dos intermediários

gananciosos. [...] Mas mesmo assim, produtores fizeram com que, a partir de 1946,

o sisal passasse a figurar nas estatísticas baianas para delas jamais sair. 16

Mas, mesmo assim, produtores fizeram com que, A partir de 1946, as exportações

aumentassem substancialmente, favorecidas, após a II Guerra Mundial, pelo aumento de

mercados, devido às necessidades geradas pelo conflito e, sobretudo, devido ao incremento da

agricultura na América do Norte e nos novos mercados da Europa Oriental e Ocidental. Em

1946, o Brasil tornou-se exportador de sisal e, em 1951, assumiu a vice-liderança na produção

mundial. A Paraíba ocupava o lugar de maior exportadora do Brasil até a década de 60,

quando é superada pela Bahia. Nessa mesma década houve um período de alta de preços,

provocada pelos acontecimentos políticos que explodiram na África, mas logo em 1965, o

mercado mundial de fibra mergulhou em profunda crise, com a redução das colheitas e

“devido ao surgimento de sucedâneos sintéticos derivados do petróleo (...) o avanço da

indústria química e a produção de grande escala reduz substancialmente o preço da fibra

sintética, inviabilizando a indústria periférica do sisal”. 17

Apesar da relevância econômica e social do sisal, a exploração da cultura, durante o

período em questão, foi realizada com baixo índice de modernização e capitalização,

resultando em acentuado declínio, tanto da área plantada quanto da produção. Um outro fator

limitante é o alto custo de produção, devido ao baixo aproveitamento da planta.

Assim, diante da contextualização do sisal no Brasil e na Bahia fazem-se necessário

abordar brevemente a introdução desse vegetal na cidade em estudo. O território atual que se

configura no município de São Domingos, junto com Valente, pertencia primeiramente a

Conceição de Coité. Desse modo, quando Valente emancipa-se em 1958, o povoado de São

Domingos passa a pertencê-la. Mas, antes mesmo da passagem do território são-dominguense

para o município de Valente já havia evidências da sisalicultura nas terras dessa localidade,

16

MARQUES, Nonato. Histórico sobre a cultura do sisal. In: LAJES, Creuza Santos; ARGOLO João

Almarque; SILVA, Maria Auxiliadora (org.). O sisal baiano: entre natureza e sociedade, Salvador, 2002 p. 16. 17

Estudo da Base Econômica Territorial: Território sisal, Bahia, Jun./2005.

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aumentando sua produtividade nas décadas seguintes. Na Fazenda do Sr. Pacifico, localizada

em Valente, havia alguns trabalhadores da referida comunidade que já trabalhavam com o

sisal para fins econômicos. E assim, esses sisaleiros aprendiam as técnicas e o modo de

cultivar a planta para depois trazerem para os campos de sisal, do então povoado, em que

centenas de famílias passaram a depender fortemente dessa atividade econômica. 18

1.2 As relações sociais de produção no coração da sisalândia

O semi-árido baiano ocupa a região central do estado, representando 60% da superfície

territorial, abrangendo 258 municípios. 33 destes municípios compunham a chamada região

do sisal, que recebe esta denominação devido a sua principal atividade econômica. Essa

região enfrentou um período de decadência após os anos 70 em que as pedreiras, a pecuária

extensiva e a agricultura familiar de subsistência, ficam sujeitas aos longos períodos de seca

que ciclicamente atingem a região, agravando os problemas sociais. 19

No sertão da Bahia destaca-se um terreno de grande potencial para o cultivo desse

agave, conhecido como sisalândia. Esse território apresenta características peculiares em

relação às demais localidades do estado, diferenças estas referentes às relações sociais de

produção e intenso cultivo do sisal. Portanto, o termo sisalândia nas palavras de Jacques

Hubschmar caracteriza-se da seguinte forma:

Essa designação é, às vezes, aplicada ao coração do espaço sisaleiro, à área

sertaneja no qual se concentra o grosso da produção de fibra. Trata-se, de Serrinha,

particularmente da parte ocidental, que se estende entre os rios Itapicuru, ao Norte,

e Jacuípe, ao sul, onde se encontram os dois municípios vizinhos de Valente e

Santa Luz. Na verdade, essas terras de sisal são, também, arquétipos do sertão, que

se assemelham a um espaço relativamente limitado, mas com os mesmos traços

característicos do interior do Nordeste. 20

Desse modo, o município de São Domingos encontra-se localizado nesse espaço de

grande produção do agave, o qual foi por muito tempo distrito da cidade de Valente

18

Depoimento do Sr. Manuel Moséis de Oliveira, 69 anos, neto do Sr. Pacifico José dos Santos. 19

RAMOS, Alba Regina; NASCIMENTO, Antonio Dias. Características culturais. Resgatando a infância. A

trajetória do PETI na Bahia. Salvador: MOC/OIT/UNICEF, 2001. 20

HUBSCHMAR, Jacques. Olhar sobre o sisal: As pesquisas e a sociedade no sertão sisaleiro da Bahia. In:

LAJES, Creuza Santos; ARGOLO João Almarque; SILVA, Maria Auxiliadora (org.). O sisal baiano: entre

natureza e sociedade, Salvador, 2002, p.2.

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17

emancipando-se apenas em 1989, localizando-se numa distância de 261 km da capital do

estado – Salvador. Este município na década de 1990 possuía 10.276 habitantes, sendo sua

população rural correspondente a 66,5% deste total (IBGE, 1991). O Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH) nesse período é considerado muito baixo – 0, 531, quando

comparado à média nacional.

A região sisaleira é também denominada como Território do Sisal. E por essa

denominação entende-se que “território é o espaço que se estrutura em virtude de uma ação

social e que compreende os aspectos econômico, social e político. (...) os territórios são

compreendidos por ações sócio-políticos regionalizadas”. 21

Nesse sentido, Brandão em seu

livro “Território e Desenvolvimento” faz uma crítica e discute a questão do desenvolvimento

local e o “localismo” que muitas vezes posto como panacéia para o problema do

desenvolvimento nacional. Na sua concepção, a análise regional deve estar pautada numa

abordagem territorial. O grande desafio é encontrar uma maneira de tratar ao mesmo tempo e

numa perspectiva multiescalar as heterogeneidades estruturais de um país subdesenvolvido e

as diversas alternativas de avanço social, político e produtivo. E observa que:

Nunca as diversidades produtivas, sociais, culturais, espaciais (regionais, urbanas e

rurais) foram usadas no sentido positivo. Foram tratadas sempre como

desequilíbrios, assimetrias e problemas. A equação político-econômica imposta ao

país pelo pacto de dominação oligárquica das elites, cuja lógica aponto muito

sinteticamente neste texto, travou o exercício da criatividade “dos de baixo”,

procurando impedir sua politização. 22

Brandão enfatiza, então, a necessidade de construção democrática de estratégias de

desenvolvimento e aponta para os limites teóricos que desafiam a noção de desenvolvimento

territorial. Dentro dessa idéia de território como local de redes socioespaciais, é que são

buscados pelas organizações, agentes públicos e atores sociais novas perspectivas de análise

para o Desenvolvimento Rural. Nesse contexto, destacam-se no território do sisal as ações da

Associação de Pequenos Agricultores do Estado da Bahia (APAEB/Valente) e o Movimento

de Organização Comunitária (MOC), ambos os mecanismos responsáveis por transformações

socioprodutivas nos municípios do nordeste baiano e na vida de muitos sisaleiros da região.

A APAEB surge da luta contra a cobrança extorsiva do ICM aos pequenos produtores

rurais, com a atuação regional de defesa econômica e ação sócio-politica. Esse período

21

Estudo da Base Econômica Territorial: Território sisal, Bahia, Jun./2005. 22

BRANDÃO, A. C. Território e desenvolvimento: as múltiplas escalas entre o local e o global. Campinas, SP:

Editora da Unicamp, 2007, p.205.

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18

também foi marcado por constantes crises e baixa do preço do sisal. Algumas das mudanças

promovidas pala instituição foi a introdução da batedeira comunitária, adoção de uso racional

do solo e da propriedade, visando o aumento da produtividade. Em 1993, a APAEB funda a

cooperativa de crédito que opera, além do significado econômico, produz um valor simbólico

e pedagógico muito importante. 23

Dessa forma, após a sua estruturação, passa a atuar em

outros municípios circunvizinhos rompendo as fronteiras de Valente, onde encontra instalada

sua sede.

Com as ações desse organismo na região sisaleira houve mudanças no modo de trabalhar

com o sisal. O sisaleiro Luís da Silva relata que “existe uma mudançinha sim, por que de um

certo dia pra cá a gente tá aprendendo até a trabalhar mais, inclusive, através de alguns

cursos que a gente tomou na APAEB espalhar o resíduo que ninguém espalhava. Hoje

também é... fazer a „silagem do sisal‟24

e utiliza pra gente ter um burrego de corte dar ração

no coxo”.

As ações do MOC também se realizam com grande eficácia na região. Criado em 1967, a

partir do trabalho da Igreja Católica, esse organismo busca incentivar a emancipação social e

a criação de grupos organizados para o exercício da cidadania. O desenvolvimento de

atividades de apoio e fortalecimento de associações comunitárias rurais e urbanas, a

contribuição do desenvolvimento sustentável da região sisaleira e o auxilio para a atuação

qualificada na gestão de políticas publicas são algumas dos trabalhos do MOC. Na

perspectiva de convivência com o semi-árido, a instituição desenvolveu os programas de

“Água e segurança alimentar”, “Agricultura familiar”, “Comunicação”, “Crianças e

adolescentes”, “Educação do campo”, “Gênero”, e “Políticas publicas”. 25

A região de Valente/São Domingos e Santa Luz a sisalicultura contribuiu decisivamente

para manter, nesses municípios, milhares de famílias sertanejas que, na ausência do sisal

engrossariam os fluxos migratórios em direção as grandes cidades. Alguns dados mostram de

que forma eram ocupadas as terras com o plantio do agave sisalana.

23

SANTOS, Vilbégina Monteiro dos. A construção de uma comunidade imaginada do sisal. In: V ENECULT,

Faculdade de Comunicação/UFBA, maio de 2009, p.6. 24

Consiste numa técnica denominada de ensilagem que utiliza o resíduo da fibra do sisal (mucilagem), que foi

anteriormente desfibrado no “motor”, para alimentar criações de gado caprino e ovino. A ensilagem pode ser

feita ma forma de monte, sobre o solo, coberto com lona; ou em silos do tipo trincheira; ou, ainda, em sacos

plásticos, caso em que é necessário que se faça a compressão do material ensilado, com vista a expulsar o ar

contido na massa. Ensilada em regiões semi-áridas, 10 dias são suficientes para completar o processo de

fermentação, sendo então, adicionado mais substâncias transformando-se numa ração nutritiva para alimentar os

animais da região sisaleira. 25

MOC - Homepage. Disponível em: www. moc.org. br. Acesso em nov. - dez. de 2009.

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19

Em 1975, o sisal foi uma das principais bases de sustentação da economia regional,

responsável pela subsistência de 50% a 60% da população e pela permanência do

homem no campo [...] A ocupação do solo com o sisal era de ordem 49,71% em

Valente/São Domingos e 21,08% em Santa Luz. 26

A cadeia produtiva do sisal compreende uma numerosa quantidade de pessoas, no qual

abriga sisaleiros desde crianças, mulheres e homens que desempenham diversas funções no

manejo com este vegetal. O processo inicia-se com atividades de manutenção das lavouras,

colheitas, desfibramento e beneficiamento da fibra e termina com a industrialização e a

confecção de artesanatos. Para cada função há uma ou mais pessoas para desempenhá-la,

contudo no campo é realizado a plantação e o desfibramento do sisal. O sucesso do vegetal na

região deve-se a intensa procura do mercado interno e externo pela fibra dessa planta sendo

utilizada para a fabricação de cordas de todos os tipos (cabos marítimos, cordas, cordões e

outros produtos similares), diversos tipos de tapetes, sacolas e outros artigos domésticos.

A pecuária é uma atividade econômica típica do interior brasileiro, no que se refere a

questão agrária, no entanto devido as condições climáticas adversas para a criação de gado em

larga escala no sertão baiano prevalece a agricultura de subsistência e predominantemente o

cultivo do sisal. Para Adaltina Araújo Santana27

é possível plantar outros tipos de vegetações

nas terras da região sisaleira, todavia salienta que “vem o plantio do milho, feijão, quiabo,

abóbora, mas quando tá chovendo... o que permanece mesmo é o sisal”. A escassez de chuva

na região reduz significativamente as alternativas de emprego oferecidas aos trabalhadores

rurais. Por isso, deve-se levar em conta um conjunto de fatores que influenciam no cotidiano

desta população, que por sua vez acarreta no desenvolvimento econômico, social e cultural da

região sisaleira.

Nos minifúndios (áreas de 1 a 10 há), o fracionamento da propriedade é constante. Toda

a família ocupa-se dos trabalhos agrícolas e muitos trabalham em outras propriedades para

aumentar a renda familiar. O sisaleiro Luis da Silva relata que “o que realmente existe aqui é

o motô de sisal ou quando algum fazendeiro quer pagar uns dias de roça, mas é muito

pouco.” Diante disso, percebe-se que mesmo trabalhando no manejo com o agave a renda não

se torna suficiente para manter a família, sendo então necessário complementá-la com

atividades extras, até mesmo devido aos constantes períodos de seca nos quais os motores de

26

MOREIRA, Maria Auxiliadora. Nova dinâmica de ocupação do solo no sertão sisaleiro da Bahia. In: LAJES,

Creuza Santos; ARGOLO João Almarque; SILVA, Maria Auxiliadora (org.). O sisal baiano: entre natureza e

sociedade., Salvador, 2002, p.21. 27

Ex-trabalhadora do sisal, atualmente funcionária do Sindicato de Trabalhadores de São Domingos.

Page 20: A representação sócio cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do município de são domingos na década de 1990

20

sisal param em virtude da escassez da planta e do seu baixo desenvolvimento e

aproveitamento na cadeia de produção.

A cultura do sisal é uma atividade que exige uma grande aplicação de mão-de-obra. O

desfibramento é feito pelo motorzinho ou máquina paraibana, nas propriedades. Geralmente,

os sisaleiros trabalham nas terras de outras pessoas, no qual prestam serviços temporários e

não assalariados, ou seja, utilizados para as tarefas bem precisas e no tempo determinado. O

nível de emprego de mão-de-obra temporária é maior nas pequenas empresas rurais e

familiares, onde o sisal é a cultura dominante. Os trabalhadores são pagos por tarefa ou

quantidade produzida. Não existe contrato, e os acordos são feitos verbalmente. Os

proprietários preferem o trabalho temporário, porque permite reduzir sensivelmente os custos

de produção e as despesas exigidas pelos encargos sociais.

A primeira etapa do processo de colheita do sisal consiste no corte periódico de

determinados números de folha da planta, por meio de instrumentos adequados. (...)

O transporte das folhas colhidas para o local de desfibramento deve ser realizado na

menor distância possível. Na região sisaleira, esta operação é realizada com auxílio

de asininos e muares, dispondo as folhas colhidas sobre cangalhas com cambitos

(gancho, tipo V, de madeira) ao seu dorso. Um animal pode transportar em torno de

130 a 180 kg. 28

As práticas utilizadas nesse tipo de agricultura são transmitidas de geração a geração. As

mulheres e as crianças representam uma força de trabalho importante, cuja participação é

constante durante uma longa jornada de trabalho, porém com pouco valor econômico. Estas

por sua vez, realizam todas as atividades, exceto as do “cortador”, do “cevador” (operador do

motorzinho) e do “bagaceiro” (encarregado de retirar as polpas residuais), que geralmente são

feitas pelos homens. As mulheres, geralmente, realizam o trabalho conhecido como “estender

fibras”, no qual consiste em colocar para secar as fibras do sisal que foram passadas

anteriormente na máquina no processo de desfibramento. Esse processo acontece da seguinte

forma:

O desfibramento consiste na eliminação da polpa das fibras mediante a raspagem

mecânica da folha, através de rotores raspadores acionados por um motor a diesel.

A principal desfibradora dos campos do sisal do Nordeste brasileiro é a máquina

denominada “motor de agave” ou “máquina paraibana”, que tem baixa capacidade

operacional.esta máquina desfibra em torno de 150 a 200kg de fibra seca em turno

de 10 horas de trabalho, desperdiçando em média, 20% a 30% da fibra; além disso,

envolve um número elevado de pessoas para sua operacionalização. A rusticidade

28

ANDRADE, Wilson (org.). O sisal do Brasil. SINDIFIBRAS – Sindicato das Indústrias de Fibras Vegetais da

Bahia; Brasília: APEX – Brasil – Agência de Promoção de Exportações e Investimentos, 2006.

Page 21: A representação sócio cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do município de são domingos na década de 1990

21

da máquina exige grande esforço do operador (puxador), que poderá ser uma ou

duas pessoas. Em operação normal desfibram-se, em média, 20 a 30 folhas/min, ou

1.200 a 1 800 folhas/h. A fadiga. Aliada à falta de segurança da máquina, expõe os

operadores a constantes riscos de acidentes, o que constitui um dos principais

problemas da máquina e da operação propriamente dita. 29

O desgaste físico decorrido do trabalho no processo de desfibramento do sisal pode

acarretar também na questão das mutilações (mãos e braços) que ocorrem com freqüência em

toda região sisaleira. Fato este provocado, em virtude do intenso trabalho que o Cevador 30

pratica na máquina chamada “paraíbana” para obter uma renda semanal maior, pois se ganha

por produção. Além disso, o baixo nível de capitalização da lavoura sisaleira, somada a falta

de recursos financeiros, cria um estado de vulnerabilidade perante os oligopólios comerciais,

industriais e exportadores, culminando, ao longo do tempo, com o entrave à modernização

tecnológica desta cultura.

No município de São Domingos na década de 1990 as mutilações nos campos de sisal,

segundo os sisaleiros da localidade, foi reduzido bastante comparado-a com décadas

anteriores. Os motivos foram os mais diversos que vão desde as modificações realizadas na

máquina como pelo cuidado e atenção maior dada pelos trabalhadores no manejo com a

mesma. É importante salientar que as mutilações acontecem em sua grande maioria em

pessoas do sexo masculino, pois estes exercem a função mais perigosa no processo de

desfibramento. A ex-trabalhadora do sisal Adaltina Araújo Santana já presenciou o

acontecimento e relata que “o momento é muito difícil por que eu acho que a dor é tanta que

a pessoa adormece, ele nem geme, depois é que vem gemer, por que a velocidade da máquina

é tão rápida que ele perde a mão e nem vê.” Comenta ainda das mudanças ocorridas no

chamado “motor de sisal” sendo um fator da provável redução de acidentes no município “a

boca da máquina diminuiu mais, de primeiro era feita a machado, a boca da máquina

passava duas mãos se fosse possível.”.

O trabalho infantil nos campos de sisal na década de 1990 foi bastante freqüente e

intenso, mas os sisaleiros do município relatam que com o surgimento do Programa de

Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) em 1997 e demais programas do governo reduziram

significativamente o trabalho de crianças na zona rural. Além disso, estimulou e aumentou a

freqüência nas escolas da localidade. Luís da Silva com 46 anos de idade, trabalhador do sisal,

29

Idem. Ibdem. 30

Cevador é homem responsável pelo desfibramento do sisal. Sendo este quem sofre com o problema de

mutilação ao manejar a fibra na máquina paraíbana.

Page 22: A representação sócio cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do município de são domingos na década de 1990

22

tece o seguinte comentário sobre a questão do trabalho infantil fazendo analogia com o

trabalho na sua época de infância:

Naquele período eu estudei lá em Zazá era uma légua e meia, a gente ia e vinha de

péis e quando estudei na casa de vó Martim era uma légua e a gente não tinha a

chance que tem hoje. Hoje todos lugares os carros passam para pegarem as

crianças. Naquele tempo, a gente ia de péis, montando jegue... E hoje em dia tem

uma grande tranqüilidade dos meninos, até mesmo a bolsa escola que ajuda a

comprar uns materiais. E depois da escola vão pro PETI e aí os meninos hoje em

dia... qual o menino hoje em dia que quer aprender pegar uma fibra. Antigamente

começava pegando fibra depois ajudando os pais às vezes a cortar uma palha daí

com 15 e 16 anos já encarava. Eu quando comecei cevar tinha dezesseis anos, eu

não tinha interado dezessete anos, eu aprendi a cevar ai pronto tô até hoje. E graças

a Deus não tenho arrependimento não, peço a Deus que quero ter a saúde, tendo a

saúde o resto não tem pressa.

1.3 As influências do capital externo na economia sisaleira

A sisalicultura não depende apenas do mercado interno. As fibras que se produzem no

Brasil destinam-se a exportação, principalmente para os Estados Unidos e a Europa.

Consequentemente, o país torna-se dependente das decisões dos países consumidores e da

oferta dos países produtores no mercado internacional. As constantes flutuações dos preços

das fibras do sisal se refletem em toda a cadeia de produção, principalmente, na base desse

sistema, no qual se encontra o sisaleiro.

Em novembro de 1990, o sisal estava em crise. Inúmeras batedeiras em Valente e Santa

Luz pararam as suas atividades. Na tentativa de minorar a crise do sisal, os agricultores, os

trabalhadores e os representantes sindicais lançaram uma campanha intitulada os

sisaleiros pedem socorro, seguida de um desfile, de reuniões e de um conjunto de

reivindicações. 31

O preço do sisal durante a década de 1990 oscilou bastante em virtude de dois fatores

principais: o panorama econômico internacional e os constantes períodos de seca que assolava

a região nessa década. Durante esse período, ocorreram várias reuniões envolvendo os

Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs), associações e autoridades municipais objetivando

juntos encontrarem um saída para a crise que enfrentavam , no qual uma das alternativas

poderia advir de recursos governamentais destinados a região sisaleira.

31

ANDRADE, Benedita Pereira. Sisal e sociedade rural: o caso de Valente e Santa Luz - Bahia In: LAJES,

Creuza Santos; ARGOLO João Almarque; SILVA, Maria Auxiliadora (org.). O sisal baiano entre natureza e

sociedade, Salvador, 2002, p.75.

Page 23: A representação sócio cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do município de são domingos na década de 1990

23

A seca está provocando falta de sisal para as indústrias e batedeiras. Por isto, o

governo está colocando no mercado parte do sisal adquirido pelo Programa de

preços Mínimos. Para evitar desemprego na BATEDEIRA COMUNITÁRIA, a

APAEB/Valente comprou 460 toneladas de sisal em dois leilões realizados

recentemente pela bolsa de Mercadorias da Bahia. 32

O município de São Domingos atravessou um período de dificuldades econômicas em

virtude da seca que afetava a região e, pelas constantes crises do preço do sisal na década de

1990. Durante todo o ano de 1993 foi buscado apoio governamental para amenizar a situação

de calamidade que o município enfrentava nesse período. Para isso, mobilizou-se o Sindicato

de Trabalhadores Rurais de São Domingos, autoridades municipais e membros da Igreja

Católica com o intuito de criar uma comissão municipal de assistência a seca, no qual

receberia uma verba enviada pelo governo estadual, em parceria com o poder federal, para

desenvolver o programa denominado de “Frente de Serviço ou Frente Produtivas”. 33

Esse Projeto criado no governo de Itamar Franco consistia em amenizar a fome e o

desemprego gerado pela seca na região Nordeste, para tal finalidade eram disponibilizados

durante alguns meses desse ano recursos financeiros, que por sua vez, revestiam-se em

empregos para pessoas de baixa renda. Essas pessoas recebiam meio salário mínimo mensal

para trabalharem realizando serviços públicos e capinando estradas na localidade. É

importante salientar que a geração de empregos provisórios atendia a população rural e urbana

como medida de emergência nas cidades que mais sofriam com a seca naquele período, o

município de São Domingos empregou nessa época quatrocentos e cinqüentas habitantes no

referido programa. 34

Em março de 1995 o jornal Folha do Sisal anuncia “Preço do sisal bate recorde histórico

no mercado mundial”. A reportagem aborda o melhor preço que o agave obteve nos últimos

10 anos. Isso em virtude do aumento do consumo do produto no mercado externo,

principalmente pela valorização da celulose e, também, por se tratar de um produto,

biologicamente degradável (Gráfico 02 e 03). Porém, mesmo com este aumento, a situação

dos trabalhadores do sisal continuou difícil, pois as constantes secas provocaram a paralisação

de motores e batedeiras em muitos municípios, inclusive, em São Domingos que a maior

geração de emprego advém da agaveicultura.

32

Jornal BATEDEIRA COMUNITÁRIA, p. 01, nº. 13, Valente, Abril de 1993. 33

Sindicato de Trabalhadores Rurais de São Domingos. Atas das reuniões realizadas durante o ano de 1993. 34

Idem. ibdem.

Page 24: A representação sócio cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do município de são domingos na década de 1990

24

O sisal sempre pára de vez em quando, todo mundo sabe é a seca né? Por que

sempre baixa o preço do sisal, mas se tiver chovendo sempre continua o motô

rodando, por que nesse município, nessa região sisaleira a renda é o sisal, mesmo,

ou seja, bom ou seja ruim de preço tem que rodar, só pára em tempo de seca.35

Gráfico 02 – Exportação de Fibras e Manufaturados Gráfico 03 – Exportação de Tapetes

Fonte: Sindifibras

As crises periódicas na sisalicultura é uma característica constante no país, apesar do

dinamismo do Brasil nesse setor, os preços ficam a mercê das flutuações do mercado. Em

1995 a área plantada de agave sisalana reduziu-se a metade do que já havia sido cultivado em

anos anteriores. Nesse mesmo ano foram plantados 92. 807 hectares de sisal espalhados por

Campo Formoso, Conceição do Coité, Itiúba, Jacobina, Mirangaba, Ourolândia, Queimadas,

Retirolândia, Santa Luz, São Domingos, Valente, Várzea Nova e outros. 36

1.4 Fibras de agave: cordas do progresso

O agave sisalana representa para a região do nordeste baiano um meio de

sobrevivência e mais do que isso um progresso no setor econômico, social, político e

cultural. O sisal pode ser a solução de muitos problemas do semi-árido nordestino, pois

apresenta várias possibilidades de desenvolvimento sustentável para os municípios que

realizam a sisalicultura e seu beneficiamento.

A APAEB transforma as fibras produzidas na região sisaleira em fios, que através

dos teares são transformados em tapetes e carpetes. Isso agrega valor ao produto e gera

600 postos de emprego, no qual inclui pessoas de vários municípios vizinhos de Valente.

Além disso, são desenvolvidos vários projetos e cooperativas que trabalham com a fibra

do agave na confecção de diversos produtos artesanais. Dentre estes, se encontra a

35

Depoimento de Adaltina Araújo Santana, ex-trabalhadora rural. 36

Jornal FOLHA DO SISAL, Ano 8, nº. 40, Outubro de 1997, p.2.

Page 25: A representação sócio cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do município de são domingos na década de 1990

25

cooperativa “Mulheres de Fibra”, essas mulheres saíram do motor do sisal e constituíram

com o apoio de sindicatos, sociedade civil e entidades públicas, a Cooperativa Regional de

artesãs de fibras do sisal (Cooperafis), por isso a denominação bastante sugestiva

mulheres de fibras. O trabalho delas realiza-se da seguinte forma:

São colchas bordadas, bolsas e chapéus de fibra fina de sisal, variados objetos de

decoração. O sucesso foi imediato e ultrapassou as fronteiras locais. Chegou a

Salvador, São Paulo e começa a ganhar o mundo. Dignidade e cidadania cresceram

frutos de trabalho e dedicação. Atualmente são 122 cooperadas distribuídas em

nove núcleos de produção, nos municípios de Araci, são Domingos e Valente. 37

A agaveicultura pode também transformar a vida dos pequenos produtores e sisaleiros

que vivem no sertão baiano mediante ações e investimentos aplicados em instalações de

indústrias que utilizem a fibra do agave na fabricação de diversos produtos para exportação.

“A fibra do sisal pode ser utilizada na fabricação de pasta celulósica, empregada na fabricação

do papel Kraft, de alta resistência, e de outros tipos de papéis finos. Pode também ser

empregado na indústria automotiva, de móveis e eletrodomésticos e na construção civil.” 38

As atividades econômicas e as associações existentes na região sisaleira, especialmente

no município de São Domingos, são desenvolvidas basicamente em torno do sisal. Esse fato

está intimamente relacionado à quantidade de pessoas que sobrevivem direta ou indiretamente

do: cultivo, desfibramento, beneficiamento, exportação ou atividade artesanal nos principais

centros produtores de agave da Bahia. Além do desenvolvimento e contribuição desse produto

no setor primário e secundário, nas últimas décadas nota-se uma crescente urbanização e

progresso no setor terciário, pois este por sua vez, depende consideravelmente do capital

movimentado nos município proveniente da sisalicultura.

Na verdade, se o sisal é por um lado uma preciosidade e riqueza para muitos produtores,

por outro lado é visto pelos sisaleiros como meio de sobrevivência e esperança de um futuro

mais próspero com grandes plantações do agave nas suas pequenas propriedades. Sendo

assim, mesmo diante de precárias condições de trabalho, dos constantes períodos de seca e

das cíclicas crises no preço do sisal o sisaleiro acredita que as fibras do agave são cordas do

progresso. Todavia, para que isso ocorra é necessário um planejamento na questão do

desenvolvimento rural em regiões semi-áridas, posto que muitas estratégicas de sobrevivência

praticadas e propagadas, por guardarem relação de similaridade com formas de convivência

37

RECENA, Luiz. Sisal o território da esperança. In: Territórios rurais, nº1, jan./jun., 2005, p.19. 38

ANDRADE, Op. cit., 2006.

Page 26: A representação sócio cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do município de são domingos na década de 1990

26

no semi-árido, não resultam em estratégias de convivência do semi-árido propriamente dita. A

distinção pode ser explicada da seguinte forma:

Para que fique claro a distinção, podemos dizer que as estratégias de sobrevivência

são práticas de valência social da população local, em geral, para conviver com as

privações infortúnios no(grifo do autor) Semi-Árido. Ao contrário, as estratégias de

(grifo do autor) Convivência com o Semi-Árido são modos de superar as mazelas

do subdesenvolvimento naquilo que têm de mais especifico no Semi-árido

brasileiro: o agravamento da dependência e da exploração, o aumento das

vulnerabilidades socioambientais e a situação de insustentabilidade de certos meios

e modos de vida. 39

As estratégias de desenvolvimento rural no nordeste baiano são primordiais para se

efetivar verdadeiramente as ações governamentais e/ou privadas que alcancem e promova

progresso no âmbito social, econômico e cultural. Para isso, é de extrema importância que

esse sujeito, o sisaleiro, seja colocado no centro das discussões dessas estratégias de

planejamento rural no sertão da Bahia e, a partir disso, possa ser percebido as organizações e

atores locais que refletem contextos sócio-espaciais específicos e interesses em disputa em

torno da questão do desenvolvimento. Portanto, o ambiente cultural deste trabalhador do sisal,

antes de tudo um sertanejo, diz muito sobre seu cotidiano e sua vida de um modo geral.

A cultura é a parte importante do capital social porque os saberes acumulados, as

tradições, os modos de vínculos com a natureza e as capacidades naturais de auto-

organização são de grande valia para as populações pobres, pois são suas dotações

iniciais. A democratização cultural, com a criação de espaços de vivência e

convivência acessíveis aos setores mais desfavorecidos, pode abrir canais de

integração social. 40

Ao longo dos últimos dez anos, houve um desenvolvimento nas associações das

comunidades rurais, o que propiciou o surgimento de formas e estratégias econômicas, sociais

e culturais de convivência na região sisaleira. Diante disso, o estereotipo em torno do semi-

árido baiano é visto de modo simplificado, como uma região problemática em que as soluções

estão distantes ou inacessíveis da população. No entanto, as alternativas muitas vezes, estão

tão próximas e não utilizadas como deveriam para beneficiar a região, procurando até mesmo

na revitalização da produção sisaleira e, em escala mais ampla, na revitalização do território.

39

NASCIMENTO, Humberto Miranda. A convivência com o semi-árido e as transformações socioprodutivas na

região do sisal – Bahia: por uma perspectiva territorial no desenvolvimento rural. XLVI congresso da Sociedade

Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural. UCSAL: Salvador. S.d., p. 4. 40

Idem. Conviver o sertão: origem e evolução do capital em Valente/BA. São Paulo: Annablume, 2003, p.22.

.

Page 27: A representação sócio cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do município de são domingos na década de 1990

27

Capítulo II – MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS E MUSICAIS NO

SERTÃO NORDESTINO

Em vez de pensar as culturas nacionais como

unificadas, deveríamos pensá-la como constituindo

um dispositivo discursivo que representa a diferença

como unidade ou identidade.

Stuart Hall

Este capítulo enfoca o significado que ao longo do tempo foi atribuído ao sertão

nordestino. A partir disso, discute a imagem que também foi conferida ao semi-árido baiano e

a importância das expressões culturais na vida dos sertanejos, os quais retratam seus costumes

nas manifestações artísticas existentes no seio de sua comunidade.

2.1 Cultura popular nos sertões do Brasil

O termo cultura popular configura-se numa gama de definições e conceitos que lhes

foram atribuídos em diferentes épocas e contextos distintos, que envolvem disputas teóricas e

políticas na História. Para Martha Abreu o conceito de cultura popular não está engessado em

definições imutáveis. Na sua concepção “pode ser visto como uma perspectiva, no sentido de

ser mais um ponto (de vista) para se observar a sociedade e sua produção cultural”. 41

Nesse sentido, a cultura popular é um instrumento da história que serve para evidenciar

diferenças e ajudar a pensar a realidade social e cultural de uma determinada sociedade. Nas

palavras de Chartier “a cultura popular é uma categoria erudita” 42

, devido a dificuldade ou

impossibilidade de detectar o que é genuinamente do povo, ou mesmo de se precisar a origem

social das manifestações culturais, em função da histórica relação e do intercâmbio entre os

mundos sociais, em qualquer período da história. Segundo Chartier correndo o risco de

simplificar ao extremo, é possível reduzir as diversas definições de cultura popular em dois

grandes modelos de descrição e interpretação.

O primeiro, no intuito de abolir toda forma de etnocentrismo cultural, concebe a

cultura popular como um sistema simbólico coerente e autônomo, que funciona

segundo uma lógica absolutamente alheia e irredutível à da cultura letrada. O

segundo, preocupado em lembrar a existência das relações de dominação que

41

ABREU, Martha. Cultura Popular: um conceito e várias historias. In: ABREU, Martha, SOIHET, Rachel

(orgs.). Ensino de Historia: conceitos, temáticas e metodologias. Rio de Janeiro: Cada da Palavra, 2003, p.84. 42

CHARTIER, Roger. “Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico”. Revista Estudos Históricos

(Rio de Janeiro), vol. 8, n. 16 (1995), p. 179.

Page 28: A representação sócio cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do município de são domingos na década de 1990

28

organizam o mundo social, percebe a cultura popular em suas dependências e

carências em relação à cultura dos dominantes. 43

As idéias postas por Ginzburg em muito contribuíram para resgatar o mundo da cultura

na história como também promoveu estudos sobre uma “história vista de baixo”, no qual

passaram a ser discutidos questões como o de circularidades culturais e apropriações de

sujeitos históricos com uma variável e razoável autonomia. Dentro dessa perspectiva cultural

e das constantes interações e compartilhamento entre culturas, o historiador inglês Peter

Burke lança o termo “biculturalidade” para abordar o intercâmbio de práticas culturais

populares assimiladas por membros da elite, ao mesmo tempo em que preservavam a própria

cultura. Apresenta ainda várias contribuições significativas no campo da Nova História

Cultural e trás uma excelente discussão no seu livro “O que é história cultural?”. Na sua

perspectiva, qualquer definição de História Cultural passa pelo o campo interdisciplinar, local

e momento em que a noção de Cultura sofre modificações para oferecer aos historiadores

algum potencial analítico e explicativo.

Na verdade, o termo “cultura” e “cultura popular” não possuem definições prontas e

estabelecidas, iguais aos verbetes em dicionários. Os conceitos foram sendo ampliados com o

passar do tempo e assim recebendo novas atribuições de significados. Para Peter Burke o

vocábulo “cultura” ainda é mais problemático do que o termo “cultura popular”, pois

caracterizar e definir o que não é cultura tornam-se uma tarefa mais difícil do que classificá-

lo. Sendo assim, o conceito em geral é usado para referir à “alta” e “baixa” cultura, as ciências

e artes, seus equivalentes populares (músicas folclóricas, medicina popular, e assim por

diante.), uma ampla gama de artefatos (imagens, ferramentas, etc.) e práticas (conversar, ler,

dentre outros). 44

Sobre “cultura popular” Burke comenta:

Os especialistas várias vezes sugeriram que as muitas interações entre cultura

erudita e popular eram uma razão para abandonar de vez os dois adjetivos. O

problema é que sem eles é impossível descrever as interações entre o erudito e o

popular. Talvez a melhor política seja empregar os dois termos sem tornar muito

rígida a posição binária, colocando tanto o erudito como o popular em uma

estrutura mais ampla. 45

43

Idem, ibdem, p.179. 44

BURKER, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p.42-43. 45

Idem, ibdem, p.42.

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29

Enfim, essa discussão sobre a definição de “cultura” não é o foco deste trabalho, mas

como coloca Thompson “não podemos esquecer que a „cultura‟ é um termo emaranhado, que,

ao reunir tantas atividades e atributos em um só feixe, pode na verdade confundir ou ocultar

distinções que precisam ser feitas” 46

. Então, conceitos a parte, a História de modo geral

sempre estará recebendo novas conceituações e inovações em seus campos de estudo, em

virtude dos constantes questionamentos e pesquisas suscitadas em contextos históricos

distintos.

Diante disso, o conceito perpassa várias conjunturas e épocas históricas de maneira que a

partir das décadas de 1940-1950, a cultura popular é utilizada sob uma perspectiva mais

política associada ao populismo bastante difundido na América Latina. No Brasil, a partir do

final do século XIX a expressão cultura popular se difunde entre folcloristas, antropólogos e

sociólogos, entre outros intelectuais da época que discutiam a construção de uma determinada

identidade cultural para o país.

A cultura popular brasileira possui uma estreita relação com a difusão das idéias

folclóricas no país, visto que, como na Europa e também na América Latina serviu para a

formação das novas nações do século XIX e XX, resgatando assim o passado e os sentimentos

populares do período. Dessa forma, atrelado a questão da valorização e exaltação da produção

artística nacional apropriou-se fortemente da produção dos sertanejos e dos caboclos do

interior, objetivando enfatizar o que permanecia como traços de uma identidade cultural e

étnica, pautada pela integração cultural sincrética das três raças. No entanto, a partir de 1960

severas criticas são feitas as produções folcloristas, no qual eram vistas como simplórias e não

detectavam a fundo os problemas das classes populares em foco e muito menos sobre o

processo de dominação presente na sociedade da época. Na verdade, após esse período

recebeu “significados negativos, assumindo até mesmo conotações ligadas ao anedótico e ao

ridículo”. 47

Se a discussão em torno da cultura dos setores não desapareceu, atrelou-se, em

grande parte, ás avaliações sobre os aspectos que levaram à sua alienação ou não

consciência de classe, o que possibilitou a consolidação de uma série de visões

preconceituosas sobre a cultura popular: cultura fragmentada, conservadora, presa

às tradições, obstáculos a mudanças sociais, conformista e supersticiosa. As

reflexões sobre as manifestações culturais dos homens e mulheres comuns

acabaram ficando, mais uma vez, prisioneiras das armaduras ideológicas de seu

próprio tempo. 48

46

THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo; Companhias

das Letras, 1998, p.22. 47

ABREU, Martha. Op. cit., p.87. 48

Idem, ibdem, p.88.

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30

Os primeiros estudos no Brasil relativos à cultura popular voltaram-se para o campo da

poesia. As pesquisas foram inicialmente conduzidas por correntes filosóficas e científicas

vigente na Europa e que marcaram época entre os intelectuais brasileiros como, por exemplo,

o positivismo que foi bastante significativo nos estudos dos fatos folclóricos no país.

No que tange ao papel da cultura popular idealizada por muitos pesquisadores na

construção da identidade nacional, deve-se atentar para as possíveis homogeneizações feitas

em todo o território brasileiro com relação ao valor que determinadas práticas e

representações culturais significam para população do país. Pois, a diversidade cultural

precisa ser levada em conta no que se refere à idéia de regionalidade e, acima de tudo, aos

aspectos econômicos, sociais e culturais que marcam a identidade e o modo de vida de uma

determinada população de uma região ou território brasileiro dentro de um marco histórico.

Essa questão é detectada por Fressato quando menciona que “a cultura popular em que se

baseiam os intelectuais para formulação da identidade nacional é típica dos centros urbanos

do sudeste, notadamente de São Paulo e do Rio de Janeiro, não considerando as

especificidades das culturas regionais”. 49

Dentre tanta diversidade cultural existente no território nacional encontra-se uma que

está profundamente arraigada na cultura brasileira, seja na arte e literatura popular ou ainda no

imaginário do povo, no qual está presente a idéia de “sertão”. A etimologia da palavra ainda

não possui uma definição única e limitada. Segundo Janaína Amado o vocábulo deriva de

deserto (deserto, desertão, sertão), atrelado a essa hipótese e dando-lhe maior ênfase estão as

características naturais e humanas ligadas aos termos: aridez, despovoamento, travessia.

Segundo outros autores, o termo suscitaria do latim clássico serere, sertanum (traçado,

entrelaçado, embrulhado), desertum (desertor, aquele que sai da fileira e da ordem) e

desertanum (lugar desconhecido para onde foi o desertor). 50

No Brasil, desde o período colonial, a palavra sertão recebeu a conotação de interior

do território brasileiro e por isso foi empregado para representar as mais diversas áreas

dependendo da localização do qual fala enunciante. Dessa forma, em virtude de sua

abrangência e imprecisa definição de delimitação territorial segundo a história brasileira pode,

então, ser denominado de sertão o interior de São Paulo e da Bahia, os estados de Minas

Gerais, Goiás e Mato Grosso, além do sertão nordestino, o qual é conhecido e popularmente

49

FRESSATO, Soleni Biscouto. Cultura popular: reflexões sobre um conceito complexo. Oficina Cinema-

História. Núcleo de Produção e Pesquisas da Relação Imagem-história. S. d., p.5. 50

AMADO, Janaína. Região, Sertão, Nação. Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 15, 1995, p. 4.

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31

assim denominado devido a condições morfoclimáticas e características peculiares fortemente

presente na região. A designação de sertão pode ser caracterizada da seguinte forma:

Marcado pela baixa densidade populacional e, em alguns lugares, pela aridez da

vegetação e do clima, o sertão assinala a fronteira entre dois mundos, o atrasado e

o civilizado. Marcha imprecisa que recobre o interior do Brasil, melhor seria a

referência a “sertões”, no plural. Pode-se afirmar que relativo ao espaço geográfico

ou ao imaginário social, sertão é sempre plural. 51

No período de colonização, o sertão foi, de modo geral, visto com significados negativos

como espaços distantes povoado por indígenas, animais e mitos. Tornou-se também refúgio

para os expulsos da sociedade colonial, incluíam-se degredados, criminosos, fugitivos que

buscavam um local para reconstruir suas vidas. 52

O movimento bandeirante, em fins do

século XVII e inicio do XVIII, suscita dois fatores fundamentais no povoamento do sertão: a

exploração das minas e o desenvolvimento da pecuária bovina, cuja conseqüência, dentre

outras, foi a ocupação de vários territórios que se estendiam do estado de Minas Gerais ao

oeste da Bahia.

Além de todos esses estereótipos que foram ao longo do tempo inseridos na imagem

popular, o sertão também recebe características pejorativas como “uma terra sem lei, lugar da

violência, do indistinto e da desordem. O perfil do sertanejo surgia em comportamentos

condizentes com o meio social, distante as autoridades régias”. 53

Outro traço bastante

característico dessas regiões diz respeito ao ideário de pobreza, atestada nas casas simples e

humildes com poucos móveis. Parte dessa população era composta de trabalhadores volantes,

que buscavam moradia de favor junto a algum grande proprietário ou que optavam vagar

pelos campos desertos, fazendo roçados para sobrevivência com suas famílias. 54

É importante

salientar que muitas dessas características permanecem posteriormente ao período de

colonização e povoamento do interior do país e se estende pelos séculos seguintes.

A cultura dos sertões manifesta-se na religiosidade popular; na literatura de cordel, que

transmite lendas, contos e “causos”; nos rodeios e vaquejadas; na comida; na poesia; na

maneira de vestir; nas danças e na música, com semelhanças e peculiaridades por todo o país.

51

ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. Cultura e identidade nos sertões do Brasil: representações na música

popular. S.d., Disponível em: http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html. Acessado em nov. de 2009. 52

SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII, Ed. Graal, 2ª ed.,

Rio de Janeiro, 1986, p. 85. 53

ALENCAR, Op.cit. p. 2. 54

ARAÚJO, Emanuel. Tão vasto, Tão Ermo, Tão Longe: o sertão e o sertanejo nos tempos coloniais. In: DEL

PRIORI, Mary (org.). Revisão do Paraíso: os brasileiros e o Estado em 500 anos de história. Rio de Janeiro:

Campus, 2000, p.145.

Page 32: A representação sócio cultural do cotidiano dos sisaleiros nas manifestações culturais do município de são domingos na década de 1990

32

Todas essas representações da cultura popular sertaneja trazem, sobretudo, o seu modo de

vida expressando o cotidiano e o contexto socioeconômico ao qual está inserido.

No século XX, apesar do rápido avanço das frentes de expansão e do progresso de

modernização que atingiu o sertão brasileiro, o sentimento de inferioridade ainda mantinha-se

em relação ao litoral. Os atributos pejorativos foram assim carregados pela população dessas

regiões como uma identidade negativa e inferior no que diz respeito às outras regiões do

Brasil por serem considerados do interior, caipira e sertanejo. Como já foi mencionada

anteriormente essa visão preconceituosa com relação ao sertão brasileiro passa a ser utilizada

de maneira inversa quanto à significância que o termo é atribuído. No final do século XIX,

mais propriamente na década de 1870, a cultura sertaneja torna-se um elemento de relevância

no contexto identitário da nação em processo de construção.

A oposição á dicotomia litoral-sertão fez surgir uma produção intelectual que,

expressando a preocupação com a construção de uma nação unificada, procurava

superar aquela dicotomia. Sertão se tornou, então, categoria essência do

pensamento brasileiro. Na cultura do interior do país, esses autores encontravam as

fontes mais puras da racionalidade. 55

As manifestações culturais expressas na música saem das ruas para os salões junto com

uma maior valorização das danças rurais postas como componentes da música popular. Mário

de Andrade escreveu sobre esse período: “A música popular cresce e se define com uma

rapidez incrível, tornando-se violentamente a criação mais forte e a caracterização mais bela

da nossa raça”. 56

Esse fato pode ser constatado no período Vargas (1930-1945), no qual o

Estado brasileiro se fez presente, de forma enfática, na direção da incorporação do sertão

como forma de construção da nação e a ideologia nacionalista atingiram momentos de

euforia.

2.2 O sertão como lugar

Os conceitos, definições e abordagens do termo sertão ao longo da história brasileira foi

permeada por expressões pejorativas, ou então, serviu de elemento inerente em determinadas

conjunturas políticas para finalidades identitárias. Desse modo, os dados apresentados nos

55

ALENCAR, op.cit., p. 5. 56

ANDRADE apud ALENCAR, ibdem, p 4.

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33

permitem evidenciar a existência de sertões diferenciados, com peculiaridades, dinâmicas e

relações sociais diferenciadas umas das outras. Nesse caso, o sertão nordestino, bem como

todas as demais regiões assim denominadas, não pode ser enquadrado nessa visão

generalizante de sertão, apesar da característica marcante ligado ao desenvolvimento da

atividade agropecuária, cada sertão brasileiro possui aspectos econômicos, geográficos,

sociais, culturais e políticos distintos e de interações diferenciados em escala nacional.

O vocábulo “sertão” também em alguns casos recebe uma conotação institucionalizada

referente ao espaço no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas

(IBGE), esse termo pode ser designado oficialmente como uma das subáreas nordestinas,

árida e pobre, situada a oeste das duas outras, a saber: “agreste” e “zona da mata”. Nesse

sentido, comumente no imaginário popular relaciona-se o termo a região mais sofrida e seca

do Nordeste. Esse estereótipo, muitas vezes, é construído quando se considera essa parte do

território brasileiro como marginalizado do “progresso” ou desenvolvimento cultural e

econômico do país.

Por muito tempo na história brasileira relacionou-se o conceito de caipira ao universo

pertencente ao sertanejo. E assim, ganharam espaços no país personagens como Jeca Tatu, de

Monteiro Lobato, como uma figura que deixava o espaço rural que era personificação do

atraso, do caipirismo sertanejo, emperrando o desenvolvimento nacional. Como se o homem

do campo, do interior (sertão) devesse ser adaptado a conjuntura urbana e sulista do país.

Todavia, o sertanejo/nordestino apresenta características diferenciadas dessa concepção

difundida do caipira na sociedade brasileira. Isso não significa que especulações e estenótipos

sejam amenizados, O historiador Durval Muniz Alburquerque Jr. no seu livro “A Invenção do

Nordeste e outras artes” comenta sobre a imagem construída do nordestino e o necessário

deslocamento dos lugares fixos de opressor/oprimido e inventor/inventado, promovendo

assim um questionamento em torno da produção imagético-discursiva criada em torno dos

Nordeste. 57

Desse modo, nota-se a discrepância entre o “Brasil de cima” - Norte/Nordeste - e o

Brasil de baxo” - Sul/Sudeste. 58

Essa diferença é fundamentada na sobreposição de uma

região sobre outras, no qual baseia e propaga-se a imagem de um povo nordestino carregado

de estigmas como: tabaréu, miserável, agressivo, anti-social, intelectualmente inferior, dentre

57

ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2009, p.

153. 58

Patativa do Assaré apud VASCONCELOS, Claudia Pereira. A construção da imagem do nordestino/sertanejo

na construção da identidade nacional. II ENECULT, Faculdade de Comunicação /UFBA, Salvador, maio de

2006, p.7.

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34

outras caracterizações. Enquanto, exalta e afirma um Sul como o espaço concentrador de

desenvolvimento, moderno, educado e altamente superior no que se refere a “cultura”

brasileira.

Alburquerque Jr. retrata também essa imagem construída historicamente do Norte, que

englobava o Nordeste, e do Sul visto como centro político, econômico e cultural do país. Esse

discurso-imagético é exposto no subcapítulo “Norte versus Sul”, na sua obra já mencionada,

no qual expõe o discurso construído e disseminado por décadas de um Norte atrasado,

marcado pelo barbarismo, pela miséria e pela seca que se tornava o ponto de discussão para

atrair investimentos. Além disso, o cangaço e o messianismo também eram concebidos

pejorativamente como elementos próprios da natureza da região. Por outro lado, o Sul seria o

fundamento da nação onde toda a alta cultura se formava e permanecia. De acordo com os

parâmetros naturalistas as questões do meio e da raça eram responsáveis pelo distanciamento

entre ambas as divisões regionais do país.

Esse mesmo autor aborda ainda a imagem que o sertão passa a possuir quando

relacionado ao Nordeste. “O sertão deixa de ser aquele espaço abstrato que se definia a partir

da „fronteira da civilização‟, como todo o espaço interior do país, para ser apropriado pelo

Nordeste. Só o Nordeste passa a ter o sertão e este passa a ser apropriado pelo nordeste”.

Então, o sertão era sinônimo de péssimas condições de vida e um local atribuído,

principalmente, a uma região desfavorecida e marcada pelos estereótipos excludentes e, assim

marginalizada do restante do país. Na verdade, “o espaço nordestino vai sendo dotado de uma

visibilidade e dizibilidade; desenhado por um agrupamento de imagens rurais ou urbanas, do

litoral ou do sertão, domadas em sua diversidade pelo trabalho integrativo de poetas e

escritores”. 59

Diante disso, o homem que retrataria o Nordeste, segundo o movimento regionalista,

seria o sertanejo como um ser forte, acima de tudo, revestido de coragem, um herói como

coloca Euclides da Cunha que para sobreviver precisa enfrentar rotineiramente as mais

adversas situações no ambiente em que vive. Segundo Alburqueque Jr.,

O tipo nordestino vai se definindo como um tipo tradicional voltado para a

preservação de um passado regional que estaria desaparecendo... Se situa na

contramão do mundo moderno, rejeita as suas especificidades, sua vida delicada e

histérica. Um homem de costumes conservadores, rústicos, ásperos, masculinos:

um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em crise; um ser viril, capaz de

retirar a sua região da situação de passividade e subserviência em que se

encontrava. 60

59

ALBUQUERQUE Jr., Op. cit., p. 134. 60

Idem, ibdem, p. 162.

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35

Outra diferenciação de sertões caracteriza-se pela vertente cultural, que apresenta

aspectos peculiares de perceber o sertão e o modo de vida sertanejo. Para este ponto

convergem fundamentalmente expressões como a literatura e a música. Segundo Janaína

Amado “„sertão‟ ocupa ainda lugar extremamente importante na literatura brasileira,

representado tema central na literatura popular, especialmente na oral e de cordel, além de

correntes e obras literárias cultas”. 61

A denominada “geração de 1930” composta essencialmente por Graciliano Ramos,

Raquel de Queirós, José de Lins Rego, Jorge Amado e muitos outros consagrados literatos

foram, por sua vez, responsáveis pela construção de conturbados e desafiadores sertões

nordestinos, de forte significado social. No entanto, muitos historiadores destacam João

Guimarães Rosa como um dos mais renomados autores ligado ao tema, o qual aponta um

sertão singular, marcado por conflitos e contradições humanas que aparecem de forma mais

intensa sobre a proteção da crueza do território geralmente áspero. E assim, “[...] com

Guimarães o sertão deixa de ser o indesejável para se converter no inevitável. [...], o sertão é o

espaço privilegiado do entendimento do ser humano”. 62

A importância de Guimarães Rosa é incontestável quanto à ressignificação do

imaginário do sertão em nível nacional. Todavia, deve-se acrescentar autores como Antonio

Gonçalves da Silva, Patativa do Assaré, o guardião de saberes e sensibilidade do povo

nordestino. Recebeu tal apelido por ter nascido no município de Assaré (Ceará) e por

desenvolver uma poesia comparada, pela espontaneidade, com o canto sonoro da patativa.

Aprendeu a tocar viola, desenvolveu o gosto pela arte cantando e versejando com famosos

cantadores do Nordeste.

Uma das obras mais conhecidas “Cante lá que eu canto cá” publicada em 1978, o poeta

fica conhecido nacionalmente e tem seu nome registrado na história da cultura popular

brasileira. Os fatos que sucedem em sua carreira são marcas do reconhecimento oriundo da

sua maneira ímpar de fazer poesia. Isso ocorre porque a figura de Patativa traz em si

características da oralidade. Os poetas formais escrevem seus versos, o recurso utilizado era

disposto pela memória e pela fala; o que dizia ou cantava era transcrito por outras pessoas

para o papel, porém seu texto permaneceu na história através de uma manifestação fiel aos

códigos da expressão oral. Característica esta bastante comum entre os nordestinos,

trabalhadores na roça, que mal sabem escrever seu próprio nome, mas carregam consigo a arte

61

AMADO, Op. cit., 1995, p.3. 62

PIMENTEL, Sidney Valadares. O chão é o limite: a festa de Peão de Boiadeiro e a domesticação do sertão.

Editora UFG. Goiás, 1997, p.19.

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e as cantorias expressas em versos sobre um sertão carregado de estigmas e esperanças de

uma vida melhor.

Na verdade Patativa retratava na sua fala a vida simples no sertão, a coragem de falar das

coisas erradas e a poesia engajada a esses aspectos são objetos de estudos para muitas

pesquisas que envolvem o sertanejo. Outro autor que aborda essa temática é Graciliano

Ramos, no qual inscreve o sertão nordestino no imaginário nacional. Em “Vidas seca”,

emerge um sertão árido, difícil, onde homens e mulheres lutam contra a seca e contra a

exploração social. A opressão da seca ao lado da opressão apresentada pelos fazendeiros e

pelo Estado. Já na obra Os Sertões de Euclides da cunha o nordestino é representa da seguinte

maneira na visão de Cláudia Vasconcelos:

É neste cenário de organização de imagem opostas do nordeste e nordestino que a

celebre obra de Euclides da Cunha Os Sertões, publicada em 1902, pode servir

como uma das fundamentações para ambos os argumentos, completamente dispares

entre si. O seu discurso ambíguo e contrastante oferece substrato suficiente para

produzir tanto uma estereotipia negativa em que se inferioriza o sertão/nordeste,

quanto uma estereotipia positiva em que se enaltece esta região e o seu povo. 63

Dessa forma, os discursos sobre o sertanejo/nordestino nem sempre é posto na literatura

brasileira como genuinamente positivo e enaltecedor. Essas características, sejam elas

exaltadoras ou preconceituosas, estão presentes também em outras artes como a pintura, o

teatro, o cinema e, em especial, a música e em diversos meios de comunicação e programas

humorísticos. A difusão desse ideário posto, muitas vezes, como inerente a cultura brasileira

encontra sua significância quando Guimarães Rosa (1965) comenta: “o sertão está em toda

parte; o sertão está dentro da gente”. Contudo, isso não significa que a cultura nordestina seja

aceita e respeitada, de modo geral, como identidade nacional e igualada ao centro sul do país,

apesar das diversas tentativas, outrora ou mais recentemente, para sua inserção como parte

integrante da unidade brasileira ainda precisa romper obstáculos e ser reconhecida e

valorizada em âmbito nacional.

O historiador Alburquerque Jr. também problematiza esse nordestino tão difundido e

esboçado no “romance de trinta” que se institui com “temas regionais”. Ele discute justamente

essa imagem disseminada de um Nordeste vitimizado pelas condições climáticas, onde a seca

passa a ser o fator causador de um meio homogêneo que, portanto, teria também originado

uma sociedade homogênea. Tudo isso, na concepção do referido historiador, gerou uma série

63

VASCONCELOS, Op. cit., 2006, p.5.

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de imagens em torno da seca e, produziram por sua vez uma visibilidade e dizibilidade que as

a produção cultural posterior não conseguiu fugir e perpetuarão ao longo do tempo.

Para Alburquerque Jr. não se trata de buscar uma identidade na cultural nacional ou

regional, mas afirmar as diferenças culturais. Dessa forma, as diversas expressões artísticas

que se voltaram constantemente para a reprodução dessas imagens pejorativas,

preconceituosas e homogeneizantes a cerca do Nordeste, na verdade, buscava no passado uma

reposta para as necessidades do período e conseqüentemente uma invenção de tradições

explicitadas nessas obras artísticas, como lembranças de uma região, que não mais expressa a

pluralidade, mas a singularidade de cada indivíduo. Assim, os estereótipos e discursos

produzidos também na literatura regionalista pautaram-se nas busca incessante pela

manutenção de uma sociedade, muitas vezes, patriarcal, escravista e vitimizada pela seca.

Sendo assim, ele afirma que:

A busca das verdadeiras raízes regionais, no campo da cultura, leva à necessidade

de inventar uma tradição. Inventando tradições tenta-se estabelecer um equilíbrio

entre a nova ordem e a anterior; busca-se conciliar a nova territorialidade com

antigos territórios sociais e existenciais. A manutenção de tradições é, na verdade,

sua invenção para novos fins, ou seja, a garantia da perpetuação de privilégios e

lugares sociais ameaçados. 64

2.3 As canções na vida do sertanejo

Esse processo de “ressignificação” ocorre também no campo da produção musical, com

o surgimento e a afirmação de um novo gênero ligado diretamente ás tradições culturais e ao

cotidiano do sertão brasileiro. Por volta de 1930 surgem no cenário nacional a música caipira

representando as tradições, o modo de vida, o trabalho e o cotidiano do caipira das regiões sul,

sudeste e centro-oeste. Sendo assim, esse novo gênero musical é utilizado também para

construir uma imagem do caipira dissociado da imagem do “mau sertão” brutalizado, e como

uma tentativa de conduzir a um imaginário da sociedade caipira, rural e agrícola. 65

No que tange as manifestações musicais populares no sertão nordestino, estas por sua

vez, apresentam peculiaridades quanto a seu modo de criação e estilo nas cantorias quando

comparadas com o gênero caipira. Até mesmo devido às condições geográficas, culturais e

64

ALBUQUERQUE JR, op. cit. 2009, p. 90. 65

VIEIRA, Natã Silva. Cultura de vaqueiros: o sertão e a música dos vaqueiros nordestinos. III ENECULT,

Faculdade de Comunicação/UFBA, Salvador, maio de 2007, p. 6.

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humanas que permitem evidenciar uma considerável diferenciação entre os sertões brasileiros.

Porém, um aspecto comum nesses ambientes rurais brasileiros quanto à produção musical

popular diz respeito ao ato de ambos expressarem as condições de vida e costumes de uma

determinada região, território ou localidade do Brasil nessas canções. Então, a respeito das

festas populares, pode ser evidenciado no país desde e período colonial, no qual Mary Del

Priore destaca:

Procissões, festas ou quaisquer outros momentos de lazer na Colônia acabaram por

revelar o quanto era duro o cativeiro para os escravos e difícil o cotidiano para os

colonos pobres. A alegria que irrompia de maneira impetuosa e descontrolada

nesses momentos revelava a necessidade que esses grupos sentiam de encontrar

formas de expressar sua cultura e o estado de opressão em que viviam. 66

As canções no sertão nordestino como em qualquer outra região do Brasil está

intimamente ligado com o estilo de vida de cada população e os costumes que são por estas

passadas para as gerações vindouras. E assim, Thompson ao estudar a sociedade inglesa do

século XVIII constata alguns costumes e práticas culturais presentes na vida dos plebeus

desse período, e comenta que “muitos desses „pobres‟ se negava ao acesso à educação, ao que

mais eles podiam recorrer senão á transmissão oral, com sua pesada carga de costumes” 67

.

Esse fato também pode ser evidenciado entre o povo sertanejo/nordestino, no qual a maior

parte dessas tradições populares é transmitida pela oralidade, no entanto, quanto ao acesso a

educação lhe é negado ou impossibilitado em razão do intenso ritmo de trabalho ou pelo

distanciamento das escolas no local em que vivem.

Nessa região brasileira a música ganha vida e expressão artística, representando os

costumes do povo que a compõe. Dentre tantos ritmos e danças peculiares ao povo do

Nordeste, no sertão dessa região encontra-se uma das festas mais típicas do sertanejo, a

vaquejada. Esse tipo de festa popular mescla a vida do campo e a urbana, além do mais, teve

forte influência do estilo country disseminado pelo interior do país. Na verdade, essas músicas

são representativas de um “novo sertão”, de “um novo sertanejo”, empreendedor, moderno, ao

mesmo tempo rural e urbano. Aquele que faz na década de 80 o caminho de volta da cidade

para o sertão, trazendo as influências americanas conquistadas nas cidades, para as quais os

seus pais migraram nas décadas anteriores. 68

No entanto, apesar dessas influências

66

DEL PRIORE, Mary. Religião e Religiosidade no Brasil - colonial. São Paulo: Ática, 1995. 67

THOMPSON, E. P. Op. cit,, 1998, p.15. 68

VIEIRA, Op. cit, 2007, p. 6-7.

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39

estrangeira e urbana a identidade e os costumes permanecem arraigados nesse sertanejo

“modernizado”.

O povoamento do interior do Nordeste, o Nordeste semi-árido ou ainda o sertão,

caracteriza-se pela sua forma desordenada, estabelecendo grandes propriedades de

terra com pouca densidade populacional, com a criação de gado como principal

base econômica. As fazendas de gado empregavam um número reduzido de

trabalhadores, dada a peculiaridade desta atividade. As aglomerações urbanas eram

poucas povoadas, localizando-se próximas de rios e outras fontes de água, e

também das paradas durante o transporte do gado e o comércio de primeiras

necessidades. 69

Desse modo, percebe-se que a maneira como o interior do Nordeste foi povoado

influenciou decisivamente no universo cultural desse sertanejo. A atividade econômica

desenvolvida nesse espaço propiciou o surgimento de um personagem comumente encontrado

nas caatingas e cerrado do agreste ou sertão nordestino, o vaqueiro. A sua figura vive no

imaginário popular como um ser forte e corajoso com sua vestimenta típica de couro, uma

forma de proteção, montado num cavalo. Esse personagem suscita no momento em que os

fazendeiros passam a habitar cidades do interior próximas de suas fazendas, precisando então

de uma pessoa para cuidar do gado.

Na época da seca temos o período mais duro e difícil tanto para o gado como para o

vaqueiro, o qual se utiliza da vegetação mais abundante na região nessa época, os cactáceas

(cactos, macambiras, palmas e xique-xique), que devem ser preparados para poder ser

consumidos pela criação. Fato este bastante característico da região sisaleira em que o

trabalhador rural também lança mão dessa vegetação típica da região para alimentar a

pequena criação e, muitas vezes para sua própria sobrevivência. Todavia, o diferencial está no

manejo com o sisal, o qual possibilita uma alternativa de sobrevivência.

No nordeste baiano é comum a Festa de Vaqueiros, sendo a maior parte dos sisaleiros

participantes dessa manifestação popular. Em alguns casos, a mesma pessoa que exerce a

função de sisaleiro também trabalha como vaqueiro nas terras do próprio dono do “motô”,

ambas as funções, muitas vezes, são complementares e interligadas para aumentar a renda da

família.

Uma característica desta festa é um canto denominado de aboio muito usado também

pelo trabalhador rural na roça. O aboio é um canto de trabalho utilizado pelo vaqueiro para

tocar a boiada durante as migrações, durante as apartações, etc., além de também ser um

elemento voltado para a interação entre os próprios vaqueiros, quando estes abóiam juntos em

69

PRADO Jr., Caio. História Econômica do Brasil. 15 ed. São Paulo: Brasiliense, 1972, p.153.

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40

consonância. 70

Há também o aboio de roça muito ligado ao trabalho nas plantações no semi-

árido, entoada durante a bata de feijão e do milho.

Portanto, as músicas dos cantadores fornecem elementos que levam a compreensão do

cotidiano vivido pelos nordestinos, e em plano mais geral, as próprias relações sociais

travadas no sertão; e ainda descobrir características muito singulares deste sertão e de seus

sujeitos. Assim, essas melodias expressam a vida e os costumes de um Nordeste de grande

exuberância cultural.

2.4 Cultura e Identidade regional no nordeste baiano

Todos os homens têm uma identidade que recebem dos diversos grupos em que vivem. O

Nordeste é uma produção imagético-discursiva formada a partir de uma sensibilidade cada

vez mais particular. Organizada em torno de situações que propiciam diversas manifestações

da arte, a região inspira um povo que produz a partir das dificuldades enfrentadas no ambiente

em que vive.

Dentro dessa imensa Região Nordeste, encontram-se várias particularidades e

identidades culturais que compõe esse espaço marcado fortemente pelo multiculturalismo.

Dentre estes está a baianidade, sendo também utilizada em muitos casos como discurso de

identidade comum a toda a população baiana, sem levar em conta as diversidades dentro de

um mesmo estado. Claúdia Vasconcelos em seus estudos sobre o sertão, em particular o da

Bahia, traz essa problemática e abre uma discussão de que “apesar de pensar criticamente

sobre esta imagem da Bahia, estes estudos tem se centrado no recôncavo, tendo como

principal referência a cidade de Salvador, problema que se reproduz em importantes estudos

históricos”. 71

Diante disso, Vasconcelos alerta para o reducionismo que é construído em torno de uma

imagem de identidade oficial da Bahia. Pois, na sua concepção, mesmo ocorrendo estudos

culturais pautados na alteridade e no respeito às diferenças dentro das academias, estas não

são suficientes para problematizar sobre a questão da diversidade baiana. Esse fato torna-se

evidente quando se opõe o litoral com o interior do estado, principalmente o semi-árido

baiano, sendo este último estigmatizado e considerado irrelevante para a construção da

baianidade, até mesmo devido à discrepância entre ambas as regiões no que refere aos seus

estilos de vida.

70

CASCUDO, Luis da Câmara. Vaqueiros e cantadores. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1984, p. 245. 71

VASCONCELOS, Op. cit. 2006, p.11.

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41

Essa visão é reforçada ao se produzir uma imagem hegemônica e oficial do estado,

em que as belezas e os elementos ligados a modernidade se concentram em um só

espaço, a capital e seu recôncavo, em contraponto a toda uma região culturalmente

muito rica que passa a ser um desconhecido, ou mesmo um não lugar, dentro de um

mesmo território (estado). 72

No cenário de paisagens físicas e humanas bastante heterogêneas que caracterizam o

Estado da Bahia o Território do Sisal emerge com peculiaridades marcadamente distintas das

demais regiões que servem de berço para o multifacetado povo baiano. Os traços da grande

nação nordestina encontram-se presente nessa região seja por suas características

fisiográficas, encravada que está no meio do sertão semi-árido, seja pela história e pelos

costumes que forjam a identidade de seus habitantes, que se construiu a identidade do povo

sisaleiro.

Nesse sentido, percebe-se o território construído como um espaço de relações sociais,

onde há o sentimento de pertencimento dos atores locais à identidade construída, e associada

ao espaço de ação coletiva e de apropriação, onde são criados laços de solidariedade entre

seus atores. 73

Dessa forma, a identidade e a cultura do povo sisaleiro, no imaginário social,

conferiu-lhe características próprias, como o desenvolvimento social, político e econômico

pautado na agaveicultura, que cria a imagem de distinção entre estes e os habitantes de outras

regiões da Bahia, sem que isto lhe tire ou lhe diminua a legitima condição de baiano – até

porque a singularidade dentro da pluralidade é a característica principal da “baianidade”.

Os trabalhos desenvolvidos e as tradições e costumes preservadas pelos trabalhadores do

sisal servem como espelho para a alma dessa gente, que cultiva um forte sentimento de

pertencimento ao lugar onde nasceu. Esta idéia de pertencimento bastante difundida e

apropriada por classes sociais, políticos e entidades faz com que seja proferido um discurso

em que o sertanejo, visto como um ser forte possa resistir ás adversidades naturais e não

abandonar o seu lugar. Desse modo, a sociedade sisaleira já estabeleceu a idéia de que a fibra

do sertanejo é tão forte quanto à fibra do sisal.

No entanto, as condições de vida e de dominação do sertanejo/sisaleiro no nordeste da

Bahia, sempre interferem no campo cultural e identitário desse povo. Vilbégina Santos coloca

que uma “região que terá sua visibilidade e „ divisibilidade‟ moldada por interesses dos

72

Idem, ibdem, p.12. 73

MENDES, Murilo. A identidade cultural do território como base de estratégias de desenvolvimento – uma

visão do estado da arte. Contribuição para o Projeto de Desenvolvimento Territorial Rural a partir de Serviços e

produtos com a identidade. RIMISP, março de 2006, p.5.

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42

grupos dominantes, que através do tempo, com estilos diferentes, irão repetir o estereótipo do

povo sofrido, resignado e sempre castigado pelas secas, „mas antes de tudo um forte‟”. 74

Sendo assim, reforçando essa idéia Moreira afirma que “a identidade sertaneja que se

constitui histórica e hegemonicamente é pautada na assimilação da lógica dominante,

trazendo no silêncio e na resignação suas formas mais perceptíveis”. 75

Vilbégina Santos ainda comenta sobre a idéia de vitimização da seca atribuída aos

sertanejos habitantes do território do sisal que carregam consigo interesses que perpassam a

construção de uma comunidade imaginada que une os sertanejos na dor, no sofrimento, numa

paisagem de aridez não só geograficamente, mas especialmente social. Esse discurso

difundido pela mídia, igreja e escritores da região acaba sendo apropriado pelos sisaleiros que

introduzem na comunidade em que vive essa idéia contraditória de serem ao mesmo tempo

vítimas e heróis em um ambiente marcado por uma busca incessante de identidade territorial e

coletiva que, muitas vezes, é forjada com intuito de trazer conquistas políticas e econômicas

para a região.

A identidade conformada pelos movimentos sociais é essencializada nas raízes da

história, fazendo um apelo à realidade de um passado possivelmente reprimido e

obscurecido, no qual a identidade que vem á tona no presente è revelada como um

produto da história. Historicizam também a experiência, enfatizando as diferenças

entre grupos marginalizados como uma alternativa à universalidade da opressão.

Consideramos, portanto, a política de identidade a partir do movimento social como

uma estratégia de legitimação do território do sisal. 76

A identidade dos sisaleiros, construída e disseminada por gerações, se faz presente

também nas manifestações culturais realizadas pelos os mesmos, no qual expressa seus

costumes e um contexto histórico específico em que se constitui como identidade e expressão

de uma cultura. Apesar das constantes influências culturais recebidas pelos trabalhadores do

sisal no seu cotidiano, estes por sua vez, se esforçam para manter suas tradições por meio de

várias representações artísticas que, muitas vezes, vão de encontro aos costumes da classe

dominante.

Apesar da hierarquia presente na cadeia de produção do sisal, os sisaleiros que se

encontram na base da mesma buscam incessantemente legitimar suas expressões culturais por

meio da música e da dança, dentre outras práticas cotidianas. Considerando as devidas

74

SANTOS, Op. cit., maio de 2009, p.6. 75

MOREIRA, Gislene. Identidade de fibra e resistência: os caminhos da comunicação no desenvolvimento do

território do sisal. Programa em Cultura e Sociedade da UFBA, 2007, p. 50. 76

SANTOS, Op. Cit. 2009, p.6.

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43

proporções do tempo e espaço histórico. Thompson, ao analisar a sociedade inglesa do século

XVIII comenta sobre a relação cultural entre classe dominante e os plebeus e evidência: “que

quer que tenha sido essa hegemonia, ela não envolvia a vida dos pobres, nem os impedia de

defender seus próprios modos de trabalho e lazer, de formar seus próprios rituais, suas

próprias satisfações e visão de mundo” 77

.

Diante disso, percebe-se que a identidade cultural dos sisaleiros perpassa, muitas vezes,

conjunturas econômicas e políticas para assim afirmar o modo de vida de um determinado

grupo social que por muito tempo, na região sisaleira, ficou relegada e distanciada das

práticas sociais consideradas dominantes. Todavia, dentro desse Território do sisal há

peculiaridades locais quanto às relações de trabalho e de manifestações culturais presentes em

cada espaço distinto.

O saber-fazer local seria uma própria forma de expressão cultural local, que define

a identidade, através da qual se estabelecem as relações de indivíduos e grupos. A

cultura local se refere às relações sociais existentes em espaços delimitados e

pequenos, onde se estabelecem formas específicas de representação, com códigos

comuns. 78

Dessa forma, o cenário sóciopolítico e econômico da maioria dos municípios que

compõe o Território do sisal apresenta muitas características comuns, porém, é preciso levar

em conta as especificidades quanto às relações de trabalho e as manifestações culturais

existentes em cada localidade para assim se entender o contexto histórico e o universo cultural

dessas comunidades sisaleira.

77

THOMPSON, E. P. Op. cit., 1998, p.78. 78

MENDES, Op. cit. 2006, p.5.

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44

CAPÍTULO III – SISAL E SOCIEDADE RURAL: MANIFESTAÇÕES

CULTURAIS NO TERRITÓRIO DO SISAL

Esta cultura é nossa

Temos que valorizar

Foram nossos pais que deixou

Não pode acabar

Foi trabalhando na roça

Que aprendemos cantar.

Elza Leonice79

O presente capítulo aborda a importância e o significado que as canções populares

possuem na vida dos sisaleiros no município de São Domingos. Expõe também o cotidiano

dos trabalhadores rurais nos campos de sisal, mediante o estudo de algumas manifestações

culturais existentes nas comunidades do referido município. E assim, mostra as

transformações e permanências dessas expressões artísticas no interior dessa sociedade

encravada no semi-árido baiano.

1.6 A música popular no cotidiano do sisaleiro

A região sisaleira é fortemente marcada por diversas manifestações culturais que

representam o povo que habita nesse território. Uma das tantas maneiras de expressão artística

dessas comunidades, principalmente no espaço rural, é a música produzida no dia-dia da vida

no campo, quando fazem do labor do cotidiano uma expressão rica em poesia e musicalidade.

Mais do que entretenimento os folguedos e cantos populares são momentos onde as

comunidades musical-culturais se reúnem e celebram entre si costumes e sua própria

identidade.

A utilização da música como expressão cultural das sociedades tem sido ao longo do

tempo uma referência na produção estética da humanidade. Assim a música, é comumente

usada pelas sociedades não-letradas para manifestarem a sua sensibilidade quanto à realidade

captada no cotidiano e nos costumes perpetuados por gerações. Esse fato sempre esteve

presente nas diversas organizações socioculturais humana, basta citar os agrupamentos

indígenas que se utilizam da música acoplada á dança para celebrarem os seus ritos, mitos e

desejos. Como afirma Ernest Fischer referindo-se a função social da música primitiva:

79

Trabalhadora rural na agaveicultura e componente do grupo Cantiga de Roda. Estes versos estão estampados

na camisa que leva o nome do grupo.

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45

Foi propósito da música, em seu inicio, o evocar emoções coletivas, o atuar como

estímulo para o trabalho, para o gozo sexual e para guerra. A música era um meio

de atordoar ou excitar os sentidos, um meio de aprender por encantamento ou

impelir á ação. Servia para pôr os homens em um estado diferente e não para

refletir os fenômenos do mundo exterior. 80

A música surge no Território do Sisal em meio a um ambiente adverso marcado

fortemente pela seca, pobreza e miséria, mas o sertanejo encontra inspiração na força criativa

dos versos e melodias que renovam a esperança de dias melhores. “Assim pensar as

linguagens musicais da cultura regional torna-se oportuno na medida em que representam

uma das mais importantes facetas da nossa canção popular”. 81

Dentre várias linguagens musicais presente no universo do sisaleiro, personagem típico

dessa região, apresenta-se o “aboio de roça” que surgem da espontaneidade e, ao mesmo

tempo, com caráter poético, possibilitando condições para o desenvolvimento das melodias

que nas vozes dissonantes aparecerão os versos dando forma a canção popular. Esse estilo de

expressão musical é bastante utilizado no trato com o gado conduzindo-o a um destino

especifico, como também no trabalho da roça com a finalidade de excitar a produção e obter

animação para a realização do trabalho. Todavia, não somente o aboio é cantado no ambiente

de trabalho, como também diversas outras cantorias herdadas de seus antepassados ou

improvisadas no momento. Tais como:

Domingo é dia de pescaria

Que levava eu

De camisa e saburá

Maré tá cheia

Pescar na areia

Que na areia

Tem mais peixe

Que no mar

Todo bom pescador

É um só

Todo bom pescador

Pesca em pé

Não precisa pescar de anzol

Estou com os olhos feitos jacaré, é.

80

FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. 212. 81

SANTOS, Ricardo Ferreira dos. A representação sócio-cultural do cotidiano rural na produção artística do

grupo da Quixabeira. In: III ENECULT, Faculdade de Comunicação /UFBA, Salvador, maio de 2007, p.3.

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46

Esses versos retratam o dia que era destinado ao lazer, o domingo, em que o termo

pescaria mencionada nessa canção pode obter duplo sentido. Pois, além do sentido

comumente utilizado de pescar o peixe, também fica subtendido a idéia de pescar ou

conquistar uma mulher, sendo que, o cantador refere-se a uma pesca fora da areia, que não

precisa necessariamente de anzol. Então, essas simples palavras colocadas em forma de

canção, além de representar uma cena real da vida do trabalhador, também proporcionavam a

descontração no ambiente de trabalho, que assim era seguido por mais versos de outras

pessoas até o final da jornada de trabalho. É importante salientar que em todo o percurso até

chegar ao destino do trabalho e no retorno para casa, cantava-se o tempo todo.

E assim, na definição de cultura popular de Alfredo Bosi, há uma clarividência da relação

entre o universo material e o universo espiritual ou simbólico do povo sertanejo:

Cultura popular implica modos de viver: o alimento, o vestuário, a relação homem-

mulher, a habitação, os hábitos de limpeza, as práticas de cura, as relações de

parentesco, a divisão das tarefas durante a jornada e, simultaneamente, as crenças,

os cantos, as danças, os jogos, a caça, a pesca, o fumo, a bebida, os provérbios, os

modos de cumprimentar, as palavras tabus, os eufemismos, o modo de olhar, o

modo de sentar, o modo de andar, o modo de visitar e ser visitado, as romarias, as

promessas, as festas de padroeiro, o modo de criar galinha e porco, os modos de

plantar feijão, milho e mandioca, o conhecimento do tempo, o modo de rir e chorar,

de agredir e de consolar (...). 82

Esses elementos estão presentes no contexto dos trabalhadores rurais do sisal que

formam os diversos grupos de reisados e cantigas de roda no município de São Domingos. A

vida simples e inventiva conjuga-se com o imaginário do povo sertanejo. As canções surgem

da própria experiência de vida, e falam de suas relações com o meio, onde o físico e humano

estão imbricados, proporcionando uma avalanche de sons, ritmos, versos, danças que

envolvem todas as gerações num universo musical que alegra e reanima o sertanejo a

continuar sua caminhada apesar das adversidades existentes na região sisaleira. Desse modo,

com muita alegria e falando sempre em paixões e namorados ou namoradas, os versos surgem

de forma improvisada ou memorizados, ao presenciar as cantorias dos mais velhos:

Borboleta tá no tanque

Com pena de voar

Quem tem amor bonito

Tem pena de deixar.

82

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. Das Letras, 1992, p.324.

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47

O sol girooô (2x)

Tomaram meu amor

Eu vou na porta buscar

Isso é um desaforo

Eu amar e outra tomar.

A maioria das canções falava de amor e eram cantadas pelas mulheres no trabalho na

roça. Posteriormente, com o apogeu do sisal, essas cantorias foram transferidas para os

campos de agave e, principalmente no setor em que se estendia a fibra da planta, pois era uma

função comumente ocupada por mulheres. Os homens também participavam das cantigas de

roda no momento do trabalho, mas o “aboi de roça” tinha se tornado o estilo musical mais

praticado e difundido entre os trabalhadores rurais. Esse estilo de música exige uma voz

extremamente afinada e alta, sendo as melodias entoadas para chamar a boiada da seguinte

forma:

Esse boi saiu do meu currá

Que saiu do meu currá

Esse boi careta

Esse boi capeta

Esse boi de treta

Pulou a cerca

E a cerca balançar

Saí pelo caminho

E encontrei o vizinho

Eu consegui, meu boi laçar

Meu boi lacei

Da corda puxei

Escorreguei, e amarrei

Na purteira do currá

E esse boi desata menino

Na hora que ele chegou.

Oh, ah... Ô boi!

A maioria das canções era feita naquele momento específico de cantoria. A improvisação

era uma característica marcante dessas manifestações, pois mesmo transmitidas por gerações

estas recebiam sentidos diferenciados em cada contexto e espaço vivenciado, além das

transformações nas letras e melodias que eram reelaborados pelas novas gerações de

aboiadores e sambadores do município.

As letras das canções retratavam bastante a criação de gado, visto que, por muito tempo

esta permaneceu como a principal atividade econômica da região sisaleira. Porém, em virtude

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48

dos constantes períodos de seca e a introdução da agaveicultura na região, a pecuária passa a

ocupar uma posição secundária no panorama econômico regional, e por sua vez local. Apesar

da diminuição gradativa da criação de gado e o aumento do criatório de cabras, devido à

resistência desse animal à seca, o apego e apreço desses trabalhadores rurais pelo gado é

evidente nas músicas, mesmo no manejo com o sisal. Isso se tornava comum, pois muitos

sisaleiros possuíam no seu pedaço de terra alguns animais para sustento da família, ou então,

os que não possuíam almejavam muito poder adquirir algumas “cabeças” de gado. Na

verdade, possuir gado e terras era sinônimo de riqueza, conferindo-lhe poder político e

econômico, além do prestígio na comunidade. Segue assim, alguns versos de uma canção que

remetem a utilidade e importância desses animais para a família dos trabalhadores rurais:

Eu vou prender meu gado

No curral do alazão (2x)

Se minha vaca mineira

É da cor de leiteira

Tire o leite pra manteiga

Pra café e requeijão.

A música popular está tão arraigada nos costumes dos sisaleiros que se torna impossível

dissociá-la das relações sociais de produção no Território do sisal. No município de São

Domingos há em quase todas as comunidades rurais um grupo de reisado, de cantiga de roda

ou samba ligados a uma associação ou como organização independente. E como relata

Marisete de oliveira83

“a gente trabalhava cantando o dia todinho. Cantando pra distrair

porque quanto mais você relaxava e não sentia o cansaço e nem a hora passar, porque você

cantando e trabalhando ia embora. Você tinha agilidade no trabalho”.

As temáticas das canções originadas e transmitidas no local de trabalho raramente

abordavam diretamente o cotidiano de trabalho. Os sisaleiros e sisaleiras cantavam sobre

amores, paixões, aboiavam e criavam versos que servissem para distração, ou seja, toda essa

cantoria era realizada, na maioria das vezes, como uma “fuga” da realidade na qual estavam

inseridos. Esse fato não se pode generalizar, mas o cotidiano fatigante e pesado aparece em

poucos versos de músicas presentes nessas manifestações, o que não significa que as canções

sejam destoantes do contexto em que são cantadas. Pelo contrário, como “fuga” ou retrato da

realidade esses versos acabavam refletindo os costumes e o cotidiano desses trabalhadores e

83

Organizadora de eventos culturais por meio do Projeto Ponto de Cultura da Bahia.

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49

trabalhadoras do sisal. Um dos raros versos que se refere ao trabalho com o sisal mostra as

conseqüências do manejo com a referida planta e os seus danos à saúde, já que o contato

constante com o agave causava uma série de doenças, tais como: mal estar, alergia, problemas

respiratórios, coceiras na pele, dentre outros malefícios que poderiam ser adquiridos, em todo

o processo de desfibramento, desde a extração até o contato com a fibra seca do sisal.

Papagaio louro

Sabiá da praia

Valdir cabelo loiro

Ele é cortador de paiá

Eu perguntei a ele

Tá sentindo alguma dor

Está amarelecendo

É o resíduo do motô

Algumas canções conseguem reunir várias temáticas, tais como amor e trabalho, na

mesma estrofe. Isso em virtude de muitas vezes estes elementos estarem imbricados no

momento da criação ou cantoria. Os versos seguintes enfocam justamente os seis dias de

constante e exaustivo trabalho realizado pelo lavrador, que objetivava com seu suor agradar e

sustentar a mulher amada, mas esta o rejeitava e dispensava o seu amor.

Olé, olé, olé, olá.

A semana tem seis dias

Vou morrer de trabalhar

Morrer de trabalhar

Pra sustentar essa mulher

O pago que ela me dar

É dizer que não me quer.

Essa característica musical marcante na vida do trabalhador do sisal lhe confere uma

identidade não somente no ambiente e nas relações de trabalho, como também pela

importância que as canções populares contribuem para o lazer desses indivíduos. Os

encontros e as cantorias iniciam-se no ambiente de trabalho e perpassa as fronteiras do

município onde esses grupos realizam apresentações. Dessa forma, o espaço de produção está

intimamente relacionado com as manifestações culturais desenvolvidas no referido município.

Analisando o processo de colheita dos trabalhadores camponeses da Inglaterra do século

XVIII, Thompson chama atenção para o reducionismo nos enfoques históricos, em que a

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50

predominância se restringe ao aspecto econômico, perdendo de vista a dimensão artístico-

cultural própria desses lugares sociais produtivos:

E também é verdade que o bom moral dos trabalhadores era mantido graças aos

bons ganhos que conseguiam nas colheitas. Mas seria um erro ver a situação das

colheitas apenas em termos de respostas a estímulos puramente econômicos. É

também um momento em que os velhos ritmos coletivos se entrelaçam nos novos:

em que o peso do folclore e dos costumes da gente do campo são chamados a

participar na satisfação psicológica das pessoas e nas funções rituais da colheita. 84

Nesse sentido, as manifestações culturais no semi-árido baiano, especialmente em São

Domingos, ocorriam em diversas datas do ano. As cantorias eram feitas para celebrarem

aniversários, após as rezas, em batizados e em encontros casuais entre amigos que pretendiam

se divertir naquela noite. Além do entretenimento que propiciava aos trabalhadores rurais,

esses encontros exerciam também a função de transmitir a cultura popular local ou mesmo

regional, onde os mais novos aproveitavam para aprender e incorporar as linguagens musicais

ao seu contexto e universo cultural.

Na perspectiva de Renato Ortiz a cultura popular:

(...) é plural, e seria talvez mais adequado falarmos em culturas populares. No

entanto se tomarmos como ponto de partida cada evento folclórico em particular

(um reisado, uma congada), a comparação com os cultos afro-brasileiros é legítima.

A memória de um fato folclórico existe enquanto tradição, e se encarna no grupo

social que a suporta. É através das sucessivas apresentações teatrais que ela é

realimentada. Isto significa que os grupos folclóricos encenam uma peça de enredo

único que constitui sua memória coletiva. 85

A oralidade é o principal instrumento de transmissão das manifestações culturais nessa

localidade, e permanecendo guardadas na memória coletiva dessas comunidades, em especial

pela memória dos velhos da região. Essa memória coletiva é aqui compreendida como “um

conjunto de representações sociais que têm a ver com o passado, produzidas, guardadas e

transmitidas por um grupo pela interação com seus membros”. 86

Dessa forma, esse termo

emerge enquanto espaço de registro continuamente reconstruído, no âmbito do qual os

sujeitos reconhecem e valorizam determinadas experiências. A memória também é seletiva,

84

THOMPSON, E. P. O tempo, a disciplina do trabalho e o capitalismo industrial. In: SILVA, Tomaz Tadeu da

(org.). Trabalho, Educação e pratica social: por uma teoria da formação humana. Porto Alegre: Artes Médicas,

1991, p.50-51. 85

ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.134. 86

JEDLOWSKI apud FREIXO, Alessandra Alexandre; TEIXEIRA, Ana Maria Freitas. As “fibras” da História:

memória de velhos na região sisaleira da Bahia. S.d., p. 1.

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51

por isso o indivíduo ou grupo que está sob enfoque precisa ser inserido no contexto em que

viveu e/ou vive para se entender o seu universo cultural. Considere-se ainda, nesta perspectiva

que:

A memória é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma

representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do individuo

somente, mas de um individuo inserido num contexto familiar, social, nacional.

Portanto, toda memória é, por definição “coletiva”. 87

É importante salientar, que as expressões musicais disseminadas por décadas pelos

trabalhadores rurais aos seus descendentes remetem-se, em grande parte, ao período das casas

de farinha. Anterior ao apogeu da sisalicultura no município de São Domingos, a agricultura

familiar baseava-se na plantação de mandioca88

em grande quantidade e, na produção da

farinha de tapioca, beiju e outros produtos alimentícios importantes na alimentação de toda a

família do agricultor. Sendo assim, todo o processo de plantação da mandioca até a obtenção

do produto final era executado por todos os membros da família, desde os mais velhos até as

crianças participavam dessa grande festa nos ambientes onde se produzia a farinha.

A plantação da mandioca foi predominante até final da década de 60. Após esse período

o cultivo do produto diminui em virtude da escassez de chuvas na região, e o sisal passa a

predomina devido a sua resistência aos extensos períodos de seca no município. Como relata a

senhora Isaura Alvino Araújo, ex-trabalhadora rural, “no tempo da mandioca a gente vivia

porque a gente tinha criação de cabra, muita cabra, só comia coisa da roça, da fazenda

mesmo, ninguém comprava carne. Vivia mais matando os criatórios da gente mesmo”.

Os trabalhadores rurais são-dominguenses relatam que, naquele período, as famílias

viviam basicamente da agricultura e do criatório. A colheita da mandioca era realizada

anualmente onde reuniam familiares, amigos e vizinhos para transformar a raiz em farinha. O

trabalho era dividido e feito em várias etapas, iniciava-se pela colheita da planta realizada

pelos homens que levavam a mandioca em cargas no jegue para um galpão conhecido como

casa de farinha. A próxima etapa era executada em grande parte pelas mulheres, cuja função

era ralar a mandioca e extrair a goma e, logo após, os homens espremiam a massa numa

prensa que era depois peneirada pelas mulheres e torrada em uma fornalha dando origem a

tapioca.

87

ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes

(coordenadoras). Usos & abusos da história oral. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p.94. 88

Mandioca (Aipim ou Macaxeira) é o nome pelo qual é conhecida espécie comestível e mais largamente

difundida do gênero Manihot, composto por diversas variedades de raízes comestíveis.

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52

Para obter o produto final, a farinha, os trabalhadores rurais passavam um dia e uma

noite na produção adentrando pelo dia seguinte. Durante todo o decorrer do processo de

fabricação eram entoadas cantorias, e estas por sua vez, acompanhadas de rodas e consumo de

bebidas que animavam os trabalhadores na realização do trabalho. Na verdade, tornava-se um

momento de grande festa para a população próxima à casa de farinha. E na maioria das vezes,

esses ambientes exerciam a função de transmitir e ensinar aos mais novos a tradição da

fabricação da farinha e também dos costumes, incluindo as músicas, presentes nesses espaços

de festa e alegria.

A partir disso, contata-se que as manifestações culturais ligadas ao cotidiano dos

trabalhadores rurais no município de São Domingos antecedem a implantação da

agaveicultura na cidade. Contudo, reelaborada e num contexto diferenciado é que os sisaleiros

foram incorporando esses costumes ao local de trabalho. No que tange as transformações

socioeconômicas de uma determinada sociedade, considerando as devidas especificidades,

Thompson evidencia na sociedade inglesa impulsionada no século XVIII pela industrialização

que “não existe desenvolvimento econômico que não seja ao mesmo tempo desenvolvimento

ou mudança de uma cultura. E o desenvolvimento da consciência social, como o

desenvolvimento da mente de um poeta, jamais pode ser em última análise planejado”. 89

É de extrema importância entender a íntima relação existente entre os lavradores rurais

com o trabalho e sua incorporação na vida dos mesmos, constituindo-se assim como um

sentido de sua existência. O ritmo intenso e o desgaste do trabalho no campo, muitas vezes

causam a dor, mas retiram-se dessas condições adversas de sobrevivência algumas alegrias

que são identificadas na produção estético-musical das comunidades rurais sisaleiras do

referido município. Fica evidente no momento que Ecléa Bosi faz a seguinte colocação:

Na raiz da compreensão da vida do povo está a fadiga. Não há compreensão

possível do espaço e do tempo do trabalhador manual se a fadiga não estiver

presente e a fome e a sede que dela nascem. E as alegrias que advém desta

participação no mundo através do suor e da fadiga: o sabor dos alimentos, o

convívio da família e a vizinhança, o trabalho em grupo, as horas de descanso. 90

Essas circunstâncias compõem o cenário em que os sisaleiros produzem suas alegrias

manifestadas nas melodias e cantos. O cotidiano exaustante impulsiona a imaginação artística,

e esta por sua vez expressa o contexto sócio-cultural no qual o povo exprime seus ritmos, sons

89

THOMPSON, E. P. op. cit., 1998, p. 304. 90

BOSI, Alfredo. op. cit., 1992, p. 27.

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e sentidos, ou seja, a sua arte. Dessa forma, a natureza está extremamente imbricada com o

universo cultural presente na vida dos trabalhadores do sisal.

1.7 Grupos de Reisados no município de São Domingos

Os reisados surgem num contexto intenso de religiosidade e com características

européias. No livro de Mateus, na bíblia, há passagens que retratam superficialmente os reis

magos, conhecida popularmente como a “Adoração dos Reis Magos”. Porém, essa passagem

da Escritura Sagrada apresenta alguns enigmas quanto às características, nomes e outros

elementos referentes aos reis magos. Esse fato ensejou infindáveis reinterpretações sobre essa

narrativa bíblica ao longo dos tempos e, assim, torna-se inspiração para as mais variadas

interpretações nas letras e nas artes, contribuindo para o desenvolvimento de tradições

populares mais diversas.

Este contexto levou Mâle, no século XIX, á seguinte reflexão:

A imaginação popular cedo foi aos evangelhos, tentando complementá-los, no que

faltava. As lendas originaram-se nos mais antigos séculos da cristandade. Elas

nasceram do amo, de um tocante desejo de conhecer mais Jesus e aqueles próximos

[...]. O povo achava os evangelhos muito sucintos [...]. Nenhuma das cenas da

infância de cristo forneceu mais rico material para o povo que a Adoração dos

Magos. Suas misteriosas figuras, mostradas veladamente nos evangelhos,

despertavam ávida curiosidades nas pessoas. 91

Após um longo período de questionamentos e curiosidades bispos e, principalmente

papas, atribuíram alguns aspectos inexistentes ao texto bíblico, como o título de Reis aos

magos do Oriente, a quantidade dos mesmos e posteriormente os nomes. As tradições

populares do ciclo natalino era comum em toda a Europa Cristã. E assim, representações de

rituais litúrgicos relativos aos magos, que, a princípio, eram realizados no interior das igrejas

são popularizados e transportados para praças e ruas. Nos povoados rurais grupos levavam a

mensagem do nascimento de Jesus Cristo, representado nas figuras dos Reis (magos), de casa

em casa. 92

Desse modo, atravessando o oceano essas tradições de cunho religioso desembarcam no

Brasil no período colonial. Os colonizadores conjuntamente com os jesuítas vindos com o

91

MALÊ apud TORRES, Lúcia Beatriz; CAVALCANTE, Raphael. Folia de Santos Reis. Programa SALTO

para o futuro: Aprender e Ensinar nas Festas Populares. Secretária da Educação à Distância. Ministério da

Educação, abril 2007 p. 15-16. 92

Idem.

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primeiro Governador Geral Tomé de Souza, em 1549 e em anos seguintes, trouxeram esses

costumes da Península Ibérica.

A folia, como a música e o drama, foi usada pelos jesuítas para a catequese. Os

padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta usavam as folias e outras danças nas

procissões e nos autos, muitos escritos na língua geral. Com a consolidação da

colonização, os rituais usados na catequese do índio disseminaram-se entre colonos

portugueses, negros escravos e mestiços de toda a sorte e foram incorporados às

festas dos padroeiros. 9933

Na medida em que o povoamento expandiu-se, essas manifestações se ramificaram e se

difundiram por todo o território colonizado. Com o passar do tempo “essas tradições

sofreram, gradativamente, a influência local pela incorporação dos elementos da cultura negra

e indígena, através de hibridismos religiosos e culturais”. 94

No Brasil, as tradições populares

do ciclo natalino, influenciados pelos costumes religiosos ibéricos, são conhecidas por

reisados. Segundo Câmara Cascudo “[...] sem especificação maior refere-se sempre aos

ranchos, ternos e grupos que festejam o Natal e Reis. O Reisado podem ser apenas a cantoria

como também possuir enredo” 95

. É importante salientar que nem todas as manifestações que,

são habitualmente chamadas de reisados, retratam a temática dos Reis Magos e Menino Jesus,

mas possuem na sua essência o ritmo e danças características dessa tradição.

Na verdade, as características dos grupos de reisados variam de região para região em

todo o território brasileiro, representando os costumes e universo de cada comunidade que

expressa nessas manifestações o seu cotidiano e modo de vida. Então, os reisados representam

a singularidade e identidade de um determinado grupo social e assim tornam-se

“representação coletiva” numa dada sociedade. Roger Chartier aborda a expressão

“representação coletiva” da seguinte forma:

[...] três modalidades de relação com o mundo social: de início, o trabalho de

classificação e de recorte que produz configurações intelectuais múltiplas pelas

quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos que

compõem uma sociedade; em seguida, as práticas que visam a fazer reconhecer

uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar

simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e

objetivadas em virtude das quais “representantes” ( instâncias coletivas ou

93

RIOS, Sebastião. Os cantos da festa do reinado da nossa Senhora do Rosário e da folia de Rei. Sociedade e

Cultura, jan. - jun., a no/v. 09, n. 001. Universidade Federal de Goiás: Goiânia, 2006 p. 67. 94

TORRES, Lúcia Beatriz; CAVALCANTE, Raphael. Op. Cit. abril 2007 p. 17. 95

CASCUDO apud TORRES, Lúcia Beatriz; CAVALCANTE, Raphael. Op. Cit. abril 2007 p. 18.

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indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpetuo a existência do grupo, da

comunidade ou da classe. 96

A diversidade e formas de reisados existentes dificultam a conceituação e classificação

do mesmo. Em cada canto do território brasileiro há denominações diferenciadas e

peculiaridades quanto à maneira que se expressa essa tradição. Na Bahia é comumente

denominado de Terno de Reis característico da região metropolitana e Recôncavo. Já na

região sisaleira essa manifestação é conhecida como Reisado ou Folia de Reis.

No município de São Domingos essas manifestações, bem como em todo o Território do

sisal, estão intimamente ligadas ao trabalho com o sisal nos campos da cidade. Essas

expressões culturais são passadas de geração em geração e assim eram realizadas desde o

período das plantações intensas de feijão, milho, mandioca... até a cultura que a partir da

década de 1980 passa a prevalecer no referido município, a sisalicultura.

De acordo com as pesquisas realizadas em São Domingos na década de 1990 havia em

torno de oito grupos de reisados espalhados por todo o território municipal. Isso evidencia

uma significativa redução desses grupos em relação há décadas anteriores. Os reisados a

princípio eram cantados entre o dia 24 de dezembro a 6 de janeiro por um grupo de músicos,

cantadores e dançadores que de porta em porta anunciavam simbolicamente o nascimento de

Jesus e homenageavam os Três Reis Magos. Depois de certo tempo o ritmo e alguns versos

dessa manifestação passam a ser inserido nas tarefas cotidianas e, principalmente, nas festas

das comunidades rurais como momento de descontração e lazer.

O mutirão cumpria um papel social bastante importante na vida do sertanejo.

Adotado em pequenas propriedades, era utilizado para a derrubada da mata, a

semeadura, a limpeza da roça, a colheita, a edificação de casas (...). Mas não era só

isso, o mutirão não era exclusivamente uma atividade árdua, cumpria uma função

ética e lúdica: alem de traduzir-se num compromisso dos que pertenciam àquela

coletividade, também ensejava um dia de festa, pois o trabalho não se dissociava da

alegria e nem da satisfação em ajudar o próximo. 97

Nesses espaços de produção familiar e ajuda comunitária tornava-se constante os

reisados e outras expressões culturais. Então, toda família trabalhava na roça e, quando esta

não dava conta do trabalho surgiam os “batalhões” ou “boi roubado” – mutirões e em troca, o

dono da casa matava ou se “roubavam” um boi e o servia como almoço aos trabalhadores

96

CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação. Revista Annales, 1991, p. 183. 97

NASCIMENTO, Op. cit., 2003, p.35.

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voluntários. Esta prática dos batalhões, mais que momentos de trabalho, eram festas que

podiam se estender por dias quando se cantavam, dançavam e “batucavam” (ver em anexo as

canções do “Boi roubado”). O senhor Dermival Trabuco da Silva relata essa experiência do

mutirão da seguinte forma:

Muitas vezes, você é vizinha da gente aí tem um trabalho pra fazer, aí quer fazer

aquele selviço de uma vez só. Aí a gente junta, convida um bucado de amigo e ás

vez até sem você saber sem nada, né? Sabe que você gosta de diversão também e

quer o selviço feito. Aí junta os amigos e quando é de madrugada vai lá e sortá um

bucado de fuguete e aí pega canta um boi de madrugada. Aí quando o dia amanhece

toma o café e aí bora trabalhar e cantar, soltar fuguete o dia todinho. Aí meio-dia

pegar a bóia e... Quando é de tarde, à hora quando terminou é hora de cantar

bandeira e sambar a noite todinha é grande diversão.

Nessa manifestação as músicas são aboios que retratam o trabalho cotidiano dos

sisaleiros. Além disso, retratam também os amores que são lembrados no momento da

cantoria, e assim o saudosismo surge nas cantigas como forma de reviver o passado e resistir

ao presente, em que o trabalho árduo é esquecido por um instante ou maquiado por alguns

momentos de alegria e muita música. Alguns sucessos musicais eram reelaborados de maneira

que recebiam uma nova melodia e entonação no trabalho diário:

Que beijinho doce que ela tem

Depois que beijei ela

Nunca mais beijei ninguém

Que beijinho doce foi ela quem trouxe

De longe pra mim.

Um abraço apertado

Suspiro dobrado que amor sem fim.

Algumas canções tornaram-se típica do trabalhador rural, quase um hino nas

manifestações no campo, cantadas tanto na rotina de trabalho quanto nas festas de reisados,

cantigas de roda, “bandeira”, “boi roubado” e sambas nos finais de semana:

Como faz, como faz

Um passarinho

Que fez um ninho e avuou, vôo

E eu fiquei sem teu carinho

Sem teu amor.

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Após o término da “roubada de boi” segue ao entardecer a “bandeira”. Essa etapa da

manifestação consiste em festejar juntos homens e mulheres. É importante ressaltar ainda a

questão de gênero que pode ser observadas a partir dos papéis atribuídos às mulheres e aos

homens nos batalhões. O “trabalho da roça”, entendido como “trabalho duro” era atribuição

dos homens, enquanto que a preparação das refeições estava delegada às mulheres.

Para a realização da “bandeira” as mulheres confeccionavam uma bandeira branca e

outra vermelha, ambas com enfeites, e levavam para o local onde acontecia o batalhão. Então,

ao terminar o dia de trabalho, os homens retornavam cantando para a casa do dono da fazenda

e, encontravam as mulheres postas em fila na frente da casa, esperando-os com vários

instrumentos nas mãos (prato, pandeiro, bebida e etc.) e a bandeira branca carregada pela

princesa da festa que se posicionava a frente das demais mulheres. Os homens também

traziam uma bandeira vermelha que seria trocada no decorrer da manifestação.

Após a formação das duas colunas, uma de frente para a outra, se inicia a festa. Uma

dupla de cantadores, que fazem a primeira e segunda voz, se desloca da fileira e aproxima-se

de uma das mulheres fazendo versos, que pode ser também improvisados, e trocam

primeiramente as bandeiras na abertura. Logo após, repete-se a ação quantas vezes for

necessário até que termine todos os objetos que estão com as mulheres (ver em anexo as

canções da “Bandeira”). “Acabou ali agora trocou as bandeiras e agora tocou um batuque, e aí

agora vai fazer uma roda ali. As mulheres tudo marchando e os homens também e aí depois

entra pra dentro de casa e vai sambar”. 98

Na verdade, a bandeira possui alguns traços do reisado, pois são utilizados os mesmos

instrumentos para produzir os sons, sendo o ritmo das cantorias semelhante ao dos reis. Uma

das diferenças entre as manifestações refere-se ao período e ambiente onde são realizados. A

bandeira acontece sempre após um “boi roubado”, ou seja, é o ponto culminante de todo dia

de trabalho comunitário seguido de um samba. Já o reisado era realizado apenas no período

natalino, mas com as constantes transformações e organização dos grupos de reisados tornou-

se comum suas apresentações durante o ano todo, seguidas também é seguido do samba de

roda depois da apresentação e entrada na casa ou instituição convidada para realizar a

manifestação.

Essa tradição também foi incorporada ao trabalho do sisaleiro que realizava com

freqüência essas manifestações em décadas anteriores. A partir de 1990, contudo, percebe-se

uma redução das apresentações desses grupos nas comunidades rurais do município. Em

98

Depoimento do trabalhador rural Dermival Trabuco da Silva, membro do grupo de reisado da Ladeira.

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contrapartida, nota-se uma organização maior dos mesmos, muitas vezes ligados a

associações das comunidades em que vivem. Isso faz com que as demonstrações de reisados

ultrapassem as fronteiras rurais e locais e lhes confira visibilidade na sociedade urbana.

Na Folia de Reis, apresentação é concebida como o ponto máximo de demonstração

do valor do saber e da fé do folião, lócus de exibição do que foi aprendido,

ensaiado e incorporado, muitas vezes durante uma vida. É a oportunidade do folião

de mostrar para a comunidade sua arte, sua religiosidade, sua fé e, principalmente,

demarcar o seu lugar na sociedade que muitas vezes o ignora por ser pessoa de

pouca escolaridade e de baixa renda. 99

Nas últimas duas décadas essas manifestações culturais passam a ser reconhecidas e

valorizadas no ambiente urbano. Um caso que chama atenção no município é o grupo da

Ladeira fundado em meados da década de 1990, o qual reúne componentes de dois municípios

vizinhos, Valente e São domingos, nos quais habitam músicos e sambadores da Fazenda

Algodões e Riacho do Cedro, sendo respectivamente comunidades das referidas cidades. Esse

grupo de reisado é o ponto de interseção cultural entre ambas as localidades, além do mais, as

duas comunidades situam-se nas divisas municipais.

O grupo de reisado Ladeira recebe esse nome em virtude de o organizador da

manifestação residir na Fazenda Ladeira, sendo então homenageado pelos seus colegas de

cantoria que são ao todo oito homens. O surgimento desse grupo aconteceu da seguinte

maneira:

[...] a gente sempre brinca e tem aquele negócio de reis de corrida. Além de ... do

reis de corrida a gente já fizemos aquele grupo pra gente sambar em todas as

brincadeiras e a gente cantar reis indiferente desses dias e continuar com aquele

grupinho certo, né? Aí tem, por exemplo, o grupo da Ladeira, aí começamos, todo

ano nós canta o reis de corrida. O reis de corrida é assim começa no dia 1º de

janeiro até o dia 6. A gente canta a noite todinha (...) cantou ali saiu o reis passou

pra outra casa, aí um dá um agrado um dá outro, aí a gente vai passando (...) Aí

agora nós temos esse grupo da gente que a gente continua. Um convida pra gente

levar um reis, ir na casa de um a gente vai, canta o reis, samba a noite todinha e vai

as mulheres e canta roda também e aí uma diversão da gente, há muitos anos é...

dos avôs da gente, né? Dos pais... Aí a gente continua nessa vida. 100

Dois componentes da Ladeira participam do grupo da Quixabeira de Valente, sendo um

grupo de grande tradição e visibilidade no cenário baiano e nacional. Esse grupo surgiu no

99

GONÇALVES, Maria Célia da Silva. Folias de reis: o eco da memória na (re) construção da performance e

identidade dos foliões em João Pinheiro, estado de Minas Gerais. IV ENECULT, Faculdade de Comunicação

/UFBA, Salvador, maio de 2008, p.8. 100

Depoimento do trabalhador rural Dermival Trabuco da Silva, membro do grupo de reisado da Ladeira.

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ano de 1989 com os preparativos para a gravação de um disco. No ano de 1992 produziu o

vinil denominado “Da Quixabeira pro berço do rio”, logo após, em 1994 fez o lançamento em

formato de CD. Além disso, suas canções foram regravadas por diversos artistas como:

Carlinhos Brown, Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil, Marisa Monte e

as bandas Cheiro de Amor e Harmonia do Samba. 101

O grupo da Quixabeira é uma expressão cultural que caracteriza a reunião de

aproximadamente quinze comunidades rurais localizadas em Feira de Santana - BA

e região sisaleira. Essas comunidades além de valorizarem o trabalho do campo

desenvolvem uma estética musical calcada nos valores musicais do sertão e

recôncavo baiano. Cada comunidade tem seu líder que organiza o repertorio e as

apresentações do grupo. 102

Esses grupos de manifestações populares tanto de reisados (Ladeira) quanto o de cantiga

de roda (Quixabeira) realizam apresentações em vários municípios da região e fora do estado,

como em São Paulo. Dessa forma, como observa Bourdieu “os ritos conseguem fazer crer aos

indivíduos consagrados que eles possuem uma justificação para existir, ou melhor, que sua

existência serve para alguma coisa” 103

. Fazer parte do ritual dessas manifestações é sair da

invisibilidade social, é passar a fazer parte de um grupo que tem prestígio, por exercer uma

função social de auxílio à manutenção de outras pessoas menos abastadas, tornando na visão

de Bourdieu um “porta-voz autorizado”.

Outro grupo de reisado de grande visibilidade no município é o grupo da Alegria,

composto por dezessete mulheres e cinco homens tocadores de reis. O grupo surge em 1949

trazido por uma ex-moradora da cidade de Senhor do Bonfim que passa a residir na

comunidade de Santo Antônio. A existência de um grupo de reisado de mulheres, nessa

época, era um fato excepcional, que chamava a atenção de toda a população, pois estas

mulheres cantavam, tocavam e lideravam as cantigas de reis que sempre eram seguidas por

um samba, assim como em todas as manifestações ligadas ao campo, com um ritmo mais

frenético e com versos que se repetiam inúmeras vezes com muita alegria. Isso se tornava um

episódio pouco comum em meio a uma sociedade extremamente guiada e liderada por

homens, mesmo em manifestações culturais havia uma divisão bastante nítida que era

retratado nos versos das cantigas:

101

SANTOS, op. cit. , 2007, p.1-2. 102

Idem. Ibdem, p. 13. 103

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1986, p.106.

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60

As mulheres na roda

E os homens no samba

Generador bamba. (2x)

O grupo da Alegria também se apresenta juntamente com o grupo de Reisado União,

criado na década de 1980 e composto apenas por homens. Essas mulheres, todas ex-sisaleiras

que nos campos de agave cantavam as rodas, passam a partir de então a participar de reisados

e sambas, os quais outrora eram espaços somente de trabalhadores. A Srª. Marli da Silva 104

comenta que incorporou as cantorias a sua rotina desde os sete anos de idade, quando

começou a trabalhar na sisalicultura, estendendo fibra, e assim presenciava as cantigas das

senhoras que também trabalhavam no mesmo ambiente e as repetia, além da sua facilidade de

improvisação de tantas outras músicas no local de trabalho ou nos eventos que participava.

Tais improvisos eram como estes:

Queremos agradecer

A riqueza deste evento

A todos agricultores

Que nos fornece alimentos.

E também o homem do campo

Um grande agricultor

Aqui em nosso município

Tem homem trabalhador.

No seu depoimento também aborda a disciplina que seu pai cobrava no momento que

realizava o trabalho na “roça”, pois o patriarca da família não aceitava que seus filhos

trabalhassem de “cara feia” o que poderia prejudicar o desempenho na tarefa lhes incumbida e

interpretada por ele como preguiça e desobediência. Para a Srª. Marli essa exigência de seu

pai lhes conferiu valores de honestidade espelhados no trabalho digno do homem do campo e,

além disso, o gosto por essas manifestações valorizadas por seus pais e incorporadas a seu

modo de vida.

Os trabalhadores do sisal envolvidos nessas expressões culturais relatam que os

constantes períodos de seca e crise do agave não interferem nas apresentações ou nas

melodias populares. Em contrapartida, nota-se que as cantigas no local de trabalho foram

reduzidas em virtude da diminuição também do trabalho nos campos de sisal e das constantes

104

Ex-trabalhadora do sisal e componente do grupo de Reisado da Alegria há quarenta anos.

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61

intervenções dos motores. E assim, os encontros e o contato entre os sisaleiros, tornam-se

mais difíceis em razão do distanciamento entre eles.

Dentre as referidas manifestações o reisado, mais especificamente, não recebeu tantas

influências da sisalicultura nas letras de suas canções, pois esta manifestação retrata a visita

dos reis magos ao menino Jesus. Sendo assim, a temática das canções de certa forma é fixa,

não sofrendo tanto improviso como as outras expressões culturais (ver as canções do Reisado

em anexo). Mas, o samba que sempre segue o reisado é marcado pelo o improviso e assim

reflete profundamente os acontecimentos do momento e suas canções são mais utilizadas nos

trabalho com a fibra.

Além disso, raramente se canta as músicas do reisado no local de trabalho, pois estas

possuem uma característica mais de festa, realizada de porta em porta ou mesmo antes de um

samba, sendo realizado com mais freqüência no período natalino. Apesar disso, o ritmo dessas

melodias é constantemente utilizado para compor outras canções cantadas cotidianamente,

além do contato que os componentes dos grupos estabelecem no ambiente de trabalho.

É importante salientar a importância que comumente os sambadores e cantadores de

“aboio de roça” atribuem a matriarca da família. Seja num samba ou no cotidiano da

agaveicultura esses trabalhadores homenageiam e lembram da mãe como um ser humano

superior aos demais, sendo esta responsável pelas conquistas alcançadas na vida dos

sisaleiros, valorizando assim, o papel dessas mulheres de fibra na formação e educação que

lhes foi dada, além do esforço das mesmas para garantir o sustendo da família, mesmo em

períodos difíceis de seca. Esses traços podem ser percebidos nos seguintes versos:

Oh, mãe querida!

Oh, mãe amada!

Sem mamãe não tenho nada (2x)

Eu vivo feliz nesse mundo

Porque tenho a minha mãezinha

Peço pra deus que dê vida e saúde

Pra minha mãezinha

Oh! Mamãe!

Se você tá me ouvindo agora

Estar essa valsinha bonita

Que eu fiz, mamãe!

Eu ofereço a senhora

Eu sei que ela vive pensando

Aonde tá o filho seu.

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62

As letras das canções (em anexo) dessas manifestações são em grande parte herdadas

pelos antepassados da família e disseminadas pelas gerações vindouras. Todavia, no momento

da cantoria seja do samba ou da cantiga de roda ocorre à improvisação de versos, os quais

retratam sobre o ambiente ou situação que estão cantando. E em alguns casos acaba ocorrendo

uma mescla entre o tradicional e a improvisação, ou seja, o passado e o presente se entrelaçam

e origina uma manifestação com características próprias daquele período e contexto histórico.

Portanto, para Abreu é fundamental “observar que as festas são sempre recriadas e

reapropriadas, contendo as paixões, os conflitos, as crenças e as esperanças de seus próprios

agentes sociais”. 105

1.8 Cantadeiras de roda

O Brasil é conhecido nacional e internacionalmente como o país do samba, porém é

importante salientar que dentro dessa nação há diferentes modalidades de samba. Nesse caso,

trataremos da cantiga de roda, uma manifestação popular de tradição oral e com algumas

semelhanças com o samba de roda nascido na Bahia, especificamente na região denominada

Recôncavo Baiano.

O samba é inserido no território nacional mediante as transformações ocorridas nos

batuques ao longo da história cultural dos negros africanos estabelecidos no país. Desse

modo, os batuques herdados da tradição africana têm no território brasileiro uma diversidade

de ritmos, de coreografias, de instrumentos, de significados, etc., influenciando práticas

culturais em várias manifestações populares por todo o Brasil.

O samba de roda é uma matriz afro-brasileira, pois apresenta peculiaridades na sua

maneira de existir e também incorpora traços da cultura do povo africano. Desse modo, não se

trata de uma dança genuinamente africana, configura-se como uma manifestação popular de

caráter festivo que apresenta aspectos de uma “reconceitualização” dessa cultura dentro de um

novo território. Todavia, não há como negar a forte, marcante e predominante presença dos

ritmos africanos no samba de roda. 106

105

ABREU, Marta. O Império do Divino – Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro 1830-1900. Rio

de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999, p. 38. 106

AMOROSO, Daniela Maria. Corpo, o dono do samba: um estudo sobre o samba-de-roda do Recôncavo.

Programa de Pós-Graduação em Artes Ciências/UFBA.

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63

Além disso, essa vertente do samba também possui elementos da cultura portuguesa

como a viola e o fado lusitano:

Todos sabem o que é o fado, essa dança tão voluptuosa, tão variada, que parece

filha do mais apurado estudo da arte. Uma simples viola serve melhor do que o

instrumento algum para efeito. O Fado tem diversas formas, cada qual mais

original. Ora, uma só pessoa, homem ou mulher, dança no meio da casa por algum

tempo, fazendo passos dificultosos, tomando as mais ariosas posições,

acompanhando tudo isso com estalos que dá com os dedos, e vai depois pouco a

pouco aproximando-se de qualquer que lhe agrada; faz-lhe diante umas negaças ou

viravoltas, e finalmente bate palmas, o que quer dizer que enfim acompanha-se de

novo. Assim corre a roda toda até que todos tenham dançado. 107

Dessa forma, esses ritmos deixaram marcas na cultura afro-brasileira e propiciaram a

continuidade dessa herança, expressa numa outra roda: o samba de roda. Não se pode

esquecer que essa manifestação popular é típica do Recôncavo sul da Bahia. E assim esse

estilo de música e dança baiana influencia várias outras regiões do estado que imprimem uma

identidade e peculiaridade a essa manifestação. Para Amoroso o samba de roda não se define

se experimenta, mas numa perspectiva bastante subjetiva, o caracteriza desta forma:

A dança está no samba de roda, o ritmo, o canto, a cachaça, a comida, a festa, a

cidade, a roça também. (...). Estar num samba de roda é entrar na roda sambando,

depois de ser chamada por uma umbigada, uma pernada ou um simples gesto e

reverenciar os tocadores, fazer um miudinho, uma “corridinha”, uma mexidinha nos

ombros, um giro, ás vezes. É também ver os rostos dos mais velhos, bocas sem

dentes, corpos vividos e consumidos pelo trabalho e pela falta de recursos soltando

uma voz tão forte, tão cheia de poesia, entoando melodias empolgantes. 108

Diversos grupos de cantigas de roda na região sisaleira expressam seus costumes nessas

manifestações, sendo um dos raros momentos de lazer e entretenimento para o sisaleiro ou

sisaleira. No município de São Domingos os grupos de cantigas de roda são em número

menor do que os grupos de reisados. Há também uma nítida divisão nesses espaços em que

mulheres, em sua grande maioria, compõem os grupos de cantiga de roda e os homens dos

reisados. Estes por sua vez, também participam das rodas, cuja função é tocar os instrumentos

que são os mesmos utilizados nos reisados, tais como: viola ou violão, cavaquinho, pandeiros,

reco-reco, triângulo, prato e faca ou simplesmente as palmas da mão.

107

ALMEIDA apud AMOROSO, op. cit, p.6. 108

Idem, ibdem, p.7

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64

A diferença básica entre a cantiga de roda e o reisado pode ser evidenciada no relato da

senhora Isaura Alvino de Araújo de 77 anos:

A diferença é que o canto de roda é cantado aquele grupo rodando lá... Um bando

de gente cantando a roda e dizendo verso. E o reisado vai pra porta aí canta o reis.

Aí depois entra pra dentro pra... Final de ano, né? Aí a gente canta o reis na porta e

depois entra pra dentro de casa e vai dançar. (...) Tem o reisado de homem e de

mulher. O homem participa da cantiga de roda, mais é pouco, não participa como a

mulher não. Mistura também, mais no samba o homem sabe mais do que a mulher.

E as mulheres canta mais.

Na verdade, as apresentações realizadas pelas mulheres, como as rodas, configuram-se

como o ponto de culminância de todo uma cantoria que se inicia nos campos de sisal. No

local de trabalho, geralmente estendendo fibra, as sisaleiras cantam o dia todo praticamente as

mesmas melodias das cantigas de roda. É nesse ambiente de trabalho exaustivo e de sol

quente que, muitas vezes, surgem os grupos de cantigas de roda, conjugando ao mesmo tempo

alegria, cansaço, desgaste físico e do divertimento presentes diariamente na vida dessas

pessoas marcadas pela intensa jornada de trabalho. Essas cantigas tinham uma importância

muito grande na vida dessas mulheres, como pode ser evidenciado nas palavras da ex-

trabalhadora do sisal Adaltina Araújo Santana:

Cantar representa minha vida. Eu acho na vida de todos nós uma alegria. Enquanto

a gente tá cantando não tá pensando nada, enquanto a gente tá cantando se tiver ali

com pensamento contrariado em alguma coisa, aquilo distrai e faz bem pra saúde.

Por isso a gente cantava no trabalho pra ficar mais divertido.

Uma característica marcante das cantigas de roda era as temáticas dos versos que

retratavam, em sua grande maioria, os namoros e paixões vividas no momento das rodas ou

do trabalho. Como os grupos de cantigas de roda são formados por mulheres, estas

incorporam às músicas traços fortes de sua rotina, dos anseios e desejos como se observa nos

seguintes versos:

Quem me dera ter agora

Um cavalinho de vento

Pra dar um galopinho

Onde está meu pensamento.

Minha mãe não quer que eu vá

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Na casa do meu amor

Eu vou perguntar a ela

Se ela nunca namorou.

A imaginação ganha vida nos versos proferidos por essas trabalhadoras rurais. Uma

simples estrofe pode ser o mais singela possível e ainda assim tornar-se uma representação do

estilo de vida, da mentalidade e dos costumes de uma época. Nesse caso, os versos acima

retratam um contexto em que os namoros surgiam a partir dos encontros entre a vizinhança

nessas manifestações, e assim, cantar um verso naquele momento significava muitas vezes,

uma declaração implícita para algum pretendente que se encontrava naquele ambiente, ou

mesmo, servia para externar um sentimento muito forte de alegria, saudade, tristeza e/ou

amor.

Diante disso, levando-se em conta algumas exceções, pode-se perceber a presença e

participavam de homens nas cantigas de rodas ou das cantorias das mulheres no local de

trabalho. Os sisaleiros também cantavam versos envolvendo as mulheres nas melodias:

Eu joguei meu limão verde

Por cima da sacristia

Caiu no colo da moça

Isso mesmo que eu queria.

As cantigas também abordam outros assuntos diversos, com menor freqüência, sendo

estes geralmente improvisados de acordo com o local de apresentação ou ambiente de

trabalho. Dessa forma, são raros os versos que se referem ao trabalho com o sisal. Quando há

canções desse tipo, são feitas em alguns eventos específicos, como este verso composto por

um grupo de cantiga de roda da associação de Pedra Bonita, em uma das suas apresentações:

O sisal é um produto

De boa qualidade

Oh, Pedra Bonita

Vou deixar muita saudade.

O impressionante na cantiga de roda (realizada por mulheres) ou no samba de roda

(organizados geralmente por homens), em São Domingos, é a energia e o ritmo frenético dos

dançarinos, de pés descalços, acompanhados pela música contagiante, palmas e batuques. Há

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também a presença da cachaça, bebida motivadora para os tocadores e sambadores que

amanhecem o dia com bastante empolgação no espaço que já se tornou uma festa.

O centro da roda é o palco da festa, o sambador ou as cantadeiras de roda sapateiam

agitando todo o corpo e, em poucos minutos, “tira-se” outra pessoa do círculo para dançar

mais alguns minutos, revezando-se os pares, embora a dança seja “solta”. Para a música, há o

“puxador” do samba ou “puxadora” da roda, papel geralmente atribuído a pessoas de voz bem

afinada com capacidade também de improvisação, estes por sua vez são acompanhados pelo

coro formado pelo grupo, ao som de palmas.

É importante atentar para idéia de coletividade que está intimamente presente nessas

manifestações. O sisaleiro pode até ser um indivíduo singular e solitário em seu ambiente de

trabalho ou marginalizado socialmente, mas no momento em que se junta com outras pessoas

para formar um grupo que represente algo realizado diariamente pelos mesmos, estes passam

a adquirir visibilidade e valor artístico que individualmente poderia não alcançar. De forma

nenhuma o seu valor enquanto indivíduo singular está sendo diminuído, mas quando se trata

do espaço cultural e musical no referido município, associa-se rapidamente estes

trabalhadores do sisal ás sua manifestações populares apresentadas e representados

maravilhosa e verdadeiramente por esses homens e mulheres de fibra.

O samba é coletivo, não que seus versos sejam feitos em conjunto, alguns versos

são criados por um individuo, mas só existe na roda, com o suporte dos

instrumentos com a interpretação na dança com respostas das palmas. Aqui é o

limite do individuo humano com o saber coletivo. 109

O samba de roda, bem como outras manifestações populares, pode ser compreendido

como uma prática cultural, na qual são vivenciados valores como a solidariedade, a

fraternidade e o pertencimento que vão contribuir para a construção e afirmação das

identidades sejam dos afro-descedentes no Recôncavo Baiano ou dos sisaleiros no Nordeste

da Bahia. Pela via do “dom do discurso”, explorando as diversas linguagens que lhes são

acessíveis, ainda que muitos deles não dominem a escrita, conseguem imprimir suas marcas

identitárias nas suas canções, falando da afetividade, dores, amores, críticas, angústia e fé.

Além disso, a relação homem-mulher aparece em quase todas as letras do samba ou das

cantigas de roda que são tocados, por exemplo:

109 CRUZ, Alessandra Carvalho da. “O samba na roda”: Samba e cultura popular em Salvador 1937-195.

Salvador, 2006. Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Federal da Bahia. p. 68.

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Quando eu passo ela fica me olhando

Admirada com vontade de chamar

Nosso amor já está tão enraizado

Que é difícil de nóis dois separar

Ela tem o amor que eu lhe dou

E eu só tenho o amor que ela me dar.

Ai, ai amor.

Lê, lê, lê leô...

É perceptível o sentimento de pertença dos moradores de cada comunidade, do referido

município, em relação às manifestações culturais que desenvolvem nesses espaços. Desse

modo, é através dessas expressões culturais e da própria localidade que eles se identificam e

expõem as suas práticas construídas cotidianamente, que se reconhecem enquanto

pertencentes a um espaço, que é seu e ao mesmo tempo é compartilhado com tantos outros

que também construíram suas histórias de vida.

Para essas mulheres trabalhadoras do sisal a vida delas está intimamente relacionada com

as cantigas, seja no momento da realização do trabalho nos campos do sisal ou nas festas

organizadas para o divertimento familiar e entre amigos. A sensação de participar e organizar

esses grupos de cantigas de roda é uma experiência única e prazerosa para essas guerreiras de

fibra, como relata dona Isabel Maria da Silva 110

:

A sensação melhor que eu acho é que já nasci com isso, na cultura, brincando,

cantando roda. Até hoje o que sinto da minha parte, uma coisa que eu mais tenho

sentimento na minha vida é o dia 7 de setembro na casa da véia Isabel de Zacarias.

Nossa senhora! Nós começava a boca da noite, chamava o pessoal todo e

começava, as mulheres cantando roda. Quando era mais logo vai rezar, aí parava a

roda ia rezar, terminava a reza aí agora começava o reis. Os homens ia sambar e as

mulheres cantar roda até o dia amanhecer, cansamo de amanhecer o dia. Eta roda

boa! Eu sinto saudade viu? Pense numa coisa que eu sinto saudade.

No entanto, nas últimas décadas esses grupos de cantigas de roda também ultrapassaram

as fronteiras do território municipal e realizam apresentações em várias cidades da região

sisaleira. Para essas mulheres a realização de apresentações fora de sua comunidade é o

reconhecimento de sua música e dança pela sociedade. Diante disso, percebe-se que a música

é o elemento imprescindível e motivador para realização do trabalho cotidiano, além de ter

também se tornado a força propulsora de alegria e vitalidade na vida desses sisaleiros e

sisaleiras são-dominguenses. É mediante essas manifestações que por alguns momentos esse

110

Trabalhadora do sisal e componente do Grupo cantiga de roda.

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povo esquece os constantes períodos de seca, acarretando na baixa do preço do sisal e

consequentemente o surgimento do desemprego em massa, gerado em virtude do não

funcionamento dos motores de sisal na zona rural do município. Por isso que:

Cantando, criamos ordenações no espaço/tempo, projetamo-nos combinando notas,

expressamos o que sentimos e o que sabemos sobre o sentimento humano. Nossos

sonhos, utopias e desventuras, são compartilhados. Através do canto, resgatamos a

unidade, o território analógico, a intensidade de viver. 111

As cantigas de roda eram as canções mais difundidas nos campos de agave, pois as

mulheres raramente trabalhavam sem cantar. As melodias impulsionavam essas trabalhadoras

e trabalhadores na realização da tarefa diária tornando o ambiente alegre e descontraído, no

qual as moças cantavam e sonhavam com um grande amor e um provável casamento. E assim,

esses anseios e expectativas eram postos nas letras das canções transmitidas pelos mais velhos

e readaptadas num novo contexto ou criadas naquele momento de intensa cantoria.

1.9 Entre rezas e brincadeiras

A vida dos sisaleiros, não se resumia apenas ao trabalho. Como já foi dito anteriormente,

estendia-se também ao lazer, como cerimônias religiosas, vaquejadas, reisados, cantigas de

roda, “bandeiras”, “boi roubado”, entre outras. As rezas na zona rural eram freqüentes nos

finais de semana, mas os períodos de maior festa religiosa segundo a Srª. Isaura Alvino de

Jesus era a novena de: São João e Santo Antônio, São Cosme e Damião e Nossa Senhora

Aparecida. Essas festas religiosas ocorriam respectivamente nos meses de junho, setembro e

dezembro.

Na voz da Sr.ª Isaura percebe-se a fé vivida com bastante intensidade, que também pode

ser constatada ao mencionar o mês dedicado a Maria, quando as pessoas se reuniam na casa

do vizinho para rezar um rosário. Estas, por sua vez, dedicavam-se às coisas do mundo

sagrado e reforçavam seu pacto com Deus. Oravam, pediam clemência pelos pecados

cometidos, clamavam por um ano bom de inverno, entre tantas outras solicitações e gestos de

devoção, já escassos na década de 1990 na região.

111

MILLECO FILHO, L. A.; BRANDÃO R. M.; MILLECO R. P. É preciso cantar: musicoterapia, cantos e

canções. Rio de Janeiro: Enelivros, 2001, p. 11.

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De acordo com as entrevistas realizadas, as noites de novenas também eram noites de

festas, pois, após as rezas, muitas vezes, ocorria uma festança de cantorias em que as pessoas

bebiam, comiam e dançavam alegremente até amanhecer o dia seguinte. Sobre estas rezas, o

Sr. Dermival disse:

Assim tem a reza aí depois quer que a gente cante um reis e aí amanhece o dia

sambando e bebendo, porque toda diversãozinha tem uma bebida no meio. Não tem

jeito, quem canta principalmente, porque a gente canta não segura a garganta tem

que tomar um pouquinho. Era bom se não bebesse nada, mas não tem jeito.

Assim, as novenas, embora fossem momentos de encontros dos homens e das mulheres

com Deus, também eram festas, que se realizavam, principalmente, no mês de maio, e

deixavam marca na memória daqueles que as vivenciavam, que sorriam, brincavam,

começavam e terminavam namoros, enfim, suspendiam provisoriamente o seu cotidiano, e,

por uma boa causa: a novena de Maria. Estes acontecimentos, que misturavam fé e diversão,

tornaram-se marcantes para muitas pessoas, pois estes eventos chamavam atenção, mexiam

com a comunidade, que começava a criar expectativas sobre as noites de maio, muito antes

destas chegarem. Essas rezas, especificamente, possuíam uma temporalidade própria, mas

havia também muitos outros festejos ou reuniões religiosas que ocorridas sem datas fixas.

A lembrança do passado a todo o momento trás para esses trabalhadores rurais a

nostalgia de um tempo que não retorna mais. Ou seja, o outrora é um tempo para lembrar, de

recordar, isto é, trazer de volta as experiências vividas, cultivando a emoção, inventando a

saudade: o roçado, as novenas, o namoro e as festas, visto que as emoções, os gostos, as

preferências não eram tão passageiras como na contemporaneidade.

Conforme os dados obtidos no campo, aos poucos com o passar dos anos, agravando-se

nas últimas duas décadas, as festas vão perdendo gradativamente as suas características

originais e freqüência na zona rural do município. Segundo os trabalhadores e trabalhadoras

rurais, um dos fatores que contribuem para esses resultados é a falta de interesse dos jovens

em perpetuar essas tradições familiares e da localidade em que vivem. Os mais velhos das

comunidades rurais lembram com saudosismo e lamentações o período de festas e

brincadeiras naquele tempo de infância, como coloca a srª. Isaura Alvino de Araújo:

Oh, vamo pra festa, a festa, meu pai, por exemplo, todo ano ia e levava a gente num

jegue, levava as crianças, todo mundo ia pra festa de janeiro. Aí ele pegava um

animal botava um cassuá do lado e do outro colocava os meninos dentro do cassuá,

era festa da igreja, levava lenha pra cozinhar. Lá naquele tempo não tinha energia e

nem fogão, era fogão de lenha mesmo. Aí ia a meninada toda, passava aqueles três

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ou quatro dias tudo lá em Valente assistindo missa, procissão, só vinha depois da

procissão. A diversão era essa, livrando as brincadeiras com os bonequinhos ali

dentro da casa, as festas e os samba.

Nessa época do depoimento, década de 1940, São Domingos pertencia ao município de

Valente, por isso que nas festas de padroeiro da cidade as pessoas dos povoados deslocavam-

se para centro urbano a fim de rezar e se divertir com toda a família. Mesmo enfrentando

dificuldades, o esforço era feito, pois um dos únicos momentos de diversão e lazer ocorria

nessas festas religiosas anualmente, além é claro das rezas na roça e as diversas manifestações

que acontecia o ano todo. Mas nada se comparava, na visão desses trabalhadores e

trabalhadoras, as procissões na sede do município, na qual se usava as melhores roupas e

calçados para ir àquela seqüência de missas.

A srª. Isaura também relata as brincadeiras das crianças nesse período:

Brincar de boneca, boneca de pipuco (risadas), de boneca normal não. Pegava o

milho desbuiava (risadas). Era, botava, fazia a camisa e ia brincar de boneca. Fazia

aquelas bonequinhas de pauzinho e distraía. E tinha também as bonequinhas de

pano, mais as bonequinhas de pano já era uma coisa mais civilizada, né? A gente

mandava fazer porque eu mesmo não sabia fazer (risadas).

Esses relatos demonstram que muitos desses costumes foram adaptados ou reelaborados

com o passar do tempo, principalmente com a introdução da sisalicultura na região. E o

processo de modificações de muitos dessas tradições foram mais acentuadas a partir das

décadas de 1980 e 1990 em que ocorre um aumento rápido da urbanização, a chegada da

energia elétrica no campo e os recursos tecnológicos tornaram-se mais acessíveis às novas

gerações das comunidades rurais da referida cidade. Todavia, na perspectiva dos mais velhos

é imprescindível lutar para que não desapareçam essas tradições herdadas há várias gerações,

sendo que, muitos destes não conseguem compreender a dinâmica da cultura, pois algumas

dessas práticas foram incorporadas a outros valores e costumes dos mais novos. Mesmo

assim, “é imprescindível reconhecer o papel da memória numa cultura de tradição oral. A

memória mesmo se reconstruída ou imaginada é o alicerce de instituições como a família, o

candomblé, as festas, etc.”. 112

112

CRUZ. Op. Cit. , 2006, p. 71.

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1.10 Perdas ou permanências?

A memória é o elemento fundamental na transmissão dos costumes as novas gerações e o

ponto de partida para se conhecer o passado. Mas, esse “passado, que já não aparece tão

estático a partir dessa concepção dinâmica e plural de memória, deve ser então, a todo o

momento, reconstruído, abrindo portas para uma percepção de presente” 113

. É importante

salientar que os acontecimentos selecionados e guardados na memória estão estreitamente

relacionados com o universo cultural dos sujeitos, demonstram assim que as memórias

individuais são marcadas essencialmente por um caráter social.

Em seus estudos sobre memória coletiva Ecléa Bosi narra brilhantemente as lembranças

de velhos sobre lugares e práticas sociais da cidade de São Paulo, ao longo do século XX.

Bosi aborda em seu livro, “Memória e sociedade; lembranças de velhos”, o papel crucial das

narrativas no processo de construção social da memória:

Um dos aspectos mais instigante do tema é o da construção social da memória.

Quando um grupo trabalha intensamente em conjunto, há uma tendência de criar

esquemas coerentes de narração e de interpretação de fatos, verdadeiros “universos

de discurso”, “universos de significados”, que dão ao material de base uma forma

histórica própria, uma versão consagrada dos acontecimentos. O ponto de vista do

grupo constrói e procura fixar a sua imagem para a História. 114

O trabalho de Bosi também denúncia esse modelo excludente de sociedade pós-moderna,

globalizante, na qual os velhos são postos a margem do convívio social e condenados a viver

no esquecimento:

A sociedade rejeita o velho, não oferece nenhuma sobrevivência à sua obra.

Perdendo a força de trabalho ele já não é produtor nem reprodutor. [...]. O velho

não participa da produção, não faz nada: deve ser tutelado como um menor.

Quando as crianças absorvem tais idéias da classe dominante, agem como loucas

porque delineiam assim o seu próprio futuro. 115

No entanto, Bosi ao revelar as lembranças dos velhos como um dado significativo do

mundo social, revela que estes sujeitos exercem uma função primordial na e para a sociedade.

Nesse sentido, o velho é a peça fundamental na construção da memória coletiva e da

113

FREIXO; TEIXEIRA. Op. cit. S.d. 114

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos, 1983, p.27. 115

Idem. Ibdem, p. 35-36.

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identidade do seu grupo, pois mediante a recordação desses indivíduos especialmente, que

surge um elemento de resistência cultural e de enraizamento das comunidades.

De acordo com os depoimentos de sisaleiros e sisaleiras são-dominguense, um dos

maiores empecilhos para transmissão dessas manifestações culturais aos mais novos é a

desvalorização ou repulsão dos mesmos aos saberes dos mais velhos. Em geral, esses

trabalhadores do sisal são analfabetos ou semi-analfabetos, mas acreditam que, independente

disso, possuem saberes que podem transmitir as outras pessoas, inclusive as manifestações

populares enraizadas na vida desses indivíduos. O mais preocupante é que toda essa carga de

costumes é guardada na memória e perpetuada pela transmissão oral, ou seja, se não houver

jovens que queiram aprender e participar dessas festas ou cantorias, mesmo de forma

diferenciada ou assimilada a seu estilo e contexto de vida, estas por sua vez serão extintas nas

comunidades do município.

A insistência desses trabalhadores rurais em transmitir essas tradições torna-se evidente

nas palavras de Sr. Dermival:

A gente tá lutando pra ver se não só acaba mesmo, mas nunca é como a gente...

Antigamente era reisado, era brinquedo de roda, era a noite todinha no tempo da

minha mãe, misericórdia! Era uma boa. As mulheres tudo dedicava naquilo, as

moças e hoje não ninguém quer mais. Hoje em dia quem canta as rodas é as

mulheres véia, as moças não canta nada, os jovens não quer de jeito nenhum. Só tá

cantando ainda por causa dos véio, quando vê assim... Porque não tem um novo que

queria ir numa brincadeira... No tempo da minha murdenagem ajuntava as moças

tudo até as casadas e brincava de anel, brincava de casamento francês e... É tudo

brincadeira, divertia com a reza, chegava na reza, quando terminava a reza ia

sambar, ia cantar roda, ia brincar.

Desse modo, as festas como elaboração da identidade sócio-cultural dos grupos

populares que as produzem, historicamente constituídas e reproduzidas nos contextos das

sociabilidades rurais, passaram e continuam passando por transformações e acréscimos de

novos significados, na medida em que se tornam produto do mercado de consumo e são

transportadas para territórios distantes.

Os grupos de reisados e de cantiga de roda enquanto expressões culturais nas últimas

décadas estão sofrendo mudanças decorrentes de um processo comercial, o que implica numa

conseqüente perda da sua originalidade. As apresentações, seguidas de ganhos financeiros,

nem sempre são vistas como um incentivo cultural, mas como um produto exposto à venda

nos espaços urbanos.

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A diferença das manifestações culturais de antigamente para as ocorridas a partir da

década de 1990 são gritantes como relata Marisete de Oliveira:

Muita diferença, porque antigamente as pessoas se dedicavam a essas coisas na

roça. Vai ter a reza na casa de seu Antônio, aí hoje a reza na casa de se Antônio,

tudo era dispensado para ir para a reza de seu Antônio. Só que Hoje o povo se liga

mais nas festas eletrônicas e suas culturas vivas tá ficando adormecida. Então, não

digamos um resgate, porque a cultura ela não precisa de resgate, ela precisa está em

pratica dia-a-dia, porque a cultura é viva está presente em cada um de nós todos os

dias de nossa vida.

Alguns componentes dos grupos de reisados do município, nos depoimentos realizados,

afirmam que não houve mudanças quanto à maneira de apresentar o reis. Além disso,

comentam também que ainda permanecem as mesmas músicas, com ressalva para àqueles

versos compostos no momento da apresentação. Todavia, estes sisaleiros relatam que houve

alterações quanto à quantidade de participantes nos grupo e a freqüência das apresentações

que foram bruscamente reduzidas. No local de trabalho, a cantoria permanece também com

menor intensidade, pois a maioria desses trabalhadores e trabalhadoras do sisal já se encontra

aposentados e o legado dessas cantorias, em parte foi inevitavelmente e naturalmente

modificado pelas novas gerações no decorrer do tempo na região.

Um traço interessante nos grupos de reisados do município é a ausência, em grande

parte, da ligação com a religião. Os trabalhadores da agaveicultura se declaram católicos, mas

relatam que o hábito de rezar antes da manifestação não ocorre mais, estes por sua vez,

designam a festa como “beba de cantoria”, em virtude da grande quantidade de bebida que era

consumida nessas cantorias.

Poucos grupos seguiram com o costume de realizar uma oração ou reza antes das

manifestações. Após uma festa religiosa na casa de um trabalhador rural era comum ocorrer

um reisado, mas isso se tornou uma dos momentos da manifestação que sofreu fortes

transformações. Apesar de alguns raros cantadores de reis e samba, muito devotos do

catolicismo, ainda cantarem um ou dois versos que se assemelham às rezas:

É como a chuva que lava

É como fogo que arrasa

Tua palavra é assim

Não passa por mim

Sem deixar um sinal.

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Outro fator que contribuiu para o distanciamento dos jovens dessas expressões culturais

nas comunidades foram as constantes migrações para os estados de Mato Grosso e Goiás.

Esses jovens, em sua grande maioria filhos de sisaleiros, destinam-se para a região centro-

oeste em busca de trabalho nas plantações, geralmente, de cana-de-açúcar. Muitos destes

passam pela experiência dos campos de sisal, mas com as cíclicas crises da planta e o trabalho

exaustivo optam pela saída, por alguns meses, do município. O Sr. Luís da Silva comenta

sobre a saída do seu filho mais velho para Mato Grosso: “aqui, veja bem, pra quem é muderno

sair fora é... ele trabalha um período quando chega aqui... ele traz algum trocadinho para

guardar. Alguma coisa e aqui é serviço pesado”.

Assim, saindo da comunidade por um tempo, os vínculos com as tradições deixados

distanciam os mais novos desses costumes. Até mesmo em razão da incorporação de novos

valores e o contato com outro universo cultural. Então, é importante salientar que sendo a

cultura dinâmica, estes jovens ao retornarem à sua terra natal trazem também experiências e

ritmos que, muitas vezes, são incorporados ás práticas locais. Entretanto, para a Srª. Isabel

“enquanto tiver os velhos pode durar até mais uns tempos, mas pela juventude acabou.

Quando a gente fala, mas que nada menina, isso é coisa de cafona, quero isso nada! É!”. No

entanto,

O “boi roubado” e a “bandeira” são as manifestações que mais sofreram com as

transformações evidenciadas na década de 1990. Ambas as expressões culturais eram

realizadas com freqüência nos períodos de colheita da mandioca ou na limpeza dos campos de

sisal. Esses mutirões seguidos de festas tornavam-se o momento mais prazeroso de toda

aquela cansativa jornada de trabalho. Além disso, o “boi roubado” ocorria, geralmente, de

forma inesperada para o dono da propriedade em que os trabalhadores rurais da vizinhança

reuniam-se de madrugada, e assim, deslocavam-se para a fazenda que estivesse necessitando

de mão de obra para trabalhar. É importante salientar, que o dono da fazenda deveria gostar

de muita cantoria, pois durante o dia era trabalhando e cantando, e ao anoitecer acontecia a

bandeira e o samba até o sol nascer. Mas, ao longo dos anos essa manifestação perdeu seu

caráter de surpresa e a animação. E o caráter inesperado atribuído à festa foi substituído pela

combinação entre os trabalhadores/cantadores e o proprietário da roça, quando raramente

acontecia.

A oralidade e a memória possuem um papel imprescindível na transmissão e

conservação desses costumes familiares e da comunidade. Só que, essas manifestações não

estabelecem na maioria dos casos uma relação direta com o saber escolar, nem com o saber

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não escolar, mas sim com a vivência cotidiana, ou seja, com os processos sociais de

aprendizagem, assim definido por Brandão:

As pessoas convivem umas com as outras e o saber flui, pelos atos de quem sabe-e-

faz, para quem não-sabe-e-aprende. Mesmo quando os adultos encorajam e guiam

os momentos e situações de aprender de crianças e adolescentes, são raros os

tempos especialmente reservados apenas para o ato de ensinar. 116

Nas últimas décadas surgiram vários questionamentos no que diz respeito às perdas e

permanências dessas manifestações populares dentro das comunidades do município. Os mais

velhos afirmam que houve transformações e extinção de muitos destes costumes herdados dos

antepassados, e assim acreditam que a luta é necessária para que não se perca ainda mais essas

expressões culturais. Contudo, o que se deve levar em conta é que esses costumes não podem

ser resgatados, visto que também não se pode transplantar a sociedade na qual foi originado.

Por isso, conviver com adaptações e atualizações desses hábitos e modos de vida distintos,

causa para estes trabalhadores mais velhos a sensação de esvaziamento de sua cultura.

No que tange a essas mudanças culturais no seio de uma determinada classe social,

Thompson tece o seguinte comentário sobre a sociedade inglesa do século XVIII:

Sem dúvida, nenhuma cultura reaparece da mesma forma. Se as pessoas vão ter de

satisfazer ao mesmo tempo as exigências de uma indústria automatizada altamente

sincronizada e de áreas muito ampliadas de “tempo livre”, devem de algum modo

combinar numa síntese de elementos do velho e do novo, descobrindo um

imaginário que não se basei nas estações, nem no mercado, mas nas necessidades

humanas. 117

Portanto, nota-se que nenhuma cultura sobrevive, tal como surgiu, por um longo tempo

na História. As transformações culturais acompanham as mudanças do campo econômico,

social e político de cada sociedade. O tempo/espaço em que um indivíduo vive difere do

contexto ao qual a geração futura irá depara-se, e assim as transformações são inevitáveis. No

entanto, o desaparecimento de um dado costume de um grupo social pode ser evitado e

reelaborada dentro de um novo panorama sem perder alguns dos traços marcantes de uma

comunidade.

116

BRANDÃO, E.R. O que é educação. 25 ed. São Paulo: Brasiliense, 1980, p.18. 117

THOMPSON E. P. Op. cit. 1998, p.303.

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76

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os saberes construídos por pessoas que viveram no anonimato em tempos passado, e

assim ignorados pela história dos grandes fatos e personagens históricos, adquire novos

valores, através dos olhares sensíveis dos observadores da história cultural e social do

presente.

Na luta pela sobrevivência nas terras áridas do sertão baiano, homens e mulheres buscam

em muitas manifestações artísticas e culturais resistir as exaustivas condições de trabalho e,

assim, persistindo para não perecer diante dos períodos que a chuva tarda a chegar e resulta

nas secas que causa uma série de conseqüências e marcas sociais, econômicas e culturais que

o tempo não consegue suplantar.

Esses agentes históricos persistiram na criação de estratégias que lhe proporcionassem

mecanismos capazes de assegurar a permanência na lida de seu cotidiano. Esse fato tornou-se

nítido quando cantaram, sambaram e dançaram expressando sua capacidade criadora e

reveladora de traços de autênticos artistas que externaram em suas sutilezas a cultura de um

povo que na sua espontaneidade expressaram os sentimentos e saberes arraigados nos corpos

e nas almas dos sisaleiros.

Desse modo, analisar as cantorias que desde sempre fizeram parte da vida dos

trabalhadores rurais é perceber o espaço enquanto o local vivido, que se constrói

cotidianamente e que faz sentido justamente nas dinâmicas das relações. Pensar a cultura é

pensar também o espaço em que esta se desenvolve, percebendo-o enquanto territórios de

saber, é notar que toda construção de saberes de um povo mantém-se numa relação direta com

o local em que vivem.

As manifestações culturais, citados no decorrer do estudo, surgiram como uma extensão

das músicas presentes no local de trabalho. E posteriormente, essas cantigas foram

transferidas para os finais de semana como diversão e entretenimento. Assim, homens,

mulheres letradas e iletradas inventaram seus modos e suas esperanças dentro de um quadro

sócio-histórico-cultural, entrecruzando experiências e tradições, sendo a própria experiência

compreendida a partir das representações culturais.

Pode-se constatar ainda na pesquisa de campo, a luta incessante de sisaleiros e sisaleiras

em transmitir essas manifestações pra as gerações mais novas nas últimas décadas, tornando-

se uma tarefa muito difícil e delicada. Pois, os mais velhos não aceitam e não querem deixar

que esses costumes se percam das práticas culturais da comunidade, mas os jovens assimilam,

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na medida do possível, esses costumes dentro do seu universo cultural e inserem novas

experiências e valores a essas expressões culturais. Essas realidades distintas não são aceitas

pelos mais velhos que interpretam como a perda dos costumes da comunidade na qual estão

inseridos, por isso o discurso marcante desses trabalhadores e trabalhadoras em lutar para não

extinguir essa “cultura”.

Diante disso, as perdas ou permanências dessas manifestações no período em estudo foi

um ponto delicado da pesquisa. Isso em virtude de que os elementos ou dados colhidos não

são suficientes para concluir até que ponto e/ou grau essas canções, mais propriamente, foram

assimiladas pelos mais novos e a participação destes nessas manifestações. Até mesmo por ser

uma questão bastante complexa, pois analisar esse fato em vista da dinâmica da cultura entre

comunidades, grupos sociais ou sociedades distintas, carrega em si peculiaridades, que devem

ser levadas em conta no tempo e espaço em que cada indivíduo histórico vive.

Evidencia-se também que as transformações nas festas, rezas e brincadeiras dos

trabalhadores rurais tornaram-se inevitáveis nas comunidades de São Domingos. No entanto,

o que não se pode negar é a grande importância que essas manifestações culturais ainda

continuaram tendo no seio dessa sociedade, pois mesmo com tantos estereótipos em torno da

região Nordeste e, principalmente, nos sertões dessa região, as expressões culturais são tão

fortes e significantes como em qualquer outra parte ou região do país. A imagem da seca e das

condições miseráveis de vida, onde pessoas vivem desoladas e vitimadas, por muito tempo

enraizado no imaginário popular, começa a ser contestada pela imagem de sujeitos produtores

de sua própria história e em sintonia com as mudanças e inovações tecnológicas, culturais,

econômicas no país.

E assim, através de histórias de vida e da percepção do ambiente de estudo o presente

trabalho buscou mostrar algumas manifestações e sua importância no cotidiano desses

sisaleiros e sisaleiras são-dominguense, que utilizavam diariamente as canções populares

como incentivo e animação na realização do trabalho com o agave. A partir disso, foi possível

perceber que nas canções estavam muito de seus costumes e ideais de vida, que uma vez

postos em forma de cantigas aliviavam os desejos reprimidos e os sentimentos eram, então,

externados com muita alegria pra superar as adversidades do trabalho, ou mesmo demonstrar

as afetividades guardadas no intimo do ser humano.

Um fato inesperado que foi captado nas pesquisas e posto no trabalho remete-se ao

aparecimento de algumas manifestações não planejadas, inicialmente, que surgiam nos

depoimentos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais. Tais como a “Bandeira”, “Boi

Roubado” e as cantorias nas Casas de Farinha que possuíam uma íntima relação com as

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Cantigas de roda e o Reisado, objetos mais específicos de estudo. Desse modo, todas essas

manifestações surgiram antes da introdução da sisalicultura no município, sendo essas

expressões já existentes no trabalho do campo seja na atividade agrícola ou na pecuária.

No entanto, com o desenvolvimento dos campos de sisal muitas dessas manifestações

foram adaptadas a um novo ambiente de trabalho, pois as demais atividades econômicas

passam a ser realizadas em segundo e terceiro plano. Sendo assim, como o período de estudo

compreende a década de 1990, em que a agaveicultura predomina no município, o estudo

enfoca principalmente os sisaleiros. Todavia, as manifestações existentes com mais

intensidade, nas décadas anteriores, foram de grande importância para entender melhor as

Cantigas de roda e os Reisados, presentes mais fortemente, no período em estudo. Isso não

significa que estas últimas manifestações tenham permanecido sem alterações ou atualizações

pelas novas gerações.

Sabe-se que um tema ou problemática de estudo pode ser vista e analisada sob várias

perspectivas. Além disso, o potencial de exploração de uma temática de pesquisa é infinito,

pois o ser humano é dotado de extrema capacidade de enxergar um mesmo objeto de

diferentes formas, dependendo do lugar e contexto em que esteja o pesquisador. Por isso, o

tema em foco nesse trabalho pode e deve ser bastante explorado e analisado sob outros

enfoques ou correntes teóricas.

Portanto, espera-se que em muito venha contribuir esse trabalho para a história de São

Domingos e região sisaleira. Pois, as carências nessa área de estudo são evidentes e pode ser

em breve modificado por outras pesquisas, em que múltiplas e diferentes histórias de vida

possam retratar culturalmente o trabalho com o sisal, e sua influencia na vida de trabalhadores

e trabalhadoras de fibra no semi-árido baiano.

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Revista:

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Atas:

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Atas das reuniões ordinárias e extraordinárias realizadas durante o ano de 1993.

Fontes orais:

Entrevistas 118

Adaltina Araújo Santana, março de 2009.

Dermival Trabuco Silva, dezembro de 2008 e fevereiro de 2009.

Isabel Maria Silva, novembro de 2009.

Isaura Alvino Araújo, setembro de 2009.

Joaquim Rozendo Santana, junho de 2009.

José Lopes Araújo, março de 2009.

Luís da Silva, março de 2009.

Landualdo Araújo Machado, dezembro de 2008.

Marisete de Oliveira, maio de 2009.

Marivalda Araújo Silva, janeiro de 20010.

Marli Silva Cardoso Silva, dezembro de 2009.

Manuel Moséis de Oliveira, agosto de 2009.

Nilton do Santos Araújo, agosto de 2009.

Renilda Lopes de Oliveira, março de 2009.

118

Todos os depoimentos foram coletados nos povoados e comunidades do município de São Domingos.

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ANEXOS

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A - Cantiga de roda

Chove chuva

Caí sereno

Viajei 60 léguas

Na pisada do moreno.

Domingo é dia de pescaria

Que levava eu

De camisa e saburá

Maré tá cheia

Pescar na areia

Que na areia

Tem mais peixe

Que no mar

Todo bom pescador

É um só

Todo bom pescador

Pesca em pé

Não precisa pescar de anzol

Estou com os olhos feitos jacaré, é.

Eu joguei meu limão verde

Por cima da sacristia

Caiu no colo da moça

Isso mesmo que eu queria.

A casa da vovó

É feita de cipó

O café tá demorando

Concerteza não tem pó.

O sol girooô (2x)

Tomaram meu amor

Eu vou na porta buscar

Isso é um desaforo

Eu amar e outra tomar.

Maria Tereza,

Aonde você mora

Lá em Itaparica

Lá na rua da vitória

Se a rua fosse perto

Eu ia passear

Lá não se namora

Eu não que não vou lá.

Papagaio louro

Sabiá da praia

Valdir cabelo loiro

Ele é cortador de paia

Eu perguntei a ele

Tá sentindo alguma dor

Está amarelecendo

É o resíduo do motô

Borboleta tá no tanque

Com pena de voar

Quem tem amor bonito

Tem pena de deixar.

Olé, olé, olé, olá.

A semana tem seis dias

Vou morrer de trabalhar

Morrer de trabalhar

Pra sustentar a mulher

O pago que ela me dar

É dizer que não me quer.

A flor da laranjeira

É branca e cheira

As meninas tá dizendo

Eu sou faceira.

Quem me dera ter agora

Um cavalinho de vento

Pra dar um galopinho

Onde está meu pensamento.

E você

Onde vai morar?

No berço do rio

Do lado de lá.

As mulheres na roda

E os homens no samba

Generador bamba. (2x)

Tirei um galho da roseira

As baianas balançou

A raiz da quixabeira

Pisa a baiana

Menina dos olhos pretos

Sobrancelha de veludo

Seu pai é pobre

Mais seus olhos vale tudo.

Menino boca de leite

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Cuado na porcelana

Um beijinho da tua boca

Me sustenta três semana.

Desci riacho abaixo

Para tirar uma flor

Não tem riacho sem baixa

Nem morena sem amor.

Joguei meu lenço pra cima

Nos ares virou sucena

Só me caso com rapaz

Da corzinha bem moreno

Menina diz a teu pai

Que não coma de colher

Que ele tá pra ser meu sogro

E você minha mulher.

Pisa, pisa na primeira

A baiana apresentou

A cultura brasileira

No dia 31 eu fui numa festa

Numa casa nova

A primeira foi essa.

Laranjeira

Com que roupa?

Paletó e jaquetão tá na moda.

O sisal é um produto

De boa qualidade

Oh, Pedra Bonita

Vou deixar muita saudade.

Tu de cá e eu de lá

Passa um riachinho no meio

Tu de lá dá um suspiro

Eu de cá um suspiro e meio.

Minha mãe não quer que eu vá

Na casa do meu amor

Eu vou perguntar a ela

Se ela nunca namorou.

Meu benzinho é bonitinho

Bonitinho ele é

Parecendo Jesus cristo

Nos braços de são José.

Eu gosto de cor morena

Cor morena delicada

Quem amar cor morena

Não tem inveja de nada.

Fui no tanque beber água

O capim cortou meu pé

Deu um nó na fita verde

No coração de José.

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B - “Boi roubado” Na fazenda de totó

Hoje tem um “boi roubado” (2x)

Nem perô que me chamou

Meu amigo e camarada

Mate um boi e faça a conta

Que eu vou sair na porta

Do acesseiro e do roçado.

Oh, mãe querida!

Oh, mãe amada!

Sem mamãe não tenho nada (2x)

Aquela colcha de retalho que tu me deste

Cortada em pedaços em pedaço foi costurada

E quando chegar o frio seu corpo inteiro

Tu é de lembrar da colcha e também de nós.

Oh! Oh!

Eu gosto de cantar boi

Onde tem cantador famado (2x)

Faço cantor virar galinha

E correr descarrerado

Mas o cantor que vem

Pra dá em mim no caminho

Topou espinho

E voltou todo espinhado (2x).

Quando meu amor partiu

Meu coração chorou

Meus olhos se cobriu de lágrima

Foi ela que me abandonou.

Esse boi saiu do meu currá

Que saiu do meu currá

Esse boi careta

Esse boi capeta

Esse boi de treta

Pulou a cerca

E a cerca balançar

Saí pelo caminho

E encontrei o vizinho

Eu consegui, meu boi laçar

Meu boi lacei

Da corda puxei

Escorreguei, e amarrei

Na purteira do currá

E esse boi desata menino

Na hora que ele chegou.

Meu amor tá com raiva de mim

Volte pra longe vamo vê seu pessoá

Se eu morrer vou ficar sem o meu xodó (2x)

Sofro tanto e ninguém tem dó. (2x)

Tô com medo de perder você

Isto dói muito em mim

Eu não vou te obrigar

De você gostar de nós.

Se eu tivesse o puder de Jesus

Não deixava minha mãe morrer. (5x)

Simbora minha moreninha

Você é meu bem querer

Amanhã eu vou me embora

Vou me embora como você.

Oh, ah...

Eu vou prender meu gado

No curral do alazão (2x)

Se minha vaca mineira

É da cor de leiteira

Tire o leite pra manteiga

Pra café e requeijão

O meu boi pintado

É de cor de briselado

Eu não deixo mal tratado

Por que meu boi não é ladrão

Meu bisa é um mineiro

Filho da vaca leiteira

Quando entra na porteira

Já encosta no mourão.

Eu vou vender meu gado

Com pequeno resultado

Só porque tô avexado

Pra me mudar pro sertão.

Eu tenho um filho

Que estava no ginásio

Quando soube do passado

Chegou em casa avexado

Sabendo da decisão

Papai, não venda seu gado.

Não venda seu gado não.

Mandei buscarem ouro

Não demorou de chegar

Um barquinho de ouro

Pro meu amor passear

Ensinei de tudo a ela

Dirigir e navegar.

Vou pra Petrolina

Vou vê meu gado

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Eu vou pra jacobina e Petrolina

Vou vê meu gado

Meu gado quando me vê

Menino tu pode crer

Não comeu ficou pasmado

Vou inficar mourão

Lá no meu sertão

E assegura durão

Quando eu tô preparado

Mas já disse que é duro

Mais duro é aço

Amarrei o mal criado

De amarrei também

Marrou, ô, ô, oh...

Que beijinho doce que ela tem

Depois que beijei ela

Nunca mais beijei ninguém

Que beijinho doce foi ela quem trouxe

De longe pra mim.

Um abraço apertado

Suspiro dobrado que amor sem fim.

Esse boi galopado (2x)

Só não canta quem não quer (2x)

Carié, cara, carié, a cadeira

Tatei uma porteira e caí em pé

E aqui hoje tem dois chapadeiro

Cantando maneiro

Sem perder um pé

Jesus por deus

Que não tenho medo

De cantor lá do coité.

Você sabe mulher

Você sabe

Porque eu vivo cantando, oh, oh...

Você sabe mulher

Você sabe

Pro você vivo chorando, oh, oh...

Boa casa, bom terreiro

Bom salão pra eu vadiar. (5x)

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C - “Bandeira” Vou seguir essa bandeira

Que aqui hoje vou cantar

Mas no meio do pessoá

Que uma bandeira bem cantada

E faz quem tem amor chorar

E o senhor dono da casa

E como passa e como está?

E como tá sua família?

E como passa e como tá

Sua família?

E o senhor ladrão do boi

E faça parte ou venha cá

E tome bandeira vermeiá

E dê a branca pra cá.

Eu nunca cantei bandeira

Hoje aqui eu vou cantar

Quero dar passinho pra frente

Dona rebeca venha cá

Tanta manga, tanta mandara

Quanta falta de farinha

Tanta morena bonita

Eu não sei qual é a minha

Me dê esse instrumento

Mas, eu sei tocar

Vou pedir a belinho

Que pra ele me ensinar

Ele é grande professor

De guitarra e bandolinho

E a senhora dona rebeca

Lhe ofereço um casamento

Ô, ô, ô... Boi!

Me desculpe meus amigos

Me desculpe vou falar

Eu cheguei nessa bandeira

Vou louvar o pessoá

Respeitando a região

É coisa do meu destino

É porque não tenho dinheiro

Se eu pudesse

Eu fazia uma estrada no Brasil

Da Bahia ao rio de janeiro

Vou chegando bem pra perto

Que o destino é presepeiro

E pedindo a deus do céu

Meu destino é faceiro

Dona moça dê licença

Tenha santa paciência

Me ofereça esse pandeiro

Eu vou lhe jogar uma praga

Deus lhe ajude que pegue

Tenha dinheiro no bolso (2x)

Que dois burros não carregue.

Tem fé nessa bandeira

Com amor que me convém

Eu nunca cantei bandeira

Que tenho medo de errar

To cantando aqui hoje

No meio do pessoá

Tem amigo Sr. Totó

Tá no primeiro lugar

Eu sair pra passear

Me encontrei com sr. Li

E também Sr. Tutu

A senhora dona moça

Me ofereça esse pitú

Menina vou te dizer

Menina vou te falar

Deus te dê boa saúde

E seu todo pessoá

Tem a deus um bom condutor

Pra senhora se casar

Ê, ô...

Bandeira branca

E as coisas autorizada (2x)

Boa noite pro povo todo

Dá um passinho pra frente

Pula aí que nem um gato

A senhora dona moça

Me ofereça esse prato

E se queira se casar

Cuidado com os cabeludos

É danado pra enrolar

E se case com um cantor

Ele sabe lhe amar

Oh, ô...

Saudade da minha terra (3x)

Oh, ô...

Bandeira branca meu amor

Já vai chegar

Eu moro nos algodões

E meu nome é dermival

Já trocaram a bandeira

Não tenho mais o que trocar

Peço uma salmas de palmas

Pra salvar esse pessoá (2x)

Boa noite minha gente

Boa noite pessoá (2x)

Tá chegando minha hora

Não tenho mais o que cantar

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Dona moça me desculpe

E me dê esse copo pra mim (2x)

A senhora dona moça

Deus quem é de lhe pagar (2x)

Deus lhe dê muito dinheiro

E um carro pra carregar.

Tô aqui mais totó

Passo bem não passo mal

Mais meu bom camaradeiro

Veja aqui vou lhe falar

Eu aqui tô estranheiro

No lugar que eu chegar

Passo bem não passo mal

Me dê a flor pra cá

Ê, ê, eh, eh...

Bandeira branca

Ela sempre me aparece

Pelo jeito que to vendo

Eu nunca cantei bandeira

Hoje aqui eu vou cantar

Boa noite o povo todo

Boa noite o pessoá

Vou cantar essa bandeira

Nessa mesma pancadinha

Na fazenda de totó

E a senhora dona Licinha

Toda moça me dê licença

Me ofereça essa enxadinha

Dona moça deus lhe dê

Um bom casamento

Arrume um rapaz direito

De um bom procedimento

Ele seja

Rico ou pobre

Mas não seja ciumento.

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D - Samba

É como a chuva que lava

É como fogo que arrasa

Tua palavra é assim

Não passa por mim

Sem deixar um sinal.

Eu vivo feliz nesse mundo

Porque tenho a minha mãezinha

Peço pra deus que dê vida e saúde

Pra minha mãezinha

Oh! Mamãe!

Se você tá me ouvindo agora

Está essa valsinha bonita

Que eu fiz, mamãe!

Eu ofereço a senhora

Eu sei que ela vive pensando

Aonde tá o filho seu.

Dono da casa me passe esse reis

Sou inglês, mas não sou alemão

Sou alemão, mas não sou inglês

Me dê um aperto de mão

Que eu canto aqui outra vez.

Quando eu passo ela fica me olhando

Admirada com vontade de chamar

Nosso amor já está tão enraizado

Que é difícil de nóis dois separar

Ela tem o amor que eu lhe dou

E eu só tenho o amor que ela me dar.

Ai, ai amor.

Lê, lê, lê leô...

Oh, helena vem vê

Oh, helena vem cá

Que eu quero

Te dar um beijo

Vou te ensinar a namorar.

A Bahia pegou fogo

Deu trabalho pra apagar

Eu não vou apagar fogo

Que eu não tenho parente lá.

Boa noite gente

Que eu cheguei aqui agora

Cheguei nesse salão

Eu vou contar uma estória

Quando eu vinha no caminho

Eu ouvi o som da viola

E eu ouvi o som do pandeiro

Buliu com a minha caixola

Não sou daqui

Se esse samba for bom

Eu sambo a noite toda

E de manhã vou me embora.

Hoje é noite de festa

A noite de são João

Aquela que foi minha noiva

Que segurei sua mão. (2x)

Oh, ô, ô, ô...

Quem é que não tem saudade

Do primeiro amor.

Ô mulher

Tu vem morar mais eu

Teu pai e tua mãe te ama

Mas não ama como eu

Mulher vem morar mais eu.

É de madrugada que o galo canta

Quando o galo canta

É de amanhecer cedo

Que se levanta.

Menina faceira

Me alembro como se fosse agora

Daquele tempo que ia pra escola

Só pra ver você chorar, amor.

Quando eu era criançinha

Que eu não sabia trabalhar

Eu vivia pelo mundo

Com o que meió deus me dar.

Água de barragem vai e vem

A menina me chamou

Pra onde tu vai meu bem

Se você for eu vou também.

Quando vejo meu amor

Aí que dor no coração. (10x)

Como faz, como faz

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Um passarinho

Que fez um ninho e avuou, vôo.

E eu fiquei sem teu carinho

Sem teu amor.

Ô pega fogo no curral

Ronca o porco no terreiro

Berra a ovelha no cercado

Pega o milho no roçado

Que é pra fazer de comer.

Entra na roda Maria e José

Entra na roda

Maria entrou no samba

Maria bateu no pé

Quando chega madrugada

Dança homem e mulher

Pega o boi

Amarra o boi

Meu cavalo tá selado

Pega o boi

Amarra o boi

Na quejada de gado.

Já é meia noite

Eu não posso cochilar

Meu amor tá me esperando

Eu não posso demorar.

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E - Reisado

Despertai povo

Que habita neste vasto continente

Acordai quem está dormindo

Boa noite nobre gente. (bis)

Na chegada desta casa

Uma formosa bandeira

Que nela vem retratada

A mãe de deus verdadeira.

Belo dia festejado

Pela noite de natal

Aceitai o santo reis

Que Jesus mandou cantar

Numa noite de natal

Noite de muita alegria

Que nasce menino deus

Filho da virgem Maria.

Bateu asas e cantou galo

Meia noite deu sinal

Desabrocha a primavera

Nesta noite de natal.

Foram cantar missa nova

Pelas portas de Belém

Quem corre com reis na porta

Corre com Jesus também.

São José santa Maria

Do Egito se mudou

Por causa do rei Herodes

Que foi seu perseguidor.

Sairão as três Marias

De noite pelo luar

Procurando Jesus cristo

Sem nunca poder achar.

Os três reis foi procurar

Pensando não encontrar

Foram encontrar ele em Roma

Revestido no altar.

São José foi muito triste

Porque foi pelas montanhas

Maria foi muito alegre

Levou Jesus nas entranhas.

O primeiro trouxe ouro

Para seu trono dourar

E o segundo trouxe incenso

Para seu trono incensar

O terceiro trouxe mirra

Por saber que era imortal

Vamos ver o reis do mundo

O primeiro sem igual

São José santa Maria

Diz que foi pra Belém

Diz que foram cantar reis

Cantaremos nós também.

Cantar reis não é pecado

Foi coisa que deus deixou

Quando deus andou no mundo

Os três reis também cantou.

Os três reis como eram santos

Uma estrela lhes guiou

Para junto de Belém

Todos eles caminhou.

Deus lhe dê uma boa noite

Alegremente cantando

Por despedida de festa

Entrada de novo ano.

Esta é bem feita

Os telhados são de vidro

Muitos anos viva nela

A mulher com seu marido.

Dono da casa repare

E preste bem atenção

Somos catadores de reis

Daqui mesmo do sertão.

E também Sr. Fulano

É do rio de janeiro

Por chegar

Um reis na porta

Não tenha pena de dinheiro

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E também dona fulana

Renda fina na janela

Eu aqui não vejo outra

Que se compare com ela.

E também Sr. Fulano

Alvos dentes de marfim

Seu sorriso se encontra

Nos seus lábios de carmim.

E também Sr. Fulano

Tesourinha de bom corte

Peço a deus nossa senhora

Que lhe dê uma boa sorte.

E também Sr. Fulano

É a flor da laranjeira

Quanto mais o vento dá

Mais ela balança e cheira.

E também Sr. Fulano

Cabecinha sem chapéu

Quando entra na igreja

Os anjinhos cantam no céu.

E também Sr. Fulano

É cordão de ouro fino

Delicado do meu peito

Resplendor do seu divino.

O menino pequenino

No seu leito multicor

Vá dormir o seu soninho

E sonhar com seu amor.

A todos que estão aqui

Não se dê por agravado

Quem ficou por derradeiro

É por ser mais estimado.

Esta foi por derradeiro

Por ter quem mais louvar

Adeus senhor e senhora

Até a noite de natal.

Senhora dona da casa

Abra a porta e acenda a luz

Venha receber seus reis

Para sempre amém Jesus.

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F – Chula

Abre a vossa porta

Queremos entrar

Viemos de longe

Queremos brincar. (bis)

Abre a vossa porta

Também a janela

Queremos tomar

Licor de canela

Vamos entrando

Já na carreira

Vamos puxando

Nossa fileira

Assim dona da casa

Ela é boa, ela dá

Uma garrafa de vinho

E um docinho de araçá.

A dona da casa

Ela é boa ela é bela

Viemos passar

Uma noite com ela.

Assim dona da casa

Viemos lhe ver

Viemos de longe

Queremos beber.

Assim dona da casa

Queremos falar

Depois da folia

Queremos jantar.

Assim dona da casa

Queremos dizer

Depois da folia

Queremos beber

O meu estandarte

Que trago na mão

Não quero barulho

Só quero união.

Nós temos castanholas

E pandeiros também

Que corre da festa

Prazeres não tem.

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