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A RELEVÂNCIA DAS ABORDAGENS TRANSNACIONAIS E DA MICRO-
HISTÓRIA NOS ESTUDOS MIGRATÓRIOS
Renata Geraissati Castro de Almeida
Doutoranda em História na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - Financiada
pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo – FAPESP.
Resumo
Após os anos de 1960, observamos uma modificação nas perspectivas de análise do
passado, após inúmeros questionamentos aos modelos cientificistas, e atreladas a este
contexto, ocorre à emergência dos estudos biográficos e a volta da escala humana para a
história. Tais modificações teóricas repercutiram no campo dos estudos migratórios, e
as interpretações estruturais que objetivavam compreender os dados estatísticos sobre a
imigração passaram a conviver com interpretações que davam ao imigrante um papel de
agente racional. Nos anos 1990 outra perspectiva passou a atrair os historiadores, a
história global, e as análises sobre os processos migratórios se tornaram um campo
privilegiado para tal metodologia, que visa mostrar a circulação de pessoas ao redor do
globo. Neste artigo, pretendemos discutir a relevância de ambas as perspectivas para os
estudos migratórios.
Palavras-chave: Micro-história; História transnacional; Imigração;
Introdução
A cada vez, é assim, em planos diferentes, colocada em discussão a história
inteira, apreendida obrigatoriamente, por mais depressa que seja, em sua
plena espessura e, portanto, sob todos os seus aspectos (...). (Braudel, 2013,
p.236)
Com recorrência os historiadores avaliam suas práticas e elaboram reflexões que
reveem e questionam os aspectos teóricos metodológicos que constituem o campo. Tal
exercício contribui para a legitimação desta comunidade profissional, cuja identidade é
construída a partir de princípios compartilhados, estes revelam que, apesar das
diferentes perspectivas teóricas adotadas, os historiadores partilham de pressupostos
metodológicos elementares, entre eles, o estatuto das fontes.
Observamos que desde os anos de 1980, o papel da escala passou a ocupar um
espaço cada vez maior nos debates capitaneados pelos historiadores. Para Bernard
Lepetit, inicialmente, a disciplina operava com o nível da macro-história, contudo, tal
opção não era fruto de uma reflexão crítica1, mas sim, ocorria em função de se supor,
neste contexto, que o todo era constituído pela soma de suas partes2. Neste aspecto
reside a crítica tecida pela perspectiva da micro-história aos estudos totalizantes, uma
vez que para os partidários desta abordagem o vínculo de descrições estatísticas com as
hipóteses explicativas que pretendiam analisar era epistemologicamente frágil.
O ideal da totalidade do social construído pela primeira geração dos Annales
situava-se em um contexto em que a História procurava se estabelecer frente às outras
ciências sociais, assim, se fazia necessário destacar o que havia de específico em seus
métodos3. A produção destes historiadores visava demonstrar a concatenação de várias
1 Para o historiador francês a distinção entre os planos micro e macro nas diferentes disciplinas, como a
economia e a sociologia, se relacionam a opções conceituais que em grande medida se vinculam a história
das disciplinas. LEPETIT, Bernard. “Sobre a escala na História”. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de
Escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 81. 2 Ibid. p. 81. 3 Ibid. p. 80.
temporalidades em um único momento histórico, o que resultava em estruturas, que o
tempo custava a desgastar e em conjunturas sociais, econômicas e culturais.
A partir da década de 1960 os modelos cientificistas de História passaram por
questionamentos, contudo, apenas na primeira metade dos anos 70 é que estas questões
adquiriram maior visibilidade. Surgiram estudos que romperam com a história seriada e
quantitativa, com os modelos econômicos marxistas, com a história social dos Annales e
com os modelos cliométricos americanos. François Dosse destaca que estes
questionamentos propiciam o surgimento de novas perspectivas, tornando a história não
um saber cumulativo, mas sim, uma coexistência e sucessão de várias linguagens
teóricas de descrição que definem uma pluralidade teórica4. Consequentemente,
assistimos a emergência de uma série de viradas no campo da História, entre elas, a
“virada linguística”, a “virada cultural” e também a “virada transnacional”.
A partir dos anos de 1990 a perspectiva transnacional se tornou popular entre os
historiadores. Barbara Weinstein, elucida as especificidades e as circunstâncias que
levaram tantos pesquisadores a adotarem essa concepção. Para a historiadora, os
pesquisadores latino-americanos desempenharam um papel central para a adoção deste
ponto de vista, uma vez que objetivavam contestar a História da América Latina como
um espaço de ramificação da economia e das iniciativas políticas dos Estados Unidos.
Desta maneira, formularam questões que transcendessem as fronteiras nacionais e
demonstrassem a circulação de mercadorias, ideias e instituições5. Após críticas que
alegavam uma homogeneização da nação para assim possibilitar a análise das
semelhanças e diferenças na história comparada, a história transnacional, foi vista como
uma opção de um novo modo de visualizar as interações e intercâmbios no meio
hemisférico e no âmbito global.
As duas perspectivas abordadas acima, a micro-história e a história
transnacional, repercutiram nos estudos que possuem como objeto o fenômeno
migratório. Com a primeira observamos que as interpretações estruturais que
objetivavam compreender os dados estatísticos sobre entradas e saídas de imigrantes
4 DELACROIX, Chistian; DOSSE, François e GARCIA, Patrick. “Uma crise da História? (as décadas de
1980-1990). In: Correntes históricas na França (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: Ed. da FGV; São
Paulo: Ed. da Unesp, 2012. p.391. 5 WEINSTEIN, Barbara. “Pensando a história fora da nação: a historiografia da América Latina e o viés
transnacional”. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n.14, p. 13-29, jan./jun. 2013. p. 10.
passaram a conviver com interpretações que davam ao imigrante um papel de agente
racional. Já a segunda buscou mostrar a circulação de pessoas ao redor do globo, a
consolidação de leis para a circulação destes indivíduos e a que processos de mudança
do capitalismo essa circulação respondia. A seguir iremos pontuar as características de
ambas as perspectivas e, posteriormente, pretendemos discutir sua relevância para os
estudos migratórios.
A microstoria - os sujeitos em seus contextos
Os historiadores italianos fundadores da microstoria se propuseram a alcançar o
vivido e a experiência individual, questões inacessíveis aos paradigmas totalizantes.
Contudo, esta escala de análise pretende trazer considerações que tenham a mesma
validade que a das outras perspectivas, para tal, se forjou a noção de “excepcional
normal6” que possuí dois significados, tanto pode dizer respeito aos casos que servem
para demonstrar situações reveladoras, quanto para comprovar a normalidade das
exceções7.
Para Ginzburg8, as modificações pelas quais passa a historiografia são
decorrência do fracasso da aplicação da ciência galileana para as ciências sociais. Para
ele, a História está ligada ao “paradigma indiciário”, que trata sobre o individual e é
nessa mudança de escala que se torna possível perceber fatos relevantes negligenciados
em contextos generalizadores. Portanto a disciplina da História vive em um dilema, ou
continua a seguir o modelo galileano e assume um estatuto científico forte e obtêm
resultados de pouca relevância ou então assume um estatuto científico frágil, porém
consegue atingir resultados relevantes. As opções são: ou se sacrifica o individual a
6 Conceito formulado por Edoardo Grendi. In: OLIVEIRA, Mônica Ribeiro & ALMEIDA, Carla Maria
Carvalho. Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009. 7 GINZBURG, Carlo e PONI, Carlo. “O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico”. In:
GINZBURG, C. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
p. 176. 8 GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. in: Mitos, Emblemas e Sinais. São
Paulo: Cia das Letras, 2014.
generalizações ou se elabora um novo paradigma sobre conhecimento científico no
individual.
Ginzburg se propõe a produzir o conhecimento histórico por meio de rastros e a
sintetizá-lo por meio de sua escrita9. Ao destacar o papel dos rastros, o autor retoma
uma das bases da historiografia, que é a questão da prova, pois para ele é por meio da
documentação que o historiador irá criar suas hipóteses e possibilidades de
interpretação. Em momentos diferentes de sua trajetória o italiano demonstra sua
preocupação com esta questão, inclusive em sua entrevista a Maria Lúcia Pallares:
Essa ideia de trabalhar em ambos os lados deve ser central para os
historiadores. Ter um profundo desrespeito pela mentira e, ao mesmo tempo,
um profundo respeito pelas crenças, pelos sentimentos, me parece essencial10.
Isto não significa que ao privilegiar o particular a análise deva se desvincular do
todo, mas apenas que se tem em vista que com a redução da interpretação para o
pormenor seja possível perceber fatos que são negligenciados em contextos
generalizadores. Já para Giovanni Levi, as diferentes escalas fazem parte da mesma
história geral, sendo assim, a micro-história parte de problemas macro-históricos e vê
no nível micro a chance de analisar tais problemas, captando o funcionamento de
mecanismos que o nível macro não consegue11.
Para Levi a relação entre as escalas deve ser feita de modo com que ao intentar,
a partir da perspectiva do micro, chegar ao macro, isto é, com a análise do individual
chegar à sociedade mais ampla, deve-se abordar o espaço social do particular sem
perder de vista as estruturas sociais mais complexas em que o mesmo se insere.
Contudo, devemos nos atentar para o fato de que ao criarmos a relação circular entre o
micro e o macro, existe a armadilha de abordar o indivíduo como autônomo da
sociedade, utilizando-a apenas como pano de fundo ou cenário para o desenrolar de suas
ações, ou identificar que todas as decisões dos agentes são determinadas por estruturas
que escapam de seu controle.
9 DELACROIX, Op.cit,p.323. 10 GINZBURG, Carlo. [Entrevista]. In: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da
história. Nove entrevistas. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p281. 11 MONTEIRO, Lívia Nascimento. Entre escolhas e incertezas: a utilização da Abordagem Microanalítica
na História Social. Juiz de Fora: Clio Edições, 2008, p. 2.
Uma postura distinta é defendida por Lepetit que não corrobora a noção de que
possa existir uma convergência entre as diferentes escalas. Para o autor a variação de
escalas, se situa em primeiro lugar no objeto, e não é produto da construção da pesquisa
e nem apanágio do pesquisador. O historiador destaca que em todas as disciplinas que
as escalas são utilizadas, elas desvelam que:
Ao apagar as variações que se revelariam em outras escalas e dariam uma
outra imagem do mundo, todas as duas se situam, a partir de um ponto de
vista de conhecimento específico e com a preocupação de responder a um uso
particular, num nível escolhido de generalização. Mas uma não é mais
verdadeira que a outra12.
Portanto, isto nos levaria a crer que cada escala de observação tem suas
particularidades, o que resultaria que para todas as explicações haveria em algum
instante a impossibilidade de atingir o real. Lepetit relata sobre um episódio que opunha
economistas e historiadores a respeito da evolução agrária e o crescimento demográfico.
Para o autor, o fato de os interlocutores não se situarem no mesmo nível de escala fazia
com que não fosse possível um entendimento. Contudo, isso não significava que uma
das abordagens estivesse errada “elas dão, sobre a realidade, explicações diferentes que
só são excludentes, e portanto, só podem ser opostas uma a outra, quando se crê que
elas valem na mesma escala13”.
Para o historiador francês a utilização de diferentes escalas poderiam trazer
diferentes entendimentos sobre um mesmo objeto, tornando possível inúmeros ganhos
para o campo, uma vez que estes estudos possibilitariam uma complexificação do real.
História Transnacional – circulações e interações
As circunstâncias após o fim da Segunda Guerra Mundial originaram um novo
processo de desenvolvimento capitalista caracterizado por uma enorme circulação do
capital, pela integração dos mercados de trabalho e pelo trânsito de pessoas,
informações e bens. O processo de globalização se colocou como um tópico premente
para as Ciências Sociais e para a História, e estas buscaram metodologias que
12 LEPETIT, Op.cit, p.94. 13 LEPETIT, Op.cit, p.95.
respondessem a estas demandas, sobretudo, ao tratar dos temas relacionados à
circulação de pessoas, de objetos e de ideias para além das fronteiras nacionais.
A História Transnacional surge visando compreender os intercâmbios realizados
entre as sociedades, assim, seu objeto são os movimentos de capital, pessoas e práticas,
as redes, as crenças e as instituições que transcendem o espaço nacional. Barbara
Weinstein aponta que “diferente da história internacional, que incide sobre a interação
entre as nações, a história transnacional enfatiza questões para as quais o país não é a
principal arena de interação ou conflito” 14. Portanto, o enfoque deixa de ser o da esfera
estritamente política, diplomática e econômica e passa a conviver com a esfera cultural,
privilegiando as trocas. Weinsten salienta que não nos é possível captar os
desdobramentos políticos sem uma investigação pormenorizada dos intercâmbios
culturais.
Os estudos transnacionais têm por objetivo complexificar as compreensões sobre
determinadas circunstâncias. Seu objetivo é mostrar a permeabilidade das fronteiras,
procurando apontar que as relações não podem ser pensadas como ruas de mão única
reforçando apenas uma assimetria, mas sim devem ser construídas de forma relacional.
Em vista disso, os estudos deveriam buscar as “zonas de contato”, locais privilegiados
para a compreensão dos “encontros internacionais”.15 Contudo, não devemos pressupor
que esta abordagem significa o fim das questões nacionais, pois, ela não se opõe à
perspectiva dos Estados-nações:
Diferente do conceito da globalização, um conceito que supõe o declínio da
nação e que é, do meu ponto de vista, profundamente comprometido com o
neoliberalismo, os estudos transnacionais geralmente reconhecem a
persistência da nação como uma esfera principal da política, da economia e
da cultura. De um lado, isso permite uma maior atenção aos processos, às
redes e aos fenômenos de todo tipo que atravessam as fronteiras da nação
sem implicar a homogeneização; de outro, o transnacional nos permite ir
além da identificação de particularidades ou especificidades num contexto
nacional16.
A história transnacional se coloca como uma perspectiva proveitosa para
sociedades com um grande número de imigrantes, pois permite uma análise inclusiva. A
este respeito, Sebastian Conrad, propõe que a crescente mobilidade e o advento da
internet facilitaram o fortalecimento das redes e permitiram que os historiadores
14 WEINSTEIN, Op.cit, p.20. 15 WEINSTEIN, Op.cit, p.20. 16 Ibid., p.23.
participassem dos debates em nível global, o que resultou em um processo de
coexistência de inúmeras narrativas e diversas vozes produzindo conhecimento17.
Conrad define essa abordagem como “uma forma de análise histórica na qual
fenômenos, eventos e processos são inseridos no contexto global18”. Tais estudos
partem do pressuposto de que nenhuma sociedade, nação ou civilização existe em
isolamento. O “transnacional” tem seu escopo de análise focado nas dimensões fluídas e
nos entrelaçamentos do processo histórico, estudando as sociedades nos contextos que
as moldaram e que as mesmas também influíram.
Os historiadores começaram a transcender as reflexões apenas centradas no
nacionalismo e buscaram ultrapassar a compartimentação da realidade histórica, para
assim conseguirem traspor as análises internalistas. Uma possível estratégia para
superar as fronteiras do Estado-nação foi eleger como categoria de análise uma área
supranacional que fizesse a mediação entre as condições locais e globais. Conrad
destaca que estes espaços interativos, a exemplo, os oceanos, têm propiciado inúmeras
trocas ao longo do tempo e para diversos regimes políticos, assim, são espaços que
possibilitam vislumbrar como a interação e comunicação promovem o surgimento de
novas formas de estabilidade19. A mobilidade em escala global também alterou
expressivamente o mundo, vejamos a seguir como as migrações podem ser analisadas
sob esta perspectiva.
Estudos Migratórios - entre escalas
Entre os anos de 1881 a 1915, cerca de 31 milhões de imigrantes chegaram à
América no período classificado como o das Grandes Migrações20. Estes deslocamentos
ensejaram contatos entre pessoas de diferentes formações culturais, que tornaram a
construção de uma identificação de si um fenômeno recorrente ao longo dos séculos
XIX e XX.
17 CONRAD, Sebastian. What is global history. Princeton: Princeton University Press, 2016, p.2. 18 Ibid., p.5. 19 Ibid., p. 118. 20 KLEIN, Herbert. “Migrações Internacionais na História da América”. In: FAUSTO, Boris. Fazer a
América. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 23.
Consequentemente, o termo imigração é fruto de um complexo contexto
histórico que impactou nossa compreensão sobre o mundo em si e sobre este processo
específico21. Sebastian Conrad22 destaca que a noção de imigração é parte de nosso
aparato conceitual e possibilita com que façamos com que diferentes realidades
históricas se tornem compatíveis e traduzíveis. McKeown relata que o conceito
migração surgiu no período moderno como um termo das ciências sociais ligado à
sobreposição dos projetos de construção de nação, de imperialismo e de recrutamento
de força de trabalho. Tais projetos originaram uma série de estratégias, entre elas, a
constante vigilância das fronteiras, controle de formas indesejadas de mobilidade, a
criação legal dos imigrantes como indivíduos livres.
Visando compreender este fenômeno, pesquisadores de diversas áreas das
ciências sociais elaboraram estudos que sob diferentes perspectivas procuraram
entender aspectos relacionados a este processo. Em um balanço sobre os estudos dessa
área, Douglas Massey pontua que um dos obstáculos para as análises sobre imigração
está em não haver um paradigma compartilhado entre as diferentes disciplinas, regiões e
ideologias, resultando assim, em narrativas ineficientes. Para o sociólogo estadunidense
apenas quando os pesquisadores aceitarem conceitos e teorias em comum é que a área
poderá produzir um conhecimento cumulativo23.
Seguindo por esta mesma linha argumentativa estão Jan e Leo Lucassen, que
destacam haver uma enorme distância na produção de historiadores e de cientistas
sociais, que tende a aumentar quando analisamos as abordagens que partem de uma
perspectiva macroscópica centrada na análise de políticas migratórias e forças de
mercado e aqueles que utilizam a micro escala, enfatizando a experiência individual ou
de famílias no processo migratório24.
As duas escalas possuem potencialidades e desafios que se apresentam aos
pesquisadores que as utilizam. O sociólogo Alejandro Portes argumenta que reduzir as
questões para o plano do indivíduo impede a utilização de unidades de análise mais
21 McKEOWN, Adam. Melancholy Order: Asian Migration and the Globalization of Borders. New York:
Columbia University Press, 2008. 22 CONRAD, Op.cit, p. 192 23 MASSEY, Douglas. “An evaluation of internacional migration Theory – the North American Case”.
Population and Development Review. V. 20, p.700. 24 LUCASSEN, Jan; LUCASSEN, Leo. Migration, Migration History: old paradigms and new
perspectives. Bern: Perter Lang, 1997.
complexas, entre elas as famílias, os domicílios e as comunidades25, mais adequadas
para o entendimento da imigração, uma vez que a decisão de migrar, raramente, é
tomada individualmente, mas sim, em uma economia doméstica. Já Benmayor e
Skotnes pontuam que o testemunho pessoal delineia como os imigrantes constantemente
constroem, reinventam e sintetizam identidades por meio de um processo realizado a
partir de múltiplas fontes e recursos. Os autores destacam que conhecer as
singularidades de determinadas experiências individuais é relevante para apreender
generalizações sobre a experiência grupal. No entanto, isto nós traz indagações a
respeito da validade dessas generalizações, uma vez que poucas vidas individuais são
representativas para conformar uma única narrativa26.
Já a principal contribuição das abordagens transnacionais reside em tornar
possível uma melhor compreensão das similaridades e diferenças na imigração e nas
políticas de cidadania em distintas realidades. Como o foco desta interpretação está
centrado nas interações entre diferentes espaços geográficos, temas como mobilidade de
mercadorias, migração e viagens de pessoas e a circulação de ideias e instituições se
tornam objetos de estudo de muitos historiadores transnacionais. A este respeito,
Barbara Weinstein pontua os seguintes argumentos:
Ao mesmo tempo, cabe acentuar os aspectos do viés transnacional que são
verdadeiramente “novos”. O estudo da imigração, por exemplo: parece, à
primeira vista, que esse assunto, por sua própria natureza, já introduziu uma
abordagem transnacional faz tempo. Mas a velha historiografia da imigração,
da Argentina, do Brasil, dos Estados Unidos, foi escrita especificamente para
incorporar o imigrante na narrativa nacional. Diferente disso, a ótica
transnacional entende a imigração no sentido de um circuito em que existem
muitas redes de contato, compromisso, intercâmbio e várias formas de
movimento e identidade. Imigração, desse ponto de vista, não é uma história
composta simplesmente de um ponto de origem, a transferência geográfica, e
a chegada à terra nova. E isso se aplica não apenas às imigrações no mundo
de hoje, que são nitidamente multidirecionais, mas também às ondas
migratórias do século XIX e início do século XX. Enfim, é sempre
importante reconhecer o que nós estamos devendo intelectualmente às
gerações anteriores, sem perder de vista as verdadeiras inovações das
pesquisas atuais27.
25 PORTES, Alejandro. Immigrantion Theory for a New Century: some problems and opportunities.
International Migration Review 31: 799-825.1997, p. 817. 26 BENMAYOR, Rina; SKOTNES, Andor. Migration and Identity. Oxford: Oxford University Press,
1994. 27 WEINSTEIN, Barbara. Op.cit, p.21.
Sobre uma possível convergência entre estes dois níveis de escala, a autora
complementa dizendo que “é difícil imaginar um tema histórico nos últimos dois
séculos, começando com a micro-história local, que não envolva algum elemento do
transnacional28”. Um possível ponto de consonância entre as perspectivas pode ocorrer
no estudo das redes migratórias, em virtude de buscarem recuperar a agência dos
indivíduos e compreenderem as relações construídas por estes, ao mesmo tempo em que
analisam as conjunturas e trocas de informações entre diferentes espaços. A rede seria,
portanto, um conceito que articularia os níveis macroestrutural e microestrutural,
permitindo a análise das ações cotidianas dos indivíduos, uma vez que é por meio delas
que circulam informações e recursos. Segundo Kelly, as redes são:
agrupamentos de indivíduos que mantêm contatos recorrentes entre si, por
meio de laços ocupacionais, familiares, culturais ou afetivos. Além disso, são
formações complexas que canalizam, filtram e interpretam informações,
articulando significados, alocando recursos e controlando comportamentos29.
Para os estudos sobre processos migratórios as redes são de grande relevância,
pois funcionam como um fator que estimula a saída em cadeia e servem como força
aglutinadora no país de destino. Oswaldo Truzzi em Redes em processos migratórios
pontua que as questões estruturais e econômicas dos locais de origem dos imigrantes
são fatores que influenciam na tomada de decisão de partir, porém o que influencia na
escolha dos locais de destino são as redes. A análise elaborada por Truzzi visa dar ao
imigrante um papel de agente racional, assim, o que se busca é a reelaboração da
trajetória dos indivíduos por meio da reunião de fontes nominativas, na expectativa de
nela encontrar a ação social e informações que se perderam nas escalas macroscópicas.
O uso das fontes nominativas é parte de um processo de modificação pelo qual
passou o campo historiográfico desde o surgimento do grupo ligado à revista dos
Annales. Neste período o campo da teoria histórica experimentou um alargamento em
suas dimensões, permitindo que se inserissem no campo historiográfico estudos que
compreendessem não apenas os fatores políticos, mas também os fatores sociais e
econômicos. O entendimento de que tudo poderia vir a ser um documento, dependendo
28 Ibidem. p.27. 29 KELLY, 1995, p.219. apud: TRUZZI, Oswaldo. “Redes em processos migratórios”, pp. 199-218.
Tempo Social Revista de sociologia da USP, v. 20. p.5.
do gesto do historiador de separar, de reunir e de produzir um documento se tornaram
possíveis novas interpretações históricas.
Estas novas interpretações propiciaram, um alargamento da compreensão do que
eram as fontes para o historiador, uma vez que ao procurarem “dar voz” a novos
personagens históricos, mobilizaram documentos, que não apenas os produzidos pelo
poder público, assim, documentos involuntários também passaram a serem estudados.
Entretanto, este movimento não pode ser associado apenas aos franceses ligados aos
Annales, pois, os marxistas britânicos em suas análises intituladas de “história vista de
baixo” propunham como protagonistas as questões de cultura e experiência da ação
individual, visando unir o cotidiano com as temáticas políticas tradicionais. Ao realizar
este movimento percebe-se que estes historiadores britânicos ligados à tradição marxista
não desvinculam a história de vida dos aspectos estruturais, ligados aos fatores políticos
e econômicos.
Nos estudos migratórios, fontes nominativas que ajudam na compreensão das
redes são as cartas, uma vez que muitos decidiam emigrar após informarem-se
previamente sobre os locais de destino com imigrantes de mesma origem que já estavam
estabelecidos nestes espaços por mais tempo30. A circulação de informações sobre
oportunidades de emprego e alojamento e as remessas de recursos questões bastantes
presentes nas redes de migração.
O processo migratório é permeado por causas micro e macro que determinam os
fluxos, sejam elas a condição legal do imigrante em cada local, o perfil socioeconômico
de quem migra e quais são as condições para a tomada desta decisão. Truzzi entende
que a experiência social dos imigrantes se localiza em uma zona de intersecção entre
background social, econômico e cultural de sua terra de origem, contexto político e
econômico de ambas as nações no período de migração e condicionantes de inserção na
nova terra com suas oportunidades de mobilidade31.
Longe de se constituir enquanto um fenômeno de fácil explicação, o processo
migratório contempla inúmeros elementos que são cruciais para sua compreensão. Ao
analisarmos os deslocamentos populacionais, percebemos que seu volume, as 30 TRUZZI, Oswaldo Mario Serra. “Redes em processos migratórios”. Tempo Social Revista de
Sociologia da USP, v. 20, n.1. p. 203. 31 TRUZZI, Oswaldo Mario Serra. Italianidade no interior paulista - percursos e descaminhos de uma
identidade étnica (1880-1950). São Paulo: Editora Unesp, 2016. p.20.
motivações que os ocasionam, as experiências de vida nele envolvidas, as rotas e as
circunstâncias globais que o influenciam, o transformam em um fenômeno
plurifacetado.
Escolher quais desses elementos serão privilegiados na análise diz respeito à
quais questões objetivamos responder, elas irão direcionar qual é o nível de escala mais
adequado para nosso objeto. Utilizar à micro-história e compreender as subjetividades
que estão postas nesse processo e analisar o indivíduo oferece um caminho tão profícuo
quanto compreender os aspectos macro que envolve os aspectos políticos, econômicos e
culturais que envolvem o ato de migrar. A diversidade de olhares auxilia para um maior
entendimento de como sucedem as migrações internacionais.
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