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A RELEVÂNCIA DAS ABORDAGENS TRANSNACIONAIS E DA MICRO- HISTÓRIA NOS ESTUDOS MIGRATÓRIOS Renata Geraissati Castro de Almeida Doutoranda em História na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - Financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo FAPESP. [email protected] Resumo Após os anos de 1960, observamos uma modificação nas perspectivas de análise do passado, após inúmeros questionamentos aos modelos cientificistas, e atreladas a este contexto, ocorre à emergência dos estudos biográficos e a volta da escala humana para a história. Tais modificações teóricas repercutiram no campo dos estudos migratórios, e as interpretações estruturais que objetivavam compreender os dados estatísticos sobre a imigração passaram a conviver com interpretações que davam ao imigrante um papel de agente racional. Nos anos 1990 outra perspectiva passou a atrair os historiadores, a história global, e as análises sobre os processos migratórios se tornaram um campo privilegiado para tal metodologia, que visa mostrar a circulação de pessoas ao redor do globo. Neste artigo, pretendemos discutir a relevância de ambas as perspectivas para os estudos migratórios. Palavras-chave: Micro-história; História transnacional; Imigração;

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A RELEVÂNCIA DAS ABORDAGENS TRANSNACIONAIS E DA MICRO-

HISTÓRIA NOS ESTUDOS MIGRATÓRIOS

Renata Geraissati Castro de Almeida

Doutoranda em História na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - Financiada

pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo – FAPESP.

[email protected]

Resumo

Após os anos de 1960, observamos uma modificação nas perspectivas de análise do

passado, após inúmeros questionamentos aos modelos cientificistas, e atreladas a este

contexto, ocorre à emergência dos estudos biográficos e a volta da escala humana para a

história. Tais modificações teóricas repercutiram no campo dos estudos migratórios, e

as interpretações estruturais que objetivavam compreender os dados estatísticos sobre a

imigração passaram a conviver com interpretações que davam ao imigrante um papel de

agente racional. Nos anos 1990 outra perspectiva passou a atrair os historiadores, a

história global, e as análises sobre os processos migratórios se tornaram um campo

privilegiado para tal metodologia, que visa mostrar a circulação de pessoas ao redor do

globo. Neste artigo, pretendemos discutir a relevância de ambas as perspectivas para os

estudos migratórios.

Palavras-chave: Micro-história; História transnacional; Imigração;

Introdução

A cada vez, é assim, em planos diferentes, colocada em discussão a história

inteira, apreendida obrigatoriamente, por mais depressa que seja, em sua

plena espessura e, portanto, sob todos os seus aspectos (...). (Braudel, 2013,

p.236)

Com recorrência os historiadores avaliam suas práticas e elaboram reflexões que

reveem e questionam os aspectos teóricos metodológicos que constituem o campo. Tal

exercício contribui para a legitimação desta comunidade profissional, cuja identidade é

construída a partir de princípios compartilhados, estes revelam que, apesar das

diferentes perspectivas teóricas adotadas, os historiadores partilham de pressupostos

metodológicos elementares, entre eles, o estatuto das fontes.

Observamos que desde os anos de 1980, o papel da escala passou a ocupar um

espaço cada vez maior nos debates capitaneados pelos historiadores. Para Bernard

Lepetit, inicialmente, a disciplina operava com o nível da macro-história, contudo, tal

opção não era fruto de uma reflexão crítica1, mas sim, ocorria em função de se supor,

neste contexto, que o todo era constituído pela soma de suas partes2. Neste aspecto

reside a crítica tecida pela perspectiva da micro-história aos estudos totalizantes, uma

vez que para os partidários desta abordagem o vínculo de descrições estatísticas com as

hipóteses explicativas que pretendiam analisar era epistemologicamente frágil.

O ideal da totalidade do social construído pela primeira geração dos Annales

situava-se em um contexto em que a História procurava se estabelecer frente às outras

ciências sociais, assim, se fazia necessário destacar o que havia de específico em seus

métodos3. A produção destes historiadores visava demonstrar a concatenação de várias

1 Para o historiador francês a distinção entre os planos micro e macro nas diferentes disciplinas, como a

economia e a sociologia, se relacionam a opções conceituais que em grande medida se vinculam a história

das disciplinas. LEPETIT, Bernard. “Sobre a escala na História”. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de

Escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 81. 2 Ibid. p. 81. 3 Ibid. p. 80.

temporalidades em um único momento histórico, o que resultava em estruturas, que o

tempo custava a desgastar e em conjunturas sociais, econômicas e culturais.

A partir da década de 1960 os modelos cientificistas de História passaram por

questionamentos, contudo, apenas na primeira metade dos anos 70 é que estas questões

adquiriram maior visibilidade. Surgiram estudos que romperam com a história seriada e

quantitativa, com os modelos econômicos marxistas, com a história social dos Annales e

com os modelos cliométricos americanos. François Dosse destaca que estes

questionamentos propiciam o surgimento de novas perspectivas, tornando a história não

um saber cumulativo, mas sim, uma coexistência e sucessão de várias linguagens

teóricas de descrição que definem uma pluralidade teórica4. Consequentemente,

assistimos a emergência de uma série de viradas no campo da História, entre elas, a

“virada linguística”, a “virada cultural” e também a “virada transnacional”.

A partir dos anos de 1990 a perspectiva transnacional se tornou popular entre os

historiadores. Barbara Weinstein, elucida as especificidades e as circunstâncias que

levaram tantos pesquisadores a adotarem essa concepção. Para a historiadora, os

pesquisadores latino-americanos desempenharam um papel central para a adoção deste

ponto de vista, uma vez que objetivavam contestar a História da América Latina como

um espaço de ramificação da economia e das iniciativas políticas dos Estados Unidos.

Desta maneira, formularam questões que transcendessem as fronteiras nacionais e

demonstrassem a circulação de mercadorias, ideias e instituições5. Após críticas que

alegavam uma homogeneização da nação para assim possibilitar a análise das

semelhanças e diferenças na história comparada, a história transnacional, foi vista como

uma opção de um novo modo de visualizar as interações e intercâmbios no meio

hemisférico e no âmbito global.

As duas perspectivas abordadas acima, a micro-história e a história

transnacional, repercutiram nos estudos que possuem como objeto o fenômeno

migratório. Com a primeira observamos que as interpretações estruturais que

objetivavam compreender os dados estatísticos sobre entradas e saídas de imigrantes

4 DELACROIX, Chistian; DOSSE, François e GARCIA, Patrick. “Uma crise da História? (as décadas de

1980-1990). In: Correntes históricas na França (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: Ed. da FGV; São

Paulo: Ed. da Unesp, 2012. p.391. 5 WEINSTEIN, Barbara. “Pensando a história fora da nação: a historiografia da América Latina e o viés

transnacional”. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n.14, p. 13-29, jan./jun. 2013. p. 10.

passaram a conviver com interpretações que davam ao imigrante um papel de agente

racional. Já a segunda buscou mostrar a circulação de pessoas ao redor do globo, a

consolidação de leis para a circulação destes indivíduos e a que processos de mudança

do capitalismo essa circulação respondia. A seguir iremos pontuar as características de

ambas as perspectivas e, posteriormente, pretendemos discutir sua relevância para os

estudos migratórios.

A microstoria - os sujeitos em seus contextos

Os historiadores italianos fundadores da microstoria se propuseram a alcançar o

vivido e a experiência individual, questões inacessíveis aos paradigmas totalizantes.

Contudo, esta escala de análise pretende trazer considerações que tenham a mesma

validade que a das outras perspectivas, para tal, se forjou a noção de “excepcional

normal6” que possuí dois significados, tanto pode dizer respeito aos casos que servem

para demonstrar situações reveladoras, quanto para comprovar a normalidade das

exceções7.

Para Ginzburg8, as modificações pelas quais passa a historiografia são

decorrência do fracasso da aplicação da ciência galileana para as ciências sociais. Para

ele, a História está ligada ao “paradigma indiciário”, que trata sobre o individual e é

nessa mudança de escala que se torna possível perceber fatos relevantes negligenciados

em contextos generalizadores. Portanto a disciplina da História vive em um dilema, ou

continua a seguir o modelo galileano e assume um estatuto científico forte e obtêm

resultados de pouca relevância ou então assume um estatuto científico frágil, porém

consegue atingir resultados relevantes. As opções são: ou se sacrifica o individual a

6 Conceito formulado por Edoardo Grendi. In: OLIVEIRA, Mônica Ribeiro & ALMEIDA, Carla Maria

Carvalho. Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2009. 7 GINZBURG, Carlo e PONI, Carlo. “O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico”. In:

GINZBURG, C. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

p. 176. 8 GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. in: Mitos, Emblemas e Sinais. São

Paulo: Cia das Letras, 2014.

generalizações ou se elabora um novo paradigma sobre conhecimento científico no

individual.

Ginzburg se propõe a produzir o conhecimento histórico por meio de rastros e a

sintetizá-lo por meio de sua escrita9. Ao destacar o papel dos rastros, o autor retoma

uma das bases da historiografia, que é a questão da prova, pois para ele é por meio da

documentação que o historiador irá criar suas hipóteses e possibilidades de

interpretação. Em momentos diferentes de sua trajetória o italiano demonstra sua

preocupação com esta questão, inclusive em sua entrevista a Maria Lúcia Pallares:

Essa ideia de trabalhar em ambos os lados deve ser central para os

historiadores. Ter um profundo desrespeito pela mentira e, ao mesmo tempo,

um profundo respeito pelas crenças, pelos sentimentos, me parece essencial10.

Isto não significa que ao privilegiar o particular a análise deva se desvincular do

todo, mas apenas que se tem em vista que com a redução da interpretação para o

pormenor seja possível perceber fatos que são negligenciados em contextos

generalizadores. Já para Giovanni Levi, as diferentes escalas fazem parte da mesma

história geral, sendo assim, a micro-história parte de problemas macro-históricos e vê

no nível micro a chance de analisar tais problemas, captando o funcionamento de

mecanismos que o nível macro não consegue11.

Para Levi a relação entre as escalas deve ser feita de modo com que ao intentar,

a partir da perspectiva do micro, chegar ao macro, isto é, com a análise do individual

chegar à sociedade mais ampla, deve-se abordar o espaço social do particular sem

perder de vista as estruturas sociais mais complexas em que o mesmo se insere.

Contudo, devemos nos atentar para o fato de que ao criarmos a relação circular entre o

micro e o macro, existe a armadilha de abordar o indivíduo como autônomo da

sociedade, utilizando-a apenas como pano de fundo ou cenário para o desenrolar de suas

ações, ou identificar que todas as decisões dos agentes são determinadas por estruturas

que escapam de seu controle.

9 DELACROIX, Op.cit,p.323. 10 GINZBURG, Carlo. [Entrevista]. In: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da

história. Nove entrevistas. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p281. 11 MONTEIRO, Lívia Nascimento. Entre escolhas e incertezas: a utilização da Abordagem Microanalítica

na História Social. Juiz de Fora: Clio Edições, 2008, p. 2.

Uma postura distinta é defendida por Lepetit que não corrobora a noção de que

possa existir uma convergência entre as diferentes escalas. Para o autor a variação de

escalas, se situa em primeiro lugar no objeto, e não é produto da construção da pesquisa

e nem apanágio do pesquisador. O historiador destaca que em todas as disciplinas que

as escalas são utilizadas, elas desvelam que:

Ao apagar as variações que se revelariam em outras escalas e dariam uma

outra imagem do mundo, todas as duas se situam, a partir de um ponto de

vista de conhecimento específico e com a preocupação de responder a um uso

particular, num nível escolhido de generalização. Mas uma não é mais

verdadeira que a outra12.

Portanto, isto nos levaria a crer que cada escala de observação tem suas

particularidades, o que resultaria que para todas as explicações haveria em algum

instante a impossibilidade de atingir o real. Lepetit relata sobre um episódio que opunha

economistas e historiadores a respeito da evolução agrária e o crescimento demográfico.

Para o autor, o fato de os interlocutores não se situarem no mesmo nível de escala fazia

com que não fosse possível um entendimento. Contudo, isso não significava que uma

das abordagens estivesse errada “elas dão, sobre a realidade, explicações diferentes que

só são excludentes, e portanto, só podem ser opostas uma a outra, quando se crê que

elas valem na mesma escala13”.

Para o historiador francês a utilização de diferentes escalas poderiam trazer

diferentes entendimentos sobre um mesmo objeto, tornando possível inúmeros ganhos

para o campo, uma vez que estes estudos possibilitariam uma complexificação do real.

História Transnacional – circulações e interações

As circunstâncias após o fim da Segunda Guerra Mundial originaram um novo

processo de desenvolvimento capitalista caracterizado por uma enorme circulação do

capital, pela integração dos mercados de trabalho e pelo trânsito de pessoas,

informações e bens. O processo de globalização se colocou como um tópico premente

para as Ciências Sociais e para a História, e estas buscaram metodologias que

12 LEPETIT, Op.cit, p.94. 13 LEPETIT, Op.cit, p.95.

respondessem a estas demandas, sobretudo, ao tratar dos temas relacionados à

circulação de pessoas, de objetos e de ideias para além das fronteiras nacionais.

A História Transnacional surge visando compreender os intercâmbios realizados

entre as sociedades, assim, seu objeto são os movimentos de capital, pessoas e práticas,

as redes, as crenças e as instituições que transcendem o espaço nacional. Barbara

Weinstein aponta que “diferente da história internacional, que incide sobre a interação

entre as nações, a história transnacional enfatiza questões para as quais o país não é a

principal arena de interação ou conflito” 14. Portanto, o enfoque deixa de ser o da esfera

estritamente política, diplomática e econômica e passa a conviver com a esfera cultural,

privilegiando as trocas. Weinsten salienta que não nos é possível captar os

desdobramentos políticos sem uma investigação pormenorizada dos intercâmbios

culturais.

Os estudos transnacionais têm por objetivo complexificar as compreensões sobre

determinadas circunstâncias. Seu objetivo é mostrar a permeabilidade das fronteiras,

procurando apontar que as relações não podem ser pensadas como ruas de mão única

reforçando apenas uma assimetria, mas sim devem ser construídas de forma relacional.

Em vista disso, os estudos deveriam buscar as “zonas de contato”, locais privilegiados

para a compreensão dos “encontros internacionais”.15 Contudo, não devemos pressupor

que esta abordagem significa o fim das questões nacionais, pois, ela não se opõe à

perspectiva dos Estados-nações:

Diferente do conceito da globalização, um conceito que supõe o declínio da

nação e que é, do meu ponto de vista, profundamente comprometido com o

neoliberalismo, os estudos transnacionais geralmente reconhecem a

persistência da nação como uma esfera principal da política, da economia e

da cultura. De um lado, isso permite uma maior atenção aos processos, às

redes e aos fenômenos de todo tipo que atravessam as fronteiras da nação

sem implicar a homogeneização; de outro, o transnacional nos permite ir

além da identificação de particularidades ou especificidades num contexto

nacional16.

A história transnacional se coloca como uma perspectiva proveitosa para

sociedades com um grande número de imigrantes, pois permite uma análise inclusiva. A

este respeito, Sebastian Conrad, propõe que a crescente mobilidade e o advento da

internet facilitaram o fortalecimento das redes e permitiram que os historiadores

14 WEINSTEIN, Op.cit, p.20. 15 WEINSTEIN, Op.cit, p.20. 16 Ibid., p.23.

participassem dos debates em nível global, o que resultou em um processo de

coexistência de inúmeras narrativas e diversas vozes produzindo conhecimento17.

Conrad define essa abordagem como “uma forma de análise histórica na qual

fenômenos, eventos e processos são inseridos no contexto global18”. Tais estudos

partem do pressuposto de que nenhuma sociedade, nação ou civilização existe em

isolamento. O “transnacional” tem seu escopo de análise focado nas dimensões fluídas e

nos entrelaçamentos do processo histórico, estudando as sociedades nos contextos que

as moldaram e que as mesmas também influíram.

Os historiadores começaram a transcender as reflexões apenas centradas no

nacionalismo e buscaram ultrapassar a compartimentação da realidade histórica, para

assim conseguirem traspor as análises internalistas. Uma possível estratégia para

superar as fronteiras do Estado-nação foi eleger como categoria de análise uma área

supranacional que fizesse a mediação entre as condições locais e globais. Conrad

destaca que estes espaços interativos, a exemplo, os oceanos, têm propiciado inúmeras

trocas ao longo do tempo e para diversos regimes políticos, assim, são espaços que

possibilitam vislumbrar como a interação e comunicação promovem o surgimento de

novas formas de estabilidade19. A mobilidade em escala global também alterou

expressivamente o mundo, vejamos a seguir como as migrações podem ser analisadas

sob esta perspectiva.

Estudos Migratórios - entre escalas

Entre os anos de 1881 a 1915, cerca de 31 milhões de imigrantes chegaram à

América no período classificado como o das Grandes Migrações20. Estes deslocamentos

ensejaram contatos entre pessoas de diferentes formações culturais, que tornaram a

construção de uma identificação de si um fenômeno recorrente ao longo dos séculos

XIX e XX.

17 CONRAD, Sebastian. What is global history. Princeton: Princeton University Press, 2016, p.2. 18 Ibid., p.5. 19 Ibid., p. 118. 20 KLEIN, Herbert. “Migrações Internacionais na História da América”. In: FAUSTO, Boris. Fazer a

América. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 23.

Consequentemente, o termo imigração é fruto de um complexo contexto

histórico que impactou nossa compreensão sobre o mundo em si e sobre este processo

específico21. Sebastian Conrad22 destaca que a noção de imigração é parte de nosso

aparato conceitual e possibilita com que façamos com que diferentes realidades

históricas se tornem compatíveis e traduzíveis. McKeown relata que o conceito

migração surgiu no período moderno como um termo das ciências sociais ligado à

sobreposição dos projetos de construção de nação, de imperialismo e de recrutamento

de força de trabalho. Tais projetos originaram uma série de estratégias, entre elas, a

constante vigilância das fronteiras, controle de formas indesejadas de mobilidade, a

criação legal dos imigrantes como indivíduos livres.

Visando compreender este fenômeno, pesquisadores de diversas áreas das

ciências sociais elaboraram estudos que sob diferentes perspectivas procuraram

entender aspectos relacionados a este processo. Em um balanço sobre os estudos dessa

área, Douglas Massey pontua que um dos obstáculos para as análises sobre imigração

está em não haver um paradigma compartilhado entre as diferentes disciplinas, regiões e

ideologias, resultando assim, em narrativas ineficientes. Para o sociólogo estadunidense

apenas quando os pesquisadores aceitarem conceitos e teorias em comum é que a área

poderá produzir um conhecimento cumulativo23.

Seguindo por esta mesma linha argumentativa estão Jan e Leo Lucassen, que

destacam haver uma enorme distância na produção de historiadores e de cientistas

sociais, que tende a aumentar quando analisamos as abordagens que partem de uma

perspectiva macroscópica centrada na análise de políticas migratórias e forças de

mercado e aqueles que utilizam a micro escala, enfatizando a experiência individual ou

de famílias no processo migratório24.

As duas escalas possuem potencialidades e desafios que se apresentam aos

pesquisadores que as utilizam. O sociólogo Alejandro Portes argumenta que reduzir as

questões para o plano do indivíduo impede a utilização de unidades de análise mais

21 McKEOWN, Adam. Melancholy Order: Asian Migration and the Globalization of Borders. New York:

Columbia University Press, 2008. 22 CONRAD, Op.cit, p. 192 23 MASSEY, Douglas. “An evaluation of internacional migration Theory – the North American Case”.

Population and Development Review. V. 20, p.700. 24 LUCASSEN, Jan; LUCASSEN, Leo. Migration, Migration History: old paradigms and new

perspectives. Bern: Perter Lang, 1997.

complexas, entre elas as famílias, os domicílios e as comunidades25, mais adequadas

para o entendimento da imigração, uma vez que a decisão de migrar, raramente, é

tomada individualmente, mas sim, em uma economia doméstica. Já Benmayor e

Skotnes pontuam que o testemunho pessoal delineia como os imigrantes constantemente

constroem, reinventam e sintetizam identidades por meio de um processo realizado a

partir de múltiplas fontes e recursos. Os autores destacam que conhecer as

singularidades de determinadas experiências individuais é relevante para apreender

generalizações sobre a experiência grupal. No entanto, isto nós traz indagações a

respeito da validade dessas generalizações, uma vez que poucas vidas individuais são

representativas para conformar uma única narrativa26.

Já a principal contribuição das abordagens transnacionais reside em tornar

possível uma melhor compreensão das similaridades e diferenças na imigração e nas

políticas de cidadania em distintas realidades. Como o foco desta interpretação está

centrado nas interações entre diferentes espaços geográficos, temas como mobilidade de

mercadorias, migração e viagens de pessoas e a circulação de ideias e instituições se

tornam objetos de estudo de muitos historiadores transnacionais. A este respeito,

Barbara Weinstein pontua os seguintes argumentos:

Ao mesmo tempo, cabe acentuar os aspectos do viés transnacional que são

verdadeiramente “novos”. O estudo da imigração, por exemplo: parece, à

primeira vista, que esse assunto, por sua própria natureza, já introduziu uma

abordagem transnacional faz tempo. Mas a velha historiografia da imigração,

da Argentina, do Brasil, dos Estados Unidos, foi escrita especificamente para

incorporar o imigrante na narrativa nacional. Diferente disso, a ótica

transnacional entende a imigração no sentido de um circuito em que existem

muitas redes de contato, compromisso, intercâmbio e várias formas de

movimento e identidade. Imigração, desse ponto de vista, não é uma história

composta simplesmente de um ponto de origem, a transferência geográfica, e

a chegada à terra nova. E isso se aplica não apenas às imigrações no mundo

de hoje, que são nitidamente multidirecionais, mas também às ondas

migratórias do século XIX e início do século XX. Enfim, é sempre

importante reconhecer o que nós estamos devendo intelectualmente às

gerações anteriores, sem perder de vista as verdadeiras inovações das

pesquisas atuais27.

25 PORTES, Alejandro. Immigrantion Theory for a New Century: some problems and opportunities.

International Migration Review 31: 799-825.1997, p. 817. 26 BENMAYOR, Rina; SKOTNES, Andor. Migration and Identity. Oxford: Oxford University Press,

1994. 27 WEINSTEIN, Barbara. Op.cit, p.21.

Sobre uma possível convergência entre estes dois níveis de escala, a autora

complementa dizendo que “é difícil imaginar um tema histórico nos últimos dois

séculos, começando com a micro-história local, que não envolva algum elemento do

transnacional28”. Um possível ponto de consonância entre as perspectivas pode ocorrer

no estudo das redes migratórias, em virtude de buscarem recuperar a agência dos

indivíduos e compreenderem as relações construídas por estes, ao mesmo tempo em que

analisam as conjunturas e trocas de informações entre diferentes espaços. A rede seria,

portanto, um conceito que articularia os níveis macroestrutural e microestrutural,

permitindo a análise das ações cotidianas dos indivíduos, uma vez que é por meio delas

que circulam informações e recursos. Segundo Kelly, as redes são:

agrupamentos de indivíduos que mantêm contatos recorrentes entre si, por

meio de laços ocupacionais, familiares, culturais ou afetivos. Além disso, são

formações complexas que canalizam, filtram e interpretam informações,

articulando significados, alocando recursos e controlando comportamentos29.

Para os estudos sobre processos migratórios as redes são de grande relevância,

pois funcionam como um fator que estimula a saída em cadeia e servem como força

aglutinadora no país de destino. Oswaldo Truzzi em Redes em processos migratórios

pontua que as questões estruturais e econômicas dos locais de origem dos imigrantes

são fatores que influenciam na tomada de decisão de partir, porém o que influencia na

escolha dos locais de destino são as redes. A análise elaborada por Truzzi visa dar ao

imigrante um papel de agente racional, assim, o que se busca é a reelaboração da

trajetória dos indivíduos por meio da reunião de fontes nominativas, na expectativa de

nela encontrar a ação social e informações que se perderam nas escalas macroscópicas.

O uso das fontes nominativas é parte de um processo de modificação pelo qual

passou o campo historiográfico desde o surgimento do grupo ligado à revista dos

Annales. Neste período o campo da teoria histórica experimentou um alargamento em

suas dimensões, permitindo que se inserissem no campo historiográfico estudos que

compreendessem não apenas os fatores políticos, mas também os fatores sociais e

econômicos. O entendimento de que tudo poderia vir a ser um documento, dependendo

28 Ibidem. p.27. 29 KELLY, 1995, p.219. apud: TRUZZI, Oswaldo. “Redes em processos migratórios”, pp. 199-218.

Tempo Social Revista de sociologia da USP, v. 20. p.5.

do gesto do historiador de separar, de reunir e de produzir um documento se tornaram

possíveis novas interpretações históricas.

Estas novas interpretações propiciaram, um alargamento da compreensão do que

eram as fontes para o historiador, uma vez que ao procurarem “dar voz” a novos

personagens históricos, mobilizaram documentos, que não apenas os produzidos pelo

poder público, assim, documentos involuntários também passaram a serem estudados.

Entretanto, este movimento não pode ser associado apenas aos franceses ligados aos

Annales, pois, os marxistas britânicos em suas análises intituladas de “história vista de

baixo” propunham como protagonistas as questões de cultura e experiência da ação

individual, visando unir o cotidiano com as temáticas políticas tradicionais. Ao realizar

este movimento percebe-se que estes historiadores britânicos ligados à tradição marxista

não desvinculam a história de vida dos aspectos estruturais, ligados aos fatores políticos

e econômicos.

Nos estudos migratórios, fontes nominativas que ajudam na compreensão das

redes são as cartas, uma vez que muitos decidiam emigrar após informarem-se

previamente sobre os locais de destino com imigrantes de mesma origem que já estavam

estabelecidos nestes espaços por mais tempo30. A circulação de informações sobre

oportunidades de emprego e alojamento e as remessas de recursos questões bastantes

presentes nas redes de migração.

O processo migratório é permeado por causas micro e macro que determinam os

fluxos, sejam elas a condição legal do imigrante em cada local, o perfil socioeconômico

de quem migra e quais são as condições para a tomada desta decisão. Truzzi entende

que a experiência social dos imigrantes se localiza em uma zona de intersecção entre

background social, econômico e cultural de sua terra de origem, contexto político e

econômico de ambas as nações no período de migração e condicionantes de inserção na

nova terra com suas oportunidades de mobilidade31.

Longe de se constituir enquanto um fenômeno de fácil explicação, o processo

migratório contempla inúmeros elementos que são cruciais para sua compreensão. Ao

analisarmos os deslocamentos populacionais, percebemos que seu volume, as 30 TRUZZI, Oswaldo Mario Serra. “Redes em processos migratórios”. Tempo Social Revista de

Sociologia da USP, v. 20, n.1. p. 203. 31 TRUZZI, Oswaldo Mario Serra. Italianidade no interior paulista - percursos e descaminhos de uma

identidade étnica (1880-1950). São Paulo: Editora Unesp, 2016. p.20.

motivações que os ocasionam, as experiências de vida nele envolvidas, as rotas e as

circunstâncias globais que o influenciam, o transformam em um fenômeno

plurifacetado.

Escolher quais desses elementos serão privilegiados na análise diz respeito à

quais questões objetivamos responder, elas irão direcionar qual é o nível de escala mais

adequado para nosso objeto. Utilizar à micro-história e compreender as subjetividades

que estão postas nesse processo e analisar o indivíduo oferece um caminho tão profícuo

quanto compreender os aspectos macro que envolve os aspectos políticos, econômicos e

culturais que envolvem o ato de migrar. A diversidade de olhares auxilia para um maior

entendimento de como sucedem as migrações internacionais.

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